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Faculdade de ArquitecturaUniversidade Tcnica de Lisboa
Dissertao de Mestrado em Design (opo Moda)
A Projeco de Moldes enquanto Componente Conceptual da Construodas Peas de Vesturio: A Adequao das Costuras Principais
Segmentao do Corpo Mvel
De: Ins da Silva Arajo Simes
Orientador: Doutor Fernando Jos Carneiro Moreira da Silva, Professor Associado daFaculdade de Arquitectura da Universidade Tcnica de Lisboa
Co-Orientador: Doutora Maria Jos Geraldes, Professora Associada da Universidadeda Beira Interior
Jri:Doutora Maria Clara Teles Mendes, Professora Catedrtica da Faculdade de
Arquitectura da Universidade Tcnica de Lisboa, presidente
Doutor Mrio Duarte Arajo, Professor Catedrtico do Departamento de EngenhariaTxtil da Universidade do Minho, vogal
Doutor Fernando Jos Carneiro Moreira da Silva, Professor Associado da Faculdadede Arquitectura da Universidade Tcnica de Lisboa, vogal
Setembro 2005
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ndice Geral | i
ndice
ndice Geral i
ndice das Figuras iii
Agradecimentos viii
Resumo e Palavras Chave ix
Abstract and Key Words x
1.1 Questo de Investigao 1
1.2 Definio do Problema 2
1.3 Objectivos 6
1.4 Abordagem 9
Captulo IIntroduo
1.5 Metodologia adoptada 11
2.1 Introduo 14
2.2 A Fundamentao do CorpoTridimensional
15
2.3 O Corpo Interior 18
2.4 O Corpo Funcional 28
2.5 O Corpo Exterior 41
Captulo IIO Corpo Tridimensional
2.6 Sumrio 56
3.1 Introduo 58
3.2 O Corpo Projectado 59
3.3 O Suporte Conceptual do Design deMoldes: Arte ou Cincia?
61
3.4 Os Paradigmas do Design de Moldes 73
Captulo IIIO Corpo Bidimensional
3.5 A Projeco Bidimensional do CorpoTridimensional
86
3.6 Sumrio 97
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ndice Geral | ii
4.1 Introduo 99
4.2 Uma Nova Concepo do Corpo 100
4.3 Os Casos de Estudo Seleccionados:Convergncias e Divergncias
103
4.4 Os vestidos de Madeleine Vionnet 120
Captulo IVA Adequao dos
Objectos Vestveis aoCorpo Mvel
4.5 As calas da Levis Engineered Jeans 127
4.6 Sumrio 134
Captulo VConcluses e
Recomendaes paraFutura Investigao na
rea
136
Referncias Bibliogrficas 147
AnexoGlossrio 157
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ndice das Figuras | iii
ndice dasFiguras
figura 1 Pintura a leo Nu Descendant unEscalier, de Marcel Duchamp, 1912(Ferrier e Le Pichon 1999).
2
figura 2 Diagrama de encaixe dos moldes decasaco de Homem, de Juan de Alcega,1580 (Alcega 2004).
5
figura 3 Diagrama de molde de veste hebraica, c.1000 a. C., de Carl Khler, c. 1870 (Khler2001).
7
figura 4 Diagrama dos msculos da coxadistendidos e contrados, de David L.Kelley (Kelley 1971).
33
figura 5 Diagrama dos ngulos formados pelofmur e pela tbia, em extenso (a e b) eflexo (c ), de David L. Kelley (Kelley1971).
35
figura 6 Pormenor do Livre des clercs et noblefemmes, manuscrito de Boccace, sculoXV (Fontanel 1992).
45
figura 7 Fotografia de saia de montar fixada esquerda de autor no identificado, damarca H. Creed and Co., c. 1900 (Fukai2002).
48
figura 8 Fotografia de poca de autor noidentificado referente ao processo devestir-se praticado na segunda metade dosculo XIX (OHara 1986).
51
figura 9 Adaptao dos diagramas de molde defato de macaco com indicao dealteraes a realizar aps o testedinmico da pea construda , de SusanP. Ashdown, 1989 (Watkins 1995).
55
figura 10 Diagramas de moldes de khiton e depeplos aberto da Grcia Antiga, de
62
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ndice das Figuras | iv
Anastasia Pekridou-Gorecki (adaptadospara a exposio intitulada Goddess,exibida no Metropolitan Museum of Art,Nova Iorque, em 2003 (Koda 2003).
figura 11 Pormenor da pintura LEnseigne deGersaint, de Jean-Antoine Watteau(1720) e diagrama de Janet Arnoldreferente a molde de vestido dos meadosdo sculo XVIII (adaptado para aexposio intitulada Patronen/Patterns,exibida no Mode Museum, Anturpia, em2003 (Sorber 2003).
63
figura 12 Diagrama de molde de casaco com capa,de Juan de Alcega, 1580 (Alcega 2004).
66
figura 13 Diagrama comparativo das propores dediversas seces do corpo e da projecode moldes, de H. F. Wampen, 1864(Aldrich 2000).
71
figura 14 Adaptao do diagrama de molde decasaco de Homem, de Golding, 1818(Giles 1987). Os diversos componentes dapea esto dispostos de modo a verificar-se a correspondncia entre as costurasdelineadas, nomeadamente, para cava,decote, ombro, nvel da cintura e alturatotal.
72
figura 15 Diagrama dos componentes frente,costas, manga e encaixe da cintura decasaco do sculo XVI, de Carl Khler, c.1870 (Khler 2001).
75
figura 16 Fotografia de cales dos sculos III e IVde autor no identificado (Khler 2001).
75
figura 17 Diagrama dos componentes exterior,interior e nesgas de calas do sculo XV,de Carl Khler, c. 1870 (Khler 2001).
75
figura 18 Diagrama dos componentes frentesuperior e inferior de vestido do sculo XII,de Carl Khler, c. 1870 (Khler 2001).
75
figura 19 Diagrama do componente costas decasaco com componente da gola includo,de Juan de Alcega, 1580 (Alcega 2004).
76
figura 20 Diagrama dos componentes frente ecostas de cales do sculo XVI, de CarlKhler, c. 1870 (Khler 2001).
76
figura 21 Diagrama de manipulao da pina depeito, de Alice Guerre, 1904 (Aldrich2002).
76
figura 22 Fotografia de tesouras de mola (a e b) e 77
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ndice das Figuras | v
tesoura de eixo (c) do sculo XVII, deautor no identificado (Groves 1968).
figura 23 Ilustrao de componentes de moldesfrente, costas e manga que correspondema projeces verticais anterior, posterior elateral do corpo, de Peggy Arajo (Arajo1996).
77
figura 24 Ilustrao da posio anatmica do corpo(a ) e da posio normal que o corpoassume quando erecto (b ), de JohnCroney (Croney 1971).
79
figura 25 Ilustrao de tiras marcadas comdimenses de clientes, de F. A. Garsault,1769 (Aldrich 2000).
82
figura 26 Ilustrao do registo esttico de medidasdo corpo posicionado verticalmente, deJohn Alcott Carlstrom (Carlstrom 1912).
84
figura 27 Tabela de Medidas de Benjamin Read,1815 (Aldrich 2000).
85
figura 28 Molde de casaco delineado pelo scio deEdward Giles segundo o sistema OldThirds (Giles 1987).
90
figura 29 Molde de casaco delineado por WilliamEdward Walker segundo o sistema queutiliza o permetro do peito como medidanuclear (Walker 1850).
92
figura 30 Molde de colete delineado por J. O.Madison, segundo o sistema que utiliza amedida do ombro como medida basilar(Madison 1904).
93
figura 31 Moldes de mangas delineados por GeorgeWalker, 1838 (Arnold 1972a). A manga deduas folhas (a) projectada a partir dasmedidas do corpo e as diversas mangaspresunto (b) so delineadas a partir dasdimenses determinadas pela moda.
96
figura 32 Fotografia de Hoyningen-Huene devestido de Madeleine Vionnet, publicadaem Novembro de 1931 na revista Vogue(Kamitsis 1996).
109
figura 33 Fotografia de autor desconhecido deMadeleine Vionnet publicada em 1934 narevista Harpers Bazaar (Kirke 1998).
111
figura 34 Fotografias de autor desconhecido decalas Levis 501 (Marsh e Trynka 2002).Estas calas, produzidas e utilizadas nadcada de 1890, foram descobertas numamina de prata situada no deserto Mojave,
113
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ndice das Figuras | vi
Califrnia.
figura 35 Etiquetas de Madeleine Vionnet,colocadas no interior das peas (Kirke1998).
120
figura 36 Fotografia do arquivo de MadeleineVionnet (a ) e ilustrao de BarbaraWoolworth Miller (b) referentes ao vestido#5 (Kirke 1998)
121
figura 37 Fotografia (a) e ilustrao (b) de Hideokireferentes ao vestido #12 (Kirke 1998).
121
figura 38 Molde do vestido #5 redesenhado pelainvestigadora a partir do esquema deBetty Kirke (1998).
122
figura 39 Molde do vestido #12 redesenhado pelainvestigadora a partir do esquema deBetty Kirke (1998).
124
figura 40 Etiqueta amovvel que identifica o modelode calas Lot #001 Standard Fit. Aetiqueta inclui os logos da marca Levis eda linha Levis Engineered Jeans.
127
figura 41 Fotografias da investigadora referentes scalas #001 Standard Fit da L e v i sEngineered Jeans. Nas perspectivasanterior, posterior e lateral estodestacadas as costuras que separam oscomponentes frente e costas das calas.
128
figura 42 Fotografias da investigadora referentes scalas 501 da Levis. Nas perspectivasanterior e lateral esto destacadas ascosturas que separam os componentesfrente e costas das calas.
128
figura 43 Diagrama de Elizabeth Crowther queilustra a distenso do corpo (Crowther1985).
129
figura 44 Diagrama de Elizabeth Crowther referente silhueta que as calas adquirem aps amanipulao da pea. (Crowther 1985).
129
figura 45 Fotografia da investigadora relativa aoscomponentes frente e costas das calas#001 Standard Fit da Levis EngineeredJeans. Sobre os mesmos esto indicadoso correr do fio e as posies da pina, dosbolsos e da braguilha.
130
figura 46 Fotografia da investigadora doscomponentes frente e costas das calas501 da Levi s . O correr do fio e asposies dos bolsos e da braguilha estoassinalados sobre os mesmos.
130
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ndice das Figuras | vii
figura 47 Diagrama composto pela investigadorareferente aos componentes frente ecostas das calas #001 da L e v i sEngineered Jeans desenhados a branco e das calas 501 da Levi s desenhados a cinzento. Os componentesfrente e costas de ambas as calas esto,respectivamente, sobrepostos, de modo aconfrontarem-se as suas construes.
