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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES, DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ Diogo de Hollanda Cavalcanti Rio de Janeiro 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES,

DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ

Diogo de Hollanda Cavalcanti

Rio de Janeiro

2012

DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES,

DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ

Por

Diogo de Hollanda Cavalcanti

 

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Orientadora: Professora Doutora Elena C. Palmero González

Rio de Janeiro

Janeiro de 2012

 

A Bella Jozef

(1926-2010)

Agradecimentos:

A minha orientadora, Elena Palmero González, pela enérgica parceria e a presença

inarredável.

Às professoras e professores que aceitaram, gentilmente, fazer parte da banca: Eurídice

Figueiredo (UFF) e Silvia Cárcamo (UFRJ), como titulares; Arnaldo Neto (UFF) e Miguel

Ángel Zamorano (UFRJ), como suplentes.

Aos demais professores – além de Elena e Silvia – que me deram aula no mestrado: Bella

Jozef (in memorian), Cláudia Luna, Consuelo Alfaro, Ellen Spielmann, Marco Lucchesi,

Maria Lizete dos Santos e Vera Lins.

Às professoras Ângela Correa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas, e Sonia Cristina Reis, chefe do Departamento de Letras Neolatinas.

À secretária do Departamento, Maria Denise P. P. Genovese.

Aos amigos, professores e colegas que me ajudaram na obtenção de livros e outras fontes de

pesquisa: Carlos Alberto Della Paschoa (Instituto Cervantes do Rio de Janeiro), Daniel

Rittner, Elena Palmero, Fátima Belchior, Flavia Lago, Guarani Cavalcanti, Gustavo Abumrad,

Juliana Rangel, Laura Janina Hosiasson, María Rosa Lojo, Rafael Gutiérrez Giraldo e Silvia

Cárcamo.

A meus interlocutores e incentivadores pessoais: André Garcia, Cátia Martins, Diana de

Hollanda, Miguel Conde, Pedro Rocha, Pura Martínez, Sylvia Moretzsohn e Yipsy Ramírez.

A meus pais: Ana Maria de Hollanda Cavalcanti e Pedro Cavalcanti.

A Débora Guterman, pelo amor indispensável em todos os momentos.

RESUMO

CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória em Los informantes, de Juan Gabriel Vásquez. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2012. Dissertação de mestrado em Literaturas Hispânicas.

Esta dissertação tem como objetivo analisar o papel dos sujeitos deslocados na reconstrução memorialística feita pelo romance Los informantes (2004), do colombiano radicado na Espanha Juan Gabriel Vásquez. Inspirado em um episódio pouco conhecido da história latino-americana – a criação de listas negras e campos de concentração para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial –, Los informantes é narrado por um jornalista que, para compor a história do livro, se vale de um emaranhado de testemunhos que têm como característica comum a condição de deslocamento em que vivem seus emissores: imigrantes estrangeiros, migrantes domésticos e indivíduos que, mesmo indiretamente, experimentam alguma forma de diáspora. Considerando essa particularidade, o trabalho propõe mostrar como a condição deslocada influencia a memória dos sujeitos textuais do romance e contribui, de maneira determinante, para a reconstrução memorial empreendida pelo livro. Como referencial teórico, recorro aos estudos sobre deslocamento e diáspora de James Clifford (1999), Arjun Appadurai (2001), Stuart Hall (2003) e Abril Trigo (2003); os textos sobre memória de Paul Ricoeur (2007), Jeanne Marie Gagnebin (2006), Abril Trigo (2003) e Beatriz Sarlo (2005); e os trabalhos sobre testemunho de Mabel Moraña (1995) e Márcio Seligmann-Silva (2003).

Palavras-chave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispano-americana; literaturas em deslocamento; deslocamento; memória.

RESUMEN

CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória em Los informantes, de Juan Gabriel Vásquez. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2012. Tesis de maestría en Literaturas Hispánicas.

Esta disertación tiene como objetivo analizar el rol de los sujetos desplazados en la reconstrucción memorialística llevada a cabo por la novela Los informantes (2004), del colombiano radicado en España Juan Gabriel Vásquez. Inspirado en un episodio poco conocido de la historia latinoamericana – la creación de listas negras y campos de concentración para inmigrantes de los países del Eje durante la Segunda Guerra Mundial –, Los informantes está narrado por un periodista que, para componer la historia del libro, echa mano de un entramado de testimonios que tienen por característica común la condición de desplazamiento en que viven sus emisores: inmigrantes extranjeros, migrantes domésticos o individuos que, aunque indirectamente, experimentan alguna forma de diáspora. Considerando esta particularidad, este trabajo propone señalar como la condición desplazada influye en la memoria de los sujetos textuales de la novela y contribuye, de modo determinante, a la reconstrucción memorial desarrollada por el libro. Como referencial teórico, utilizo estudios sobre desplazamiento y diáspora de James Clifford (1999), Arjun Appadurai (2001), Stuart Hall (2003) y Abril Trigo (2003); textos sobre memoria de Paul Ricoeur (2007), Jeanne Marie Gagnebin (2006), Abril Trigo (2003) y Beatriz Sarlo (2005); además de trabajos sobre testimonio de Mabel Moraña (1995) y Márcio Seligmann-Silva (2003).

Palabras-clave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispanoamericana; literaturas en desplazamiento; desplazamiento; memoria.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 8 I – LITERATURAS EM DESLOCAMENTO ................................................................. 18 1.1 – Deslocamentos na literatura hispano-americana: coordenadas históricas ................ 18 1.2 – O deslocamento na literatura hispano-americana contemporânea ............................ 30 1.3 – Dimensões do deslocamento ..................................................................................... 40 II – MEMÓRIAS DESLOCADAS ................................................................................... 49 2.1 – Desconstruindo a ‘história oficial’: as memórias em deslocamento ........................ 49 2.2 – Entre a lembrança e o esquecimento ......................................................................... 57 2.3 – A memória testemunhal ............................................................................................. 64 III – DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES ............................ 70 3.1 – O deslocamento em Los informantes ........................................................................ 70 3.2 – A memória em Los informantes ................................................................................ 77 3.3 – As testemunhas e o jornalista ............................................................................ 85 CONCLUSÕES ................................................................................................................. 90 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 93

  

8

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende contribuir para um esforço de refundação da historiografia

literária latino-americana. Da defesa da heterogeneidade feita pelo peruano Antonio Cornejo

Polar (1994) à proposta das áreas culturais transnacionais da chilena Ana Pizarro (2004) –

sem esquecer as fundamentais reuniões de Caracas e Campinas, em 1982 e 1983, com a

participação do brasileiro Antonio Candido e do uruguaio Ángel Rama, entre outros

intelectuais –, a discussão de novos parâmetros para historiar a literatura tem ocupado, nos

últimos trinta anos, lugar de destaque nos debates acadêmicos da região. Confrontando-se à

história de viés positivista que listava autores, países e gerações numa perspectiva evolutiva e

etnocêntrica, um trabalho de “reconsideração do cânon e reelaboração do corpus” (PIZARRO,

2004, p.73) passou a incluir no universo historiográfico diversos elementos anteriormente

alijados, como as expressões culturais indígenas, as tradições orais, a música popular, a

iconografia e – o que nos interessa particularmente nesta dissertação – a literatura hispano-

americana produzida fora dos limites geográficos da América Latina.

Estabelecidos principalmente nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, escritores

de várias partes da América Latina, que emigraram por razões diversas ao longo das últimas

décadas, têm produzido uma literatura que, ao mesmo tempo em que dialoga com as tradições

de língua espanhola, reflete as particularidades de um dos fenômenos mais marcantes da

contemporaneidade: a condição de deslocamento em que vive boa parte da população

mundial. Embora tão antigos quanto a própria humanidade, os movimentos migratórios

assumiram, depois das grandes guerras e da globalização, proporções inéditas na história e,

segundo o antropólogo Arjun Appadurai (2001, p.6), constituem uma das perspectivas

fundamentais para entender a subjetividade moderna.

  

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Isso ressalta ainda mais a necessidade de investigar a obra de escritores

extraterritoriais1, numa aproximação que busque identificar, entre outros aspectos, como a

mobilidade cultural influencia a identidade da escrita desses escritores, como o deslocamento

poderia definir uma poética escritural e como essas escritas se articulam no sistema literário

hispano-americano.

Esta pesquisa começou a ser gestada no segundo semestre de 2010, durante as aulas da

disciplina “Poéticas do deslocamento nas letras contemporâneas de língua espanhola”,

ministrada pela professora Elena Palmero González dentro do Programa de Pós-Graduação

em Letras Neolatinas da UFRJ. Ao analisar textos de escritores que, longe de sua terra natal,

conciliavam universos culturais diferentes, muitas vezes manejando duas línguas e em

constante negociação identitária, norteávamos nossas leituras por várias perguntas, dentre as

quais uma me capturou de maneira particular: como o deslocamento e a memória se articulam

nos escritos desses autores? Ou seja: de que forma a distância do país de origem e a imersão

em outra cultura influenciam a reconstrução memorial que aparece, não com pouca

frequência, na matéria ficcional desses textos?

A questão me remeteu à obra do colombiano Juan Gabriel Vásquez – frequentemente

relacionada pela critica com a chamada literatura transatlântica (CORRAL, 2004) por ser

produzida no âmbito geográfico e editorial europeu – e, em particular, ao romance Los

informantes (2004), que havia lido e resenhado poucos meses antes para o jornal O Globo2.

Com 38 anos e importante reconhecimento crítico3, Vásquez só publicou o livro oito anos

 1  Uso  o  conceito  de  George  Steiner  (1990)  para  referir‐me  não  só  à  condição  deslocada  do  indivíduo, mas também ao paradigma estético criado em condições de deslocamento cultural.   

2 HOLLANDA, Diogo de. “Romance do colombiano Gabriel Vásquez mostra vícios do continente”. Rio de Janeiro: O Globo, suplemento Prosa & Verso, 22/05/2010.    

3 Além do elogio de escritores consagrados, como Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa,  recebeu prêmios na Espanha  (Qwerty,  da  Barcelona  TV)  e  na  Colômbia  (Fundación  Libros &  Letras),  e  teve  resenhas  amplas  e favoráveis em alguns dos maiores jornais do mundo, como The New York Times e The Guardian.   

  

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depois de se mudar da Colômbia. Longe de me parecer fortuita, essa circunstância se

apresenta a mim como determinante para o olhar contido na obra. Inspirado em um episódio

pouco conhecido da história latino-americana – a criação de listas negras e campos de

concentração para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial –, Los

informantes é narrado em primeira pessoa predominantemente pelo jornalista Gabriel Santoro,

que conta de maneira metaficcional e autorreflexiva seus dois esforços consecutivos de

reconstrução memorial do período: o primeiro, a biografia da judia alemã Sara Guterman,

amiga do pai que chega à Colômbia em 1938 escapando do nazismo com a família; e o

segundo, desempenhado ao longo do romance, uma espécie de ampliação e revisão do relato

anterior, na qual o pai de Gabriel, que havia escondido um segredo por toda a vida, passa a ter

participação ativa nos eventos narrados.

Além de Sara, todos os demais “informantes” da narrativa vivem alguma forma de

deslocamento: a fisioterapeuta Angelina, que saiu de Medellín para Bogotá e diz que “se

mudar é desagradável” (VÁSQUEZ, 2004, p.233); o descendente de alemães Enrique

Deresser, que, declarando ódio a Bogotá, faz o caminho contrário e leva no sangue a marca do

exílio paterno; e, de certo modo, o próprio pai do narrador, amigo íntimo de imigrantes que,

culpado por haver cometido uma traição, tenta sepultar o passado, mas no fim empreende uma

simbólica viagem de regresso, sem encontrar o que esperava.

Partindo dessa constatação, ampliei as anotações que havia feito para o trabalho final

da disciplina e estruturei o projeto de pesquisa que agora, pouco mais de um ano depois,

traduz-se nesta dissertação de mestrado. O problema central da investigação se resume nas

seguintes perguntas. Como a condição deslocada influencia a memória dos sujeitos textuais de

Los informantes? E de que forma, ativando recordações em uns e estimulando o esquecimento

em outros, a experiência do deslocamento contribui, de maneira geral, para a reconstrução

memorial empreendida pelo romance?

  

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A hipótese que tentarei demonstrar é a de que os deslocamentos, por estabelecerem

não apenas uma demarcação espacial – um “aqui” e um “lá”–, mas também cronológica na

vida dos sujeitos – um “antes” e um “depois”–, produzem uma disposição particular à

reconstrução memorial, derivada primordialmente dos anseios de autorreflexão e busca

identitária (PALMERO 2010a). Quando o deslocamento está associado ao trauma e à

violência, como é o caso tematizado no livro (o exílio forçado de Sara, o suicídio do pai de

Enrique ou as diversas perdas de Angelina), a reação dos sujeitos oscila entre lembrar e

esquecer.

Definido o objeto, os problemas e as principais hipóteses da pesquisa, os objetivos

gerais do trabalho articulam-se em torno da necessidade de: desenvolver fontes teóricas e

criticas que contribuam para estudos mais abrangentes das literaturas produzidas em

condições de deslocamento; aprofundar os estudos contemporâneos sobre as relações

memória/deslocamento; e contribuir para estudos de historiografia literária no âmbito

hispano-americano, especialmente para o projeto de pesquisa “Poéticas do deslocamento nas

letras hispânicas contemporâneas: mobilidades culturais e historiografia literária”4, ao qual a

dissertação está vinculada.

Já os objetivos específicos consistem em estudar o universo das subjetividades em

Los informantes, nos níveis do narrador, do personagem e da construção ficcional da instância

autoral; analisar os processos de construção da memória na narrativa, considerando a

influência dos deslocamentos, o papel das testemunhas e o jogo de forças entre lembranças e

esquecimento; e caracterizar o sujeito deslocado como fonte de reconstrução memorial no

romance.

 4 Coordenado pela professora Elena Palmero González e inscrito no Programa de Pós‐Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. 

  

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Para o desenvolvimento da pesquisa, conjuguei procedimentos de análise textual e

hermenêutica literária com procedimentos provenientes da critica cultural e da historiografia

literária.

Embora não tenha encontrado no Brasil trabalhos acadêmicos específicos sobre Los

informantes nem sobre nenhum outro livro de Juan Gabriel Vásquez5 – apesar de fartas

resenhas jornalísticas sobre o romance –, as questões teóricas que abordo na dissertação têm

motivado interesse crescente no meio universitário. A memória em situações de trauma, por

exemplo, foi um dos eixos do projeto temático “Escritas da Violência”, que reuniu, de 2006 a

2010, 17 pesquisadores de nove universidades brasileiras e estrangeiras, sob a coordenação de

Márcio Seligmann-Silva, da Universidade de Campinas (Unicamp). Problemas ligados às

mobilidades culturais e às poéticas da memória, por sua vez, tiveram destaque nos últimos

anos no grupo de trabalho (GT) “Relações literárias interamericanas” da Associação Nacional

de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguísticas (Anpoll). Com a participação de quase

30 pesquisadores ligados às literaturas das quatro principais línguas das Américas (inglês,

espanhol, francês e português), o GT tem como princípio básico romper com os conceitos

mais rígidos de literaturas nacionais e estabelecer um necessário comparativismo entre os

estudos literários de todo o continente. Esta visão tem sido disseminada em eventos,

orientações de trabalhos de pós-graduação e nas diversas publicações produzidas até agora

pelo grupo, como o livro Conceitos de literatura e cultura (2005, 1ª edição), organizado por

Eurídice Figueiredo; o Dicionário de figuras e mitos literários das Américas (2007) e o

Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010), organizados por Zilá

Bernd.

 5 Em nível internacional, identifiquei uma pesquisa de doutorado sobre a influência do cânon na literatura de Vásquez. O trabalho, em fase de desenvolvimento, é conduzido por Jasper Vervaeke, da Universidade de Antuérpia (Bélgica).  

  

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Entretanto, ainda há um vasto campo a ser explorado. A consulta ao banco de teses e

dissertações de sete universidades brasileiras (UFRJ, UFF, USP, Unicamp, UFMG, UFRGS e

PUC-Rio) mostra um número ainda acanhado de trabalhos que abordam os deslocamentos

contemporâneos em suas singularidades, ou seja, ressaltando o enfraquecimento de conceitos

como Estado-nação e identidade nacional, matizando a questão do trauma (por mais que ele

continue a existir) e focalizando, acima de tudo, as especificidades das escritas nascidas do

intenso encontro de culturas, línguas e lugares. Aproximações com esse prisma – atentas às

hibridações, mais do que às rupturas – parecem mais frequentes nos departamentos de

literaturas francófonas ou de língua inglesa, nutrindo-se muitas vezes de um sugestivo corpus

de autores de países pós-coloniais. Nos estudos literários hispano-americanos, continua a

haver uma clara predominância de trabalhos sobre escritores que produziram no exílio

político, o que suscita, inevitavelmente, questões diferentes das que vou tratar nesta

dissertação.

Para transcender as especificidades das inúmeras formas de mobilidade que marcam a

história da literatura hispano-americana – viagens, imigrações, exílios, diásporas,

nomadismos, entre outras –, optei por um conceito abrangente de deslocamento (PALMERO,

2010a), que abarca todas essas variedades e inclui acepções que independem mesmo da

movimentação física, como a mobilidade linguística, o deslocamento discursivo (ou seja,

como lócus de enunciação) e o deslocamento como paradigma crítico e historiográfico para a

abordagem da literatura hispano-americana. Meu interesse central, contudo, está nos

deslocamentos contemporâneos – e, especialmente, nos movimentos definitivos ou mais

duradouros, como o dos escritores que, por opção própria, decidem se instalar fora de seus

países, como Juan Gabriel Vásquez.

Meu principal referencial teórico para tratar do tema do deslocamento se encontra na

antropologia e na crítica cultural contemporânea. Para dimensionar o fenômeno na atualidade

  

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e elucidar suas características, tomei como base os estudos de James Clifford (1999), Arjun

Appadurai (2001), Stuart Hall (2003) e Abril Trigo (2003). Complementarmente, para referir-

me ao deslocamento como postura discursiva, recorro aos ensaios de Ricardo Piglia (2001) e

Julia Kristeva (1977); e, ao descrever o intenso e multifacetado histórico de mobilidade dos

escritores hispano-americanos, utilizo o trabalho de críticos como Ángel Rama (1984) e Jorge

Volpi (2009).

No tocante ao tema da memória, as articulações com o deslocamento terão respaldo,

novamente, em Abril Trigo (2003); as reflexões sobre esquecimento, lembrança e perdão

tomarão como base a filosofia de Paul Ricoeur (2007), com aportes de Jeanne Marie

Gagnebin (2006), cujos ensaios dialogam com Walter Benjamin, Adorno e outros pensadores;

e, finalmente, as discussões sobre a memória testemunhal serão referenciadas em Beatriz

Sarlo (2005), Mabel Moraña (1995) e Márcio Seligmann-Silva (2003).

Embora tenha me concentrado na análise de um único romance, optei por uma

abordagem mais ampla, dedicando os dois primeiros capítulos da dissertação não apenas à

necessária fundamentação teórica, mas também à menção de outras obras literárias que, ao

longo da pesquisa, mostraram-se valiosas para a discussão. No capítulo inicial, minhas

principais preocupações foram dimensionar a importância dos deslocamentos na história da

literatura hispano-americana, evidenciando suas especificidades hoje. Começo fazendo um

retrospecto em que – do Inca Garcilaso de la Vega, no século XVII, às novas gerações de

escritores do século XXI – o deslocamento aparece como um dos elementos de maior

permanência na produção literária da América Latina. Muitas das obras mais representativas

do subcontinente, inclusive algumas das chamadas “ficções de fundação” (SOMMER, 2004),

nasceram com os autores fora de seus países, tanto por iniciativa própria como, em alguns

momentos, por imposição de governos autoritários.

  

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Examinando com mais detalhe o panorama literário dos últimos 20 anos, observo que,

independentemente de conhecermos as movimentações dos escritores, o deslocamento se

mostra com intensidade nos textos, seja como tema, fenômeno linguístico ou perspectiva

narrativa. Um dos exemplos que aponto é o de Roberto Bolaño, que, além de carregar suas

tramas de situações de mobilidade (personagens deslocados, viagens frequentes, andanças

ininterruptas), eleva ao extremo o uso literário das variações idiomáticas do espanhol,

adotando diferentes modalidades do idioma de acordo com a “nacionalidade” (e as intenções

políticas) que quer fazer prevalecer em cada obra (HOSIASSON, 2011). Concluo o capítulo

com um conjunto de reflexões teóricas em torno da própria noção de deslocamento. Entre

outros pontos, discuto as diferenças entre os deslocamentos paradigmáticos da modernidade e

os de uma contemporaneidade pós-moderna e transnacional, assinalando a permeabilidade do

sujeito deslocado de hoje nas negociações identitárias que a mobilidade cultural sempre

suscita. Improvável em outros momentos, a definição de Stuart Hall para a experiência

diaspórica – a sensação de estar dentro e fora ao mesmo tempo (2003, p.415) – é assumida

com naturalidade em um mundo em que as tecnologias de comunicações e transportes

produzem relações de fronteira entre cidades separadas por milhares de quilômetros.

O segundo capítulo, dedicado ao tema da memória, é animado por dois propósitos. O

primeiro é compreender como costuma se comportar, de maneira geral, a memória de sujeitos

em deslocamento, e como funcionam as políticas da memória no processo de construir lares

fora do lar. Citado por muitos escritores como um dos maiores ganhos da extraterritorialidade,

o olhar mais lúcido em relação à pátria distante é confirmado, em boa medida, pelo crítico

uruguaio Abril Trigo (2003) em seu estudo sobre a comunidade de uruguaios em Fitchburg,

Massachusetts (EUA). De acordo com o acadêmico, ao mudar de país, os sujeitos sofrem uma

fratura identitária que os leva a empreender, de maneira quase imperceptível, um movimento

de resgate e reciclagem de memórias culturais até então soterradas na memória histórica e no

  

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imaginário social da nação deixada. O principal efeito deste processo, ou pelo menos o mais

profícuo, é o surgimento de novas formas de olhar a comunidade nacional – formas

alternativas que, com o “esquecimento criativo” produzido pela distância, conseguem se

desvencilhar da ação homogeinizadora da memória histórica, incorporar diferenças antes

esmagadas e colocar em xeque alguns pilares do imaginário nacional.

O segundo propósito desse capítulo é estabelecer um quadro teórico que permita a

análise subsequente de outros tópicos fundamentais na trama de Los informantes,

especialmente dois: a tensão entre lembrar e esquecer que marca países com traumas não

superados, e a figura crucial da testemunha, que enseja, em sua dupla condição – ao mesmo

tempo essencial e insuficiente –, um oportuno debate sobre os limites da memória.

