desigualdades socioeconómicas na utilização de cuidados de...

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ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA Desigualdades Socioeconómicas na Utilização de Cuidados de Saúde na População com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4.º Inquérito Nacional de Saúde 2005/2006 Ricardo Miguel Canhoto Rosado Orientador: Professor Doutor Julian Perelman Projecto de Investigação submetido para a obtenção do Grau de Mestre em Gestão da Saúde Ramo de Gestão das Organizações Lisboa, Julho de 2014

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ESCOLA NACIONAL DE SADE PBLICA

UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

Desigualdades Socioeconmicas na Utilizao de Cuidados de Sade

na Populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal

Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

Ricardo Miguel Canhoto Rosado

Orientador: Professor Doutor Julian Perelman

Projecto de Investigao submetido para a obteno do

Grau de Mestre em Gesto da Sade

Ramo de Gesto das Organizaes

Lisboa, Julho de 2014

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

ii Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente

Albert Camus

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Agradecimentos

Ao Professor Julian Perelman, por me ter orientado neste trabalho e com a partilha do seu

conhecimento e experincia me ter ajudado a compreender a complexidade e importncia das

questes da equidade nos sistemas de sade. Para alm da sua orientao, agradeo-lhe

sinceramente, mais do que alguma vez consiga verbalizar, todo o incentivo, conselhos,

confiana e o exemplo de humildade que sempre me transmitiu e que foram essenciais ao

culminar do meu percurso acadmico e profissional.

Aos meus colegas do Mestrado em Gesto da Sade, por ajudarem com o trabalho quando foi

necessrio e pela descontraco e amizade quando s isso importava.

Escola Nacional de Sade Pblica, na pessoa do seu corpo docente e demais funcionrios, o

apoio e condies disponibilizadas para a concretizao deste estudo.

Ao Filipe, ao Pedro, Andreia, Filipa, Marta, ao Andr, ao Lus, Isilda, ao Jos, ao Miguel,

ao Tiago, a amizade e companheirismo de sempre.

Ins, o amor e compreenso que pontuaram a redaco desta tese. Aos meus pais, e por

ltimo a todos os amigos e famlia que ajudaram das mais diversas formas

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NDICE GERAL

Resumo ................................................................................................................................................. ix

Abstract ................................................................................................................................................. x

1. INTRODUO .............................................................................................................................. 11

2. REVISO DA LITERATURA ............................................................................................................ 14

2.1 A SADE EM PORTUGAL EVOLUO HISTRICA E ENQUADRAMENTO SOCIODEMOGRFICO .... 14

2.2 SISTEMA DE SADE EM PORTUGAL ................................................................................................. 14 2.2.1 Caracterizao Geral do Sistema de Sade .............................................................................. 14 2.2.2 Enquadramento Legal e Normativo do Sistema de Sade ....................................................... 15 2.2.3 Oferta e Prestao de Cuidados de Sade ................................................................................ 17 2.2.4 O Financiamento da Sade em Portugal .................................................................................. 18 2.2.5 Orientaes regulamentares e estratgicas do Sistema de Sade ........................................... 19

2.3 EQUIDADE EM SADE E NOS CUIDADOS DE SADE ........................................................................ 20 2.3.1 Definio de conceitos .............................................................................................................. 20 2.3.2 Equidade e Igualdade ............................................................................................................... 21 2.3.3 Conceitos clssicos e modernos de equidade .......................................................................... 22 2.3.4 Equidade em Cuidados de Sade .............................................................................................. 26

2.3.4.1 Evidncia cientfica no plano internacional ....................................................................... 26 2.3.4.2 Equidade no acesso a cuidados de sade em Portugal ..................................................... 29 2.3.4.3 Equidade no acesso a cuidados de sade por parte de pessoas com mais de 65 anos .... 39 2.3.4.4 Equidade no acesso a cuidados de sade por parte de pessoas com mais de 65 anos em Portugal ......................................................................................................................................... 43

2.3.5 Polticas e Estratgias de Sade para a Populao Idosa ......................................................... 50 2.3.5.1 Equidade e Envelhecimento .............................................................................................. 50 2.3.5.2 Polticas Nacionais de Sade para a populao idosa em Portugal .................................. 50

3. METODOLOGIA DO ESTUDO ........................................................................................................ 56

3.1 TIPO DE ESTUDO .............................................................................................................................. 56

3.2 OBJECTIVOS DO ESTUDO .................................................................................................................. 56 3.2.1 Objectivo Geral ......................................................................................................................... 56 3.2.2 Objectivos Especficos ............................................................................................................... 56

3.3 AMOSTRA DO ESTUDO ..................................................................................................................... 56

3.4 VARIVEIS DO ESTUDO .................................................................................................................... 57 3.4.1 Variveis sociodemogrficas ..................................................................................................... 57 3.4.2 Variveis socioeconmicas ....................................................................................................... 57 3.4.3 Variveis de Utilizao de Cuidados de Sade.......................................................................... 59 3.4.4 Varivel Estado de Sade .......................................................................................................... 60

3.5 DESENHO DO ESTUDO ...................................................................................................................... 62

4. APRESENTAO DOS RESULTADOS ............................................................................................. 63

4.1 CARACTERIZAO SOCIODEMOGRFICA DA AMOSTRA .................................................................. 63 4.1.1 Distribuio por sexo ................................................................................................................ 63

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4.1.2 Distribuio por grupo etrio ................................................................................................... 63 4.1.4 Distribuio por rendimento em categorias ............................................................................. 64 4.1.5 Distribuio por estatuto face ao emprego .............................................................................. 64 4.1.6 Distribuio por seguro de sade ............................................................................................. 64 4.1.7 Estado de sade auto-reportado .............................................................................................. 65

4.2 UTILIZAO DE CUIDADOS DE SADE .............................................................................................. 65 4.2.1 Consultas, consultas de CSP e consultas de especialidade ....................................................... 65 4.2.2 Motivo principal para ter uma consulta ................................................................................... 66 4.2.3 Nmero de consultas ................................................................................................................ 66 4.2.4 Dias de espera pela consulta mdica ........................................................................................ 67 4.2.5 Tempo de espera no acto da consulta ...................................................................................... 67 4.2.6 Grau de Satisfao em relao s consultas ............................................................................. 68

4.3 ANLISE UNIVARIADA DAS DESIGUALDADES SOCIOECONMICAS NA UTILIZAO DE CUIDADOS DE SADE ............................................................................................................................................... 68

