desvios de conduta da administração pública · exerce prerrogativas que lhe são conferidas...
TRANSCRIPT
Desvios de Conduta da Administração Pública
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Econômico da Universidade Federal da Bahia.
Celso Luiz Braga de Castro
DESVIOS DE CONDUTA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Introdução
O primado da legalidade na ambiência da
administração pública tem sido enfatizado em toda literatura clássica como
garantia da efetividade dos direitos de cidadania.
Tornou-se corrente afirmar que, enquanto a relação
do particular com a lei é simplesmente de não-contradição, ao revés, o
administrador público deve pautar sua conduta subsumido ao ordenamento,
ficando estabelecido, pois, um vínculo de conformação.
Isso não tem impedido que a visão prismática do
Estado se faça pela ótica preferencial da relação de Poder.
A partir dos textos constitucionais, encontramos
nítida a ênfase da potestade tripartida em Executivo, Legislativo e Judiciário,
enquanto no âmbito administrativo, larga parte do estudo jurídico tem se
debruçado sobre os poderes da administração.
A presente dissertação parte do pressuposto de que o
Poder é simplesmente um meio e não um fim em si mesmo.
Sua posição é ancilar ao papel de maior relevância
que se concede a um ente público, qual seja o cumprimento do dever.
Todo Poder que não seja devoto de uma função
social revela-se como opressor e conspira contra o Estado de Direito.
Na axiologia jurídica, o primado da liberdade cede
espaço à autoridade, tanto quanto esta devolva, em troca, o grau necessário de
segurança e de bem-estar à sociedade.
2
Consideramos, a partir daí, uma medida inevitável,
segundo a qual todo Poder é mero instrumento de cumprimento do dever e só
nesta medida e com esta restrição é que ganha foros de legitimidade.
Para que não se exceda no seu raio de ação,
desvirtuando-se da destinação que lhe é própria, imperioso é que seja vigiado
e controlado.
Apesar de tudo, os que se acercaram de parcela de
mando cuidaram historicamente de hipertrofiá-la em conotações que variam
de grau ao longo da história da humanidade.
Sob o império do absolutismo, o reinado confundia-
se com a soberania, não havendo qualquer espaço reivindicatório deferido aos
súditos.
Prevaleceram, por muito tempo, as máximas “quod
principi placuit habet legis vigorem” (A vontade do príncipe tem força de lei)
“the king can do no wrong” ou “le roi ne peut mal faire” (o rei não pode
cometer erros).
O princípio da legalidade que veio a ser consagrado
não afastou o fantasma da opressão.
Sua pauta é um avanço sensível, mas o seu
estreitamento conceitual pode transformá-la em uma verdadeira cortina, capaz
de interditar a visão mais nítida de aspectos patológicos no comportamento
público que não são flagráveis, “prima facie”, como uma violência direta a
própria lei.
3
As resistências a um controle que alce vôo para além
da “lex”, exibem-se protegidas, não raro por falsos dogmas, dentre eles, quiçá,
o mais forte - o da separação dos Poderes.
O certo é que a veneração do Poder em altar mais
nobre do que aquele em que se processa o culto da liberdade é,
provavelmente, a fonte mais rica dos desvios de conduta sobre os quais se
debruça esse trabalho.
Em uma contribuição ao estudo do que
denominaríamos, em sentido amplo, “teoria da arbitrariedade”, procuraremos
desfiar as mais pujantes manifestações do descaminho da administração.
O ponto de abertura dá-se, exatamente, a partir do
estudo genérico da figura do arbítrio, marca reveladora do descompasso entre
a administração e o interesse público e de cuja figura se emergirão as demais
outras.
A sequência de trabalho enfrenta uma reabordagem
do chamado desvio de finalidade, apontando-lhe nunces novas, questionando-
lhe aspectos, dados como assentados.
Em seguida cuida-se do desvio de procedimento,
figura quase ignorada no nosso sistema jurídico, não obstante o seu relevo, a
sua significação e a necessidade do aprofundamento do seu estudo.
Em especial, foi dado destaque ao silêncio
administrativo, como manifestação específica da inércia administrativa
genérica por se revelar como pauta de procedimento juridicamente reprovável
por parte da administração.
4
Agindo ou omitindo-se a administração pública ora
exerce prerrogativas que lhe são conferidas indevidamente, ora faz uso
indevido daquelas que, com legitimidade, lhes são outorgadas, conspirando
em um e em outro caso contra o interesse público.
Nesses descaminhos, encerramos a dissertação com
o estudo do enriquecimento ilícito, meio pelo qual a administração
desequilibra as relações societárias, operando uma injustiça na distribuição da
carga pública e traduzindo uma forte quebra no princípio do tratamento
igualitário entre os cidadãos.
A dissertação teve, como propósito básico, o enfeixe
sistematizado de figuras que estão a merecer um tratamento teórico
uniformizado, para que melhor se possa compreender os seus pontos comuns
e em sequência desenvolver uma profilaxia adequada.
Sempre sentimos falta de um estudo sistematizado
do que denominamos emanações patológicas da administração, um pouco a
exemplo do que se dá no direito civil com a chamada “teoria dos vícios” nos
negócios jurídicos – essa é a despretensiosa contribuição que julgamos poder
oferecer nessa área tão palpitante do direito administrativo.
A ótica de enfrentamento levou em conta,
deliberadamente, aspectos estruturais de cada uma das figuras, de modo a se
delinearem os traços mais significativos, as evidências mais palpáveis, os
sinais mais visíveis, deixando-se de lado cogitações mais pontuais ou
setorizadas.
O direito positivo brasileiro é trazido com
frequência, mas sobretudo, como exemplo e como forma de inserção no
contexto maior do direito administrativo em geral.
5
O estudo da jurisprudência mereceu destaque
especial pela nossa íntima crença em que o direito mais pulsante é aquele
efetivamente praticado nos tribunais.
De outro lado, abandonamos um pouco a dedução
para construirmos categorizações a partir de um processo indutivo, tomando-
se em conta as realidades emergentes.
Afinal, o direito administrativo, historicamente, foi
construído mais pelos juizes do que pelos doutrinadores.
Nesta hora, o que fizemos foi juntar esforços.
Bem sabemos que a abordagem de segmentos não
explorados ou pouco visitados, envolve riscos muito grandes.
O primeiro desses riscos concerne em não se
encontrar a reflexão crítica prévia, como termômetro capaz de aferir o acerto
ou desacerto das nossas ilações.
O segundo entrave conecta-se, exatamente, à
imperfeição metodológica na abordagem, já que as trilhas não se encontram
abertas.
Um último ponto que nos acorre, diz respeito à
dificuldade na busca das fontes que, por natural, se tornam inexistentes ou
escassas.
Estamos convencidos desses obstáculos, mas, por
igual, alentados com a possibilidade de trazer algo com alguma valia.
Menos pelos acertos que esse trabalho possa conter,
mas, muito mais pela provocação que possa gerar uma reflexão global e
6
sistematizada sobre os desvios de conduta da administração pública e a busca
dos corretivos adequados, encontramos o alento para idealizá-lo.
Que venha a crítica! Será mais do que bem vinda.
Será essencial.
7
CAPÍTULO I
DA ARBITRARIEDADE -
Tomaremos, como arbitrária, a ação administrativa
não lastreada em uma causa racional e eficiente à sua adoção.
Nesse sentido, a expressão é colhida, também, como
gênero do qual são espécies todos os desvios de conduta - daí o porquê da
primazia da abordagem que se concede agora.
A arbitrariedade, como um vírus que destrói o
organismo social, aloja-se, de forma quase sempre disfarçada, em atitudes ou
ações revestidas de um grau de aparente credibilidade.
Pretende-se demonstrar que determinadas categorias
aceitas como suporte de uma doutrina geral do direito administrativo não
estão imunizadas contra a inoculação arbitrária, revelando-se, muito ao
contrário, como terreno propício a sua disseminação.
Da Razoabilidade -
Abandonemos os fetichismos, para
compreendermos, com mais facilidade, que, em torno da matéria, o cerne da
questão está em que a solução jurídica busca a razoabilidade, como critério
de interpretação, excludente da arbitrariedade.
A conduta administrativa será arbitrária se não vier
atrelada a um traço de razoabilidade cuja presença é o aval absoluto e
indispensável de sua legitimidade.
É o que desejamos estabelecer, para maior alcance
do conceito da arbitrariedade, o contra ponto com a razoabilidade de tal sorte
que a presença de uma exclua a da outra.
8
O enfrentamento de tal postura reclama um estudo
da natureza do direito, de ordem a encontrá-lo como ciência dedicada ao
comportamento humano, do que resultante, necessariamente, da sensibilidade
aos valores que são intrínsecos ao alvo de enfoque.
Efetivamente, nas ciências ideais, como nas naturais,
a perspectiva da valoração, não contribui absolutamente para a riqueza do
conhecimento distintamente do saber da cultura, cuja compreensão passa
necessariamente por esse patamar.
Se alguém tece considerações estéticas sobre a
figura geométrica, considerando, o círculo como símbolo da perfeição, em
nada acresce a descoberta matemática das propriedades que tal figura guarda.
Na mesma trilha, é irrelevante, do ponto de vista do
naturalista, que se projete conceito de formosura sobre um certo animal ou de
horripilância em relação a outro, porquanto, efetivamente, a tal segmento
específico só importarão classificações de ordem biológica, tais como, a
filiação a uma determinada espécie, a um certo gênero ou mesmo a um dos
três reinos.
Com a cultura na qual se insere a massa de
modelagem do jurista, passa-se fenômeno inteiramente diferente.
Nenhum hermeneuta do direito conseguirá realizar a
subsunção da norma à conduta, se não fotografar os valores que circundam o
trajeto interligatório entre o fato e a norma em questão.
Daí, para conceituar um procedimento como furto, o
operador jurídico verificará que, na comunidade onde se desenvolve a
incriminação de tal prática, considera-se reprovável a subtração da coisa
alheia móvel.
9
Esse conceito de reprovabilidade não é
absolutamente o do agente, mas aquele inerente aos valores societários
imantados.
Não fosse isso, poderíamos ter posturas inteiramente
díspares, como a de um juiz, supostamente marxista extremado, que
considerasse toda propriedade como algo de coletivo, não vendo mal algum
em que se tomasse para uso coisa que necessariamente não seria privada, mas
destinada ao desfrute comum de todos.
Esse hipotético juiz absolveria o acusado de tal
conduta.
Ao revés, um julgador, devoto rigoroso do
capitalismo, veria na agressão à propriedade individual o mais hediondo dos
crimes, aconselhando-se a impor a pena capital ao transgressor desse ícone
sagrado.
Devemos convir, em qualquer circunstância, que,
independentemente do perfil ideológico, enquanto juízes, um e outro, em uma
comunidade como a nossa, não podem desconsiderar a ilicitude da conduta
como por igual e não lhes cabe o exarcebamento da pena além do marco
legal.
Com esse raciocínio, quer-se demonstrar que a tarefa
no Direito não é a de projetar valores sobre determinado objeto, mas
encontrar aqueles que lhe são próprios.
Nessa linha de exposição, veremos que o
administrador e o juiz não são absolutamente sujeitos de vontade, mas
intérpretes sensíveis de matizes sociais impregnados na vigência societária
com a força da juridicidade.
10
Vai daí que não se pode conceder uma liberdade
ontológica de escolha da administração na prática de determinados atos, mas
antes só se lhe pode admitir o dever de interpretar, coerentemente, o que
recomendam as instâncias normativas – essa premissa é tão válida nas
condutas vinculadas quanto nas discricionárias.
Se a norma condominial proibir que se criem
animais de quaisquer espécies em unidades residenciais, agirá
desarrazoadamente o síndico do edifício que proíba a manutenção de um
simples aquário, embora a regra repressora seja de caráter fechado.
Do mesmo modo, não terá fundo de razoabilidade a
construção de uma escola de primeiro grau em uma área onde
comprovadamente inexista demanda escolar, malgrado se possa entender que
a previsão de edificação de prédios escolares ensejaria conduta discricionária.
Não deve causar espanto a idéia de que
administrador e juiz estejam convocados permanentemente a fixar
procedimentos discriminatórios, porque esse é exatamente o papel da norma.
Fundamental é discutir-se a razoabilidade ou não do ato de discriminação, isto
é, o seu assentamento em bases legítimas.
Essa idéia vem claramente exposta por Moris
Forkosch, Professor de Direito Constitucional da Brooklyn Law School: “The
right to legislate implies the right to classify... From the very necessities
of society, legislation of a special character, having these (police power)
objects in view, must often be had in certain districts... Special burdens
are often necessary for general benefits... In other words, general
legislation which applies to all persons (or property), and gives or takes
equally from all, is contrasted with special legislation which applies to
11
less than all, and gives or takes special burdens to or from this special
group” (1)
Percebe-se, então, que o antídoto contra a
arbitrariedade é exatamente a razoabilidade na decisão, seja ela administrativa
ou judicial.
No sistema norte americano, a idéia da razoabilidade
tem fincado marcas na busca de um critério que, embora aplicado a uma
situação, seja por igual estampado em situações análogas.
Devemos à jurisprudência norte-americana a
construção da categoria doutrinária das chamadas classificações suspeitas,
que são aquelas que não derivam de uma base lógica, mas antes emergem de
fatores absolutamente aleatórios ou incontroláveis.
Nessa linha, estariam os discriminativos
relacionados a sexo, credo, cor e outros tantos. A nítida repercussão
pragmática desse arcabouço reside em inverter-se a presunção de
constitucionalidade do ato legislativo.
Classificações suspeitas, como se passou a
denominar um mecanismo discriminatório espúrio, envolveriam a resultância
de um efeito a partir de uma causa absolutamente não aceitável.
O que importa é saber que a arbitrariedade emerge
não do processo distintivo em si mesmo, mas do critério inaceitável da
distinção.
A Corte Constitucional Italiana tem buscado
estabelecer um critério de racionalidade de modo a admitir ou não as 1 Apud. Carlos Roberto de Siqueira Castro, O Devido Processo Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, p.156.
12
discriminações legislativas ante o princípio formal da igualdade de todos
perante a lei.(2)
San Tiago Dantas a respeito da razoabilidade das
classificações legislativas oferece-nos um exemplo, segundo o qual seria
aceitável dispensar-se de um determinado exame um cientista de notório saber
em uma área específica, ao mesmo tempo em que se teria por inadmissível
dispensá-lo do pagamento de impostos por esse mesmo motivo. Na primeira
situação uma discriminação razoável, na última um procedimento arbitrário.
(3)
Há que se estabelecer, portanto, um divisor de águas,
a partir do qual se estabeleça que um ato administrativo (ou legislativo) é
arbitrário pelo atrelamento desarrazoado de causas inadmissíveis a
conseqüências inaceitáveis. Em contrapartida, é razoável quando se suporta
em uma premissa eficiente que instigará um efeito adequado.
Veja-se, no particular, interessante aresto em que se
considerou arbitrária a exigência de uso de uniforme por servidor público,
quando tal fardamento em nada aproveitava ao desenvolver das atividades. A
Corte julgou desarrazoada a pretensão do ente administrativo.(4)
Por um Critério de Razoabilidade Excludente da Arbitrariedade -
Afinal, o que deve ser considerado razoável e o que
deve ser tido por arbitrário na administração pública?
2 Biscaretti di Ruffia, Diritto Costituzionale, p.719. 3 “ A lei que isentasse de concurso o premiado com a mais alta distinção científica seria aceita pela consciência geral como lei justa; se, porém, dispensasse esses mesmos premiados de pagarem o imposto de renda ou, ainda mais, se lhes retirasse o direito de voto, sente-se que a provisão seria arbitrária, e indaga-se se o Poder Judiciário pode recusar-lhe aplicação por motivo constitucional.” (Problemas de Direito Positivo, p.56) 4 “Administrativo. Servidor civil. Obrigatoriedade do uso de uniforme. A obrigatoriedade do uso de uniforme sem qualquer vinculação com a operacionalidade da função exercida ou qualquer relação de razoabilidade com o interesse público ou funcional é exigência descabida e arbitrária que vicia o ato por ausência de legitimidade”. (DJ 04.10.91, pag.24460)
13
Um recurso à psicologia existencial nos leva,
necessariamente, a convir que a estabilização das relações humanas repousa
em laços básicos de confiança em condutas de futuridade a partir de um
histórico anterior.
A experiência antecedente é sempre o grande
conselheiro no que tange à previsibilidade do acontecimento futuro, e a nossa
linha de ação acomoda-se quando as coisas acontecem dentro desse grau de
previsível apoiado na nossa vivência histórica.
Tem-se dito, sem contestação, que o conhecimento
do passado é a melhor forma de enfrentamento do futuro, porque há sempre a
idéia de um movimento cíclico na existência que reproduz os fatos já
acontecidos.
Não é por nada que a visão hegeliana da tese,
antítese e síntese, ganhou tanto prestígio, exatamente pelo significado de que
o extrato sintético não é mais do que um desdobramento de processos
antecedentes.
Admita-se que uma visão pós-moderna do direito
busca reconstruir uma escala em que se contemple a tese, a antítese e a
convivência; esta última, como momento de equilíbrio, no qual é possível
sustentar-se a sociedade sem aguardar novas verdades, relativizando-se as
visões já postas.
De tudo resulta a busca de um binômio
confiança/estabilidade, em que o primeiro elemento projeta o segundo.
Embora consideremos sempre arriscado o recurso à
metodologia de outras ciências, não fugimos em busca da construção do
14
razoável a um conceito de progressão que revela, exatamente, um
encadeamento confortável do espírito lógico.
Se no exercício de progressão matemática simples
enuncio 2, 4, 6, 8, nutrimos a segura esperança de que o leitor continue o
nosso enunciado inscrevendo os dígitos 10, 12, 14, 16..., sucessivamente.
Se não quebramos essa ordem, não incluímos
bruscamente um elemento estranho, (41.p.ex.) processo uma atitude razoável
e, portanto, posso dizer que o dígito 12 não foi incluído arbitrariamente.
A sedimentação desses conceitos deverá impedir a
sobrevivência maldita do que denominaremos “crônica de uma liberdade mal
contada da administração pública”.
A Liberdade na Administração Pública: Um Mito Perigoso -
É hora de dizermos algumas palavras sobre o que se
tem chamado de liberdade plena, liberdade restrita ou margem de liberdade na
administração pública.
Radicalizemos. A administração não tem, nunca,
nenhuma liberdade.
O ponto de partida para essa afirmação categórica
decorre da avaliação lógica do poder.
O seu caráter instrumental emerge da circunstância
já afirmada que toda potestade reduz a carga de liberdade, valor primacial no
ordenamento jurídico, porque diz com a sua própria carga de existência.
15
Não há direito, se não há liberdade, na medida em
que a perspectiva da licitude ou da ilicitude supõe uma relação contigencial e
não necessária.
Não é possível, por óbvio, juridicizar a conduta dos
animais que percorrem um mesmo traçado, nem a dos vegetais que
desenvolvem-se no ciclo repetitivo ao longo da história.
Só o homem é ator e sujeito do Direito, porque pode
ser livre; daí a liberdade ser a essência da energia jurígena.
É inequívoco então reconhecer-se que a
administração pública ao estabelecer parâmetros e limites, para garantir a
liberdade de uns, cerceia a de outros.
Nesse ato constritor da liberdade a que
denominamos poder, que se aparelha para o cumprimento do dever
administrativo, não pode haver liberdade de nenhuma espécie e em sentido
próprio.
Ninguém tem a liberdade de tirar a liberdade alheia.
Por essa norma, qualquer flanco que induza a liberdade na administração
envolveria um caráter opressor.
Se tiver alguém a liberdade de interditar uma rua
quando deseje e se a interdito, baseado pura e simplesmente nessa liberdade,
não faço outra coisa senão oprimir os seus moradores e desgarrar-me do papel
de administrador.
Afinal, ad-ministrar significa ministrar para alguém
e em proveito de alguém. Em contrapartida, a liberdade se exercita em
proveito próprio e pessoal.
16
Se essas colocações epistemológicas não bastassem,
valeria recorrer ao argumento de que ao se admitir alguma liberdade na
administração, nenhum recurso seria permitido em relação aos atos do
administrador, porque a liberdade que exercito é irrevisível por terceiros.
A conclusão ,é portanto, óbvia. A exercitação dos
poderes administrativos não tem qualquer grão de liberdade a tal ponto que o
administrador possa, mas não deva, porque se tiver possibilidade é porque
terá o dever de realizar.
Descarte-se, em direito administrativo, a faculdade
que não seja prestação, para se prestigiar a doutrina italiana que ensina
encontrar-se o administrador público em pleno estado de “doverosità”.
De tudo se infere que liberdade na administração é,
desenganadamente e em qualquer porção, arbitrariedade.
Enfrentemos, agora, a questão das condutas
vinculadas e das discricionárias com o objetivo de demonstrar uma certa
manipulação conceitual nesses segmentos, capaz de permitir a prática do
arbítrio.
Atos discricionários e atos vinculados, eis uma
dicotomia tão ao gosto da doutrina tradicional que nos desafia a dissecá-la,
para evitar os descaminhos que estamos a perseguir.
Em sede vinculada, o modelo a ser seguido
encontra-se pré-ajustado e delineado na própria lei, de modo que a
racionalidade do ato administrativo decorreria do seu exato cumprimento,
enquanto que o arbítrio emergiria do seu desvio.
17
Logo, se o contribuinte do imposto sobre a renda
tem um determinado ganho, submeter-se-á ao pagamento de um valor,
segundo uma alíquota pré-fixada, sem que se cogite de qualquer outra
alternativa.
Do mesmo modo, aquele aprovado em primeiro
lugar em concurso público deve ser chamado com preferência sobre os
demais, única postura juridicamente admissível.
Diz-se que é fácil perceber quando o procedimento
foi legítimo ou, ao revés arbitrário, desafiando nesse caso os corretivos
judiciais sem causar maior polêmica.
Toda a dificuldade, contudo, exibir-se-ia no
momento em que a preceituação normativa não comportasse uma hipótese
fechada mas, ao contrário, uma situação, hipoteticamente aberta.
É exatamente quando o comportamento não se acha
plenamente dirigido e que, portanto, pode se referir a uma ação discricionária,
o momento mais vulnerável para inocular-se na ação administrativa o viés da
arbitrariedade.
Necessário, pois, redefinir conceitos, aprimorar
esquemas lógicos de modo a não permitir a presença de “corpo estranho” por
força de uma indefinição epistemológica.
O primeiro passo consiste em estabelecer a real
distância, abandonando, sem receio, velhas concepções entre “ato vinculado e
ato discricionário”.
18
Descarte-se de plano a idéia de que pode haver
vinculação plena, isto é, prática de ato exatamente idêntico, em sua dimensão,
àquele capitulado na norma.
Por mais que o legislador tenha se esforçado para
preconizar uma determinada solução, nem sempre será esta realmente
possível ante a variável imensa da liberdade humana que comporta uma
interpretação jurídica inteiramente diferenciada da exegese normativa “in
abstracto”.
Essa convicção resulta de uma melhor teoria do
direito que entende que a exata interpretação é da conduta e não da norma.
Tomemos a seguinte situação real:
Deverá o juiz alterar o prenome de uma pessoa,
segundo a lei brasileira, quando tal indicativo a exponha ao ridículo, ou ainda
quando se verifique erro de grafia no assentamento?
Noticiou a imprensa nacional que determinada
brasileira, mantida sob a guarda do serviço de proteção a testemunhas do
governo americano, corria perigo de vida ao prestar depoimento contra a
máfia daquele país, pretendendo, por isso, transferir-se para o Brasil,
naturalmente incógnita, tendo realizado operação de plástica facial, ao tempo
em que iria requerer a alteração dos elementos de sua identidade.
À luz dos termos expressos da lei, tal pleito não
poderia ser agasalhado, tendo em vista o limitado espaço concedido ao
julgador.
19
Concordarão todos – sem hesitação - que a negativa
a tal pretensão importaria em desprestigiar o direito à vida - o de maior grau
na escala dos contemplados no ordenamento jurídico.
Contraposta, por esse ângulo, a norma ao fato, a
solução jurídica deve-se amoldar à realidade, não se devendo ter por
injurídica a conduta do magistrado que dê trânsito ao petitório.
Com esse singelo exemplo, pretende-se mostrar que
não há conduta plenamente vinculada, do que são indícios suficientes, a teoria
da imprevisão, da inexigibilidade da conduta diversa, da aferição da
capacidade contributiva, dentre outras suscetíveis de ensejar a exata
qualificação jurídica, diante de um “standard” pré-concebido.
Inúmeras outras situações poderiam ser levantadas
em que o aparente cumprimento da lei, na sua concepção abstrata, resultaria
em plena agressão à harmonia do ordenamento jurídico.
Considere-se que, por uma questão de legalidade
estrita, não é dado a um motorista trafegar em sentido contra-indicado em
uma determinada artéria. Além do risco natural de vida, praticará uma
ilegalidade pré-definida.
A ilegalidade não estará presente, logicamente, se
esse condutor estiver a bordo de uma ambulância ou de um carro qualquer,
em busca de agilizar trajeto com o fim de conduzir um acidentado a uma casa
de saúde.
Nesse caso, o ordenamento jurídico, longe de
anatemizar a contra-mão, descerá sobre ela suas bençãos, porque naquela
circunstância, no encontro de valores, a obediência ao indicativo de tráfego
ficou superada em relação à proteção à vida.
20
Multiplicados poderiam ser os exemplos, a partir dos
quais a modelagem legal, por mais inflexível que pareça, cede espaço a uma
conduta vivenciada de modo atual, como a mais adequada.
Afinal de contas, “dura lex, sed lex” não passa de
um adágio de boa rima, mas de pouca consistência.
Vinculatoriedade e discricionariedade são, como
pretendemos demonstrar, muito mais uma questão de grau, do que de
qualidade.
A arbitrariedade, como já vimos, pode residir, quer
nos atos vinculados, exatamente, às vezes sob o argumento de se estar
cumprindo a literalidade da lei, quanto pode se verificar nas chamadas
condutas discricionárias em que o “tatbestand” acha-se potencialmente aberto.
É exatamente, todavia, no campo da
discricionariedade que proliferam os atos arbitrários com mais vigor.
Vale, pois, aperfeiçoar-se o conceito da
discricionariedade para se evitar, justamente, que nela o arbítrio se aloje.
Discricionariedade Revisitada -
O primeiro aspecto que deve chamar a atenção será
o da adoção de condutas dirigidas ou herméticas que gerariam atos vinculados
e, ao contrário, a existência no texto legal de remissões a condutas não
delineadas ou a escolhas múltiplas e compatíveis.
Não é de se supor, como bem percebe Celso Antônio
Bandeira de Mello(5), que o legislador tenha revelado extrema preocupação
com a conduta adequada em certas situações, de tal modo a prever a 5 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, p.32
21
ocorrência de fatos com seus exatos desdobramentos e, por outra parte tenha,
mostrado inteira indiferença pela solução que lhe venha a dar o administrador.
Não parece admissível que o fato de tornar a licença
para construir em ato vinculado, isto é, ensejando de antemão ao administrado
cotejar a sua possibilidade, sem margem de esquiva para a administração,
traduza-se numa preocupação de resultado pela instância legislativa, enquanto
que, ao exigir autorização para criação de uma escola, dependente da análise
de fatores circunstanciais não pré-estipulados, sintonize com um desinteresse
pelo desfecho.
Seria inteiramente vesga a ótica que estabelecesse a
distinção entre atos vinculados e discricionários, conferindo aos primeiros alta
importância, enquanto aos últimos baixa significação.
O lógico e intuitivo é concluir-se que o legislador
imagina sempre a conduta ideal, traçando parâmetros ora mais fechados, ora
mais abertos relativamente aos supostos fácticos dos efeitos jurídicos
derivados.
O certo é que, em qualquer circunstância, a exata
solução jurídica só se plenifica com a impactação do fato à norma hipotética,
produzindo-se, então, o direito.
É falso, além de malicioso, o mito de que a
discricionariedade resultaria no propósito de conceder-se liberdade de ação
para o administrador, negada nos atos vinculados.
Ao permitir-se, como ocorre, o manejo flexível do
orçamento pelo Executivo, não se pode imaginar que os gastos na
administração pública não mereçam um controle mais acurado.
22
O fenômeno é simplesmente o de que o
aprisionamento da despesa poderia gerar, segundo as circunstâncias,
resultados indesejados, decorrentes de um planejamento rígido que não se
tornasse adaptável aos eventos factuais.
Ainda que a administração pública possa dispor de
verbas para investir em segurança, age, ilegalmente, o administrador que faça
construir um presídio feminino com alojamentos substancialmente superiores
ao contingente previsível de infratoras a serem abrigadas.
Outra conclusão não resta senão a de que a busca da
otimização do resultado é que leva, em um determinado momento, a
preestabelecê-lo com traços mais nítidos e, em outros, a fixá-lo “a posteriori”,
assegurando uma interação mais rica. Disso deflui a absoluta inexatidão no
sentido de que a discricionariedade se reflita, ontologicamente, em uma
margem de escolha.
Demonstrar-se-á, a seguir, que essa suposta margem
é absolutamente inocorrente, quando a largueza das hipóteses, na concepção
abstrata da norma, reduz a solução concreta a uma postura única.
Nos moldes da Constituição Brasileira, o ensino é
livre à iniciativa privada e sujeito a autorização e sistemas de avaliação e de
controle de qualidade por parte do Estado.
Em outros países, como na Espanha, (Constituição,
art.27) regras semelhantes estão postas.
Dir-se-á que, nesses modelos políticos, conferiu-se
discricionariedade na outorga necessária ao funcionamento de
estabelecimentos escolares.
23
A primeira tentação é a de se afirmar que, nesse
caso, confere-se liberdade ao Estado na avaliação necessária à autorização de
criação de uma escola.
Agora, suponhamos que um empreendedor voltado
com a preocupação altruística da qualidade de ensino, apresente entre nós um
projeto acadêmico para uma Faculdade de Direito, com professores, todos
eles portadores do grau de doutor, com as mais modernas instalações, os mais
sofisticados equipamentos, turmas reduzidas e tudo mais quanto se pudesse
imaginar em termos de excelência.
Submetido tal projeto aos órgãos competentes,
caberia perguntar se estaria eventualmente aberto à negativa de autorização.
A resposta será necessariamente única. É dever do
Estado assegurar o funcionamento de tal escola sem quaisquer outras
conjecturas, sob pena de completa traição à ideologia da norma.
Com isso, pretende-se fixar a idéia de que, em dados
momentos, a decisão converge para um único vetor, não deixando qualquer
alternativa ao administrador.
De outro modo, teríamos que admitir que o
legislador deixou de ser uma instância valorativa da sociedade para transmiti-
la ao administrador.
Tomemos um outro paradigma que nos diz bem de
perto do exercício da tarefa docente na Universidade: Com o propósito de se
estabelecer um ordenamento no processo de verificação de aprendizado dos
alunos fixou-se a realização de exames periódicos em datas unificadas para
todos os discentes.
24
Acudiu, em boa hora, à Instância Universitária a
previsibilidade de que algum aluno não pudesse comparecer em determinada
ocasião ao exame designado.
Fixou-se, então, uma Resolução pela qual o
estudante seria admitido a realizar a prova em segunda chamada em caso de
doença comprovada pelo serviço médico da instituição ou por motivo
relevante a critério do professor.
Vê-se, aí, que a norma criou dois pressupostos, um
deles de caráter vinculado e um outro de natureza discricionária.
Quanto ao primeiro, não há dúvida de que o
interessado enfermo, comprovando, por atestado, tal circunstância, fará a
prova.
Em caso contrário, tudo dependeria do critério do
mestre.
Agora, imagine-se que o seu discípulo dirija-lhe
explicação na qual demonstre que não pôde acorrer ao teste, porque, quando
se dirigia ao estabelecimento escolar, foi compelido a dar socorro a um
acidentado, levando-o a um hospital, de tal sorte que só se desvencilhou de tal
missão a desoras.
Não se quer imaginar a possibilidade de que um
lente venha a negar uma segunda chance, escudado na premissa de que tudo
dependeria de um seu critério e, como tal, produto de uma vontade.
Soa evidente que uma negativa de tal ordem seria
despropositada e ao que nos interessa, flagrantemente ofensiva ao
ordenamento jurídico.
25
A expressão critério, nesse caso, não deixou
margem a que a única conduta possível fosse a admissão da segunda
chamada.
Há de se admitir, por esse raciocínio, que a ação do
administrador envolve uma interpretação única e razoável, para além da qual
remanescerá o puro arbítrio.
Em especialíssimas circunstâncias, pode-se imaginar
a impossibilidade existencial de vir o Judiciário a detectar, dentre as
possibilidades em jogo, qual delas realiza com mais precisão o desígnio
normativo em um dado momento.
Continuar-se-á negando a possibilidade de escolhas
múltiplas, muito embora, nesse caso, por mera insuficiência instrumental, não
seja dado ao Judiciário substituir o administrador sem a segurança de estar a
realizar um juízo corretivo.
Tão somente nesses casos é que o Poder Judiciário
não anulará a ação tomada, sem que isso signifique a sua impossibilidade de
adentrar ao exame amplo e profundo da deliberação acolhida, exatamente
para concluir pela existência de mais de uma opção não descartável, segundo
uma ótica aguçada, como adequada à situação.
Cumpre acrescentar que as posições de vanguarda
têm admitido o controle judicial, mesmo nas ações administrativas mais
delicadas, quais sejam aquelas que, além de envolverem uma diagnose,
também concentram um alto grau de prognose, como se dá no chamado
“exercício do planejamento”.
No direito alemão, proliferam as situações de
controle judicial em hipóteses, dessa ordem, como a de verificação de
26
necessidade de construção de escolas, de edificação de pistas rodoviárias, de
interferência no sistema de trânsito.