Qualificando as discussões sobre memória como uma tarefa sensível mas indispensável na

América Latina redemocratizada, Beatriz Sarlo (2005) propõe um exame crítico da

transformação do testemunho no recurso mais importante para a reconstrução do passado –

uma espécie de “ícone da Verdade”, como define a ensaísta argentina (idem, p.23). “Só uma

confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia estabelecer uma

ordem presidida pelo testemunhal”, afirma Sarlo (idem, p. 63).

Finalmente, no terceiro e último capítulo, realizo a análise de Los informantes,

tomando como paradigma analítico o quadro teórico apresentado nos capítulos anteriores.

Minha leitura concentra-se, principalmente, nos sujeitos textuais do romance – personagens,

narrador e autor implícito – e, como os demais capítulos, divide-se em três tópicos: o primeiro

dedicado ao deslocamento; o segundo à memória (especialmente às tensões entre lembrar e

esquecer); e o terceiro às figuras das testemunhas e do jornalista. Minha visão é que, oito anos

depois de deixar a Colômbia, Vásquez fez do deslocamento não apenas um ingrediente

fundamental da trama, mas o inequívoco lócus de enunciação de seu primeiro romance sobre

o país. Ao resgatar na década de 1940 um episódio excluído da chamada história oficial, o

  

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escritor manifestou uma clara opção pelo dever de memória, amparado no princípio, citado

por ele próprio, de que “recordar é um ato moral” (VÉLIZ, 2011). Porém, ao mesmo tempo

em que se lança com argúcia a essa tarefa, ele faz de sua própria matéria-prima – a memória –

um rico tema de reflexão. 

  

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I LITERATURAS EM DESLOCAMENTO

1.1 Deslocamentos na literatura hispano-americana: coordenadas históricas

Exílios políticos, missões diplomáticas, peregrinações culturais. Independentemente

do propósito, o deslocamento dos escritores é um dos elementos de maior permanência na

produção literária hispano-americana. Das crônicas do período colonial à literatura

contemporânea, um extenso conjunto de obras, entre as mais representativas da América

Latina, nasce com os autores fora de seus países de origem. Um inventário despretensioso, de

ambições meramente ilustrativas, poderia começar no século XVII, quando o Inca Garcilaso

de la Vega escreve um dos textos fundamentais sobre a Conquista, Los comentarios reales

(1606), 45 anos depois de mudar-se do Peru para a Espanha. Na obra, o filho de pai espanhol

e mãe indígena, que passou boa parte da vida dividido entre os dois universos culturais e

linguísticos, faz uso intenso de recordações pessoais – do ambiente familiar às ruas de Cuzco

– para compor um dos relatos mais importantes sobre a tomada do Peru pelos espanhóis.

Nos séculos XVIII e XIX, arrastados a uma vida de errância, militares e intelectuais

que lutaram pela independência produziram uma escrita em permanente movimento. Os

artigos, discursos e quase 3 mil cartas6 de Simón Bolívar brotaram quase sempre de

circunstâncias transitórias: ditados às vezes de cima do cavalo, às vezes de madrugada, na

precariedade dos acampamentos de campanha. Seu professor de juventude, o também

venezuelano Andrés Bello, foi outro que experimentou constantes deslocamentos:

responsável, entre outros escritos, por uma importante obra poética, Bello nasceu em Caracas,

viveu duas décadas em Londres e passou os últimos 36 anos da vida no Chile, onde foi

sepultado e reconhecido como cidadão nacional.

 6 Uso o número de Fabiana de Souza Fredrigo (2010, p.35): 2.815 cartas. Considerando também as extraviadas, Bolívar teria escrito mais de dez mil missivas.  

  

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Publicadas no século XIX e nas primeiras décadas do XX, várias obras consideradas

fundadoras das literaturas nacionais7 foram escritas, integral ou parcialmente, fora dos países

dos autores. Entre elas o Facundo (1845), do argentino Domingos Faustino Sarmiento,

redigido inteiramente no Chile, o poema épico Tabaré (1887), do uruguaio Juan Zorrilla de

San Martín, concluído na Argentina, e o romance antiescravista Sab (1841), da cubana

Gertrudis Gómez de Avellaneda, escrito na Espanha8.

Da mesma forma, escritores que por muito tempo foram símbolos das literaturas de

seus países, como o chileno Alberto Blest Ganas, o venezuelano Rómulo Gallegos e o cubano

José María Heredia, viveram longas temporadas fora deles – Blest como diplomata, Gallegos

e Heredia como exilados políticos. Também no exílio viveu o poeta e ensaísta José Martí,

principal artífice da independência cubana, que escreveu boa parte de sua obra – inclusive o

célebre Nuestra América – nos mais de vinte anos em que esteve fora de Cuba.

Determinados até então principalmente por questões políticas – vários desses autores

transitaram por altas esferas do poder, como Sarmiento e Gallegos, que chegaram a ser

presidentes –, os deslocamentos passaram a ter, na virada para o século XX, um outro

componente para um grupo de escritores modernistas encabeçado pelo nicaraguense Rubén

Darío. Tendo Paris como principal destino, as viagens significavam para eles um ritual de

formação estética e cultural, um aggiornamento na modernidade que tinha a capital francesa

como sede e, naquele momento, parecia longe de chegar à América Latina. Esta convicção de

distância tornou-se generalizada ao longo do século XIX, quando a consolidação da burguesia

como classe hegemônica – fortemente conectada com interesses europeus – impulsionou a

 7 Ver SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004. 

8 Outros exemplos são Amalia , do argentino José Mármol, cuja primeira edição (1851) foi publicada em Montevidéu, e Memorias de la mamá blanca (1929), da venezuelana Teresa de la Parra, escrito integralmente na Suíça. 

  

20

                                                           

importação não apenas de novos produtos, como de discursos propagando a crença de que o

futuro esperado pelos latino-americanos já era o presente da Europa (FOMBONA, 2005, p.

13). Como sintetizou Octavio Paz (1990), “lo moderno estaba afuera y teníamos que

importarlo”.

Para os escritores modernistas, mais do que capital francesa, Paris era o “centro de

uma estética”, conforme definiu Paz (1974, p.48)9. Embora tenha tido uma relação de altos e

baixos com a cidade – queixando-se várias vezes do desprezo com que os hispano-americanos

eram tratados –, Rubén Darío conta em sua autobiografia que o desejo de conhecê-la já estava

em suas primeiras ambições: “Yo soñaba con París desde niño, a punto que, cuando hacía mis

oraciones, rogaba a Diós que no me dejase morir sin conocer París.” (DARÍO, 1991, p.71).

Mas os deslocamentos de Darío e outros escritores de sua geração – entre os quais o

guatemalteco Enrique Gómez Carrillo, o franco-argentino Paul Groussac e os uruguaios José

Enrique Rodó e Horacio Quiroga – não foram estimulados apenas pelos anseios

modernizadores e pelo magnetismo de Paris. Havia também o desejo de reconhecimento fora

da América Latina e a difusão cada vez maior da literatura de viagem, consumida com avidez

na Europa durante o século XVIII (FOMBONA, 2005, p.37) e bastante conhecida dos autores

hispano-americanos10. O próprio hábito de viajar era cada vez mais disseminado e

reconhecido como fértil para a literatura. Após forte propagação, os périplos didáticos

consagrados com o nome de grand tour haviam se transformado em viagens voltadas ao

prazer, e os diários disciplinados e científicos recomendados anteriormente cederam espaço a

livros em que o relato de sensações ocupava lugar prioritário, como os de Goethe e Sterne.

 9  Jorge Schwartz (1983, p.5) usa o termo cosmópolis: “[...]  axis mundi cultural sobre o qual gravitarão as ´mini´ ou ´subcosmópolis´: Madri, Moscou, Buenos Aires, Milão, Lisboa, etc. [...]”. Segundo Schwartz, Paris gozou dessa condição da segunda metade do século XIX às primeiras décadas do XX. 

10 Em seu estudo sobre os deslocamentos dos escritores modernistas, Beatriz Colombi mostra como Gómez Carrillo cita, e chega a parodiar, o francês Pierre Loti, um dos mais célebres autores de relatos de viagem do século XIX. Ver COLOMBI, 2004, p.235‐240. 

  

21

                                                           

Com eles, a escrita passa a ser, muito mais do que decorrência, o motivo principal das

viagens11.

Nas primeiras décadas do século XX, os deslocamentos continuaram marcando desde

os primeiros poetas de vanguarda – como Vicente Huidobro, César Vallejo e Oliverio

Girondo – aos precursores da chamada nova narrativa hispano-americana, como Jorge Luis

Borges, Miguel Ángel Asturias e Alejo Carpentier. Aos 15 anos, por razões familiares,

Borges saiu de Buenos Aires rumo a Genebra e permaneceu sete anos na Europa (1914 a

1921), tendo contato com o Expressionismo alemão na Suíça e aderindo, em Madri, ao grupo

dos poetas ultraístas, movimento que ajudou a impulsionar a vanguarda argentina e foi

fundamental, segundo Irlemar Chiampi (1998, p.5), para reinserir o Barroco no cenário

literário da América Latina.

Também na Europa da Primeira Guerra Mundial (1914-1919) estava o mexicano

Alfonso Reyes, que, após o início do conflito, partiu de Paris para Madri, onde ficou mais de

uma década. Durante esse período, Reyes aprofundou o processo de revalorização da Espanha

iniciado pelos modernistas, que substituíram a imagem de “madrasta má” da época da

independência12 pela de “mãe da cultura hispânica” (FOMBONA, 2005, p. 154), estimulando

uma tradição de textos memorialísticos que continuaria dando frutos até hoje. Segundo

observou Beatriz Colombi (2004, p.169), na temporada que passou em Madri, longe de se

“espanholizar”, Reyes acentuou sua consciência mexicana e hispano-americana, tendo escrito

um de seus mais importantes ensaios: Visión de Anáuac (1519), mergulho intenso e lírico no

México pré-hispânico, publicado em 1917.

 11 Ver FOMBONA, Jacinto. La Europa necesaria: textos de viaje de la época modernista. Rosário: Beatriz Viterbo, 2005.  

12 Na lista de detratores, merecem destaque Frey Servando de Mier e Sarmiento, que ridicularizam constantemente a Espanha.  

  

22

                                                           

Apesar dos abalos provocados pela Primeira Guerra, Paris continuou a ter posição

central no panorama cultural das primeiras décadas do século XX, abrigando a maioria dos

artistas responsáveis pelas grandes inovações do período. Considerado por Octavio Paz (1974,

p.184) como o fundador da vanguarda hispano-americana, o peruano Vicente Huidobro

publicou seu primeiro livro na França, e em francês: Horizon Carré, lançado em 1917, um

ano depois de se mudar para Paris. Asturias e Carpentier, por sua vez, foram colegas na

cidade durante a década de 1920, quando trabalharam para a revista Imán, dirigida por

Carpentier, e escreveram ou concluíram seus romances de estreia: respectivamente, Leyendas

de Guatemala (1930) e Ecué-Yamba-Ó! (1933). Uma das tônicas da obra de Asturias, o

resgate dos mitos maias foi aprofundado na interlocução com o meio acadêmico parisiense –

em especial com o professor Georges Raynaud, da Escola de Altos Estudos de Paris,

responsável pela versão francesa do Popol Vuh que Asturias traduziu em 1926. Uma

coletânea reunindo os artigos do guatemalteco em seus primeiros nove anos na França (1924 a

1933) revela, aliás, um aspecto curioso: de 440 artigos que enviou ao jornal El Imparcial, da

Guatemala, quase metade (168) trata exclusivamente de assuntos relacionados a seu país13.

Durante as décadas de 1960 e 1970, os principais escritores associados ao chamado

boom da literatura latino-americana – caracterizado principalmente pelo forte aumento no

consumo de obras do subcontinente, sobretudo romances (RAMA, 1984, p.64) – viveram na

Europa e lá produziram vários dos livros que engendraram e consolidaram o fenômeno, como

La ciudad y los perros (1962), de Mario Vargas Llosa, e Rayuela (1963), de Julio Cortazar,

ambos escritos em Paris14. Embora também tenham morado em outras cidades, os autores se

 13 ASTURIAS, Miguel Ángel. París: 1924‐1933. Periodismo y creación literária. Edição crítica organizada por Amos Segala. Madri; Paris; Cidade do México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Cidade da Guatemala; San José; Santiago: ALLCA XX, 1997.  

14 Ao vencer a primeira edição do prêmio Biblioteca Breve, da editora Seix Barral, La ciudad y los perros passou a ser considerado um dos inauguradores do boom.  

  

23

                                                           

concentraram entre a capital francesa e Barcelona, esta última ganhando mais importância no

final da década de 1960, à medida que as editoras hispano-americanas foram se

enfraquecendo e as espanholas ampliaram a participação na publicação das obras (RAMA,

idem, p.51-52). No início dos anos 1970, entre os autores estabelecidos em Barcelona estavam

Mario Vargas Llosa, José Donoso e Gabriel García Márquez, que desembarcou na cidade um

ano depois de ter lançado o maior êxito editorial de toda a história da literatura hispano-

americana: Cien años de soledad (1967). Para a transformação de Barcelona na “sede do

boom”, foi decisiva a atuação de uma agente literária, Carmen Balcells, que representava a

maior parte desses escritores e chegou a oferecer um salário para Vargas Llosa transferir-se de

Londres para a capital catalã.

Alvo de diversas críticas, os deslocamentos dos anos 1960 foram entendidos por

Ángel Rama (1984, p.93) como uma nova tentativa, desta vez mais frutífera, de

profissionalização dos escritores – isto é, de viverem exclusivamente de seus livros –, objetivo

que, com maior ou menor folga, conseguiu ser atingido pela primeira vez por autores

pertencentes ao boom. Afirma Rama:

A ida de escritores latino-americanos para outras regiões do mesmo continente que mostravam maiores possibilidades de difusão por contar com editoras, revistas, grandes jornais, ou para a Europa e os Estados Unidos (censurada injustamente com estreiteza de visão) respondeu a este afã de profissionalização dos autores, cumprindo cabalmente sua vocação e atendendo simultaneamente a uma exigência interna da cultura latino-americana: dispor de escritores que edificassem uma rica literatura própria. Diante da impossibilidade de fazê-lo em suas próprias pátrias, a qual admite uma pluralidade de causas (dificuldades econômicas ou políticas, dispersão do esforço, falta de oportunidades, escassez de informação, assédio provinciano) transferiram-se para melhores praças, dentro ou fora do continente. Não outra coisa fizeram milhões de pessoas comuns da América Latina, sem que sobre elas tenha recaído sanção moral (RAMA, 1984, p.93).15  

 15  Salvo quando sinalizado, as traduções são todas minhas. 

  

24

                                                           

Em Historia personal del boom (1972), testemunho centrado principalmente em

analisar as razões literárias que impulsionaram o fenômeno, José Donoso descreve o

deslocamento como uma circunstância mais propícia para a criação. O autor destaca que a

maioria dos “romances capitais do boom” foi escrita quando os autores estavam fora de suas

nações de origem e que, “evidentemente, não se trata de mera coincidência” o fato de tantos

escritores terem se mudado para outros países (DONOSO, 1972, p.75). Narrando sua própria

experiência, Donoso conta que se sentia asfixiado no Chile, onde o meio literário era

demasiado preso a padrões estéticos do passado, a sobrevivência dependia de inúmeros

trabalhos e a obtenção de livros importados se fazia apenas com a ajuda de amigos. O escritor

diz que, somente após sair do Chile, primeiro para o México, depois para Barcelona,

conseguiu se libertar do bloqueio criativo que vinha impedindo o término de seu romance El

obsceno pájaro de la noche (1970).

Paralelamente a este deslocamento voluntário, vários autores continuaram a ir para o

exterior por discordâncias políticas, como os dissidentes cubanos do regime de Fidel Castro

(Guillermo Cabrera Infante na década de 1960, Reinaldo Arenas em 1980, entre outros) e os

inúmeros escritores argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros que saíram de seus países

após os golpes militares dos anos 1960 e 1970. Em meio ao horror instaurado pelas ditaduras

– marcadas por torturas e execuções de milhares de pessoas –, os autores do Cone Sul

partiram para o exílio levando, principalmente, o sentimento de derrota dos projetos políticos

que mantinham desde a Revolução Cubana16. Nas narrativas do período, emerge com

frequência o trabalho de luto e reflexão sobre a memória que Idelber Avelar (2003, p.27)

 16 Não por acaso, alguns críticos afirmam que os golpes daqueles anos representaram o fim do boom, uma vez que frustraram os ideais de emancipação cultural e econômica da América Latina que uniam os escritores e se 

refletiam em suas obras. Para John Beverly, o boom terminou precisamente em 11 de setembro de 1973, data do golpe de Augusto Pinochet contra o governo de Salvador Allende no Chile. Outros autores, como Donoso (1972, p. 115‐116), apontam como marco o chamado Caso Padilla, episódio de repressão ao poeta cubano Heberto Padilla que quebrou a unidade que prevalecia até então em torno da Revolução Cubana.     

  

25

                                                           

identificou como imperativo da ficção pós-ditatorial. Paloma Vidal (2004, p.35) aponta

também o estreitamento das fronteiras de ficção e testemunho como traço comum de várias

obras, entre elas En estado de memoria (1990), da argentina Tununa Mercado. Embora o

sentimento de perda prevaleça, alguns autores procuraram sinalizar as possibilidades de

criação propiciadas pelo deslocamento, como fez Cortázar no ensaio “América Latina: exilio

y literatura”, de 1978.

Na década de 1980, a questão do escritor deslocado passou a exigir novas leituras

diante das inovações no campo da historiografia literária e das diversas reflexões teóricas que

começaram a colocar em crise a ideia de nação e identidade nacional como essência17. Como

observa Claudia Ferman (1997), essa nova perspectiva evidenciou a insuficiência do termo

“exílio”, pois ele se baseia, justamente, numa suposta estabilidade dessas duas categorias. O

exilado, lembra Ferman, é aquele cuja identidade não varia nos processos de translado e que

não se mobiliza no movimento transnacional de que participa. “A categoria de ‘exílio’ dá

muito pouca conta da permanente instabilidade de nossas identidades”, resume a acadêmica.

Ao mesmo tempo, uma rejeição quase unânime aos critérios que regiam a historiografia

literária – que listava autores, países e gerações numa perspectiva evolutiva e etnocêntrica –

impulsionou um esforço de redefinição de parâmetros para historiar a literatura. Um dos

principais objetivos foi a busca de alternativas ao conceito de literaturas nacionais. Surgiram

propostas de categorias mais amplas, como a das áreas culturais transnacionais, da chilena

Ana Pizarro (2004), que além de fazer um recorte transversal, transgredindo fronteiras e

traçando novas delimitações, incorpora ao campo de estudo a literatura produzida fora da

América Latina – no caso sugerido por ela, a dos autores hispano-americanos estabelecidos

nos Estados Unidos. Outra visão inovadora e de perfil semelhante é a do espanhol Arturo

 17 Dois trabalhos clássicos foram editados originalmente em 1983: Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo, de Benedict Anderson, e Nações e nacionalismo, de Ernest Gelnner.  

  

26

                                                           

Casas (2003), que aponta a necessidade de se considerar a literatura produzida em espanhol na

Europa, na América, na África e na Ásia, na definição de um grande sistema interliterário.

Estas novas concepções – o menor apego à nacionalidade, a consciência de uma

identidade móvel, entre outras – aparecem no discurso de muitos escritores contemporâneos

quando falam sobre a condição de deslocamento em que vivem. Quatro anos antes de morrer,

o chileno radicado em Barcelona Roberto Bolaño, que também morou vários anos no México,

fez o seguinte comentário ao receber o prêmio Rómulo Gallegos, em 1999:

Para mim dá no mesmo dizerem que sou chileno, embora alguns colegas chilenos prefiram me ver como mexicano, ou dizerem que sou mexicano, embora alguns colegas mexicanos prefiram me considerar espanhol, ou, já de uma vez, desaparecido em combate, e inclusive dá no mesmo para mim se me consideram espanhol, embora alguns colegas espanhóis façam um escândalo e a partir de agora digam que sou venezuelano, nascido em Caracas ou em Bogotá, coisa que tampouco me desagrada, muito pelo contrário. O fato é que sou chileno e também sou muitas outras coisas (BOLAÑO, 1999).

Outros escritores mantêm um repertório parecido de declarações. O argentino Rodrigo

Fresán, que se mudou para Barcelona em 1999, costuma dizer que sua pátria é sua

biblioteca18. O peruano Fernando Iwasaki, há 22 anos em Sevilha, afirma: “Para mim não

existe nem a ‘literatura espanhola’ nem a ‘literatura hispano-americana’. Só literatura em

espanhol (CORRAL, 2004, p.28).” E o mexicano Jorge Volpi, que se divide entre a Cidade do

México e Madri19, escreveu o seguinte sobre os jovens autores hispano-americanos: “Embora

nenhum deles renegue abertamente sua pátria, trata-se agora de um mero referente

autobiográfico e não de uma denominação de origem” (VOLPI, 2009, p.168).

Sem as críticas sofridas por seus antecessores, um contingente numeroso de jovens

escritores continua a se estabelecer fora da América Latina, como sinalizam os eventos e

coletâneas que procuram oferecer uma amostra da literatura produzida pelas novas gerações.

 18 Clarin, Revista de nueva literatura, 07/01/2007. 

19 Segundo o site da Alfaguara, sua editora. 

  

27

                                                           

Um dos eventos mais divulgados, o festival Bogotá 39, realizado em 2007, apresentou 39

autores com menos de 39 anos considerados promissores por um júri formado por três

escritores colombianos (Héctor Abad, Piedad Bonnet e Óscar Collazos). Da lista de “jovens

talentos”, quase metade (precisamente 17) vive hoje20 fora de seus países: seis nos Estados

Unidos, dez na Europa e um no Oriente Médio. Entre os radicados na Europa, oito deles

vivem na Espanha, sendo metade em Barcelona. Da mesma forma, dos 16 autores hispano-

americanos incluídos na antologia Los mejores narradores jóvenes en español da revista

inglesa Granta (2010), oito estão radicados fora da América Latina – neste caso, igualmente

divididos entre Estados Unidos e Espanha21.

Embora o ingresso cada vez mais frequente na vida acadêmica explique parte dos

deslocamentos – principalmente dos que vão para os Estados Unidos –, o desejo de se

aproximar das grandes editoras espanholas, tal qual os antecedentes do boom, parece motivar

boa parte dos escritores. No ensaio “América Latina, holograma”, incluído na coletânea El

insomnio de Bolívar (2009), Jorge Volpi – um dos 39 escolhidos em Bogotá – comenta que,

apesar do surgimento nos últimos anos de algumas editoras independentes (principalmente na

Argentina e no México), a indústria editorial continua fortemente dominada pelos

conglomerados espanhóis, situação que, segundo ele, ocorre desde o fim da década de 1970,

quando a crise econômica na América Latina ensejou uma onda de aquisições das editoras

locais por grandes grupos da Espanha. Na definição de Volpi (2009, p.158), publicar na

Espanha transformou-se então no objetivo mais desejado pelos escritores latino-americanos, o

equivalente a ascender a uma espécie de primeira classe literária, editada em Madri ou

Barcelona, distribuída em vários países e premiada com inúmeras vantagens, entre as quais a

possibilidade de colaborar em jornais e revistas, participar de feiras e congressos e obter

 20 Em julho de 2011. 

21 Idem. 

  

28

                                                           

reconhecimento público imediato. De acordo com o romancista e ensaísta mexicano, este

desejo parece longe de se extinguir: “[...] para um latino-americano, publicar nas editoras

espanholas não significa uma invasão bárbara ou um ato de traição, mas a única forma de

escapar de sua gaiola nacional e de ser lido nos demais países da região”. (VOLPI, 2009, p.