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Agradecimentos | viii
Agradecimentos
Aos meus pais, o meu profundo agradecimento
por me terem apoiado se bem que, por vezes, com algum pesar na minha deciso
de transferir o meu interesse profissional pela Pintura em proveito da problemtica
profisso de designer de moda/figurinista apoiando-me na deciso de obter, no
Fashion Institute of New York, uma aprendizagem relativa ao design de moldes. Devo-
lhes a eles, tambm, o facto de me terem compelido a dar este passo to significante.
No menos significativa foi a confiana que o meu Orientador, Professor Doutor
Fernando Moreira da Silva e a minha Co-Orientadora, Professora Doutora Maria Jos
Geraldes, depositaram em mim relativamente ambiciosa investigao que propus
desenvolver. Reconhecendo a pertinncia da escolha de um projecto de investigao
na rea do design de moldes, concederam-me inteira liberdade para abordar os
diversos conceitos nucleares e complementares includos.
Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento, agradeo o apoio que me
deram em prol da recolha preciosa dos documentos relativos ao design de moldes
produzidos por alfaiates oitocentistas, os quais integram o esplio das New York
Public Library e da Fashion Institute of Technology Library.
Rita Pereira da Silva, assessora de imprensa e comunicao em Portugal da Levis
Iberia, o meu apreo pela oferta das calas #001 Standard Fit da Levis Engineered
Jeans e das calas 501 da Levis, estudadas como forma de ilustrao da questo de
investigao constituda.
No posso deixar de agradecer ao Richard que assumiu a funo de meu agente de
liaison junto aos exigentes, mas extremamente prestveis, bibliotecrios nova-
iorquinos; de referir a minha irm Ana, o meu cunhado Paulo e o meu irmo Nuno que
me esclareceram sobre determinadas questes que foram surgindo relativas s suas
reas profissionais; de mencionar, tambm, as minhas colegas de Mestrado Lusa
Barreto e Ana Couto que me apoiaram ao longo deste processo.
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Resumo e Palavras Chave | ix
Resumo
Nome: Ins da Silva Arajo SimesDepartamento: Arte e DesignOrientador: Professor Doutor Fernando Moreira da SilvaCo-Orientador: Professora Doutora Maria Jos GeraldesData: 25 de Maro de 2005Ttulo da Dissertao: A Projeco de Moldes enquanto Componente Conceptual daConstruo de Peas de Vesturio: A Adequao das Costuras Principais Segmentao do Corpo Mvel
A investigao efectuada tem como principalobjectivo determinar se projeco bidimensional de moldes subjaz a reflexo relativaao corpo mvel e dinmico, para alm da traduo referente ao corpo erecto eesttico.
A investigao estruturada em trs partes fundamentais: o Corpo Tridimensional;o Corpo Bidimensional; a Adequao dos Objectos Vestveis ao Corpo Mvel.
A primeira parte procura salientar a relevncia que uma abordagem interdisciplinar aocorpo tem para o design de moldes e, para tal, elementos da Neurofisiologia, daFilosofia, da Sociologia, da Cinesiologia, da Antropometria, da Ergonomia e daCincia e Engenharia do Conforto so includos.
A segunda parte debrua-se sobre os antecedentes conceptuais, tcnicos emetodolgicos relativos ao tpico seleccionado, incidindo, principalmente, sobre asbases operativa e produtiva caractersticas da projeco bidimensional divulgadas nosculo XIX.
A terceira parte detm-se na anlise de alguns exemplos como por exemplo, osvestidos de Madeleine Vionnet e as calas da Levis Engineered Jeans quetraduzem, embora de maneiras diversas, uma resposta questo colocada: aadequao das costuras principais construo do corpo mvel.
A anlise do conjunto das informaes includas determinada, ento, pela revisocrtica da bibliografia seleccionada e, ainda, pelos dados reunidos referentes aosobjectos estudados.
Palavras ChaveProjeco bidimensional/tridimensional; corpo
anatmico; corpo mvel; segmentao do corpo; conforto; desempenho.
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Abstract and Key Words | x
Abstract
The Projection of Patterns while being a Conceptual Factor for the Production ofClothing: The Suitability of the Structural Seams to the Fragmentation of the MovingBody
The main objective of the present research is todetermine if the relationship between the upright, still body and the moving body isreflected into the two-dimensional patterns made for clothing.
This investigation is structured in three major parts: the Three-dimensional Body; theTwo-dimensional Body; the Clothings Adequacy to the Moving Body.
The first part attempts in an interdisciplinary study about the body, stressing theimportance that such an approach has to the production of patterns. For that matter,several elements of Neurophysiology, Philosophy, Sociology, Kinesiology,Anthropometry, Ergonomics, and Science of Clothing Comfort are included.
The second part looks back at the conceptual, technical and methodologicalbackground of the selected topic, focusing on the operative and productivecharacteristics of the patternmaking created on the 19th century.
The third part studies some examples produced in the 20th century such as thedresses by Madeleine Vionnet and the trousers by Levis Engineered Jeans whichillustrate an answer to the question asked: the adequacy of the structural seams to theconstruction of the moving body.
The findings included in the dissertation are determined, therefore, by the selectedliteratures review, as well as the assembled data referring to the studied cases.
Key WordsTwo-dimensional/three-dimensional projection of
patterns, bodys fragmentation; upright and still body; moving body; comfort;performance.
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Introduo | 1
Captulo IIntroduo
1.1 Questo de Investigao O
elemento conceptual do design de moldes, baseado no corpo anatmico
que a antropometria classificou, interpreta e pondera o desempenho do
corpo mvel?
Esta a questo basilar que a investigao efectuada procura esclarecer no
mbito da rea do Design de Moda, enquanto disciplina produtora de objectos
que constroem o corpo, revestindo-o (Khler 2001:57-58). O designer de moda
Issey Miyake alega que hoje em dia, tornou-se do senso comum que um dos
fundamentos em que o ofcio da moda se apoia a relao entre o corpo e o
prprio tecido (Kirke 1998:13)1 e, se a palavra tecido por ele utilizada for
entendida como pea de vesturio, Modelagem e ao Draping que compete
dar corpo aos objectos concebidos pelos designers.
A questo formulada indica, ento, as duas direces fundamentais para o
desenvolvimento da investigao: uma corresponde ao design de moldes,2 ou
seja, a projeco bidimensional do corpo do consumidor annimo e a outra ao
corpo, ou o suporte conceptual e fsico das peas de vesturio delineadas.
A entidade denominada corpo , por sua vez e de acordo com as
preocupaes que constituem a projeco de moldes, entendida como
contendo dois preceitos em simultneo ou, como Stuart Hall (2002) refere,
1 Traduo livre de Today, it is common understanding that one of the fundamentals of
dressmaking lies in the relationship between the human body and the fabric itself.2 Termo equivalente a modelao, comummente utilizado em portugus, que se refere prtica
que abrange as duas metodologias mencionadas no segundo pargrafo.
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Introduo | 2
organizada em binrios contrastantes ou opostos (2002:10):3 o c o r p o
anatmico erecto e esttico que sustentou os estudos que a antropometria
desenvolveu desde o incio do sculo XIX para a indstria do pronto-a-vestir
(Winks 1997:7; e Aldrich 2000:163) e o corpo mvel flexvel e dinmico
que vive quotidianamente e na prtica, as peas de vesturio projectadas
(Entwistle 2000).
1.2 Definio do Problema O paradoxo
atrs exposto remete, significativamente, para uma dificuldade conceptual
prpria da projeco de moldes enquanto representao visual e bidimensional
do corpo tridimensional, traduzvel nas seguintes questes: 1. como possvel
a esta prtica que traduz um nico momento, prever todas (ou quase todas) as
sequncias posturais produzidas por um corpo em movimento? 2 . se a
projeco de moldes planifica o corpo,
tornando-o numa superfcie, como lhe
possvel devolver ao corpo a sua dimenso
profunda e activa?
Em 1912, Marcel Duchamp pinta Nu
Descendant un Escalier (fig. 1), onde
diversas imagens encadeadas de um mesmo
corpo descem uma escada. Esta obra de
cariz bidimensional, deixando de ser um
retrato sob o ponto de vista naturalista,
sugere sobretudo ao espectador, para alm
das trs dimenses prprias ao objecto
includo representadas por uma escala de
tons que indicam os diferentes planos e
volumes do corpo ,4 a noo de movimento
que se desenvolve no espao e no tempo
3 Traduo livre de () Organized into sharply opposed binaries or opposites.
4 O corpo o que tem altura, largura, comprimento e profundidade (Leonardo Da Vinci citado
por Cunha e Silva 1999:21).
figura 1Nu Descendant un Escalier, de Marcel
Duchamp, 1912 (Ferrier e Le Pichon1999).
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Introduo | 3
(Duchamp 2002:47).
A argumentao possvel relativa ao pargrafo anterior prende-se com o
discurso grfico envolvido nos moldes projectados que no pretende ser
artstico, nem to pouco sincrnico, embora estes desenhos, mais do que
espelhar o mundo existente, lhe ofeream significado (Hall 2002:6-7). Kaat
Debo (2003) alega que os moldes devem ser entendidos como uma transio
bidimensional entre o corpo tridimensional e a pea de vesturio acabada e
confirma que o molde no , (), uma reproduo do corpo. A sua superfcie
parece maior que o corpo para o qual a pea de vesturio ser produzida
(2003:9).5 A linguagem prpria projeco de moldes impe ao designer de
moldes, ento, mais do que traar peas de vesturio, representar o corpo no
futuro.
Segundo o raciocnio sugerido por Debo, os moldes so indivisveis das peas
de vesturio que projectaram e estas, por sua vez, so inseparveis do corpo
que vestem. A interdependncia destes trs elementos conduz R. Broby-
Johansen (1968:5) a defender que as peas de vesturio s possuem qualquer
significado quando colocadas sobre o corpo e legitima Joanne Entwistle (2000)
quando afirma que as segundas perdem o estatuto de objectos animados se
isolados do terceiro: sem um corpo, as peas de vesturio carecem de volume
e de movimento; so incompletas (2000:10).6
O corpo, de acordo com a definio de Leonardo Da Vinci transcrita
anteriormente,7 de facto tridimensional: tem uma frente, tem umas costas e
tem uma espessura entre uma e a outra. Por outro lado, o corpo mais do que
a soma da sua altura, da sua largura e do seu comprimento: ele , tambm,
uma entidade flexvel que se move no espao e no tempo, tal como Duchamp
evidenciou.