À guisa de exemplo, Antonio Francisco de Souza
nos traz o seguinte e valioso depoimento: “ ...os tribunais administrativos
alemães têm exercido o seu controle, por exemplo, nos seguintes casos:
Verificação ou não da necessidade de construção de uma escola;
necessidade de descongestionamento do trânsito de uma estrada; fixação
de um limite de velocidade; determinação do número necessário de
partidas paralelas aos caminhos-de-ferro para o descongestionamento do
trânsito; alteração de sentido de uma estrada; orientação e gestão de uma
estrada; construção de uma pista para aviões; construção de um
cruzamento, de uma passagem subterrânea ou de uma ponte;
características técnicas de uma estrada; escolha do troço de uma
estrada”.6
É evidente que, nessas circunstâncias, a mensuração
do ato administrativo dá-se dentro de determinados limites, com o fim de se
afastar a arbitrariedade.
Nesse sentido, os tribunais investigam se a causa da
escolha é eficiente, se os métodos de avaliação foram rigorosos, se é
sustentável a valoração dos interesses individuais frente aos interesses
públicos, se é proporcional o equilíbrio entre os interesses em causa, se existiu
ou não um juízo de ponderabilidade.
Obviamente, o auxílio de dados estatísticos, de
cálculos probabilísticos, de estudos socio-econômicos são fundamentais ao
preenchimento da idéia de sustentabilidade jurídica da decisão tomada.
6 Conceitos Indeterminados no Direito Administrativo, pag.154/155
27
Essa postura é colocada de antemão para
verificarmos o quanto se acha perdida no tempo a concepção de controle
administrativo, ainda vigente em muitos sistemas, dentre os quais se inclui o
brasileiro que, por vezes freqüentes, estabelece a insindicabilidade plena,
quando não resvala para a idéia da discricionariedade técnica, isso tudo sem
falar no apelo aos conceitos indeterminados, objeto de uma reflexão mais
demorada nas páginas vindouras...
Da Chamada Discricionariedade Técnica -
Dentre as diversas tentativas de subtrair ao controle
do Poder Judiciário os atos discricionários que, como temos visto, reclamam,
bem ao contrário, maior profundidade na incursão, exatamente para aclarar a
existência de uma ou de mais opções e se entre várias existe a mais adequada,
descortina-se o apelo à chamada discricionariedade técnica.
A expressão é originária de Bernatzik, eminente
Professor da Escola de Viena que, nos idos de 1886, em obra sob o título
“Rechtsprechung um materielle Rechtskraft”7, capitulou determinadas
soluções administrativas como resultado de um complexo processo de
encadeamento que não se resolveria em puro silogismo, a administração
pública desataria as suas decisões, projetando um estado de multivalência
inabalável pelo Poder Judiciário.
O pensamento foi, durante muito tempo, prestigiado
nos tribunais austríacos, vindo depois a cair em declínio.
Tudo, não obstante, fez fortuna entre os países que
compõem o chamado sistema francês, dentre eles Itália, Espanha, Portugal e o
próprio Brasil.
7 Apud. Antonio Francisco de Souza, Conceitos Indeterminados no Direito Administrativo, pag. 34
28
Ainda recentemente, o Superior Tribunal de Justiça
recorreu a essa espécie de categorização, ao entender que, em tema de
concurso público de provas, o Poder Judiciário não pode substituir os
examinadores “quanto aos objetivos fontes e bases das questões”.
Acentuou a Corte que, na elaboração e avaliação das
provas, agem as comissões com discricionariedade técnica.8
É verdade que, nesse tema específico, mesmo a
Alemanha, que desponta em uma posição de dianteira em relação aos demais
sistemas jurídicos, sempre manteve certa reserva, mantendo sobre a hipótese
um controle restrito.
Sucede que, em decisão tomada em 17/04/1991, o
Tribunal Administrativo Federal Alemão ampliou consideravelmente a sua
ingerência sobre a matéria, examinando aspectos, como sustentabilidade
técnica das respostas dos candidatos, dentre outros temas.
Com efeito, não é admissível do ponto de vista
lógico, que a discricionariedade técnica possa ter, como suporte, a dificuldade
que os tribunais venham a ter ao analisar o acerto ou desacerto da
administração.
Se há matéria técnica a ser examinada, para tanto
existem os peritos que, na sua função, prestarão apoio aos órgãos judicantes.
8 “Administrativo - Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional (Edital ESAF/CRS/DPMF/N.35/84) - Concurso público - forma, critérios e conteúdo dos quesitos - competência da banca examinadora - alcance da apreciação judicial. 1. Em tema de concurso público de provas, é cediço que o Poder Judiciário, aprisionado a verificação da legalidade, não deve substituir os examinadores quanto aos objetivos, fontes e bases de avaliação das questões. As Comissões examinadoras organizam e avaliam as provas com discricionariedade técnica. 2. Edital escoimado de ilegalidade. 3. Recurso improvido.” (STJ, RESP-0011211, Turma 01, DJ 26.09.1994)
29
Ainda em Portugal, a escusa da discricionariedade
técnica tem servido, como fonte de alheamento da Corte judicante em certos
aspectos.
Tome-se, a exemplo, a seguinte passagem: “as
decisões que se situam no domínio da discricionariedade técnica da
Administração são judicialmente insindicáveis, sem prejuízo da ocorrência
de desvios de poder, ou em relação a qualquer aspecto vinculado de
incompetência, vício de forma ou violação de lei, e, bem assim, os casos
extremos em que o critério adoptado pela Administração se mostre ou se
revele manifestamente desacertado e inaceitável”9
A inclusão da idéia de erro manifesto gera um outro
tipo de problema, qual seja a de se saber quando uma deliberação
administrativa está equivocada e, ainda com isso, deva ser mantida tão
somente, porque o engano não é manifesto. Mesmo assim, deve ser
considerada como um marco do descortinamento das decisões
administrativas, sombreadas pelo véu da discricionariedade técnica.
Estamos tentando mostrar que a discricionariedade é
o manto preferencial no qual a arbitrariedade busca abrigo. Quanto mais se
puder elastecer a idéia de discricionário, mais se protegerá o arbítrio.
Vai daí que, de um modo geral, sem receio de erro,
podemos afirmar que nas letras nacionais e, em grande escala, nas alienígenas
tem-se buscado inserir o fenômeno da indeterminabilidade conceitual no
elenco que projeta a discricionariedade.
9 Acórdãos Doutrinais n.228, p.1.420 e n.192, p.1.155 — Supremo Tribunal Administrativo
30
Nosso trabalho, agora, é estabelecer os diferenciais
cabíveis para inibir mais um avanço do arbítrio sob uma fantasia, claramente
identificável.
Discricionariedade e Conceitos Indeterminados -
A questão da indeterminação conceitual, embora
transite pelos mais diversos cantões do Direito, colhe acesa importância na
área do Direito Administrativo. É que nas questões civis haverá um único
tribunal a plenificar o conceito, enquanto nesse específico ramo do direito
público, em um dado momento, cabe à administração avaliá-lo e, em um
segundo instante, ao Judiciário perquirir a correção de tal avaliação.
Parece paradoxal que, ao mesmo tempo em que as
demandas sociais fazem proliferar a regulamentação abundante dos diversos
aspectos da conduta, venha a proliferar em larga escala a técnica relativa ao
uso dos conceitos indeterminados.
Urgente, relevante, perigoso, grave, notório,
substancial são expressões utilizadas amiúde, sem que, de logo, se possa dar
um aprisionamento conceitual unificado.
Nem por isso deve-se imaginar que essa
indeterminação de conceito signifique abdicação do legislador em favor da
esfera administrativa.
Ao contrário, a pretensão à abrangência cria
conceitos elásticos, exatamente com o fito de abrigar situações imprevisíveis
ou, no mínimo, de difícil previsibilidade.
31
De igual modo, o uso dos conceitos indeterminados
é propício a preservar a atualização dos padrões jurídicos que, pelo seu caráter
modular, adaptam-se com mais facilidade à evolução temporal.
Nesse compasso, resgatam-se, com mudança de
conteúdo intrínseco, expressões, como “substâncias tóxicas”, “serviços
essenciais”, “segurança pública” e outras tantas, cuja amplitude e dimensões
serão dadas em função da época que regulará a vigência societária.
É óbvio que a busca do “numerus clausus”, nas
direções acima, teria contribuído para a imprestabilidade de normas que
desapareceriam na poeira do tempo.
Disso não decorrerá, jamais, que tais conceitos
possam se afirmar como peças meramente estilísticas, esvaziadas de juízos
normativos, como, lamentavelmente, têm sido tratadas, na prática, por boa
parcela da doutrina e até da jurisprudência.
Em primeiro lugar, urge reativar o discurso, segundo
o qual a determinação ou indeterminação de conceitos é uma questão muito
menos de substância mas, sobretudo, de escala.
Mesmo os signos classicamente tidos como
determinados, exibem-se distintos, quando acareados com a realidade factual
que lhes muda o semblante.
As conceituações indeterminadas jamais perdem um
determinado grau de precisão.
Tomemos a noção de coisa, objeto do estudo dos
direitos reais, no campo do direito civil.
32
Tal idéia, por mais aprisionada que possa parecer,
como elemento de corporificação física, abrangerá talvez o entendimento de
corrente elétrica, a tal ponto de se falar especificamente no furto de energia.
O significado de coisa pode também abranger a obra
de construção civil, cujo valor é mensurável pela quantidade de material
empregado, pela metragem de edificação, ao mesmo tempo em que alberga a
idéia de um livro que será mais ou menos valioso em função da contribuição
intelectual, que revele, e nunca da sua massa ou volume.
A tecnologia, por sua vez, provoca distúrbios na
conceitualização do legislador. Como definir-se morte? A morte cerebral, a
falência múltipla dos órgãos, o estado chamado meramente vegetativo?
Não há, pois, nem a elasticidade plena, nem a
inelasticidade absoluta, tratando-se a questão, fundamentalmente, de uma
variação de grau.
Classificação importante proposta por Martin
Gonzalez, pertinente aos conceitos jurídicos, vale ser aqui reproduzida.
33
34
A transcrição supra demonstra, sem dúvida
nenhuma, um enfrentamento claro e determinado da categorização dos
conceitos jurídicos o que, por si só, a torna valiosa.
Sem embargo disso, não emprestamos a nossa
concordância quanto à estreiteza relativa aos conceitos indeterminados e,
sobretudo, quanto à concepção de que estes, em sentido próprio, não
comportam determinação.
Firme-se que a indeterminação provoca,
necessariamente, a determinabilidade, porque se algo é indeterminável não
tem porque habitar o mundo jurídico, cuja carga de objetividade se revela
como pressuposto da estabilidade das relações sociais.
Velha regra de hermenêutica, aliás, ensina-nos que a
lei não contém expressões ou palavras inúteis do que resultariam, afinal, os
conceitos indeterminados, se fossem privados da apropriação de qualquer
sentido.
Exemplos múltiplos nos vêm a mente para
demonstrar que o caráter indeterminado, quando posto diante de uma
situação, resolve-se em clara e plena determinabilidade.
Todos concordarão que são relevantes para um
professor o estudo e a pesquisa.
Ninguém duvida de que é perigoso dirigir um
veículo em velocidade incompatível com uma determinada via.
Diante de um prédio em incêndio é urgente a sua
desocupação.
35
As obras sociais de Irmã Dulce são benéficas à
população pobre.
Uma cidade infestada por cólera vive um grave
problema de saúde.
A educação é decisiva para o desenvolvimento.
Vê-se, aí, que a indeterminação na hipótese não
impediu uma apropriação induvidosa e única do significado de relevante,
perigoso, urgente, benéfica, grave e decisiva.
Nessas situações, não podemos conceber qualquer
discricionariedade, mas tão somente o desafio a uma interpretação da qual não
se pode afastar o administrador.
Nem ao menos a chamada “zona cinzenta”, onde a
aplicabilidade dos conceitos possa ser tarefa de mais difícil alcance, consegue
convertê-los em “conceitos discricionários”.
Não se negue - é bom prevenir - a possibilidade de
que o legislador queira instituir a conduta discricionária e, para isso, valha-se
de conceitos indeterminados.
Tal postura será meramente acidental, jamais
essencial.
Sobre a matéria, o melhor tratamento que
encontramos de António Francisco de Sousa, justifica que lhe chamemos, de
novo, à colação: “A autoridade legiferante ao aplicar conceitos
36
indeterminados pode ter todas as intenções, menos a de atribuir “ipso
facto” um monopólio de interpretação e aplicação a administração”.10
Efetivamente, nos conceitos indeterminados, temos
uma pauta de valores já cristalizados que impõem um mero juízo de
acertamento na feliz expressão que nos vem da doutrina italiana.
O tratamento igualitário que, de regra entre nós, se
tem dispensado a ambas as categorias, deve-se provavelmente à circunstância
de que o legislador, quando pretende conferir discricionariedade à
administração pública, com alguma freqüência, instrumenta o administrador
com conceitos indeterminados, embora não seja isso uma “conditio sine qua
non”.
Vejamos a hipótese traçada na Constituição
Brasileira, no seu art. 37, onde se estabelece que os cargos em comissão
independem de concurso e, por isso, podem ser providos por livre nomeação,
e os seus titulares são destituíveis “ad nutum”.
A exceção aberta ao princípio do concurso público e
da estabilidade no cargo foi trabalhada, simultaneamente, com um conceito
indeterminado e com uma previsão de conduta discricionária.
Em primeiro lugar, temos a idéia de cargo em
comissão, cuja apreensão conceitual não está entregue ao administrador mas,
por igual, ao juiz e ao cidadão comum.
Que se deve entender por cargo em comissão? Será
qualquer cargo que a lei o considere? Se valer tal raciocínio, não haveria por
que estabelecer-se o conceito, bastando a lei determinar os cargos que
deveriam ser de livre nomeação e exoneração. 10 op cit., pag.80
37
Não é verdadeiro o raciocínio.
Inconstitucional será a lei que torne em comissão
cargos que, em essência, não tenham essa qualidade.
É freqüente assistirmos a burla do legislador com o
propósito de afrontar a universalidade do acesso.
Verifiquemos, de pronto, que, “a priori”, podemos
conceber os cargos em comissão como aqueles que atribuem encargos
relevantes e específicos aos seus titulares, distintos das atribuições rotineiras.
A rigor, o titular de um cargo em comissão expõe a
administração a riscos nas atividades de planejamento e de política
administrativa.
Essa exposição é legítima e não poderia deixar de
ser de outra forma, tendo em vista a ação de vanguarda que deve desempenhar
a administração.
Se um presidente de comissão de licitação “escolhe”
um determinado produto dentro de critérios razoáveis de ponderabilidade,
mesmo quando se demonstre que a “escolha” não foi a melhor, não se há que
responsabilizá-lo, porque esse é um risco inerente à sua atividade.
Não se dará ao mesmo com o vigilante, o tesoureiro,
o motorista, porquanto, embora todos possam pôr a malogro o patrimônio
público, só o conseguirão se agirem com conduta reprovável.
Logo, é lícito perceber-se que não pode a lei criar
como cargos em comissão ou de confiança aqueles destinados a atividades,
como as descritas no último parágrafo.
38
Note-se que o conceito é indeterminado, mas, nem
por isso, impossível de ser preenchido.
Já agora, configurar o verdadeiro cargo em
comissão, se a lei o determinar, o administrador terá a perspectiva de proceder
à indicação do seu titular, bem como de efetuar o desligamento.
Verificou-se, aí, a conjugação de um conceito
indeterminado com uma conduta discricionária.
Nunca é demais insistir que essa discricionariedade
não se dá em favor do agente administrativo. Ao contrário, é feita para
ampliar-lhe a responsabilidade. Sim, porque o agente nomeado em tais
condições constitui-se em verdadeiro “alter ego” do nomeante.
A crítica que se possa fazer sobre o nomeado,
projetará reflexos sobre o administrador dirigente que, por isso, prestará
contas de forma mais responsável pela sua atuação pública, não valendo o
argumento de que não contou com auxiliares capazes ou afinados com sua
direção de modo a propiciar-lhe um trabalho mais profundo.
Veja-se, então, que mesmo essa escolha,
aparentemente livre, pode se encaminhar para um leque mais restrito de
opções, tendo-se em conta uma determinada conjuntura.
Por seu turno, a chamada exoneração “ad nutum”
não chega a ser fiel à literalidade da expressão latina.
Seria um contrasenso jurídico exonerar-se um
servidor sem um motivo real, ainda que não necessariamente declarado.
39
É tanto que, podendo ser o desligamento imotivado,
se a administração o motiva, prende-se inquestionavelmente às razões
declaradas, como tem sido pacificado no nosso entendimento Pretoriano.
O exemplo trazido pretendeu exatamente estabelecer
a distinção necessária entre indeterminação conceitual e ação discricionária.
Permitimo-nos aclarar essas idéias com a
exemplificação dúplice da utilização de um conceito determinado para
suportar uma ação discricionária e, de outro lado, a da referência de um
conceito indeterminado para ensejar uma conduta vinculada.
No primeiro caso, veja-se na Constituição Brasileira
que os Tribunais Regionais Eleitorais têm na sua composição dois integrantes,
necessariamente Juízes de Direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça.11
Nesse caso, ninguém tem dúvida quanto ao conceito
de Juiz de Direito, por abranger aqueles investidos, regularmente, na carreira.
Conceito claramente determinado.
A escolha dos dois contemplados que integrarão a
Corte Eleitoral envolve discricionariedade.
Vamos a segunda hipótese.
No âmbito penal, existe a categoria dos
inimputáveis, aí compreendidos aqueles que, por características biopsíquicas,
mostram-se inaptos a compreender a natureza da ação delituosa praticada. Eis
um conceito indeterminado a ser preenchido, quiçá, com forte auxílio da
psiquiatria.
11 Art. 120, § 1º, alínea “b”, Constituição Federal Brasileira de 1988
40
Esgotado o preenchimento conceitual, segue-se uma
conduta plenamente vinculada, qual seja a inaplicação de pena.
Afaste-se, nessa ordem, de uma vez por todas, o
pretenso atrelamento da indeterminabilidade conceitual com a
discricionariedade administrativa, porque esta só resultará na exata medida
em que a lei o estabeleça, como forma não de conferir liberdade, mas como
meio de avaliar, contemporaneamente, aos fatos a conduta mais adequada.
Em mais uma tentativa de exorcizar o mito da
liberdade na administração pública, sob os mais variados pretextos, queremos
evidenciar, ainda uma vez, que a discricionariedade envolve instrumentos
apurados, anulação de atos e resposabilização do agente, quando desviado do
espectro exegético que a lei lhe concede. Não cabe, pois, o escudo da
indeterminabilidade conceitual.
Em suma, a indeterminação de conceitos em nada
confere amplitude de ação ao administrador, mas tão somente postura de
interpretação.
Se, em outras passagens, a Lei confere um espaço de
tráfego, mesmo que o faça a partir de conceitos precisos ou de alta precisão,
essa é uma outra questão.
Não se busque, então, o afastamento do Poder
Judiciário, seja a troco de situações delineadas a partir de conceitos
indeterminados, seja mesmo quando se está diante de discricionariedade.
De nada valeria o cânone constitucional imantado
nos países contemporâneos da inafastabilidade da intervenção judicial, se
pudesse valer a esquiva de decisões insondáveis em face do seu caráter
personalíssimo.
41
Com isso não se quer e não se pode impedir uma
ação administrativa flexível e dinâmica a ponto de garantir-lhe não só a
perspectiva de atualidade com os fatos, mas ainda a de futuridade no
horizonte da história.
Nesse passo, devemos conceder, claramente, que a
massa de modelagem do administrador é necessariamente jurídica, não
havendo lugar para atos políticos, excluídos de apreciação ou congêneres.
Somente uma insuficiência teórica levaria a não se
perceber que aquilo que é político, moral, religioso ou estético comporta uma
visão prismática por parte do operador do direito que lhe retirará um estrato
resultante do empírico dialético entre a norma e a conduta.
No direito alemão, após um breve hiato provocado
pelo regime nacional socialista, consolidou-se a idéia de que os conceitos
jurídicos indeterminados comportavam interpretação ampla e ilimitada dos
tribunais administrativos.
Os Conceitos Indeterminados nos Tribunais -
A apropriação interpretativa de conceitos
indeterminados ganhou especial relevância no direito francês,
tradicionalmente mais reticente no particular, a partir do chamado caso
Gomel. Trata-se de um precedente emblemático.
Até então, o Conselho de Estado vinha mantendo a
chamada Teoria do Controle Mínimo, de modo a anular tão somente os atos
em que a qualificação jurídica dos fatos exibissem erro manifesto.
No precedente em tela, pleiteou-se uma licença de
construção em uma determinada área em Paris que foi recusada por atentar
42
contra a perspectiva monumental que exibia a “Praça Beauvau”, segundo a
autoridade administrativa, o que impediria a edificação pleiteada. O Conselho
de Estado negou o caráter monumental da praça e autorizou a construção.
Naquela oportunidade considerou o Conselho que: “
la place ne saurait être regardée dans son ensemble comme une
perspective monumentale”.12
Como se observa, o Conselho exercitou controle
pleno, não se intimidando ante a possibilidade de encontrar o efetivo conceito
jurídico de perspectiva monumental.
É oportuno ressaltar que o Supremo Tribunal
Federal Brasileiro, pelo conduto do Ministro Aliomar Baleeiro, no julgamento
do RE-62731, considerou inconstitucional o Decreto-Lei que vedava a
purgação de mora em locações.13
12 Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, 10ª edição, p.160 13 “DECRETO-LEI NO REGIME DA CONSTITUIÇÃO DE 1967. 1. A APRECIAÇÃO DOS CASOS DE 'URGÊNCIA' OU DE 'INTERESSE PÚBLICO RELEVANTE', A QUE SE REFERE O ARTIGO 58, DA CONSTITUIÇÃO DE 1967, ASSUME CARÁTER POLÍTICO E ESTÁ ENTREGUE AO DISCRICIONARISMO DOS JUÍZOS DE OPORTUNIDADE OU DE VALOR DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, RESSALVADA APRECIAÇÃO CONTRÁRIA E TAMBÉM DISCRICIONÁRIA DO CONGRESSO. 2. MAS O CONCEITO DE 'SEGURANÇA NACIONAL' NÃO É INDEFINIDO E VAGO, NEM ABERTO AQUELE DISCRICIONARISMO DO PRESIDENTE OU DO CONGRESSO. 'SEGURANÇA NACIONAL ENVOLVE TODA A MATÉRIA PERTINENTE À DEFESA DA INTEGRIDADE DO TERRITÓRIO, INDEPENDÊNCIA, SOBREVIVÊNCIA E PAZ DO PAÍS, SUAS INSTITUIÇÕES E VALORES MATERIAIS OU MORAIS CONTRA AMEAÇAS EXTERNAS E INTERNAS, SEJAM ELAS ATUAIS E IMEDIATAS OU AINDA EM ESTADO POTENCIAL PRÓXIMO OU REMOTO. 3. REPUGNA A CONSTITUICAO QUE, NESSE CONCEITO DE 'SEGURANÇA NACIONAL', SEJA INCLUÍDO ASSUNTO MIÚDO DE DIREITO PRIVADO, QUE APENAS JOGA COM INTERESSES TAMBÉM MIÚDOS E PRIVADOS DE PARTICULARES, COMO A PURGAÇÃO DA MORA NAS LOCAÇÕES CONTRATADAS COM NEGOCIANTES COMO LOCATÁRIOS. 4. O DEC.-LEI N. 322, DE 7.4.1967 AFASTA-SE DA CONSTITUIÇÃO QUANDO SOB COLOR DE 'SEGURANÇA NACIONAL' REGULA MATÉRIA ESTRANHA AO CONCEITO DESTA. 5. AS SITUAÇÕES JURÍDICAS DEFINITIVAMENTE CONSTITUÍDAS E ACABADAS NAO PODEM SER DESTRUÍDAS PELA LEI POSTERIOR, QUE, TODAVIA, GOZA DE EFICÁCIA IMEDIATA QUANTO AOS EFEITOS FUTUROS QUE SE VIEREM A PRODUZIR.” (STF, Tribunal Pleno, RE 62731, julgamento: 23/08/1967)
43
A Corte considerou que não estava preenchido o
conceito de segurança nacional de modo a autorizar, segundo a carta
constitucional vigente, a expedição de um édito daquele porte.
O Tribunal acentuou que, longe de se estar diante de
uma questão afeta à segurança, tratava-se: “de assunto miúdo de direito
privado”.
É bem verdade que, àquela época, entendeu-se que a
urgência e relevância envolveriam discricionariedade ao contrário de
segurança nacional que se resolveria em conceito indeterminado.
Soa claro que a distinção não pode prosperar, mas há
que se levar em conta a excepcional situação em que vivia o país sob a égide
do regime militar, instaurado em 1964, não sendo razoável esperar-se avanços
maiores.
Há que se comemorar, no episódio, a introdução
clara de um conceito indeterminado como não condizente com a
discricionariedade.
Muito mais recentemente, a mesma Corte Brasileira,
ao interpretar o requisito do notório saber para preenchimento de vaga de
conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins negou a existência
de tal requisito em relação a um pretendente, muito embora se estivesse diante
de um conceito claramente indeterminado.14
14 “ Necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofício a desempenhar. Precedente histórico: parecer de Barbalho e a decisão do Senado. AÇÃO POPULAR. A não observância dos requisitos que vinculam a nomeação, enseja a qualquer do povo sujeitá-la a correção judicial, com a finalidade de desconstituir o ato lesivo a moralidade administrativa”. (RE-nº.167137, DJ em 20.04.95)
44
Percebe-se, por esse lance, que a indeterminação de
conceito vem sendo captada na sua acepção própria e não naquel’outra que
importa em atribuir discricionariedade.
Diagnose e Prognose - O Habitat da Discricionariedade -
A falsa interpenetração de uma discricionariedade
em sede de conceitos indeterminados restou, em propósito deste modesto
trabalho, positivada nas linhas antecedentes.
Como o arbítrio é indefensável e a
discricionariedade até exigível, utiliza-se a última como porta-estandarte do
primeiro, buscando-lhe abrir portas por quaisquer caminhos que sejam.
Alargar os limites da discricionariedade para além
da sua configuração técnica é resquício do estado irresponsável que quer
proteger a arbitrariedade a todo custo.
Quando, então, se tenta resolver a questão dos
conceitos indeterminados que, por si só, excluem a discricionariedade
renitentes, alguns procuram estender os tentáculos desta última em “locus”,
absolutamente inaceitável, qual seja o da simples diagnose.
Para aclarar o discurso, importa uma salutar
decomposição da norma naqueles momentos flagrados na doutrina alemã,
quais sejam o do “tatbestand e rechstfolge” a indicar um pressuposto
normativo e uma estatuição, respectivamente.
Veja-se a norma: matar alguém alguém, pena de seis
a vinte anos. Há aqui um suposto fáctico do qual desata uma conseqüência .
45
É evidente que, em qualquer situação, a
identificação desse suposto fáctico jamais pode abrir espaço à
discricionariedade.
Os fatos não comportam, senão, a apuração da sua
ocorrência.
A ação administrativa que deles decorra, esta sim,
pode ser alvo de uma providência discricionária.
Digamos, pois, que o administrador público, antes
de agir, está sempre chamado a diagnosticar a situação de modo que o seu
atuar se dê em consonância com o diagnóstico feito.
Na tarefa de diagnose, o administrador ou o juiz não
têm qualquer prioridade temporal.
Cuida-se de mero juízo de constatação cuja precisão
ou imprecisão podem comprometer a atuação seguinte.
Nesse teor, verifique-se – com ênfase - não cabe
qualquer espaço de decisão quanto ao que seja substância tóxica, quanto à
idéia de perigo comunitário, quanto ao conceito de monumento histórico-
cultural.
Desenvolvamos o nosso discurso a partir da última
figuração exemplificativa.
Levemos em conta que devem ser tombados os bens
que representem papel significativo para o patrimônio histórico-cultural de
uma comunidade.
46
Caberia perguntar, então, se o ato de tombamento é
decisão exclusiva da administração pública.
Imaginemos a Cidade do Salvador, onde desponta,
como símbolo, a Igreja do Senhor do Bonfim, situada na chamda Colina
Sagrada, para onde acorrem turistas e a própria população, dia a dia, ano a
ano, em festejos religiosos ou profanos, mas, marcadamente culturais e
inafastáveis da história.
Não sendo um bem estatal, perguntar-se-á se poderá
ser demolido ou se haverá lugar para uma ação judicial própria em que se
exija o reconhecimento da sua importância no contexto da cultura baiana, de
tal sorte a lhe impor o tombamento.
Não hesitamos em afirmar tal possibilidade.
Se é dever do Estado preservar os bens artísticos,
culturais e históricos, não lhe é dado negar esta característica em relação ao
templo cogitado.
Com isso, pretende-se demonstrar que a
conceituação não é tarefa da administração e, nem ao menos, do legislador.
O papel da administração, enquanto discricionária,
será sempre o de atuar na prognose, ou seja, no que tange às providências a
serem tomadas, sendo certo, embora, que a diagnose já lhe é condicionante.
É que os conceitos jurídicos não são apenas
conceitos de ser, mas também de dever-ser.
Reconhecer que alguém é locatário importa em
admitir que deve pagar o aluguel. Se é depositário, entende-se reconhecer que
47
deve restituir a coisa quando solicitada. Se é analfabeto urge saber que, ao
Estado, exige-se que lhe propicie a educação e daí por diante.
É, portanto, necessário que se trabalhe com cuidade
esta dupla relação diagnose - prognose para que ela se faça imune ao fantasma
sempre presente da arbitrariedade.
Da Discricionariedade nos Tribunais Brasileiros -
Reservamos sobre o tema discricionariedade um
espaço para uma amostragem da ótica pretoriana quanto à matéria, face a
nossa crença de que o Direito vivo se produz nos pretórios.
Nesse compasso, cabe dizer que os Tribunais
brasileiros, de certo modo, ainda se revelam reticentes quanto a um
aprofundamento maior nos atos discricionários, ressalvada a hipótese do
desvio de poder ou de finalidade, que será objeto de tema específico.
Em decisão do Superior Tribunal de Justiça, tomada
em 23 de maio de 1994, percebe-se clara referência ao controle limitado à
hipótese de abuso, entendendo-se que em caso de autorização e
funcionamento de sociedade seguradora, “a discricionariedade foi entregue à
administração pública”.15
15 ADMINISTRATIVO - SEGUROS - AUTORIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DE SOCIEDADE SEGURADORA - VINCULAÇÃO E DISCRICIONARIDADE DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA - CÓDIGO CIVIL, ART. 20 - DECRETOS-LEIS 73/66, 60459/67, 1115/70 E 83383/79 - PORTARIAS NS. 289/70 - MIC -, 607/79 E 234/84 - CNSP - 1. A AUTORIZAÇÃO PARA FUNCIONAMENTO DE SOCIEDADE SEGURADORA CONDICIONA-SE AOS CRITÉRIOS DA CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE, CONSUBSTANCIANDO A DISCRICIONARIEDADE, CUJA OBSERVÂNCIA FOI ENTREGUE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 43, "A" E "B", DECRETO-LEI 60459/67). O ADMINISTRADOR É QUE DEVERÁ APRECIAR SOBRE OS FATORES DE ADMISSIBILIDADE E FUNCIONAMENTO DA SEGURADORA, FICANDO O ABUSO, SE DEMONSTRADO, SUJEITO AO CRIVO DO JUDICIÁRIO. 2. A COMPROVAÇÃO PARA EXPEDIÇÃO DE CARTA PATENTE (ARTS. 75 E 76, DECRETO-LEI 73/66) REFERE-SE AO CUMPRIMENTO DE FORMALIDADES LEGAIS OU EXIGÊNCIAS FEITAS NO ATO DE AUTORIZAÇÃO. 3. A AUTORIZAÇÃO NÃO ESPANCA O EXAME DA CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE DO FUNCIONAMENTO DA SOCIEDADE, CONFORME PRUDENTE ANÁLISE DO ADMINISTRADOR, ISENTO DO TIMBRE OU INTUITO DE
48
Em posição mais à frente, percebe-se que essa
mesma Corte permitiu-se examinar a existência de interesse público em
exigência de edital que restringiu a participação de concorrentes.16
Da mesma sorte, a Corte assentou entendimento de
que: “ Discricionariedade atribuída ao administrador deve ser usada com
parcimônia e de acordo com os princípios da moralidade pública, da
razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de desvirtuamento”.17
É evidente que, por absoluto alinhamento à corrente
francesa mais conservadora, encontramo-nos muito longe das investidas dos
tribunais alemães, sinopticamente noticiadas acima.
No particular, em relação à ação administrativa
genérica, a imunidade ao controle parece ser atônica.
Exemplificativamente, o Superior Tribunal de
Justiça entendeu que existe para o Executivo um “gozo de total liberdade e
discricionariedade para eleger as obras prioritárias a serem realizadas
ditando a oportunidade e conveniência desta ou daquela obra não sendo
dado ao poder judiciário obrigá-lo a dar prioridade a determinada tarefa do
poder público”.18
ABUSO. 4. RECURSO PROVIDO. (STJ, RESP 6245/DF, DATA DA DECISÃO: 20/04/1994, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 23/05/1994 PG: 12555) 16 ADMINISTRATIVO - LICITAÇÃO - EDITAL - CLÁUSULA RESTRITIVA - DECRETO-LEI 2.300/86 (ART. 25, PARÁGRAFO 2., 2, 1ª PARTE). 1. A EXIGÊNCIA EDITALÍCIA QUE RESTRINGE A PARTICIPAÇÃO DE CONCORRENTES, CONSTITUI CRITÉRIO DISCRIMINATÓRIO DESPROVIDO DE INTERESSE PÚBLICO, DESFIGURANDO A DISCRICIONARIEDADE, POR CONSUBSTANCIAR "AGIR" ABUSIVO, AFETANDO O PRINCÍPIO DA IGUALDADE. 2. RECURSO IMPROVIDO. (Superior Tribunal de Justiça, RESP 43856/RS, DATA DA DECISÃO: 07/08/1995, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 04/09/1995 PG: 27804) 17 RESP 79761, STJ - DJ 09.06.97 18 RESP 138901, STJ - DJ 17.11.97
49
“Venia concessa”, se existem prioridades; elas, por
si mesmas, impõem um dever de preferência, inibindo a liberdade do
administrador.