4.3.1 Probabilidade de ter alguma consulta ...................................................................................... 68 4.3.2 Probabilidade de ter uma consulta de CSP ............................................................................... 70 4.3.3 Probabilidade de ter uma consulta de especialidade ............................................................... 71 4.3.4 Dias de espera at obter consulta ............................................................................................ 73 4.3.5 Tempo de espera no acto da consulta ...................................................................................... 75 4.3.6 Grau de satisfao em relao s consultas ............................................................................. 78 4.3.7 Nmero de consultas ................................................................................................................ 80 4.3.8 Nmero de consultas de CSP .................................................................................................... 82 4.3.9 Nmero de consultas de especialidade .................................................................................... 83

4.4 ANLISE MULTIVARIADA DAS DESIGUALDADES SOCIOECONMICAS NA UTILIZAO DE CUIDADOS DE SADE MODELO DE REGRESSO LINEAR MLTIPLA ..................................................................... 85

4.4.1 Anlise multivariada da utilizao de consultas ....................................................................... 85 4.4.2 Anlise multivariada da utilizao de consultas de CSP ........................................................... 87 4.4.3 Anlise multivariada da utilizao de consultas de especialidade ........................................... 88

5. ANLISE E DISCUSSO DOS RESULTADOS .................................................................................... 90

5.1 DISCUSSO DAS DESIGUALDADES SOCIOECONMICAS NA UTILIZAO DE CUIDADOS DE SADE ANLISE UNIVARIADA ............................................................................................................................ 90

5.2 DISCUSSO DAS DESIGUALDADES SOCIOECONMICAS NA UTILIZAO DE CUIDADOS DE SADE ANLISE MULTIVARIADA ........................................................................................................................ 93

5.3 LIMITAES DO ESTUDO .................................................................................................................. 99

5.4 CONCLUSES E FUTURAS LINHAS DE INVESTIGAO .................................................................... 100

6. CONCLUSO .............................................................................................................................. 102

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................................................... 104

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NDICE DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1 Variveis e categorias do estudo ............................................................................................ 61 Quadro 2 - Quadro sntese da anlise univariada s desigualdades socioeconmicas na utilizao de

cuidados de sade (sexo masculino) ..................................................................................................... 90 Quadro 3 - Quadro sntese da anlise univariada s desigualdades socioeconmicas na utilizao de

cuidados de sade (sexo feminino) ........................................................................................................ 91 Quadro 4 Quadro sntese da anlise multivariada s desigualdades socioeconmicas na utilizao de

cuidados de sade (sexo masculino) ..................................................................................................... 93 Quadro 5 Quadro sntese da anlise multivariada s desigualdades socioeconmicas na utilizao de

cuidados de sade (sexo feminino) ........................................................................................................ 94

Tabela 1 - Distribuio por sexo ................................................................................................................. 63 Tabela 2 - Distribuio por grupo etrio segundo o sexo ........................................................................... 63 Tabela 3 - Nvel de escolaridade ................................................................................................................ 63 Tabela 4 - Distribuio por rendimento em categorias ............................................................................... 64 Tabela 5 - Estatuto face ao emprego ......................................................................................................... 64 Tabela 6 - Cobertura de seguro de sade .................................................................................................. 64 Tabela 7 - Estado de sade auto-reportada ............................................................................................... 65 Tabela 8 - Probabilidade de ter consultas .................................................................................................. 65 Tabela 9 - Motivo principal para ter consulta .............................................................................................. 66 Tabela 10 - Outro motivo para ter consulta ................................................................................................ 66 Tabela 11 - Nmero de consultas ............................................................................................................... 66 Tabela 12 - Dias de espera at obter consulta ........................................................................................... 67 Tabela 13 - Motivo da espera em obter consulta........................................................................................ 67 Tabela 14 - Tempo de espera no acto da consulta .................................................................................... 67 Tabela 15 - Grau de satisfao aps a consulta ........................................................................................ 68 Tabela 16 - Probabilidade de ter alguma consulta por nvel de escolaridade ............................................ 68 Tabela 17 - Probabilidade em ter alguma consulta por rendimento em categorias .................................... 69 Tabela 18 - Probabilidade em ter alguma consulta em funo do estatuto face ao emprego .................... 69 Tabela 19 - Probabilidade de ter uma consulta de CSP por nvel de escolaridade .................................... 70 Tabela 20 - Probabilidade de ter uma consulta de CSP por rendimento em categorias ............................ 70 Tabela 21 - Probabilidade em ter uma consulta de CSP em funo do estatuto face ao emprego ............ 71 Tabela 22 - Probabilidade de ter alguma consulta de especialidade por nvel de escolaridade ................. 71 Tabela 23 - Probabilidade em ter uma consulta de especialidade por rendimento em categorias ............. 72 Tabela 24 - Probabilidade de ter uma consulta de especialidade em funo do estatuto face ao emprego .................................................................................................................................................................... 72 Tabela 25 - Dias de espera at obter consulta em funo do nvel de escolaridade na populao masculina .................................................................................................................................................... 73 Tabela 26 - Dias de espera at obter consulta em funo do nvel de escolaridade na populao feminina .................................................................................................................................................................... 73 Tabela 27 - Dias de espera at obter consulta em funo do rendimento em categorias na populao masculina .................................................................................................................................................... 74 Tabela 28 - Dias de espera at obter consulta em funo do rendimento em categorias na populao feminina ...................................................................................................................................................... 74 Tabela 29 - Dias de espera at obter consulta em funo do estatuto face ao emprego na populao masculina .................................................................................................................................................... 74 Tabela 30 - Dias de espera at obter consulta em funo do estatuto face ao emprego na populao feminina ...................................................................................................................................................... 75 Tabela 31 - Tempo de espera no acto da consulta em funo do nvel de escolaridade na populao masculina .................................................................................................................................................... 75 Tabela 32 - Tempo de espera no acto da consulta em funo do nvel de escolaridade na populao feminina ...................................................................................................................................................... 75 Tabela 33 - Tempo de espera no acto da consulta em funo do rendimento em categorias na populao masculina .................................................................................................................................................... 76