Ento, o corpo vestido no somente a imagem parada reflectida num espelho
que confirma as opes relativas ao guarda-roupa tomadas diariamente; a
5 Traduo livre de The pattern is a two-dimensional transition between the three-dimensional
body and the finished piece of clothing e The pattern is not, (), a reproduction of that body.Its surface seems larger than the body for which the garment is to be made.6 Traduo livre de Without a body, dress lacks fullness and movement; it is incomplete.
7 Que provm do seu empenho em entender a relao proporcional das vrias partes
pertencentes ao corpo (Winks 1997:7).
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Introduo | 4
verdadeira imagem do corpo vestido o efeito produzido, no seu conjunto,
pelas expresses, pelos gestos e pelo movimento gerados por um corpo
enrgico, quando observado de todos os seus ngulos e planos (Hollander
1994:184).
Assim, a responsabilidade que o design de moldes tem, enquanto disciplina
que trabalha para e a partir do corpo, complexa porque este suporte vivo e,
como tal, dinmico. A sua capacidade de movimentar-se por exemplo, de um
ponto para outro , bem como a sua plasticidade natural manifestada pela
expanso do diafragma, etc. , so factores que, no acto de projectar os
moldes de peas de vesturio, devem ser interpretados e traduzidos pelo
modelista por fragmentos, costuras e pontos (Lauwaert 2003:43),8 de forma a
obter-se um equilbrio entre corpo, design e tecido (Debo 2003:9).9
A relao que as peas de vesturio estabelecem com o corpo mais ou
menos envolvido e/ou mais ou menos restringido determina quele,
certamente, uma nova maneira de estar e sentir: descobri que os meus
movimentos, o modo de andar, de me voltar, de me sentar, de apressar o
passo, eram diversos. No mais difceis, ou mais fceis, mas seguramente
diversos, relata Umberto Eco (1986:196) a propsito da sua experincia com
uns jeans.
Retomando as questes colocadas na pgina dois a interpretao do
dinamismo e da tridimensionalidade caractersticos ao corpo e a traduo
desses factores aquando da projeco de moldes de peas de vesturio a
resposta provvel que o design de moldes oferece de uma forma pragmtica,
reside em diversas solues encontradas no passado, tal como j o
demonstram as primeiras obras publicadas sobre o ofcio da alfaiataria dirigidas
tanto a profissionais como a amadores, que datam de meados do sculo XVI
(Arnold 1995; Seligman 1996; Alcega 2004; e Aldrich 2000), relativas aos
sistemas a adoptar que melhor traduzam a inteno que o vesturio ocidental
tem tido, desde os finais da Idade Mdia (Hollander 1994; Ribeiro 2003; Sorber,
8 Traduo livre de () Fragments, seams, and points ().
9 Traduo livre de () Body, design, and fabric ().
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Introduo | 5
2003:23; Rouse 1999; Tarrant 2003:46; e Entwistle 2000), em representar o
corpo envolvido.
Uma daquelas estratgias corresponde segmentao do corpo, ou seja,
diviso do todo em diversas entidades distintas, como a frente, as costas, os
braos, as pernas, etc. que antev a sua reconstruo. Esta abordagem
permitiu s peas de vesturio replicarem o volume do corpo, revelando-o
(Sorber 2003:23) e converterem-se, a partir da sua decomposio em tantas
partes quantas as reas a revestir, em objectos tridimensionais.
A segmentao do corpo trouxe, como
consequncia, preocupaes de
carcter produtivo e metodolgico aos
mestres alfaiates quinhentistas.10
Ac tua lmen te , uma daque las
inquietaes corresponde a obter a
melhor utilizao possvel do tecido na
largura dada (Arajo 1996:141), de
forma a minimizar a quantidade de
matria txtil utilizada por pea de vesturio que a indstria do sector do
vesturio procura alcanar impreterivelmente. Esta estratgia j patente nos
diagramas includos no Libro de Geometria, Pratica y Traa, de Juan de
Alcega,11 publicado pela primeira vez em 1580 que teve como finalidade
principal apresentar os clculos das quantidades necessrias ao corte de
peas pertencentes ao guarda-roupa dos homens e das mulheres daquela
poca (fig. 2).
Outra consequncia que a segmentao do corpo transportou at aos dias de
hoje e especialmente aos alfaiates dos sculos XVIII e XIX, corresponde
sistematizao da delineao de moldes, bem como ao estudo acerca da
quantificao das propores do corpo, investigaes que so abordadas na
10
Segundo as regras estabelecidas pelas associaes profissionais formadas desde o sculoXIII, um alfaiate passava categoria de mestre e, portanto, habilitado a cortar aps longosanos de aprendizagem prtica (Arnold 1995:3; Alcega 2004:9; e Loiselle 1936:13).11
Na pgina 10 da introduo edio facsmile do livro de Juan de Alcega includo emReferncias Bibliogrficas, J. L. Nevinson refere a inexistncia quase completa deinformaes sobre este alfaiate espanhol do sculo XVI (Alcega 2004).
figura 2Diagrama de encaixe dos moldes de casaco de
Homem, delineado por Juan de Alcega em1580 (Alcega 2004).
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Introduo | 6
presente Dissertao como forma de contextualizao e de sustentao da
questo de investigao enunciada.12
A adio de folga, que pode ser entendida como a diferena de medidas entre
o utilizador e a pea de vesturio (Arajo 1996:120) correspondente ao espao
vazio inserido entre estas e o corpo, consiste numa outra estratgia que a
projeco de peas de vesturio tem vindo a utilizar, de uma forma emprica
(Laing e Sleivert 2002:9), como forma de possibilitar ao corpo as suas
plasticidade e flexibilidade naturais.13
Esta soluo, no sendo o fulcro da presente Dissertao, possui algum
significado enquanto extenso do processo da segmentao do corpo, ou seja,
enquanto coordenada com a inteno de expor o seu volume e a sua silhueta
(Hollander 1994:170). A quantidade de espao suplementar introduzida ao
longo de todas as alturas e larguras ou parte das mesmas correspondentes
aos nveis de rotao e de flexo que o corpo possui, tem sido motivo de
incessantes diligncias que se prendem, maioritariamente, com os propsitos
formal e funcional subjacentes concepo e construo dos objectos
concebidos para diferentes fins genricos, profissionais e desportivos que,
incongruentemente, se baseiam no corpo anatmico, caracterizado por ser
erecto e esttico (Laing e Sleivert 2002).
1.3 Objectivos Os limites atribudos aos
componentes que integram as peas de vesturio denominados costura
lateral, costura do ombro, costura da cava, etc. so consequncia da soluo
encontrada pela projeco bidimensional do corpo tridimensional denominada
segmentao do corpo, aludida anteriormente. A deciso acerca da localizao
das costuras14 obedece, na opinio de Dirk Lauwaert (2003), aos propsitos
tcnico e esttico que, complementando-se um ao outro, definem a qualidade
autografada da pea de vesturio projectada para o consumidor (2003:50-51).
12
Nos captulos II e III, referentes ao Corpo Tridimensional e ao Corpo Bidimensional.13
Laing e Sleivert (2002:6) e Watkins (1995:252) mencionam que um outro tipo de adio defolga, subordinada ao estilo formal pretendido para certas peas de vesturio, incluipregueados, franzidos, etc..14
As costuras resultam da juno dos componentes que pertencem a uma pea de vesturio.
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Introduo | 7
figura 3Diagrama de molde de veste hebraica, c. 1000 a. C.,
desenhado por Carl Khler, c. 1870 (Khler 2001).
O estudo efectuado detm-se,
assim, na adequao das
cos tu ras p r i nc i pa i s
segmentao do corpo mvel
que tem vindo a ser
transmitida empiricamente de
gerao em gerao e a ser
comunicada pelo mestre ao
aprendiz, pelo professor ao
aluno, pelo autor ao leitor e
pelo profissional ao amador, desde a antiguidade, tal como o demonstram os
diagramas relativos aos componentes de diversas peas de vesturio,
respeitantes a vrias pocas e culturas (fig. 3), realizados por Carl Khler no
sculo XIX (Khler 2001).15
Estes diagramas que incluem as medidas necessrias sua
construo/reconstruo, desenhados a partir da observao directa de peas
originais, ou por intermdio do moderno auxlio da fotografia (Khler 2001:53),
evidenciam as estratgias que a elaborao de vesturio tem vindo a preferir
por variadas razes, designadamente: 1. de carcter produtivo, ou a implicao
formal que as larguras dos materiais tecidos16 e/ou dos teares utilizados tm
para a aparncia dos objectos vestveis (Koda 2003; e Khler 2001), etc.; 2. de
natureza cognitiva, ou a consequncia que as relaes espaciais estabelecidas
pelo sistema motor do corpo tm para a percepo (Merleau-Ponty 1999; e
Lakoff e Johnson 1999) e, consequentemente, para a conceptualizao do
design de moldes que distingue e separa diversos componentes pertencendo
simultaneamente a um corpo anatmico e a um corpo mvel: a frente das
15
Carl Khler, pintor, nasceu em Darmstadt em 1825 e morreu em Almoshof, perto deNuremberg, em 1876. de acordo com as notas includas no prefcio do livro Histria doVesturio, escrito por Emma Von Sichart, () Seu trabalho traz respostas completas a todasas questes que, em tempos idos, diziam respeito prtica do ofcio de alfaiate (Khler2001:5).16
O termo tecido corresponde, nesta Dissertao, ao conjunto de materiais txteis elaboradosa partir de fios de trama que intersectam os fios de teia. As vrias estruturas conseguidas poreste processo, quando comparadas com as capacidades extensveis das malhas, tm umaflexibilidade relativa que obriga o designer de moldes a aumentar, nos seus planos, as diversasmedidas do corpo por forma a que as peas de vesturio acompanhem a plasticidade e amobilidade daquele.
-
Introduo | 8
costas colocando fronteiras entre as duas , o lado direito do lado esquerdo
determinando limites no centro dos componentes, como por exemplo o gancho
que permite a diviso das pernas , entre tantas outras possveis.
As propostas estilsticas de Madeleine Vionnet dos anos vinte e trinta e da
Levis Engineered Jeans lanadas no final dos anos noventa, correspondem
aos exemplos seleccionados produzidos e utilizados no sculo XX como
forma de sustentao da questo de investigao exposta.17 A investigao
delineada no se props analisar os propsitos simblicos enquanto
indicadores do sexo, idade, estatuto, etc., dos seus consumidores ou
estilsticos enquanto indicadores do gosto de cada uma das pocas referidas
que estas peas de vesturio revelaram/revelam, mas antes tentou avaliar o
carcter funcional contido nas mesmas que serviu/serve, ou no, o corpo
activo.
Para tal, os objectos foram analisados luz das suas projeces tridimensional
os vestidos de Vionnet e bidimensional as calas da Levis Engineered
Jeans porque estas demonstram ser atpicas dos processos conceptual e
metodolgico do design de moldes legado, ou seja, do modo como esta
disciplina interpreta ou pondera o desempenho prprio ao corpo mvel e
dinmico.