Em síntese, a idéia de controle de conveniência e
oportunidade, quando embutida em conceitos jurídicos indeterminados,
encontra-se em um estágio que, a exemplo do português, muito aquém do que
seria de se desejar do ponto de vista defendido nesta despretensiosa
monografia.
Já há luzes claras, como se notará, lançadas no
sentido de que a arbitrariedade já é flagrada nas diversas situações jurídicas e
poderá ser coibida se, com clareza, se vier a adotar uma sistemática teórica
que venha a extremar os pontos que separam discricionariedade de conceitos
indeterminados, expurgando-se ainda idéias de liberdade na administração ou
posições superadas, como a da discricionariedade técnica ou, ainda, a da
discricionariedade no âmbito da diagnose.
A Arbitrariedade Enfrentada em seus Esconderijos - Uma Perspectiva de
Síntese -
No decorrer deste capítulo, propusemo-nos a
mostrar, como desvio de conduta da administração, a arbitrariedade.
Oferecemos, como indicativo à mensuração do grau
de arbítrio, a relação inversa com a razoabilidade.
Cuidamos de espantar falsos lastros de alojamento
do arbítrio, especialmente no campo da discricionariedade, sob os seus
diversos matizes, dos conceitos indeterminados e da indiferenciação entre a
diagnose e a prognose.
50
Resta a necessidade de positivar-se um conceito que
preferimos fosse extraído pelo método indutivo a partir da abordagem dos
precedentes já noticiados e dos “encapsulamentos” expostos.
Deitadas as premissas, sem rodeios, poderemos
afirmar que é arbitrária a conduta, com ou sem apoio em texto legal expresso,
que resulte da vontade do administrador e não dos elementos de
ponderabilidade que contemplem a vertente diretriz única do interesse
público.
Será sempre arbitrária a conduta -
independentemente da intenção do agente - o que se verá depois, quando
resulte não de uma mensuração das exatas expectativas sociais, mas da
produção de uma vontade exposta ou oculta, com “prius” para o
administrador, e não, para o administrado.
Político, Presidente da República Brasileira, auto-
proclamado cultor da língua portuguesa, Jânio Quadros cunhou frase famosa
aqui reproduzida: “Fi-lo porque qui-lo”.
Não fosse o arremessado da linguagem, estaria aí a
mais pura expressão da arbitrariedade na administração pública, exteriorizada
na ação movida pura e simplesmente pelos antecedentes psíquicos do agente.
Arrisquemos uma frase de efeito. A vontade em
direito privado é excelência. Em direito público, excrecência.
A partir daqui abriremos o capítulo seguinte com o
estudo do desvio da finalidade, o mais conhecido heterônimo metamórfico em
que se disfarça a arbitrariedade.
51
CAPÍTULO II
DESVIO DE FINALIDADE
A primeira questão que se nos afigura relevante é a
de retornar-se ao conceito de poder para, afinal, encontrar-se o momento em
que a autoridade se desvia desse poder por não cumprir a finalidade para a
qual foi instituído.
É evidente que não estamos cuidando aqui do vício
primário de ausência de competência, porque, nesse caso, colheríamos o ato
em plena ilegalidade por pressuposto de validade.
Assente-se, pois, que a autoridade, para desviar-se
da finalidade do ato, deverá ser formalmente competente para praticá-lo, já
que, de outra forma, não caberia cogitar da figura.
É bem verdade que se poderia distinguir uma
chamada competência formal daquilo que, com amplitude, denominaremos
competência material.
Em um sentido muito amplo, caberia imaginar que o
agente que pretende cobrar tributos indevidos não teria tal prerrogativa, já que
a lei lhe confere esse atributo especificamente, quando se está diante de um
ato legítimo.
Incompetente seria a autoridade para interditar a
construção de um imóvel que estivesse a se erguer em conformidade com o
ordenamento.
Pensamos, sem embargo, que a radicação da
competência na materialidade do ato traria, apenas, a utilidade pragmática
52
para envolver, com mais facilidade, a interferência do Poder Judiciário que se
sente mais confortável, quando investiga um vício de natureza externa.
Isso não obstante, continuamos a manter o conceito
clássico de que a competência se dá “in abstracto”, embora possamos,
perfeitamente, conceber uma idéia de competência material que diz respeito
diretamente à legitimação.
Cuidando-se de competência formal, cabe indagar
quando é bem manejada ou quando é mal esgrimida.
O primeiro suposto lógico que nos vem a mente é o
de que a idéia de administração se contrapõe à de “dominus”. O administrador
não é senhor, mas agente delegado que exerce suas atribuições em nome de
outrem.
Nesse diapasão, cabe-lhe ao agir, indagar sempre
quanto ao fim a ser perseguido.
Ao contrário do direito privado, em que o móvel
central é a vontade, aqui a pedra de toque é o interesse público, traduzido em
uma teleologia especificamente normatizada.
Daí porque, se é válido o princípio ontológico,
segundo o qual tudo que não está proibido está facultado, para que ele se
complete é necessário acrescer-se que, para administração, tudo que não está
facultado, está proibido.
Evidentemente, ninguém questionaria o particular
que estacionasse o seu veículo onde não houvesse proibição expressa. Ao
contrário, cabe sempre perguntar ao agente de trânsito, com base em que ele
emite uma ordem proibitiva de parada de um automóvel.
53
Ainda, como prolegômeno de uma concepção
axiológica do Poder, permitimo-nos desenvolver o raciocínio que contempla a
idéia de que a potestade é restritiva da liberdade o que, aliás, já enunciamos
antes.
Vale dizer que, quanto mais estou submetido ao jugo
de outrem, menos livre me encontro.
Na tábua de valores jurídicos, é inequívoco que a
liberdade sobrepõe-se hierarquicamente ao Poder.
Por isso, o cidadão, ao submeter-se à administração,
abre mão de parcela da sua liberdade que há de ser a mínima eficiente à causa
da organização social.
Sempre, pois, que o administrador transpõe, com sua
força, a necessidade de ação eficiente, agirá com desvio.
Essa digressão nos permite afirmar de modo bem
simples que o desvio de finalidade ou de poder haverá sempre, quando se
ultrapassar a necessidade do cumprimento do dever.
Inequivocamente, o tratamento metodológico da
figura em exame que constitui espécie do gênero arbitrariedade, deve-se, nos
seus primórdios, ao Conselho de Estado da França.
A Evolução da Jurisprudência Francesa -
No sistema francês, como é notório, o Direito deve,
sobretudo ao pretório, o avanço nas construções dogmáticas sobre a matéria.
A partir da jurisprudência do “Conselho”, foram-se
fincando pilastras básicas que serviram ao alicerce da figura sob exame.
54
O precedente invocado, como paradigma, é o
chamado caso “Lesbasts”.19
Cuidava-se de negativa do prefeito à pretensão do
proprietário de ônibus que desejava estacionar no pátio de uma estação
ferroviária na cidade de Fontainbleau.
A recusa do alcaide devia-se ao interesse em dar
cumprimento a contrato firmado entre a empresa ferroviária e outro
proprietário de ônibus ao qual se assegurava exclusividade no desembarque
local.
Entendeu o Conselho que o poder de polícia não
podia ser agitado, senão com o fim de guarnecer a ordem pública, jamais com
o intuito de tutelar interesses, mesmo que contratualmente protegidos.
Situação interessante é aquela em que, quando nos
idos de 1872, estabeleceu-se um monopólio estatal dos fósforos com o
propósito de economizar recursos na desapropriação das unidades produtoras,
o Governo decidiu fechá-las sob a alegação de que não tinham autorização
regular, invocando, para tanto, o poder de polícia.
A decisão foi anulada ao entendimento de que o ente
governamental não poderia, a pretexto de obter uma economia, utilizar-se de
motivação estranha, qual seja a não renovação da licença.20
Ainda sobre o tema, convém registrar que o
Conselho de Estado desde 1935, pelo menos vinha recusando aplicabilidade a
Decretos Leis que exorbitassem da fonte legitimadora da sua edição.21
19 “Lesbats, Rec. 209, concl. L’Hôpital : les préfets ne peuvent <<régler l’entrée, le stationnement et la circulation des voitures publiques ou particulières dans les cours dépendant des stations de chemins de fer>>, que <<dans un intérêt de police et de service public>> et non pour assurer l’exécution d’un contrat entre une compagnie de chemins de fer et un entrepreneur de voitures publiques”. (In. op cit, pag.27) 20 CE 26.11.1875, Pariset. Rec 934.
55
No exemplário, ainda deve ser anotada decisão
anulada que importou em restringir a circulação em uma rodovia, não por
motivo de segurança, mas com o fim de redução dos gastos de sua
manutenção.22
Esse retrospecto é feito com o objetivo de enunciar
as bases em que se erigiu o desvio de poder, evidenciando, de logo, o nosso
intento de não associá-lo a uma atitude “mal intencionada”, necessariamente,
por parte do órgão estatal, como frequentemente tem sido a ênfase dada à
matéria.
Veja-se, propositadamente, que não pode ser
censurável a idéia de economizar recursos para o erário, como pontuado nos
casos anteriores.
Da Construção Dogmática do Desvio de Poder -
Feita a referência histórica à jurisprudência francesa,
pensamos que é hora de definirmos conceitualmente a figura, naturalmente
como um instante maior de consolidação de todo o trabalho pretoriano, já
agora com as achegas da doutrina que recolhe a experiência na fonte e projeta
novas dimensões, como semáforos, para o futuro.
Georges Vedel acentua que o desvio de poder
consiste no fato de que uma autoridade administrativa utilize seus poderes
com vistas a um fim distinto daqueles que lhe foram conferidos.23
Mais adiante, registra que o interesse público,
historicamente, sempre se submeteu às decisões administrativas.
21 CE 29.11.1935. (apud. Laubadère, André de, pag.105) 22 CE 12.11.1927. (apud. Laubadère, André de, pag.104) 23 Derecho Administrativo, Biblioteca Juridica Aguilar, pag.506/507.
56
Em arremate, garante que a noção de violação da lei
que permite os controles dos motivos`, torna possível substituir ao controle
subjetivo, sempre delicado das intenções, o controle objetivo da existência
dos fatos ou de sua qualificação.
Essas observações têm extrema pertinência, porque,
sem dúvida, a referência à questão legal foi, apenas, uma necessidade
histórica de garantir tráfego ao controle, não correspondendo, hoje, a um
conceito doutrinário de maior precisão.
“Violação de Lei” nas origens francesas passou a
ganhar amplitude de incompatibilidade com o ordenamento jurídico,
considerado como um todo.24
Para Maurice Hauriou, o desvio de poder vai além
da simples ilegalidade, configurando-se como imoralidade administrativa.25
Sobre essa questão que tanta ênfase tem ganho no
direito brasileiro — a moralidade administrativa — lançaremos provocações
ao entardecer deste capítulo.
Sem dúvida nenhuma, se tomarmos como limite do
poder — e já o temos afirmado — o exercício do dever, devemos considerar,
de suma importância, o critério da proporcionalidade que nos permite aferir a
dosagem adequada do uso do poder em contemplação ao dever a ser exercido.
Daí, porque julgamos pertinentes as observações de
Laubadere, Venezia e Gaudemet, quando cogitam em torno da matéria do
controle da proporcionalidade que, ao seu sentir, pode exatamente mensurar a
correspondência entre a necessidade do ato praticado e o fim efetivamente
24 Op cit. pag.506/507 25 Précis élémentaire de droit administratif. Paris: Recueil Sirey, 1938
57
buscado, encontrando-se nesta via um novo princípio geral do direito que
permitirá ao juiz alcançar as condutas discricionárias...26
Nos diversos sistemas jurídicos, tem-se reconhecido
as bases da doutrina francesa, permanecendo os conceitos em similaridade
com as matrizes históricas.
É nesse sentido que os italianos empregam
expressão “sviamento di potere” ou os autores de língua espanhola definem-
na como “desviación de poder”.
Na língua inglesa, a expressão é conhecida como
“abuse of discretion”.
Marcello Caetano pretende que seja o desvio de
poder o vício que afeta a prática discricionária consistente na utilização, pelos
órgãos competentes, de instrumentos legais com fins diversos daqueles
conferidos pela lei ou por motivos com esta incompatíveis.27
No direito brasileiro, Cretella Júnior, autor de
monografia específica sobre o assunto, descreve o desvio de poder, como “O
uso indevido que a autoridade administrativa competente faz do poder
discricionário que lhe é conferido, para atingir finalidade diversa daquela
que a lei explícita ou implicitamente preceituara.”28
26 “ qui permet au juge, même dans le cas de pouvoir discrétionnaire, d’apprécier si une décision administrative n’est pas disproportionnée et excessive eu égard à la situation qu’elle vise, pourrait à la rigueur être rattachée à l’idée de violation d’un nouveau principe général du droit, le principe de proportionnalité et être ainsi analysée autrement que comme une pénétration du juge dans l’exercice du pouvoir discrétionnaire”. (Traité de Droit Administratif, Tomo I, 12ª edição, pag.578) 27 Manual do Direito Administrativo, vol. I, pag.506 28 O Desvio de Poder na Administração Pública, Editora Forense, 4ª edição, p.31
58
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o desvio de
poder agiganta-se, quando a autoridade usa do poder discricionário para
atingir fim diferente que a lei fixou.29
Hely Meirelles tem o desvio de poder como aquela
hipótese em que: “a autoridade embora atuando nos limites de sua
competência pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados
pela lei ou exigidos pelo interesse público.”30
Celso Antonio Bandeira de Mello, que marca sua
visão por um caráter manifestamente teleológico, enxerga o desvio de poder,
como “o manejo de um plexo de poderes procedido de molde a atingir um
resultado diverso daquele em vista do qual está outorgada a competência.”31
Abuso, Excesso e Desvio -
Freqüentemente, tem-se usado as expressões abuso,
expresso e desvio com amplitude equivalente.
A boa metodologia científica recomenda a
submissão ao princípio da unidade conceitual, para se atender a uma precisão
estritamente lógica a uma relação de biunivocidade, de modo que cada
fenômeno seja denominado por um único termo e, ao mesmo tempo, esse
termo abranja um só fenômeno. Daí porque não parece perda de tempo que
nos detenhamos um pouco na busca de uma definição conceitual.
A expressão abuso de poder tem, no Brasil, prestígio
constitucional, tanto que se acha inscrita na Carta Atual (art. 5ª, LXIX), que
repete, sem maiores mudanças, as nossas últimas constituições.
29 Direito Administrativo, 6ª edição, editora Atlas, pag.181 30 Direito Administrativo Brasileiro, editora Malheiros, 20ª edição, pag.96 31 Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª edição, editora Malheiros, pag.57
59
Sem embargo disso pensamos que não seja a
vertente terminologicamente adequada para designar o quadro jurídico ora
sob comento.
Em primeiro plano, trata-se, a nosso ver, de uma
derivação de figura conceitual ainda não bem delineada em direito privado,
qual seja a do abuso de direito.
Se em nossa ótica, vemos sempre o poder vinculado
ao dever, o que é equivalente à prestação jurídica a ser realizada pelo Estado,
não gostaríamos de aproximar a relação do exercício de direitos ao de
poderes, porquanto os primeiros são fins em si mesmos e os últimos são, tão
somente, meios.
Acaso pudéssemos usar uma metáfora da astronomia
diríamos que os direitos são entes luminosos, enquanto os poderes são apenas
iluminados pela força e intensidade do raio da “doverositá”, para prestigiar
uma feliz locução do direito italiano, para a qual até aqui não conseguimos
encontrar tradução adequada.
É correto, então, dizer-se que o direito nasce sob o
signo da liberdade, enquanto o poder emerge num contexto limitado ao papel
que deva exercer na organização social.
Nesse viés, o abuso de direito configura-se em um
limite a ser posto ao absolutismo de uso de certas faculdades que, em
princípios livres, podem colidir com a convivência social harmônica.
Ao contrário, não é possível cotejar-se a abusividade
do poder em si mesma, senão que a sua pesquisa só derivaria da conclusão
oblíqua relativa à transcendência do dever.
60
Simplificando, abuso de poder não é mais que
inexistência de dever a ele conectado.
Em razão dessa diferença genética, rejeitamos uma
aproximação do ponto de vista teórico que possa induzir uma mesma base de
origem.
Vejamos a seguinte proposta interessante: “O abuso
de poder afasta do ato administrativo a sua legitimidade, afetando,
também, profundamente, o princípio da legalidade. O excesso de poder,
por sua vez, caracteriza-se no ato da autoridade administrativa que
extrapola os limites de sua competência, invalidando assim os seus
efeitos. Por outro lado, o desvio de poder representa sempre algo diverso
daquilo pretendido pela lei, segue fins não queridos pelo legislador”.32
Apesar de significar uma tentativa hábil de
sistematizar as noções, pelas razões já elencadas, preferimos trabalhar em um
outro vetor.
Para nós, a expressão arbitrariedade
administrativa deve ser a que melhor responde pelo gênero das diversas
disfunções, produzidas pela ação pública.
Essa nossa preferência deriva da idéia de que
arbítrio significa algo que se produz, exclusivamente, a partir da vontade,
demonstrando, de pronto, o divórcio com o dever jurídico que emana
essencialmente do interesse público.
Ao pronunciar um ato, como arbitrário, já o
desqualificamos como originário de um interesse público, deslocando-se a
32 Abuso de Poder no Direito Administrativo, Nova Alvorada Edições, José Carlos Sousa Silva, pag.27
61
pesquisa para o elemento finalístico, ao contrário de radicá-la no elemento
causal, qual seja o exercício do poder em si mesmo.
Arbitrária “lato sensu” é toda conduta que não se
afina ideologicamente com o ordenamento jurídico.
A partir daí, não proporemos mudanças substanciais,
para manter a historicidade das espécies, excesso de poder e desvio de poder.
Ambas, já matizadas como arbitrárias, distinguem-se, como acentuaremos, em
seu perfil.
No excesso, a autoridade administrativa vai além do
que se torna necessário ao cumprimento do dever, exercitando sobre o
cidadão uma carga restritiva, proporcionalmente maior do que o resultado a
ser buscado.
No desvio, a administração pública utiliza-se do
poder, atingindo um desiderato não contemplado, ou não admitido, pelo
ordenamento.
Acresça-se, além disso, que a arbitrariedade ao lado
de constituir gênero, em termos estritos, significa o mero manejo de uma
competência inteiramente abstrata que se desloca em uma direção, nem
hipoteticamente admitida pelo direito.
Exemplo disso é a chamada via de fato
administrativa, tão bem espelhada na chamada desapropriação indireta.
Tal “desapropriação” não passa de esbulho por parte
de quem se utiliza da “vis” pública sem perseguir um propósito regular, nem
ao menos na aparência, porque, exatamente, sob a regularidade aparente é que
se encastela o desvio de poder.
62
Agora, cabe-nos dizer, pelas mesmas razões de
ordem finalística, já deduzidas acima, que preferimos desprezar a vertente
histórica que consagrou a expressão “desvio de poder”, para prestigiarmos a
tradição local que tem se valido do termo “desvio de finalidade”.
Essa postura permite, com muita clareza,
vislumbrar-se quando o administrador simula um projeto teleológico que não
corresponde ao real.
Finalidade Específica e Não-Genérica -
Primeiramente, vamos discutir se o fim público a ser
perseguido é o genérico, legitimando-se, nessa hipótese, o desvio que consiste
em deslocar-se a administração de um alvo específico para outro distinto,
ainda que ambos tenham natureza pública.
Para o desate da matéria, elegemos o campo das
desapropriações pela fertilidade maior do debate, com a ressalva naturalmente
de que as conclusões extraídas projetam-se, como um todo, à nossa visão da
figura do desvio “sub oculis”.
Cretella Júnior é categórico ao afirmar que o que
importa é o interesse público independentemente da sua especificidade.33
A jurisprudência pátria lhe faz companhia.
Inúmeras são as decisões que, especificamente em
casos de desapropriação, admitem a alteração do destino do bem
33 “ Na realidade, a moderna orientação do direito administrativo exige que o fim seja público. A finalidade pública, mesmo genérica, justifica a edição do ato. O que vicia, pois, o ato, inquinando-o de desvio de poder, é o fim privado, a vontade “distorcida” do agente público que deixa de ser “administrador” para tornar-se dominus. Editado por interesse público, o ato é lícito, mesmo se, especificamente endereçado à finalidade A, é depois, destinado ao fim B, desde que este seja público também” (O Desvio de Poder na Administração Pública, pag.47)
63
expropriando, desde que a causa continue contemplada, como de utilidade
pública na Lei específica.
Não haveria, nesse quilate, desvio de finalidade,
caso se pretendesse desapropriar um bem com o fim de construir um hospital
e, por fim, resolvesse edificar uma escola pública.
É tradicional a jurisprudência da Suprema Corte
Brasileira nesse sentido, conforme se colhe de decisão, datada dos idos de
1970, que já se referia a posicionamento consolidado do Tribunal.34
Da pesquisa que aqui empreendemos, em diversas
fontes, inclusive em “internet”, esse entendimento persistiu, muito embora
pela vocação, eminentemente constitucional do Pretório, a matéria tenha
rareado no âmbito das suas cogitações.
A mesma postura tem sido adotada, de um modo
geral, no Superior Tribunal de Justiça, conquanto seja de se esperar uma
gradativa mudança que parece já se prenunciar.
Em decisão tomada em 30 de maio de 1994, aquele
Tribunal acentuou: “Administrativo. Desapropriação. - retrocesso.
descabimento quando o bem expropriado tem destino diverso do
declarado no decreto expropriatório, mantendo, porém, destinação
pública do mesmo gênero”.(n.grifos).35
Percebemos que, de algum modo, já há referência a
homogeneidade genérica quanto ao objeto de destinação o que, de certo
modo, significa um aprisionamento à administração pública.
34 “Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre inexistência do direito de retrocessão ou de perempção legal, quando modificada a destinação primitiva declarada no ato expropriatório, a coisa desapropriada ainda fora empregada para fins de utilidade pública, isto é quando a destinação não perder as características de utilidade pública”. (RTJ 57/46) 35 DJ 22.03.93
64
De forma muito incisiva e já anteriormente dando
mostras desse avanço, a Segunda Turma do mesmo Tribunal afirmava: “O
imóvel ao qual não se deu o destino que motivou sua desapropriação deve
ser devolvido ao antigo proprietario, mediante a restituição do preço
pago devidamente corrigido”.36
Julgamos ser absolutamente impossível conceder-se
à administração pública a perspectiva de divorciar-se do fim específico para o
qual elegeu a desapropriação.
A utilidade pública só pode ser medida diante de um
objeto concreto e, se esse é transmudado, pode aquela desaparecer.
Verificaremos, adiante, quando examinarmos os
mecanismos de controle dos atos com vistas a flagrar-lhes o desvio, que foi
conquista do direito francês a interferência do ente judicante no conceito de
utilidade, de tal sorte a exigir dosagem e mensuração da chamada relação
custo/benefício, sem a qual não se chegará, senão, a uma idéia meramente
formal e rotular.
Não será possível discutir-se as vantagens e os
custos sociais da construção de uma rodovia, se, depois, as casas que vierem a
ser demolidas se destinarem à construção de uma fazenda-modelo.
Um impasse se abre; ou a incursão quanto à
utilidade pública será manifestamente epidérmica, ou a mudança de objeto há
de figurar como desvio impeditivo de desvendar-se a exata finalidade.
Com essa abordagem, queremos demonstrar que não
é suficiente, simplesmente, o interesse público genérico, mas a sua
36 DJ 20.05.94
65
demonstração “in concreto”, de modo a entender-se que, ainda quando se
possa sustentar uma causa pública abstratamente, poderá ter havido desvio.
Por indisfarçável, ninguém negará a existência de
interesse público na construção de escolas. Em área sem demanda escolar,
essa construção poderá ser considerada um desvio de conduta.
Georges Vedel, enfrentando as várias espécies de
desvio de finalidade, destaca uma situação conexa; porém, com a presente,
qual seja a da existência ou não de desvio de finalidade, quando persista o
interesse público, cuja guarda não esteja entregue à autoridade praticante do
ato.37
Reportando-se a precedentes do Conselho de Estado,
admite-se a existência do desvio, quando um Alcaide, com o fim de impedir a
evasão escolar, limita o funcionamento de estabelecimentos de diversão.
O eminente publicista europeu levanta questão
aguda de extrema pertinência, quando uma medida que, intrinsecamente, não
deve buscar resultado financeiro, é concebida com tal fim.
Nesse quadro, estaria a alienação de bem público,
não porque desprovido de serventia, mas com o objetivo de coletar recursos
financeiros para o ente alienante.38
Insofismável que arrecadar recursos constitui fim
público, mas a questão está em saber se a administração pode sustentar o ato à
base da alegação de que o bem alienado não presta serviço relevante, quando
a sua intenção é outra.
37 Derecho Administrativo, Biblioteca Juridica Aguilar, pag.510. 38 op cit., pag.511
66
Diga-se o mesmo, quando o administrador possa
estabelecer um teto de gastos financeiros com o funcionalismo público,
suscetível de provocar demissões em cargos que se revelam de extrema
validade no desempenho das funções estatais.
Em suma, queremos sustentar que, em qualquer
situação em que aja a administração pública, seu desiderato deve ser
claramente definido, sem cambialidades comprometedoras da exata apuração
da afinidade do ato com o fim perseguido.
Da Irrelevância da Intenção no Desvio de Finalidade -
Busquemos uma outra abordagem relevante, qual
seja a da indagação da pertinência do ato intencional na configuração do
desvio.
Segundo o sempre festejado Bandeira de Mello, o
que importa à existência do desvio é o descompasso entre a finalidade e o ato
praticado, ou seja, o desacordo entre a norma abstrata e a norma individual. (o
ato)39
Ao seu turno, Garrido Falla: “ Ahora bien, la
jurisprudencia francesa no solamente ha considerado finalidad espúrea
(por tanto, ajena al servicio) el interés personal del funcionario que actuó
en nombre de la Administración, sino que incluso ha considerado casos
de desviación de poder cuando se ha buscado un beneficio para la cosa
pública, pero no encaja exactamente dentro de la finalidad estricta de los
poderes que se utilizaron”40
39 op cit. pag.73 40 Tratado de Derecho Administrativo, vol.I, Madrid, 1985, pag.670/671
67
Em uma linha subjetiva, Jean Rivero alerta, no
sentido de que o controle jurisdicional do desvio de finalidade, demanda do
juiz uma investigação das intenções profundas do seu autor.41
Com base nessa afirmativa, atribui-se a Hauriou a
radicação do tema no âmbito da moralidade – não se pode perseguir tal
proposta.
Afirmamos, sem hesitar, que o ingrediente
psicológico está freqüentemente presente no desvio de finalidade e responde,
seguramente, pelo índice de maior importância na incidência de tal vício.
Apesar de tudo, esse é um terreno da prova que não
diz respeito à ocorrência do fenômeno.
Pode haver desvio de finalidade com extrema boa fé
do agente, mas sem a visão adequada da finalidade da lei.
Suponha-se que um prefeito municipal de uma área
assolada pela seca resolva preencher cargos vagos na administração, movido
pelo propósito de prover a subsistência de determinadas pessoas
desempregadas, embora tais cargos estivessem em via de extinção por projeto
de lei, retirado da Casa Legislativa, que os considerava desnecessários.
Nesse caso, desvirtuou-se, completamente, a
finalidade do cargo público que não atende ao fim, inteiramente legítimo, de
propiciar a distribuição de renda.
Tem-se dito, aliás, que o fenômeno do empreguismo
no Brasil, ainda que por via imprópria, reduziu a concentração de renda e
permitiu a sobrevivência de grupos populacionais carentes.
41 Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1981, pag.290
68
Não deixará de existir o desvio de finalidade, já que
os cargos e empregos públicos destinam-se à prestação de serviços coletivos,
nunca, individualmente, aos seus titulares.
O nosso entendimento é, pois, no sentido de que a
relevância do motivo, que deve ser específico e não genérico, não se
confunde, absolutamente, com a investigação do móvel íntimo do agente
produtor do ato.
Desvio de Finalidade e Imoralidade -
Não poderíamos deixar de traçar um desenho em
torno da chamada imoralidade administrativa.
Compreensivelmente, com a ênfase constitucional
advinda da Carta Brasileira de 1988, seria na aparência surpreendente que, em
uma monografia, que se propõe ao exame dos desvios de conduta da
administração pública não houvesse um destaque em capítulo apartado sobre
a matéria.
A explicação que daremos aos que se frustrem em
tal expectativa é simples. Não estamos convencidos de que a chamada moral
jurídica tenha foros de autonomia, nem julgamos que, em um trabalho
científico, tenhamos que nos submeter às indiossincrasias do legislador, ainda
que do constituinte.
Diga-se, de passagem, que sempre professamos certa
aversão ao sectarismo da doutrina aos comandos legais, no sentido de
emprestar-lhes maior valor do que efetivamente têm.
Antes, um retrospecto, a justificar nossa posição: A
separação entre moral e direito correspondeu ao propósito de libertação dos
69
povos que, desde a antiguidade, submetiam-se a imposições geradas sob
pretexto ético pelo império governamental.
A vontade do príncipe sempre encontrou a desculpa
do corolário moral para se imiscuir na liberdade dos cidadãos.
Desde o século XVIII, a humanidade vem,
marcadamente, exigindo que se lhe reserve uma área inteiramente livre da
intromissão do poder.
Pareceu que, após Kelsen, com a sua teoria pura do
direito, encontravam-se extremados os campos da juridicidade e da
moralidade.
Expressões, como bem comum do povo, obrigações
patrióticas, fidelidade ao regime, sempre constituíram buscas de
interferências, quando não se tinha claramente a idéia da administração –
enquanto serviço – posta como subalterna do interesse jurídico delineado para
comunidade.
A partir da separação entre os dois fenômenos, os
teóricos do direito cuidaram de traçar suas semelhanças e dessemelhanças
genéticas e de perfil.
Nesse contexto, concebeu-se o conteúdo da moral
com espectro mais amplo, reservando-se ao direito o chamado mínimo ético.
Não se nega, como na figura abaixo, a existência de
uma interseção sem que isso importe na perda de identidade das áreas e no
método de tratamento:
70
Com efeito, é conquista assente de que, enquanto a
moral, pela sua maior amplitude, gera uma maior indefinição, o direito, pelo
seu conteúdo mais restrito, propicia, exatamente, uma compreensão mais
adequada.
Fique assente, como regra epistemológica, que a
extensão alargada importa no estreitamento da compreensão, sendo a
recíproca verdadeira.
A generalidade guarda íntima parceria com a
superficialidade de abordagem, enquanto a especificidade deságua em uma
carga maior de profundidade.
Em uma ilustração meramente didática, podemos
facilmente perceber que uma fotografia aérea, embora muito mais abrangente,
é, por isso mesmo, muito menos precisa em pormenores do que o registro
fotográfico individuado – imagine-se - de um certo monumento em uma
cidade.
O direito, necessariamente, logra a precisão e a
certeza, porque se auto-impõe a restrição, sublimando a perspectiva da
largueza.
Igualmente, a fonte de emanação da norma jurídica
revela uma importância ímpar, porquanto a legitimidade do seu enunciado
decorre substancialmente da autoridade do enunciante, ao contrário do que se
passa com a moral.
71
Nesse percurso, "amai-vos uns aos outros" que é
uma máxima da moral cristã não perderia a sua força, se fosse um ensino
maometano.
Ao contrário, se o legislador estadual, entre nós,
instituir a pena de morte, não caberá se discutir do seu acerto ou desacerto,
porque, de pronto, a imprestabilidade da estatuição emergirá de um vício de
competência, do mesmo modo que, em matéria penal, a reserva é da União.
A esse aspecto se diz que, enquanto o direito está
submetido ao princípio dinâmico formal, a moral só acha apoio em uma base
estático-material.
Não se podem - é evidente - transplantar valores da
autonomia para processos de heteronomia.
Há, ainda, a questão da intersubjetividade, como
divisor de águas, bem claro, entre ambos os campos.
O direito tem sempre a marca da bilateralidade,
correspondendo cada ação a uma reação, isto é, considerando que ao meu
dever de fazer corresponde a legítima faculdade de alguém me exigir.
Ao contrário, a conduta moral não pode ser imposta
ou reclamada, no máximo, esperada, sem outra conseqüência mais concreta
que não a censura difusa pela frustração da expectativa.
Assim posta a matéria em tema de epistemologia,
cabe também um diferencial do ponto de vista sociológico.
Referimo-nos às questões da interatividade social.
72
A moral propõe um processo de assimilação,
enquanto que o direito se contenta com uma acomodação social, onde os
fatores da organização humana convivam em um sistema heteronomamente
posto.
Ninguém tem dúvida de que a lei não pode abrigar
todas as vertentes da realização jurídica, até mesmo porque tornou-se
tradicional o estudo das fontes do direito, nela se incluindo a legislação, como
uma entre outras.
Nessa linha, é extremamente preocupante que se
pretenda reingressar com um processo de interpenetração, ainda que sob nova
roupagem da moral no âmbito do direito.
Essa tentativa pode ser até sintonizada com a
percepção histórica de que a lei, em si mesma, revela-se como vetor
insuficiente ao direcionamento da sociedade.
Não há, jamais, como justificar um retrocesso pela
simples captura do sentido da insuficiência da lei.
Em primeiro lugar, essa crise de angústia pela hipo-
suficiência legal acha-se mais presente no espírito dos normativistas
arraigados que querem exaurir a interpretação do direito na própria norma.
Para nós que acreditamos que a exegese se dá na
conduta, não há esse pânico, quando percebemos o transmudamento natural
da configuração do modelo hipotético da norma em uma interpretação mais
rica e diferenciada a partir do seu impacto com os fatos.