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Tabela 34 - Tempo de espera no acto da consulta em funo do rendimento em categorias na populao feminina ...................................................................................................................................................... 76 Tabela 35 - Tempo de espera no acto da consulta em funo do estatuto face ao emprego na populao masculina .................................................................................................................................................... 77 Tabela 36 - Tempo de espera no acto da consulta em funo do estatuto face ao emprego na populao feminina ...................................................................................................................................................... 77 Tabela 37 - Grau de satisfao pela consulta em funo do nvel de escolaridade na populao masculina .................................................................................................................................................................... 78 Tabela 38 - Grau de satisfao pela consulta em funo do nvel de escolaridade na populao feminina .................................................................................................................................................................... 78 Tabela 39 - Grau de satisfao pela consulta em funo do rendimento em categorias na populao masculina .................................................................................................................................................... 79 Tabela 40 - Grau de satisfao pela consulta em funo do rendimento em categorias na populao feminina ...................................................................................................................................................... 79 Tabela 41 - Grau de satisfao pela consulta em funo do estatuto face ao emprego na populao masculina .................................................................................................................................................... 79 Tabela 42 - Grau de satisfao pela consulta em funo do estatuto face ao emprego na populao feminina ...................................................................................................................................................... 80 Tabela 43 - Nmero mdio de consultas em funo do nvel de escolaridade .......................................... 80 Tabela 44 - Nmero mdio de consultas em funo do rendimento em categorias ................................... 81 Tabela 45 - Nmero mdio de consultas em funo do estatuto face ao emprego .................................... 81 Tabela 46 - Nmero mdio de consultas de CSP em funo do nvel de escolaridade ............................. 82 Tabela 47 - Nmero mdio de consultas de CSP em funo do rendimento ............................................. 82 Tabela 48 - Nmero mdio de consultas de CSP em funo do estatuto face ao emprego ...................... 83 Tabela 49 - Nmero mdio de consultas de especialidade em funo do nvel de escolaridade ............... 83 Tabela 50 - Nmero mdio de consultas de especialidade em funo do rendimento em categorias ....... 84 Tabela 51 - Nmero mdio de consultas de especialidade em funo do estatuto face ao emprego ........ 84 Tabela 52 - Anlise multivariada da utilizao de consultas ...................................................................... 85 Tabela 53 - Anlise multivariada da utilizao de consultas de CSP ......................................................... 87 Tabela 54 - Anlise multivariada da utilizao de consultas de especialidade ........................................... 88

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACSS Administrao Central do Sistema de Sade, I.P. ARS Administrao Regional de Sade CSP Cuidados de Sade Primrios EUA Estados Unidos da Amrica F Feminino INE Instituto Nacional de Estatstica INS Inqurito Nacional de Sade ISCED - International Standard Classification of Education M Masculino MCDT Meios Complementares de Diagnstico e Teraputica OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico OMS Organizao Mundial de Sade PIB Produto Interno Bruto SNS Servio Nacional de Sade UE Unio Europeia USF Unidade de Sade Familiar

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Resumo INTRODUO: A equidade em cuidados de sade constitui uma prioridade das polticas de sade, tendo vrios estudos descrito uma iniquidade que geralmente favorece os indivduos

com maior rendimento e nvel educacional. Este estudo visa caracterizar as desigualdades

socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de

idade, dadas as suas caractersticas, maior vulnerabilidade e crescente peso demogrfico na

populao.

METODOLOGIA: Atravs de dados do INS, procedeu-se anlise univariada e multivariada por regresso linear mltipla para avaliao das desigualdades socioeconmicas na utilizao

de cuidados de sade em 8698 indivduos.

RESULTADOS: Identifica-se um padro de desigualdade na utilizao de cuidados de sade indivduos com maior rendimento e nvel de escolaridade utilizam em mdia mais consultas de

especialidade; ocorrendo o inverso nas consultas de CSP. Com ajustamento pela necessidade,

atravs do estado de sade auto-reportado, observa-se um padro de iniquidade no sexo

masculino relativamente s consultas em geral e consultas de CSP.

DISCUSSO E CONCLUSES: A iniquidade na utilizao de cuidados de sade, apesar de no constituir a nica causa, pode determinar maior iniquidade em sade, pelo que relevante

o seu estudo. Os resultados alcanados podem ser justificados pelas caractersticas do SNS,

assim como pelas isenes de taxas moderadoras, rede social, outros indicadores econmicos,

ou ainda pelo prprio contexto de vida do individuo. Torna-se fundamental prosseguir a

investigao acerca da equidade, assim como promover uma ampla reflexo sobre os desafios

futuros do sistema de sade, que permitam preservar a sua sustentabilidade e princpios

fundadores.

PALAVRAS-CHAVE: desigualdades socioeconmicas, equidade, equidade horizontal, polticas de sade, idosos, Inqurito Nacional de Sade.

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Abstract

INTRODUCTION: Healthcare equity is considered a major goal in respect of health policies. Many researchers have analyzed health equity and healthcare equity, describing the existence of horizontal inequality that favors the individuals with higher income and education level. This study aims to characterize socioeconomic inequalities in healthcare utilization among population aged 65 or over given its characteristics, higher vulnerability and increasing demographic weight in the population. METHODS: It was carried out both univariate analysis and multivariate analysis by multiple linear regression using National Health Survey data in order to assess socioeconomic inequalities in healthcare utilization in 8698 individuals. RESULTS: Main results demonstrate an inequality pattern in healthcare utilization individuals with higher income and education have more specialist visits and individual with lower incomes and education have more general practice visits. After risk-adjustment, towards self-perceived health status, is observed an horizontal inequality pattern between male individuals concerning GP visits and overall visits. DISCUSSION AND CONCLUSIONS: Healthcare inequality, despite not being the only cause, can determine higher health inequality, which recommends further research on this field. The results obtained may be justified by National Health Service features, exemption of user charges, social network, other socioeconomic figures, as well as the individual life context. Thus, it is essential to carry on with the research on the issue of equity, while promoting a wide discussion on the future challenges of the health system to ensure its sustainability and founding principles. KEY-WORDS: socioeconomic inequalities, equity, horizontal equity, health policies, elderly, National Health Survey.

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1. INTRODUO

O presente trabalho de investigao insere-se no mbito da Unidade Curricular de

Projecto de Investigao, referente ao segundo ano do VIII Curso de Mestrado em Gesto da

Sade da Escola Nacional de Sade Pblica da Universidade Nova de Lisboa.

Intitulado sob a forma de Desigualdades Socioeconmicas na Utilizao de Cuidados de Sade na populao com mais de 65 ou mais anos de idade em Portugal, faz com se tenham constitudo como objectivos acadmicos primordiais ao presente estudo a reflexo crtica sobre

a utilizao de cuidados de sade por parte desse segmento especfico da populao e a

construo de hipteses explicativas para as tendncias de consumo deste bem especfico que

a sade. Alicerado sobre a escolha criteriosa de evidncia cientfica diversificada e

pluridisciplinar, pretende-se consubstanciar o caso particular em estudo com outras

publicaes e anlises de diferentes domnios, incidindo sobre outros nveis de cuidados,

outras realidades sociodemogrficas, e inclusivamente outras perspectivas metodolgicas.