O denominador comum encontrado nestes autores/marcas, separados pelo
tempo e dissemelhantes entre si nos seus propsitos conceptuais,
metodolgicos e comerciais, assenta na adequao ao corpo plstico e flexvel
do consumidor conseguida pela toro e/ou pela deslocao das costuras
principais que ambos imprimiram aos seus produtos: Vionnet encarou o
corpo como sujeito e planeou as peas de vesturio que concebeu ajudando-
o a exprimir a sua individualidade (Kamitsis 1996:9)18 e a Levis, inspirando-se
na forma e no movimento do corpo humano, redesenhou o modelo de jeans
com cinco bolsos, reclamando-o engineered (www.levistrauss.com),19 ou
ergonmico , termo pelo qual a lngua portuguesa traduziria aquela
denominao.
17
Ver ponto 1.1.18
Traduo livre de () Le corps comme sujet () laidant exprimer sa singularit.19
Traduo livre de Inspired by the shape and movement of the human body ().
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Introduo | 9
Os objectos que justificam o territrio operativo da investigao so, ento,
peas de vesturio de diversas tipologias produzidas em tecido , concebidas
para o uso genrico no particularizado e destinadas a um corpo
estandardizado ou annimo porque, tal como Eco (1986) referiu, nenhuma
experincia quotidiana demasiado vil para o homem de pensamento
(1986:195).
1.4 Abordagem Reclamando um ponto de
vista que justifique a pertinncia em desenvolver uma contextualizao
interdisciplinar relativa investigao acerca do design de moldes e que ligue
os diferentes aspectos abordados referentes ao corpo, os conceitos de
desempenho (Laing e Sleivert 2002), de usabilidade (Jordan 1999) e de
conforto (Li 1999), oferecem uma consistncia conceptual que atravessa todo
o contedo da Dissertao apresentada porque, tal como David Kelley (1971)
sugere, a preparao de um texto que sirva de modelo para o estudo
organizado sobre qualquer rea do conhecimento, depende largamente da
identificao e do desenvolvimento de uma caracterstica unificadora
(1971:ix).20 As estratgias da segmentao do corpo, da adio de folga e da
localizao das costuras principais, aludidas anteriormente nesta introduo,
sugerem a implicao que estas noes tm tido para as representaes do
corpo vestido, bem como para a ponderao referente projeco dos moldes
das peas de vesturio envolvidas naquela relao.
As publicaes do sculo XIX estudadas tanto de ndole literria (Eliot 2000),
como de natureza cientfica (Khler 2001; Giles 1987; Wampen 1863; entre
outros) , as publicaes do sculo XX analisadas nomeadamente as que se
inserem nas reas da Cincia e Engenharia do Conforto do Vesturio, da
Ergonomia, da Sociologia e da Histria da Arte e da Moda (Entwistle 2000;
Hollander 1994; Schreier 1989; Steele 1989; Laing e Sleivert 2002; Li 1999;
Jordan 1999 e 2000; Watkins 1995; entre outros) e aquelas que, incluindo-se
tambm no sculo XX, reflectem mais especificamente sobre os casos de
20
Traduo livre de The preparation of a textbook to serve as a model for organized study inany area of knowledge depends largely upon the identification and development of a unifyingcharacteristic ().
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Introduo | 10
estudo seleccionados (Arnold 1993; Candy 2003; Crowther 1985; Kirke 1998;
alm de outros) formam um conjunto que, aflorando a prtica do vestir e/ou
examinando a prtica construtiva dos objectos que envolvem o corpo,
contribuem para a investigao relativa questo levantada pela Dissertao.
Estes dois pontos de vista confluem para a aluso acerca da importncia que
ambos tm para o corpo, tanto individual pertencente s esferas ntima e
privada como social respeitante ao domnio pblico e indicam que a
relao estabelecida entre o conforto fisiolgico e psicolgico e o desempenho
do corpo funcional tem vindo a determinar a aparncia formal dos objectos
vestveis, traduzida tanto pelos seus aspectos pragmtico-funcionais que
conduzem sua usabilidade como simblicos.
Colocaram-se, ento, trs hipteses relevantes para o desenvolvimento da
investigao efectuada:
1. A insistncia na orientao vertical das costuras principais, determinantes
para os aspectos visual e funcional das peas de vesturio, so um indcio
da incorporao subjectiva que advm da experincia dos sistemas
sensorial e motor do corpo? so uma herana cultural que denota o gosto
induzido e/ou a sustentabilidade produtiva? ou reflectem antes, na sua
ponderao, determinados factores tais como o conforto e o desempenho
pretendidos?
2. Foram os factores relativos ao conforto e ao desempenho que
determinaram a implementao das silhuetas ajustadas ao corpo natural,
caractersticas da moda do sculo XX? e que, por exemplo, Madeleine
Vionnet explorou sabiamente, inventando e/ou reintroduzindo o corte em
vis?
3. Foram aqueles mesmos factores que sugeriram Levis repensar a
localizao das costuras das peas que tem vindo a produzir h mais de
cem anos? ou, pelo contrrio, a linha Engineered Jeans uma resposta
concorrncia dos mercados e aos lucros visados pela indstria da moda?
De modo a procurar as respostas quelas perguntas, a investigao
estruturada em trs partes fundamentais: O Corpo Tridimensional, O Corpo
Bidimensional e A Adequao dos Objectos Vestveis ao Corpo Mvel.
-
Introduo | 11
Na primeira parte, procura-se salientar a importncia que uma contextualizao
interdisciplinar acerca do corpo tem para o design de moldes enquanto
processo conceptual e operativo porque rene informaes relativas ao seu
interior e ao seu exterior e, somando-as, conduz a uma viso (mais) holstica
que entenda as seguintes problemticas: 1. o corpo que manipula e
compreende os objectos que veste, em consequncia da percepo sensorial e
motora; 2. o corpo que aceita/rejeita os objectos vestveis, de acordo com as
convenes sociais estabelecidas, ou 3. de acordo com as diversas actividades
que aqueles lhe permitem executar; 4. o corpo que imprime diversas formas s
peas de vesturio e se adapta s mesmas.
Na segunda parte, a Dissertao compreende a investigao efectuada relativa
aos antecedentes histricos, conceptuais e produtivos dos sistemas utilizados
pelo design de moldes, implementados desde o sculo XIX e reflecte sobre: 1.
os paradigmas em que assenta a projeco bidimensional de peas de
vesturio enquanto disciplina pragmtica que materializa o corpo tridimensional
a partir de traados abstractos; 2. a base operativa da projeco bidimensional
que viabilizou a massificao, tanto da fabricao como do corpo a que se
destinam os produtos elaborados; 3. a conceptualizao e a projeco
bidimensional do corpo tridimensional que por intermdio do vazio e da
aparncia dos objectos vestveis, serve as suas plasticidade e mobilidade.
Por ltimo, na terceira parte da Dissertao, procura-se depreender quais as
qualidades a evidenciar aquando da projeco dos moldes de peas de
vesturio, de forma a que as mesmas possam proporcionar uma melhor
usabilidade, um maior conforto e, consequentemente, um melhor desempenho
ao corpo mvel e dinmico. Dois vestidos de Madeleine Vionnet e umas calas
da Levis Engineered Jeans so os exemplos estudados como forma de
ilustrao do problema implcito na questo de investigao exposta.
1.5 Metodologia adoptada Pretendeu-se
utilizar uma metodologia mista na investigao desenvolvida que
fundamentasse a estrutura apresentada no ponto anterior e que visasse a
obteno de respostas questo fulcral da mesma: a projeco bidimensional
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Introduo | 12
de moldes estabelece uma relao entre o corpo erecto e esttico e o corpo
mvel e dinmico?
Para tal, diversas perspectivas, normalmente alheias ao design de moldes, so
abordadas e cruzadas com a rea do conhecimento nuclear da Dissertao,
por forma a estabelecer-se uma compreenso holstica relativa questo
acima colocada.
Partindo, ento, de um estudo geral para o particular, procura-se estabelecer
uma contextualizao interdisciplinar acerca do corpo enquanto suporte
conceptual e fsico das peas de vesturio que sustente a anlise acerca da
projeco bidimensional dos objectos vestveis que o envolvem.
A metodologia de estudo de casos desenvolvida referente aos vestidos de
Madeleine Vionnet e s calas da linha Engineered Jeans da marca Levis
sustenta a investigao proposta porque os objectos vestveis seleccionados
so exemplos estruturalmente atpicos do tipo de solues utilizadas pelo
design de moldes do sculo XX21 que denotam a inteno dos seus autores em
possibilitar ao corpo enquanto organismo vivo a sua plasticidade e a sua
flexibilidade. Esta inteno contraria a preocupao que os designers de moda
normalmente tm de realar, acima de tudo, o aspecto visual esttico das
peas de vesturio que concebem (Hollander 1994:133).
A recolha de diversos dados, relativa a cada um dos casos de estudo inclui: 1.
os seus antecedentes, ou as intenes conceptuais subjacentes s suas
projeces; 2. os seus projectos, ou as suas caracterizaes formal, estrutural
e processual; 3. as suas aplicaes, ou os fins e os tipos de mercado a que se
destinaram/destinam; 4. as suas avaliaes internas e externas, ou os seus
enquadramentos espaciais e temporais, etc..
A anlise interactiva dos factores referidos, bem como a comparao dos
casos estudados justificvel por estes corresponderem a peas de vesturio
concebidas e lanadas em tempos diferentes do sculo XX contribuem para a
tese a defender relativa adequao das costuras construo do corpo
mvel.
21
Tal como referido na p. 8.
-
Introduo | 13
A reviso crtica da bibliografia seleccionada, a definio dos diversos
conceitos e parmetros utilizados, bem como o estudo de casos que se
efectuou com vista caracterizao das peas de vesturio escolhidas e dos
fins a que as mesmas se destinam, fundamentam o enquadramento e o
desenvolvimento da presente Dissertao.
Assim, investigao desenvolvida corresponde o seguinte organigrama:
tema:a adequao das costuras principais ao
corpo mvel
recolha literriaexperincia
profissional dainvestigadora
crtica literatura relevante
hiptese(s)
concluses e recomendaespara futura investigao na rea do design de
moldes
estudo de casos
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O Corpo Tridimensional | 14
Captulo IIO Corpo
Tridimensional
2.1 Introduo A relevncia que o corpo
tem para uma investigao na rea do design de moldes, legitima a
investigao interdisciplinar efectuada porque a partir do corpo e para o corpo
que so projectados os moldes das peas de vesturio.