73
Se nos permitirmos uma metáfora, diremos que a
fagulha da norma em contato com o combustível dos fatos faz explodir a
realidade jurídica.
Nesse processo de interação mútua, é natural que
tanto a norma quanto o fato se modifiquem para dar lugar ao direito.
Vejamos uma hipótese do enunciado teórico ora
formulado: Sabemos que os prédios públicos escolares têm destinação
específica, constituindo disfunção do administrador cedê-los para outras
finalidades que não lhes são próprias.
Uma enchente em determinada metrópole brasileira
levou ao desabrigo inúmeras famílias, ao que o prefeito de então, valendo-se
da boa coincidência de que a época era de férias escolares, utilizou diversos
educandários como teto transitório para guarnecer as pessoas desafortunadas
que perderam suas casas, enquanto se buscava a solução mais permanente.
Não temos dúvida em dizer que a solução jurídica
foi inteiramente acertada e quando, muito a propósito, escolhemos uma
situação onde a pauta comportamental do administrador já se encontrava
abstratamente prevista na norma.
A compreensão do evento dá-se, pura e
simplesmente, com o instrumental da razoabilidade, mecanismo de matiz
próprio do direito, sem que se precise aludir a uma moralidade da conduta.
Parece que estamos diante de um falso dilema,
segundo o qual devendo ser a lei produzida exclusivamente pelo Estado e
resolvendo-se toda emanação jurídica na legalidade estrita, qualquer ícone
valorativo, encontrado fora da produção estatal, estaria a se aproximar de um
signo meta jurídico ou, mais precisamente, de valor moral.
74
A moralidade seria, então, complemento da dicção
jurídica estatal.
Não é o que pensamos.
Não temos drama de consciência em aceitar energias
nitidamente jurídicas sem natureza obrigatoriamente estatal, como é o caso do
interesse público, que não seja o da administração, daí porque denominado
interesse primário.
É oportuno, aliás, dizer-se que esse infeliz
atrelamento do público ao estatal, como forma de dar ao primeiro amplitude
jurígena, tem-se prestado a toda uma sorte de descaminhos.
Mercê, aliás, dessa falsa aproximação é que ainda se
estabelecem verdadeiros anacronismos, como é o caso entre nós da
classificação de bens, cujo caráter público, equivocamente, só se atribui
quando estes pertencem ao Estado, ainda quando tal pertinência seja
meramente casual, como se dá com aqueles de natureza dominical.
Ao contrário, chega-se à inconseqüência de
considerar-se privado o bem tombado, cuja destinação social é manifesta,
mas, por não ter o Estado, como titular, não é dado como público.
Já passa da hora de se estabelecer a distinção entre
público e estatal com a clareza que possa justificar o atual estágio do direito
administrativo.
Bem a propósito, quem o desejar, poderá encontrar,
sem dificuldade, uma babel arquitetônica na Carta Brasileira de 1988, em
relação ao binômio público/estatal. Basta direcionar-se à leitura tomada só a
75
exemplo nos arts.173 § 1º, inciso II, 175 § 1º, inciso I, 188 e 223 da referida
Carta.42
Não conseguimos, francamente, entender a
identificação necessária entre o público e o estatal, até porque resvalaríamos
em uma inevitável tautologia, ao afirmarmos, como é corrente, que o Estado
deve perseguir os fins públicos o que, em última análise, resultaria em dizer
perseguir os fins estatais...
A única explicação possível com a qual atinamos,
será a de que para se dar uma entronização jurídica ao conceito de público,
far-se-ia necessário albergá-lo como fruto da atuação estatal.
Já passa da hora de se perceber que não há
materialmente, sob o ponto de vista do direito, como se distinguirem relações
essencialmente públicas, ou fundamentalmente privadas, senão que sobre
todas as relações jurídicas é possível deitar-se um enfrentamento público ou
submetê-las a uma reflexão privativística.
Veja-se, a propósito, a intimidade, como valor que
desperta uma idéia clara de privado, mas que, raciocinada publicamente,
emerge, como garantia de sustentação de uma sociedade livre.
Ao contrário, a educação, como fenômeno que atrai
os publicistas, por ser elementar dever do Estado, do ângulo pessoal do
interesse de um certo estudante em ser sucedido profissionalmente, torna-se
um enfrentamento privado.
42 No art.173, percebe-se que as empresas ali denominadas públicas deverão ter regime de direito privado (inciso II). Em contrapartida à contemplação do art.175 ver-se-á que as empresas privadas que explorem serviços públicos submeter-se-ão a contrato especial de direito público. No leque dos desencontros o art.188 diferencia terras públicas e devolutas, sinalizando para possibilidade de que estas últimas, embora estatais, não sejam públicas. Uma pergunta ao fim: O que significa complementaridade “dos sistemas privado, público e estatal”? (art.223 CFB)
76
O âmago, pois, está em estabelecer-se, segundo
critério que se projete, as implicações individuais ou os reflexos
transindividuais indisponíveis na relação, criando-se, em um caso, a ótica
privada e, em outro, a visualização pública.
Como diria o poeta, “questão só de peso e medida,
questão só de hora e lugar... mas isto são coisas da vida”.
Voltemos ao ponto. Do mesmo modo, como não se
vislumbrava um arcabouço lógico capaz de resgatar a razoabilidade para o
mundo do direito, tentou-se dar-lhe hospedagem no âmbito da moral como
forma de compartimento, pelo menos, do mundo ético genérico, ao qual
ambas as formas vivenciais (moral e direito) são afiliadas.
Uma preocupação inteiramente inútil, já que
podemos falar de um sentido de “público” e de “razoável” com plena força
jurídica, sem um necessário atrelamento a uma carga estatal.
Afirmemos, sem receio, que as energias jurídicas,
produzidas no mundo contemporâneo, não brotam necessariamente do Estado,
mas podem resultar, de igual modo, de organizações não governamentais para
nos utilizarmos de segmentos que tanta e tão merecida atenção têm recebido
nos últimos tempos.
A questão será a de se reconhecerem as condições
necessárias para a produção da norma jurídica eficaz.
Se estas estão postas, aí estará o germen do direito,
sem se abandonar qualquer perspectiva de rigorismo na sua definição
conceitual.
77
Se o grupamento se acha tão fortalecido a ponto de
gerar normas às quais a sociedade se submete heteronomamente, não há
dúvida de que aí se atinge o estágio de vigência jurídica.
Em suma, a negação de que o direito seja corpo
anexo da moral ou que nele deva incluir "in natura" os seus pressupostos, não
importa, nem de longe, em fincar a distinção com base em que a realidade
jurídica derive unicamente da ação estatal.
Vejamos, agora, como a moralidade adentra o
campo do direito administrativo sob a perspectiva histórica:
Seguramente, como já afirmado, foi Hauriou que em
primeiro, incluiu o aspecto da moralidade administrativa, como fórmula
suscetível de abrigar o desvio de finalidade.
Segundo o autor, a moralidade administrativa seria a
métrica pela qual se haveria de aferir a existência, ou não, do desvio de
finalidade para além dos parâmetros da estrita violação da lei.
Confere-se, no particular, forte acento intencional o
que terminaria por traduzir o desvio de finalidade no intuito do administrador
praticar o ato em desconformidade com os seus fins institucionais.
Fosse essa a questão, poder-se-ia abandonar como
regra autônoma, a moralidade ante a sedimentação de figura própria no direito
administrativo, qual seja o desvio de finalidade.
Como já sustentamos que tal desvio independe do
elemento intencional, poderíamos pensar na imoralidade, como qualificadora
do desvio, em razão do móvel psicológico do agente.
78
Essa questão afigura-se-nos melhormente solvida
com o enfrentamento da improbidade, que é mácula pertinente ao agente, e
que, por via reflexa, se projeta na administração.
De tudo que temos dito, voltamos a reprisar a
desinfluência do recurso à moralidade, como instância de controle da
administração pública, na medida em que se dispõe de instrumentos jurídicos,
plenamente adequados, com muito maior grau de precisão.
Muito embora seja frequente a alusão à vontade da
administração pública, merecendo de boa parte da doutrina, inclusive,
tratamento especial, chegando Marienhoff a atribuir-lhe a qualidade de
pressuposto “sine qua non” de validade do ato administrativo, ousamos
estabelecer posição inteiramente distinta.43
Não é possível apropriação de um elemento próprio
do direito privado, regulador da liberdade, para efeito de transposição ao
direito público.
Conceba-se que só há vontade autônoma e que se
costumou dizer que a base do direito comum era exatamente a autonomia da
vontade.
Pois bem, não é possível, sem forte arranhão teórico,
acobertar-se uma possível vontade no plano da movimentação heterônoma da
instância administrativa, cujo norte magnético é o interesse da coletividade.
Se ao Estado cabe ministrar os interesses dos
cidadãos, os seus atos não podem refletir vontade em sentido próprio, porque
a isso equivaleria desnudá-la de todo conteúdo “interior” que terminaria por
esvaziá-la. 43 Tratado de Derecho Administrativo, pag.282
79
O móvel em direito administrativo é o interesse
público, e esse interesse impõe-se ao administrador sem se lhe indagar a
vontade.
Emanação administrativa e iniciativa pública não
podem ser confundidos com ato de vontade, que é, “utima ratio”, expressão
de liberdade.
Por conseguinte, o vício psíquico do agente público
não é aquele que lhe atormenta a vontade, mas, exatamente, a sua exercitação,
ocupando o espaço do interesse.
Não cabe indagar, para efeito de validade do ato
administrativo, se o agente agiu de boa ou de má fé, porque, se na sua atuação
não se demonstra a prévia existência do juízo de ponderação e razoabilidade,
aí se pode identificar vício de conduta.
Não se desvia da finalidade o administrador, pura e
simplesmente, quando se inclina no sentido de conspirar contra o fim
ideológico da lei. Desvia-se, sobretudo, quando, antes de agir, não ponderou
as causas e as conseqüências da sua ação.
Nesse caso, há que se falar em arbitrariedade
administrativa por ausência de conduta que trafegue na via da razoabilidade.
Se o administrador está na contramão do caminho do
razoável, pouco importa que seja um condutor malicioso ou desatento; o certo
é que realiza uma disfunção administrativa.
A imoralidade administrativa resolve-se
insofismavelmente na arbitrariedade que, por sua vez se traduz na ausência de
ponderação e de razoabilidade.
80
Essa ausência tanto pode emergir da lei quanto da
ação administrativa. Sempre se terá um resultado arbitrário.
Vejamos uma situação concreta que nos sirva de
arremate a esses posicionamentos.
Passaremos a exibir um quadro real, onde
claramente se identifica o núcleo da arbitrariedade pela completa ausência da
razoabilidade, sem que seja preciso convocar o paradigma da moralidade.
A Universidade Federal da Bahia (Brasil), por via do
seu Regimento, alterou as regras de concurso para o cargo de professor titular,
de modo a apontar como critério preferencial de julgamento a avaliação sob
forma de memorial, a ser apresentado e sustentado pelo candidato à
titularidade.
Em sede de exceção, admitiu a perspectiva de defesa
de tese diante de certas peculiaridades, devidamente justificadas.
Ilogicamente, para uma e outra forma de avaliação,
adotou-se o mesmo prazo para o cumprimento das exigências concursais.
Sabendo-se que um memorial é retrospectiva de
atividades já realizadas e que são noticiadas em documento analítico que
permitirá aos examinadores investigar a história acadêmica do candidato,
afigura-se razoável a fixação de um prazo de 120 dias.
Quando, em contrapartida, se exige do postulante a
elaboração de um alentado trabalho de pesquisa com características de
originalidade e de relevante contribuição para a ciência, torna-se inteiramente
desarrazoado compelir-se o disputante a uma dieta temporal de 120 dias.
81
O critério da razoabilidade levanta-se forte para
mostrar que, não só a experiência histórica, como o próprio desencadeamento
de uma tese, nas suas diversas etapas, desde a formulação da hipótese,
passando-se à coleta de dados, e o seu processamento, revelam a inteira
implausibilidade de um desfecho acadêmico desta ordem em exíguo espaço
de tempo.
Quem quer que esteja diante de tal situação poderá
verificar que o pressuposto inicial de um trabalho, pode vir depois de meses a
ser abandonado, porque a experiência não está a confirmar os pressupostos
iniciais, recomendando, às vezes, a todo um recomeço.
Nesse caso, a fixação em 120 dias vem a ser
tecnicamente rotulada como arbitrária, não necessariamente porque tenha
resultado de ato imoral ou de má fé de quem quer que seja, mas apenas
porque não suportada em qualquer critério de ponderação e de logicidade que
possa lhe garantir o “certificado de razoabilidade”.
Bastará que o agente normativo não possa responder
em que critérios se louvou para adotar essa norma, para que ela resvale no que
a doutrina americana denomina de “classificação suspeita”.
Veja-se que, do exame laboratorial dessa norma,
tudo está a indicar que houve pura e simples desatenção ao porte e garbo de
uma tese, de modo a que não se cuidou de cogitar de um tratamento
adequado.
Com absoluta segurança, tem-se a arbitrariedade
detectada pela lente principiológica da razoabilidade.
82
Em arremate, não é possível, pois, trazer-se para o
direito público uma moral que teria necessariamente de “despsicologizar-se”,
perdendo de tal ordem a sua essência que se tornaria irreconhecível.
O controle jurídico dos atos administrativos devido a
certeza e para não criar falsas prisões nem falsas liberdades, deve afastar-se
de um elemento de alta valia e indispensável em nossa vida individual, qual o
padrão de moralidade, mas sem significado científico em um ramo, cujas
pretensões são mais modestas que o da moral.
Tivesse o constituinte, de modo expresso,
consagrado a razoabilidade, obteria resultados mais positivos e de maior rigor.
Desvio de Finalidade por Omissão -
Não vemos nenhuma dificuldade em admitir que a
administração pública se desvie dos seus fins, quando se omita na prática de
uma conduta que a rigor seria devida.
É evidente que lhe cabe interferir o mínimo
necessário nas liberdades públicas, detectando-se, com muito mais freqüência,
a prática do vício sob análise, quando da ocorrência de ações indevidas.
Dar-se-á, inolvidavelmente, que, em certos
momentos, o atuar administrativo é indispensável à consecução do fim
público, pelo que o se omitir revela, evidentemente, um descaminho.
Coerentes com o que vimos sustentando, não temos
porque falar em omissão premeditada, deliberada ou intencional para
caracterização do desvio, a não ser se a omissão inaceitável já o configura.
Basta, portanto, que o absenteísmo, de modo
específico, produza um fim ideologicamente inaceitável pelo direito.
83
Imagine-se que o Estado declara de utilidade pública
um bem cuja desapropriação é realmente necessária para o fim de realização
de obras de contenção de encostas, visando a evitar desabamentos de imóveis
em áreas íngremes ou perigosas.
A partir da decretação, há uma justa expectativa de
que essa desapropriação se consume e as obras se realizem.
Pode acontecer que o agente estatal deixe consumar-
se o prazo de caducidade da declaração, por entender que o valor de avaliação
da área não condiz com o seu intento de desembolso.
Verificou-se, aí, que não foi a desnecessidade que
teria produzido a omissão, mas uma causa alheia ao seu trajeto e, por isso
mesmo, configuradora de desvio.
Da mesma sorte, a dívida ativa, inscrita para fins de
cobrança judicial que se deixa prescrever pela ausência da propositura da ação
competente, revela desvio, em nada influindo a causa.
Pode bem ser que o órgão jurídico tenha deixado
resvalar o crédito tributário na prescrição para beneficiar determinado
contribuinte, pode bem se dar que o propósito tenha sido o de instituir uma
anistia mais ampla e por via transversa, o certo é que se descarrilou nesse
compasso da expectativa de conduta que lhe era juridicamente exigível.
Mais uma vez, o elemento intencional sinalizará
para a existência ou não de improbidade o que, na verdade, constitui outra
face da moeda.
84
Em busca da pragmaticidade, queremos realçar a
existência no sistema pátrio de dois antídotos utilizáveis contra o desvio sob
forma de omissão.
O primeiro, mais antigo, o da ação popular que pode
ser agitada tanto para remediar, quanto para prevenir atos lesivos, praticados
pela administração.
Meirelles admite, claramente, a possibilidade dessa
ferramenta para impedir que se abra mão de um privilégio do Estado ou deixe
perecer um direito por incúria administrativa. Ainda com sobra de razões,
aceita tal ação para que se possa compelir a administração a não lesar o
interesse público, traduzido nos valores jurídicos expressos no ordenamento.
44
A ação popular instrumentaliza-se à semelhança dos
meios propiciados pelo modelo francês, como medida de ampla legitimação,
ali caracterizada, como hipótese de “ouverture”.
O segundo instituto mais novo na nossa tradição,
advindo da Carta de 1988, mandado de injunção, notabiliza-se por divisar,
com clareza, o desvio por omissão na atividade normativa.
Sua amplitude é muito menor, tanto quanto, seus
efeitos têm sido muito mais modestos.
Enfatize-se nele a clara percepção da hipótese de
desvio ou frustração do cumprimento da norma exatamente pelo ato omissivo
da regulamentação.
44 Mandado de Segurança., editora Malheiros, 17ª edição, pag.91/92
85
O uso da ação popular guarneceria a proteção contra
os efeitos nefastos da caducidade da declaratória de utilidade pública, da
isenção indevidamente concedida ou da perspectiva prescricional afrontosa ao
patrimônio financeiro do Estado nos casos, primordialmente, elencados.
Quanto à abstenção regulamentar do último dos
exemplos, a profilaxia seria dada pela injunção.
Urge, significativamente, distinguir, para não
reduzirmos qualquer inação ao desvio de finalidade, a omissão que frustra ou
desvirtua um resultado, diretamente previsto, da inércia genérica que resulta,
em termos gerais, em outra figura qual à da ineficiência administrativa.
Omite-se, com desvio de finalidade, o administrador
que deixa de prorrogar um contrato, dando margem à interrupção de serviços
essenciais com o propósito de substituir o contratado ou com qualquer outro
que não diga respeito à estrita expectativa do serviço público.
Omite-se, por ineficiência, o Estado, quando deixa
de construir a escola necessária, permitindo o alastramento do analfabetismo.
A questão da inércia administrativa ganhará exame
acurado em capítulo à parte, denominado silêncio administrativo.
Do Desvio de Finalidade nos Atos Legislativos -
A resistência, no mundo jurídico, às mudanças é
uma grande marca, inclusive pelo perfil ontologicamente conservador do
próprio direito.
Nessa seara, conquanto se fale amiúde em desvio de
finalidade no ato administrativo, são raras e apoucadas as referências a tal
disfunção no ato legislativo.
86
As incidências são múltiplas, não obstante.
Na doutrina, desta feita, são os italianos que
ostentam a posição de vanguarda na análise do tema, destacando-se o
pionerismo de Santi Romano para quem os atos legislativos conhecem
fronteiras cuja desatenção importa no mesmo vício de desvio de finalidade
aplicável aos atos administrativos em geral.
Reportamo-nos, alhures, à precedente do Supremo
que considerou desvio um decreto-lei, quando, ao pretextar existência dü
matéria relativa à segurança nacional, regulamentou simples questão de
purgação de mora.
O Supremo Tribunal Federal já tem tradição no
enfrentamento do chamado desvio de finalidade decorrente de atos
legislativos.
Veja-se o Mandado de Segurança nº.7.243, no qual,
em sessão de 20.01.1969, consideraram-se nulas leis do Estado do Ceará que,
ao término de um mandato governamental, resultou na sensível ampliação dos
quadros do funcionalismo público.
Ao comentar tal precedente, Caio Tácito anotou,
com propriedade, que a competência legislativa não pode ser exercitada senão
em prol da coletividade, jamais para atender a interesses partidários.45
Frequentemente, como já temos dito, deparamo-nos
com situações que enriquecem o exemplário dos atos afetados por desvio no
seio do legislativo.
45 Revista de Direito Administrativo, 59/347
87
Vem-nos, ainda, à lembrança lei municipal na
Cidade do Salvador que condicionava à autorização dos sindicatos
interessados a abertura do comércio nos dias de domingo.
Essa lei, evidentemente, estava vazada por manifesto
desvio, porque o fortalecimento dos sindicatos não é competência do
Município, cujos legisladores entregaram o interesse público à
representatividade da facção trabalhadora.
O já citado Caio Tácito, entre nós grande prócer da
sustentação do desvio no ato legislativo, analisando hipótese idêntica
anunciou que: “A toda evidência a lei municipal, visando a beneficiar o
movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo,
caracterizado como desvio de finalidade”46
Curiosíssimo caso tivemos oportunidade de
acompanhar, relativo a uma determinada empresa que investia contra a
municipalidade, porque esta concedeu alvará para instalação de um posto de
combustível, concorrente do autor, cuja localização a menos de mil metros de
um outro que lhe pertencia era vedada, expressamente, por lei municipal.
Naturalmente, dita lei, visando à disciplina do uso
do solo urbano e atenta às características peculiares desse tipo de comércio
norteou-se em critérios de segurança para estabelecer um padrão mínimo de
distância, evitando, em conseqüência, uma alta concentração de derivados de
petróleo em áreas próximas.
46 RDA 160/460
88
Embargada a obra atentatória à postura municipal,
eis que veio o Município a editar lei, excepcionando a regra geral com alcance
restrito àquela única situação.47
De modo bastante extravagante, a referida lei
autorizou o Poder Executivo: “a aprovar projeto de construção de um
posto de serviço de abastecimento de veículos em terreno de propriedade
da Petrobrás Distribuidora S/A., situada a rua Edistio Pondé, 143, Stiep,
subdistrito de Amaralina, independentemente de aplicação dos critérios
de compatibilidade locacional”.(art.1º)
Com base na nova lei e para prosseguir no seu
desiderato, o posto concorrente logrou liminar que foi cassada pelo Tribunal
de Justiça do Estado da Bahia, ao acolher a tese de que o casuísmo legal era
despropositado, ferindo todo princípio de razoabilidade e evidenciando o
desvio.48
Naquela oportunidade, o Professor Josaphat
Marinho emitiu parecer que, em citação de Bidart Campos, referiu-se ao caso
nos seguintes termos: “Quando os órgãos do poder exercem a função
administrativa devem movimentar-se sobre a mesma regra de não dar a
uns o que se nega a outros em igualdade de circunstâncias ou vice-versa e
evitando as discriminações arbitrárias”49
Como se percebe, não há maior motivo para isentar
o legislador da sindicância relativa ao cumprimento das finalidades do
interesse público, agasalhadas no ordenamento jurídico.
47 Lei Municipal n.3.678 de 25/11/1986 48 Auto Posto Budião X Petrobrás, processo n.1991/86, MS 85/87. 49 Parecer datado de 05/06/1987, in arquivo
89
Os princípios guardam inequívocas supremacias
sobre as leis e se estas os ferem, restam contaminadas.
Examinaremos, em seguida, a perspectiva do desvio
de finalidade dos atos de progênie jurisdicional.
Desvio de Finalidade nos Atos Judiciários
O desvio de finalidade no ato jurisdicional é, ainda,
tema pouco conhecido no âmbito da doutrina e da jurisprudência.
O objeto da nossa reflexão estará focado naquelas
situações em que o Poder Judiciário, agitando uma competência genérica, atua
em descompasso com o fim reservado a essa atuação.
Frequentemente, pode-se notar uma tendência
altruística, no sentido de evitar o rigor da lei, embora com um manejo
claramente inadequado de determinado instituto.
Ultimamente, vem se observando a utilização
imprópria de provimentos cautelares que, autenticamente, terminam por
tutelar, com antecedência, o direito vindicado.
Pensamos que tal desvio, nessa hipótese, em grande
escala, se deve à novidade da tutela antecipada, cujos contornos não estão
ainda muito bem assimilados, percebendo-se uma clara zona fronteriça entre a
tutela e a cautela.
Não duvidamos que a prescrição possa estar a ser
usada contra crimes instituídos no nosso ordenamento pátrio, inteiramente
desajustados à nossa realidade social.
90
“Verbi gratia”, certos crimes ambientais trazem, no
seu bojo, punição altamente elevada e em inteira assintonia com a situação do
agente que, muitas vezes, o pratica por necessidade até famélica.
Não é de se estranhar que o julgador assoberbado de
serviços relegue o julgamento de tal matéria, evitando uma pena que geraria
um desequilíbrio social por intermédio da prescrição.
Nesse caso, sem dúvida, o instituto prescricional foi
desviado do seu real propósito.
Situação concreta é a do estelionato por emissão de
cheque sem fundos onde se pacificou o entendimento jurisprudencial no
sentido da extinção da punibilidade, quando o emissor honra o pagamento do
documento emitido até a denúncia.
A natureza de crime formal seria impeditiva de tal
largueza que se concede, nesse caso, à interpretação da extinção da
punibilidade que, no caso, está manejada de modo ideologicamente não
afinado com o modelo da lei.
Relevante, ainda, é notar-se que, muito embora os
tribunais se recusem a impedir a produção da prova desnecessariamente
deferida, não rara vez o seu acolitamento foi instrumentado para poupar o
julgador de uma decisão mais imediata sobre a qual deseja ele refletir com
mais vagar.
Não perdemos, aqui, a oportunidade de atentar para
um desvio de finalidade frequente no que tange ao instituto da revelia, que
gera, como efeito, a presunção de veracidade dos fatos alegados pela parte
autora.
91
Sucede que a administração pública não pode
confessar, nem da sua incúria se deve extrair qualquer outra consequência, a
não ser a responsabilidade do agente administrativo.
Sucede que, à larga, o judiciário trabalhista
brasileiro, por diversos dos seus juízes, tem-se utilizado da contumácia do
Estado para produzir-lhe afetação patrimonial na consonância com o pedido
do autor.
Trata-se, evidentemente, de uma finalidade obtida
em desacordo com a ideologia da figura processual, já que, nem mesmo a
transação se admite, restrito que está o seu campo aos direitos patrimoniais
disponíveis.
Desvio de Finalidade em Ação do Ministério Público -
Não temos porque inadmitir a hipótese,
considerando que sua incidência abarca as instituições públicas como um
todo.
Entre nós, Rogério Lauria Tucci cogita em um título
inteiro de sua obra relativa ao “Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional”,
da utilização por parte do Ministério Público da Ação Civil Pública de forma
abusiva.
Efetivamente, o instituto de largo alcance no direito
processual brasileiro tem sido claramente desvirtuado da sua finalidade
constitucional e legal, qual seja a da tutela dos interesses difusos, coletivos,
homogêneos, legalmente tutelados.
De modo frequente, com bastante elasticidade, tem-
se visto o denodado órgão do Ministério Público ampliar o papel da Ação
92
Civil Pública, convertendo-o na expressão de Kazuo Watanabe na “panacéia
geral” para toda e qualquer situação.50
O Superior Tribunal de Justiça tem tido
oportunidade de recusar o uso de tal ação, como sucedâneo de Ação Direta de
Inconstitucionalidade ou para tutela de interesses de grupos, ainda que
numerosos, mas individualizáveis. 51/52
Aprouve-nos trazer singular exemplo em que o
Supremo Tribunal Federal colheu o “parquet” na prática de tal desvio.
A hipótese foi trabalhada no Habeas Corpus n.69889
do Espírito Santo em que foi Relator o Ministro Celso de Mello e paciente
G.C.M.
A situação pode ser resumida da seguinte forma.
O Tribunal de Justiça Capixaba, apreciando recurso
do Ministério Público Militar contra absolvição do réu pelo Conselho
Permanente de Justiça Militar de Vitória, determinou que o paciente fosse
submetido a novo julgamento por entender que a decisão de primeira
instância produziu-se em contrariedade à prova dos autos.
50 Controle Jurisdicional em Mandado de Segurança contra atos judiciais, São Paulo, editora RT, 1980, pag.105. 51 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. REVOGAÇÃO DA LEI QUE A INSTITUIU. EXTINÇÃO DO PROCESSO. APURAÇÃO DOS VALORES COBRADOS INDEVIDAMENTE. AÇÃO PRÓPRIA. REVOGADA A LEI INSTITUIDORA DO TRIBUTO QUESTIONADO, OS PEDIDOS SE ESVAZIARAM, A NÍVEL DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA RESULTANDO NA CORRETA EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM EXAME DO MÉRITO. NÃO SE PRESTANDO A AÇÃO CIVIL PÚBLICA A AMPARAR DIREITOS INDIVIDUAIS E NEM SE DESTINANDO A REPARAR PREJUÍZOS A PARTICULARES, A RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS PELOS CONTRIBUINTES DEVE SER PLEITEADA EM AÇÃO AUTÔNOMA.” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RESP 94445/MG, SEGUNDA TURMA, DJ DATA: 02/09/1996 PG: 31064) 52 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MENSALIDADES ESCOLARES - REPASSE DO AUMENTO DOS PROFESSORES - MINISTÉRIO PÚBLICO - PARTE ILEGÍTIMA. NÃO SE CUIDANDO DE INTERESSES DIFUSOS OU COLETIVOS, MAS DE INTERESSES INDIVIDUAIS DE UM GRUPO DE ALUNOS DE UM DETERMINADO COLÉGIO, AFASTA-SE A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO”. (Superior Tribunal de Justiça, RESP 35644/MG, Primeira Turma, DJ DATA: 04/10/1993 PG: 20519 RSTJ VOL.: 00054 PG: 00306)
93
Rebelou-se o “parquet” contra tal decisão, por
entender que caberia à Corte de Segundo Grau absolver ou condenar, jamais
remeter o réu a novo julgamento. Em tendo procedido por essa forma, nula
seria tal decisão, de tal sorte que o habeas corpus vindicava que o tribunal
impetrado tivesse sua decisão nulificada e outra viesse a proferir de conteúdo
meritório.
O Relator, após reconhecer a legitimação em tese do
órgão ministerial, entendeu que ao réu pudesse ser mais interessante ser
submetido a novo julgamento em primeiro grau do que enfrentar a instância
maior com a natural redução das chances de recurso.
O Ministério Público, por via oblíqua, agitava o
remédio constitucional com o fim de suprimir uma instância que, ainda
quando irregularmente, foi aberta em favor do acusado.
Nessa oportunidade, salientou o Relator: “A
impetração do habeas corpus com desvio de sua finalidade jurídico-
constitucional, objetivando satisfazer, ainda que por via reflexa, porém de
modo ilegítimo os interesses da acusação descaracteriza a essência desse
instrumento exclusivamente vocacionado a proteção da liberdade
individual”53
Esse precedente destaca a amplitude com que se
pode flagrar o desvio de finalidade, independentemente, como temos
ressaltado, da boa ou má intenção do agente que, no caso, iniludivelmente,
procurava defender os interesses da sociedade.
O Remédio Judicial Adequado -
- Origens -
53 HC 69889-1-ES, 02.02.93, DJU 01.07.93
94
A noção de desvio de finalidade desafia o exame dos
limites traçados pelo Poder Judiciário à sua apreciação, porque de nada
adiantaria se identificar um vício de conduta sem ser possível prescrever o
remédio correlato.
Nessa linha, achamos oportuno dar ênfase aos
mecanismos de controle, tomando, como ponto de partida, o modelo francês,
por motivos já evidenciados.
Podemos destacar que o controle dos atos
administrativos na França exige, ordinariamente, a existência de um ato
administrativo em sentido próprio, que não seja compreendido nos atos
políticos.
Do primeiro requisito, temos uma visão clara,
porque aqui, também, não se admite o controle difuso da lei em tese, muito
embora tal controle seja exercitável nas chamadas leis, meramente formais,
que correspondem a um ato administrativo em sentido material.
No que tange aos atos políticos, os tribunais
brasileiros também têm feito essa diferenciação, sendo certo que a Corte
francesa vem evoluindo cada vez mais no sentido de restringir o conceito de
ato governamental, de modo a alargar a proteção judiciária.
Precedente importante em relação a essa tendência
costuma ser considerado o chamado caso “Gombert” cuja decisão, tomada
pelo Conselho do Estado em 28 de março de 1947, entendeu que a concessão
de indulto não tinha natureza política”54
54 Les Grands Arets de la jurisprudence administrative, M. Long, P. Weil, G. Braibant, P. Devolvé, B. Genevois, 10ª edição - Sirey, pag.18
95
Desenvolveu-se, na França, um peculiar sistema
classificatório de controle ali estabelecido que diferencia a incursão da Corte
segundo os graus mínimo normal e máximo.
Muito embora não haja uma separação
extremamente rigorosa entre as três categorias de intervenção, é possível
estabelecer-se alguns traços diferenciais.
Pelo sistema do controle mínimo, o Tribunal se
limita a examinar, estritamente, a questão da legalidade do ato, de modo
muito proximo ao que chamaríamos, aqui, de incursão sobre os vícios
formais.
Trata-se de uma investigação, manifestamente
superficial, onde é bastante limitado o raio de atuação do pretório.
A rigor, a conceituação de controle mínimo poderia
ser feita pela via negativa, qual seja à daquele que não se exercita senão
quando é possível identificar-se na ação administrativa o erro manifesto.
A doutrina do erro manifesto tem, como premissa, a
existência de uma conduta facilmente indentificável como equívoca pela
administração, no sentido de que o tribunal não se imiscui, a não ser que a
prática da administração se revele aberrante em relação aos fatos.
Acobertadas sob esse manto de quase
invulnerabilidade, estão em geral as decisões administrativas que demandam
apreciações técnico-científicas, como colhe mencionar o conceito de
incapacitação para o trabalho, o caráter tóxico de uma determinada
substância, a segurança de um determinado empreendimento.
96
No Brasil, a experiência de controle mínimo foi
revivida, substancialmente, nos chamados atos administrativos disciplinares,
em relação aos quais a jurisprudência sempre manteve uma postura não
intervencionista.
Repetiremos à exaustão que não comungamos com
essas ressalvas que guardam, inclusive, o matiz da discricionariedade técnica
sobre a qual nos debruçamos.
Além do chamado controle mínimo, em uma escala
maior, admite-se o controle normal que se restringe à qualificação jurídica dos
fatos.