A eliminao das desigualdades em cuidados de sade e, consequentemente, no estado

de sade das populaes tem sido uma finalidade major dos sistemas de sade modernos

(ANAND, S.; 2002; BORREL, C.; et al.; 2000; MACKENBACH, J.P.; et al.; 2008). A temtica do processo de envelhecimento tem alertado cada vez mais os profissionais de diferentes reas

de investigao cientfica, bem como da prpria sociedade, uma vez que ao longo das ltimas

dcadas, o mundo tem assistido ao aumento significativo do nmero de idosos, motivado pelo

aumento da esperana mdia de vida, entre outros factores de natureza demogrfica (INE;

2012; PORDATA; 2013). O envelhecimento consiste num fenmeno biopsicossocial que se

manifesta de vrias formas, passando pelo envelhecimento fsico, psicolgico ou social. Este

conjunto de modificaes ir afectar o funcionamento humano em diferentes reas e contextos,

repercutindo-se nas actividades dirias, na autonomia, na sade fsica e mental, entre outros

domnios (FERNANDEES, A. A.; 2005; SANTANA, P.; 2002).

O envelhecimento, para alm dos aspectos relacionados com alteraes biolgicas e

psicolgicas, um processo desencadeado pela cultura e contexto social, pelo que entendido

como uma alterao de atitudes e mentalidade que resulta das interaces que se vo

estabelecendo entre os diversos grupos etrios e as suas condies de vida (FERNANDEES,

A. A.; 2005; SANTANA, P.; 2002).

Em Portugal, e semelhana dos restantes estados europeus, observa-se um marcado

envelhecimento da populao devido conjugao simultnea de determinados

comportamentos de tendncia demogrfica, tais como a diminuio significativa da taxa de

natalidade, o decrscimo generalizado das taxas de mortalidade e o aumento gradual da

esperana mdia de vida nascena. Assim, surge a necessidade de uma abordagem

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

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multidimensional e compreensiva dos problemas dos idosos em funo da sua condio fsica

e funcional, mental e socioeconmica (CAMPOS, A. C.; 2001; FERNANDES, A. C.; et al.; 2012).

Actualmente assiste-se a uma profunda alterao do tecido econmico, social e cultural,

mas sobretudo a uma persistente transio demogrfica, traduzida pela acentuada inverso da

pirmide etria, o que configura, por si s, novos paradigmas no que concerne s relaes

intergeracionais, familiares e comunitrias. Portugal tem vindo a tornar-se um pas cada vez

mais envelhecido, onde o peso dos idosos face percentagem de jovens est a aumentar

exponencialmente, em parte devido aos factores demogrficos anteriormente expostos (INE;

2012; PORDATA; 2013).

Assim, e considerando que a populao idosa apresenta uma tendncia

proporcionalmente crescente a nvel nacional, impe-se uma reformulao de estratgias que

visem mitigar as desigualdades socioeconmicas em sade e no acesso aos cuidados de

sade, pelo que o seu conhecimento e futuras investigaes revestem-se de particular

importncia. Torna-se claro e relevante que este seja um autntico desafio de futuro, no

meramente acadmico mas sobretudo geracional pelo impacto social e econmico que estes

fenmenos implicam a mdio e longo prazo (MENDES, F. R.; 2011). Deste modo, e por

conseguinte, torna-se pertinente uma abordagem mais detalhada sobre as questes das

desigualdades socioeconmicas e iniquidade ao nvel do segmento populacional mais idoso,

considerando o seu crescente peso demogrfico no caso dos pases desenvolvidos, tentando

compreender e enquadrar socialmente este fenmeno. Actualmente, unnime a existncia de

um padro de iniquidade em cuidados de sade em termos da populao em geral, no entanto

persistem algumas dvidas, e estudos menos consistentes, acerca da populao idosa,

nomeadamente em Portugal. A temtica da equidade na utilizao de cuidados de sade

hoje, mais do que um mero imperativo acadmico, uma responsabilidade social,

consubstanciada pelas condies intrnsecas ao envelhecimento e respectiva situao de

extrema vulnerabilidade em que se encontram muitos destes indivduos, em resultado de

constrangimentos relacionados com contextos de maior isolamento, a ruralidade decorrente de

movimentos migratrios e particularidades geogrficas, a maior dependncia de mecanismos

de suporte social, ou ainda um quadro acentuado de comorbilidades que geralmente se lhe

encontra associado.

A equidade em sade e na utilizao de cuidados de sade, vector central de reflexo

deste trabalho, traduz-se por um valor de justia distributiva e consiste na preocupao em

reduzir as desigualdades de oportunidades para ser saudvel, associado principalmente a grupos sociais menos privilegiados como as pessoas com menores recursos financeiros e materiais, os grupos raciais, tnicos ou religiosos, mulheres e residentes em reas rurais (BRAVEMAN; GRUSKIN; 2003). Tambm seria pertinente, do ponto de vista da investigao, e

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

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face aos pressupostos apresentados, acrescentar o subgrupo populacional dos idosos, ou

pessoas com mais de 65 anos, dada a sua representatividade demogrfica e influncia

exercida em termos de sustentabilidade social e econmica para o sistema de sade em geral.

Em Portugal existe registo de alguma evidncia acerca de equidade na utilizao de

cuidados de sade em termos genricos. Consolidou-se a noo de que o pas apresentou

uma evoluo significativa ao nvel dos principais indicadores de sade ao longo das ltimas

dcadas, mas regista-se alguma inconsistncia no conhecimento relativo a desigualdades

socioeconmicas inerentes a esses mesmos indicadores. Sob uma perspectiva global, pode

afirmar-se que o pas apresenta um padro de iniquidade que tende a favorecer os grupos

socioeconmicos mais elevados, dos grandes centros urbanos e com maiores ndices de

escolaridade (BAGO DUVA, T.; 2010; FURTADO, C.; PEREIRA, J.; 2010; VAN DOORSLAER,

E.; MASSERIA, C.; 2004; VAN DOORSLAER, E.; MASSERIA, C.; KOOLMAN, X.; 2006).