A reviso da literatura seleccionada que sustenta a primeira parte da presente
investigao, denota a opo em proceder-se a uma contextualizao de
carcter pluridisciplinar que, admitindo alguns conceitos e elementos da
Neurofisiologia, da Filosofia, da Ergonomia, da Cincia e Engenharia do
Conforto do Vesturio, da Sociologia, da Antropologia e da Cinesiologia, tenta
compreender a complexidade evidenciada pelo corpo.22 Mesmo sabendo que
os objectivos prprios a algumas das disciplinas incorporadas no focam a
problemtica do corpo vestido e/ou dos objectos vestveis, acredita-se que as
suas perspectivas podem contribuir para alargar e complementar a abordagem
ao estudo da projeco bidimensional do corpo tridimensional que pondera a
adequao das costuras principais segmentao do corpo mvel.
Por uma questo estrutural, foram distinguidas no corpo trs dimenses
designadamente, o Corpo Interior, o Corpo Funcional e o Corpo Exterior
porque a investigao assenta na convico que o entendimento do mundo
exterior feito pelo corpo e a partir do mesmo fundamental para a maneira
como este se tem vindo a representar ou a construir.
22 A qual resultou inevitavelmente breve e genrica, devido s limitaes impostas pelopropsito fundamental da Dissertao, assim como pelo background da investigadora.
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O Corpo Tridimensional | 15
A estratgia relativa ordem por que so apresentados os trs corpos denota
a inteno de justificar as opes relativas concepo, construo e adopo
do vesturio que o corpo visvel assume perante si e perante os outros, luz
das aces inconscientes que a complexa arquitectura do corpo invisvel
experimenta constantemente desencadeadas pela aco conjunta dos
sistemas sensorial e motor, neural e emocional e, ainda, da sua capacidade
de analisar e organizar as coisas percepcionadas que compem tanto o seu
mundo interior como o mundo exterior.
2.2 A Fundamentao do Corpo
Tridimensional Se no se fala do corpo, de que que se fala quando se
procede ao design de moldes?
Se se admitir que o corpo o fundamento conceptual e operativo do design de
moldes porque em moda, claro, parte do medium utilizado sempre a
experincia vivida pela pessoa viva (Hollander 1994:31),23 surpreendente
constatar que, enquanto a literatura produzida sobre o corpo tem, at data,
ignorado quase totalmente a moda, a literatura sobre a moda tem, geralmente,
ignorado o corpo (Entwistle 2000:40).24
Partindo da observao da historiadora citada, assim como da advertncia da
sociloga referida, as dimenses mental, funcional e social do corpo so
investigadas a partir da conciliao de diversas perspectivas disciplinares
porque, como Cunha e Silva (1999) sugere, necessrio ultrapassar a fenda
cartesiana e estudar o corpo igualmente a partir duma perspectiva filosfica e
incluir o ponto de vista biolgico anlise do esprito,25 em prol dum
conhecimento que entenda o corpo como um objecto complexo (1999:22).
Mesmo que a investigao apresentada aparente ser fragmentada porque se
dividiu, ficticiamente, o corpo em trs corpos , deve entender-se que este
23 Traduo livre de () In fashion, of course, part of the medium is always the live personexperiencing its life.24 Traduo livre de While literature on the body has so far almost entirely ignored fashion,literature on fashion has generally ignored the body.25 O termo esprito substitudo, por Damsio (2003a), por mente e este segundo termo quepassa a constar do texto da presente Dissertao.
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O Corpo Tridimensional | 16
no constitudo por partes que esto desdobradas umas ao lado das outras,
mas envolvidas umas nas outras (Merleau-Ponty 1999:143).
Sob a perspectiva da moda, o corpo o seu fundamento conceptual e
operativo porque , simultaneamente, o produtor e o consumidor (Entwistle
2000:1) que concebe e que se submete s prticas de personalizao do corpo
(Jordan 2000:65) que Agostinho Ribeiro (2003) distingue enquanto prticas
aloplsticas, de carcter provisrio26 e prticas autoplsticas, de carcter
permanente (2003:109).
De acordo com Entwistle (2000), a moda, enquanto prtica cultural, tem o
poder de estruturar a experincia que o corpo vive quotidianamente porque
este, em quase todas as situaes, um corpo vestido (2000:1). Segundo
George Lakoff e Mark Johnson (1999), Antnio Damsio (2003), Maurice
Merleau-Ponty (1999) e Agostinho Ribeiro (2003), a experincia adquirida pelo
corpo , antes de tudo, de natureza corporal porque sem a sua entidade
fisiolgica ou a sua complexa estrutura sensorial, motora, neural e emocional
este no poderia ser impressionado pelo mundo exterior.
Merleau-Ponty (1999) adianta que o corpo nosso meio geral de ter um
mundo (1999:203) e se a palavra nosso includa na citao designa uma
pluralidade, poder-se- deduzir a partir da mesma que o mundo constitudo
por diversos corpos. Estes, tendo a mesma capacidade de apropriar os
objectos que advm do facto de serem biologicamente semelhantes ,
constroem, quando pertencendo a ambientes fsicos, sociais e culturais
semelhantes (Lakoff e Johnson 1999), padres neurais idnticos para os
mesmos objectos (Damsio 2003:225) que emprestam um nexo para o mundo
partilhado e que sustm a edificao de uma cultura comum de significados
(Hall 2002:2,18).
Quando se refere s peas de vesturio adoptadas, Anne Hollander (1994)
defende que os seus aspectos visuais tm origem no inconsciente, sendo a
atribuio dos seus significados social e politico um processo realizado
posteriormente (1994:24-26). Hollander (1994) alega, ainda, que a imaginao
26 Entre estas incluem-se as peas de vesturio, cuja caracterizao construtiva o objecto deinvestigao da presente Dissertao.
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O Corpo Tridimensional | 17
colectiva sobrepe-se inspirao individual, a qual demonstrada pela
semelhana dos estilos, das cores, das texturas, dos materiais, etc.,
caractersticos de cada poca/ambiente (1994:12).
Entender o vesturio obriga, portanto, a reconhecer as relaes subjectivas e
inter-subjectivas criadas pelo corpo individual e entre este e os outros
(Entwistle 2000:35). Obriga, ainda, a avaliar a interaco dinmica relativa
utilizao constante das peas de vesturio por um corpo animado e activo,
assim como as consequncias fisiolgicas, neurofisiolgicas e psicolgicas
causadas pela mesma (Li 1999).
Na opinio de Merleau-Ponty (1999), minhas roupas podem tornar-se como
que anexos de meu corpo (1999:134), podendo assumir-se, portanto, que as
peas de vesturio no so objectos distintos do corpo, sobretudo porque este,
incorporando-as, converte-se num outro corpo, num corpo vestido, para quem
essa condio determinante para a maneira como o espao percepcionado.
Tal apreenso facultada pela expansividade (Ribeiro 2003:214) e pela
sensibilidade cinestsica (Stobbaerts 2002:47) que caracterizam o corpo
animado. Por sua vez, a produo gestual visvel depende
substancialmente da complexa rede interior que conduz os sinais enviados
pelos sistemas sensorial, motor e neural coordenados e processados pelo
crebro, em sequncias ascendentes e descendentes, porque toda a
comunicao se baseia no movimento (Greenfield 2002:47).
, ento, atravs do movimento constantemente produzido que o corpo
realmente se expressa, porque esta entidade no esttica, no tem s um
plano, no est sempre erecta (Hollander 1994:184), quase nunca se coloca na
posio anatmica (Kelley 1971:78) que constitui a referncia para os estudos
desenvolvidos pela antropometria que ocupa-se das dimenses e
propores do corpo humano (Dull e Weerdmeester 1995:23) ,27 pela
cinesiologia que estuda as causas e os efeitos do movimento do corpo
(Kelley 1971:6) e de maneira indirecta, pela ergonomia cujo objectivo a
27 Embora se tenha aludido a esta disciplina, a mesma somente aprofundada no ponto 3.4,relativo aos Paradigmas do Design de Moldes.
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O Corpo Tridimensional | 18
anlise da relao existente entre o corpo e a actividade por ele
desempenhada (Montmollin 1995; e Pheasant 1997:4).
O corpo animado, em consequncia da sua capacidade de adoptar inmeras
posies diferentes, est equipado para interagir com o ambiente, moldando-se
a este e moldando-o a si prprio (Kelley 1971:274). neste sentido que R. M.
Laing e G. G. Sleivert (2002) alertam para a premncia em estudar a
adequao das peas de vesturio, concebidas para e construdas pelo corpo,
ao desempenho exigido pelas diversas actividades que exerce (2002:2).
Esta preocupao constitui igualmente ou deve constituir um dos objectivos
do design de moldes enquanto disciplina que projecta a interaco contida na
relao entre o corpo e o vesturio, como se este ltimo fosse uma segunda
pele (Watkins 1995:218), ou melhor, como se as peas de vesturio fossem a
prpria pele (Hollander 1994:89).
2.3 O Corpo Interior Propor possveis
trajectos que conduzam justificao do teor da pergunta colocada no incio do
ponto 2.2, presume entender o processo mental subjacente ao design de
moldes enquanto previso, antecipao e apresentao de solues
construtivas para as peas de vesturio a produzir,28 determinando as formas
dos diversos componentes que integram os seus moldes (Kidwell 1979:3).
Para tal, o contedo do ponto 2.3 da Dissertao detm-se no problema mente-
corpo,29 ou seja, no corpo interior, investigado no como a conexo entre duas
entidades distintas, mas enquanto entrelaamento das suas percepes
interiores e exteriores e enquanto construo de imagens mentais dos seus
interior e exterior que facultam a exequibilidade do subjectivo a partir do
objectivo.
A base sustentvel para a construo do corpo que o design de moldes pratica
, ento, a concepo que este que tem altura, largura, comprimento e
28 Estas capacidades correspondem possibilidade que o dispositivo inaugurado pelossentimentos combinados com a memria, a imaginao e o raciocnio proporcionam aocorpo (Damsio 2003b:97).29 Expresso que corresponde traduo literal da entrada de Jaegwon Kim, includa em TheOxford Companion to Philosophy, Oxford/New York: Oxford University Press, 1995, p. 579.
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O Corpo Tridimensional | 19
profundidade,30 que se move, que manipula e que constri-se nos discursos e
constri discursos (Cunha e Silva 1999:25) produz a partir dos processos da
percepo e da incorporao especficos do corpo, ou seja, prprios a um
corpo que se constitui a partir dos sistemas sensorial e motor e do mecanismo
neural situado no crebro, a um corpo que habita, adapta-se e interage com o
ambiente fsico, social e cultural (Lakoff e Johnson 1999:37; e Damsio
2003b:67,71).