157-158).

Instalado em Barcelona desde 1999, Juan Gabriel Vásquez afirmou certa vez que a

decisão de se mudar para a cidade – após quase três anos em Paris e um no interior da Bélgica

– obedeceu em alguma medida a uma “noção mais prática da vida”, que o fez levar em

consideração a qualidade das editoras e da crítica literária sobre literatura latino-americana.22

Depois de publicar seus dois primeiros livros na Colômbia – os romances Persona (1997) e

Alina suplicante (1999) –, sua trajetória ganhou notoriedade, de fato, quando começou a ser

editado pela Alfaguara, do grupo espanhol Santillana, com o lançamento do volume de contos

Los amantes de todos los santos, em 2001. Nos anos seguintes, publicou pela editora um livro

de ensaios (El arte de la distorción, 2009) e três romances, todos com importante

reconhecimento crítico: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El

ruido de las cosas al caer (2011), este último vencedor do prêmio Alfaguara de Romance,

que, além de uma relevante soma em dinheiro (175 mil dólares), garante forte divulgação para

o livro, com distribuição simultânea em 19 países e uma extensa agenda de lançamentos que

costuma durar um ano e abranger eventos nos Estados Unidos, América Latina e Espanha.

Mas seria redutor e equivocado atribuir o deslocamento de Vásquez e outros

escritores ao simples desejo de emancipação profissional – desejo, aliás, presente desde os

poetas modernistas, como mostra a crônica “Libreros y editores” em que Rubén Darío

menciona, na virada para o século XX, “el sueño rosado de um escritor hispanoamericano

tener un editor en España” (apud FOMBONA, 2005, p.199). Ao lado deste objetivo, há outros

 22 “Entrevista a Juan Gabriel Vásquez”, in CiberLetras – Revista de crítica literaria y de cultura, n.23, jul 2010.  

  

29

                                                           

anseios menos conjunturais, mais perenes no fazer literário, como a busca de experiência e a

possibilidade, comum a todo relato de viagem, de intervir em um espaço textual já conhecido

– ou seja, reler e reescrever os “textos” que, geração após geração, se acumulam sobre esta ou

aquela cidade23. Chama atenção que, ao falar sobre sua ida a Paris, Vásquez mencione seus

antecessores do modernismo, do boom e da lost generation de americanos e europeus que se

mudaram para a cidade na década de 1920:

[...] Em parte, devo confessar com certo pudor, saí perseguindo essa ideia do mito parisiense, um mito tremendamente latino-americano, o mito do escritor que se instala em Paris para construir uma obra, como fizeram muitos escritores latino-americanos de outras gerações que são importantes para mim. Mais do que isso, creio que em grande medida minha vocação literária ou minha paixão pela literatura remonta ao fato de ter descoberto e lido aqueles romances latino-americanos que, de certa forma, foram gestados em Paris ou, se não foram, estiveram vinculados à cidade-luz, como pode ser Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, La ciudad y los perros, de Mario Vargas Llosa, Rayuela, de Julio Cortázar. Mas também, e de maneira talvez mais importante, livros como Ulisses, de James Joyce, ou os contos de Ernest Hemingway, textos escritos na Paris de entre guerras, acabaram por me convencer de que queria ser escritor (in VIGLIONE, 2011).

Da mesma forma, ao comentar sua posterior mudança para Barcelona, cita novamente

os hispano-americanos da geração anterior. “Provavelmente, se nos anos 1960 Vargas Llosa,

García Márquez, Donoso e [Alfredo] Bryce Echenique não tivessem escolhido Barcelona e

sim Madri, eu teria acabado na capital” (DE MAESENEER e VERVAEKE, 2010). E, ao

discorrer sobre a condição de deslocado, evoca um de seus escritores favoritos – o marinheiro

polonês Joseph Conrad, sobre quem escreveu uma biografia – e recorre a um termo utilizado

pelo também diaspórico V.S. Naipaul para expressar como se sente na Espanha: “um

inquilino”.

Entre suas definições alguns dicionários incluem uma que é muito simples: “o animal que vive no lugar de outro”. É o que sou: alguém que por razões

 23 Ver FOMBONA, Jacinto. La Europa necesaria: textos de viaje de la época modernista. Rosário: Beatriz Viterbo, 2005, p.94‐95. 

  

30

de conveniência intelectual, emocional, moral, decidiu estabelecer uma distância do lugar de onde vem, do lar, a única certeza, como diz o poema de T.S. Eliot. Minha ideia era que, estando fora do meu país, a escrita se faria realidade com menos resistências e maiores elementos de juízo, e aproveitando uma maior contaminação. (DE MAESENEER e VERVAEKE, 2010).

Ou seja, para além de todos os fatores objetivos e subjetivos que estimulam as

movimentações dos escritores, há também o diálogo com a tradição. Diálogo que transcende a

esfera biográfica e se estende para o nível textual, considerando que o deslocamento,

assumido como uma maneira de estar no mundo e, consequentemente, como lócus de

enunciação, traduz-se também em uma poética escritural.

1.2 O deslocamento na literatura hispano-americana contemporânea

Seja como tema, fenômeno linguístico ou perspectiva narrativa, o deslocamento

aparece nos textos independentemente de conhecermos as movimentações dos escritores.

Deixando de lado um retrospecto mais amplo e nos centrando agora na produção literária dos

últimos vinte anos, principalmente na mais recente, identificamos um bom número de livros

em que a emigração, o exílio, as viagens e outros tipos de deslocamentos são parte central ou

relevante da trama. Entre os exemplos estão os romances de Roberto Bolaño – Monsieur Pain

(1982), La pista de hielo (1993), Los detectives salvajes (1998) e 2666 (2004), apenas para

citar alguns –; quase toda a obra de Santiago Gamboa, notadamente El síndrome de Ulises

(2005); os romances Los informantes (2004) e Historia secreta de Costaguana (2007), de

Juan Gabriel Vásquez; e El bailarín ruso de Montecarlo (2010), de Abilio Estévez.

As abordagens são as mais diversas. O romance de Estévez, um cubano que desde

2002 vive em Barcelona, é uma autoficção em que um especialista em José Martí sai de Cuba,

pela primeira vez na vida, para participar de um congresso acadêmico em Saragoça, mas tão

logo chega à Espanha decide mudar de rota e instalar-se clandestinamente na capital da

Catalunha. Desde a primeira parada da viagem – uma Madri festiva que lhe recorda a Havana

  

31

                                                           

de outros tempos (2010, p.22) –, o percurso do protagonista é marcado por lembranças,

reflexões e o constante cruzamento de referências cubanas e espanholas: o negro que entoa

um bolero numa rua de Barcelona, a recepcionista do hotel que é neta de uma cubana... “A

cidade muda e o sonho é o mesmo, o de sempre”, diz o narrador em um momento” (idem,

p.154).

Em El síndrome de Ulises, por sua vez, o colombiano Gamboa retoma um tema já

tratado com humor por Alfredo Bryce Echenique24 nos anos 1980: o do escritor que vai a

Paris e se depara com percalços e desventuras que contrastam duramente com o que havia

idealizado. O romance é uma autoficção com elementos de testemunho: a uma voz narrativa

principal, que identificamos com o próprio Gamboa, somam-se outros narradores, imigrantes

de diversas procedências, que relatam suas experiências geralmente penosas na capital da

França. Lavando pratos num restaurante oriental, dormindo numa pocilga, morrendo de frio e

comendo parcamente, o protagonista faz um contraponto contundente da Paris auspiciosa e

fascinante descrita por Rubén Darío e, em alguns momentos, pelo próprio Vargas Llosa.

Misérias parisienses também são descritas com hilaridade em algumas páginas de Los

detectives salvajes e aparecem, com abordagem menos patética, em Monsieur Pain, desta vez

vividas por César Vallejo, em seus dias de pobreza e enfermidade na capital francesa. Em La

pista de hielo, o cenário passa a ser um balneário da Catalunha, onde o chileno Remo Morán e

o mexicano Gaspar Heredia – escritores bissextos que ganham a vida com trabalhos braçais –

dão suas versões sobre o assassinato de uma patinadora. Tanto nesses livros como em outros

de Bolaño, como Amuleto (1999) e 2666 (2004), a temática do deslocamento transcende em

muito a questão do imigrante latino-americano marginalizado, abrangendo viagens (os poetas

de Los detectives salvajes, os críticos de 2666) e maneiras descentradas de estar no mundo.

 2424 Especialmente em La vida exagerada de Martín Romaña (1981). 

  

32

Alguns escritores tratam do deslocamento em outros contextos históricos e culturais,

como o equatoriano Leonardo Valencia em El desterrado (2000), que retorna à Roma de

Mussolini, e o argentino-andaluz Andrés Neuman, em El viajero del siglo (2009), ambientado

na Alemanha do século XIX. Em Una vez Argentina (2003), misto de memórias e obra de

ficção, Neuman refaz o caminho de sua genealogia e mostra que a experiência da emigração

já havia sido empreendida por seus bisavós, que trocaram a Rússia czarista por uma Argentina

jovem e cheia de promessas. A certa altura, o narrador comenta que “estar feito de margens,

ter a origem em dois lugares, pode ser uma maneira de viver mais tempo. Mudar-se de

hemisfério significa um rito de nascimento, que merece dor primeiro e depois ser celebrado”

(NEUMAN, 2003, p.111).

Em outros livros, migrações, viagens, exílios são elementos secundários, mas

significativos na trama, como em Abril rojo (2006), do peruano Santiago Roncagliolo, cujo

protagonista, Félix Chacalbana, mudara-se para Lima quando criança a fim de esquecer a

tragédia que matou os pais. Ou em El ruido de las cosas al caer (2011), romance mais recente

de Juan Gabriel Vásquez, em que uma das personagens centrais, Elaine Fritts, é uma

estrangeira que tem o nome trocado, compulsoriamente, ao chegar à Colômbia. O

deslocamento aparece também em inúmeros relatos de viagem, e em ensaios nos quais os

escritores refletem sobre a multiplicidade de sua identidade diaspórica, como o peruano

descendente de japoneses Fernando Isawaki, radicado em Sevilha há mais de vinte anos e

autor, entre outros livros, de Mi poncho es un quimono flamenco (2007).

Ao mesmo tempo, um bom número de narrativas transcorre em geografias totalmente

distintas das dos países de origem dos escritores. Em muitos casos, os textos não fornecem

nenhuma pista sobre a nacionalidade de quem os escreve e às vezes versam sobre lugares

nunca visitados pelos autores, como ocorre com o peruano radicado nos Estados Unidos

Carlos Yushimito, cujos contos reunidos em Las islas (2006) têm como cenário as favelas do

  

33

                                                           

Rio e outros locais periféricos do Brasil, país em que nunca colocou os pés. Ao constatar o

nomadismo de vários autores e a diversidade de cenários que povoam suas histórias, o escritor

Luis Gusmán decidiu eleger a diáspora como eixo organizador de sua recente antologia da

narrativa argentina contemporânea.25 Somente esta perspectiva foi capaz de viabilizar uma

seleção com ingredientes tão díspares dos anteriormente exigidos em amostras do tipo. Basta

citar a presença da nipo-americana Anna Kazumi Stahl, que nasceu e cresceu nos Estados

Unidos e se mudou para Buenos Aires aos 25 anos para aprender o idioma em que hoje

escreve, o castelhano. Ou o repertório temático rigorosamente desprendido de questões locais,

com assuntos que vão das lembranças de uma imigração armênia a um episódio na vida de

Stendhal na Letônia, passando por evocações da Calábria, o trajeto transoceânico de uma bala

de espingarda e o relato de um viajante nos Estados Unidos. A própria disposição das

narrativas foi organizada seguindo a lógica de movimento: começando em “Praça Miserere”,

de María Moreno, que além de uma praça é uma estação de trens (local de chegada e partida

de pessoas), e terminando nas reminiscências calabresas de Roberto Raschella em “Se

tivéssemos vivido aqui”. “O que há de representativo nesta antologia é seu caráter de

diáspora”, assinala Gusmán no prefácio (2011, p.11).

Apesar disso, um contingente expressivo de autores deslocados – talvez a maioria –

continua a escrever sobre os países em que nasceram, mantendo uma tradição antiga e que,

certa vez, foi ilustrada por James Joyce ao lhe perguntarem por que se mudara de Dublin.

“Para escrever sobre Dublin”, respondeu o autor de Ulisses. Em seu artigo sobre o boom,

Ángel Rama já observava que, mesmo quando deixaram a terra materna, “em sua imensa

maioria esses escritores continuaram servindo – esplendidamente – à cultura latino-americana

que os engendrou, sobre a qual continuaram gravitando obsessivamente, independentemente

da cidade ou país em que residissem.” (RAMA, 1984, p.93). Segundo muitos deles, a

 25 Os outros: narrativa argentina contemporânea (São Paulo: Iluminas, 2011). 

  

34

                                                           

distância ajudou a dar-lhes uma visão mais nítida da realidade que deixaram, e a inspirar

sentimentos identitários que – assim como ocorrera com Alfonso Reyes em Madri e Manuel

Ugarte em Paris – geralmente se deslocam do nacional para o continental. “Descobri a

América Latina em Paris nos anos 1960”, disse Mario Vargas Llosa em uma conferência

pronunciada em 2005.26 “Desde então, comecei a me sentir, antes de tudo, um latino-

americano”, continuou27, para em seguida completar:

Não se pode entender a América Latina sem sair dela e observá-la com os olhos e, também, com os mitos e estereótipos que se elaboraram sobre ela no estrangeiro [...] (VARGAS LLOSA, 2009, p.351.)

Entre os autores surgidos nos últimos vinte anos, muitos reafirmam esse possível

efeito de nitidez que o olhar à distância propicia. Juan Gabriel Vásquez disse em uma ocasião

que as viagens “limpavam seus olhos” (CORRAL, 2004, p.26), embora tenha declarado

outras tantas vezes que continuava sem entender a Colômbia e que, justamente por isso,

passara a escrever reiteradamente sobre o país (DE MAESENEER e VERVAEKE, 2010).

Suas primeiras obras ficcionais, produzidas predominantemente fora da América Latina, são

quase sempre ambientadas na Europa: o romance de estreia, Persona, é passado em Florença;

metade do segundo, Alina suplicante, transcorre em Paris; e todos os contos de Los amantes

de todos los santos têm como cenário a França e a Bélgica, países em que o escritor viveu. Foi

a partir de Los informantes – publicado, como disse antes, oito anos depois de se mudar para a

Europa – que Vásquez passou a tratar da Colômbia, voltando a fazê-lo em Historia secreta de

Costaguana e El ruído de las cosas al caer. Nestes três romances, os deslocamentos dos

personagens e o contato entre colombianos e estrangeiros têm papel de destaque na trama, que

abarca tanto a história recente como o passado mais remoto.

 26 Apud VARGAS LLOSA, MARIO. Sables y utopias: visiones de América Latina. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2009, p.365.  

27 Idem, p.346. 

  

35

Em seu ensaio sobre a literatura latino-americana contemporânea, Jorge Volpi ressalva

que, diferentemente dos autores do boom, que empreendiam um projeto ideológico de

emancipação cultural e busca identitária da América Latina, os escritores nascidos a partir de

1960 abordam a história e os problemas atuais de seus países sem perspectiva militante nem

anseio de consolidar uma tradição (VOLPI, 2009, p.170).

Mais do que descobrir um continente, colocar no mapa uma região antes esquecida, converter-se em seus porta-vozes ou posicionar-se à frente de suas elites, os novos narradores falam de seus países sem ranços de romantismo ou de compromisso político, sem esperanças nem planos de futuro, talvez apenas com o orgulhoso desencanto de quem reconhece os limites de sua responsabilidade frente à história. (VOLPI, idem)

Comentário parecido faz o peruano radicado em Madri Jorge Eduardo Benavides

(2008) ao referir-se à obra de escritores hispano-americanos que emigraram para a Espanha

nos anos 1990. Segundo ele, embora as narrativas continuem tratando, às vezes com

inevitável nostalgia, dos países de origem dos autores, já não o fazem “de uma maneira tão

entrópica como antes, nem tão solene nem tão enfaticamente vernácula”, como se o

importante agora fosse acentuar não mais o que diferencia, mas o que vincula o lugar que

deixaram e o que escolheram para viver.

Autor de vários ensaios sobre o tema, o espanhol-uruguaio Fernando Aínsa (2005)

também constata um expressivo conjunto de narrativas em que escritores deslocados

reconstroem, à distância, o país ou a cidade em que nasceram e geralmente foram criados.

Aínsa cita Fernando Vallejo com Bogotá (escrevendo do México), Juan Villoro com o

México (escrevendo de Barcelona), Abilio Estévez com Havana (também de Barcelona),

Carlos Franz com o Chile (escrevendo de Madri), entre outros numerosos exemplos. “Longe

da lamentação de uma literatura do exílio ou de toda ideologia patriótico nacionalista, se

respira sem artifícios o espaço natural de uma cidade intensamente vivida à distância”,

escreve Aínsa. O resultado, conclui, é que “um espaço nacional construído fora das fronteiras

  

36

não só é possível, como recomendável”. Segundo o ensaísta, as obras desses autores invertem

o sentido do exílio, seja forçado ou voluntário. “No exílio, se concentra a memória do

passado, formas ambíguas e contraditórias da nostalgia, mas, sobretudo, a alquimia dos

intercâmbios e a fecundação de significados que se geram a partir da distância”, afirma

(grifo meu).

Ele destaca ainda o papel central da memória nas narrativas, que abordarei com mais

minúcia no segundo capítulo. E observa a incidência de textos autobiográficos e

autoficcionais, também identificada, em diferentes corpi, por outros autores que estudam

literaturas em condições de extraterritorialidade, como Elena Palmero González no universo

hispano-canadense (2010b). Note-se, aliás, que a tendência à autorreflexão é vista como um

dos aspectos mais intensos da experiência da viagem. “Toda viagem conjuga exploração do

mundo com autoexploração”, comenta Beatriz Colombi (2004, p.198). Da mesma forma,

Jacinto Fombona (2005, p.48) assinala que o texto de viagem tem atributos que o aproximam

da autobiografia: “[...] podemos achar na escrita de viagens a atitude do viajante que busca

recuperar a paisagem, essa sensação de viagem, para realizar uma viagem interior, à sua

memória, a seu ser [...]” (FOMBONA, 2005, p.54).

Embora enfatize a impossibilidade de caracterizar uma única poética do deslocamento

– considerando as especificidades de cada movimento migratório –, Elena Palmero González

reconhece na literatura hispano-canadense um traço que constatamos com frequência em

outros âmbitos: a presença da própria criação literária como tema, o que os exemplos citados

anteriormente (Bolaño, Gamboa, Estévez e Juan Gabriel Vásquez) se encarregam de

respaldar.

O deslocamento, contudo, não se mostra apenas no enunciado – ou seja, naquilo que

está sendo dito – mas também na maneira de dizer, isto é, na enunciação. Explorando um

pouco mais o exemplo bastante fértil de Bolaño, vale citar um recente artigo de Laura Janina

  

37

Hosiasson (2011), em que a professora da Universidade de São Paulo analisa, entre outros

aspectos, a figura textual do narrador na obra do autor chileno. Hosiasson observa como os

narradores de Bolaño empregam diferentes modalidades do espanhol dependendo da

“nacionalidade” adotada na trama. Assim, seja nos localismos ou nos vocabulários

específicos, é evidente o uso do espanhol chileno em Estrella distante (1996) e Nocturno de

Chile (2000), por exemplo. Em Los detectives salvajes, por sua vez, ninguém duvida de que

se trata de uma voz mexicana, da mesma forma que nos contos El gaucho insufrible (2003) e

Dos cuentos católicos (2002) os narradores utilizam um castelhano argentino e um espanhol

peninsular, respectivamente. Hosiasson considera a obra de Bolaño um dos casos mais

extremos de uso literário das diferenças idiomáticas do espanhol. O escritor, segundo ela,

“brinca (para valer) com a ideia de que o espanhol tem muitas línguas, algumas das quais

estrangeiras entre si e outras, por sua vez, familiares e reconhecíveis” (HOSIASSON, 2011).

Para a professora, esta atitude encerra não apenas uma proposta estética, mas também uma

postura política e vital de Bolaño.

Língua e ética se confundem de maneira incontornável, em sua poética. Carlos Wieder, o poeta aviador fascista chileno de Estrella distante, é percebido por seus companheiros juvenis como um estrangeiro, apesar de ser também um chileno: ‘Nós usávamos gíria ou um jargão marxista-mandrakista [...] ele falava em espanhol. Esse espanhol de certos lugares do Chile (lugares mais mentais do que físicos) em que o tempo não parece correr. (HOSIASSON, 2011)

Enquanto Bolaño desafia os limites de um mesmo idioma (reflexo também de sua vida

peregrina), outros autores subvertem fronteiras ainda maiores e enveredam por línguas

híbridas, como o portunhol, o spanglish ou o frañol. Depois do impulso pioneiro do argentino

Néstor Perlongher e do brasileiro Wilson Bueno nas décadas de 1980 e 1990, o portunhol

voltou a ganhar evidência no início dos anos 2000 com o movimento Portunhol Selvagem,

capitaneado pelo brasileiro-paraguaio Douglas Diegues, autor do livro de sonetos Dá gusto

andar desnudo por estas selvas (2003). Tendo entre seus antecedentes remotos o pintor

  

38

argentino Alejandro Xul Solar (1887-1963) – que na década de 1920 inventou o neocriollo,

que tinha como base o português e o espanhol, mas também incorporava inglês, francês,

alemão, latim e grego –, o movimento vem organizando eventos, inspirando debates e

conquistando, com maior ou menor grau de envolvimento, a adesão de um variado grupo de

escritores brasileiros, uruguaios, paraguaios e argentinos.