Nesse passo, é necessário dizer-se que os arestos
franceses incorporam o sentimento majoritário alemão, no sentido de que
quanto à avaliação dos fatos, não há espaço para a administração.
A qualificação desses é um problema jurídico que
deve ser enfrentado no mesmo plano de investigação pela administração e
pelo tribunal.
Tome-se, como exemplo, o caso Gomel já referido
em outras linhas que bem reflete a amplitude da avaliação.
Para se ter uma idéia das situações de aplicabilidade
do chamado controle normal, nada melhor que a técnica da amostragem.
Vamos lá. Aptidão psíquica de candidatos (C.E.
19.12.1947); habilitação para concurso (C.E. 10.06.1983); interdição de
filmes ou de livros (C.E.20.12.1967); proteção de monumentos históricos
97
(C.E.29.01.1971); condições de acesso ao serviço público (C.E.25.06.1969). 55
Cabe, ainda referir-se, ao chamado controle pleno,
onde, praticamente, se pode dizer que a Justiça Administrativa se investe no
papel da administração, realizando uma reconstituição do ato, como se fossem
os juízes administradores, de modo a corrigir-lhe defeitos em quaisquer fases.
O controle dessa natureza é adotado com o propósito
de proteger as chamadas liberdades públicas e a garantia da propriedade
privada.
Para ilustrar a hipótese, utilizamos a metodologia do
“estudo de caso”, elegendo aresto que não só parece bem representativo, mas
que tem, ainda, o mérito de melhor aclarar nossa posição, anteriormente
adiantada, quanto ao controle do desvio de finalidade, relativamente à
utilidade pública. É o caso conhecido como “Ville Neuvelle Est”.
Cuidava-se da pretensão do Ministério Nacional de
Educação de construir um Centro Universitário, acoplado de unidades
habitacionais à sua volta, de modo a evitar uma interferência indevida entre o
núcleo urbano original e a base universitária.
Para implantação do projeto, seriam demolidas cerca
de 250 casas.
Constituiu-se uma comissão de proprietários que se
contrapôs à medida, ensejando a que a administração reduzisse o número de
áreas desapropriadas.
55 Themis Les Grands Decisions de la Jurisprudence, Lachaume, Jean-François, pag.385
98
Persistiu, de toda forma, o inconformismo dos
associados que alegavam que bastaria uma pequena alteração no projeto de
uma via rodoviária, para reduzir-se a necessidade de demolição a menos de 80
casas.
Os moradores ganharam, em primeira instância,
valendo-se do argumento, periférico, da ocorrência de vício formal.
A matéria subiu ao exame do Conselho de Estado,
que, embora tenha reconhecido a existência da utilidade pública, passou a
enfrentar a matéria no seu cerne.
Naquela feita, entendeu a Corte que, para se chegar
ao conceito de utilidade pública, necessário seria o balanceamento entre as
relações custo/benefício, considerando-se os elementos financeiros, os
inconvenientes sociais e os demais interesses públicos em disputa.56
Sem dúvida, com esse avanço retirou-se de uma
zona cinzenta o conceito de utilidade pública que, ainda hoje, parece se fincar
como barreira indevassável no direito brasileiro.
A relação “coût-avantages” leva à mensuração da
proporcionalidade entre o ato e as suas conseqüências.
Efetivamente, de nada valeria falar-se em utilidade
pública, se qualquer decisão tivesse que ser acolhida como tal.
Pesquisas revelam que as Cortes têm sido
parcimoniosas ao negar a utilidade pública, preferindo, naturalmente, na
dúvida, acompanhar o critério do administrador. 56 “Cons. qu’une opération ne peut être légalement déclarée d’utilité publique que si les atteintes à la propriété privée, le coût financier et éventuellement les inconvénients d’ordre social qu’elle comporte ne sont pas excessifs eu égard à l’intérêt qu’elle présente”. (Themis Les Grande Decisions de la Jurisprudence, pag.387)
99
Feitas essas reportagens, reservamo-nos na parte
final deste capítulo a uma análise pontual de algumas decisões dos tribunais
nacionais em torno do controle administrativo.
A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA -
Ao longo desta exposição, temos tido a oportunidade
de cotejar decisões judiciais que marcaram o ordenamento jurídico
estrangeiro, tanto quanto o pátrio.
Agora, destacadamente, enumeramos arestos
nacionais que, ao nosso ver, traduzem posições importantes no âmbito do
controle.
Os pronunciamentos são acompanhados de breves
comentários a seguir:
Atos de Tribunais de Contas -
Frisamos, em primeiro lugar, a posição de controle
mínimo no que tange a atos dos Tribunais de Contas.
Em verdade, a natureza judicialiforme das suas
decisões, a própria estrutura orgânica dessas Cortes, em muito assemelhada ao
Poder Judiciário, reflete uma tendência a não se adentrar ao âmago dos seus
pronunciamentos, contentando-se os Tribunais com a apreciação formal.
O Superior Tribunal de Justiça enfatizou que: “É
logicamente impossível desconstituir ato administrativo aprovado pelo
Tribunal de Contas sem rescindir a decisão do Colegiado que o aprovou; e
100
para rescindi-la é necessário que nela se constatem irregularidades formais
ou ilegalidades manifestas”.57
Competência material e formal. Moralidade Administrativa
No sentido de valorizar a intenção do agente,
posição a que não aderimos, mas trabalhando muito bem a questão da
competência material, distinta da formal, encontramos outra decisão em que
se afirma: “ O desvio de poder pode ser aferido pela ilegalidade explícita ou
por censurável comportamento do agente, valendo-se de competência
própria para atingir finalidade alheia àquela abonada pelo interesse
público, em seu maior grau de compreensão e amplitude. A análise da
motivação do ato administrativo, revelando um mau uso da competência e
finalidade despojada de superior interesse público, defluindo o vício
constitutivo, o ato aflige a moralidade administrativa, merecendo
inafastável desfazimento”.58
Das “astreintes”
De matiz francesa, a figura das “astreintes” pode
operar bons resultados no controle da administração pública.
Vejamos o seguinte aresto do Supremo Tribunal
Federal: “a autoridade que se desvia do poder de polícia por desídia ou
protelação em ações a que está obrigada pode submeter-se a ação
cominatória”.59
É bem de ver-se que a imposição de multa contra a
administração ainda não tem entre nós aceitação pacífica.
57 RESP 0008970/91, DJU 09.03.92 58 STJ - RESP 0021156/92, DJ 10.10.94, RSTJ vol.73, pag.191 59 STF AG 38984 - RTJ vol.0039-3
101
Não é prudente, de toda sorte, descartar-se tal
procedimento, por não vislumbrarmos incompatibilidade nas relações
jurídicas estatais com a aplicação da multa, tendo em vista o princípio do
Estado responsável.
Permita-se, no particular, que consideremos que a
destinação dos recursos dela advindos, atenta a sua natureza, deveria ser dada
a um fundo específico, jamais revertida em favor do particular.
Essa é uma outra questão.
O Judiciário não pode jamais estar atado aos
caprichos de uma administração irresponsável que, muita vez, utiliza-se da
proteção que o ordenamento lhe confere com o propósito de inviabilizar a
eficácia dos veredictos pronunciados.
Com essas passagens, satisfazemo-nos no percurso
do tema relativo ao desvio de finalidade, reservando o capítulo seguinte a uma
figura, ainda pouco íntima do ordenamento brasileiro e até de certa forma,
sem o destaque necessário em outros sistemas jurídicos, malgrado a sua vital
importância na concepção de uma doutrina dos desvios para a qual pretende
contribuir esse trabalho.
Convidamos o leitor à discussão do desvio de
procedimento.
102
CAPÍTULO III
DO DESVIO DE PROCEDIMENTO
Noções conceituais -
A figura de contemplação desse capítulo tem
inequívoca relação parental com o desvio de finalidade, embora guarde
características que permitem uma clara diferenciação.
Para Geoges Vedel, o desvio de procedimento
consiste no fato de vir a administração utilizar meios distintos daqueles para
os quais estaria legalmente intitulada.
Salienta que tal desvio é uma mera variação do
chamado desvio de poder.60
Como já adiantamos, não é esse o nosso
pensamento.
Ao nosso ver, o desvio de procedimento tem marcas
inconfundíveis que não lhe permitem simplesmente considerá-lo um apêndice
do desvio de finalidade.
Não sem razão, o Conselho de Estado Francês
cunhou a expressão própria “detournement du procedure”, distinguindo-a do
chamado “detournement du pouvoir”.
Parece-nos que num apanhado sintético, poderíamos
dizer que o desvio de finalidade existe quando um fim aparentemente
legítimo, guarda um desiderato, em essência, não tolerado pelo ordenamento.
60 Derecho Administrativo, pag.510
103
No desvio de finalidade, como já se viu, o fim
externo não tem consonância com o fim interno, gerando o que temos
chamado de incompatibilidade ideológica.
Situação diversa acontece com o desvio de
procedimento, onde a administração persegue um objetivo legítimo, mas
trilha caminhos tortuosos.
De logo, admitamos que possa existir uma zona
fronteiriça, o que só realça a idéia de que são, em princípio, conceitos
distintos.
No direito brasileiro, já é antiga a súmula do
Supremo Tribunal Federal Brasileiro, com o seguinte enunciado: “É
inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para
pagamento de tributos”.61
Ninguém nega ao Estado, ao contrário, exige-se
dele, que cobre e, com eficiência, os tributos que lhe são devidos. Não, assim,
por meios vexatórios ou por formas inaceitáveis.
No caso, a liberdade do exercício da atividade é
golpeada, porque, em lugar de promover a execução fiscal, o ente público
impede o comerciante de vender o seu produto.
Aí temos um fim legítimo e um meio espúrio.
Não podemos admitir no Estado democrático de
direito o princípio maquiavélico, segundo o qual os fins justificam os meios.
61 Súmula 323
104
A demonstração do que faremos, remonta a um
discurso lógico que toma como ponto de partida, a circunstância de que toda a
administração é, em si mesma, uma atividade meio.
Os fins são, sem dúvida, o bem-estar social, o
convívio equilibrado e harmonioso da sociedade, a garantia dos valores
jurídicos da vida, da paz, da ordem, da segurança, da liberdade, numa
remissão axiológica, absolutamente necessária.
Passa-se a afirmar que todo ato interventivo é
abstratamente considerado um ato indevido, porque alfineta a liberdade
humana.
A intervenção, portanto, não se justifica auto-
referenciadamente, ou seja, com um valor em si mesmo.
Se o fim da administração é propiciar os meios de
subsistência de uma sociedade equilibrada, cabe monitorar-se, de perto, a
ação para que ela não se revele desmedida.
A ninguém interessa, é óbvio, que, em nome da
segurança, possa a polícia invadir domicílios, aleatoriamente, mesmo que em
busca de um delinquente.
É preciso, portanto, extremo cuidado na verificação
da exatidão dos meios empreendidos pelo administrador, porque o seu
controle é pressuposto da própria garantia social.
O Direito Francês -
Vejamos, na França, os exemplos clássicos que
deram origem ao estudo da matéria.
105
O já mencionado, Georges Vedel, aponta algumas
situações que foram classificadas, como desvio de procedimento pelo
Conselho de Estado.
O primeiro exemplo nos advém de decisão proferida
em 1947, em que se considerou desvio de procedimento a utilização do
instituto da requisição de uso de terreno para alojamento de serviço público de
caráter permanente, quando, a rigor, o meio a ser usado seria o da
desapropriação.62
Percebe-se, sem dificuldade, que não está em
questão a necessidade ou não de se ter o imóvel que, por óbvio, atenderá a
uma função pública.
O ponto fulcral está em que o meio pelo qual foi
obtido era hábil, apenas, para garantir a posse transitória, nunca a definitiva.
Tem-se, então, um fim legítimo por um caminho
inadequado.
Esse diferencial é que tornará relevante o
estabelecimento de uma conceitualização, apartada da categoria, exatamente
porque o tratamento jurídico tenderá a ser diverso.
No desvio de finalidade, o objetivo poderá ser
podado, enquanto no desvio de procedimento é o caminho que deve ser
62 “L’exemple typique est celui de l’emploi de la réquisition à la place de Pexpropriation. Lorsque l’Administration ne dispose pas des crédits nécessaires à la réalisation d’une expropriation, elle peut être tentée de procéder à una simple réquisition d’usage du terrain sur lequel elle implante ses bâtiments, quitte pour elle, à exproprier le terrain, le jour où elle disposera des crédits. Il y a là un détournement de procédure puisque la réquisition est utilisée dans un but autre que celui auquel elle doit normalement servir en matière immobilière. En effet, la réquisition d’immeubles ne peut avoir pour objet que de procurer à l’Administration l’usage temporaire du terrain et non sa possession définitive, qui ne peut résulter que de l’expropriation (C.E. 4 juillet 1947, Navalo, Rec., 297) De même, constitue un détournement de procédure, l’utilisation de la procédure de réquisition à l’égard d’une entreprise pour opérer une nationalisation détournée de celle-ci (C. E. 6 juin 1947, Société provençale de Construction navale, S., 1947. 3.69, concl. J. DEVOLVÉ). Vedel, Georges - pag.340 - CE Navalo, REC
106
interceptado, nada impedindo, ao contrário, tudo recomendando que a
administração, por via adequada, volte a perseguir o mesmo intento.
Vejamos, agora, um caso clássico levado à Corte da
França que envolveu a “Sociedade Frampar”, como ficou conhecido o
paradigma.63
Durante a guerra da Algéria, a administração
determinava, frequentemente, a apreensão de jornais e periódicos, cuja
circulação não julgava oportuna.
É verdade que, mesmo em sede administrativa, a
apreensão poderia ser efetuada, quando se verificasse grave prejuízo à ordem
pública.
O prefeito local receava, porém, não poder
demonstrar o pressuposto necessário a sua atuação de ofício, do que resultaria
a conseqüência do dever de indenizar os jornais prejudicados.
Com o propósito, então, de furtar-se à censura do
tribunal administrativo, valia-se de outro meio, invocando não o grave
tumulto público, mas indícios de crime.
Com tal proceder, esquivava-se da possível
increpação de que o seu atuar, não ancorado em situação de urgência,
configuraria via de fato suscetível de repressão.
Em se cuidando de crime contra a segurança do
Estado, caberia ao prefeito apreender o material criminoso necessário à
evidência do delito, encaminhando à Procuradoria da República a quem
caberia a persecussão penal. 63 Les Grands Arets de la jurisprudence administrative, M. Long, P. Weil, G. Braibant, P. Devolvé, B. Genevois, 10ª edição - Sirey, pag.576
107
O Conselho de Estado, não obstante, ao apreciar a
apreensão dos jornais France Soir e Paris-Presse, entendeu que apesar da
invocação de norma de caráter penal, permanecia subjacente ação, meramente
administrativa.
Foi decisiva para a conclusão a circunstância de que
acaso pretendesse o chefe da comuna colher material para o procedimento
penal, bastar-lhe-ia apreender alguns exemplares, jamais toda a tiragem.
Com a apreensão integral, ficou caracterizada não a
prática de um meio procedimental, mas de um fim, em si mesmo, buscado por
uma via oblíqua.
Entendeu a Corte que apesar da remessa do material
ao representante do "parquet", tal circunstância não elidia a configuração de
prática indevida.
A partir daí, a Justiça administrativa buscou
identificar, claramente, a finalidade do ato de apreensão para qualificá-lo,
como de natureza penal ou administrativa, inibindo o câmbio entre uma e
outra medida.
Da mesma sorte, o caso Brunne envolveu a situação
em que um aluno indisciplinado teve rebaixadas suas notas, como forma de
dar azo a sua expulsão do estabelecimento. 64
Nesse caso, não se discute o direito do educandário
de se desvencilhar do pupilo avesso às normas internas, mas o certo é que não
se pode admitir que, ao invés de processo administrativo, valha-se a
administração de meio inidôneo.
64 Op cit pag.30
108
Note-se que, aqui, claramente, detecta-se um fim
legítimo e um meio inadequado, exatamente o traço diferencial entre o desvio
de finalidade e o desvio de procedimento.
Traçados esses precedentes históricos, urge
compreender que, no direito pátrio, o solo tem sido fértil a essa modalidade de
desvio, ora emergente da própria lei, ora decorrente do ato administrativo.
Precedentes na Jurisprudência Brasileira -
Eis, a seguir, alguns exemplos notórios de desvio de
procedimento a partir da própria exegese inadequada da Constituição Federal.
Estipula a Carta Magna que a União não poderá reter
parcelas de tributos por ela arrecadados, mas pertencentes aos Estados e
Municípios.
Essa regra sofre exceção na hipótese de ser um dos
entes federados devedor da União, quando, então, se justificará a retenção do
repasse de verbas.
O primeiro pressuposto é óbvio. A União tem direito
a receber aquilo que lhe devem. O segundo questionamento deve merecer
reflexão, ou seja, como se operacionalizará essa cobrança.
É evidente que não poderá haver desprezo à regra do
devido processo legal, daí porque não é de se imaginar que o próprio ente
credor, ao seu talante, avalie o montante do seu crédito e, ao mesmo tempo,
busque com suas próprias forças recuperá-lo, sem ensejar qualquer chance de
discussão pelo ente federativo.
109
Sempre percebemos que o direito de retenção só
pode ser admitido como medida de aparelhamento da execução, devidamente
formalizada, substituindo-se ao modo usual do precatório.
A questão, lamentavelmente, não tem sido vista com
muita tranquilidade.
Constata-se, amiúde, que o Instituto Nacional de
Seguridade Social (INSS) procede unilateralmente a levantamentos de débitos
de instituições públicas (Municípios, Estados).
Nada de anormal, se, não fosse a circunstância de
que, não recebendo pagamento do qual se acha titular, o Instituto submete os
supostos devedores ao constrangimento da retenção das verbas federais que
lhe são devidas, inibindo a possibilidade de defesa.
Instalado o caos financeiro pela retenção desses
valores, os entes terminam por confessar dívidas, às vezes inexistentes, outras
vezes, superdimensionadas e, em multiplicadas oportunidades, prescritas.
Tudo isso pratica-se invocando o santo nome da
Constituição.
É uma situação tão estravagante que Municípios e
Estados ficam inferiorizados em relação aos direitos dos particulares. Estes,
quando se lhes imputa uma dívida, podem questioná-la no Judiciário, sem
receio de afetação do seu patrimônio ou aguardar que o suposto ente credor
ajuize a ação que julgar conveniente, quando, então, provocará o debate sobre
a existência da dívida, sua extensão e seus limites.
Municípios e Estados não têm esse privilégio.
110
A questão tem se multiplicado em todo contexto
nacional.
Em ações deflagradas na Justiça, vem se sustentando
que é impossível obter-se a cobrança de créditos com afastamento da
intervenção do Poder Judiciário.
Com efeito, a Constituição assegura que ninguém
será privado de seus bens sem o devido processo legal.
De um modo geral, o Judiciário de primeiro grau no
nosso Estado tem se mostrado amplamente sensível à questão.
Junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
podemos colher a seguinte decisão, expressivamente ementada: “Para
obrigar o Município a quitar dívida com a Previdência Social não pode o
Tesouro Nacional bloquear as cotas do FPM a que tem o Município direito.
A cobrança deve ser feita mediante a devida ação proposta perante o Poder
Judiciário. Se assim não for teremos uma atuação ‘manu militari’”.65
Em seminário realizado pela Fundação Prefeito
Faria Lima, com a participação das mais ilustres figuras nacionais do direito
constitucional e administrativo, nela se incluindo o Ministro Carlos Mário
Velloso, hoje do Supremo Tribunal Federal, pronunciando-se sobre o tema:
“Justo título será o judicial, ou seja uma sentença do Poder Judiciário;
tratar-se-á então se for o caso de execução por título judicial que apurou
quantia certa e não por valor temerariamente apurado, sem qualquer
garantia para o Município de justeza ou cabimento”.66
A conclusão traçada reflete um aspecto relevante. 65 Agravo de Instrumento nº.92.01.22154-1-DF - Agravante Fazenda Nacional, Agravado Município de Salto Grande. 66 RDP vol.83, pag.244
111
Ninguém defenderá a inadimplência em relação às
parcelas devidas à Previdência Social. Vai, daí, uma crucial diferença entre o
direito de cobrar e os meios pelos quais se efetivam a cobrança.
O estado democrático de direito não pode conviver
com tais métodos que privilegiam os interesses secundários (da
administração) em detrimento dos considerados primários (os do Estado,
como titular do interesse público).
Volte-se a insistir que o fim é legítimo e o meio
inadequado, mas que o meio para a administração não pode afetar direito de
conteúdo finalístico do administrado.
Temos, pois, um rico exemplo de desvio de
procedimento que não se caracteriza como desvio de finalidade, exatamente
porque é nobilíssimo o fim de assegurar-se a solidez da instituição que
ampara a velhice e o trabalhador no ocaso da sua vida.
Diante dessas posições, mais se nos agiganta a
convicção de que os franceses, embora tivessem aberto caminho à distinção,
terminaram por não lhe dar a ênfase necessária.
Prossigamos.
É hora de trazer um outro singular exemplo
judicializado.
A justiça do trabalho, no Brasil, tem por fim a
composição de litígios entre empregados e empregadores, mesmo que esses
sejam pessoas de direito público.
112
Particularmente, sempre propagamos que o
tratamento dispensado ao servidor público, ao modelo da legislação
trabalhista, é equivocado e distorcido.
Em verdade, no direito brasileiro, instituiu-se um
direito de proteção à classe trabalhadora suscetível de municiá-la com armas
adequadas ao enfrentamento da opressão do capitalismo hipertrofiado.
Os atores em cena seriam, portanto, o trabalhador e
o capitalista.
Exatamente por faltar no serviço público essa figura
última, por não se permearem as relações a partir da chamada "mais valia" é
que o figurino da legislação trabalhista nunca foi capaz de vestir bem o
vínculo travado com o setor público.
Arriscamo-nos até a dizer que, em um quadro
conjuntural brasileiro de recrutamentos motivados por injunções políticas as
mais diversas, formou-se um largo contingente de servidores públicos que,
antes de serem explorados pelo "empregador público" em verdade, exploram-
no.
O certo é que os pleitos trabalhistas desses
servidores têm projetado uma enorme carga financeira para a administração
pública, porquanto juízes do trabalho, além de conferir-lhes os direitos
materiais, o que é perfeitamente admissível, dão, além disso, aos entes estatais
tratamento processual manifestamente incompatível com a sua estrutura.
Um fenômeno muito comum é o da aplicação dos
efeitos da revelia, extraindo-se uma confissão de todo inaceitável, ante a
indisponibilidade do direito público como, aliás, já registramos em outra
passagem.
113
O certo é que formaram-se ao longo dos anos
sentenças com vultosa carga de condenação contra o erário.
A partir daí, passaram a existir substanciais
dificuldades à execução desses julgados que comprometiam larga parte do
orçamento público.
Os juizes trabalhistas, com razão, desejavam o
cumprimento dos seus julgados, tanto porque entendiam que os créditos dos
empregados, reconhecidos em decisões definitivas, não poderiam ser feridos,
quanto mais, ainda, porque não seria possível desmerecer-se a autoridade do
Poder Judiciário.
Diante desse quadro, passaram a enxergar, no
instituto do precatório, um instrumento insuficiente, porque, na maioria das
vezes, os prefeitos deixavam de incluir a verba correspondente à condenação
no seu orçamento.
Para isso, criou-se a engenhosa e perversa forma do
sequestro indiscriminado das verbas municipais, fossem quais fossem as suas
origens e independente de destinação específica.
Se havia um crédito de empregado a ser recebido,
ainda que não existisse reserva orçamentária, a Presidência do Tribunal
Trabalhista determinava o sequestro de numerário destinado à construção de
um hospital, à edificação de uma escola ou a investimento em saneamento
básico e por aí a fora.
Punha-se, inquestionavelmente, em periclitação a
própria ordem jurídica, determinando-se, inclusive, o desvio das rendas
públicas, figura caracterizadora, em tese, de delito penal.
114
O Município via-se desapossado dos seus recursos
por uma violenta atitude, por mais defensável que fosse o intento de
prestigiar-se a decisão judicial.
No Estado da Bahia, palco dos episódios narrados,
agitaram-se, sem êxito, ações no âmbito da própria justiça laboral, na tentativa
de conter um escancarado desvio de procedimento.
Frustrados aqueles caminhos, identificou-se o
desvio, como modalidade interventiva anômala e indireta na esfera municipal.
Da natureza de intervenção, não se poderia pôr
dúvida, porquanto o ato abrupto de invasão da esfera financeira do ente
federado destruia-lhe a autonomia.
O Judiciário trabalhista passava a ser o gestor das
finanças municipais, substituindo-se os prefeitos.
Nada tinha o ato de sequestro de semelhante com o
procedimento de execução, formatado à base da instituição do precatório.
Quanto à situação anômala, também parecia estar
evidente. A União não poderia intervir no Município, muito menos pela
esdrúxula forma adotada.
Entre nós, em caso de descumprimento de decisão
judicial trabalhista, o remédio adequado seria a provocação do Tribunal de
Justiça Estadual que, nesse caso, examinados os pressupostos regulares, daria
curso ao processo interventivo constitucional.
Com o saudável propósito de evitar o protelamento
na satisfação de uma decisão, a Corte Trabalhista atuou fortemente com
115
invasão de competência, em manejo de medida inadequada e em ordenamento
de providência probida pela tutela penal.
Bem a tempo, o Tribunal de Justiça da Bahia, apesar
de entendimento em sentido contrário de diversos dos seus mais ilustres
membros, externou posição, impedindo a consumação dos desarrazoados atos.
No acórdão oriundo da Reclamação Constitucional
n.1774/94, o Tribunal de Justiça declarou a nulidade dos atos do Presidente do
Tribunal Regional do Trabalho, com a seguinte ementa: “Reclamação
Constitucional. A execução trabalhista não confere à Justiça
especializada compentência para intervir no Município, atribuição
privativa da Corte Estadual art.35, inciso IV da Constituição Federal. O
sequestro indiscriminado de verbas em afronta ao art.100 parágrafo 2º
da Carta Magna reveste-se de caráter materialmente interventivo,
cabendo ao Tribunal de Justiça preservar sua exclusiva prerrogativa, na
guarda da autonomia municipal. Reclamação acolhida”.67
Dita interferência só foi possível ante o
reconhecimento de que o órgão trabalhista usurpava competência do Estado
que convinha ser repelida pelo exercício da própria ação constitucional.
A esse acórdão pioneiro seguiram-se outros, mas a
questão continua controvertida no âmbito da Corte, não especificamente
quanto à ilegitimidade do ato da autoridade trabalhista, mas quanto à
possibilidade de o Tribunal de Justiça desfazê-lo.
Quanto a nós, não temos dúvida do acerto da
decisão, sob o ângulo formal, porque não pode o Poder Judiciário abandonar a
67 Diário do Poder Judiciário, 10/10/1996
116
guarda da autonomia municipal, notadamente quando se exige sua presença
ante a ação do agressor externo.
O dever de vigilância convoca a Corte de Justiça a
repelir a ingerência no Estado, pouco importa venha ela do ente federal.
Aliás, a idéia do pacto federativo supõe a
formulação de que cada esfera da federação tem o direito de proteger a sua
incolumidade contra outra.
Uma simples visão histórica no direito
constitucional americano demonstra as inúmeras posições de defesa dos
Estados contra a União.
Destaquem-se os princípios limitativos, como o da
imunidade recíproca, o da não-intervenção, dentre outros tantos.
O estudo de caso, repetidamente adotado, presta-se
ao reforço de toda a nossa argumentação no sentido de evidenciar a
característica do desvio de procedimento, como um descaminho na
persecução de um fim, objetivamente legítimo.
A essa altura parece claro o nosso posicionamento
de que as instituições públicas desviam-se tanto contra o cidadão, quanto em
desfavor de outros entes públicos, o que é forma ainda mais grosseira de
atingir, em bloco, um universo muito maior de cidadãos, representados pela
entidade política vitimada.
Não fique, de qualquer modo, a impressão de que o
circuito atinge apenas os dois casos exemplares.
Desvio de Procedimento a Partir da Legislação -
117
Sem a tradição de um exame mais aprofundado da
patologia na administração pública, às vezes, é o próprio legislador quem
propõe a prática de condutas maculadas.
É o caso da nossa lei de licitações.
Dentre os requisitos para que alguém possa
participar de um processo licitatório, mister se faz a chamada prova da
regularidade fiscal.
Por esse meio, devem ser rejeitados na competição
para celebração de contratos administrativos aqueles que estejam em débito
com tributos federais, estaduais, municipais e com as contribuições sociais
públicas (INSS, FGTS).
Voltamos ao mesmo ponto.
É natural que o Estado pretenda receber os seus
tributos de forma adequada e tempestiva, porque são a fonte do equilíbrio
financeiro que, em última análise, produz a organização social.
Vai, daí, uma grande distância entre esse propósito
legítimo e o meio espúrio de constranger-se o contribuinte a tais pagamentos
com a asfixia, decorrente da impedibilidade no exercicio de suas atividades.
Se uma empresa, basicamente, presta serviços ou
fornece bens cujo consumidor é exclusiva ou predominantemente o Estado,
poderá ser levada à falência por não poder participar de licitações sempre que
se lhe atribua um suposto débito - ainda que não real - pouco importa.
Para afastar o débito imputado, deverá depositar
valor ou oferecer garantias suficientes em defesa, ainda que o débito, afinal,
venha a ser julgado insubsistente.
118
A lei, no caso, fez tábula rasa da norma
constitucional federal, que assegura a liberdade no exercício de qualquer
atividade ou profissão, ressalvadas, exclusivamente, as limitações que
decorram de capacidade do agente.68
De modo substancialmente grave, ultrapassou os
limites do devido processo legal pelo qual está adstrita a cobrar os seus
débitos pela via da execução. (Art. 5º, LIV, CF)69
Nessa linha, é desarrazoada qualquer exigência do
teor noticiado, embora, na prática, tal exigência venha sendo realizada com
extremo vigor.
Imagine-se a situação de desequilíbrio entre o
particular e a administração pública, quando esse não esteja em dia com o
imposto, mas que, simultaneamente, seja credor de parcela vencida junto a
própria administração pública, em valor mais que suficiente para quitação do
tributo.
Restrito o sistema de compensação, esse fornecedor
ou prestador de serviço terá sido vítima da própria torpeza administrativa.
Não vemos, pois, como admitir tal procedimento em
desvio manifesto ao padrão de conduta, esperado do administrador no Estado
de Direito.
As situações multiplicam-se.
68 Art. 5º, inciso XIII “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” 69 “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
119
A Ordem dos Advogados do Brasil exige dos
profissionais, a ela vinculados, o pagamento pontual das suas anuidades. Nada
demais.
O que é estranhável é que não se permita ao
advogado em débito exercer o direito político de voto nas eleições da sua
diretoria. Tal direito é inalienável e não pode ser condicionado por motivos
meramente financeiros.
Frise-se, inclusive, o caráter público que permeia a
relação jurídica entre o advogado e a ordem, a não justificar o alijamento do
direito de voto à simples questão do pagamento de anuidade.
É um péssimo exemplo vindo de uma instituição que
prioriza o acertamento judicial das soluções.
Enfrentaremos, agora, um ponto deveras polêmico,
pela sua longa tradição judicial, qual seja a aplicação da deserção no
julgamento dos processos por motivo do não pagamento das custas judiciais.
Pensamos que as custas devam existir, tendo em
vista que, a rigor, não há nada que se possa denominar como propriamente
gratuito.
A chamada justiça gratuita não é, senão, a diluição
difusa dos custos do Judiciário por toda a população.
Sabe-se que, nos sistemas capitalistas, as camadas
mais pobres passam ao largo do Poder Judiciário, porque não têm
propriedades, nem alugam imóveis, nem possuem veículos, nem têm como
indenizar a quem quer que seja, nem têm terras, nem são credores, nem
ninguém os aceita como devedores, nem ao menos se casam para se
120
divorciarem, tampouco possuem herança a deixar. O máximo que lhes
aproxima de tal Poder é a perseguição pela justiça criminal. Se a Justiça é
gratuita, essa camada pagará por ela nos impostos embutidos nos preços,
inclusive dos gêneros de primeira necessidade.
Há, em contrapartida, os que, como próprio móvel
do desempenho de suas atividades industriais, de serviço ou comerciais,
fazem desaguar milhares de ações na Justiça, que lhes propicia resultados
financeiros apreciáveis, não sendo de se aceitar que o custo desses serviços
seja entregue a toda a comunidade.
Feitas essas considerações laterais, é hora de
afirmar-se que o instituto da deserção se nos afigura como desvio de
procedimento, ainda que imposto por lei.
Se nenhuma lesão se exclui da apreciação do Poder
Judiciário, não é possível erigir-se, como pressuposto de excepcionalidade, o
não pagamento das custas, como causa impediente do direito ao julgamento.
Não pode a parte sofrer grave revés que em nada se
liga com o seu direito material, mas que somente alimenta o propósito de
arrecadar do Estado.
Essa arrecadação, que justificamos, não pode ser
feita ao sacrifício do exame da pretensão da parte.
Fica-nos até a impressão de que o alívio da
sobrecarga do Poder Judiciário conta com a deserção, como aliado.
A primeira pergunta a ser feita será aquela pertinente
a que fim atende a deserção.
121
Não será, seguramente, um meio adequado à
percepção dos valores das custas, até porque poderiam estas serem exigidas
no início da demanda para fazer face às despesas integrais.
Se não é esse o móvel, restaria possível imaginar-se
como um meio de reduzir o número de demandas.
Mas se é certo que a redução dos conflitos e do fardo
que pesa sobre o Poder Judiciário é uma meta a ser perseguida, nunca ao
custo da imposição da deserção.