O contedo do presente ponto foca, assim, o corpo que corresponde ao objecto
da pesquisa mdica, cuja prtica visa manter e/ou restaurar o bem-estar do
corpo,31 assim como ao objecto da investigao filosfica que tenta
compreender o modo como os processos de incorporao relacionam o corpo e
a mente. O cruzamento destas duas pticas32 tem como objectivo apreender a
verdadeira dimenso do corpo tridimensional, enquanto definidor do mundo
porque sente, enquanto produtor de discursos que viabilizam a sua prpria
construo (Janeiro 2003:21; Cunha e Silva 1999:25; e Entwistle 2000:4) e
enquanto portador de uma cultura de representaes partilhadas (Janeiro
2003:21; e Ribeiro 2003:109).33
A concepo dualista enunciada por Descartes no sculo XVII (com origem no
pensamento platnico, aristotlico e escolstico) que exerceu uma enorme
influncia at contemporaneidade (Lakoff e Johnson 1999:400; e Durozoi e
Roussel 2000:108), separa o corpo da mente e distingue-os como duas
entidades antagnicas, cujas essncias so definidas por atributos diversos
(Lakoff e Johnson 1999:402-403; Kim 1995:579; Damsio 2003b:211; e Ribeiro
30 Para empregar novamente a definio facultada por Da Vinci (Cunha e Silva 1999:21).31 Que so, igualmente, os objectivos primordiais do prprio organismo (Damsio 2003b; e Li1999).32 Que tem vindo a ser praticado pelas duas reas de investigao mencionadas,nomeadamente por alguns dos autores referenciados na presente Dissertao, entre os quais oneurologista Antnio Damsio e o filsofo Maurice Merleau-Ponty. O primeiro, combinandofilosofia, psicologia e biologia, contribui para a investigao cientfica acerca dos fenmenosrelacionados com a mente, com a conscincia tanto do si como social e com ocomportamento humano e provam que sentir e pensar so processos que advm de um corpofisiolgico (Love 2003:171). O segundo, considerado por Lakoff e Johnson (1999) como um dosfilsofos que mais influenciou o reconhecimento da mente enquanto incorporada, lega umconjunto de obras ilustradas com experincias que a psicologia, a fisiologia e a neurocinciaefectuaram, que reflectem sobre o corpo vivido (1999:xi).33 Estas definies do corpo tridimensional so desenvolvidas ao longo do presente captuloque tem como intuito a argumentao necessria ao entendimento do corpobidimensional/projectado, objecto de investigao desta Dissertao.
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O Corpo Tridimensional | 20
2003:39). O corpo uma substncia fsica, divisvel, com determinadas
propriedades, designadamente, uma forma, uma dimenso, uma espessura,
etc. e o seu atributo basilar a expansividade (Damsio 2003a:255), ou seja, o
volume de produo gestual que subentende a utilizao do espao envolvente
(Ribeiro 2003b:214); a mente, cujo atributo primordial o pensamento, uma
substncia intangvel e imaterial que no tem forma, volume ou peso e que no
necessita de um lugar para existir (Damsio 2003a:255).
A filosofia cartesiana acredita, ento, que a mente existe independentemente
das coisas materiais (Durozoi e Roussel 2000:108) e que no depende da
unidade constituda por crebro/corpo para a gerao do pensamento, porque
o considera como transcendente; como tal, nada no corpo, nem a imaginao,
ou a emoo, ou a percepo ou qualquer pormenor relativo sua natureza
biolgica, so necessrios ao entendimento da natureza da mente (Lakoff e
Johnson 1999:408).34 Aquela corrente acredita, ainda, que o pensamento
racional caracteriza a essncia humana e que as ideias consistem em
operaes formais/conscientes que ou so inatas no requerendo a
experincia, a aprendizagem e a memria , ou so representaes interiores
coincidentes com a realidade externa (Lakoff e Johnson 1999:94)
independentes da percepo originada pelos sistemas sensorial e motor e
independentes, portanto, do desenho ntimo dos prprios neurnios, tal como
Damsio indica (2003b:153).
Na opinio de Damsio (2003a), muitas das perspectivas mais modernas so
ainda uma forma revista de dualismo (2003a:214) porque, se para o filsofo
seiscentista o corpo e o crebro estavam ambos englobados na substncia
material e biolgica, para estas pticas contemporneas o crebro o nico
rgo do corpo ao qual a mente est circunscrita. A posio de Damsio
(2003b) fundamentalmente contrria a qualquer destas noes porque, do
seu ponto de vista, o corpo um organismo integrado e singular (2003b:21),
do qual a mente emerge a partir do crebro em constante interaco com o
corpo-propriamente-dito (2003b:215).
34 Traduo livre de Nothing about the body, neither imagination nor emotion nor perceptionnor any detail of the biological nature of the body, need to be known in order to understand thenature of the mind.
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O Corpo Tridimensional | 21
Cunha e Silva (1999), arguindo contra as abordagens reducionistas de tipo
dualista que, na sua opinio, retiram a profundidade que caracteriza o corpo,35
prope ousar[-se] fazer do corpo um objecto filosfico e do esprito um objecto
biolgico (1999:22). Concordando, Lakoff e Johnson (1999) consideram o
raciocnio enquanto incorporao da interaco do corpo com o ambiente
fsico, social e cultural (facultada, simultaneamente, pelas especificidades do
seu funcionamento e pela sua estrutura neural contida no crebro) e alegam
que esta capacidade metafsica36 corresponde prtica quotidiana que tem
como objectivo a atribuio de nexos s diversas experincias vividas pelo
corpo (1999:10).
Merleau-Ponty (1999) qualifica o corpo enquanto centro de referncia de tudo o
que avalia, vivendo, a partir de uma determinada situao espacial e temporal37
e defende, ainda como Lakoff e Johnson (1999:97) , a ideia de um corpo
integral, ou corpo prprio, que forma com o mundo um sistema coerente e
interdependente, tal como o corao e o organismo (1999:273). Para o filsofo,
o corpo constitudo tanto pela sua natureza fisiolgica equipada com os
sistemas sensorial e motor , como pela sua conscincia que procede da
incorporao do ambiente fsico, social e cultural que, fundidas uma na outra,
determinam a qualidade de todas as suas experincias objectivas e subjectivas
(Merleau-Ponty 1999:116,174).38
Ribeiro (2003), admitindo o hbito herdado pelo pensamento de tipo dualista,
reconhece a relevncia de um corpo dividido em duas estruturas, uma exterior
ou fsica e uma interior ou fenomenolgica; a primeira contempla as suas
35 O autor no se refere profundidade concedida pela exposio do interior do corpo(enquanto mquina funcional), mas sim profundidade adquirida pela anlise das suasmltiplas superfcies/pormenores que constituem a sua plenitude (Cunha e Silva 1999:21-26).36 Lakoff e Johnson (1999) utilizam o termo metafsica no no sentido dado por Descartes (oacesso ao conhecimento do absoluto efectuado pela razo) ou por Kant (correspondente aoinventrio dos conhecimentos que dependem apenas da razo), utilizam-no antes no sentidoconcedido pela corrente existencialista, referente realizao de sentido pela aco e pelamoral (Durozoi e Roussel 2000:263).37 De acordo com Susan Greenfield (2002), as referncias espaciais e temporais associadas sexperincias vividas pelo corpo so determinantes para a diferenciao daquelas, assim comopara a ligao emocional do corpo com as mesmas (2002:147). Antnio Damsio (2003b)prossegue, referindo que a partir daquelas representaes, o corpo capaz de criar novasimagens que, simbolizando as experincias vividas, exprimem abstraces baseadasindirectamente na experincia do corpo (2003b:229-230).38 Estes dois tipos de experincias so classificados, por Merleau-Ponty (1999), em duasordens, respectivamente, a em si e a para si (1999:116).
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caractersticas biolgicas e a segunda diz respeito sua vivncia a qual
contribui, seguramente, para a construo da identidade do corpo pessoal,
definida pela relao entre o corpo e o eu e, ainda, da identidade do corpo
social, enquanto fachada pblica do primeiro (2003:10,17).
A dificuldade implcita ao entendimento dos processos que constituem o
pensamento, tomado enquanto intuio racional (oposta compreenso do
mesmo enquanto experincia de incorporao), conduz Descartes a
corresponder aquela faculdade viso imediata pelo esprito de uma verdade
que se impe de modo absoluto (Durozoi e Roussel 2000:106).
Para Damsio (2003a), pelo contrrio, o domnio da substncia imaterial sobre
a substncia fsica no verosmil e defende que os organismos antes de
pensarem j existiam e que o factor responsvel pela gnese da mente foi, sem
dvida alguma, o percurso evolutivo do conjunto das estruturas e das
operaes prprias ao seu corpo (2003a:254). Lakoff e Johnson (1999),
mencionando que o crebro procura optimizar-se a partir das propriedades
existentes no corpo, concordam que a mente tem uma origem biolgica
proveniente dos sistemas sensorial e motor e mencionam, ainda, que a mente
continua nos dias de hoje a utilizar as estruturas do crebro desenvolvidas a
partir dos sistemas referidos (1999:43).
A capacidade de raciocinar provm, ento, do facto do corpo ser um corpo e da
sua necessidade em comunicar, utilizando, para tal, linguagens que compelem
organizao do pensamento (Damsio 2003a:254). Ento, se todo o projecto
humano derivado do raciocnio reflecte o seu ser e determina o seu sentir, as
construes que o corpo faz de si mesmo nomeadamente o produto do
design de moldes nascem, naturalmente, desse sentir com uma determinada
altura, largura, comprimento e profundidade e, ainda, com um determinado
funcionamento mecnico, qumico e elctrico. E como no? Que outra
realidade lhe conhecida, seno esta que ele sente, vivendo, que ele pensa,
comunicando?
Merleau-Ponty (1999) e Pedro Janeiro (2003) sustentam que a realidade a que
os objectos esto sujeitos ditada por um corpo que sente e por um corpo que
define o mundo a partir desse sentir (Merleau-Ponty 1999:84; e Janeiro
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2003:21). Lakoff e Johnson (1999) alegam que a noo de realidade deriva das
capacidades de compreenso, de locomoo e de manipulao que os
sistemas sensorial e motor, assim como as estruturas que especializam o
crebro, oferecem ao corpo (1999:17).