O spanglish, por sua vez, mistura de inglês com espanhol, parece ser visto com maior

legitimidade e desperta interesse crescente na academia e no âmbito literário norte-

americanos. Usada em programas de televisão, emissoras de rádio, revistas e outros meios –

inclusive em letras de música de vários ídolos da comunidade latina dos Estados Unidos –, a

língua ganhou em 2003 um dicionário com mais de 6 mil verbetes, organizado pelo professor

Ilan Stavans, do Amherst College de Massachusetts. No mesmo livro, Stavans investiga as

origens do fenômeno – que remonta, segundo ele, à metade do século XIX –, analisa sua forte

expansão nas últimas décadas e realiza uma experiência inédita: a tradução do primeiro

capítulo do Don Quijote para o idioma híbrido. Outro momento recente de notoriedade do

spanglish foi o reconhecimento do dominicano naturalizado norte-americano Junot Díaz com

o prêmio Pulitzer de 2008. O romance que lhe valeu a distinção, A fantástica vida breve de

Oscar Bao, tem vários trechos narrados no híbrido de inglês com espanhol.

Em seus estudos sobre Néstor Perlongher e outros autores argentinos em condições de

extraterritorialidade, Pablo Gasparini mostra que o uso dessas “línguas de entremeio” – como

as denominou Maite Celada (2000) – transcende em muito a condição fortuita de uma

mistura. Trata-se, segundo ele, de uma aposta “na impureza e na contaminação linguística”,

um movimento que aponta para “a falta ou a multiplicidade de origens e para a irrisão de

qualquer política identitária” (GASPARINI, 2008 e 2010). Na poética de Perlongher, por

exemplo, Gasparini vê tanto o gesto de desfiliação identitária (genérica e nacional), quanto

uma atitude de desterritorialização que já se notava antes mesmo de sua partida para o Brasil,

  

39

em 1982. O poeta e crítico Roberto Echevaren (1997) identificou ainda no escritor argentino

uma espécie de “transcontinentalidade”, característica que lhe permitiu, entre outras coisas,

falar do presente da Argentina ditatorial referindo-se ao passado europeu (apud GASPARINI,

2008).

Constata-se, portanto, para além da mobilidade linguística, um deslocamento

discursivo, semelhante ao assinalado por Ricardo Piglia (2001) na narrativa de Rodolfo Walsh

e apontado pelo crítico e escritor argentino como um dos valores a ser perseguidos pela

literatura no futuro. No ensaio Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades),

em que reflete sobre os possíveis paradigmas para a literatura do século XXI, Piglia destaca

desde o começo a fecundidade de um olhar descentrado, um olhar de viés, que se situe à beira

das tradições centrais e que se lance sobre as coisas de uma perspectiva levemente marginal

(2001, p.13). Referindo-se inicialmente à própria condição de escritor latino-americano –

alguém que se pronuncia a partir de um “subúrbio do mundo” como Buenos Aires (idem,

p.12) –, Piglia amplia em seguida a noção de deslocamento, estendendo-a da mera localização

geopolítica para a maneira de se relacionar com a linguagem. As estratégias narrativas de

Rodolfo Walsh – que se vale de elipses e deslizamentos para viabilizar a expressão do

inominável, deixando que outro fale o que seria impossível numa enunciação pessoal –

servem de exemplo para o deslocamento defendido por Piglia: “Sair do centro, deixar que a

linguagem também fale na borda, no que se ouve, no que chega do outro” (idem, p.37).

Para a psicanalista e linguista Julia Kristeva, mais do que uma condição de

extraterritorialidade física ou geográfica, o exílio é o lugar próprio da literatura, uma prática

dissidente que desafia os discursos hegemônicos e se insurge contra os princípios políticos,

sexuais e linguísticos que os alicerçam. No ensaio “Un nouveau type d’intellectuel: le

dissident” (1977), Kristeva define o intelectual dissidente como um exilado, um estrangeiro

  

40

em relação a seu próprio país, sua linguagem, sua identidade. Uma das formas de dissidência,

segundo Kristeva, é a escrita literária, em sua perspectiva transgressora de uso da linguagem.

1.3 Dimensões do deslocamento

Além das motivações historiográficas – o esforço de “reconsiderar o cânon e

reelaborar o corpus”, defendido por Ana Pizarro (2004, p.73) –, pelo menos três fatores

ressaltam a importância de se estudar a literatura produzida por escritores em situação de

extraterritorialidade. O primeiro deles é a intensidade que, nas últimas décadas, os

deslocamentos assumiram no mundo, tornando-se ainda mais cruciais na definição de

subjetividades e na dinâmica dos processos culturais. O segundo são as especificidades do

fenômeno na contemporaneidade, quando o conceito de Estado-nação experimenta uma

profunda crise e a alta tecnologia de transportes e comunicações produz “relações de

fronteira” (CLIFFORD, 1999, p.301) entre cidades afastadas por milhares de quilômetros. E o

terceiro fator são as questões identitárias que a mobilidade sempre suscita – questões que, na

literatura, podem se manifestar de diversas maneiras: dos modos de representar (ou recriar) a

terra materna ao teor das lembranças que, com frequência, aparecem na ficção de autores

deslocados.

Mesmo sem apresentar estatísticas, estudiosos dos deslocamentos são taxativos em

afirmar que os movimentos migratórios – embora tão antigos quanto a própria humanidade –

jamais foram tão significativos como hoje. O aprofundamento da globalização, notadamente a

partir dos anos 1980, acirrou um crescimento iniciado no fim do século XIX com a corrida

imperialista, a modernização dos meios de transporte e os excedentes de mão de obra gerados

pelas diversas inovações industriais (TRIGO, 2003, p.41). Até a Segunda Guerra Mundial

(1939-1945) as rotas migratórias internacionais partiam, na maioria dos casos, de regiões

periféricas de países mais industrializados – por exemplo da Galícia, na Espanha, ou da

  

41

Calábria, na Itália – rumo a países menos desenvolvidos, porém com grande potencial de

crescimento, como o Brasil e a Argentina. Após o término do conflito, a nova configuração do

capitalismo – marcada, entre outros aspectos, pela hegemonia do capital financeiro

transnacional – inverteu a direção dos fluxos, que passaram a se caracterizar, principalmente,

pela saída de contingentes das nações pós-coloniais e neocoloniais em direção aos países mais

ricos (TRIGO, idem). “Os movimentos migratórios, sejam individuais ou coletivos, estão

intimamente ligados ao desenvolvimento socioeconômico desigual entre diferentes regiões do

mundo inseridas em regimes de expulsão e atração [...]”, afirma Abril Trigo (2003, p.27),

uruguaio radicado nos Estados Unidos, ponderando em seguida que, apesar da raiz geralmente

socioeconômica, as migrações obedecem a “múltiplas causas de índole social, cultural,

política ou econômica, cuja combinação determina as diversas modalidades de exílios,

diásporas, deslocamentos e migrações historicamente registráveis”.

James Clifford observa que os deslocamentos fazem parte dos mais remotos e

ancestrais grupamentos humanos. Em Itinerarios transculturales (1999), ele reproduz um

trecho do relato autobiográfico “The imam and the hindu”, de Amitav Ghosh, no qual o autor

indiano conta o surpreendente encontro de um etnógrafo com uma antiga aldeia egípcia

formada majoritariamente por viajantes de vasta experiência. “Todos os homens da aldeia

tinham o aspecto inquieto daqueles passageiros que costumamos ver nos saguões dos

aeroportos”, comenta o narrador de Ghosh (apud CLIFFORD, 1999, p.11). Partindo desta

citação, Clifford questiona a premissa segundo a qual a existência social autêntica estaria – ou

deveria estar – circunscrita a lugares fechados. Também põe em xeque a ideia de que a

residência é a base da vida coletiva e as viagens, seu mero suplemento.

Os centros culturais, as regiões e os territórios delimitados não são anteriores aos contatos, mas se consolidam por seu intermédio e, neste processo, apropriam-se dos movimentos incansáveis de pessoas e coisas e os disciplinam (CLIFFORD, 1999, p.13-14).

  

42

Para o antropólogo norte-americano, as práticas de deslocamento devem ser vistas

como constitutivas de significados culturais em si, e não apenas como sua extensão ou

transferência. Contrariando a etnografia tradicional – que na maioria dos casos desprezou as

relações externas e os diversos deslocamentos das culturas estudadas –, Clifford defende uma

abordagem mais ampla, que considere tanto a mobilidade como o enraizamento (1999, p.12).

Não se trata de substituir a figura cultural do nativo pela do viajante, nem de dizer que todos

somos viajantes, mas de observar as mediações concretas entre as duas condições –

mediações que, segundo ele, vão constituir, em diferentes graus, o que chamamos de

experiência cultural. Ao pensar a cultura e a antropologia em termos de viagem, diz Clifford,

a tendência orgânica, naturalizante, do termo “cultura” – vista como um todo enraizado que

cresce, vive e morre – é questionada, e se tornam evidentes “as historicidades construídas e

disputadas, os lugares de deslocamento, interferência e interação” (CLIFFORD, 1999, p.38).

Já o indiano Arjun Appadurai explica o mundo contemporâneo a partir de uma teoria

da ruptura, que considera os meios de comunicação e os movimentos migratórios como os

dois principais ângulos por onde ver e problematizar as transformações ocorridas na

sociedade. Appadurai investiga, principalmente, as inter-relações entre os deslocamentos e os

meios de comunicação, duas forças que, somadas, fomentam o que ele chama de “trabalho da

imaginação” – definido, por sua vez, como um “elemento constitutivo principal da

subjetividade moderna” (APPADURAI, 2001, p.6). Para ilustrar o conceito, o antropólogo

comenta que, atualmente, poucos são os filmes importantes, os espetáculos de televisão e os

programas jornalísticos que não sejam pautados de alguma maneira pelos eventos midiáticos

de outros lugares. Da mesma forma, são poucas as pessoas que não têm um amigo, um

parente, um vizinho ou um colega de trabalho que tenha ido para outro lugar ou esteja de

volta, trazendo histórias de outros horizontes e outras possibilidades (APPADURAI, 2001,

p.8).

  

43

Por certo, as migrações em massa (voluntárias ou forçadas) não são um fenômeno novo na história da humanidade. Mas, quando as analisamos em conjunto com a velocidade do fluxo de imagens, roteiros e sensações veiculadas por meios de comunicação de massa, temos como resultado uma nova ordem de instabilidade na produção das subjetividades modernas. (APPADURAI, 2001, p.7)

Mesmo que não se mudem, diz Appadurai, cada vez mais pessoas imaginam a

possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, ir morar ou trabalhar em outros lugares, longe de

onde nasceram. E tanto a decisão de partir como a de permanecer são influenciadas de

maneira determinante pelos meios de comunicação de massa, o que marca, segundo ele, a

principal diferença entre as migrações atuais e as do passado (APPADURAI, 2001, p.9).

Televisão, jornais, cinema, música e outras mídias permeiam, igualmente, o cotidiano dos que

já emigraram, intensificando os vínculos com a comunidade de origem e criando uma espécie

de simultaneidade entre lá e cá, que caracteriza os deslocamentos na contemporaneidade.

Appadurai cita, por exemplo, os trabalhadores turcos que, de seus apartamentos em Berlim,

assistem a filmes rodados na Turquia. Ou os motoristas de táxis paquistaneses que, circulando

pelas ruas de Chicago, escutam sermões das mesquitas do Paquistão em cassetes enviados por

amigos e parentes que continuam no país asiático. Segundo o antropólogo indiano, situações

como essas proporcionam a criação de “esferas públicas em diáspora, fenômeno que faz

entrar em curto-circuito as teorias que dependem da continuidade da importância do Estado-

nação como o árbitro fundamental das grandes mudanças sociais” (APPADURAI, 2001, p.7).

Assim como outros intelectuais, Appadurai acredita que o Estado-nação, como forma

política moderna complexa, está com os dias contados (idem, p.21). Segundo ele, os Estados-

nação só têm sentido como parte de um sistema, e este sistema (inclusive se pensado como

um sistema de diferenças) está muito mal equipado hoje para lidar com o fenômeno

interconectado de povos e imagens em deslocamento. Na mesma linha, o jamaicano Stuart

Hall aponta a criação de blocos supranacionais, como a União Europeia, como testemunho da

“erosão da soberania nacional” (HALL, 2003, p.36). Em sua análise, a fase transnacional do

  

44

capitalismo – configurada com mais vigor a partir da década de 1970 – tem seu centro cultural

“em todo lugar e em lugar nenhum” (idem), o que não significa que os Estados-nação não

tenham função nela, mas sim que essa função tornou-se, em muitos aspectos, subordinada a

operações globais mais amplas. De acordo com o teórico, assim como outros processos

globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante. “Suas compressões espaço-

temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o

lugar”, diz (HALL, 2003, p.36).

Mesmo considerando prematuro anunciar a obsolescência dos Estados-nação, James

Clifford concorda que a estabilidade dessas unidades está longe de se ver assegurada

(CLIFFORD, 1999, p.21). Segundo ele, graças às idas e vindas proporcionadas pelas

tecnologias de transporte, pelos meios de comunicação e pelas migrações trabalhistas, povos

dispersos, separados da terra natal por vastos oceanos e, muitas vezes, por barreiras políticas,

encontram-se cada vez mais em relações de fronteira com seu antigo país (1999, p.302). A

contínua circulação de pessoas, dinheiro, mercadorias e informação faz com que lugares

afastados funcionem como uma mesma comunidade – o que ocorre, por exemplo, com os

municípios de Aguililla, na província mexicana de Michoacán, e Redwood City, na

Califórnia, que, apesar da distância de 2,9 mil quilômetros, mantêm práticas de cruzamento

semelhantes às de uma fronteira (idem, p.301).

Relações como essas reforçam as diferenças entre os deslocamentos contemporâneos e

outras formas de dispersão características de momentos anteriores, como as imigrações do

início do século XX e o exílio político que marcou a América Latina nas décadas de 1960 a

1980. Nos dois casos, por circunstâncias diversas, o apego a uma identidade nacional era

evidente: no primeiro, na disposição em se adaptar ao novo meio e integrar a nacionalidade do

país de acolhida (em fazer parte, apesar da dor da ruptura, de uma grande comunidade na

nova terra); no segundo, na resistência a experiências de hibridação e no desejo de manter

  

45

                                                           

intacta uma identidade rigidamente atada ao país deixado.28 Por impossíveis (e perigosas) que

sejam as generalizações, o sujeito deslocado de hoje costuma ser menos rígido em suas

negociações identitárias. Muitas vezes, elas subvertem as referências nacionais e aparecem

desvinculadas tanto da ideia de retorno como da de assimilação.29

James Clifford (1999, p.306) diz que as conexões transnacionais estabelecidas pelas

diásporas não têm por que, necessariamente, articular-se por meio de uma terra natal real ou

simbólica. “As conexões descentradas, laterais, podem ser tão importantes como as que se

formam em torno de uma teleologia de origem/regresso”, afirma, citando como exemplo a

diáspora do sudeste asiático, que não se orienta tanto às raízes em um lugar específico ou a

um desejo de retornar, mas à aptidão de criar uma cultura em localizações diversas

(CLIFFORD, 1999, p.305). Stuart Hall, por sua vez, observa que: “Na situação da diáspora,

as identidades se tornam múltiplas. Junto com os elos que as ligam a uma ilha de origem

específica, há outras forças centrípetas” (HALL, 2003, p.27).

Referindo-se principalmente às diásporas caribenhas na Grã-Bretanha, mas sem

limitar-se a elas, Hall defende a ideia de impureza dos povos e culturas diaspóricas. “Nossos

povos têm suas raízes nos – ou, mais precisamente, podem traçar suas rotas a partir dos –

quatro cantos do globo [...]. Suas ‘rotas’ são tudo, menos ‘puras’”, afirma o teórico (idem,

p.31). Contra a ideia de fardo e perda frequentemente associada à impureza, Hall argumenta

que a mistura é uma condição necessária à modernidade. E cita o romancista Salman Rushdie,

 28  No  relato  autobiográfico  En  estado  de memoria  (1990),  considerado  por  alguns  críticos  como  o  texto fundamental do período pós‐ditaduras latino‐americanas (AVELAR, 2003, p.31), Tununa Mercado comenta essa resistência  e  cita  “profissões  de  fé  simplesmente  patrioteiras”  entre  os  exilados  argentinos  na  Cidade  do México,  como manifestações  com  a  bandeira  do  país  durante  a  Copa  do Mundo  e  a Guerra  das Malvinas (MERCADO, 2011, p.38; edição brasileira com tradução de Idelber Avelar).  

29 Para designar os deslocamentos contemporâneos, tem sido cada vez mais frequente a utilização genérica do termo diáspora, originalmente associado à dispersão judia, grega e armênia, mas hoje dotado de um conjunto mais amplo de significados, que, embora suscitem inúmeras divergências, também geram aproximações em torno de algumas características. Entre elas, a identidade híbrida do sujeito e seu usual desprendimento das tradicionais teleologias de regresso. 

  

46

segundo quem “o hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação que vem de novas e

inusitadas combinações dos seres humanos, culturas, ideias, políticas, filmes, canções” é

“como a novidade entra no mundo” (apud HALL, 2003, p.34).

Dialogando com Homi Bhabha, o teórico jamaicano pondera que as culturas têm seus

“locais”, mas que hoje não é tão fácil dizer de onde se originam. Segundo ele, o que se pode

mapear é mais um processo de “repetição-com-diferença” ou “reciprocidade-sem-começo”

(HALL, 2003, p.37), perspectiva pela qual as identidades diaspóricas não aparecem apenas

como um pálido reflexo de uma origem, e sim como o resultado de sua própria formação

relativamente autônoma. A cultura, diz Hall, não é uma arqueologia, e sim uma produção

(idem, p.44). Da mesma forma, ele define a identidade cultural como um “posicionamento”

(idem, p. 433), aproximando-se do conceito de “afiliação” proposto por Edward Said em

substituição ao de “filiação”. Segundo Said, enquanto “filiação” refere-se à pertença a uma

cultura local nos marcos colonialistas do século XIX, afiliação tem mais a ver com posse: é

um conceito optativo, não biológico ou essencialista, e aplicável às culturas em dispersão.

(apud BOLAÑOS, 2010).

Com o cuidado de frisar a infinidade de experiências possíveis – e a impropriedade de

estabelecer caracterizações mais rígidas –, Clifford afirma que as identidades produzidas

pelos deslocamentos podem ser tanto restritivas como liberadoras. “Unem idiomas, tradições

e lugares de maneira coerciva e criativa, articulando pátrias em combate, forças da memória,

estilos de transgressão, em ambígua relação com as estruturas nacionais e transnacionais”

(CLIFFORD, 1999, p.21-22). O antropólogo aponta nos migrantes internacionais uma “tensão

definitória” entre a perda e a esperança (idem, p.315), entre as experiências de separação e o

compromisso, entre o viver aqui e o desejar/recordar outro lugar (idem, p.312). Uma

ambivalência, portanto, que será mais ou menos positiva conforme inúmeras variáveis,

inclusive a sorte de cada indivíduo.

  

47

                                                           

Comentando sua própria história – de quem aos 19 anos se mudou para a Grã-

Bretanha e não voltou a viver na Jamaica –, Stuart Hall (2003, p.415) diz que, embora

conheça intimamente os dois lugares, não pertence completamente a nenhum deles. “E esta é

exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de

exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma ‘chegada’ sempre adiada”,

afirma (idem). Segundo Hall, desde que a migração se tornou o grande evento histórico-

mundial da modernidade tardia, a experiência diaspórica converteu-se na experiência pós-

moderna clássica. Trata-se de “estar dentro e fora ao mesmo tempo”, define.

Em seus ensaios inspirados nos depoimentos da comunidade de uruguaios em

Fitchburg, Massachusetts (EUA), Abril Trigo (2003) sustenta a ideia do retorno impossível,

também defendida em outros momentos por Stuart Hall. Segundo Trigo (2003, p.61), “todo

retorno é como voltar a partir, mas em sentido inverso, porque tudo mudou, começando pelo

próprio migrante”.30 Regressar à terra deixada após um período de afastamento representa,

para quem mudou de país, uma das experiências máximas de estranhamento. “É nesse exato

instante que o então-lá longamente preservado na memória se torna irreconhecível no aqui-

agora do reencontro”, afirma (idem, p.58). Para o acadêmico uruguaio, os migrantes se

sentem sempre em trânsito, como se estivessem suspensos entre dois mundos:

Perdido em uma temporalidade homogênea e vazia, e alienado de um espaço que sente sempre alheio, abstrato, neutro, ainda que nunca neutral, o migrante desenvolve pouco a pouco uma sorte de bi-perspectivismo, a capacidade de ver as coisas com dois pontos de vista simultâneos, necessária para negociar cada ato, desenhar estratégias cotidianas e dar sentido a práticas nas quais convergem o aqui-agora das experiências vividas (Erlebnis) e o então-lá das memórias culturais (Erfahrung).[...] (TRIGO, 2003, p.56-57).

 30 Sobre isto, o escritor italiano Leonardo Sciascia dizia que quando alguém cometeu o erro de partir, não deve cometer o erro de voltar. Devo a frase à argentina Sylvia Molloy, que, em recente entrevista ao La Nación de Buenos Aires (18/11/2011) contou estar preparando um livro sobre “o caráter ilusório de todo regresso”. 

  

48

Trigo cita Cornejo Polar para manifestar a descrença na possibilidade de uma síntese

identitária com que o migrante harmonize o “então-lá” com o “aqui-agora”. De acordo com

Cornejo (2000, p.304), “o deslocamento migratório duplica (ou mais) o território do sujeito e

lhe oferece a oportunidade de falar a partir de mais de um lugar ou o condena a essa fala. É

um discurso duplo ou multiplamente situado”. Com isso, dividido entre o presente e a nova

terra e o passado e a terra deixada, o migrante vai configurando uma identidade fragmentada e

heterogênea. Sem conseguir, nem desejar, fazer uma síntese de suas experiências de vida,

instala-se em dois mundos de certa maneira antagônicos: o ontem e o lá, de um lado, e o hoje

e o aqui, de outro, embora as duas posições sejam sempre flutuantes (TRIGO, 2003, p.60).

Há, portanto, uma permanente disposição às lembranças nos sujeitos deslocados, como

provam os inúmeros relatos memorialísticos de autores que escrevem de fora de seus países.

Mas o que lembrar quando a terra natal é cada vez mais distante e, em certo sentido,

estrangeira? O que evocar? O que inventar? Como representar um país compatível com a

nova identidade do migrante? São algumas questões que a memória em deslocamento suscita

e que abordarei no próximo capítulo.

  

49

II MEMÓRIAS DESLOCADAS

2.1 Desconstruindo a ‘história oficial’: as memórias em deslocamento

As implicações dos deslocamentos na memória são tão variáveis como as

circunstâncias em que eles se produzem. Abordar o tema sob uma única perspectiva, portanto,

seria condená-lo, de antemão, a uma análise estreita – mesmo sabendo que, em se tratando de

memória, toda análise terá sempre de priorizar uma ou outra concepção teórica, tamanha a

diversidade de aproximações possíveis para a questão. Este capítulo é guiado por dois

objetivos principais. O primeiro deles, perseguido neste tópico inicial, é compreender como

costuma se comportar, de maneira geral, a memória de sujeitos em deslocamento, e como

funcionam as políticas da memória no processo de construir lares fora do lar. O segundo

objetivo, que ocupará os tópicos 2.2 e 2.3, é construir um quadro teórico sobre os itens que,

no amplo escopo da memória, considero mais relevantes para a análise de Los informantes.