Os que trabalham com o princípio da razoabilidade,
a que se tem acrescido o da adequabilidade, podemos ver, claramente, que
falta uma conexão aceitável entre a causa e o efeito, notadamente se se tem
em conta que a omissão pelo pagamento é, frequentemente, fruto da desídia
do advogado intimado, enquanto que a conseqüência pelo não julgamento é
da própria parte litigante.
Frente a frente um fim plausível - reduzir-se o
volume de processos - e um meio inadmissível - sonegar-se o duplo grau de
jurisdição, que é uma garantia inerente ao direito de defesa.
Não convém alongar mais o exemplário que teve por
objetivo tornar aguda a distinção e evidenciar a identidade própria do desvio
de procedimento.
Parece-nos que logramos extremar as fronteiras
entre o desvio de finalidade e o desvio de procedimento, pelo menos aos
limites propostos nesta monografia.
Da Invalidade do Ato Incidente em Desvio. Impossibilidade de
Convalidação. Exceção à Regra -
122
Vimos adotando, sempre, a perspectiva de enfrentar
os corretivos adequados às manifestações patológicas sob estudo, de modo
que não devemos fugir ao questionamento quanto às conseqüências desatadas
a partir da prática do desvio procedimental.
Quanto ao desvio de finalidade, há um consenso
doutrinário e jurisprudencial no sentido de que se trata de invalidade não
sanável, na exata medida em que o próprio vício se desnuda, como
protagonista e face mais vísivel do próprio ato.
Por essa sorte, eliminado o desvio, o próprio ato não
se produziria.
Já no desvio de procedimento, cabem algumas
considerações que lhe peculiarizam, justificando, inclusive, um apartamento
categórico a partir de uma diversidade de efeitos.
Nessa linha, queremos distinguir, no âmbito da
administração, os chamados procedimentos de caráter meramente
instrumental, daqueles que envolvem uma finalidade a ser perseguida.
Dentre os operadores do direito, encontramos
excelente trabalho de Margarita Beladiez Rojo, intitulado “Validez y eficacia
de los actos administrativos”70
A autora começa por afirmar, com inteira razão, o
papel institucional do procedimento no direito administrativo e anota que, em
face das prerrogativas próprias da administração, inclusive a garantia da auto-
executoriedade, só se legitimam os seus atos, quando em estrita obediência à
forma procedimental, porque, de outro lado, estar-se-ia a realizar um desvalor
jurídico, representado pela insegurança projetada na cidadania. 70 Margarita Beladiez Rojo, Validez y eficacia de los actos administrativos, 1994
123
Invocando direito espanhol, afirma que a forma, por
ser um requisito essencial ao ato jurídico, é suficiente a desencadear a
nulidade desse por desapreço àquela.
A exceção que se abre — pontua a autora — deve-se
unicamente à formalidade administrativa que se revele, exclusivamente, como
instrumento de consecução da legalidade do ato fim, mas cuja ablação não
resulte nesse comprometimento.
É sobre o mesmo viés que se inclina Weida
Zancaner em obra que marca as letras jurídicas nacionais pela precisão
conceitual na cogitação de tema tão desafiante.
A professora paulista distingue as manifestações
procedimentais que não envolvam um conteúdo finalístico e, por isso, seriam
convalidáveis, daquel’outras que “desvirtuam a finalidade em razão da qual
foi instaurado o procedimento” e por isso não podem ser contempladas com
a convalidação.71
Permitimo-nos exemplificar com regras pertinentes
ao procedimento licitatório que asseguram o prazo de recurso contra
determinadas decisões, cuja dispensa é possível, se todos os licitantes abrirem
mão do lapso prazal.
É preciso – bem se sabe - muita cautela no exame da
natureza do procedimento, porque, no mais das vezes, o que é forma para a
administração, é conteúdo para o administrado e, nesse caso, o vício de forma
termina por ser um vício essencial e nulificante.
71 Da Convalidação e invalidação dos atos administrativos, Zancaner, Weida, pags.71 e 75
124
Na maioria das vezes, a administração pública ao
cumprir determinada formalidade, está realizando um fim específico tal qual
está obrigada.
Em abono a esse entendimento, a justiça hispânica
agita a questão constitucional que impõe a seleção no serviço público segundo
o princípio do mérito, da capacidade e da publicidade. (art.103, XX e XXIII,
CE).
Verificando-se que a administração escolheu alguém
para um determinado posto, o mais qualificado que seja, se não obedecer as
regras imanentes à publicidade, a nomeação resultou inválida.
Nesse caso, foi violada uma garantia material de
acesso universal ao serviço público que não se traduz em um simples
postulado instrumental.
Não é difícil conceber-se a atividade meio do Estado
como a perseguição de um fim para o cidadão.
A garantia de que ninguém será preso, senão por
ordem de autoridade judicial competente, nas situações legalmente
estabelecidas, não permite que se considere mera formalidade o
aprisionamento do cidadão com desprezo de tal regra.
Dir-se-á que a garantia da liberdade é
principiologicamente, inclusive, superior ao próprio fim, eventualmente
buscado, a prisão de um suposto infrator.
Nesse caso, do ponto de vista axiológico, a conduta
final da administração perde em grau de importância à proteção da cidadania.
125
De igual modo, assegurar-se a ampla defesa em um
determinado caso concreto suplanta, em termos de valor, a própria idéia de
punição que possa resultar de um ato administrativo com desprezo de tal
formalidade.
Se a administração despreza regras procedimentais
que envolvem garantias públicas, instala-se o pânico, atingindo-se a própria
organização societária, matiz maior da arquitetura jurídica.
Em preciosa síntese, a cientista ibérica adverte: “los
distintos trámites del procedimiento, en cuanto elemento formal de todo
acto administrativo, además de garantizar la legalidad material o de fondo
de la resolución, tiene otras finalidades asignadas tan relevantes o más para
el interés público que el directamente perseguido por el acto final. Por esta
razón, parece necesario reconocer que la forma tiene un valor para el
Derecho, y más en concreto para el Derecho Administrativo”.72
Eis aí um aspecto essencial, em que não se receia
afirmar a superioridade axiológica da conduta meio em relação ao ato fim, só
reforçando a nossa sustentação de que a concepção de público pode repousar
no atendimento a uma expectativa individual.
Forma marcante de pontuar essa doutrina encontrou
a Constituição Brasileira, no art.5º, inciso LVI, ao inadmitir o aproveitamento
da prova colhida de forma ilegal.73
Com tal postura pretendeu-se garantir o cidadão
contra atuação invasiva do Estado, a tal modo que a Carta Magna
desestimulou esse manifesto desvio de procedimento, conferindo à prova que
dele resulte o caráter de inutilidade. 72 op cit. pag.131 73 “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”
126
Essa concepção, oriunda do direito americano,
radicaliza-se mais, quando sequer se admite a elucidação de um fato cuja base
de informação, tenha sido oriunda da prova ilícita. (fruits of poisoned tree).
Depois disso, cabe-nos proclamar a impossibilidade
de convalidação do ato, eivado de procedimento, com a ressalva cabível, o
que o diferenciará do desvio de finalidade, no sentido de que a administração,
desfeito o caminho tortuoso, poderá voltar a perseguir o seu objetivo,
recompondo a sua trajetória, segundo os canônes adequados.
Essa recomposição é, muitas vezes – alerte-se -
bastante problemática, porque será possível identificar, a posteriori, a
transmutação do que se deu sob a forma de desvio de procedimento em desvio
de finalidade.
Considere-se a hipótese, nos casos anteriormente
aventados, do aluno que teve suas notas reduzidas, como meio de eliminá-lo
da escola, recuperando sua permanência, venha a ser alvo de procedimento
formal disciplinar, caso o educandário, antes de apurados os fatos, já esteja
munido do objetivo de eliminá-lo.
Nesse caso, o processo não terá atingido o fim da
apuração, mas perseguido a forma de legitimar a punição.
De igual, o comerciante que tem apreendidas as suas
mercadorias e consegue liberá-las ao demonstrar que esse não é o meio de se
lhe cobrar tributo, passa a ser alvo de uma sistemática fiscalização que visa,
muito mais, a embaraçar-lhe a atividade do que detectar eventual infração à
norma tributária.
Temos notícia de situação em que a administração
pública ao ver anulado um flagrante lavrado, busca e obtém no Judiciário a
127
decretação de uma prisão preventiva que mal esconde a perspectiva de
restaurar, por via oblíqua, o proceder inadequado na etapa anterior.
Em tese, a busca do fim legítimo não deve ser
inviabilizada tão somente porque o caminho escuso foi interceptado, se este
pode ser recomposto.
É hora de arrematar o capítulo para afirmar, na
esteira de toda a argumentação, que o desvio de procedimento não se resgata
nem se recupera, na medida em que o meio para a administração é o fim para
o cidadão, com a ressalva possível que as normas de procedibilidade,
meramente instrumentais, podem ser desprezadas, quando a conduta
equivalente da administração produza o mesmo efeito, sem qualquer
comprometimento a direitos autônomos que o abandono procedimental possa
gerar.
Também é óbvio que, se em tal espécie de desvio, o
fim é legítimo, poderá voltar a ser perseguido com todas as ressalvas que a
observação empírica nos permitiu traduzir nas linhas acima.
Fechamos mais um capítulo, porque agora queremos
mostrar que a administração não só se desmerece quando age, mas também se
apequena quando resta inerte. Pronto. Estamos avisando que o nosso próximo
tópico de abertura é a inércia administrativa, especificamente sob a
modalidade silencial.
128
CAPÍTULO IV
DO SILÊNCIO ADMINISTRATIVO
Inércia Administrativa Genérica -
A exploração que passamos a fazer, revela, como
pressuposto, a idéia de que a administração pública tem o dever de agir,
exatamente porquanto da sua atividade é que resultará a organização e o
equilíbrio do Estado e da vida dos cidadãos.
Afinal de contas, o ad/ministrar, significando atuar
por alguém, demanda sempre uma atividade permanente e ativa, em busca da
manutenção do equilíbrio comunitário e do desenvolvimento das aspirações
da comunidade.
A administração deve, pois, agir para conseguir os
seus fins e, se não o faz, compromete a sua inteireza, e o seu próprio perfil
ontológico.
Nestes termos, o omitir-se traduz-se em quadro
patológico de extrema gravidade.
Isso, não obstante, no direito pátrio, não se tem dado
o correto e aprofundado tratamento à prática abstencionista, cuidando-se
quase sempre da análise dos atos positivos, quer do ângulo da sua perfeição,
quer dos reflexos na responsabilidade do Estado.
A legislação, por seu turno, quase sempre tenta
remediar a omissão administrativa pela simples responsabilização dos agentes
públicos, punindo-se o malfeitor, sem a rigor, corrigir o mal.
129
Em uma classificação que remonta à Roma Antiga,
declaram-se perfeitas as sanções, quando cogentemente se obtém a prestação
não realizada pelo modo natural. Ao contrário, são menos que perfeitas
aquelas que se limitam a impor cargas valorativas negativas ao responsável
pelo ilícito.
Ora, o cidadão, diante da administração, guarda a
expectativa de que esta cumpra o seu dever e não é razoável que se frustre,
ainda quando se venha a punir o agente relapso.
A inércia administrativa caracteriza-se, quando a
administração descura-se dos seus deveres e encargos constitucional e
legalmente previstos.
Essa situação exibe-se no dia-a-dia, ora pela
ineficiência da máquina estatal, ora pela má condução da coisa pública e,
outras vezes, pela culpa ou dolo do servidor ou agente.
Em tais casos, haverá dano à coletividade reparável,
segundo a hipótese concreta por meio de indenização civil.
Particularmente, centraremos o debate em uma
perspectiva mais reduzida, qual seja a da inércia específica, resultante do não-
pronunciamento governamental em face de ato provocativo do administrado.
Essa modalidade singular tem sido conhecida na
doutrina sob a rotulação de “silêncio administrativo”.
Origens e Precedentes no Direito Comparado -
Costuma-se estabelecer, como origem legal ao
tratamento do silêncio administrativo, um Decreto de 02 de novembro de
1864, editado em França, pelo qual seriam consideradas negadas todas as
130
pretensões dirigidas aos Ministros que, no prazo de 04 meses, não obtivessem
resposta.
Posteriormente, a Lei de 17 de julho de 1900, no seu
art. 3º, estendeu o tratamento jurídico a todos os reclamos veiculados perante
qualquer órgão da administração pública.
Na Espanha, essa questão surge por força do
impacto gerado pela Ordenança Real de 09 de junho de 1947 que estabeleceu,
como condicionante de acesso à via judicial, o prévio afrontamento da
Instituição pública.
Consoante explicitado em tal norma, a exigência se
fazia necessária de tal modo a permitir que o governo pudesse reparar seus
atos e obter soluções mais adequadas, antes de ser submetido à instância
judicial.
Diante disso, a jurisprudência passou a alertar de
modo firme quanto à necessidade de uma posição terminativa da
administração de modo a não inibir o exercício do direito de ingresso em
juízo.
Mas, só a partir de 1924, é que se estabeleceu a
possibilidade de ultrapassagem da via administrativa, quando o silêncio, por
decurso de prazo, seria interpretado, em princípio, negativamente, isto é, no
sentido de recusar procedência à reclamação.
Na Itália, em 1934, a Lei Comunal e Provincial
estabeleceu a admissão do silêncio, como forma negativa de resposta ao
pleito.
131
Na Argentina, pelo Código de Procedimentos (Lei
nº.19.549), estabeleceu-se o princípio da denegação tácita pelo silêncio.
O mesmo diploma legal contemplou, em caráter
excepcional e mediante previsão expressa, a perspectiva de que a atitude
silenciosa viesse a ser interpretada de modo positivo, isto é, em favor do
administrado.
Estabelecidas essas premissas, vamos verificar quais
a acepção e o significado do silêncio administrativo e sua importância na
formação do Estado de Direito.
Conceitos e Distinções -
Trabalharemos com a hipótese conceitual segundo a
qual deve-se ter por silêncio administrativo, em sentido estrito, a atribuição de
um significado de outorga ou negativa de um pedido ou recurso, uma vez
transcorrido o prazo estabelecido para a administração pronunciar-se.
Nesse compasso, estabelecem-se duas categorias
claramente distintas, quanto à repercussão do silêncio, que podem ser
identificadas, como silêncio negativo e silêncio positivo.
O primeiro, como já se pontuou, resulta em admitir-
se, como rechaçada, a pretensão que não foi respondida ou resolvida no tempo
previsto em Lei.
Cumpre de plano indagar-se qual o proveito que
resultaria para o administrado na extração de tal exegese.
132
Se examinarmos a Lei de Mandado de Segurança no
Brasil74, lê-se, no seu art. 5º, o descabimento do remédio heróico contra ato
que caiba recurso administrativo e a que se atribua efeito suspensivo.
O Legislador, claramente, convidou a parte a residir
com anterioridade na instância administrativa, inibindo a exercitação da ação
judicial, se aquela via enseja a suspensão da eficácia do ato.
A questão complica-se – é de se ver - quando
exercitado o recurso administrativo cabível, a administração não lhe confere
solução, procrastinando o desate da matéria posta ao seu crivo em situação de
insegurança e desconforto para o interessado.
Nesse caso, se, induvidosamente, o silêncio puder
ser interpretado como negação do pedido, pelo menos a parte poderá agitar a
via judicial em busca da estabilidade da relação.
À falta de lei específica, muitas vezes, tem-se
percorrido o tormentoso caminho de buscar-se a Justiça tão somente para
obter-se a pronúncia administrativa e, a partir do resultado obtido, encetar-se
nova lide judicial.
Por essa forma, a doutrina do silêncio negativo
representa avanço no campo das relações entre administrado e administrador.
O segundo ponto que deve ser investigado consiste
em saber se é possível adotar-se o silêncio negativo sem previsão legal.
O nosso entendimento inclina-se pela afirmativa,
lastreado na circunstância de que a ausência de pronunciamento deve,
74 Lei 1.533 de 31 de dezembro de 1951
133
inequivocamente, merecer uma interpretação, considerando-se que se trata de
uma conduta que produz efeitos na órbita do administrado.
Certo é que a nossa Constituição assegura o direito
de petição.75
Logo, é evidente que ao direito de pedir corresponde
o direito de obter a resposta e, ao considerar-se que essa resposta poderá ser
positiva ou negativa, é possível interpretar-se a ausência de manifestação
explícita em um sentido ou em outro.
Logo, quando a Constituição estatui que nenhuma
lesão se exclui da apreciação do Poder Judiciário, esta lesão pode advir tanto
de atos, como de comportamentos.
Chegaremos, pois, à conclusão de que, em regra, a
administração, quando não explicita o seu posicionamento, assume
comportamento do ponto de vista lógico, equivalente ao da negativa,
presumidamente.
Não se ignora que, no plano privado, em princípio,
deve prestigiar-se a máxima latina, segundo a qual: “ qui tacet utique non
facetur”, porque o particular, salvo as determinações legais ou contratuais,
não está obrigado a se manifestar.
Ao contrário, o órgão público diante do direito de
petição tem o dever correspondente de resposta, na medida em que não lhe é
dado o “non liquet”.
75 Art. 5º, XXXIV, alínea “a” CF - São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: “O direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder”.
134
Ora, considerando-se que a resposta é um direito
abstrato de quem pede, há que se contornar a ausência dela por alguma forma
que não seja a mais gravosa de compelir o pronunciamento.
O nosso raciocínio encaminha-se em termos de
remédio administrativo a encarar o mutismo do agente público, em princípio,
como negativa ao pleito, como passaremos a sustentar.
Se o administrado necessita do “placet”
administrativo para um determinado modo de atuar ou para a obtenção de um
resultado (“verbi gratia” licença, autorização) e, se não o obtém, pode-se
perfeitamente encontrar, como solução pragmática, o resultado não
concessivo, ou seja, de negativa do pleito.
Trata-se, evidentemente, de uma construção
terapêutica a combater tal desvio administrativo, mas frise-se, não uma
presunção propriamente dita, senão que, no máximo, a extração dos efeitos
equivalentes.
A nossa ilação é, pois, no sentido de que se deva
conferir ao silêncio característica negativa, sempre quando a natureza do ato o
comporte e a lei não vede, expressamente, tal interpretação ou não lhe atribua
outro efeito.
Voltamos a enfatizar que, diante do dever expresso
de provocar a administração, evitando-se querelas judiciais prematuras, deve
ser oferecida a contrapartida de equilíbrio para o cidadão, no sentido de
romper a barreira do silêncio com o recolhimento de um entendimento
significante, de modo a lhe poupar o que antes se lhe queria evitar — o
exercício de uma ação judicial direta — agora a deflagração de duas: uma,
135
com o fim de romper o silêncio e outra, com o objetivo de questionar a
decisão.
Trata-se, substancialmente, de construção
dogmática, artificial, mas absolutamente necessária, como medida
compensatória à busca de uma situação mais cômoda para o interesse do
cidadão que, afinal, é o interesse público primário.
Frisamos a nossa posição de que a dispensa de lei
específica que preveja a extração de efeitos do silêncio pode ser dispensada à
luz do princípio de equilíbrio das partes em suas relações contenciosas para o
qual está sensível a Constituição.
Cabe agora saber se a lei não fixa um prazo para
manifestação administrativa, até quando se deve aguardar o desfecho da
postulação.
O problema não é singelo, tendo em vista a
dificuldade de uniformização temporal para o proferimento das decisões, face
a diversidade de grau de complexidade de cada matéria.
Não será, jamais, a lacuna legal que haverá de
reduzir a pó o direito assegurado constitucionalmente.
Nesse caso, há de se buscar o critério da
razoabilidade com o qual tanto temos convivido ao longo desta dissertação.
Estabeleça-se, pois, que à falta de lei, deve-se
entender que a manifestação administrativa deve ser exercitada, segundo as
circunstâncias, em prazo RAZOÁVEL.
Aí está um conceito plenamento suscetível de ser
aprisionado factualmente, de modo a permitir-se saber, com relativa margem
136
de segurança, se o ente público extrapolou ou não, em termos de tempo, a
medida do que se poderia aceitar, como adequado, no conjunto das
circunstâncias.
Sem prazo preestabelecido, força é convir que a
resposta a ser dada deve ser proferida, como querem os de língua inglesa “as
soon as possible”, vale dizer, logo que possível.
De qualquer modo, não se poderá perder o horizonte
das raízes históricas no direito comparado, suscetíveis de instrumentar a
interpretação analógica.
Como já fixado no direito francês, estabeleceu-se
um prazo de 04 meses, no máximo, para qualquer solução.
Na Espanha, idêntico lapso foi adotado pelo
regulamento administrativo de 1954.
O mesmo ciclo temporal foi estabelecido na Itália.
No Brasil, podemos desenvolver o discurso por via
indireta.
É que a ação mandamental está sujeita a prazo
decadente de 120 dias, quando o ato administrativo não mais pode ser atacado
por essa via.
Fixou-se um período máximo de tolerância para o
administrado. Usando-se o mesmo parâmetro e para se criar um critério
isonômico, a mesma regra poderá ser aplicada quanto ao silêncio da
administração, estabelecendo-se, assim, tal período, em qualquer hipótese,
como o máximo admissível para a pronúncia tempestiva.
137
Isso não quer dizer que, dadas as circunstâncias, não
possa o prazo ser substancialmente menor, quando a demanda encaminhada
não envolva maior complexidade, como é o caso, exemplificativamente, do
fornecimento de simples certidões, sobretudo, quando já se dispõe de sistema
computadorizado.
A razoabilidade será aferida ademais tanto em
função da natureza da tarefa a ser empreendida pelo órgão público, quanto
diante da urgência ou da utilidade da outorga ou do deferimento pretendido.
Daí não se poder permitir prazo tal que torne inútil o
pronunciamento.
O que é preciso insistir é no fato de que a ausência
de previsão legal nem impede a adoção do silêncio negativo nem, muito
menos, o entendimento da existência de um lapso prazal.
Urge agora contemplar a chamada figura do silêncio
positivo de aplicação menos frequente, exatamente pelas peculiaridades de
que se investe.
Haverá silêncio positivo, quando a abstenção
administrativa possa importar em concessão da pretensão deduzida.
Fiorini, em sua obra “Tratado de Derecho
Administrativo”, traz o depoimento, no sentido de que no sistema argentino,
enquantï o silêncio negativo é a regra, o silêncio positivo decorre sempre de
lei.76
76 Fiorini Bartolomé, Derecho Administrativo, pag.439. “El vencimiento del plazo de silencio induce a interpretar que hay negativa a lo solicitado, es lo que la doctrina denomina principio negativo a lo solicitado por el administrado”
138
Essa observação pode, a grosso modo, ser
generalizada nos sistemas jurídicos contemporâneos que dão tratamento à
matéria.
Garrido Falla já havia assinalado a perspectiva do
risco de uma outorga emergente de silêncio positivo vir a ser invalidada
judicialmente, chegando a afirmar que a jurisprudência mais recente das
Cortes Espanholas inclina-se por negar validade aos atos decorrentes de
silêncio positivo, mas que tenham como causa uma situação ilegal.77
Outros questionamentos têm sido levantados, como
sucede quando se busque um benefício por parte da entidade pública que
dependa diretamente da sua interferência, como é o caso da promoção de um
funcionário.
Não se vê outra alternativa senão a do acionamento
do Judiciário para tais hipóteses.
Não será igual, quando se cogitar de licença para
prática de uma determinado ato, cujo exercício dependerá apenas do
particular desde que o Estado não o obstacule.
É a situação especificamente da licença para
construção ou edificação, quando o interessado há de buscar a aquiescência
pública, que se desatará em procedimento inteiramente vinculado.
Muito especificamente, a legislação do Município de
Salvador, Bahia, num dos poucos exemplos encontradiços a tal respeito,
permite que o munícipe inicie a construção, se decorrido o prazo à obtenção
do Alvará, este não foi concedido.
77 Tratado de Derecho Administrativo, Garrido Falla, pag.693
139
Embora possa, por muitos, ser considerado um
avanço, e estarmos em sua companhia, não há negar a existência de alguns
transtornos decorrentes de tal postura.
É facilmente perceptível a dificuldade de
comercialização de um imóvel cuja licença de construção não foi
expressamente concedida devido à insegurança de que se nutrirão os espíritos
dos adquirentes em potencial.
Tudo isso porque, em verdade, como bem assinalado
na doutrina, para configuração do silêncio positivo, é necessário que o ato
vindicatório se encontre em estrita conformidade com a lei.
Mais do que isso, que o requerimento não apreciado,
deve ter sido instruído com todos os documentos que possibilitariam sua
regular apreciação.
Afora esses aspectos, gera-se uma outra dificuldade,
qual seja a de se ir a juízo para pacificação do direito deduzido, quando, por
presunção legal, já tiver sido acatado.
Como anota com propriedade Ernesto Garnica: “Sob
a perspectiva do interessado a efetivação do silêncio positivo é sobretudo
duvidosa. Quando seja discutível se o pedido se acomoda ou não à
legalidade o interessado se opta por atuar, ver-se-á submetido a um
inevitável risco; como anotou Santamaria Pastor, o interessado se
encontrará ante o dilema de fazer ou não fazer o uso do silêncio sem que ao
menos possa em princípio provocar os tribunais para que aclare a sua
140
situação, já que não pode atuar como demandante para que se confirme um
ato presumido, por silêncio positivo”.78
Ainda é de se registrar que o silêncio positivo deve
ser restrito àquelas situações resultantes de procedimentos e atos vinculados,
de tal sorte a emprestar-lhes um mínimo grau de certeza.
Andou bem, no particular, o Código de
Procedimentos Administrativos da Espanha, quando, no seu art. 95
estabeleceu a existência de silêncio positivo em relação a recursos
administrativos pendentes, quando a decisão de origem é favorável ao
administrado.
Nesse caso, tendo sido a relação jurídica acertada na
instância inferior, não se justifica que se lhe impeça a executoriedade por
conta da passividade do órgão hierárquico de maior grau.
É de registrar-se, por fim, o nosso sentimento de que
ao se cuidar de silêncio positivo, deveremos contar com lei expressa, ao
contrário do que defendemos quando se cuida de silêncio negativo.
De Outras Modalidades de Silêncio -
A dicotomia simplista entre silêncio negativo e
silêncio positivo não abrange todo leque de situações que, juridicamente,
merecem estudo.
Inafastavelmente, há de se ter presente que em
determinadas situações, não se poderá cogitar nem de interpretação negativa,
nem de interpretação positiva, por estrita impossibilidade lógica, devendo-se,
78 El Silencio Administrativo en el Derecho Español, editora Civitas S/A., 1992, pag.179
141
nesse caso, limitar-se o legislador a estabelecer a responsabilização do agente
retardatário.
Como tal será, quando o ato administrativo resulte
de uma construção a ser elaborada pelo agente público.
Não será possível, portanto, diante de uma licitação,
cujo resultado não foi declarado, de modo a proclamar-se vencedor um entre
vários concorrentes, lograr-se a atribuição de uma solução em favor de um ou
de outro, ultrapassando-se a organização estatal.
Em hipóteses tais, o remédio será mesmo compelir-
se o administrador a praticar o ato, já que não se concebe alternativa diversa.
O mesmo se diga em relação ao professor de
Universidade Pública que dispõe de um prazo para atribuição de notas a
determinadas provas, mas por não atendê-lo, não dará azo, a que se repitam
notas anteriores ou se venha a suprir a avaliação por outro modo.
Para esses casos, atribuímos o enlace conceitual de
atos administrativos insubstituíveis.
Poderíamos, ainda, falar no que rotularemos como
silêncio preclusivo, onde o decurso do tempo dispensa pura e simplesmente a
prática do ato.
Tal situação emerge no direito parlamentar
brasileiro, quando, exemplificativamente, uma comissão técnica deixa de
opinar, na oportunidade adequada, sobre certo projeto que, então, é
encaminhado a Plenário com supressão da instância.
Em algumas outras situações, a emissão de parecer é
dispensada, quando o parecerista transpõe a barreira temporal.
142
Nesses casos, a formalidade é simplesmente
abandonada e a manifestação administrativa torna-se inexigível.
Da Manifestação Tardia da Administração -
Questão que vem à baila concerne na possibilidade
de vir o Estado a atuar em processo administrativo, findo o prazo que a lei lhe
concedeu e, quando, portanto, já se podem extrair os efeitos do silêncio.
Pensamos que a questão deve ser encaminhada em
torno da indagação relativa a quem aproveita os efeitos do silêncio.
Se concluímos que se trata de instituição de proteção
do administrado, não haverá dúvida de que este poderá se beneficiar da
solução tardia, quando se profira em seu favor, ainda quando o decurso de
prazo lhe pudesse autorizar a conclusão negativa.
Ao contrário, se a parte ao captar o sentido negativo
do silêncio já atuou na via judicial, não cabe à administração pugnar pela
improcedência da lide, porquanto a alçada da decisão foi transferida a outra
esfera.
Positive-se que o reconhecimento do pedido, ainda
que extemporâneo, deverá ser sempre levado em conta, mesmo em sede
judicial, quando a ação perderá o objeto, sem prejuízo da responsabilidade da
administração pelos danos causados.
Questão outra a ser deslindada é aquela em que o
silêncio negativo possa ter-se operado com afetação de direitos de terceiros
beneficiados pela não concessão.
143
Nesse caso, estamos convencidos de não ser possível
a afetação de direitos, oriundos da presunção de não outorga, dado que não
podem ser prejudicados aqueles que agiram em boa fé.
É preciso que se tenha em conta que a relação
travada entre o administrado e a administração pública pode projetar efeitos
externos que devem ser resguardados.
Esse aspecto mais se flexibiliza, quando não
tenhamos prazo certo, fixado em lei.
De qualquer modo, em sede do direito brasileiro a
equação pode ser encontrada nos termos da súmula 473 do Supremo Tribunal
Federal, segundo a qual: “ S. 473 - A administração pode anular seus
próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles
não se originam direitos, ou revogá-los por motivo de conveniência ou
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os
casos a apreciação judicial”.
No mesmo compasso, tal como se tivesse praticado
o ato de modo concreto, o administrador pode anular ou revogar os efeitos
emergentes da prática silencial, atendidas as consequências exteriorizadas na
súmula, cuja matiz doutrinária sabe-nos acertada.
Esse entendimento, deve-se ressaltar, prevalece tanto
em relação ao silêncio negativo, quanto ao positivo, sendo que nesse último
só será admissível a via anulatória em face do respeito devido ao ato jurídico
perfeito e acabado.
Não se olvide que o desfazimento dos atos,
sobretudo com afetação ao administrado, jamais dispensa a instauração de
regular processo onde se oportunize o direito de defesa.
144
A anulabilidade dos atos não convive com a
perspectiva de sonegar-se a garantia de defesa do interessado em sua
manutenção, até para demonstrar que os vícios não se positivam ou que há o
dever do seu saneamento.
O Estágio Brasileiro -
Adiantamos, no início desse trabalho, o incipiente
tratamento dado à matéria no cenário nacional, onde a legislação esparsa e
não sistematizada está em companhia da ausência de maiores avanços na
construção científica do tema.
Homenageie-se a súmula 429 que admite,
genericamente, o uso de Mandado de Segurança contra omissão da
autoridade, sem, contudo, traçar, com maior clareza, a extensão do conceito
de tal conduta omissiva, nem precisar suas exatas consequências.79
De um modo geral, o tema vem tratado entre nós
com ênfase no direito de indenização ao prejudicado, à luz da teoria do abuso
de poder.
Da Nossa Jurisprudência -
Substancialmente, o enfrentamento do silêncio
administrativo no Brasil, tem-se voltado à perspectiva de inibir-se o fluxo
prescricional para o reclamo dos direitos, enquanto o Estado não se
pronuncia.80
79 Súmula 429 do STF: “A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso de mandado de segurança contra omissão da autoridade” 80 “ADMINISTRATIVO. SILÊNCIO DA ADMINISTRAÇÃO. CONDUTA OMISSIVA, IMPORTANDO INADIMPLEMENTO DO DEVER DE PROVIDENCIAR SOBRE A MATÉRIA POSTA A SEU EXAME, NÃO DÁ ENSEJO À PRESCRIÇÃO DO DIREITO DO ADMINISTRADO.” (Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº.115033, 02 - SEGUNDA TURMA, DJ DATA-11-03-88 PG-04749 EMENT VOL-01493-04 PG-00790)
145
No particular, queremos nos referir à decisão em que
se enfrentou, de modo claro, a questão da existência do silêncio positivo em
tema de prorrogação de concessão de radiodifusão.
O STJ em certa feita decidiu: “O silêncio da
administração, frente ao pedido de renovar-se a concessão de radiodifusão
nem sempre implica em ela se prorrogar tacitamente. O art. 33, parag. 4 da
lei 4.171/1962 reclama interpretação em conjunto com o art. 2 da lei
5.785/1972: a prorrogação tácita da concessão de radiodifusão somente
ocorre, se a concessionária comprovar que está em dia com todas as
"exigências legais e regulamentares”.81
Nesse caso, houve a clara definição do
reconhecimento da existência de um silêncio positivo, com a restrição dos
seus efeitos em função da inexistência dos pressupostos de legalidade, em
consonância com a doutrina contemporânea nos países europeus.
Do Amparo por Mora -
Intitulamos o nosso discurso, que ora se inicia, com
uma expressão canonizada no Direito Argentino, a que se deve render as
ADMINISTRATIVO - PRESCRIÇÃO - SILÊNCIO DO ADMINISTRADOR. ENQUANTO PENDER, SEM RESPOSTA, REQUERIMENTO DIRIGIDO À ADMINISTRAÇÃO, NÃO SE INICIA O FLUXO PRESCRICIONAL EM FAVOR DESTA.” (Superior Tribunal de Justiça, RESP 6283/BA DJ DATA: 28/09/1992 PG: 16364 RSTJ VOL.: 00039 PG: 00358 ADMINISTRATIVO - PROCESSO CIVIL - SILÊNCIO DA ADMINISTRAÇÃO - INÍCIO DO PRAZO PRESCRICIONAL. 1. ENQUANTO PENDER SEM RESPOSTA REQUERIMENTO DIRIGIDO A ADMINISTRAÇÃO, O FLUXO PRESCRICIONAL EM FAVOR DESTA NÃO SE INICIA. 2. NAS OBRIGAÇÕES DE TRATO SUCESSIVO, A PRESCRIÇÃO EM FAVOR DO ESTADO INCIDE APENAS SOBRE AS PRESTAÇÕES NÃO REIVINDICADAS NO QUINQUÊNIO QUE ANTECEDEU O EXERCÍCIO DA AÇÃO (DECRETO 20.910/32 - ART. 3.)” (Superior Tribunal de Justiça, RESP 7374/BA, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 17/12/1992 PG: 24213) 81 Superior Tribunal de Justiça, RESP 65316/MG, PRIMEIRA TURMA, DJ DATA: 17/03/1997 PG: 07433
146
homenagens pela originalidade na busca de um sistema corretivo do silêncio
da administração.