Lakoff e Johnson (1999) facultam diversos exemplos que sustentam a assero
mencionada no pargrafo precedente: as relaes de opostos, tais como,
perto/longe, dentro/fora, frente/costas, etc. includos nos conceitos relativos
relao-espacial definem o desenho do espao a partir da situao do corpo,
assim como a configurao dos objectos a partir da projeco do corpo sobre
estes. Explicando melhor, as noes de perto/longe e dentro/fora no so
concebveis em si mesmas, porque as suas percepes s podem ser
induzidas a partir de referncias estabelecidas; a noo de frente/costas advm
da prpria morfologia do corpo, sendo a frente o espao que mais determina a
sua experincia espacial, porque os olhos nele includos permitem a viso do
mundo e porque a direco da sua locomoo faz-se, naturalmente, neste
sentido (Lakoff e Johnson 1999:30-34).39
A noo de verticalidade constantemente utilizada pela conceptualizao
metafrica, expressa no raciocnio e na linguagem e, por exemplo na lngua
inglesa, os juzos subjectivos correspondentes a felicidade e controlo, provm
da experincia dos sistemas sensorial e motor do corpo (Lakoff e Johnson
1999:34,47-53). Stobbaerts (2002) esclarece que a verticalidade alcanada
pelo corpo humano aps vrios milnios, simboliza energia, vitalidade e
dignidade (2002:42). Pergunta-se, ento: a insistncia na orientao vertical
das costuras principais, determinantes para os aspectos visual e funcional das
peas de vesturio, consiste num indcio da incorporao subjectiva que advm
da experincia dos sistemas sensorial e motor do corpo?
Embora seja irrefutvel que os objectos so reais (Damsio 2003b:225), estes
tambm existem no corpo (Janeiro 2003:21) enquanto imagens mentais ou
representaes que no lhes correspondem exactamente. Esta disparidade, na
opinio de Damsio (2003b), originada pela interaco das estruturas fsicas
39 Merleau-Ponty (1999) capta a importncia que o sistema sensorial e motor tm quandoescreve a viso e o movimento so maneiras de nos relacionarmos a objectos (1999:192).
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dos objectos e do corpo, convertendo-se as imagens produzidas to
autnticas como os objectos em si mesmos (2003b:224-225). Para Janeiro
(2003), as imagens mentais construdas no substituem os objectos porque
vivem conjuntamente com eles, na sua presena; na sua ausncia recordada,
os objectos no so descartados porque as primeiras imagens que os contm
evoluem para outras imagens e estas ltimas, contendo as primeiras, contm
os objectos iniciais (2003:28).
A percepo, do ponto de vista cientfico, corresponde s imagens do interior
do corpo que o crebro constri a partir das informaes recolhidas pelos
rgos sensoriais perifricos quando modificados por estmulos fsicos
exteriores, as quais conduzem experincia de sentir (Damsio
2003b:220,133; e Kim 1995:579). A percepo, do ponto de vista filosfico,
oferece uma significao a tudo o que percepcionado ou uma condio de
existncia, tal como Janeiro escreve (2003:21-22) porque esta, no existindo
realmente nas coisas, -lhes atribuda a partir das relaes que o corpo
estabelece com elas (Merleau-Ponty 1999:63-66).
O corpo, no sendo indiferente ao mundo que vive porque sensvel ,
apropria-se, ento, dos objectos percepcionados e, desta forma, constri uma
realidade constituda pelas imagens mentais edificadas e pelas linguagens
verbal, visual, cinestsica, etc. que utiliza para a exteriorizao das mesmas
(Janeiro 2003:22-25).
Para Merleau-Ponty (1999), a percepo portanto o pensamento de
perceber (1999:67) e para Ribeiro (2003), percepcionar ou perceber
finalmente dar sentido aparncia das coisas; numa palavra, compreender
(2003:61). A partir das asseres destes autores, deduz-se que a percepo
um processo cognitivo complexo porque, ao apreender os objectos a partir dos
sistemas sensorial e motor, o corpo atribui-lhes determinadas qualidades de
acordo com a sua situao espacial (Grossmann 1995:659).
Deduz-se, ainda, a partir daquelas citaes que o pensamento no uma
actividade pura, no situada e auto-suficiente, porque qualquer pensamento
subentende a emanao das situaes e dos acontecimentos que o corpo
viveu no passado e logicamente, dos pensamentos vinculados queles , tal
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O Corpo Tridimensional | 25
como Merleau-Ponty (1999) menciona, quando escreve que o mundo no
aquilo que eu penso mas aquilo que eu vivo (1999:14). O pensamento
subentende, ainda, a atribuio dos juzos de valor que prevalecem sobre as
coisas sentidas,40 acrescidos pelos aspectos afectivos delas suscitados; o
pensamento , portanto, a construo subsequente s sensaes recolhidas
(Merleau-Ponty 1999:70; e Ribeiro 2003:61).
Lakoff e Johnson (1999) definem a mente como resultando da incorporao
ocorrida a partir da interaco do corpo com o ambiente fsico, social e cultural
e descrevem o raciocnio produzido quotidianamente enquanto consciente ou
inconsciente41 e enquanto estruturado, emocional, metafrico e imaginativo
(1999:4-6). Lakoff e Johnson (1999) adiantam, ainda, que o sistema conceptual
inconsciente, composto pelo conhecimento implcito experincia do corpo,
responsvel pela configurao dos valores, dos planos e das aces
conscientes que o corpo produz (1999:12-15).
Damsio (2003b), esclarecendo que as emoes evoluem nos sentimentos,
alude importncia fundamental que ambos tm para o corpo, nomeadamente
e sumariamente, para a percepo do seu interior com vista promoo da
sua sobrevida e do seu bem estar, para a sua adaptao ao ambiente fsico,
social e cultural, assim como para a criao do si, sem o qual no seria
possvel quele ter a conscincia que faculta o conhecimento. A partir das
pesquisas que efectuou, o neurologista caracteriza as emoes enquanto
respostas reflexas, inconscientes e estereotipadas42 e classifica-as enquanto
fenmenos pblicos porque patentes no rosto, na voz, ou em comportamentos
especficos (2003b:44); descreve os sentimentos enquanto a incorporao de
um dispositivo novo no reportrio biolgico que possibilita o controlo voluntrio
daquilo que at ento era automtico (2003b:96) e caracteriza-os enquanto 40 O juzo , para Merleau-Ponty (1999), aquilo que falta sensao para tornar possvel umapercepo (1999:60), uma tomada de posio, uma validao sobre aquilo que serve aocorpo prprio, ao contrrio do sentir que no busca a possesso sobre as coisaspercepcionadas ou percebidas (1999:62,67).41 Lakoff e Johnson (1999), distinguindo a extenso dos pensamentos conscientes daquelesque so engendrados inconscientemente (ou irreflectidamente e automaticamente), indicamainda, a percentagem que ambos ocupam na pirmide que sustenta as operaes cognitivas:os primeiros correspondem a 5% e os segundos abrangem 95% (1999:12-15).42 Embora as emoes se possam distinguir, ainda, por serem ou literalmente inatas ouadquiridas a partir da incorporao dos comportamentos reflexos observados nos outros(Damsio 2003b:64-66).
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fenmenos de cariz privado porque necessariamente invisveis para o pblico
(2003b:44).
Damsio (2003b) menciona, ainda, que tanto quanto sabemos, poucas ou
nenhumas percepes de qualquer objecto ou situao, presente na realidade
ou recordado da nossa memria, podem ser classificadas como neutras em
termos emocionais (2003b:112). Merleau-Ponty (1999) no consegue,
igualmente, dissociar as emoes do conjunto de caractersticas que
constituem a percepo, afirmando que vem-se ou reconhecem-se nos
objectos, primeiro que tudo, as suas qualidades atractivas ou repulsivas que,
no sendo qualia intrnsecos aos objectos, equivalem s projeces e s
associaes que o para si cria constantemente acerca deles (1999:49-50). Por
seu turno, Hall (2002) assevera que os significados atribudos aos objectos
representados no dependem das suas qualidades materiais do seu aspecto
formal, cromtico, etc. , mas sim da sua funo simblica (2002:25-26).
Se o prazer e o desconforto sentidos pelo corpo, resultantes da percepo
realizada a partir dos sistemas sensorial e motor, so os avaliadores de toda a
sua experincia adquirida, ento, conclui Ribeiro (2003), esta experincia tem
uma natureza corporal (2003:133-135). Na opinio de Damsio (2003b), a
experincia vivida desencadeia a associao entre pensamentos e emoes
numa rede que funciona em duas direces (2003b:88), proveniente da
articulao constante dos planos cognitivos e dos planos emocionais que nele
coabitam: determinados pensamentos so consequncia de certas emoes e
determinadas emoes so causadas por certos pensamentos.
Assim, do ponto de vista fisiolgico, para que uma entidade esteja apta a sentir
necessrio ter, para alm de um corpo, os meios internos para representar
esse mesmo corpo, ou seja, 1. um sistema nervoso capaz de 2. mapear as
estruturas e os estados do corpo e de transformar os padres neurais desses
mapas em imagens e, ainda, de 3. reconhecer conscientemente, no organismo,
os contedos dos sentimentos; seguidamente, o crebro produz novos mapas
noutras regies cerebrais que no aquelas que construram os estados
emocionais do corpo (Damsio 2003b:130-132).
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Se, para Merleau-Ponty (1999), o corpo eminentemente um espao
expressivo (1999:202) porque atribui significados aos objectos que consigo
coabitam no mundo, para Janeiro (2003), a constituio do mundo43 serve
ento de pretexto para a definio do sujeito (2003:20).
O corpo, ele prprio, no pode ser tomado como um objecto porque o corpo
nunca se afasta de si mesmo, nunca se observa de diversos ngulos; o corpo
, ento, uma presena permanente que condiciona toda a percepo dos
objectos (Merleau-Ponty 1999:133-134) constitudos pelas imagens mentais
construdas pelo corpo, as quais necessariamente o incluem (Damsio
2001:29). Este fenmeno ocasiona a gnese da conscincia do si (Damsio
2001:30) ou do corpo prprio (Merleau-Ponty 1999:142), definido por aqueles
autores como a presena sentida que o corpo interior experimenta, de uma
forma activa, consigo e com o mundo.
Se o corpo prprio no um objecto, no pode igualmente ser uma
representao, pelo simples facto de viver, de estar sempre presente e incluir-
se nos objectos a que deu sentido (Merleau-Ponty 1999:141) porque lhes
atribuiu um contexto (Gil 2001:103). Mesmo parecendo que o design de moldes
toma o corpo como um objecto, representando-o atravs das peas de
vesturio que projecta, a gnese desta disciplina advm das interpretaes que
o corpo integrado e singular constri sobre si mesmo porque, tal como
Merleau-Ponty (1999) descreve, todo objecto cultural remete a um fundo de
natureza sobre o qual ele aparece (1999:50-51). Ento, considerando que
tanto a natureza como os objectos percepcionados so construes do corpo,
as peas de vesturio delineadas, reflectem a subjectividade resultante dum
corpo vivido, dum corpo que sente e dum corpo que se move.