São eles: a tensão entre lembrar e esquecer que marca os países com traumas ainda não

superados (com o difícil perdão no horizonte de uma memória reconciliada, como dizia Paul

Ricoeur) e a figura crucial da testemunha, que se mostra essencial mas ao mesmo tempo

insuficiente para a construção do relato.

Apesar da vasta bibliografia existente sobre memória, o livro Memorias migrantes:

testimonios y ensayos sobre la diáspora uruguaya (2003), de Abril Trigo, é um dos poucos

que se dedicam especificamente a promover uma articulação teórica entre memória e

deslocamento. Baseando-se no trabalho etnográfico que realizou na comunidade de uruguaios

em Fitchburg, Massachusetts (EUA), o acadêmico afirma que, ao mudar de país, os sujeitos

sofrem uma fratura identitária que os leva a empreender, de maneira quase imperceptível, um

movimento de resgate e reciclagem de memórias culturais até então soterradas na memória

histórica e no imaginário social da nação deixada. O principal efeito deste processo, ou pelo

menos o mais fecundo, é o surgimento de novas formas de olhar a comunidade nacional –

  

50

                                                           

formas alternativas que, com o “esquecimento criativo” acarretado pela distância, conseguem

se desvencilhar da ação homogeneizadora da memória histórica, incorporar diferenças antes

esmagadas e colocar em xeque alguns pilares do imaginário nacional.

Para entender as ideias de Trigo, vale a pena examinar os principais conceitos teóricos

manejados por ele. Proposta por Jesús Martín-Barbero (1997), a noção de memória cultural

refere-se à memória constituída nas experiências e acontecimentos cotidianos. Sua construção

se dá em práticas intersubjetivas, cuja significação é constantemente reelaborada entre a

consciência do presente e a experiência do passado. Diferentemente da memória instrumental

– seu contraponto, segundo Martín-Barbero –, a memória cultural não trabalha com base em

informações nem de forma acumulativa. Em vez de acumular, filtra e carrega. Portanto, não

tem a ver com a nostalgia e tampouco foi feita para usar, para resgatar o passado. Sua função

na vida comunitária é dar continuidade ao processo de construção permanente da identidade

compartilhada (TRIGO, 2003, p.88-89).

A memória instrumental, por sua vez, tem caráter disciplinar e homogeneizante, e

compreende, segundo Trigo, duas grandes vertentes: a memória histórica (ou histórica e

literária) e a memória pop (ou pop e midiática), que se configurou mais recentemente e

atingiu seu ápice durante a globalização. Baseando-se em Walter Benjamin, o acadêmico

uruguaio diz que a memória instrumental surgiu durante a crise da memória pré-moderna,

erguida sobre as ruínas da memória coletiva e com o explícito propósito de apagar seus

rastros, esvaziar a história do “tempo-do-agora” (o Jetztzeit, na terminologia benjaminiana)31

e substituí-la por uma temporalidade acumulativa, homogênea e vazia, cujo corolário seria o

Estado-nação moderno (TRIGO, idem, p.88). Sua expressão mais imediata foi a memória

histórica e literária, “montagem narrativa, literária e pedagógica manufaturada por equipes

letradas com o fim de legitimar as origens, geralmente espúrias, do Estado” (idem, p.14).

 31 Utilizo a tradução de Márcio Seligmann‐Silva para o termo (2005, p.200). 

  

51

                                                           

Trata-se, em outras palavras, da memória transmitida pela chamada história oficial,

constantemente reforçada em eventos (comemorações cívicas, aniversários, festivais) e em

lugares como museus, cemitérios, santuários, entre outros32. Uma memória produzida pelos

aparatos ideológicos do Estado, guiada primordialmente por objetivos nacionalistas, e que

elimina tudo que é diferente, transgride a norma ou se desvia da eterna repetição do mesmo.

Através da moderna disciplina da História, esta memória promove, conforme Trigo, “o mais

brutal disciplinamento das sempre plurais memórias culturais” (idem, p.88).

Já a memória pop e midiática – também chamada de “memória internacional-popular”

por Renato Ortiz (2004, p.132) – é formada pelo conjunto mundial de referências forjadas no

interior da sociedade de consumo: estrelas de cinema, cantores de rock, marcas de cigarro,

refrigerantes, propagandas, filmes e uma extensa gama de outros elementos que transmitem

aos indivíduos contemporâneos a sensação de familiaridade onde quer que estejam,

transformando em lugares os não-lugares da pós-modernidade. Nesta memória, diz Ortiz,

“inscrevem-se as lembranças de todos”. Sua principal diferença em relação à memória

histórica é que, enquanto esta se move por teleologias nacionais, a memória pop segue a

lógica do capital e da mercadoria. Ambas, porém, ganham materialidade sob regimes de

produção, circulação e consumo, e precisam necessariamente do esquecimento para existir.

Embora seja parte de qualquer memória – “seu vago porão”, “a outra face da moeda”,

como escreveu Borges –, o esquecimento pode ser voluntário e produtivo, ou compulsório e

silenciador de diferenças, como no caso das memórias instrumentais. Detendo-me um pouco

na memória histórica – que nos interessa particularmente neste trabalho –, Ernest Renan já

apontava, em 1892, que o esquecimento e o erro histórico eram condições essenciais à

construção das nações, porque toda formação política nasce em meio à violência, e “a unidade

se faz sempre brutalmente” (RENAN, 2006, p.5-6). Nietzsche considerava esse tipo de

 32 Sobre os lugares da memória histórica, ver NORA, Pierre (ed). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. 

  

52

esquecimento um dos atributos negativos do que denominou “história monumental”, que

envolve um passado heroico, grandes homens, acontecimentos gloriosos e é – dos três

modelos historiográficos identificados por ele – o mais influente na construção de um

imaginário social. Segundo o filósofo alemão, se a vontade de esquecer é imprescindível para

a vida, para a ação e para a liberdade, a amnésia estabelecida pela história monumental produz

um êxtase absorto e estático frente a uma imponência que não pode ser repetida (TRIGO,

2003, p. 90).

Analisando a formação do Estado uruguaio e o processo de construção do imaginário

social do país, Trigo mostra o esquecimento coletivo imposto pelos aparatos ideológicos

estatais com o intuito de apagar as inúmeras diferenças na comunidade nacional e esconder o

processo de criação da memória histórica – sedimentando a crença na verdade absoluta da

história oficial e dotando a nação de um caráter atemporal. A escolha póstuma do general

Artigas como prócer do Uruguai é apenas um, entre os vários exemplos que dá no livro, da

confecção de um imaginário nacional enganoso, que, abrindo caminho entre inúmeras

contradições, respaldou o poder hegemônico distorcendo os fatos e aniquilando potenciais

adversários. Como assinala Trigo, muito depois de morrer, Artigas foi eleito fundador de um

Estado pelo qual jamais lutara: muito pelo contrário, havia sido o representante máximo de

uma categoria abominada – os caudilhos – que, só depois de aniquilada, foi incorporada

inofensivamente à história oficial. “O circuito é perfeito: eliminação social - neutralização

política - revisão histórica - apropriação ideológica: glorificação em bronze e praça pública e

efemérides de almanaque comercial”, descreve Trigo (idem, p.127).

O acadêmico explica também como foram sendo construídos, ao longo dos séculos

XIX e XX, alguns dos pilares do imaginário nacional uruguaio, como a ideia de uma

sociedade europeizada e superior à dos países vizinhos (a “Suíça da América”), a crença na

qualidade incomparável da educação pública e a confiança no espírito valente e perseverante

  

53

                                                           

do uruguaio (a garra charrúa, consagrada após a vitória contra o Brasil na Copa de 1950, em

um Maracanã lotado). Embora alguns desses mitos33 continuem vivos na diáspora, Trigo

mostra que, com o tempo, boa parte se diluiu ou, inclusive, desmoronou entre as pessoas

entrevistadas para seu trabalho. Aparentemente nenhuma delas acredita, por exemplo, que

itens como a mobilidade social e a democracia participativa – anteriormente associados à

imagem de um Estado protetor e equitativo – façam realmente parte dos atributos da nação

uruguaia. É claro que o perfil da comunidade de Fitchburg – que migrou quase sempre por

razões econômicas e hoje trabalha principalmente no chão de fábrica, com baixa qualificação

técnica e, no máximo, ensino médio – torna mais explicável a quebra de expectativas frente ao

país deixado (da mesma forma que a dificuldade com o idioma acentua o trauma que Trigo

aponta como característica marcante da experiência de migrar). Porém, o progressivo

desprendimento em relação à memória histórica e ao imaginário nacional ocorre, em maior ou

menor grau, independentemente da condição cultural ou econômica do sujeito que se desloca.

É o próprio ato do deslocamento que deflagra uma negociação identitária que tem na memória

um de seus principais campos de ação.

Em sua dupla condição psicológica e social, a memória não é a mera repetição e

recuperação das marcas do ontem, mas a construção de um passado posto a serviço de um

projeto de futuro a partir das circunstâncias do presente (TRIGO, 2003, p.93). Longe do país

de origem, com novas exigências imaginárias, os sujeitos reformulam suas lembranças

vivenciando um processo de “esquecimento criativo” que os distancia, cada vez mais, do

imaginário nacional e de sua desacreditada memória histórica. Trigo menciona, por exemplo,

que os migrantes de Fitchburg, com o passar dos anos, praticamente não celebram mais as

festas nacionais do Uruguai e raramente invocam seus símbolos pátrios. Ao mesmo tempo,

 33 Uso a palavra em sua acepção mais ampla. Trigo prefere o termo imaginemas – “polos magnéticos de identificação simbólica que suturam o sujeito ao imaginário social”. (2003, p.82)   

  

54

através de práticas intersubjetivas cotidianas, como as partidas de futebol entre amigos nos

fins de semana, conseguem resgatar memórias culturais até então esmagadas.

Esquecer de lembrar é outra forma de afirmar a vida dia a dia. Diferentemente da amnésia social, que implementa o corte seletivo e pedagógico de acontecimentos históricos, o esquecimento criativo promove uma irônica historicização da história, colocando em relevo sua materialidade discursiva e permitindo assim recuperar as marcas do diferente na trama do discurso, revelar a reminiscência como representação, e restabelecer a memória como lócus da alteridade. (TRIGO, 2003, p.90-91).

É neste momento de cisão identitária que irrompe a chamada imaginação radical,

“corrente coletiva de caráter centrífugo que se levanta sobre a hegemonia centrípeta e

pedagógica do imaginário social” (TRIGO, idem, p.14). Trata-se da força questionadora com

a qual o indivíduo, que o imaginário social/nacional quisera domesticar e reduzir a mero

sujeito-súdito, afirma-se como sujeito-agente e, através de práticas antagônicas, no

questionamento tenaz e persistente do imaginário social, conquista a autonomia (idem, p.80-

85). Trigo recorre ao conceito de interpelação ideológica formulado por Althusser (1971;

1972) para explicar o funcionamento do imaginário social. Para se sentir interpelado e se

tornar sujeito, o indivíduo precisa acreditar-se eleito pelo chamado da ideologia – quando, na

verdade, é ele que instaura, pelo ato da identificação, a precedência da ideologia. O carisma

do Rei, diz Trigo, não é inerente à pessoa do rei, mas fruto da posse dada por seus súditos e

do efeito ideológico dos rituais ao redor do trono. Da mesma forma, é o próprio sujeito, ao

comportar-se como súdito, que autoriza a autoridade do imaginário social, pois se compraz

com sua obediência. Assim como a ideologia, o imaginário social/nacional é sustentado pelo

prazer que provoca no indivíduo – o prazer do pertencimento, o prazer que une os membros

de uma comunidade em torno de uma fantasia coletiva. Quando essa corrente libidinal

começa a apresentar falhas, quando os indivíduos não se sentem mais interpelados pelos

antigos imaginemas (a “Suíça da América”, a garra charrúa, o generoso Estado uruguaio) e

se tornam cada vez mais alheios à memória histórica, os resíduos de prazer insatisfeito

  

55

estimulam o resgate das memórias culturais soterradas e convocam o ímpeto combativo da

imaginação radical, capaz de desconstruir a “história oficial” e sugerir novas formas de pensar

o nacional.

Por indevidas que sejam as generalizações, é impossível não identificar coincidências

entre o processo descrito por Trigo e o trabalho desenvolvido por inúmeros escritores em

deslocamento, que retornam ao passado de seus países com o olhar crítico e desmistificador.

A revisão da “história oficial” e o questionamento ao imaginário nacional são, talvez, as duas

marcas distintivas de Los informantes. Como mostrarei no terceiro capítulo, o romance

desfere, do início ao fim, reiterados ataques aos frágeis orgulhos colombianos, e tem em sua

própria base a efetiva exumação de um episódio excluído da memória histórica do país.

O indivíduo que permaneça toda a vida na mesma comarca, no mesmo imaginário, na mesma cultura, mostrará, em regra geral, uma alta identificação com tais coordenadas espaço-temporais; apresentará, em outras palavras, uma identidade sólida, estável, conformada por e conforme com uma realidade social com visos de imutável [...]. Mas quando esse indivíduo viaja física, ideológica e imaginariamente para fora de sua comarca, de seu imaginário ou de sua cultura, há de experimentar um duplo deslocamento no tempo e no espaço que com certeza lhe demandará alguma forma de negociação e agonia. Sua identificação com a totalidade espaço-temporal da sociedade de origem se verá cindida entre o aqui-agora da nova realidade cotidiana e o então-lá confinado à memória [...]. (TRIGO, 2003, p.101-102).

É como se a irremediável fissura identitária não admitisse mais nenhum tipo de

complacência com o imaginário nacional. Analisando um amplo corpus de hispano-

americanos deslocados – a maioria estabelecida na Europa –, Fernando Aínsa (2005) nota, em

todas as narrativas, o regresso impossível constatado, mais cedo ou mais tarde, pelos

escritores. Testemunhas de um “mundo paralelo” que conservam na memória, os autores

lembram com temor e nem sempre com nostalgia da terra que deixaram, diz Aínsa. Chamam

atenção os longos períodos que, após a mudança, vários tardam para escrever sobre a pátria

em que nasceram. Para Juan Gabriel Vásquez, foram oito anos entre sua saída da Colômbia e

a publicação de Los informantes, seu primeiro livro sobre o país. Estaria aí o esquecimento

  

56

criativo mencionado por Trigo? “Uma das consequências de emigrar é que, depois de um

tempo, desaparece a ilusão da compreensão: aquela ilusão apenas humana de que você

entende o lugar de onde vem”, comentou Vásquez (2009, p.187), em breve ensaio sobre a

condição de escritor deslocado.

Outros autores relatam situações parecidas, como o hispano-argentino Andrés

Neuman, que se mudou para a Espanha em 1991, aos 14 anos, e permanece vivendo no país:

Assim como o escritor consciente escreve a partir da estranheza de sua língua materna, a memória literária precisa de certa distância para poder ser fértil. Creio que uma distância relativa é indispensável para lembrar as coisas com vigor e liberdade, ou seja, para inventar as lembranças. Durante os primeiros seis anos de minha vida na Espanha, fui incapaz de escrever uma mísera linha sobre minha cidade natal. Só depois de estabelecido em outro país, outra cultura e outro dialeto, meio que por acaso, me veio à mente uma história ambientada na Argentina. Na época, entre meu lugar de origem e mim havia a distância justa: conhecia-o bem, mas tinha começado a esquecê-lo e, portanto, a ser capaz de imaginá-lo. Sem memória profunda não há ficção que valha. (CORRAL, 2004, p.43, grifo meu)

Frequentemente, é o próprio percurso da memória, com suas glórias e abismos, suas

veredas e encruzilhadas, que captura os escritores e se transforma no tema principal de suas

obras. Assim como Neuman em Bariloche (1998) – em que o quebra-cabeça do protagonista

representa o jogo de forças entre lembranças e esquecimento –, Vásquez faz em Los

informantes uma intensa e percuciente reflexão sobre a memória. Ao longo da narrativa,

encontram-se não apenas grandes questões para a filosofia como alguns dos principais

dilemas com que a América Latina se defronta na hora de trazer à tona o passado de horrores

cometidos no século XX. Em países marcados por traumas, o que deve ser lembrado e o que

pode ser esquecido? Como afrontar o futuro com o peso asfixiante do passado? É possível

perdoar? Até que ponto são confiáveis as reconstituições feitas pelas testemunhas? Nas

próximas seções, dialogando primeiro com a filosofia, depois com a crítica cultural e literária,

abordarei algumas dessas questões, abrindo o caminho para a análise de Los informantes no

capítulo três.

  

57

                                                           

2.2 Entre a lembrança e o esquecimento

Retornar ao passado de um país é percorrer um território fraturado. É tocar em feridas

abertas, caminhar entre as tensões opostas e igualmente fortes da lembrança e do

esquecimento, da palavra e do silêncio, do desejo de perdão e da exigência de reparação.

Nesta geografia de correntes cruzadas, em que as fissuras não escolhem lugar para irromper

(uma mesma casa, uma mesma família), os dilemas são inúmeros e raramente corriqueiros. O

que lembrar? O que esquecer? Quando e como perdoar? As escolhas do escritor, bem longe

da imparcialidade, terão o duplo efeito de qualquer narrativa: o de iluminar alguns aspectos

mantendo, obrigatoriamente, outros na escuridão. “A narrativa comporta necessariamente

uma dimensão seletiva”, diz Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento (2007,

p.455).

Diante disso, e alertando para os riscos de abusos nos dois lados, Ricoeur propõe a

busca de uma “justa memória”, que resultaria do equilíbrio entre lembrar e esquecer. Neste

esforço de múltiplas e complexas variáveis, uma das premissas é a necessidade de não

esquecer episódios como o Holocausto (ou Shoah, no termo hebraico) e outros genocídios e

crimes contra a humanidade34. Como observa Jeanne Marie Gagnebin (2006), desde que

Adorno e Horkheimer publicaram a Dialética do esclarecimento, em 1947, a exigência de não

esquecimento tornou-se central nas reflexões sobre a memória, embora seu principal objetivo

– evitar que atrocidades semelhantes voltassem a ocorrer – não tenha sido atingido, pois a

lista de horrores “é longa e continua se alongando, de Srebrenica a Jenin” (GAGNEBIN,

2006, p.60 e p.100).

Ainda assim, diz ela, a luta é necessária, “porque não só a tendência a esquecer é forte,

mas também a vontade, o desejo de esquecer” (idem, p.101). Harald Weinrich (2001) ressalta

 34 Entre eles, certamente, os assassinatos, torturas e outras violações promovidas pelas ditaduras latino‐americanas. 

  

58

                                                           

a importância de não se confundir o esquecimento particular com o esquecimento público,

que, se em algumas situações extremas pode ser induzido e até mesmo decretado (por

mecanismos como as anistias e as prescrições), em outras deve ser infatigavelmente

combatido, como nas violações aos direitos humanos – consideradas, aliás, imprescritíveis

pela legislação internacional. Não por acaso, no elogio ao esquecimento que faz em sua obra

mais conhecida35, Weinrich introduz, como contraponto indispensável, um capítulo intitulado

“Auschwitz e nenhum esquecimento”.

Segundo Ricoeur, com exceção dos casos de danos cerebrais, nenhum acontecimento

que nos marcou desaparece definitivamente da memória. Baseando-se em Freud e Bergson

(“dois advogados do inesquecível”), o filósofo francês afirma que a impressão psíquica do

que vivemos (“os rastros psíquicos” ou “as imagens”, como dizia Bergson) permanecem em

um plano inconsciente, num estado de passividade que constitui um “esquecimento de

reserva”. Trata-se, em outras palavras, de um esquecimento reversível, que alimenta a crença

de que “esquecemos muito menos coisas do que acreditamos ou tememos” (RICOEUR, 2007,

p.448). Apesar disso, para que lembranças dadas por perdidas sejam reencontradas, para que

ocorra o “milagre do reconhecimento” – quando o enigma da memória nos depara com a

presença viva da coisa ausente –, é preciso vencer diversos obstáculos que, em nível

individual e coletivo, colocam-se no caminho da recordação. Ricoeur agrupa-os em três

categorias: a memória impedida, a memória manipulada e o esquecimento comandado.

A memória impedida se verifica no nível psicopatológico, principalmente após

situações dolorosas, quando os indivíduos desenvolvem mecanismos de defesa que

impossibilitam o trabalho de luto necessário para superar as perdas. Comportamentos como a

repetição compulsiva, o surgimento de lembranças encobridoras, o esquecimento de projetos e

outros sintomas frequentemente observados na terapia psicanalítica também emergem na cena

 35 Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 

  

59

pública, assumindo, segundo Ricoeur, proporções gigantescas na memória coletiva (idem,

p.455). Ele cita por exemplo a historiografia francesa no tratamento esquivo dado, após 1945,

ao colaboracionismo da República de Vichy.

Já a memória manipulada deriva principalmente da chamada história oficial, que se

vale da inevitável seletividade da narrativa para suprimir episódios, deslocar ênfases,

modificar os protagonistas, entre outras imposturas. “Ver uma coisa é não ver outra. Narrar

um drama é esquecer outro”, diz Ricoeur (idem, p. 459), acrescentando que, por esse motivo,

os abusos da memória serão sempre abusos do esquecimento. Imposta, celebrada,

comemorada, a “história oficial” se faz por meio de intimidação, redução e outros artifícios,

mas também se respalda, em alguma medida, na cumplicidade secreta de indivíduos, que

manifestam uma obscura vontade de não se informar e não investigar o mal cometido pelo

meio que os cerca (idem, p.455). Neste caso, a falta de memória traduz não apenas um

esquecimento passivo, mas também ativo, uma vez que envolve esquiva, fuga e o desejo de

não saber. Como resume Ricoeur, “a responsabilidade da cegueira recai sobre cada um”.

(idem, p. 456).

Por último, o terceiro grande entrave à recordação é o esquecimento comandado,

instituído pelo poder público mediante instrumentos legais, como editos e decretos. A anistia

é sua principal medida. Embora admita sua utilidade em circunstâncias excepcionais, Ricoeur

é geralmente contrário ao recurso, que chama de “caricatura do perdão” (idem, p.495) e

compara com a imposição de uma amnésia. Segundo ele, ainda que determinados episódios

exijam um dever de memória (desde que não resultem em excessos), não se pode falar em um

dever de esquecimento, sob a pena de privar a memória individual e coletiva de “uma

reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática” (idem, p.462). A história

contabiliza exemplos extremos de esquecimento comandado, como o decreto baixado em

Atenas em 430 a.c., proibindo a evocação dos conflitos recém-terminados, e o Edito de

  

60

                                                           

Nantes (1585), que tentava extinguir, após uma sangrenta guerra, as desavenças entre

católicos e protestantes franceses nos seguintes termos: “a memória dos fatos ocorridos

permanecerá apagada e adormecida como coisa não ocorrida; fica proibido renovar a memória

deste passado.”