A própria técnica de interpretação do silêncio em
sentido negativo ou positivo já constitui um avanço claro em defesa do
administrado, sendo importante realçar-se, sem embargo disso, que a postura
silenciosa gera entraves facilmente perceptíveis.
O legislador argentino, por via da Lei 19549 de 03
de abril de 1972, introduziu em seu Direito a figura do amparo por mora,
destinada a compelir a administração, a romper a inquietante barreira do
silêncio, como um meio mais efetivo de proteger o administrado contra a
incúria administrativa.
No art.28 da referida lei, intitulada “Lei Nacional de
Procedimentos Administrativos” instituiu o direito de o particular demandar a
administração pública para que esta emita um pronunciamento em matéria
que lhe diga respeito, cabendo ao juiz fixar um prazo razoável para tanto e a
ser obedecido sob pena de responsabilidade do agente.82
Chegou-se a discutir se naquelas hipóteses em que a
lei estabelecia uma eficácia própria ao silêncio seria cabível cogitar-se do
amparo por mora.
82 Art. 28: “El que fuere parte de un expediente administrativo podrá solicitar judicialmente se libre orden de pronto despacho. Dicha ordem será procedente cuando la autoridad administrativa hubiere dejado vencer los plazos fijados y en caso de no existir éstos, si hubiere transcurrido un plazo que excediere de lo razonable sin emitir el dictamen o la resolución de mero trámite o de fondo que requiera el interesado. Presentado el petitorio, el juez se expedirá sobre su procedencia, teniendo en cuenta las circunstancias del caso, y si lo estimare pertinente requerirá a la autoridad administrativa interviniente que, en el plazo que le fije, informe sobre las causas de la demora aducida. La decisión del juez será inapelable. Contestado el requerimiento o vencido el plazo sin que se lo hubiere evacuado, se resolverá lo pertinente acerca de la mora, librando la orden si correspondiere para que la autoridad administrativa responsable despache las actuaciones en el plazo prudencial que se establezca según la naturaleza y complejidad del dictamen o trámites pendientes.”
147
A solução endereçou-se em sentido positivo, ou seja,
ao admitir-se que caberia ao administrado optar pelo silêncio exegético ou
demandar o pronunciamento expresso.
Bem certo é que a novidade argentina vem fazendo
fortuna em nosso parceiro do Mercosul pelo significado que tem de reprimir a
inércia da administração.
O chamado “juízo de amparo genérico” corresponde,
aproximadamente, ao nosso mandado de segurança, enquanto que o amparo
por mora tem feição especial.
Sua característica de celeridade tem lhe emprestado
grande importância em seu país.
O procedimento é bastante simplificado, resolvendo-
se em uma petição que o juiz, ao deferir, solicitará prontas informações à
administração sobre o alegado.
Quanto a tal despacho não cabe qualquer recurso.
As informações do administrador podem vir
acompanhadas de documentos, mas não comportam a provocação de dilação
probatória.
A decisão final fixa um prazo para o
pronunciamento explícito e, nesse caso, tem-se aberto questionamento quanto
à recorribilidade.
As conseqüências práticas do não-cumprimento da
decisão judicial resolvem-se na apuração da responsabilidade, embora já se
cogite da adoção das “astreintes” e, com uma ponta de vaidade natural,
Horacio Bay revela que, ao expor os contornos do instituto na Escola de
148
Direito de Madrid e na Universidade de Roma, os professores daquelas Casas:
“Quedaron sorprendidos y encantados con el instituto, en el que
reconocieron, rápidamente, su gran importancia y la necessidad de su
incorporación a suas respectivas legislaciones”.83
Está aí um novo remédio de que, certamente, a
administração brasileira se encontrará carente.
O seu receituário pode já contar com a experiência
de quase trinta anos dos irmãos do Rio da Prata.
Adiantaremos o nosso trabalho, refletindo sobre
aspectos pouco visitados, mas significativos na diretriz central da monografia.
Entitularemos o capítulo seguinte, como
“Prerrogativas indevidas e uso indevido de prerrogativas”
83 Bay, Horacio D. Creo, Amparo por mora del la administración pública, 2ª edição, Prologo, pag.XII
149
CAPÍTULO V
PRERROGATIVAS INDEVIDAS E USO INDEVIDO DE
PRERROGATIVAS -
Ousaremos tratar uma matéria sobre a qual não
conhecemos estudos específicos nem incursões mais aprofundadas. Apesar de
tudo, consideramos, de extrema relevância, o seu enfrentamento.
A titulação envolve uma questão nuclear, qual seja a
das prerrogativas da administração, tratadas sob duas vertentes.
A primeira resulta de concepções legislativas que,
em verdade, não instituem em favor dos entes públicos mecanismos
particularizados que lhes permitam alcançar o direito geral, mas confere
privilégios inaceitáveis.
Prerrogativas indevidas é como chamamos.
A segunda angulação diz respeito a um
posicionamento adequado no ordenamento jurídico, cujo manejo pela
administração revela-se incorreto, razão porque denominamos de “uso
indevido de prerrogativas”.
Cumpre, inicialmente, realçar o que se deve entender
por prerrogativas na administração pública.
Parece lógico que a partir de todo encaminhamento
dessa dissertação, não possamos conceber as prerrogativas públicas, senão
como posições especiais que permitam ao agente melhor visualizar o quadro
social, nele se locomover com mais facilidade, tudo em busca de um tráfego
mais adequado da sedimentação dos valores societários e da satisfação do
equilíbrio nas relações jurídicas.
150
Nesse ponto, a supremacia do interesse público põe
os cidadãos como espectadores da administração, que pode ocupar posições
estrategicamente propícias à consecução do bem comum à coletividade.
Dentro dessa métrica, as prerrogativas são aceitáveis
ou inaceitáveis e, quando aceitáveis, podem ser sindicadas quanto à
adequação e à proporcionalidade no seu exercício.
Feita essa digressão preliminar, tomaremos o ponto
primeiro, aquele que está referido à concepção, a nosso ver, indevido de
prerrogativas que, antes de atender ao interesse público, conspiram contra ele.
Tomemos um tema recorrente que tem sido objeto
de seminários, encontros e estudos, consistindo, inclusive, em material
didático de ensino nas escolas superiores de Direito, qual seja a atuação da
administração pública junto ao Poder Judiciário.
A Administração Pública em Juízo -
Sempre nutrimos certa aversão à quebra do princípio
da isonomia que, se no campo do direito material é intolerável, em termos
processuais, chega a ser extravagante.
Provavelmente, não se tem dado a devida ênfase à
garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório que envolve, mais
do que uma promessa formal, o pressuposto da igualdade dos contendores no
processo, independentemente da qualidade do direito material que possa
exibir.
Pensamos, inclusive, que, até em nome da “equal
protection” seja possível atenuar a carga de oneração processual em favor de
151
um dos lados mais debilitados na lide, exatamente como forma compensatória
do seu equilíbrio na relação.
Vemos com inteira naturalidade, as garantias
processuais do consumidor, do trabalhador, do alimentado em relação ao foro
da litigância, em prévia consideração à hiposuficiência.
Não vemos desmando na instituição de curador aos
interesses de menores, de ausentes, de revéis citados por edital, tudo em nome
da restauração de uma prática nivelatória.
Entendemos, mais, que todas essas distinções têm
fundo isonômico, cuja tradução real está no tratar igualmente a iguais e
desigualmente a desiguais.
Dizemos, então, que o “discriminen” tem base
constitucional à luz de toda teoria isonômica ou igualitária de proteção.
Essa forma de ver as coisas gerou-nos profundas
inquietações em relação à postura de preeminência que se confere aos
Estados, vale dizer, às instituições públicas, como um todo, nas relações
processuais.
Devemos, agora, reconhecer que a decisão de
incursionar sobre o assunto foi, em muito, motivada pelas lúcidas observações
que colhemos do Professor Carlos Ayres de Brito, da Universidade Federal de
Sergipe, que, em palestras e conferências, tem-se dedicado a espicaçar o tema
com a força dos juristas de escol, balanceada pela leveza do poeta nessa
simbiose que nele a todo instante se revela.
Pois bem. Acostumamo-nos a falar nos privilégios
da administração pública em juízo, no seu modo peculiar de atuar, com o seu
152
manancial de prazos em dobro ou em quádruplo, com suas intimações
pessoais, com o seu duplo grau de jurisdição, com a perspectiva de desistência
desatempada, dentre outros mimos que a legislaçaõ processual lhe concede.
Afeita a toda sorte de mesuras, busca a
administração pública, cada vez mais, a ampliação desses seus dotes,
chegando, inclusive, a obter a impossibilidade de tutela antecipada e a
procurar prazos maiores para ação rescisória.
Até onde pretenderá chegar não se sabe.
A primeira consideração cabível é a de indagar a que
título e porque razão se concedem tais privilégios. Seguramente, não é a
hiposuficiência, porque ninguém melhor para se aparelhar ao enfrentamento
judicial do que o próprio Estado.
Se isso não se resolve por mácula ao ditame da
eficiência, muito menos será causa para projetar-se um favorecimento
processual.
Chega-se ao ponto hoje, no Brasil, de aludir-se a
uma verdadeira via “crucis” nas questões contra o Estado, onde o particular,
inferiorizado, enfrenta as garras do gigante.
Voltemos o discurso à questão da lógica do
ordenamento jurídico, para entendermos que o direito processual, como
qualquer outro, tem suas vertentes e recebe sua autoridade dos mandamentos
constitucionais.
Nesse caso, é substancial perseguir a modulação
constitucional para se cotejar se há autorização implícita ou explícita à criação
dessas vantagens.
153
Tomamos a proposta do Professor Ayres de Brito e
visitamos a Constituição Federal Brasileira.
Como o lente sergipano, nada encontramos que
legitime os privilégios de tal quilate.
Bem ao contrário, a proteção constitucional em
matéria de processo revela-se, sobretudo, em relação ao cidadão.
Inicie-se o percurso a partir do título que rege os
direitos e garantias fundamentais.
No que tange aos direitos individuais, ali
encontramos alojados diversos dispositivos de natureza processual. Vejamos:
no inciso XIV do art.5º dispõe-se sobre a necessidade de lei que venha a reger
o processo de desapropriação, mas, de logo, outorgam-se garantias ao
indivíduo como a de que a referida lei não poderá conduzir à inexistência de
uma indenização prévia, justa e em dinheiro.
Logo, aqui, percebe-se que o ente protegido é o
cidadão e não, o Estado.
Ao inciso XXXIII, cuida-se de oferecer ao indivíduo
o direito à obtenção junto aos órgãos públicos de informações de seu interesse
particular, estabelecendo-se, inclusive, a obrigatoriedade de sanção ao Estado
em caso de recusa.
Dito dispositivo está intrinsecamente associado à
ação de “habeas data”, logo contemplada no inciso LXXII.
Sobreleva em repique a garantia do direito
individual contra o Estado, pelo municiamento do remédio processual.
154
Por seu turno, os incisos LXI, LXII e LXIII, LXIV,
LXV e LXVI, embutem normas de processo penal, todas elas limitatórias da
ação do ente público.
No elenco das chamadas ações constitucionais,
deflui, claramente, que todas elas “habeas corpus, mandado de segurança,
mandado de injunção, ação popular” destinam-se à proteção da cidadania,
impondo-se, como freio ao Estado.
Ainda, o inciso LXXIV assegura a assistência
judiciária com isenção das custas às pessoas carentes, enquanto o LXXVII
configura a plena gratuidade para o “habeas corpus” e o “habeas data”.
Em sede da organização do Poder Judiciário,
vislumbra-se que, ao lado da imunidade material dos bens estatais, impõe-se
regra cogente ao cumprimento dos precatórios, impedindo o órgão público de
efetuar pagamento fora de sua ordem cronológica.
No âmbito da competência do Supremo Tribunal
Federal, contempla-se o cabimento de recurso ordinário no “habeas corpus”,
no mandado de segurança, no “habeas data” e no mandado de injunção,
exclusivamente na hipótese em que for denegatória a decisão.84
Vale dizer que se o Tribunal tiver deferido o pedido
em favor do autor, não é dado ao Estado o exercício do recurso ordinário,
hipótese restrita àquela em que houver sucumbência do particular.
Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça
utiliza-se da mesma técnica relativamente ao “habeas corpus” e ao mandado
84 Art.102, inciso II, alínea “a”.
155
de segurança, somente processando recurso ordinário, quando o particular for
vencido.85
Em continuação, vai se verificar que a Carta Magna
abriu o leque à parte interessada para propor ações contra a União, na seção
em que tiver domicílio, onde tiver ocorrido o ato ou o fato que deu origem à
demanda, onde estiver situada a coisa, ou ainda, no Distrito Federal.86
Em contrapartida, as ações aforadas pela União
deverão sê-lo, exclusivamente, na seção judiciária onde o réu tem domicílio.87
No espaço reservado ao Ministério Público, vai-se
encontrar, expressamente, a proibição dos seus integrantes de representar em
juízo as entidades públicas.
Esse apanhado que, por certo, não é exaustivo, bem
serve para revelar que o perfil constitucional é o de proteção do cidadão
contra a arrogância do Estado, munindo-o de meios e instrumentos que lhe
facilitem a defesa e lhe permitam residir em juízo com garantias mínimas de
ombreamento com o contendor.
Nesse caso, como se explicar que a legislação
processual ordinária tenha invertido toda essa tônica registrada
constitucionalmente?
É fora de dúvida de que tanto o direito material,
quanto o processual submetem-se às normas constitucionais, das quais avulta
a regra da isonomia.
85 Art.105, inciso II, alíneas “a” e “b” 86 Art.109 § 2º 87 Art. 109 § 1º
156
Justo por isso, não conseguimos encontrar
fundamento a essa diferenciação.
Em linha de extrema gravidade, editou-se a Medida
Provisória n.1577/97 que no seu art.4º e parágrafo único veio de ampliar de
dois para cinco anos o prazo para propositura de Ação Rescisória pela União,
Estados, Distrito Federal, Autarquias e Fundações Públicas, além de elastecer
em favor dos órgãos públicos as hipóteses da mencionada ação para
contemplar as desapropriações cuja outorga de indenização tivesse ocorrido
com preço, flagrantemente superior ao de mercado.
Inexcusável, que se trata de iniciativa
inconstitucional, porque decididamente, quebra de modo inaceitável qualquer
relação de equilíbrio entre as partes.
Ditas prerrogativas não se mostram somente no
processo judicial, entre nós, mas exibem-se, também, às claras em sede do
processo administrativo.
Diga-se de passagem que, nesse último segmento, o
nosso estágio ainda é bem modesto, sendo certo que só, recentemente, se
editou uma lei geral de procedimentos.
Não só isso, mas não receamos dizer que o processo
administrativo no Brasil vive uma fase ainda bastante embrionária sem a
valorização acadêmica, sem a credibilidade maior da cidadania, sem a
abordagem mais profunda na doutrina.
Enquanto em outros países multiplicam-se os
trabalhos nessa área, produzem-se nos tribunais precedentes valiosos. Neste
país, estamos ainda em uma fase bastante incipiente, mercê, talvez, da
157
inexistência de órgãos contenciosos administrativos, independentes do Poder
Executivo.
Tomaremos, como exemplo de prerrogativas
indevidas no âmbito do processo administrativo, o chamado processo
disciplinar.
Dos Descaminhos do Atual Processo Disciplinar -
O art. 5º, inciso LV da nossa Carta vigente,
estabeleceu a garantia da ampla defesa com os meios e recursos a ela
inerentes, tanto nos processos desatados ante o Poder Judiciário, quanto
naqueles enfrentados no âmbito da administração.
Sérgio Ferraz, em artigo publicado na Revista
Trimestral de Direito Público, já alertava nos idos de 1993: “ Ora, somente se
pode pensar em efetiva realização do princípio democrático quando (e onde)
possa o administrado participar da feitura do querer administrativo ou da
sua concretização efetiva. Para tanto, imprescindível é que se assegure ao
cidadão o postular junto a administração com a mesma corte de garantias
que lhes são deferidas no processo jurisdicional”.88
A prática corrente está longe desse enunciado.
O falso dogma do informalismo, em boa hora, tem
sido rebatido por juristas de escol, destacando-se Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, ao abordar a matéria, prefere referir-se ao princípio da obediência à
fórmula e aos procedimentos, destacando com o costumeiro acerto que a
88 Revista Trimestral de Direito Público, vol. 1, editora Malheiros, pag. 84, 1993
158
maior rigidez no processo judicial tem produzido em relação ao
administrativo essa rotulação inadequada.89
Insista-se em que o processo administrativo é
formal, muito embora suas decisões possam ser revistas, quer no seio da
administração, quer na esfera do Poder Judiciário.
Tentar-se-á, agora, demonstrar a substancialíssima
violência que macula todo o processo disciplinar, estruturalmente na sua
própria origem, pela singular circunstância da criação das chamadas
comissões processantes “ad hoc” e pela simbiose entre o papel de ente
acusador e de julgador que desempenha a autoridade administrativa.
Inconstitucionalidade das Comissões Especiais -
No direito federal brasileiro, seguindo longa e velha
tradição, a autoridade superior ao indiciado constitui à sua livre escolha
comissão que irá instruir e, afinal, concluir pela procedência, ou não, do libelo
contra o servidor.
Ora, a garantia da ampla defesa está
indissociavelmente ligada a todo elenco que lhe constitui sustentáculo
indispensável.
Não terá havido ampla defesa se houve juízo ou
tribunal de exceção, nem tampouco se o instrutor do feito, com
pronunciamento em princípio vinculante, for escolhido para um determinado
fato e para um determinado funcionário e, mais ainda, submetido
hierarquicamente à autoridade que o designou.
89 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, pag.400/401
159
Para comprometer todo o procedimento bastará que
a autoridade competente forme Comissão, segundo a sua afinidade, com os
membros, de tal sorte a influenciar no julgamento.
Não se pode esquecer ademais que, em boa parte das
vezes, o órgão acusador confunde-se com o próprio julgador em última
instância, qual seja a autoridade nomeante.
Isso basta para eliminar o mínimo de equilíbrio
possível na relação processual pela chamada quebra da igualdade de armas,
onde o que é prevalência do interesse público torna-se ditadura da vontade da
administração.
A nossa absoluta ausência de tradição em matéria de
processo administrativo gera uma pacífica acomodação quanto ao quadro,
quando em contrapartida nos anima ver que o professor Lorenzo Sánchez
Carnelli ao abordar, especificamente, o regime disciplinar dos funcionários
públicos na pátria uruguaia refere-se, expressamente, à designação de
instrutor (na ação procedimental) “alheio aos quadros funcionais da
administração, apontando escólios do Tribunal Contencioso Administrativo
configurados nas sentenças 394 e 400 de 22 de abril de 1992”.90
Entre nós, contentamo-nos, com essa fórmula
casuística inadequada de uma comissão para cada caso, para cada pessoa, de
livre nomeação pela autoridade às quais se subordinam.
É evidente que o simples caráter de subalternidade
retira a independência do instruir o feito, ao conduzir a prova, ao emitir um
relatório concludente.
90 Revista de Derecho Público, pag.57/58.
160
Na doutrina estrangeira, Nedjati, em obra que já data
de 24 anos, estabelece, com base em precedentes judiciais, o que poderíamos
denominar de atuação administrativa judicialiforme, isto é, praticada pela
administração, mas com arcabouço e estrutura próprios das decisões judiciais.
Anota o autor, com precisão: “ For general
guidance it may be pointed out that functions which are similar to those of a
judge are often termed “quasi-judicial”. The term “judicial” is often used
however to include both the functions of a judge and functions similar to
those of a judge. The functions of an arbitrator or of an administrator, who
has to follow a judicial process before reaching a determination (as, for
instance, to grant a hearing, to consider objections and hold an inquiry) may
either be termed “judicial” or “quasi-judicial”. Bodies that may be
analogous to courts stricto sensu may be held to exercise “judicial” or
“quasi-judicial” functions. The more closely a statutory body resembles a
court of law, the more likely it is that that body will be held to act in a
“judicial” capacity.”.91
O mesmo autor, em outra passagem, adianta que à
luz do direito inglês tem se decidido que o exercício de funções de caráter
judicial independe de que o órgão exercente da função seja, necessariamente,
um tribunal integrante da estrutura judiciária.
Refere-se ele, nesse caso, ao dever de agir
“judicialmente”.
Fique assente que quando a administração impõe
sanções gravíssimas contra o servidor, ou simplesmente, passa a poder
eliminá-los dos seus quadros, é necessário que se tomem decisões, cercadas
de todas as garantias e imune de todos os vícios 91 Nedjati, Z. M., Administrative Law, pag.22
161
Nessa esteira de raciocínio, andou bem a
Constituição Italiana que, no seu artigo 100, assegurou aos órgãos de decisão
na esfera administrativa plena independência perante os componentes do
governo.
À toda evidência, pois, emerge o processo
disciplinar brasileiro, como um exemplar perfeito do que denominamos nesse
trabalho de prerrogativas indevidas da administração.
Esse quadro torna-se, ainda, mais grave, quando
para fazermos uma referência ao modelo francês, podemos dizer que o
controle sobre a matéria exercitável pelos Tribunais encontra-se,
frequentemente, no chamado nível mínimo, reticentes que ainda estão os
juizes nacionais em uma incursão mais profunda sobre a matéria, ao
argumento da independência dos poderes.
A cura desse modelo de processo disciplinar, a mais
não poder, há que passar, necessariamente, por toda uma reformulação do
sistema, envolvendo, dentre outras providências, a criação de órgão
disciplinar autônomo em relação à esfera administrativa e à diferenciação
clara dos papéis do órgão acusado, instrutor — julgador, permitindo-se,
igualmente, uma defesa adequada que possa conduzir a uma apuração real e
não a uma legitimação de um desiderato, previamente estabelecido.
Nessa esteira, para não nos permitirmos um
alongamento maior, queremos dizer que o descrédito do processo
administrativo brasileiro transcende, em muito, o caso sob abordagem; daí,
porque pouca importância se tem conferido às suas decisões, com grave
prejuízo para credibilidade da administração pública.
162
Para completar o quadro, a absoluta falta de uma
organização desses entes impede, inclusive, que se tenha um simples
ementário de seus precedentes para, no mínimo, reivindicar-se coerência nos
julgamentos, garantindo-se a segurança do administrado.
Certamente, também, por essas razões, é que os
profissionais do direito, entre nós, preferem enfrentar a via judicial pela baixa
confiabilidade na instância administrativa.
Toda essa situação configura um arcabouço legal
prenhe de prerrogativas indevidas concedidas à administração pública e que
vão, desde a nomeação e destituição livre dos membros de comissões à falta
de critério de escolha, à ausência de independência, gerada por processos
aleatórios de nomeação, contribuindo para carga de descrédito.
Não podemos, evidentemente, esgotar o elenco das
prerrogativas indevidas da administração pública, mas tão somente tomamos
um exemplário para permitir uma melhor situação temática.
Faremos, agora, uma breve exposição de outra
vertente pertinente às prerrogativa, a que rotulamos de “Uso indevido”.
Uso Indevido de Prerrogativas -
Nessa vertente, estamos cogitando de prerrogativas
que atendem, efetivamente, a uma necessidade de presença diferenciada na
administração pública. Apesar disso, tais prerrogativas são inadequadamente
manejadas, por excesso, por desproporcionalidade, por inoportunidade e em
suma, por fatores variados que desvirtuam a sua instituição.
163
Tomemos o mais significativo exemplo de
prerrogativa material da administração, qual seja a da auto-executoriedade ou
para os franceses “privilege d’execución d’office”.
A continuidade do serviço público e o desiderato
constitucional, a serem perseguidos pelo ente da administração, requerem a
utilização de medidas interventivas sem a necessária provocação do
Judiciário, invertendo-se para o particular a perspectiva de questionar a
legitimidade do ato.
Deflui daí que a interdição de uma rua onde a pista
de tráfego possa produzir grave risco de acidente, é providência que há de ser
tomada de imediato, com as cautelas devidas, ao prudente critério da
administração.
Identicamente, a remoção de um veículo que esteja a
inibir o acesso a um prédio público também reclama uma ação pronta e direta
por parte do órgão governamental.
O mesmo se diga quanto à apreensão de alimentos
deteriorados que se destinariam ao consumo não pode aguardar a disputa na
via judicial.
Multiplicadas são as situações em que a
administração deve agir, de pronto, no âmbito da sua competência.
Trata-se de uma prerrogativa forte, mas
absolutamente necessária e inevitável.
Envolvendo manifestação de poder, deve conhecer,
naturalmente, limites, e a sua extrapolação constitui o desvio objeto da nossa
análise.
164
A auto-executoriedade tem sido admitida de forma
restritiva ante a regra geral da inafastabilidade da apreciação do Poder
Judiciário, quando se torna condição indispensável a eficaz garantia do
interesse público, confiado pela lei à administração, consoante o sempre
oportuno e abalizado ensinamento de Bandeira de Mello.92
A doutrina, de um modo geral, costuma exigir a
alternância de dois requisitos a legitimar a auto-executoriedade, a saber: a) a
expressa previsão legal; b) a imperiosa necessidade da atuação pronta.
No particular, permitimo-nos fincar divergência com
o entendimento majoritário.
À primeira linha, entendemos que a situação
emergencial, capaz de suscitar perigo ou dano à sociedade, por si mesma,
autoriza o uso da auto-executoriedade, independentemente de autorização
legal que é, obviamente, implícita.
Esse caráter implícito resulta do que chamamos
“desiderato constitucional da administração”, que compreende,
genericamente, todo o rol das atividades que deve desenvolver.
Em sendo o seu dever prover a segurança e não
havendo outro meio senão demolir de imediato uma construção, não lhe cabe
outra possibilidade senão fazê-lo.
No caso, a autorização é manifestamente
constitucional, não cabendo falar de autorização legal, ao que nos arriscamos,
inclusive, a dizer que ainda que houvesse lei proibitiva seria essa
inconstitucional por impedir o livre funcionamento de um poder.
92 Curso de Direito Administrativo, pag.300
165
Observado o critério da razoabilidade e da
proporcionalidade, configurada a imprescindibilidade e a urgência da medida,
aí estará configurada a auto-executoriedade.
Não é sobre esse aspecto que incide – vamos ver - a
nossa divergência. Ela se inaugura quanto ao segmento da doutrina que
estabelece a possibilidade do exercício da atividade auto-executória, desde
que haja autorização legal expressa.
Para nós, se a lei autorizar a prática auto-executória
da administração sem os pressupostos materiais, antecedentemente
levantados, será manifestamente inconstitucional, por afrontar a regra relativa
ao devido processo legal, segundo a qual ninguém será privado de sua
liberdade ou de seus bens, senão mediante processo próprio com a garantia do
contraditório e da ampla defesa.
Afigura-se-nos, pois, absolutamente impossível o
exercício da prática executória direta, fundada exclusivamente na lei.
Não vemos, portanto, como possa o legislador
autorizar a apreensão de bens para, com isso, satisfazer a dívida fiscal do
contribuinte omisso.
Não haverá, nesse caso, qualquer possibilidade de se
estabelecer a exclusão da via judicial.
Para nós, a equação pode ser simplificada nos
seguintes termos: a auto-executoriedade deflui da imperiosa necessidade de
atuação da administração pública, justificando-se o sacrifício, quando
estritamente indispensável à preservação de valores jurídicos materiais, do
contraditório e da ampla defesa.
166
É irrelevante, portanto, a existência ou não de lei
para autorizar a auto-executoriedade, mas será exigível sempre a
indispensabilidade da atuação direta, mesmo que haja previsão de lei para o
exercício de tal prerrogativa.
Traçados esses contornos, vai se ver que o campo é
fértil ao chamado uso indevido, já que, nem mesmo o desenho doutrinário e
jurisprudencial, acha-se convenientemente emoldurado.
Daí, encontramos inúmeras situações que
absolutamente não justificam a auto-executoriedade, mas que, em seu nome,
são praticadas.
Nesse elenco: construções que não apresentam
perigo imediato ou, ao menos, mediato, edificadas já há bastante tempo, que
venham a ser demolidas; interdição de atividades constituídas há determinado
tempo sem que haja prejuízo visível para a administração; apreensão de
mercadorias, a pretexto do contribuinte se encontrar em débito; retenção de
veículos que não exibam pagamento de imposto; constrangimento a
pagamento de débitos, sob pena de vedação de atividades; negativa de licença
de construção a contribuinte em débito com o Município.
O elenco seria, em verdade, inesgotável face a
multiplicidade de situações criadas no dia-a-dia quando o ente público, a
pretexto do exercício de uma prerrogativa legítima, termina por
desencaminhá-la para um objetivo inadequado.
Eis aí uma situação exemplar do uso indevido de
prerrogativas.
167
Tomemos outra situação, qual seja a função
regulamentar da administração pública “lato sensu”, envolvendo a sua
competência organizacional.
A expedição de instrumentos normativos desde o
decreto regulamentador da lei à simples ordem de serviço constituem
prerrogativas inalienáveis dos entes governamentais.
Embora esses instrumentos tenham finalidades e
direcionamentos precisos, não raro, extrapolam o seu raio de alcance.
De modo freqüente, os Tribunais, a partir do próprio
Supremo, têm reconhecido a inconstitucionalidade de portarias, que geram
obrigações ou direitos por invasão da reserva da Lei.93
Em sequência, na demonstração do que
consideramos uso indevido de prerrogativas, queremos visualizar a garantia
que tem o Estado da impenhorabilidade de seus bens, submetendo os seus
pagamentos à ordem cronológica de precatórios que devem ser incluídos no
orçamento no ano subsequente ao de sua apresentação.
Outra vez, estamos em que a prerrogativa concedida
é adequada, quando protege o patrimônio público e, ao mesmo tempo, garante
a planificação dos recursos, impedindo a interrupção de serviços essenciais.
Sucede que o instituto do precatório converteu-se em
uma via dolorosa de execução para o credor pelas múltiplas e intermináveis
dificuldades que se oferecem no momento da execução.
93 RECURSO EXTRAORDINÁRIO, nº. 96316, DJ DATA-19-11-82 PG-01786, Segunda Turma. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - MEDIDA CAUTELAR, n.349, DJ DATA-26-10-90 PG-11976 EMENT VOL-01600-01 PG-00035, Tribunal Pleno
168
De um lado, a administração descuida-se, com
alguma frequência, da defesa dos seus direitos e depois tenta compensar a
incúria com a procrastinação indefinida na satisfação dos créditos.
De logo, flagra-se, na prática, que a própria inclusão
da condenação na verba orçamentária nem sempre se realiza, ou no mínimo
os valores são insuficientes.
A partir daí, somam-se anos a fio, sem que o
vencedor da ação encontre um meio de obter o resultado.
Nem se diga que a intervenção é uma das
possibilidades diante do ente público recalcitrante, quando não for
evidentemente a União.
Tal remédio, por tão violento, normalmente, não é
aplicado. A transitoriedade no comando faz com que os gestores utilizem-se
de todos os expedientes para retardar, afinal, o pagamento.
Questão também absolutamente relevante e que
contribui em muito para o desvio sob exame é a da fixação em montante fixo
do valor da condenação.
O Supremo Tribunal Federal traçou jurisprudência
firme no sentido de impedir o atrelamento da verba de condenação a índices
corretores o que fez com que todos os valores viessem a ser lançados pelo
montante histórico.
Acentuou a Corte: “A jurisprudência firmada pela
Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em tema de precatórios,
tem averbado de inconstitucionais - além da determinação de pagamento
em valor indexado - também as decisões que meramente admitem a
169
possibilidade, em conta de liquidação, da equivalência do padrão monetário
em ORTN/OTN. A mera possibilidade de referência a tais fatores de
indexação estimulará procedimentos que, ao viabilizarem a atualização
automática dos valores devidos, certamente produzirão efeitos
incompatíveis com à exigência de liquidez e certeza que os precatórios
devem atender quanto à expressão monetária neles formalmente
mencionada”. 94
Em situação marcada por alta inflação, é fácil
perceber-se que os valores se corroiam entre a formação de um precatório e o
seu pagamento, criando-se, na prática, uma série infindável de precatórios
complementares.
Temos, pois, que a legítima prerrogativa terminou
por ser vivenciada, como uma fonte de tormento injusta contra o particular
diante do Estado.
Ao fim dessas observações, permitimo-nos concluir
o tópico com que abrimos esse capítulo, para anunciar, agora, a inauguração
de um outro que toca de perto o caso exemplar retro-noticiado — dos
precatórios — que bem poderão se situar na perspectiva de um
enriquecimento ilícito por parte da administração. É o que veremos.
94 Recurso Extraordinario, n.117648, DJ DATA-29-11-91 PP-17328 EMENT VOL-01644-02 PP-00301 RTJ VOL-00139-02 PP-00617
170
CAPÍTULO VI
DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
As Origens no Direito Privado -
A noção de enriquecimento ilícito é, sem dúvida
nenhuma, mesmo no campo do direito privado, extremamente controvertida,
pouco sistematizada e sem uma unificação dogmática mais sedimentada.