Todavia, e no que diz respeito equidade em cuidados de sade por parte da populao idosa

em Portugal, o conhecimento neste domnio escasso e praticamente inconsistente, o que

refora a pertinncia de uma anlise mais pormenorizada e com um foco particular neste grupo

populacional, pela sua representatividade demogrfica e pelas questes de sustentabilidade e

adaptao de cuidados que devem ser asseguradas e monitorizadas pelo sistema de sade

portugus

A fonte de dados para o desenvolvimento deste estudo foi o 4. Inqurito Nacional de

Sade 2005/2006. Os objectivos gerais consistem em comparar a utilizao de cuidados de

sade entre a populao idosa, ou seja, com 65 ou mais anos de idade, por nvel de cuidados

e de acordo com parmetros socioeconmicos. A anlise do estudo incidir sobre quais os

constrangimentos na utilizao para cada nvel de cuidados de sade cuidados de sade

primrios, e cuidados secundrios ou consultas de especialidade, de acordo com alguns

parmetros sociodemogrficos que se consideram relevantes do ponto de vista da

investigao. Os objectivos especficos remetem para a caracterizao do subgrupo

populacional preconizado pelo estudo em termos de rendimento, nvel de escolaridade e

estatuto face ao emprego, assim como a verificao de uma possvel associao entre nvel

socioeconmico e grau de utilizao de cuidados de sade em Portugal; ou ainda a anlise do

grau de equidade na utilizao de cuidados de sade por parte deste segmento populacional.

O presente trabalho desenvolver-se- segundo quatro blocos principais: inicialmente

ser feito o enquadramento terico e reviso da literatura sobre as principais referncias

cientficas disponveis e quadro conceptual que norteia a abordagem a esta problemtica;

segue-se a componente metodolgica que alicerou o processo de investigao; a

apresentao dos resultados decorrentes das inferncias estatsticas; e por ltimo uma

discusso crtica dos principais resultados produzidos pelo estudo.

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

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2. REVISO DA LITERATURA

2.1 A SADE EM PORTUGAL EVOLUO HISTRICA E ENQUADRAMENTO SOCIODEMOGRFICO

Ao longo das ltimas quatro dcadas, e na sequncia de uma fase de consolidao

democrtica, foi iniciado um perodo de reestruturao dos servios de sade, em que Portugal

registou progressos notrios em termos da sade da sua populao por via da ampliao da

oferta de cuidados de sade e pelo acrscimo de recursos alocados ao sistema de sade

(BARROS, P.; MACHADO, S.; SIMES, J.; 2011). Durante este perodo temporal, o pas

registou concomitantemente um elevado padro de desenvolvimento ao nvel dos principais

indicadores do seu sistema de sade, como por exemplo a esperana mdia de vida

nascena ou a taxa de mortalidade infantil. Nesta fase observou-se algum paralelismo em

termos de polticas de sade, expressas em medidas como a transferncia generalizada de

hospitais para a esfera do estado, a criao do Servio Nacional de Sade (SNS), a publicao da Lei de Bases da Sade, entre outras. Assim, desde 1979, o sistema de prestao de

cuidados de sade baseia-se na estrutura de um SNS, com seguro pblico, cobertura universal, acesso tendencialmente gratuito no momento de utilizao de servios e cujo

financiamento assegurado atravs da cobrana de impostos (OLIVEIRA, M.; 2010).

2.2 SISTEMA DE SADE EM PORTUGAL 2.2.1 Caracterizao Geral do Sistema de Sade

Segundo a Constituio da Repblica Portuguesa, o SNS assenta a sua matriz fundacional num sistema de organizao descentralizado, pautado pela oferta pblica da

maioria de cuidados de sade primrios e hospitalares (OLIVEIRA, M.; 2010).

Outro enquadramento jurdico relevante prende-se com a Lei de Bases da Sade, a qual

pressupe um SNS universal quanto populao abrangida; a prestao integral de cuidados globais ou a garantia da sua prestao; a gratuitidade tendencial para os utentes de acordo

com as suas condies econmicas e sociais; a garantia de equidade no acesso com o

propsito normativo de atenuar os efeitos das desigualdades econmicas, geogrficas e

quaisquer outras no acesso aos cuidados de sade; e um modelo de organizao regional com

gesto descentralizada e participada (BARROS, P.P.; 2007).

Embora o princpio da equidade, patente nos principais documentos legislativos que

caracterizam o sistema de sade portugus, esteja sublinhado atravs dos princpios

normativos da universalidade, generalidade e gratuitidade tendencial, o desempenho do

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

15 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

sistema de sade tem merecido a ateno por parte de algumas organizaes internacionais

como a Organizao Mundial de Sade, a Comisso Europeia ou a Organizao para a

Cooperao e Desenvolvimento Econmico. Pelas repercusses que a iniquidade no acesso e

utilizao de cuidados de sade pode representar em termos dos resultados em sade nas

populaes, torna-se importante reforar as linhas de investigao nesta rea do

conhecimento, permitindo o suporte de deciso no plano das polticas de sade (CAMPOS, A.

C.; SIMES, J.; 2011; FURTADO, C.; 2013; MACKENBACH, J. P.; 2006; WHO; 2010)

Actualmente, o sistema de sade portugus caracteriza-se pela coexistncia de trs

sistemas sobrepostos: o Servio Nacional de Sade, planos de seguros pblicos e privados

especficos para determinadas profisses (subsistemas de sade), e que cobrem cerca de um

quarto da populao, e seguros de sade privados cuja cobertura se estima entre os 10 e os 20% da populao (BARROS, P.; MACHADO, S.; SIMES, J.; 2011)

Em termos gerais, o sistema de prestao de cuidados de sade em Portugal consiste

numa rede mista entre prestadores pblicos e privados, cada um dos quais ligado ao Ministrio

da Sade e aos pacientes de um modo prprio. A maioria da populao tem o direito de

escolha entre dois mecanismos de seguros de sade, SNS ou seguro privado, podendo utilizar ambos simultaneamente. De acordo com os dados mais recentes do Inqurito Nacional de

Sade, entre 20% a 25% da populao encontra-se protegida por um outro seguro de sade e/ou um subsistema de sade determinado a partir da ocupao ou profisso do indivduo. Os

prestadores de cuidados de sade podem ser de natureza pblica ou privada, com diversos

protocolos, relativamente ao seu financiamento, e que variam desde os tradicionais oramentos

baseados no histrico at pagamentos prospectivos. Devem considerar-se ainda os

pagamentos directos, do acrnimo ingls out of pocket, e que se estimam representar uma parte significativa dos fluxos financeiros no que concerne aos cuidados de sade (BARROS,

P.; MACHADO, S.; SIMES, J.; 2011, INS 2008; OECD; 2013).