É obviamente útil – é a palavra justa – lembrar que todo mundo cometeu crimes, pôr um limite à revanche dos vencedores e evitar acrescentar os excessos da justiça aos de combate. [...] Mas o defeito dessa unidade imaginária não seria o de apagar da memória oficial os exemplos de crimes suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado e, ao privar a opinião pública dos benefícios do dissensus, de condenar as memórias concorrentes a uma vida subterrânea malsã? (RICOEUR, 2007, p.462).

Ao defender uma política da justa memória, Ricoeur deixa claro que, além do

esquecimento imposto, também se opõe aos chamados “abusos da memória”, como

denominou Tzvetan Todorov no título de um livro36. Na obra, o linguista e ensaísta franco-

búlgaro critica as evocações, a seu ver excessivas, dos episódios traumáticos do passado.

Além de questionar os reais benefícios de tais lembranças, afirma que o “culto à memória”

pode limitar – como disse Nietzsche – o poder de ação sobre o presente.

Recordar agora com minúcia os sofrimentos passados talvez nos torne mais vigilantes em relação a Hitler e Petain, mas também nos permite ignorar as ameaças atuais – já que estas não contam com os mesmos atores nem assumem as mesmas formas (TODOROV, 2000, p.52).

Para Ricouer, mesmo a noção de “dever de memória” – surgida nos anos 1990 e hoje

um lugar-comum na França (HEYMANN, 2006) – requer uma visão ponderada, pois pode

representar, ao mesmo tempo, “o cúmulo do bom uso e o do abuso no exercício da memória

(2007, p.99). Segundo ele, além de expressar um imperativo – o que é problemático, pois

contraria o surgimento espontâneo da lembrança –, o conceito acaba servindo de justificativa

para a “obsessão comemorativa” descrita por Pierre Nora (1984, p.110) e duramente criticada

 36 Les abus de la mémoire. Paris: Arlea, 1995. Utilizo a edição espanhola (Los abusos de la memoria), publicada em 2000 pela editora Paidós, de Barcelona. 

  

61

por Todorov. Por isso mesmo, em diferentes momentos, Ricoeur esclarece que sua concepção

de “dever de memória” não envolve um apelo às comemorações, mas sim um chamado ao não

esquecimento público, como disse em entrevista a Vladmir Safatle, publicada em maio de

2005 pela Folha de S. Paulo.

Para mim, o dever de memória é indubitável enquanto obrigação em relação às vítimas. Mas a questão é saber no que consiste tal dever. Certamente ele não consiste em repetirmos, todas as manhãs: ‘Eu fui um assassino, eu fui um cúmplice’. Na verdade, o dever de memória significa que, em todas as minhas reflexões sobre minhas relações com os outros, eu sempre levarei em conta o que aconteceu. Eu nunca perderei de vista que, na Europa, no meio do século XX, houve o crime monstruoso da Shoah, isto independentemente da sua semelhança ou não com o Gulag, com os massacres em Ruanda. Mas eu não vou me deplorar durante toda a vida (RICOEUR apud SAFATLE, 2005).

Jeanne Marie Gagnebin aponta que a diferenciação entre não esquecer e lembrar já

aparece com clareza nos ensaios de Adorno sobre Auschwitz, escritos nas décadas de 1950 e

1960, quando “o peso do passado era tão forte que não se podia mais viver no presente”

(2006, p.101). Nesses ensaios, a exigência de não esquecimento tem dois significados

principais: não deixar que horrores semelhantes voltem a ocorrer e realizar um esforço

permanente de esclarecimento para obter uma melhor compreensão do presente. (2006, p.

100-103). Neste sentido, baseando-se em Walter Benjamin, a autora propõe a distinção entre a

atividade de comemoração (“que desliza perigosamente para o religioso ou, então, para as

celebrações do Estado, com paradas e bandeiras”) e o conceito de rememoração, que, “em vez

de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao

recalcado, para dizer [...] aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem à palavra”

(idem, p.55). A rememoração, em suma, envolve uma atenção maior ao presente,

especialmente às ressurgências do passado no presente. “A fidelidade ao passado, não sendo

um fim em si, visa à transformação do presente”, diz Gagnebin (idem, p.55).

Segundo ela, outro perigo dos abusos da memória é “a identificação, muitas vezes

patológica, por indivíduos, que não são necessariamente nem os herdeiros diretos de um

  

62

massacre, a um dos papéis da díade mortífera do algoz e da vítima” (2006, p.56). Referindo-se

às fraturas deixadas pela Segunda Guerra Mundial – tema de destaque em Los informantes –,

a ensaísta afirma que, mesmo que quisessem, as vítimas não poderiam se livrar das

lembranças, e que o maior desejo de esquecer sempre foi dos apoiadores do nazismo, os

algozes, que padeceram desde o término do conflito um enorme sentimento de culpa, a Schuld

alemã (GAGNEBIN, 2006, p. 101). Sentimento semelhante irrompeu após numerosos outros

eventos e Gagnebin reforça a necessidade de superá-lo:

Como já o ressaltou Nietzsche (que Adorno leu muito bem), quando há um enclausuramento fatal no círculo vicioso da culpabilidade, da acusação a propósito do passado, não é mais possível nenhuma abertura em direção ao presente: o culpado continua preso na justificação, ou na denegação, e quer amenizar as culpas passadas; e o acusador, que sempre pode gabar-se de não ser o culpado, contenta-se em parecer honesto, já que denuncia a culpa do outro (GAGNEBIN, 2006, p.102).

Recorrendo à teoria freudiana, Ricoeur propõe um “trabalho de memória”, capaz de

levar, se bem-sucedido, a uma memória feliz, apaziguada e reconciliada. O principal

ingrediente consiste em um esforço de rememoração, cujo objetivo é superar a repetição

compulsiva (a queixa incessante, a evocação infeliz dos mesmos acontecimentos) e, com isso,

afrontar o trauma por meio das lembranças. Freud chamou o processo de “perlaboração”. No

ensaio “Recordar, repetir, elaborar” (1914), ele observou que, ao invés de se lembrar, os

pacientes repetiam, estabelecendo um claro antagonismo entre as duas ações (grifo meu). A

transposição desta barreira, segundo Freud (apud Ricoeur 2007, p.84), exige coragem do

paciente, que deve olhar sua doença como um adversário digno de estima, uma parte de si

mesmo, na qual poderá colher recursos preciosos para a vida posterior. Mas, para que isso

ocorra, diz Ricoeur, é indispensável o trabalho complementar do luto, pelo qual o sujeito

consegue se desprender dos objetos de amor e de ódio até que possa, num segundo momento,

interiorizá-los novamente, num movimento de reconciliação semelhante ao proporcionado

  

63

pelo trabalho de memória. No campo oposto ao luto está a melancolia, que se caracteriza pela

perpetuação da queixa e a complacência para com a tristeza.

Segundo o filósofo francês, é no cruzamento entre os trabalhos de memória e de luto

que se abre o caminho para o perdão, pois os dois dotam o passado de um novo sentido que,

inevitavelmente, influencia as nossas disposições futuras (RICOEUR, 2005, p.35-40). Embora

o passado não possa ser apagado, está aberto a novas interpretações, que podem provocar uma

reviravolta em nossos projetos. Uma das possibilidades de mudança está em sua carga moral,

no peso da dívida que incide sobre o presente e o futuro.

É exatamente deste modo que o trabalho de lembrança nos impele para a via do perdão, na medida em que este abre a perspectiva de uma libertação da dívida, por conversão do próprio sentido de passado (idem).

Ricoeur afirma que o perdão constitui o horizonte comum da memória, da história e do

esquecimento (2007, p.465), e por isso dedica a ele o epílogo de sua obra sobre a tríade.

Desde o título do epílogo (“o perdão difícil”), o filósofo ressalta sua complexidade e chega a

dizer que alguns atos são imperdoáveis, entre eles os crimes como a Shoah e outros em que

também se enunciam noções como o irreparável e o imprescritível (RICOEUR, 2007, p.471).

A alternativa, segundo ele, é “desligar o agente de seu ato”: enxergá-lo como um culpado que

se tornou capaz de recomeçar (idem, p.498). “Sob o signo do perdão, o culpado seria

considerado como capaz de outra coisa além de seus delitos e faltas. Ele seria devolvido à sua

capacidade de agir, e a ação, à de continuar” (idem, p.501).

Diante disso, Ricoeur considera que o perdão acrescenta o elemento da generosidade

aos trabalhos de memória e luto, e destaca sua relação, inclusive etimológica, com o dom

(2007, p.486). O filósofo diz que, antes de exercê-lo – ou seja, antes de perdoarmos –, nossa

primeira relação com o perdão está no pedido, o que estabelece um regime de troca (de

demanda e oferta) capaz de “esfarelar” a noção de imperdoável (idem, p. 484).

  

64

O perdão é primeiro o que se pede a outrem, e antes de mais à vítima. Ora, quem se mete pelo caminho do pedido de perdão deve estar pronto para escutar uma palavra de recusa. Entrar na atmosfera do perdão é aceitar medir-se com a possibilidade sempre aberta do imperdoável. Perdão pedido não é perdão a que se tem direito [devido]. É com o preço destas reservas que a grandeza do perdão se manifesta (RICOEUR, 2005, p.35-40).

Pressuposto existencial do perdão, a falta (ou a culpabilidade) é uma experiência

“fundamentalmente solitária”, diz Ricouer. (2007, p. 470). Assim, ele indaga “a que poder, a

que coragem pode-se apelar para simplesmente pedir perdão”. Uma possível resposta é dada

por Hannah Arendt, para quem essa força reside na nossa capacidade de regrar o curso do

tempo (RICOEUR, 2007, p.492). Seja como for, o perdão é o caminho, segundo o filósofo,

para uma memória apaziguada e reconciliada. Uma memória que, como toda memória,

implica um esquecimento – mas não o esquecimento de fuga da repetição compulsiva, e sim

um esquecimento ativo e libertador (RICOEUR, 2005).

2.3 A memória testemunhal

A testemunha é a figura-chave no relato das atrocidades que marcaram a Era das

catástrofes – como Eric Hobsbawn (1995) denominou o período de horrores inaugurado pela

Primeira Guerra Mundial (1914-1919) e intensificado, vinte anos depois, com a Segunda

Guerra (1939-1945) e o Holocausto. Em Os afogados e os sobreviventes (1990), Primo Levi

conta que, quando a Batalha de Stalingrado deixou claro que o Reich alemão não poderia

mais vencer, os nazistas se mobilizaram para apagar os rastros do massacre. Nos campos de

concentração, dias antes da chegada dos aliados, a maioria dos arquivos havia sido destruída.

Os prisioneiros ainda vivos foram obrigados a desenterrar os mortos e queimá-los em estado

de decomposição (apud GAGNEBIN, 2006, p.116). Não fossem os livros de Levi e outros

sobreviventes, essas e outras iniquidades teriam, de fato, caído no esquecimento.

Na América Latina, como nota Beatriz Sarlo (2005, p.63), os testemunhos continuam a

ser a principal fonte sobre os crimes cometidos pelas ditaduras militares – que, somente na

  

65

Argentina, resultaram no desaparecimento de mais de 30 mil pessoas, segundo estimativas

oficiais. Sem o depoimento de vítimas e testemunhas, até hoje ninguém teria sido condenado

(idem, p.24). “Desde antes das transições democráticas, mas acentuadamente a partir delas, a

reconstrução desses atos de violência estatal por vítimas-testemunhas é uma dimensão jurídica

indispensável para a democracia”, afirma a ensaísta (idem, p.13).

Na literatura, o testemunhal passou a ser estudado como um gênero à parte, fortemente

associado a situações de trauma, mas não restrito a elas. No contexto latino-americano, o

testimonio desenvolveu uma vertente particular, de cunho social, servindo no mais das vezes

de veículo para setores excluídos, como indígenas, trabalhadores pobres, ex-escravos, entre

outros. Mabel Moraña (1995, p.488) definiu-o como uma “literatura de resistência”, que tende

a “lançar luz sobre as contradições do sistema reinante, a rebelar-se contra o status quo e a

solidarizar-se com reivindicações ou lutas populares que questionam a ‘ordem’ de sociedades

autoritárias, discriminatórias e excludentes”. Numa outra tentativa de síntese, René Jara disse

que: “o testemunho é uma narração de urgência que nasce naqueles espaços em que as

estruturas de normalidade social começam a desmoronar por uma razão ou outra” (apud

PRADA OROPEZA, 2001, p.14).

Mas, apesar de sua relevância, o testemunho nem sempre é suficiente, como mostra

Los informantes. Em determinados casos, deixa inclusive de ser possível, conforme observou

Berta Waldman em recente artigo (2009). De acordo com a professora, 66 anos depois do fim

da Segunda Guerra Mundial, tornou-se cada vez mais raro o relato direito das testemunhas,

quase todas mortas. Com isso, segundo ela, a memória do Holocausto está saindo da alçada

dos sobreviventes para consolidar-se na ficção, sem afetar em nada, em sua análise, a

permanência do tema. Desta inevitável transição, emerge, no lugar da memória testemunhal,

uma memória que o professor norte-americano James Young (2000) denominou de “vicária”

– ou seja, exercida por quem não viveu diretamente as experiências recordadas. Outra

  

66

                                                           

categoria surgida para designar praticamente o mesmo é a de “pós-memória”, proposta por

Marianne Hirsch (1997). Refere-se, em linhas gerais, à memória dos filhos sobre a memória

dos pais.37

Waldman encarrega-se de exemplificar:

Sabe-se que fatos não experimentados podem ser lembrados se fizerem parte de um cânone de memória familiar, escolar, individual, política (lembro que meu pai lembrava..., lembro que na escola ensinavam..., lembro que aquele monumento lembrava... etc.), e se traduzem num discurso distante de quem exerce a memória a partir da experiência vivida. (WALDMAN, 2009).

Embora Young e Hirsch não façam essa restrição, Waldman insere essa memória

essencialmente no plano ficcional (chama-a de “memória ficcionalizada”), mas pondera que,

mesmo no testemunho, ocorre a interferência de “um grão da memória vicária” (idem), pois

ele acaba extrapolando a experiência pessoal. Primo Levi, por exemplo, lembra que, após o

fim da Segunda Guerra Mundial, os dados sobre as deportações e o massacre nazista não

estavam disponíveis e tampouco era fácil determinar seu alcance e sua especificidade.

Segundo o escritor italiano (1990, p.6, apud WALDMAN), a maioria das testemunhas, tanto

de defesa como de acusação, desapareceu, e as que concordaram em testemunhar dispunham

de lembranças “cada vez mais desfocadas e estilizadas frequentemente, [...] lembranças

influenciadas por notícias havidas mais tarde, por leituras e narrações alheias”.

Diante disso, Paul Ricoeur se pergunta até que ponto o testemunho é confiável (2007,

p.171-172). Um primeiro fator de dúvida são as experiências feitas pela psicologia judiciária

em que várias pessoas assistem à mesma cena (gravada por uma câmera) e depois, instadas a

narrar o que viram, produzem versões não apenas divergentes entre si, mas discrepantes, em

vários aspectos, do capturado pela câmera. Além da má percepção, da má retenção e da má

reconstituição apontadas frequentemente por esses experimentos, há outras fontes de

 37 Não entrarei aqui nas críticas, bastante severas, que Beatriz Sarlo (2005) faz aos dois acadêmicos e suas conceituações teóricas.    

  

67

incerteza, como o tempo decorrido entre o acontecimento vivido e o ato de testemunhar, que

pode levar ao que Freud chamou, na Interpretação dos sonhos, de “elaboração secundária”,

ou seja, uma remodelação do sonho (neste caso da lembrança), a fim de torná-lo, entre outras

coisas, mais coerente e compreensível. Ricoeur também questiona um dos pilares da

credibilidade do testemunho: a ideia de que estabelece uma fronteira supostamente bem

marcada entre realidade e ficção. “A fenomenologia da memória confrontou-nos muito cedo

com o caráter sempre problemático dessa fronteira”, alerta o filósofo (idem, p.172).

Qualificando as discussões sobre memória como uma tarefa sensível mas ao mesmo

tempo indispensável na América Latina redemocratizada, Beatriz Sarlo propõe uma análise

crítica sobre a transformação do testemunho no recurso mais importante para a reconstrução

do passado. A ascendência, neste caso, não tem a ver com inexistência de outras fontes, mas

se refere à confiança quase irrestrita nos discursos em primeira pessoa, “no imediatismo da

voz e do corpo” (2005, p.23). Graças a isso, o testemunho se tornou um “ícone da Verdade”,

como descreve Sarlo, situando o fenômeno no âmbito da revalorização da subjetividade

promovida nas últimas décadas pelas ciências humanas – as mesmas que, nos anos 1960,

haviam decretado “a morte do sujeito”.

“Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia

estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal. E só uma caracterização ingênua da

experiência reclamaria para ela uma verdade mais alta”, afirma Sarlo (2005, p. 63).

A ensaísta ressalva, contudo, que alguns momentos históricos exigem a abstenção – ou

o diferimento – da aplicação de dúvidas metodológicas nos testemunhos, como nos

depoimentos prestados após as ditaduras militares na Argentina, quando as declarações das

vítimas diziam respeito não apenas a elas, mas constituíam “a matéria-prima da indignação e

o impulso para as transições democráticas” (idem, p.61). Sarlo adverte, no entanto, que o

imperativo da crença se verifica hoje não apenas em situações-limite – como a de ex-presos

  

68

                                                           

políticos e sobreviventes do Holocausto – mas em testemunhos corriqueiros e completamente

banais. “Todo testemunho quer ser acreditado e, no entanto, não carrega em si mesmo as

provas pelas quais sua veracidade pode ser comprovada” (idem, p.47).

Sobre este ponto, Ricoeur observa que, por se manifestar sempre diante de alguém, a

testemunha estabelece uma relação de diálogo que tem na confiança um dos requisitos

imediatos. Segundo o filósofo,

[...] a testemunha pede que lhe deem crédito. Ela não se limita a dizer: ‘Eu estava lá’, ela acrescenta: ‘Acreditem em mim.’ A autenticação do testemunho só será então completa após a resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o aceita [...] (RICOEUR, 2007, p. 173).38

Ricoeur afirma haver em nível social uma “confiabilidade presumida” nos

testemunhos, advinda, em primeiro lugar, da asserção da realidade factual do acontecimento

(isto é, da garantia de que ele realmente ocorreu) e, em segundo, do fato de a declaração ser

autenticada pela própria experiência do autor (atesta-se ao mesmo tempo a veracidade da

ocorrência e a presença do narrador no local). Essa confiabilidade torna-se maior com a

disponibilidade de a testemunha reiterar seu depoimento, disponibilidade com a qual o

testemunho se aproxima da promessa – “mais precisamente, da promessa anterior a todas as

promessas, a de manter sua promessa, de manter a palavra” (idem, p. 174).

Segundo Ricoeur (idem), a estrutura estável da disposição a testemunhar faz do

testemunho um fator de segurança no conjunto das relações constitutivas do vínculo social.

Da mesma forma, a confiabilidade de uma proporção importante dos agentes sociais o torna

uma instituição. O filósofo considera “uma regra de prudência” começar a confiar na palavra

de outrem e só depois duvidar, caso fortes razões inclinem a isso (idem, p.174-175). Sendo o

 38 Sobre a necessidade de um ouvinte atento que dê crédito às declarações da testemunha, o maior exemplo é o sonho recorrente de Primo Levi no campo de concentração, sonho que, ele descobriu, era sonhado por quase todos os outros prisioneiros. Nele, o escritor voltava para casa com a felicidade imensa de contar aos outros o horror passado e o fato de estar vivo; mas, no meio da narrativa, percebe com desespero que ninguém o está escutando, que todos se levantam e vão embora, indiferentes.   

  

69

“ato fundador do discurso histórico” (idem, p.504) – ou seja, o momento de transposição da

memória para a história, da oralidade para a escrita – é natural que o testemunho possa ser

posteriormente questionado e confrontado com outros depoimentos. “A história pode ampliar,

completar, corrigir, e até mesmo refutar o testemunho da memória sobre o passado, mas não

pode aboli-lo”, salienta Ricoeur (idem, p. 505).

Valendo-se principalmente da memória alheia, mas adotando procedimentos

historiográficos, como o amparo em documentos, a confrontação de dados e a transposição do

discurso oral para o regime escrito, o personagem narrador de Los informantes depara-se, no

curso de suas investigações, com a dupla condição da testemunha – ao mesmo tempo

essencial e insuficiente – e aproveita essa e outras inquietações para refletir sobre as

sinuosidades da memória, conforme veremos no próximo capítulo.

Após um longo percurso dedicado a considerações de ordem teórica, passo agora à

tarefa principal deste trabalho: a análise de Los informantes sob a ótica do deslocamento e da

memória.

  

70

                                                           

III DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES

3.1 O deslocamento em Los informantes

Há um dado marcante em Los informantes (2004). No emaranhado de vozes que o

narrador jornalista ordena para construir a história do livro, misturam-se tempos, lugares e

sujeitos, mas uma mesma característica une todos os testemunhos: a condição de

deslocamento em que vivem os seus emissores – imigrantes estrangeiros, migrantes

domésticos e indivíduos que, mesmo indiretamente, experimentam alguma forma de diáspora.

Estabelecido na Europa desde 1996 – nos últimos 11 anos em Barcelona –, Juan

Gabriel Vásquez mostra o sujeito deslocado nas mais diversas situações: do indivíduo que se

adapta e consegue prosperar na terra de acolhida ao que sucumbe, financeira e

emocionalmente, chegando às últimas raias da decadência. O exílio forçado – como o dos

judeus que fogem do nazismo – tem papel de destaque no livro, mas a presença e relevância

de personagens que se mudam por opção própria garantem uma abordagem mais ampla do

deslocamento.

Inspirado em um episódio pouco conhecido da história latino-americana – a criação de

listas negras e campos de concentração para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda

Guerra Mundial39 –, Los informantes é narrado em primeira pessoa, predominantemente pelo

jornalista Gabriel Santoro. Instaurando com seu relato uma estrutura metaficcional e

autorreflexiva no romance, esse personagem narrador conta seus dois esforços de

reconstrução memorial do período: o primeiro, a biografia da judia alemã Sara Guterman,

amiga do pai que chega à Colômbia em 1938 escapando do nazismo com a família; e o

segundo, desempenhado ao longo da narrativa, uma espécie de ampliação e revisão do relato

 39  No Brasil, foram criados 11 campos de concentração e chegou a ser proibido falar o idioma dos três países do bloco (FÁVERI, 2005).   

  

71

ento.