Sem que afirmemos tratar-se de uma instituição de
direito privado, é por esse campo que iniciaremos a nossa conversa, justo
porque a tradição de antiguidade concedeu primazia a esse setor do direito à
incursão sob temas que depois vieram a se revelar como comuns a toda
ciência jurídica, ou pelo menos, parcialmente aplicáveis a outros ramos do
direito.
A tradição napoleônica de que foram herdeiros
muitos sistemas civilistas, inclusive o brasileiro, encaminhou-se naturalmente
para a não referência ao assunto, menos por uma postura de omissão, mas,
essencialmente, por uma fidelidade ao modelo que adotou.
De tal ordem, considerada a causa, como parte
integrante do negócio jurídico, anulado aquele a que faltasse o requisito
causal, sempre se julgou não ser necessário o uso de outro recurso, já porque a
invalidez do ato negocial, desprovido de causa, projetava a restauração do
“statu quo ante”, restituindo-se as partes ao estado original.
Com esse mecanismo, supunha-se não ser necessário
outro instrumento para propiciar o reequilíbrio entre as partes.
De outro modo, um certo primado da autonomia da
vontade não era o palco adequado a que se introduzisse um elemento que não
171
resultasse de uma relação contratual específica ou que fosse estranho à
vontade das partes.
A única porta de abertura que poderíamos encontrar
seria a chamada relação de “gestão de negócios”, admitida no nosso código
nos arts.1.331 a 1.345.95
Doutrinariamente, passou a se associar a “gestão de
negócios” a uma categoria denominada “quase contrato” que, a rigor, não
chega a esconder a insuficiência epistemológica na classificação.
Historicamente, o enriquecimento ilícito era sempre
pensado como a possibilidade de não ser o gestor reembolsado pelo que
despendeu em favor do “dominus”.
Natural, portanto, o elo estabelecido entre
enriquecimento sem causa e obrigação retributiva ao gestor.
Anote-se como verdadeiro que a configuração
jurídica do quase contrato, aliás, nunca guardou maior precisão.
Franck Moderne lembra que ele difere dos contratos
por não envolver uma manifestação bilateral de vontade e não se confundir
com os delitos, por não resultar de um ato ilícito.
Apesar de tudo, pondera que muitos são os que
contestam sua significação, atribuindo a Joserand a afirmativa de que se
trataria de um monstro legendário a ser banido do vocabulário jurídico.96
Ao que se tem notícia, o enriquecimento sem causa
só passou a ganhar referência autônoma a partir do art.812 do Código Civil
95 Código Civil Brasileiro 96 Les quasi-contrats administratifs, pag.02
172
Alemão para o qual: “Quem por prestação de outro, ou de outro modo a
custa destes se enriquece sem causa está obrigado a restituição”.
Pareceu, então, que pelo próprio sistema abstrato
alemão, a perfeição dos negócios jurídicos não estando condicionada à causa,
deu lugar a que se construisse uma teoria da responsabilidade, desvinculada
do próprio vínculo contratual.
Pode-se, no entanto, dizer que nos diversos sistemas
contemporâneos, de um modo geral, a introdução de um conceito de
enriquecimento ilícito produziu-se a partir de um trabalho espaçado da
jurisprudência, repousando, sobretudo, na idéia de equidade e de justiça.
A evolução no trato da matéria veio a trazer uma
bifurcação entre a chamada “gestão de negócios”, como causa específica de
restituição e o “enriquecimento ilícito”, como princípio geral, dando lugar à
chamada ação de “rem in reverso”, que consistiria na transferência daquele
que se enriqueceu de todo proveito obtido à custa do empobrecido.
Nos propósitos limitados desta dissertação não
caberá uma discussão mais aprofundada quanto à sede do instituto, se em
direito privado, se em direito público, ou ao contrário, um princípio geral.
O Enriquecimento Ilícito no Direito Administrativo Francês -
Pretendemos, agora, trazer algumas considerações
que dificultaram o ingresso da figura no direito administrativo francês.
Admite-se que possa ter contribuído para a admissão
do conceito a lei de 22 de outubro de 1790 que estabeleceu o chamado
“princípio da distribuição da carga pública”, pelo qual o Estado deveria
173
indenizar a todos os cidadãos que tivessem sofrido perdas em proveito de uma
utilidade pública.
Mais tarde, um processo de requisição imposto às
prefeituras em tempo de guerra, que veio a repercutir, de forma direta,
economicamente sobre os cidadãos, favoreceu à consciência no sentido de
que deveria haver lugar a uma indenização fora das relações de
contratualidade.
As objeções prosseguiram, mesmo depois desse
evento, quanto ao ingresso do enriquecimento ilícito no plano do direito
administrativo.
Dentre os argumentos em sentido contrário,
levantavam-se as normas pertinentes à proteção da Fazenda Pública, à
vinculação orçamentária dos gastos públicos, à impossibilidade de exercício
irregular da função pública, a que resultaria o gestor de negócios e, ainda, à
questão de não poder o juiz imiscuir-se no critério da administração para
aferir a existência de utilidade na atividade do gestor, circunstância
imprescindível à composição da figura jurídica da gestão do negócio.
Efetivamente, era difícil admitir-se que alguém
pudesse desempenhar atividades úteis à administração sem que, regularmente,
estivesse investido em alguma função ou autorizado por algum contrato.
Tais oposições acabaram encontrando alguma
resposta ou uma forma de acomodação.
Quanto à impossibilidade da existência de gastos
públicos não autorizados, Hauriou incumbiu-se de demonstrar que não se
podia permanecer sem distinguir as obrigações administrativas e os gastos
públicos. As primeiras nasciam de fontes específicas, inclusive
174
independentemente de qualquer previsão. Já os gastos, estes sim, dependeriam
de previsão orçamentária.97
Essa concepção temos nós, hoje, quando
distinguimos obrigação de crédito.
Outra questão essencial, qual a de se indagar como
alguém poderia interferir no desempenho de função pública sem o
consentimento administrativo, passou a ser resolvida pela introdução do
conceito de “assentimento”, expressão menor, mas que, de qualquer modo,
induz à idéia de que a administração, de algum modo, sem que se autorize
expressamente, tolera ou permite, de modo tácito, a execução de
determinados serviços.
A partir daí, também, pode-se resolver a questão da
existência da utilidade pública no serviço realizado com base no chamado
“assentimento administrativo”.
Resolvidos esses obstáculos, pode-se encontrar a
fórmula que solucionava o problema crucial de não se deixar sem indenizar
aqueles que, de boa fé, haviam contribuído para a administração.
Nesse enfoque, parece correto afirmar-se que o
enriquecimento ilícito ingressa no direito francês, como uma gestão de
negócios devidamente temperada para o modelo da administração pública.
O Enriquecimento no Direito Espanhol -
Na Espanha, como nos dá conta Puig,98 não houve
uma rejeição plena ao princípio do enriquecimento injusto no direito
administrativo.
97 Apud., Puig, Manoel Rebollo, El enriquecimiento injusto de la administración pública, pag.54
175
É certo que o Tribunal Supremo, muitas vezes, se
utilizou, sem a precisão necessária, ora dos conceitos da ação “in rem
reverso”, ora do regime da gestão de negócios.
Coincidentemente, o grande desenvolvimento da
temática no âmbito pretoriano dá-se nos anos 70, na mesma época do
desenvolvimento da questão, na Corte francesa.
O autor hispânico já citado, em alentada monografia
sobre o tema, revela que o Tribunal Supremo Espanhol veio de consagrar o
enriquecimento ilícito, como um princípio geral de direito.99
De outra forma, parece que no direito francês
enriquecimento ilícito, pragmaticamente, atrelou-se à idéia dos quase
contratos.
Cuidando do assunto, o já citado Franck Moderne
aponta situações específicas em que se admitiu o enriquecimento sem causa,
por via do recurso da gestão de negócios quando obras são executadas a partir
de um contrato que venha a ser anulado ou que não foi legitimamente
concluído; quando, após a cessação dos efeitos de uma relação contratual,
atividades são realizadas; quando o particular desenvolve trabalhos úteis, mas
distintos do padrão contratual; quando são realizados trabalhos suplementares,
em decorrência de situações excepcionais justificadoras.
Nossa Visão Quanto ao Enriquecimento Ilícito na Administração -
É necessário, agora, que efetuemos um traçado
menos histórico e mais analítico sobre a questão.
98 Puig, Manoel Rebollo, op cit. 99 “Numerosas son las sentencias de lo contencioso-administrativo en que así lo califican y las que lo aplican como tal. Modelo de ello es la de 12 de marzo de 1991 (Ar. 1987), que habla de la <<aplicación de los principios de la buena fe y de la evitación del enriquecimiento injusto, en cuanto informadores de todo el ordenamiento jurídico (arts. 1 CC y 11 LOPJ)>>.” op cit. pag.91
176
É evidente que ninguém mais do que a
administração pública deve pautar-se por uma linha a não ensejar prejuízo
àqueles de quem recebe colaboração ou que, de qualquer modo, contribuem
para o benefício da coletividade.
O enriquecimento sem causa é, sem dúvida,
nenhuma fonte de restituição nos exatos limites do aproveitamento pela
administração.
Qualquer que seja a circunstância em que a
administração esteja se enriquecendo indevidamente, é mister que essa
situação se corrija até em nome do princípio do estado responsável.
Não há porque atrelar-se o enriquecimento ilícito à
gestão de negócios, porque, a nosso ver, nessa última hipótese, poder-se-á
verificar um enriquecimento sem causa, embora com solução específica.
Parece-nos que a velha figura do direito civil que
permitiu, de certo modo, a abertura da responsabilidade da administração
pública, deve ceder lugar a um princípio mais geral, segundo o qual não é
dado ao Estado enriquecer-se, de nenhum modo, à custa do esforço do
cidadão.
A contribuição que se deva dar ao Estado há de ser
uniforme e isonômica, daí porque os excessos contributivos dos particulares
devem ser podados.
Não é razoável, qualquer que seja a situação, ou o
pretexto, que o Estado receba mais dos seus cidadãos do que as contribuições
tributárias que lhes são devidas.
177
Parece que o fundamento maior ao sancioamento do
enriquecimento sem causa é o do princípio da legalidade, que não permite ao
agente público impor qualquer carga, ainda que por via oblíqua que não tenha
caráter geral e natureza universal.
Sem sombra de dúvida, o campo dos contratos nulos
revela-se de enorme fertilidade na produção de enriquecimento ilícito da
administração pública a ser compensado nos limites do empobrecimento do
particular.
É de se registrar que proliferam as situações em que
o próprio Estado dá margem à nulificação de uma avença, quando a parte já
desenvolveu trabalhos, despendeu valores e contribuiu para realização de
obras e serviços e, por isso, deve ser indenizada.
No plano dos servidores públicos, também se
verifica que não é o fato de ter-se consumado uma investidura irregular que
dará margem a que o Estado se aproveite dos serviços prestados, sonegando a
remuneração correspondente.
Não se confine, de modo algum, a idéia do
enriquecimento sem causa à do contrato ilícito ou à das relações extra-
contratuais, mas derivadas originariamente de um contrato.
Muita vez, no curso da execução contratual, deverá
o Estado abster-se do enriquecimento ilícito face o particular.
Imaginamos a hipótese em que o preço dos bens ou
serviços contratados sofra alteração anômala nas suas bases.
178
Nesse caso, a não recomposição do equilíbrio
econômico financeiro da relação importará também em enriquecimento sem
causa.
Nem se diga, seguindo-se a doutrina civilista, que,
nessa hipótese, a perda será creditada à álea natural dos contratos, porque, se
essa regra vale em direito privado, não prospera em direito público.
É que o contratante particular submete-se a um
processo licitatório onde é convidado a oferecer, como regra, o menor preço.
Fixando a sua oferta em patamar mínimo, não pode
suportar oscilações quaisquer que sejam. Essa é a contrapartida natural da
ausência de liberdade de contratar.
Não se olvide a circunstância de que a inexecução
contratual pode dar lugar ao enriquecimento ilícito. Dir-se-á que, nesse caso,
serão utilizados os remédios causais, ou seja, aqueles especificamente
previstos para a relação.
Ilustrativamente, se há um atraso no pagamento, já
devem estar previstos os juros e, se não estão, prevalecem os legais, de modo
que não se instalaria a figura do enriquecimento indevido pelo próprio
mecanismo de recomposição.
Pensamos que nem sempre é assim.
Interessante precedente do Tribunal Supremo da
Espanha, de 12 de fevereiro de 1990, traz notável contribuição a uma situação
relativamente frequente em que se defrontam os contratantes com órgãos
públicos no Brasil.
179
Esse precedente, colhido no sempre recorrido
Manoel Rebollo Puig, vai a seguir resumido.
A Prefeitura de Telde contratou a realização de
prÏjetos, obras e serviços que ficaram a cargo de um particular. Contudo, após
os investimentos feitos por esse particular, a administração retardou o
pagamento, obrigando-o a recorrer ao sistema bancário, onde teve que arcar
com juros de mercado.
O Tribunal Supremo entendeu que a indenização
pela “mora” ia além dos juros contratuais para incluir todas as despesas
realizadas.
O aresto mereceu o seguinte comentário do autor
citado: “La larga cita era conveniente para poner de relieve que en
realidad el enriquecimiento sin causa no es la fuente específica de la
obligación declarada, que más bien encaja en la responsabilidad
contractual y que aquel concepto se utiliza aquí para reforzar la
argumentación o, quizá, para obviar la aplicación del artículo 1.108 CC,
que hubiera supuesto una condena limitada al interés legal. Con todo,
debe constar que no conocemos otras sentencias que se pronuncien en
esta línea invocando el enriquecimiento injusto y que, incluso en la
transcrita, el Tribunal Supremo simplemente razona que <<la
contratación administrativa no es una forma privilegiada de obtención de
créditos por el municipio convirtiendo en prestamista forzoso al
contratista>>.”100
Estamos em que agiu com acerto a Corte Espanhola,
porque não é possível exigir-se do particular que arque com despesas
decorrentes exclusivamente da mora do Estado. 100 Manuel Rebollo Puig, op cit. pag.130
180
A Administração Pública Brasileira e o Enriquecimento Ilícito -
A administração pública brasileira, em relação ao
campo ora cogitado, é rico laboratório que nos permitirá conferir a
experimentação desses desvios nas mais variadas circunstâncias.
Em primeiro plano, enfrentaremos uma situação
relativamente constante, qual seja a de exigência de tributos inconstitucionais
ou ilegais que, uma vez declarados, não são restituídos a quem quer que seja,
sob o argumento de que no caso do comerciante teria havido repasse natural
ao consumidor final e, quanto a este, sua identificação é na prática impossível.
Trata-se de situação normatizada a partir do art.166
do Código Tributário Nacional.
Não temos dúvida de que há um enriquecimento
ilícito, embora seja também razoável admitir-se que possa ter havido, em
certos casos, transferência ao consumidor.
A solução simplista do código não convence,
porque, a rigor, o montante arrecadado deveria ser disponibilizado para
eventualidade de identificação do chamado contribuinte de fato.
De qualquer modo, não se pode deixar de reconhecer
que o comerciante, industrial ou prestador de serviço, deva ter experimentado
perda presumível pela oferta do produto a um preço maior do que praticaria se
não estivesse carregado da contribuição indevida.
Um mínimo de teoria econômica nos mostra a
elasticidade da procura que, em regra, é tanto maior quanto menor for o preço
e vice-versa.
181
Não nos parece possível que a cobrança
inconstitucional do tributo possa manter incólume a administração.
Ainda em sede tributária, verificamos a frequente
tentativa de enriquecimento da administração, quando nos impostos de
natureza não cumulativa, por qualquer motivo, o contribuinte vem a lançar
tardiamente o crédito, tal como se dá quando é vencedor em uma demanda
que anula ou reduz a exigência do fisco.
Nesse caso, a não incidência de correção monetária
importará em franco enriquecimento sem causa.
Nesse sentido, já se pronunciou o Superior Tribunal
de Justiça Brasileiro: “Incide correção monetária sobre o crédito
tributário tardiamente aproveitado. Tal reajuste constitui mera
atualização de valores, no escopo de impedir o enriquecimento ilícito do
Estado em detrimento do contribuinte”.101
De outra feita, também podemos dizer que a Corte
Superior de Justiça flagrou a administração pública federal em tentativa
manifesta de enriquecimento ilícito.
Cuidava-se da hipótese de empréstimo compulsório
sob o consumo de combustíveis, instituído em determinada época.
Após ter arrecadado, pretendia a União condicionar
a devolução à prova do efetivo consumo pelo usuário o que, na prática,
impediria a restituição, considerando-se que são muito poucos os que obtêm
notas de venda e mantêm a guarda por longo tempo.
101 STJ, AGA-101090/RS, DJ 17.02.97.
182
Para frear tal tentativa, a Corte construiu o
entendimento, segundo o qual: “É descabida a exigência da prova de consumo
de combustível, já que a devolução deve pautar-se pela média nacional de
consumos”.102
Em outra situação, esteve-se diante de servidor
desviado da sua função, para exercer outra de maior responsabilidade, sem
que a administração desejasse pagar o salário equivalente.
De volta, o Superior Tribunal de Justiça encontrou a
figura do enriquecimento sem causa. Tal se deu em julgamento que porta a
seguinte ementa: “A remuneração recebida pelo servidor é a
contraprestação pelos serviços prestados; não se pode desconsiderar o
desvio do mesmo para uma função técnica, distinta da qual foi
originalmente investido, e que exige certas atribuições e conhecimentos,
devendo ser equilibrado com o pagamento das diferenças salariais, sob
pena de locupletamento indevido do estado”.103
Com esses arestos, desejamos tão somente
evidenciar o múltiplo de situações em que a administração pública tende a
enriquecer ilicitamente, desprestigiando-se em termos de credibilidade
perante a própria sociedade.
É por isso mesmo que o enfoque dado ao
enriquecimento ilícito, revelado na resistência à composição das perdas
experimentadas pelo cidadão, revela-se como desvio de conduta de tal sorte a
merecer sua inserção na monografia que ora é apresentada, já que tal desvio é,
em última análise, uma conduta traduzida, também, no gênero da
102 RESP 69211/RN, DJ 11.12.95 103 STJ, RESP-11560/SP, DJ 12/04/93
183
arbitrariedade, com o qual tivemos oportunidade de inaugurar esse
despretensioso trabalho.
Não tivemos, nem temos, a preocupação de
estabelecer um rol exaustivo de desvios, mas tão somente o de conferir uma
análise sistemática e uniformizadora da chamada patologia comportamental
administrativa, para o que lançamos mão das figuras que nos pareceram mais
significativas do ponto de vista do enriquecimento de uma teoria geral.
A partir daqui, pensamos que é hora de extrair as
conclusões mais gerais em relação à proposta de alinhamento, esboçada no
pórtico dessa dissertação.
Vamos pois, como convém a um trabalho com essa
meta, delinear, em conclusões, a síntese das raízes fincadas ao longo da
exposição, que no seu essencial, para gaudio dos examinadores, aqui se
encerra.
184
CONCLUSÕES
A dissertação propõe-se ao estudo dos desvios de
conduta da administração pública, considerada a pauta de ação dos entes
governamentais, que embora não possa ser classificada como ilegalidade
“stricto sensu”, configura-se, inequivocamente, como afrontosa ao
ordenamento jurídico, desenvolvendo as seguintes linhas:
1) Considerou-se, inicialmente, a arbitrariedade,
como forma genérica de toda ação administrativa não lastreada em uma causa
racional e eficiente de sua adoção;
2) Assentou-se que o antídoto à discricionariedade
está na busca da razoabilidade, cuja marca essencial está em se encontrar o
nível de expectativas da sociedade em um dado momento, segundo sua tábua
de valores jurídicos próprios;
3) Estabeleceu-se a discriminação, como algo
essencial à normativização jurídica, importando, portanto, tão somente
distinguir o caráter racional ou ilógico do “discrimen”;
4) Verificou-se que, na discricionariedade,
encontrava-se campo fértil ao desenvolvimento da arbitrariedade mal
disfarçada, daí a necessidade imperiosa de se rever o estudo da categoria;
5) Com o propósito antecedente, descartou-se na
conduta discricionária, qualquer possibilidade de liberdade, já que a
administração está sempre incumbida de um processo de identificação dos
valores jurídicos e não, de escolha;
185
6) Evidenciou-se a irrelevância da vontade como
elemento psicológico, a dar lugar ao interesse público, como verdadeiro
móvel da conduta administrativa;
7) Estabeleceu-se a crítica às falsas
discricionariedades, a exemplo da chamada discricionariedade técnica;
8) Procurou-se demonstrar a existência de conceitos
indeterminados que, em nada, se confundem com conduta discricionária e
nem são suscetíveis de projetá-la;
9) Estabeleceu-se a clara distinção entre a diagnose e
a prognose administrativa, extraindo-se, a partir daí, suas conseqüências;
10) Visitou-se a jurisprudência brasileira em relação
aos temas retro-enfocados;
11) Reabriu-se a discussão em torno do desvio de
finalidade, estabelecendo suas raízes históricas e sua construção no âmbito da
França;
12) Discutiu-se a chamada finalidade pública
genérica, distinguindo-se da específica, para assentar-se a ocorrência de
desvio ante o câmbio de finalidades, ainda que do mesmo gênero;
13) Descartou-se o elemento intencional, como
móvel necessário do desvio de finalidade, para situá-la, objetivamente, como
mera traição ideológica da lei;
14) Examinou-se a questão da moralidade
administrativa para, afinal, concluir-se quanto à sua imprecisão conceitual e
instrumental;
186
15) Foram contempladas as diversas facetas do
desvio de finalidade, quer quando praticados em decorrência de ação, ou de
omissão, pelo Executivo, Legislativo, Judiciário e, inclusive, o Ministério
Público;
16) Apreciaram-se os remédios usuais contra o
desvio de finalidade pública e a incursão do Poder Judiciário, como forma
corretora do desvio;
17) Estudou-se o desvio de procedimento para
mostrar suas características apartadas do desvio de finalidade;
18) Evidenciou-se, no desvio de procedimento, uma
inadequação de meios, apesar da legitimidade dos fins;
19) Positivou-se a importância do procedimento para
o administrado, demonstrando-se que, até em certas circunstâncias, o valor
meio superava o valor fim;
20) Discutiram-se várias formas de desvio de
procedimento nos tribunais franceses e brasileiros;
21) Evidenciou-se a falta de sistematização
doutrinária sobre a matéria;
22) Cuidou-se de estudar o desvio de procedimento
à luz da teoria da conservação dos atos administrativos, para concluir-se da
impossibilidade de convalidação do ato eivado de tal desvio, salvo, quando o
procedimento tenha caráter meramente instrumental;
23) Abordou-se o silêncio administrativo, como
forma específica de inércia da administração;
187
24) Foram classificadas as diversas formas de
silêncio, desde as tradicionais, como silêncio negativo ou positivo, até aquelas
resultantes de proposta da dissertação, como silêncio insubstituível ou o
silêncio preclusivo;
25) Considerou-se o empréstimo de eficácia ao
silêncio, como forma de defesa do administrado;
26) Estudou-se o “amparo por mora” no direito
argentino, como elemento corretivo do silêncio prolongado da administração,
considerando-se, ainda, a inexistência de institutos similares nos demais
ordenamentos jurídicos;
27) Trabalhou-se com as chamadas prerrogativas
indevidas da administração, consideradas aquelas que lhes são conferidas por
lei, mas que exorbitam a moldura constitucional;
28) Além das prerrogativas indevidas, tomou-se em
conta aquelas que, pertinentemente, são conferidas, mas, inadequadamente,
manejadas;
29) Demonstrou-se que essas prerrogativas, mal
equacionadas, resultariam em arbítrio, com eventual desdobramento,
inclusive, em enriquecimento ilícito, cujo estudo foi objeto em capítulo
apartado;
30) Ao último capítulo, reservou-se a questão do
enriquecimento ilícito visualizado como desvio de conduta da administração,
provocando um desequilíbrio na relação com os particulares;
188
31) O enriquecimento ilícito foi examinado nas suas
bases originais do direito privado e considerado no seu interrelacionamento
com a gestão de negócios;
32) Discutiu-se, depois, concluindo-se
afirmativamente, pela possibilidade do ingresso da figura do enriquecimento ,
no âmbito do direito administrativo, com suas peculiaridades próprias;
33) A demonstração casuística revelou diversas
hipóteses consagradas, inclusive, na jurisprudência brasileira de
enriquecimento ilícito, no plano tributário, nas relações com servidores e no
âmbito dos contratos.
189
BIBLIOGRAFIA
AGIRREAZKUENAGA, Iñaki. La coaccion administrativa directa. 1ª edição, Editorial Civitas, 1990. ALFONSO, Luciano Parejo, BLANCO, A. Jiménez e ÀLVAREZ, L. Ortega. Manual de Derecho Administrativo. 3ª edição, editora Ariel, 1994. AMARANTE, Aparecida I. Responsabilidade Civil por dano à honra. editora Del Rey, 1991. BAY, Horacio D. Creo. Amparo por mora de la Administración pública. 2ª edição, editora Astrea, 1995. BLANCO, Sabino Álvarez-Gendín Y. Tratado general de derecho administrativo. tomo III e IV, editora Bosch, 1973. CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. 10ª edição, vol. I, Editora Livraria Almedina, 1980. CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. 2ª edição, Editora Forense, 1989. CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. 11ª edição, editora Atlas, 1994. CASSAGNE, Juan Carlos. La intervencion administrativa. editora Abeledo Perrot, 1992. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1989. CHINCHILLA, Carmen, Lozano, Blanca e Saz, Silvia Del, Nuevas. Perspectivas del Derecho Administrativo. 1ª edição, Editorial Civitas, 1992 COMADIRA, Julio R. Derecho Administrativo. editora Abeledo-Perrot, 1996. COSSIO, Carlos. La Teoria Egologica del Derecho y el concepto juridico de libertad. Abeledo - Perrot, 2ª edição, 1964. CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Administrativo perante os Tribunais. 1ª edição, editora Forense, 1994. CRETELLA JÚNIOR, José. O Desvio de Poder na Administração Pública. 190
4ª edição, editora Forense, 1997. CRETELLA JÚNIOR. José, Tratado de Direito Administrativo. vol.II, editora Forense, 1966. CUDOLÀ, Vicenç Aguardo. La presuncion de certeza en el Derecho Administrativo sancionador. editora Civitas, 1994. CUESTA, Rafael Entrena, Curso de Derecho Administrativo, vol.I, tomo I, Editorial Tecnos S/A., 1992. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanefla. Direito Administrativo. 6ª edição, editora Atlas, 1996. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanelia. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. Editora Atlas, São Paulo, 1991. DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional: instituições de direito público. Editora Revista dos Tribunais, 1984. DROMI, José Roberto. Derecho Administrativo. 5ª edição, editora Ciudad Argentina, 1996. DROMI, José Roberto. Instituciones de Derecho Administrativo. 2ª reimpressão, editora Astrea, 1983. FALLA, Fernando Garrido. Tratado de Derecho Administrativo. 9ª edição, vol. I, 1985. FALLA, Fernando Garrido. Tratado de Derecho Administrativo. 7ª edição, vol. II, 1986. FELIPE, Miguel Beltrán de. Discricionalidad Administrativa y Constitución. Editorial Tecnos S/A., 1995. FERNANDEZ, Tomas Ramon. De la arbitrariedad de la administracion. 1ª edição, editora Civitas, 1994. FIORINI, Bartolomé A. Derecho Administrativo. 2ª edição, tomo I e II, Abeledo-Perrot, 1995. FOS, Jose Antonio Garcia-Trevijano. Los Actos Administrativos. 2ª edição, Editora Civitas, 1991. FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Obrigações Administrativas. Editora Genesis, 1994.
191
GARNICA, Ernesto Garcia-Trevijano. El Silencio Administrativo en el Derecho Espanhol. Editorial Civitas, 1990. GIANNINI, Massimo Severo. Diritto Amministrativo. 2ª edição, vol. I, Editora Giuffrè, 1988. GODOY, Alfonso Sabán. El marco jurídico de la corrupción. 1ª edição, Editora Civitas, 1991. GOMES, José Osvaldo. Fundamentação do acto administrativo. 2ª edição, Editora Coimbra, 1981. GONZALEZ, Ernomar Octaviano e. Sindicância e Processo Administrativo. Átila J., 8ª ed., São Paulo: LEUD, 1995. GUILLIEN, Raymond e Vincent, Jean. Termes Juridiques. 10ª edição, Editora Dalloz, 1995. JANIN, Patrick. Cours de Droit Administratif. Editora Pressses universitaires de Lyon, 1994. LACHAUME, Jean-François. Themis les grandes decisions de la jurisprudence. editora PUF, 1987. LAUBADÈRE, André de. Manual de Derecho Administrativo. editora Temis, 1984. LAUBADÈRE, André de, VENEZIA, Jean-Claude, e GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. 4ª edição, Tomo III, 1990. LAUBADÈRE, André de, VENEZIA, Jean-Claude, e GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. 9ª edição, Tomo II, 1992. LAUBADÈRE, André de, VENEZIA, Jean-Claude, e GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. 12ª edição, Tomo I, 1992. LEVADA, Cláudio Antônio Soares. Liquidação de Danos Morais. Editora Copola, 1995. LINARES, Juan Francisco. Caso administrativo no previsto. Editora Astrea, 1976. LINARES, Juan Francisco. Poder Discrecional Administrativo. Abeledo - Perrot, 1958.
192
LINARES, Juan Francisco. Razoabilidad de las leyes. 2ª edição, editora Astrea, 1989. LONG, M., et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative. joa edição, 1993. MASUCCI, Alfonso. La legge tedesca sul processo amministrativo. Editora Giuffrè, 1991. MAYER, OTTO. Derecho Administrativo Alemán. 2ª edição, tomo I, II, III e IV, editora Depalma, 1982. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 18ª edição, Editora Malheiros, 1993. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de lnjunção, "Habeas Data". Editora Malheiros, 1995. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 6ª edição, editora Malheiros, 1995. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. editora Malheiros, 1992. MENUDO, Francisco Lopez. Via de hecho administrativa y justicia civil. 1ª edição, editorial Civitas, 1988. MODERNE, Franck. Les quasi-contrats administratifs. Editora Dalloz, 1995. MONIN, Marcelo. Arrênts fondamentaux du droit administratif. Editora Ellipses, 1995. MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Cours de Droit Administratif. 4ª edição, Editora Montchrestien, 1995. NEDJATI, Zaim M. Administrative Law. Nicosia - Cyprus, 1974. NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Manual da Monografia Jurídica. Editora Saraiva, 1997. OLIVER, Jose Maria Boquera. Estudios sobre el acto administrativo. 7ª Edição, editorial Civitas, 1993. OTERO, Paulo. Conceito e fundamento da hierarquia administrativa. Editora Coimbra, 1992.
193
PALASI, Jose Luiz Villar e Ezcurra, Jose Luis Villar. Principios de Derecho Administrativo. 3ª edição, tomo I, 1992. PAZZAGLINI FILHO, Marino, Rosa, Márcio Fernando Elias e Fazzio Júnior, Waldo. Improbidade Administrativa. São Paulo, Edito’ra Atlas, 1996. PÉREZ, Jésus González. Derecho Procesal administrativo hispanoamericano. Editorial Temis S/A., 1985. PÉREZ, Jésus González. El princípio general de la buena fe en el Derecho Administrativo. 1ª edição, Editorial Civitas, 1983. PHILIPPE, Xavier. Droit Administratif Général. editora Librairie de L’Université e Presses Universitaires D’Aix-Marseille, 1993. PIGNATELLI, Martínez-Carrasco. Naturaleza jurídica de las leyes ad hoc. Editorial Civitas, 1995. PONTIER, Jean-Marie. Les services publics. Editora Hachette, 1996. PUIG, Manuel Rebollo. El enriquecimento injusto de la administracion publica. Marcial Pons Edições Jurídicas S/A, 1995. QUADROS, Fausto de. Responsabilidade civil extracontratual da administração pública. Editora Livraria Almedina-Coimbra, 1995. RÉGNIER, João Roberto Santos. Discricionariedade Administrativa. Editora Malheiros, 1997. REIS, Clayton. Dano Moral. 2ª edição, Editora Forense, 1992. Revista de Derecho Administrativo, editora Depalma, 1993. Revista de Derecho Público, Fundação da Cultura Universitária, n.7, 1995. Revista de Direito Administrativo, vols.59, 160. Revista Trimestral de Direito Público,n.1, 2, 3 e 4, Editora Malheiros, 1993. RICCI, Jean-Claude. Droit Administratif. Editora Hachette, 1996. RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Editora Livraria Almedina, 1981. RIVERO, Jean. Droit Administratif. 15ª edição, Editora Dalloz, 1994.
194
ROJO, Margarita Beladiez. Validez y eficacia de los actos administrativos. Editora Marcial Pons, 1994. SILVA, José Carios Sousa. Abuso de Poder no Direito Administrativo. Editora Nova Alvorada, 1997. SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira Da. Em busca do acto administrativo perdido. Editora Almedida, 1996. SIREY, Recueil. Précis élémentaire de droit administratif. Paris: 1938. SOTO, Jean. Droit Administratif. 2ª edição, Editora Montchrestien, 1981. SOUZA, António Francisco de. Conceitos lndeterminados no Direito Administrativo. Editora Livraria Almedina, 1994. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. Editora Malheiros, 1993. TASSONE, Antonio Romano. Contributo sul tema dell’irregolarità degli atti amministrativi. editora G.Giappichelli, 1993. TUCCI, Rogério Lauria, TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional. editora Revista dos Tribunais, 1993. VEDEL, Georges. Derecho Administrativo. 6ª edição, Biblioteca Jurídica Aguilar, 1980. VEDEL, Geoges e Pierre Deivolvé. Droit Administratif. Tome I e II, editora Puf, 1992. VERBARI, Giovanni Battista. Principi di diritto processuale amministrativo. Editora Giuffrè, 1995. ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2ª edição, 2ª tiragem, Editora Malheiros, 1996.
195