2.2.2 Enquadramento Legal e Normativo do Sistema de Sade

luz do enquadramento legal em vigor em Portugal, e segundo a Constituio da

Repblica Portuguesa, ningum pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razo de ascendncia, sexo, raa, lngua, territrio de origem, religio, convices polticas ou ideolgicas, instruo, situao econmica, condio social ou orientao sexual (Art. 13, n. 2). Ainda de acordo com o mesmo documento constitucional todos tm o direito proteco da sade e o dever de a

defender e promover (Art. 64, n. 1).

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

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Os princpios orientadores da Lei de Bases da Sade estipulam que a proteco da sade constitui um direito dos indivduos e da comunidade, que se efectiva pela responsabilidade conjunta dos cidados, da sociedade e do estado, em liberdade de procura e de prestao de cuidados, nos termos da Constituio e da lei, e que o estado promove e

garante o acesso de todos cidados aos cuidados de sade, nos limites dos recursos humanos, tcnicos e financeiros disponveis. A Lei de Bases da Sade (Lei 48/90) defende ainda que o estado promove e garante o acesso de todos os cidados aos cuidados de sade

e que o Servio Nacional de Sade deve garantir a equidade no acesso, de modo a atenuar os

efeitos das desigualdades econmicas, geogrficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados. Por analogia, depreende-se que a equidade e o acesso universal aos cuidados de

sade so salvaguardados em Portugal atravs do Servio Nacional de Sade e pela Lei de

Bases da Sade (Lei 56/79; Lei 48/90).

Ainda de acordo com este diploma, o sistema de sade assenta nos Cuidados de Sade

Primrios, devendo localizar-se junto das populaes, em permanente articulao com os

diferentes nveis de cuidados de sade.

De acordo com a Constituio da Repblica Portuguesa, todos tm direito proteco da sade e o dever de a defender e promover. Por outro lado, incumbe prioritariamente ao Estado garantir o acesso de todos os cidados, independentemente da sua condio econmica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitao (...), garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o pas em recursos humanos e unidades de sade e orientar a sua aco para a socializao dos custos dos cuidados mdicos e medicamentos (Art. 64.).

Esta relevncia atribuda pelo quadro normativo legal em vigor, enfatizada atravs da

Lei de Bases da Sade, Lei n. 48/90, de 24 de Agosto, ao estabelecer que objectivo fundamental obter a igualdade dos cidados no acesso aos cuidados de sade, seja qual for a sua condio econmica e onde quer que vivam, bem como garantir a equidade na distribuio de recursos e na utilizao de servios.

Em forma de concluso, pode afirmar-se que embora o sistema de sade em Portugal,

sobretudo na forma do Servio Nacional de Sade, assuma o princpio da equidade, estima-se

que o mesmo pode nem sempre estar assegurado no domnio da equidade de acesso e

financiamento dos cuidados de sade, pelo que tem constitudo objecto de estudo das mais

diversas organizaes.

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

17 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

2.2.3 Oferta e Prestao de Cuidados de Sade

At ao incio da dcada de oitenta, a prestao de cuidados de sade em Portugal era

realizada essencialmente por organizaes pblicas, designadamente por hospitais e centros

de sade pblicos. No entanto, a iniciativa privada de prestao de cuidados de sade

desenvolveu-se e aumentou a sua capacidade de prestao de modo a responder

necessidade de cuidados dos utentes, consolidando a sua posio no sector (DINIS, A.; 2008).

Actualmente, a prestao de cuidados de sade caracteriza-se por ser um processo em

permanente mudana, em consequncia dos constantes avanos tecnolgicos, das

modificaes sociais e polticas e dos constrangimentos econmicos. Assim, reconhece-se que

o impacto econmico global da prestao de cuidados de sade tem sido condicionado por

inmeros factores, de entre os quais se destacam o envelhecimento, a incorporao de novas

tecnologias, ou a repartio dos recursos por um nmero cada vez maior de prestadores e de

consumidores (BARROS, P.; MACHADO, S.; SIMES, J.; 2011; FERREIRA, J; 2009; SIMES,

J.; et al.; 2010)

O acesso prestao de cuidados de sade de qualidade populao de uma

respectiva rea geogrfica garantido atravs das Administraes Regionais de Sade (ARS), adequando os recursos disponveis s necessidades em sade (BARROS, P.; MACHADO, S.;

SIMES, J.; 2011).

Em todo o caso, discutir a questo do papel do estado no captulo da oferta de servios

e prestao de cuidados de sade constitui um domnio complexo e de abordagem

multifactorial. Neste mbito, observa-se que a oferta de cuidados de sade em Portugal sofreu

grandes alteraes e tem sido influenciada por factores to diversos como a legislao que

define a estrutura do SNS portugus, o sistema de financiamento, a evoluo demogrfica e as caractersticas da populao, o crescimento econmico, o investimento pblico e privado no

sector da sade e a dinmica do sector privado (BARROS, P. P.; 2007).

De acordo com os pressupostos jurdicos que regulam o sistema de sade, a Lei de

Bases da Sade compreende um sistema de cuidados de sade misto, com prestadores

pblicos e privados na prestao de cuidados de sade, o que permite definir o sistema de

sade como uma rede nacional de oferta de cuidados de sade.

A prestao de cuidados de sade no nosso pas beneficiou nas dcadas recentes de

um aumento aprecivel dos nveis de produo e qualidade, mas apresenta ainda registos

inferiores mdia da OCDE e da UE-27, quer em matria de produtividade, quer de qualidade, disponibilidade e acessibilidade. Hoje em dia, Portugal apresenta indicadores de sade e bem-

estar (esperana mdia de vida nascena, taxas de mortalidade e de mortalidade infantil)

muito satisfatrios, o que configura o sistema de sade portugus como um caso de boas

prticas a nvel internacional. Todavia, os nveis de eficincia-custo na prestao de cuidados

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

18 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

hospitalares apresentam-se desfavorveis face a pases de rendimento per capita prximo do nosso pas (Eslovnia, Israel, Coreia do Sul), apesar de favorveis em relao a pases de

elevado rendimento per capita (EUA, Itlia, Frana, Canad, Sucia). Ocorreu no pas um reforo claro dos recursos humanos, equipamentos e tecnologias (em quantidade e qualidade)

disponveis para a prestao de cuidados de sade, num contexto de progressiva

integrao/racionalizao, concentrao e qualificao das unidades hospitalares e de sade

(HEALTH CLUSTER PORTUGAL; 2010)

2.2.4 O Financiamento da Sade em Portugal

O financiamento do SNS processa-se segundo as caractersticas de fundos da

populao, designadamente a cobrana de impostos, a despesa privada familiar, os seguros

privados e o seguro social (SIMES, J.; et al.; 2000).