                                                           

anterior, na qual o pai de Gabriel, que havia escondido um segredo por toda a vida, passa a ter

participação ativa nos eventos narrados.

O livro tem quatro personagens principais: Gabriel Santoro pai (um respeitado

professor de oratória), Gabriel Santoro filho, Sara Guterman e Enrique Deresser (filho de um

imigrante alemão e amigo de Sara e Gabriel pai na juventude). Entre os personagens

secundários, os mais importantes são Angelina Franco (fisioterapeuta e amante de Gabriel

pai) e os imigrantes alemães Peter Guterman e Konrad Deresser (pais de Sara e Enrique).

Menos relevantes, porém úteis para esta análise, são a prostituta Josefina Santamaría (última

companheira de Konrad) e Margarita (esposa do alemão)40. Dos nove personagens, sete

vivem em condições de deslocam

Os imigrantes de primeira geração, Peter e Konrad, chegam à Colômbia por razões

diferentes e têm destinos diametralmente opostos: o primeiro foge do nazismo e consegue

prosperar com um hotel no interior; o segundo emigra por razões econômicas e acaba se

suicidando, à beira da miséria, após um período preso em um hotel que virara campo de

concentração. Apesar disso, os dois se unem na nostalgia em relação à Alemanha e nas

dificuldades de adaptação ao novo país. O aprendizado do idioma – rapidamente conseguido

por Sara – se ergue como maior barreira para eles. Ao tentar se comunicar – envergonhado

com o sotaque, os erros gramaticais e o sentido incerto de suas frases –, Konrad sente-se um

“produtor de verrugas”41 (VÁSQUEZ, 2004, p.142) e, por causa disso, torna-se cada vez mais

retraído e menos espontâneo.

Intimidados com a nova língua, sentindo-se no paraíso cada vez que encontram um

alemão (idem, p.144), Konrad e Peter personificam, por muitos momentos, a crença no poder

 40 Restam ainda outros personagens secundários, como o filho de Enrique, Sergio, que mencionarei no próximo tópico.  

41 Utilizo a tradução feita por Heloisa Jahn para a edição brasileira do romance (Os informantes. Porto Alegre: L&PM, 2010).  

  

72

redentor da diáspora – como se a distância da Alemanha automaticamente dissolvesse as

diferenças que fraturavam o país internamente. A esperança nesta comunidade harmônica é

materializada, em escala micro, no hotel da família Guterman, batizado sugestivamente de

Nueva Europa. Ali, a pedido do dono, divergências políticas (e preconceitos étnicos) são

deixados na recepção e a diversidade se equilibra quase sempre de maneira pacífica. A

suposição de que esse bom convívio poderia estender-se para todo o país é taxada de ingênua

por Sara, que diz que muitos judeus incorreram no mesmo erro (idem, p.147). De forma

parecida, Konrad aceita receber nazistas – e suporta, inclusive, recriminações a seu casamento

– por acreditar que, acima da adesão a Hitler, importava o amor compartilhado pela

Alemanha. Em seu ensaio “Nacionalismo e exílio”, um dos maiores estudiosos da condição

diaspórica, Edward Said, adverte para esse risco: “Como, então, alguém supera a solidão do

exílio sem cair na linguagem abrangente e latejante do orgulho nacional, dos sentimentos

coletivos, das paixões grupais?” (SAID, 2003, p. 50).

Imigrantes de segunda geração, Sara e Enrique mostram menor apego às origens

germânicas, mas mantêm uma identidade ambígua, sem vínculos rígidos com nenhuma

nacionalidade. No caso de Enrique, nascido na Colômbia e filho de mãe colombiana, é a

problemática relação com o pai que determina, em última instância, sua atitude frente à

ascendência alemã. Quando jovem, ao ver o constrangimento de Konrad com os colombianos

– sua eterna dificuldade de se comunicar, sua postura retraída, frágil e pusilânime –, Enrique

se aplica na direção contrária: jamais fala alemão em público e rejeita toda a herança cultural

que o pai tenta transmitir-lhe (a ópera, os cristais boêmios, os antepassados prussianos). Nos

conturbados anos de sua juventude, pensa muitas vezes que preferiria ter sido “um homem

sem passado, sem nacionalidade fixa e de sangue mestiço” (idem, p.212).

Após a morte do pai, Enrique declara ódio a Bogotá e desaparece da cidade, disposto a

começar uma nova vida. Consegue emprego em Medellín, casa-se com a filha do chefe e,

  

73

mais tarde, impossibilitado de ter filhos, adota um menino moreno, sem a aparência

germânica que, apesar do espanhol perfeito, sempre ostentou. Mesmo com tantas esquivas,

Enrique chega à velhice mantendo laços afetuosos com o idioma alemão e é descrito pelo

narrador como um estrangeiro, “pelo sobrenome e pela natureza, embora não por território”

(idem, p.310). Seu outro grande deslocamento – a mudança de Bogotá para Medellín – reforça

ainda mais a ambivalência de sua identidade, refletida num espanhol “a meio caminho” entre

as duas cidades (idem, p.297).

A figura de Sara Guterman, da mesma forma, incorpora de forma nítida a posição

intermediária que, segundo Aimée Bolaños (2010), caracteriza o sujeito diaspórico. Sua

desenvoltura nesse entre-lugar é ilustrada nas diversas vezes em que, por dominar o espanhol,

aparece como mediadora, ou conciliadora, em situações de encontro entre colombianos e

alemães. Uma das mais relevantes ocorre pouco depois de chegar à Colômbia, aos 14 anos,

quando atua como intérprete na reunião de um empresário suíço com o então presidente do

país, Eduardo Santos. Graças ao seu desempenho, a família obtém o decisivo apoio de Santos

para a construção do hotel que lhe daria sustento pelo resto da vida.

Descrita como uma mulher “prudente, incrédula, reticente” (VÁSQUEZ, 2004, p. 56),

Sara traduz o sentimento de “estar dentro e fora” apontado por Stuart Hall (2003, p. 416)

como definidor da experiência diaspórica. A personagem não se identifica mais com a

Alemanha, mas tampouco deixa de considerar a Colômbia um país estranho, mantendo um

olhar permanentemente crítico. O distanciamento de seu país natal e da identidade que

carregava ao sair de lá aprofunda-se com o passar do tempo: Sara afasta-se da religião

judaica, monta árvore de Natal para a família e, por mais que quisesse, não conseguiria

explicar o trânsito entre sua própria infância alemã e a que vivem seus netos, “pessoas tão

distantes de Emmerich [sua cidade natal], e da sinagoga de Emmerich, como era possível”

(VÁSQUEZ, 2004, p.81). As transformações de sua identidade são motivo de reflexão. “As

  

74

outras pessoas olham seus filhos e se veem neles”, diz. “Comigo isso não vai acontecer,

somos diferentes. Não sei se isso tem alguma importância”.

No processo de descoberta de sua nova identidade, a primeira visita à Alemanha, trinta

anos depois de mudar-se para a Colômbia, confirma o que disse Abril Trigo sobre o retorno à

terra deixada após um período de afastamento – trata-se, segundo ele, de “umas das

experiências máximas de estranhamento”, quando “o então-lá longamente preservado na

memória se torna irreconhecível no aqui-agora do reencontro” (TRIGO, 2003, p.56-58). A

viagem é feita com toda a família, em 1968, a convite da prefeitura de Emmerich, que reúne

exilados em uma iniciativa de “expiação pública”, como muitas que vinham sendo realizadas

em municípios alemães. Ali, entre lembranças modificadas e episódios esquecidos, Sara

percebe que a Alemanha já não é seu país, “pelo menos no sentido em que um país pertence

às pessoas normais” (VÁSQUEZ, 2004, p.190). Até mesmo o medo de cair no choro – que

temia, por contrariar a determinação do pai de não chorar em público – mostrou-se infundado

quando chegou à cidade de sua infância. Nem o túmulo de sua irmã mais velha, de quem mal

se lembrava, conseguiu emocioná-la, e a antiga sinagoga de Emmerich não lhe pareceu muito

mais do que um bloco de concreto. Anos depois, Sara muda-se de Duitama – onde ficava o

hotel da família – para Bogotá, e já não se dispõe a sair da cidade, mesmo com a

recomendação contrária dos médicos, que devido a um aneurisma aconselham-na a viver em

um lugar com menos altitude.

Entre os personagens do livro, o desejo de voltar à terra de origem é manifestado

apenas por uma minoria. Com exceção de Margarita – a mulher de Konrad, que retorna a Cali

após o confinamento do marido –, a decisão de permanecer é mantida até mesmo pelos menos

confortáveis, como Konrad. Embora pragueje contra Bogotá – como fazem, aliás, todos os

personagens –, a fisioterapeuta Angelina Franco diz que não voltaria a viver em Medellín,

porque “se mudar é ruim, desagradável, e se mudar duas vezes na vida é coisa de gente

  

75

                                                           

estranha” (idem, p. 233-234). A personagem mostra o peso do ambiente familiar e da vida

íntima no sentimento de pertença a uma cidade.42 Sua saída de Medellín, aos 18 anos, ocorre

pouco depois de o irmão abandonar a família e se dá a convite de seu chefe e futuro amante –

um homem, também ele, “mais de viajar, de estar em outros lugares”, que havia vivido nos

Estados Unidos e termina morto em um tiroteio numa boate bogotana (idem, p.239). Mais

tarde, o romance com Gabriel lhe traz o impulso de rever sua cidade natal, a fim de mostrar ao

namorado a casa em que vivera a infância e onde seus pais permaneceram até morrer,

tragicamente, em um atentado de traficantes em um supermercado de Bogotá. Quando nota

que Gabriel não voltaria mais ao hotel, Angelina sente-se mais uma vez “estranha, deslocada,

uma estrangeira” em uma cidade amiga que, por culpa dos homens, torna-se hostil (idem,

p.207). Como vingança, divulga os segredos do namorado, escandalosamente, em um

programa de televisão.

Josefina Santamaría, por sua vez, aparece rapidamente na trama para narrar os

momentos finais da vida de Konrad: a última ronda pela cidade, a penhora do disco favorito, a

compra de comprimidos e a morte agonizante em uma rua lotada de Bogotá. Seis meses

depois de chegar de Rioacha, no Caribe colombiano, Josefina ganhava a vida indo para a

cama com os sócios do Jockey (idem, p.125) e morava com Konrad em uma pensão barata,

“sem se importar minimamente de onde vinha, para onde ia, por que estava naquela situação e

como pensava sair dela (idem, p.134)”. Sua passagem pelo romance não apenas a situa entre

os informantes/testemunhas da narrativa (ao lado de Sara, Angelina e Enrique), mas a

incumbe de denunciar a hipocrisia e os preconceitos da sociedade, encenados simbolicamente

no principal marco histórico de Bogotá, a Plaza de Bolívar, em frente à catedral da cidade.

Seguindo Konrad em seus últimos passos, buscando-o no aglomerado de uma procissão

 42 Em outro momento, ao conjecturar sobre os prováveis rumos de Enrique, o narrador afirma que “apaixonar‐se é a melhor maneira de se apropriar de uma cidade, que o sentido de pertença é uma das consequências mais abstrusas do sexo” (idem, p.218). 

  

76

                                                           

religiosa, Josefina cruza lugares que lhe eram “estranhos e até hostis” (idem, p. 129), onde

senhoras “muito decentes” a insultavam “como os de dentro costumam insultar os de fora”.

“Uma negra, uma negra”, diziam duas ou três bocas, e os tantos rostos que a olhavam com

horror (idem, p.131).

Nesta galeria de personagens andarilhos, mesmo os que permanecem onde nasceram –

Gabriel pai e Gabriel filho – mantêm uma postura em vários aspectos deslocada do país e da

cidade que habitam. Em Gabriel pai, esse traço é mais nítido na juventude, quando fugia da

melancolia de casa e ia para o hotel da família Guterman pedindo “asilo” nos fins de semana

(idem, p.122). Em meio ao intenso convívio com alemães, numa espécie de exílio em seu

próprio país, Gabriel aprende a falar o idioma com fluência e conquista a confiança

generalizada dos imigrantes – entre eles, Konrad Deresser, a quem mais tarde delatará por

manter supostas relações com nazistas.

Gabriel filho, por sua vez, diz que não conseguiria passar mais de duas semanas fora

de Bogotá. Mas ainda assim se insurge, do início ao fim do livro, contra os lugares-comuns

colombianos e bogotanos. A fatuidade dos letrados. A inconsistência dos patriotas. A

violência. A morbidez. A fome de escândalos. Uma postura, em suma, descentrada.

Em um breve ensaio sobre a condição de escritor deslocado43, Juan Gabriel Vásquez

fez o seguinte comentário sobre Los informantes:

[...] quero pensar que todas as condições da minha experiência como inquilino – as incertezas, as particularidades de uma vida mais ou menos itinerante, a experiência fragmentada, a percepção, olhando de fora, de um país instável e, sobretudo, o tratamento desse país como território desconhecido – estão incluídas de maneira tácita no romance. (2009, p.188).

Não é preciso ler o ensaio para fazer essa constatação. Oito anos depois de sair da

Colômbia, Vásquez fez do deslocamento não apenas um ingrediente fundamental da trama,

 43 “Literatura de inquilinos”, in El arte de la distorsión. Madri: Alfaguara, 2009. 

  

77

mas uma postura discursiva para se pronunciar criticamente sobre seu país. Confirmando a

tese de Abril Trigo (2003) sobre o poder questionador da memória dos deslocados, o autor

resgata um episódio excluído da chamada história oficial e ataca duramente os pilares do

imaginário nacional colombiano. Seja a Colômbia dos anos 1940, em que imigrantes como

Konrad, inicialmente acolhidos, são espoliados e vilipendiados pelo governo; seja a dos anos

1990, arrasada pela violência que mata o amante e os pais de Angelina. O país em que o

assassinato de um líder popular é respondido com crueza redobrada que se alastra por uma

década. E onde até mesmo numa procissão religiosa uma mulher é marginalizada pelo fato de

ser negra. Um lugar, em suma, versado em expulsões (VÁSQUEZ, 2004, p.276), pátria que se

manifesta na morte e em situações dolorosas: nas cores do seguro de vida (idem, p.21), no

hematoma do pai com as formas de uma província do norte (idem), na camisa que o narrador

usa (Colombia nuestra), quando lhe contam que ficou órfão.

Relatores do nazismo, da violência e da exclusão, os informantes do livro são

testemunhas da experiência nacional fracassada. Dos desenganos de quem busca uma

comunidade que extrapole os limites da imaginação.

3.2 A memória em Los informantes

O romance de Juan Gabriel Vásquez mostra, numa esfera predominantemente privada,

a tensão entre lembrar e esquecer que marca países com traumas não superados. Se o

consenso buscado pelo Estado inclui políticas para apagar lembranças tidas por

inconvenientes, as desavenças do passado subsistem na memória dos que as viveram. Entre

estes, porém, há os que desejam desesperadamente vê-las esquecidas e os que aguardam a

vida inteira por uma oportunidade de evocá-las.

Os personagens Gabriel Santoro pai e Sara Guterman representam, respectivamente,

esses dois extremos. Renomado professor de retórica, repleto de condecorações dadas pelo

  

78

governo, Gabriel carrega em silêncio a culpa de ter traído Konrad, pai de seu amigo Enrique,

delatando-o, injustamente, por manter relações com nazistas. Sem jamais referir-se àqueles

tempos, cuidando até mesmo de afastar vestígios da juventude em seu apartamento, Gabriel se

refugia nos grandes oradores da antiguidade e demonstra permanente desprezo com o

jornalismo e outras atividades preocupadas com o contemporâneo (VÁSQUEZ, 2004, p.62).

Sara, ao contrário, empenha-se em preservar a memória desde a adolescência, quando

procurava reconstituir os dias de sua chegada à Colômbia com perguntas aos familiares.

Guarda documentos em diferentes pastas, organizadas por cores e outras distinções. Ao notar

que Gabriel faria de tudo para esquecer os episódios que levaram à morte de Konrad, assume

para si a responsabilidade de lembrá-los. “Quando ficou óbvio que ele ia esquecer tudo, [...]

ocorreu-me essa ideia tão idiota de ser a memória de uma outra pessoa, e a ideia ficou enfiada

em minha cabeça, não saiu mais” (idem, p.117). Seus anseios de rememoração, contudo, são

tolhidos pelos próprios filhos, que a impedem de contar aos netos os episódios

testemunhados. “Eu era e talvez ainda seja essa coisa tão terrível: uma memória que está

proibida de dizer que se lembra” (idem, p.118).

A Colômbia recriada no livro pende inegavelmente para o esquecimento. Apontadas

por Ricoeur (2007) como uma das práticas mais frequentes de manipulação da memória, as

comemorações nacionais – que muitas vezes não passam da evocação coletiva das glórias

pátrias – proliferam a ponto de constituir uma tradição (VÁSQUEZ, 2004, p.25). Os arquivos

públicos são tratados com desleixo, e importantes documentos históricos, como as cartas

familiares buscadas por Enrique, acabam se transformando em lixo. “O funcionário que me

deu a carta me confessou a verdade. Estes papéis eram cortados em tiras e postos ao lado da

mesa dos trâmites, para que as pessoas que tiravam as impressões digitais pudessem limpar os

dedos” (idem, p.316).

  

79

                                                           

Neste ambiente avesso a recordações – em que a memória, tantas vezes, é apenas uma

mercadoria descartável44 –, não é de se admirar que Gabriel pai figure quase como um herói,

objeto de culto da elite e cidadão modelo para o poder. Erigida sobre um discurso oco – em

que o manejo exímio das palavras contrasta com o veemente desprezo pelos significados –,

sua glória se sustenta, necessariamente, no desconhecimento de sua vida pregressa. Quando o

filho publica a biografia de Sara, Una vida en el exilio, remexendo no passado que o pai

gostaria de ver sepultado, sua reação beira o desespero. Desqualifica o livro publicamente, diz

que o tema já está superado e apregoa o esquecimento coletivo dos episódios relatados. “A

memória não é pública”, esbraveja (idem, p.74).

No antagonismo entre pai e filho, emerge a tensão entre oralidade e escrita que marca

todo o romance. Mestre do discurso falado, Gabriel pai tem como material “as palavras

pronunciadas e lidas, mas nunca escritas por sua mão” (VÁSQUEZ, 2004, p.24). Já Gabriel

filho, jornalista e escritor, acredita na capacidade ordenadora das palavras redigidas (idem,

p.34). Uma primeira leitura para este embate pode estar na noção de maior durabilidade da

escrita, em oposição à fugacidade da palavra oral (GAGNEBIN, 2006, p.11)45. Optar

exclusivamente pela palavra oral, como faz Gabriel pai, pode significar, em certa medida, a

opção pelo esquecimento46. Na retórica oficial, nos elogios públicos e até mesmo no sermão

de consolo do padre – que apura às pressas, com um bloquinho de repórter, informações sobre

 44 O comentário de Sara exemplifica: “Hoje em dia podemos sair e comprar memória na esquina, não é mesmo? Meus netos, pelo menos, já fizeram isso. Tomam um táxi e vão até a loja de computadores e compram memória [...]” (idem, p.118). 

45 Faço uma menção deliberadamente superficial a um debate amplo e imemorial para a filosofia. Matizes, ressalvas e contextualizações são dadas, exemplarmente, pela própria Gagnebin na obra citada.  

46 Chama atenção que um mesmo episódio – o suicídio de Konrad e, especificamente, o ataque ordenado por Enrique – determine tanto seu desejo de esquecimento coletivo como sua virtual impossibilidade de escrever.  Após a mutilação, Gabriel pai  tem de aprender a  redigir com a mão esquerda, mas  jamais o  faz de maneira satisfatória: “[...] escrever era um atestado de sua invalidez, de seu defeito, de sua vergonha” (idem, p.24). 

  

80

o defunto que enaltecerá –, as palavras faladas são copiosas e tantas vezes gratuitas no

universo descrito por Vásquez.

Mas, para Gabriel pai, a impossibilidade de esquecer está inscrita em seu próprio

corpo, nos quatro dedos da mão arrancados a faca em um ataque ordenado por Enrique. Com

exceção de Sara – sua confidente na época, que o socorreu depois do incidente –, todos creem

numa versão fictícia que criou para explicar a mutilação. Porém, para ele, a ausência dos

dedos será sempre um memorando indelével de sua traição. “Eu matei o velho, Sara. Ferrei

com a vida deles. Sou o culpado de tudo”, confessa, após ser atacado pelos homens enviados

por Enrique (idem, p.181).

Ao castigo imposto pelo ex-amigo – mais que os dedos decepados: a impossibilidade

de esquecer –, Gabriel pai acrescenta um voluntário esforço de lembrança, mantendo sempre

ao alcance o mesmo disco que Konrad conservou até o último dia de vida e que penhorou,

justamente, para comprar o veneno que o matou. “‘Tem de adiantar, saber que carreguei esse

peso estes anos todos, que teria podido esquecer tudo mas que não esqueci. Lembrei-me,

Enrique, não saí do inferno que é lembrar-se’”, diz, tentando sensibilizar o amigo traído

(idem, p.306).

Enquanto o suicídio de Konrad, em 1946, representa para Gabriel pai o nascimento do

sentimento de culpa – essa experiência “fundamentalmente solitária”, como definiu Ricoeur

(2007, p.470) –, a operação cardíaca a que é submetido, em 1991, marca o início de sua busca

por uma memória feliz, apaziguada e reconciliada, para seguir nos termos do filósofo francês.

Bem-sucedida, a cirurgia lhe incute a crença na possibilidade de uma segunda vida, na qual os

erros cometidos no passado poderiam ser corrigidos. Reconcilia-se com Gabriel filho,

permite-se lembrar com júbilo de experiências há muito soterradas (pela primeira vez canta

em alemão na frente do filho) e, após algumas semanas, decide empreender a última e crucial

medida para se ver definitivamente livre do peso que o esmaga há décadas: pedir perdão a

  

81

Enrique. Mas o amigo de juventude não está disposto à reconciliação: “‘Foi nesta mesma vida

que tudo aconteceu, Gabriel, e você está querendo fingir que foi em outra diferente. Mas não,

não é possível. Olhe, vou lhe dizer a verdade: prefiro que a gente deixe tudo como está.’”

(VÁSQUEZ, 2004, p.308).

Enrique finge ter esquecido certos fatos (idem, p. 299), mas não convence Gabriel

filho. Sua relação com a memória situa-se num ponto intermediário entre o silêncio de Gabriel

pai e o anseio de rememoração de Sara. Enquanto Gabriel mantém em segredo suas

lembranças (além de Sara, contara-as apenas à mulher já falecida), Enrique divide as suas não

apenas com a esposa, mas também com o filho Sergio, a quem mostra documentos e dá os

dois livros de Gabriel filho. O objetivo, segundo ele, é que Sergio o entenda, que intua como

foram as coisas naquele período. “A gente quer que os outros vivam o que aconteceu há

cinquenta anos. E como se faz isso? Deve ser impossível. Mas a gente tenta, inventa

estratégias”, justifica Enrique (idem, p.297).