As diferentes formas de representao,44 provenientes dos sistemas
conceptuais que sustentam as operaes cognitivas realizadas pelo corpo,
podem ser consideradas universais (Lakoff e Johnson 1999:6). Do ponto de
43 Resultante da operao a que se aludiu precedentemente.44 Hall (2002) distingue a primeira forma enquanto interpretao interiorizada do mundo(imagens mentais) e a segunda enquanto interpretao exteriorizada do mesmo (linguagemverbal, visual, etc.).
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vista cientfico, o resultado da semelhana biolgica existente entre os corpos45
possibilita a construo anloga dos padres neurais relativos a um mesmo
objecto (Damsio 2003b:225). Do ponto de vista cultural, em consequncia do
corpo coexistir no mundo com outros corpos, as representaes dos objectos
constituem-se numa realidade representacional partilhada, fundada em
parmetros, ou regras em cdigos comuns (Janeiro 2003:22) que
proporcionam a construo duma cultura de significados partilhados e,
consequentemente, a edificao dum mundo social (Hall 2002:18).
2.4 O Corpo Funcional O segundo
corpo deste texto abrange aquele que ocasiona e ocasionado pelo
movimento, assim como aquele que manipula objectos. Estas caractersticas
que provm da sua configurao interior, do dinamismo mecnico, qumico e
elctrico que une os seus rgos, assim como da sua interaco com o
ambiente, conduzem o corpo possibilidade de construir objectos que, por sua
vez, facultam a construo da sua imagem exterior.
O corpo funcional , numa mesma instncia, o corpo que tem um
funcionamento interior comandado pelo crebro que, embora localizado na
caixa craniana, estende-se a todas as outras partes do corpo e, desta forma,
alcana o mundo (Ratner 2003:199) e um corpo instrumento caracterizado
por ser expansivo porque a sua produo de actividade e a sua preciso de
movimentos permitem-lhe utilizar o espao exterior (Ribeiro 2003:43,214).
Com o intuito de demarcar as dimenses aparente e invisvel do corpo ou
como Ieda Tucherman (1999:175) refere, os domnios pblico e privado do
mesmo , estabeleceu-se uma fronteira dentro da qual a vida pulsa (Damsio
2003b:56), a pele que, de acordo com Y. Li (1999:28), a interface entre o
corpo e o meio ambiente.
O limite definido a partir de e para dentro da pele e no sob a mesma
justificado pelo facto do maior rgo do corpo (Ratner 2003:198) conter
diversos tipos de terminaes nervosas alojadas na epiderme e, sobretudo,
45 Demonstrada, entre tantas outras caractersticas idnticas, pela caracterizao dos requisitosfisiolgicos necessrios gnese dos sentimentos.
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na derme , cuja actividade modificada por estmulos mecnicos, trmicos,
qumicos e elctricos (Li 1999:27). No tacto, a alterao processada no interior,
causada pelo contacto directo de tipo mecnico com um objecto situado no
seu exterior, ocasiona a construo de imagens relativas sua forma, sua
textura, sua temperatura, etc. (Damsio 2003b:220).
Sobre a pele, so colocados os objectos concebidos pelo corpo as peas de
vesturio e esta prtica transforma o primeiro num objecto artificial (Ribeiro
2003:225). De acordo com a definio que Esther Ratner (2003) faculta, um
artefacto qualquer objecto passvel de ser sentido e tocado46 que
materialmente fabricado, utilizado ou modificado pela actividade humana; um
produto qualquer artefacto que tenha um propsito funcional, um instrumento
utilizvel na realizao de uma tarefa com quem, na opinio de Patrick
Jordan (2000:7), o corpo cria uma relao fsica, cognitiva e emocional.47
Quando artefactos ou produtos tocam o corpo, ou so tocados por este,
convertem-se em estmulos que excitam os receptores da pele, dos msculos e
das articulaes (Ratner 2003:198).
O tacto inclui [ento] um modo activo (tocar) e um modo passivo (ser tocado)
(Ribeiro 2003:130) e estas duas espcies, classificadas pelos seus graus de
superficialidade ou profundidade, incluem: 1. a sensibilidade tctil, de natureza
superficial, que possibilita ao corpo distinguir o mero contacto da presso; 2. a
sensibilidade trmica, de natureza superficial, que permite ao corpo sentir a
temperatura dos objectos que toca ou que o tocam; 3. a sensibilidade lgica, de
natureza superficial, que informa o corpo sobre a natureza e a extenso da dor
detectada sobre ou sob a sua superfcie; 4. a sensibilidade vibratria, de
natureza profunda, que codifica certos tipos de sensaes, tais como as
tremuras e as ccegas; 5. a sensibilidade postural, de natureza profunda, que
compila as diversas situaes que cada parte do corpo vai assumindo num
dado trajecto espacial.
46 A autora retira esta definio da experincia da terapia ocupacional, sabendo-se que umobjecto , essencialmente, qualquer coisa situada dentro ou fora do corpo que modifica o seuestado (Damsio 2003b:67,110).47 A partir desta definio, tanto o corpo como as peas de vesturio podem ser consideradosprodutos que no deixam de ser artificiais.
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Porque a experincia tctil sentida no interior do corpo, os sentimentos de
prazer e de desconforto a que os objectos vestveis do origem
percepcionados a partir da pele, dos msculos e das articulaes so,
certamente, factores a considerar aquando da concepo de vesturio. Na
perspectiva de Damsio (2003b), a experincia do corpo em estados
agradveis ou dolorosos, essencial para a produo de pensamentos felizes
ou tristes, por exemplo, a estrutura muscular de msculos sob tenso
diferente da de msculos relaxados e o seu mapeamento
correspondentemente diferente (2003b:105), podendo concluir-se, novamente,
que as consequncias daqueles estados constituem um dado fulcral que o
design de moldes necessita contemplar enquanto prtica responsvel por uma
das fases de construo das peas de vesturio que o corpo adopta.
A interaco entre o corpo e as peas de vesturio adoptadas tem efeitos
directos sobre a maneira como o primeiro percepciona o seu lugar corporal o
espao que ocupa com o seu volume, a sua forma e a sua proporo (Ribeiro
2003:21) , ou ainda, sobre a forma como o espao exterior percepcionado,
tal como Merleau-Ponty (1999) refere quando compara o vesturio bengala
de um cego: a bengala no mais um objecto que o cego perceberia, mas um
instrumento com o qual ele percebe (1999:211). George Elliot (2000)
exemplifica aquelas situaes em The Mill on the Floss, publicado em 1860, da
seguinte forma: com a cabea inclinada para trs num ngulo que no
causasse danos ao seu chapu () Mrs Pullet roou cada umbral da porta com
grande delicadeza, aproximadamente altura dos seus ombros (naquele tempo
uma mulher era verdadeiramente ridcula para um olho entendedor se os seus
ombros no medissem um metro e meio) (2000:48).48
Ribeiro (2003) alude a outras consequncias que o corpo vestido (enquanto
significante corporal) patenteia, entre as quais os indcios, correspondentes aos
comportamentos reflexos como o movimento, as posturas, etc., que
exteriorizam os estados emocionais do corpo (2003:206-207). Hollander (1993),
48 Traduo livre de With her back leaning backward at the angle that will not injure her bonnet() Mrs Pullet brushed each doorpost with great nicety, about the latitude of her shoulders (atthat period a woman was truly ridiculous to an instructed eye if she did not measure a yard anda half across her shoulders).
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concordando, alega que os movimentos conscientes e inconscientes
produzidos pelo corpo, nomeadamente as posturas, as poses e os gestos, so
determinados, no s pelas suas caractersticas fisiolgicas, mas tambm pela
observao e pela incorporao dos comportamentos reconhecidos como
aceitveis pelo corpo social (1993:314-315).
Hollander (1994) menciona ainda que as peas de vesturio que replicam os
volumes do corpo, exigem quele uma aprendizagem dos movimentos e das
posturas adequados, de forma a que, enquanto corpo vestido, continue a
transmitir uma aparncia natural (1994:99). Eco (1986) escreveu em 1976 O
Pensamento Lombar que designou como uma reflexo filosfica pessoal
acerca da percepo relativa ao seu prprio corpo quando vestido num par de
jeans calas estas que apoiam-se na anca no por suspenso mas por
aderncia (1986:195) e, ainda, acerca das implicaes que o uso daquelas
calas tiveram sobre a sua mobilidade.49
Por seu turno, Entwistle (2000) assevera que qualquer objecto vestvel,
independentemente da sua forma, do seu volume e do seu peso, obriga a uma
postura e a um movimento especficos (2000:39) e Elizabeth Rouse (1999)
refere que a restrio de movimentos a que o corpo vestido se sujeita
normalmente compreendida como uma caracterstica prpria ao corpo
instrumento e no como o resultado que o uso de certas peas de vesturio
tem sobre o mesmo (1999:108).
Na opinio de Hollander (1993,1994), certos tipos de peas acomodam a
mobilidade do corpo melhor que outras nomeadamente as calas, as saias
curtas e as saias compridas, quando folgadas e a adopo de peas
bifurcadas que interpretam o corpo fsico, separando e contornando as pernas,
proporciona, visualmente, simbolicamente e pragmaticamente, a sua
articulao (1993:313 e 1994:41-53).
Desde o momento que nasce, o corpo quase totalmente coberto por peas de
vesturio que so, naturalmente, apreendidas como uma extenso do prprio
corpo, como uma segunda pele (Rouse 1999:50; e Watkins 1995:218). Esta
inter-vivncia quotidiana dinmica porque as peas de vesturio so foradas 49 Ver p. 4.
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a assumir todas as sequncias posturais que o corpo em movimento produz,
amarrotando-se, deformando-se, rasgando-se (Entwistle 2000:71), formando
diversas pregas e dobras correspondentes aos nveis de flexo do corpo
correspondentes s articulaes dos joelhos, dos cotovelos, da cintura, etc.; em
descanso, as peas voltam a adoptar a aparncia idealizada (Hollander 1994:8)
aquando da sua concepo bidimensional.50
Na opinio de Susan Watkins (1995), o estudo relativo subordinao a que as
peas de vesturio esto sujeitas quando colocadas sobre o corpo, obriga
reflexo acerca da mobilidade que caracteriza este ltimo (1995:219) enquanto
expresso da potncia fsica comunicada exteriormente pelas sequncia e
cadncia dos movimentos produzidos, percebidos, no como uma sucesso de
posies, mas como um resultado essencialmente revestido de sentido
(Merleau-Ponty 1999:152). O desenho traado pelo corpo enrgico no espao
e no tempo (Stobbaerts 2002:48; e Watkins, 1995:225) pode ser entendido em
determinados mbitos51 como belo (Kelley 1971:3), detentor de sensibilidade
cinestsica (Stobbaerts 2002:47), conscientemente plstico e artificial (Gil
2001:24-25), dependendo a interpretao do seu significado da prp