O fundo de financiamento dos subsistemas pblicos e privados muito semelhante entre

si, baseando-se a sua contribuio no rendimento dos seus beneficirios e apresentando

simultaneamente um financiamento directo e indirecto do estado (SIMES, J.; et al.; 2007).

Em Portugal, a percentagem dos gastos com a sade no PIB era, em 1980, de 5,6%, ao passo que em 2004 era j de 10%. Esta percentagem superior ao valor mdio da UE15 (9%) e da OCDE (8,9%). No perodo compreendido entre 1980 e 2004, Portugal duplicou o peso dos gastos pblicos com sade face ao PIB (3,6% em 1980, 7,2% em 2004). Os ritmos de crescimento da despesa em sade criaram, na passada dcada, instabilidade nas

transferncias oramentais para o SNS. A manuteno dos ritmos histricos das ltimas dcadas configura uma situao de insustentabilidade financeira e, face s necessidades

crescentes de cuidados de sade, exige uma adequada organizao na captao de fundos

(COMISSO PARA A SUSTENTABILIDADE DO FINANCIAMENTO DO SNS; 2007).

As despesas privadas dos cidados residentes em Portugal com entidades privadas

representaram cerca de 22,5% da despesa total em sade em 2004. Este valor contrasta fortemente com os pagamentos directos das famlias em sede de prestao pblica, inferiores

a 1%. Ressalta daqui que os co-pagamentos exigidos s famlias na prestao pblica tm uma muito reduzida expresso em termos de contribuio para o financiamento. no sector do

medicamento que a participao dos utentes relativamente elevada, o que se deve, por um

lado, a taxas de comparticipao comparativamente baixas, com poucas isenes de

pagamento, e por outro lado, a nveis de utilizao de frmacos relativamente elevados. A

anlise dos dados de inquritos aos oramentos familiares demonstrou ainda que os

pagamentos directos, na sua globalidade, so altamente regressivos no financiamento do

sistema (COMISSO PARA A SUSTENTABILIDADE DO FINANCIAMENTO DO SNS; 2007).

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

19 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

O financiamento da sade ao longo dos ltimos tem sido marcado pela persistncia em

oramentos reconhecidamente insuficientes do ponto de vista operacional, dfices acumulados

e uma certa ausncia de instrumentos de gesto e responsabilizao com capacidade de

inverter esta tendncia (SIMES, J.; et al.; 2007). No que concerne aos gastos relacionados com a sade, importante reconhecer que estes tm crescido a um ritmo superior ao

crescimento econmico, e acerca do qual se podem apontar alguns factores conducentes a

este aumento das despesas em sade, nomeadamente os factores demogrficos e do

envelhecimento, presso de natureza tecnolgica e desenvolvimento da medicina, induo da

procura, crescimento econmico e o aumento dos recursos de cuidados de sade (CASTILHO,

A; 2008; SIMES, J.; 2007).

Em suma, e como forma de aferir o peso especfico do sector pblico no financiamento

dos cuidados de sade em Portugal, importa registar dois factos a despesa corrente pblica

diminui significativamente desde 2011 e a despesa corrente privada assume uma tendncia contrria. De acordo com os dados disponibilizados pelo INE, durante os anos de 2011 e 2012 a despesa corrente em sade diminuiu a um ritmo muito superior ao do PIB, invertendo a tendncia de crescimento registada anteriormente. Por seu turno, a despesa corrente privada

apresentou uma taxa de crescimento mdio anual de 2,7% entre 2007 e 2012. No mesmo perodo, a despesa corrente pblica decresceu, em mdia, 1,6%. Assim, pode concluir-se que a despesa pblica em sade tem vindo a acentuar a sua perda de importncia relativa face

despesa corrente privada, atingindo no final do ano de 2012 os 62,6% da despesa corrente total (INE; 2012).

Pode deste modo concluir-se que o Estado continua a ser responsvel pela maioria das

despesas registadas em sade, seja em matria da operacionalizao do SNS e/ou dos subsistemas de sade, mas tem vindo a perder alguma significncia estatstica face s

despesas correntes privadas em virtude do aumento das taxas moderadoras, das diminuies

de comparticipaes em medicamentos e do menor investimento pblico na gesto dos

equipamentos e organizao dos cuidados de sade.

2.2.5 Orientaes regulamentares e estratgicas do Sistema de Sade

Qualquer sistema de sade assenta o seu regular funcionamento, no mbito da

prestao de cuidados de sade, num quadro estvel e participado de princpios e valores, que

em parte derivam dos pressupostos constitucionais pelos quais o mesmo se regula, mas por

outro lado em funo de um conjunto de estratgias e planos de aco inscritos num conjunto

de documentos orientadores e que visam a execuo das polticas de sade. Como exemplo

destas premissas, podem destacar-se o Plano Nacional de Sade e a Carta de Direitos de

Acesso ao Servio Nacional de Sade.

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

20 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

O Plano Nacional de Sade define as linhas gerais de actuao das polticas de sade e

constitui o instrumento de execuo do planeamento em sade, enquadrador dos seus

objectivos principais, aplicando planos e estratgias com vista melhoria e recuperao da

sade de indivduos e populaes em Portugal. Assim, o Plano Nacional de Sade estabelece

metas, indicadores e programas prioritrios que visem a sua operacionalizao e

desenvolvimento. De acordo com este documento, constitui objectivo principal do mesmo a

maximizao dos ganhos em sade atravs do alinhamento e da integrao de esforos sustentados de todos os sectores da sociedade e a utilizao de estratgias assentes na cidadania, na equidade e no acesso, na qualidade e nas polticas saudveis (DGS PLANO NACIONAL DE SADE 2012/2016).

Por outro lado, a Carta dos Direitos de Acesso, e enfatizando os princpios da equidade

e do acesso da matriz fundacional do SNS, tem por missiva enunciar um conjunto de premissas que visem salvaguardar os direitos de acesso dos utentes aos cuidados de sade

no mbito do SNS.

2.3 EQUIDADE EM SADE E NOS CUIDADOS DE SADE

A sade constitui uma aspirao universal e necessidade humana bsica. O

desenvolvimento social pode ser avaliado atravs da sade da sua populao, como os

recursos alocados ao sector se encontram distribudos, ou ainda, pelo grau de proteco social

destinada aos grupos do espectro social mais desfavorecido (BRAVEMAN, P.; 2006; CULYER,

A. J.; WAGSTAFF, A.; 1993; MARMOT; M., 2007). Assim, a equidade nos cuidados de sade

constitui um eixo central para esta premissa, assim como um objectivo imprescindvel e

transversal a qualquer sistema de sade (GODDARD; M.; SMITH, P.; 2001; MARMOT; M.;

2008; WATERS; H. R.; 2000).