Um dos riscos da tarefa está na postura agressiva de Sergio, que transfere para Gabriel

filho a mesma cólera que, ao ler seus livros e inteirar-se da traição, sentira por Gabriel pai. “A

questão também é comigo, não é só com o meu pai”, vocifera o filho de Enrique, tão logo vê

o jornalista assomar-se à porta de sua casa (idem, p.292). Gabriel filho, por sua vez, tampouco

deixa de se considerar um herdeiro e observa a permanência, inelutável, dos episódios que

separaram seus pais.

Era possível afirmar, em nosso caso, que o tempo se mexera? Que diferença fazia o momento exato em que o erro e a delação haviam ocorrido, o momento exato em que certa mão fora amputada? Os fatos estavam presentes; eram atuais, imediatos, viviam entre nós; os feitos de nossos pais nos acompanhavam. (...) (idem, p.293-294).

Diante disso, não lhe passa despercebida a ironia de ser hospedado pelo homem que se

recusara a perdoar seu pai e que o impedira, inclusive, de entrar em sua casa: “[...] a mesma

vida que negara a meu pai a única redenção possível, e que consequentemente me negara o

  

82

direito de herdar a redenção, agora determinava que eu, o deserdado, fosse hóspede por uma

noite daquele que se negara a nos redimir” (idem, p.319).

Ao entrar na casa de Enrique, Gabriel filho descobre um zeloso colecionador de

documentos, que guarda em fichários as cartas escritas por Konrad, as cartas que a mãe

enviou pedindo ajuda a senadores (e que obteve, facilmente, em um arquivo público) e a

notícia de jornal sobre a inclusão do pai na lista negra dos imigrantes do Eixo. Ao contrário de

Sara, porém, Enrique descarta a possibilidade de divulgá-las.

Talvez seja por pudor, talvez por uma questão de privacidade, chame como quiser. Eu tenho muito apreço por essas cartas, e parte do apreço é saber que ninguém mais as tem, que elas são minhas, que ninguém mais as conhece. Se fossem públicas, alguma coisa se perderia, Gabriel, uma coisa muito grande se perderia para mim, não sei se isso faz sentido para você. (idem, p.321).

Mas Gabriel Filho se apropria das cartas, assim como transformara em livro episódios

da vida pessoal do pai. Cabe a ele, no romance, levar adiante o dever de memória,

vasculhando intimidades, garimpando documentos e – sobretudo – fixando no papel

lembranças que, do contrário, não venceriam as interdições privadas e tenderiam a

desaparecer com o passar do tempo. Sua principal testemunha, Sara, muitas vezes aparece

como coautora – e até mesmo idealizadora – de algumas empreitadas, como uma série de

conferências sobre os 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. O objetivo seria revelar

fatos excluídos de sua biografia cuja discussão, em meio às comemorações, tornava-se, “mais

do que permissível, pertinente e necessária” (idem, p.266). Entre eles, textos “injustamente

ignorados até agora” (idem), como os que comprovam o declarado antissemitismo do

chanceler colombiano durante a Segunda Guerra Mundial, Luis López de Mesa.

Na justificativa que apresenta para a escrita de Los informantes (idem, p.260-261),

Gabriel filho afirma que, com a morte do pai, herdou não apenas suas faltas (e sua

possibilidade de redenção), mas também a obrigação de descobri-lo, interpretá-lo e averiguar

  

83

                                                           

quem foi na realidade. “Sou sucessor, sou executor e sou também fiscal, mas antes fui

arquivista, fui organizador”, define-se (idem, p.95).

Sem reduzir a uma alegoria, pode-se entender a figura paterna como uma extensão, em

certa medida, da própria nação colombiana – ambas familiares, mas desconhecidas ao mesmo

tempo47.

[...] depois de ter estado em lugares nos quais já estivera milhares de vezes e mesmo assim ter a sensação de não os conhecer, de jamais tê-los visto, lugares que me pareciam tão opacos e duvidosos quanto a vida do primeiro Gabriel Santoro –, foi depois de tudo aquilo, repito, que a ideia deste informe me ocorreu pela primeira vez. (idem, p.260).

Nesta dupla perspectiva – familiar e desconhecido, próximo e distante, dentro e fora –

nota-se ainda mais a presença do escritor deslocado, o colombiano radicado na Europa, que o

leitor já vinha pressentindo nos movimentos dos personagens e em várias observações nas

quais o narrador realça a percepção de que vem de fora o olhar que conduz a obra48. No

romance, tal como observa Abril Trigo em relação à memória em deslocamento (2003, p.93),

o passado ganha novo significado a partir das novas circunstâncias do presente – o que ocorre

tanto nas reminiscências de Sara (que, no “aqui-agora” da Colômbia, começa a ver o “então-

lá” da Alemanha com outros olhos) como nas investigações de Gabriel filho, que passa a ler

seu primeiro livro de outra forma depois de saber da participação do pai entre os delatores das

listas negras. Nos dois casos, a releitura só é possível após um distanciamento de uma

referência de origem – para Sara, a Alemanha; para Gabriel, seu pai, de quem se afasta por

três anos depois de publicar Una vida en el exilio.

 47 Longe de ser uma novidade, investigações sobre a figura paterna têm sido um caminho recorrente para escritores latino‐americanos interessados em examinar o passado de seus países. Entre os numerosos exemplos recentes, podemos acrescentar o romance “Bosque quemado” (2007), do chileno Roberto Brodsky, e as memórias “El olvido que seremos” (2006), do colombiano Héctor Abad.  

 48 Quando avança, por exemplo, nas conjecturas sobre os rumos de Enrique e se refere à “clareza dos desterrados”, à tristeza dos que ficam e à impossibilidade de regressar (idem, p.217). Ou quando fala que em seis meses Bogotá pode se tornar irreconhecível para quem deixou de viver na cidade (idem, p.251).  

  

84

                                                           

Além de resgatar, nas décadas de 1930 e 1940, um episódio excluído da “história

oficial” – conclamando, com isso, ao dever de memória –, Juan Gabriel Vásquez leva para o

romance o país convulsionado que viveu nos anos 1980 e 1990: a nação encurralada pelo

narcoterrorismo que chegou a gerar, entre numerosos frutos literários, um novo gênero da

ficção contemporânea: a chamada novela de sicarios, notabilizada, entre outras obras, pelos

romances La virgen de los sicarios (1994), de Fernando Vallejo, e Rosario Tijeras (1999), de

Jorge Franco. Curiosamente, a ação de Los informantes termina em 1995, um ano antes da

partida de Vásquez para a Europa – o que reforça, nos que atentarem a este detalhe, a crença

no caráter pessoal de boa parte das impressões deixadas sobre o país ao longo da obra49.

Referindo-se a uma cena de 1980, quando acabara de fazer 18 anos, Gabriel filho observa: “O

tempo das bombas e dos atentados, uma década inteira em que vivemos com plena

consciência de que voltar para casa à noite era questão de sorte, estava longe ainda”

(VÁSQUEZ, 2004, p.20). Mais adiante, quando recebe de Sara a notícia do acidente do pai, o

jornalista conta que “a escutava com uma certa distração e uma efêmera lástima altruísta, que

é como costumamos escutar a notícia de uma morte alheia na Colômbia” (idem, 97).

Violência, hipocrisia e esquecimento coletivo são alguns dos traços que, à distância,

Vásquez evoca do país que deixou há 15 anos. “Recordar”, disse ele recentemente, “é um ato

moral” (VÉLIZ, 2011). Ao mesmo tempo em que se lança a essa tarefa, ele faz de sua própria

matéria-prima – a memória – um rico tema de reflexão, como veremos a seguir.

 

49 Em seu romance mais recente, El ruido de las cosas al caer (2011), o protagonista é um jovem advogado atingido acidentalmente num ataque a um narcotraficante. Nas entrevistas de divulgação, Vásquez qualificou o livro como o seu mais autobiográfico, por tratar da insegurança que experimentou pessoalmente na Colômbia.   

  

85

3.3 As testemunhas e o jornalista

Embora obra de ficção, Los informantes tem na literatura de testemunho um intertexto

evidente. O primeiro ponto de contato está na própria trama, que conta o processo de

composição de dois livros inequivocamente testemunhais. O segundo está na origem e na

elaboração do romance, que teve como ponto de partida o testemunho de uma mulher “muito

parecida com a Sara Guterman do livro”, conforme disse o autor (DE MAESENEER e

VERVAEKE, 2010). Em pelo menos uma ocasião, Vásquez contou também que entrevistou

outras pessoas, seguindo um procedimento que geralmente adota ao escrever um romance:

“Procuro fazer com que os primeiros meses de contato com um material que me parece

novelesco estejam bem ancorados na realidade e tomem como base os testemunhos de pessoas

que tenham vivido o fato.” (SALAZAR, 2004). Assim, mesmo sem enquadrá-lo em nenhuma

das categorias da literatura testemunhal, podemos associá-lo a registros correlatos que,

independentemente da classificação, promovem o entrecruzamento de narrativa e história,

realidade e ficção, e expressam, segundo Mabel Moraña (1995, p. 488), a vontade de

“canalizar uma denúncia, dar a conhecer ou manter viva a memória de fatos significativos

[...]”.

Testemunhas se debatem entre a necessidade urgente de expressão e a consciência do

indizível e inimaginável que, muitas vezes, assume a experiência que viveram

(SELIGMANN-SILVA, 2003, p.46). Esta preocupação, que já aparece nos relatos de Primo

Levi, é manifestada pela personagem Sara Guterman no cuidado com que guarda documentos,

ciente de que é preciso mais do que a palavra (e a memória) para manter vivos os

acontecimentos passados. Ao mencionar a bateria de entrevistas que fez com Sara para

escrever Una vida en el exilio, Gabriel filho afirma que o que mais lhe chamou a atenção foi a

facilidade com que ela prestou o depoimento – “sem parábolas nem rodeios, como se

houvesse esperado toda a vida para contar aquelas coisas” (VÁSQUEZ, 2004, p.28). Principal

  

86

fonte do jornalista – narradora de um capítulo inteiro –, Sara é duplamente testemunha no

romance: primeiro, da experiência do exílio, que viveu pessoalmente; segundo, dos episódios

que culminaram com a morte de Konrad, dos quais tomou conhecimento pela confissão de

Gabriel e pelo relato de Josefina. Com isso, Sara se encaixa nas duas acepções que – de

acordo com Hugo Achugar (1992, p.59) e Émile Benveniste (1969, apud Ricoeur, 2007,

p.173), respectivamente – estão na origem da palavra testemunha: aquele que sobrevive a

grandes provações e dá testemunho de sua fé (derivada do grego mártir) e aquele que atua

como um terceiro e atesta determinado fato (derivada da palavra testis – de tertius – que

designava, no direito romano, as pessoas encarregadas de assistir a um contrato oral e

autenticar essa transação).

Narrando em detalhes os dias que antecederam a morte de Konrad, Sara atribui a

nitidez de suas lembranças à constatação, nítida na época, de que sua vida estava mudando

para sempre (idem, p. 117). Impactados por acontecimentos marcantes, outros personagens

revelam o mesmo afã de se comunicar. Assistindo à entrevista de Angelina, Gabriel filho

observa que a fisioterapeuta fala “sem parar”, “como se sua vida dependesse daquilo” (idem,

p.195). Em outro momento – ao encontrarem Josefina na pensão em que viveu com Konrad –,

Sara e Gabriel pai a ouvem “falar e falar e falar durante toda uma tarde” (idem, p. 134). Mais

adiante, Sara comenta que o filho de alemães Hans Bethke, um nazista que se mudara de

Barranquilla com a mulher, “falava por vinte” (idem, p.149) durante um jantar na casa dos

Deresser. E, algumas páginas à frente, queixa-se dos excessos verbais de Konrad, que, ao ser

visitado no Hotel Sabaneta, “importunava a todos com sua cantilena, sem que houvesse jeito

de que se calasse nem um segundo” (idem, p.164-165).

Para o jornalista-narrador, estes personagens quase sempre loquazes representam, na

maioria das vezes, o único caminho possível para obter informações que – manipuladas ou

reprimidas – desapareceram da esfera pública ou sequer foram transmitidas. Observando Sara

  

87

ao lado de seu pai, Gabriel reflete sobre a experiência acumulada por aqueles dois

“receptáculos de memória”, e se angustia com a ameaça de esquecimento que sua futura

morte representa (idem, p.85).

Eu recordava as palavras gravadas, erguia a cabeça para ver os outros comensais – minha família – e pensava isto que sempre é incrível: isso aconteceu com vocês. Isso, ocorrido há meio século, aconteceu com vocês, e aqui vocês estão, ainda vivos, funcionando como testemunho tangível de fatos e circunstâncias que talvez morram quando vocês morrerem, como se vocês fossem os últimos seres humanos capazes de executar uma dança andina que ninguém conhece, ou como se soubessem de cor a letra de uma música que nunca foi anotada e que se perderá para o mundo quando vocês a esquecerem (idem, p.85-86, grifo do autor).

Frágil, efêmera e muitas vezes coibida, a memória dos outros deve então ser capturada

e preservada, acredita o jornalista, que, munido de gravador, desenvolve o “curioso fetichismo

de conservar a voz alheia” (idem, p.82). Ficar sozinho em outras casas também está entre as

suas “perversões” (idem), pois sabe que a memória nem sempre se oferece, ávida, como a de

Sara. Para acessar as lembranças de Enrique e de seu pai – resguardadas pela culpa e pelo

rancor –, é preciso escarafunchar na vida íntima de cada um: fotos, livros, correspondências

particulares. Seu método de trabalho, invariavelmente, supõe a quebra de fronteiras entre o

público e o privado. “Gosto das vidas alheias; gosto de examiná-las com vagar. É provável

que ao fazê-lo viole vários princípios da discrição, da confiança, das boas maneiras. É muito

provável” (idem, p.222).

Mas, embora seja sua principal matéria-prima, a memória se mostra insuficiente, com

suas frequentes omissões (deliberadas ou não), imprecisões, modificações e os contumazes

acréscimos e desvios produzidos pela imaginação. Um primeiro revés para o jornalista vem de

sua maior informante, Sara, que, nas entrevistas que concedeu para sua biografia, preferiu

ocultar a presença de Gabriel pai entre os delatores das listas negras. “‘Não se faça de boba.

Você sabia? E, se sabia, por que não está no livro? Por que não me contou durante as

  

88

entrevistas?’”, indaga Gabriel filho, sobressaltado, ao descobrir que o pai tivera participação

ativa em alguns episódios relatados em seu primeiro livro (idem, p.77).

As revelações sobre seu pai também mostram que a memória, muito longe de

imutável, pode ser totalmente reformulada a partir de informações colhidas no presente. Ao

saber da traição a Enrique, Gabriel filho constata, de súbito, a radical modificação das

lembranças que tinha do pai. Diversos elementos de sua biografia – como uma carta enviada a

Sara e o discurso para os 450 anos de Bogotá – começam a lhe parecer, antes de tudo, alusões

cifradas ao dano provocado no amigo.

Ocorreu-me a ideia de que muito a contragosto eu acabaria por dedicar-me a isso, a rever recordações em busca das inconsistências, das contradições, das mentiras descaradas com que meu pai protegeu – ou melhor, fingiu que não existia – um fato mínimo, uma ação entre milhares de outras de sua vida mais cheia de ideias que de ações (idem, p.186).

No decurso de suas investigações, Gabriel filho lamenta ainda que acontecimentos

cruciais, como a delação feita pelo pai, sequer disponham de testemunhas, o que condena os

interessados (sobretudo Enrique, neste caso) à angústia de tentar reconstituí-los unicamente

pela via imaginária. Inerente ao processo de recordar, a imaginação aparece a todo instante,

principalmente quando faltam documentos e dados sólidos. E, se por vezes consegue chegar

bem perto dos fatos concretos (como quando Sara imagina a carta enviada por Margarita aos

senadores), outras vezes passa distante do que realmente ocorreu (como nas conjecturas do

jornalista sobre os rumos tomados por Enrique).

Os liames surpreendentes da memória às vezes se notam em pequenos detalhes, como

no sonho que Gabriel pai tem na UTI do hospital e do qual desperta com o desejo de se

reconciliar com o passado (idem, p.48-49). No sonho, que pode simbolizar o renascimento da

esperança para o personagem, Gabriel se surpreende ao ver sua falecida mulher em uma

sessão de cinema. Ao falar com ela, ouve-a dizer que continua viva e que lhe avisará quando

de fato tiver de morrer. Não por acaso, o filme que estava sendo exibido, “Escravo de uma

  

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paixão”, era o mesmo que – conforme nos diz Sara, muitas páginas à frente (idem, p.118-119)

– Gabriel e ela tinham ido ver uma semana antes de receber a notícia da morte de Konrad, e

que ficou, para ambos, como uma espécie de madeleine proustiana (uma madeleine amarga,

neste caso) dos episódios que culminaram no suicídio de Konrad. Ou seja, para Gabriel pai,

descobrir sua mulher ainda viva no filme significava a possibilidade de se reencontrar com o

passado que até então quisera ver sepultado.

Em diversos momentos do romance, o jornalista adverte o que há de escorregadio e

potencialmente traiçoeiro na memória, e por isso se ampara em documentos, confronta dados

e se permite a possibilidade de corrigir as informações obtidas em testemunhos.

Enquanto escrevo, verifico que no curso de vários meses acumularam-se sobre minha escrivaninha, mais do que as coisas e os papéis de que necessito para reconstruir a história, as coisas e os papéis que provam a existência da história e que podem corrigir minha memória caso seja necessário. Não sou cético por natureza, mas também não sou ingênuo, e sei muito bem a que magias baratas a memória pode recorrer sempre que lhe convém [...] (idem, p.94, grifo do autor).

Ponderações como esta se multiplicam ao longo do livro e mostram que, para

Vásquez, assim como para Beatriz Sarlo (2005), a valorização da memória não deve

significar, de nenhuma forma, uma renúncia à discussão crítica sobre ela. A estrutura

metaficcional do romance evidencia ainda mais esta dupla escolha. Até a última página, o

dever de memória caminha lado a lado com o imperativo da reflexão.

  

 

 

 

 

  

90

CONCLUSÕES

As observações feitas na análise do romance permitiram, em diálogo com o quadro

teórico apresentado nos capítulos anteriores, elucidar as principais questões que orientam este

trabalho. Chegado este momento, retorno ao problema identificado na introdução e às

perguntas norteadoras da pesquisa para ensaiar algumas conclusões.

Os deslocamentos, ao estabelecerem não apenas uma demarcação física – um “aqui” e

um “lá”–, mas também cronológica na vida dos sujeitos – um “antes” e um “depois”–,

produzem uma disposição particular à reconstrução memorial, derivada primordialmente dos

anseios de autorreflexão e busca identitária. Quando o deslocamento está associado ao trauma

e à violência, como é o caso tematizado no livro (o exílio forçado de Sara, o suicídio do pai de

Enrique ou as diversas perdas de Angelina), a reação dos sujeitos oscila entre lembrar e

esquecer.

O deslocamento gera uma propensão questionadora na memória, passível de romper

com os paradigmas anteriores e propor novas formas – mais críticas e inclusivas – de olhar a

comunidade nacional. Ao afastar-se do imaginário nacional e da memória histórica do país

deixado, o sujeito deslocado desenvolve frequentemente uma memória de inequívoca índole

crítica, capaz de desafiar a “história oficial” e desvelar as dissonâncias da suposta harmonia

nacional.

Publicado oito anos depois de Juan Gabriel Vásquez mudar-se da Colômbia, Los

informantes (2004) é um exemplo eloquente desta memória questionadora, resgatando um

passado de ignomínias silenciadas e escancarando um presente mais digno de vergonha do

que de orgulho pátrio.

Além de denunciar a violência, a hipocrisia e a superficialidade da Colômbia e,

principalmente, de Bogotá – cidade maldita para todos os personagens –, Vásquez promove

uma reflexão aguda sobre sua principal matéria-prima, a memória. Ao mesmo tempo em que

  

91

critica o esquecimento coletivo promovido pelo poder, o romance aponta as limitações da

memória e mostra as complexidades de se evocar acontecimentos traumáticos, optando,

duplamente, por uma memória desimpedida, mas jamais isenta de reflexão.

A tendência a uma memória questionadora – que se insurja contra o imaginário

nacional e a memória histórica do país deixado – é confirmada por outros autores deslocados,

que capitanearam nos últimos anos algumas das empreitadas mais arrojadas de retorno

literário ao passado latino-americano. Como mostro no primeiro capítulo, embora ocorra

desde as origens da literatura hispano-americana, o deslocamento dos escritores passou a

exigir novas leituras desde a década de 1980, considerando as inovações no campo da

historiografia literária e as diversas reflexões teóricas que colocaram em crise a ideia de nação

e identidade nacional como essência. Longe do projeto ideológico acalentado pela geração do

boom, os autores mais jovens assumem o deslocamento como uma maneira mais natural de

estar no mundo translocal de hoje, demonstrando menor apego à nacionalidade e ressaltando a

consciência de uma identidade múltipla e descentrada. Escrevem sobre seus países sem

nenhuma perspectiva militante nem o anseio de consolidar uma tradição.

Alargar o escopo da discussão – citando outras obras literárias sugestivas para o tema

– foi uma das minhas preocupações neste trabalho, com a esperança de contribuir para novas

investigações que continuem a avançar sobre o campo, ainda pouco explorado, das relações

entre memória e deslocamento. Conforme afirmei na introdução, a busca em bibliotecas e

bancos de teses de diversas universidades brasileiras indica uma considerável predominância,

no âmbito da literatura hispano-americana, de pesquisas sobre os deslocamentos da

modernidade – como as viagens modernistas do início do século XX e, principalmente, os

exílios políticos das décadas de 1960 e 1970. Há quem afirme, diante disso, que o assunto está

esgotado, como se todos os deslocamentos fizessem parte de um só fenômeno. Dizer isso é

ignorar a historicidade dos processos. É preciso estudar o sistema literário hispano-americano

  

92

nas condições atuais de cultura translocal, valorizando os deslocamentos e as práticas de

extraterritorialidade na hora de historiar seus processos literários.

Neste mundo transnacional – em que os deslocamentos assumem proporções inéditas

na história –, tornam-se ainda menos sustentáveis visões essencialistas da cultura; e ainda

mais imperioso compreender a experiência cultural como um conjunto de interações que

abrangem tanto o enraizamento quanto a mobilidade. Para a historiografia literária, é

imprescindível consolidar as revisões propostas há 30 anos por alguns dos mais iluminados

intelectuais latino-americanos, como Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar.

De lá para cá, a busca de novos parâmetros para historiar a literatura encontrou novas e

variadas formulações. Mas ainda enfrenta a enorme resistência dos que insistem nos

paradigmas limitadores de território, Estado-nação e unidade linguística.

  

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