2.3.1 Definio de conceitos

Do ponto de vista histrico, o termo equidade em sade encontra a sua primeira

referncia na dcada de oitenta, com a avaliao s desigualdades no servio de sade ingls

(BLACK, D.; 1980). De acordo com a Organizao Mundial de Sade (2010) e Marmot (2008),

entende-se equidade em sade como a ausncia de diferenas evitveis, injustas e passveis de modificao do estado de sade de grupos populacionais de contextos sociais, geogrficos

ou demogrficos diversos. Expressa-se como a igual oportunidade de cada cidado atingir o

seu potencial de sade. O acesso aos cuidados de sade consiste numa dimenso da

equidade e define-se como a obteno de cuidados de qualidade necessrios e oportunos, no

local apropriado e no momento adequado. As desigualdades em sade remetem para a

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

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existncia de diferenas no estado de sade e nos respectivos determinantes entre diferentes

grupos da populao. Algumas so inevitveis, no sendo possvel alterar as condies que as

determinam. Outras classificam-se como desnecessrias e evitveis, potenciando injustias

relativas, socialmente concebidas e mantidas, e que traduzem efectivas iniquidades em sade,

pelo que se torna, pelo menos do ponto de vista tico e social, tomar medidas que as permitam

atenuar ou eliminar.

Por equidade pode entender-se a distribuio justa de determinado atributo populacional.

O conceito de equidade no necessariamente equivalente a igualdade, embora os dois

termos sejam por vezes usados como sinnimos. Quando se define equidade na prestao de

cuidados de sade em termos de igualdade, o conceito envolve duas dimenses importantes: a

equidade horizontal - tratamento igual de indivduos que se encontram numa situao de sade igual; e equidade vertical - tratamento apropriadamente desigual de indivduos em situaes de sade distintas. Por outro lado, a equidade tem a ver com justia, tem uma

dimenso tica relacionada com a redistribuio de algo de acordo com as necessidades

referentes a esse algo, um conceito relativo. Ao invs da igualdade, que se traduz por um

conceito mais absoluto, no tem necessariamente uma conotao tica, e que compara nveis

de sade, de recursos, de acesso, por exemplo, entre indivduos e comunidades,

independentemente de critrios associados s necessidades desses indivduos ou

comunidades. Algumas desigualdades so esperadas e fceis de prever, sem

necessariamente reflectirem iniquidade (PEREIRA, J.; 1992)

Em suma, pode concluir-se que persiste a falta de um consenso em torno do significado

do conceito de equidade, quer no mbito da economia da sade, quer noutro domnio mais

abrangente. Deste modo, importa, ao nvel da reviso da literatura, situar esta heterogeneidade

de definies num enquadramento histrico, poltico, social e econmico mais preciso e que as

tornem mais fidedignas.

2.3.2 Equidade e Igualdade A equidade e os quadros conceptuais onde esta se insere tm sido discutidos por

diversas correntes do pensamento e estudados em diversos ramos da cincia. Trata-se de um

conceito complexo, de abordagem heterognea e multidisciplinar, no sendo consensual a sua

definio. Ocorre que ao nvel da literatura, encontram-se muitas vezes as noes de equidade

e igualdade, sendo necessria a sua distino.

A igualdade remete para um domnio mais redutor e objectivo no que concerne

distribuio de bens ou recursos entre os indivduos, ao passo que a equidade transporta em si

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

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um conceito subjacente de moral, contendo inclusivamente um determinado vnculo subjectivo

associado ideia de justia (SEN, A.; 2002; LE GRAND, J.; 1987).

Ainda assim, possvel sistematizar a abordagem em torno do conceito de equidade em

funo das abordagens clssicas ao mesmo. Segundo estas, a sade consiste num produto

complexo e multifactorial, indispensvel concretizao dos objectivos pessoais dos

indivduos, pelo que enquadrado numa sociedade onde a escassez de recursos uma

evidncia efectiva, a sua distribuio em funo das necessidades deve ser orientada por

padres de justia na sua distribuio (BARROS, P.P.; 2007; BRAVEMAN, P; GRUSKIN, S.;

2003).

2.3.3 Conceitos clssicos e modernos de equidade

Assim, lgico que, e no existindo uma definio consensual de equidade em sade,

seja particularmente til ensaiar um exerccio de anlise em funo das diversas

conceptualizaes clssicas e modernas que o domnio da equidade encerra em si mesmo. De

acordo com Pereira (1989), podemos compartimentar as diversas definies entre abordagens

clssicas e abordagens modernas (PEREIRA, J.; 1989).

De entre as abordagens clssicas, sobressai numa primeira anlise a igualdade (egality), a qual foi assumida como uma perspectiva de equidade. O objectivo de cada indivduo com a mesma necessidade de cuidados de sade dever receber o mesmo tratamento

atractivo. Isto resulta, em grande parte, da sua implicao principal: que a distribuio de

cuidados de sade deva ser independente da distribuio do rendimento, riqueza ou qualquer

outra forma de poder econmico ou poltico. Com efeito, pode considerar-se como injusto se

dois indivduos com a mesma doena um receba melhor tratamento do que o outro,

simplesmente porque economicamente mais favorecido, tem um melhor nvel educacional ou

tem conhecimentos mais influentes. No entanto, existem na prtica dificuldades bvias na

interpretao desta concepo. O que que se entende por tratamento? O que se entende por

necessidade? Estas questes, pese embora a sua relevncia, no so centrais para esta

discusso. Em vez disso, pretende levantar-se a questo se o igual tratamento para igual

necessidade, seja como for definido, ser sempre consistente com a equidade; se tratamento

desigual para igual necessidade poder, por vezes, promover a equidade e vice-versa

(PEREIRA, J.; 1990)

A igualdade pode ser percepcionada mediante duas perspectivas: igualdade de recursos

ou igualdade de bem-estar (DWORKIN, E.; 1981). A igualdade de recursos implica que a

distribuio dos mesmos seja processada de modo a que todos os indivduos tenham um

conjunto de bens o mais igualitrios entre si. Por outro lado, a igualdade de bem-estar assume

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

23 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

que a distribuio de recursos ser optimizada de modo a que os indivduos possuam um nvel

de bem-estar o mais idntico entre si, no sendo obrigatrio que estes possuam o mesmo

conjunto de recursos. Em suma, na primeira viso o foco est centrado ao nvel dos recursos,

ao passo que na segunda abordagem centra-se a viso ao nvel dos resultados, sendo o

critrio para ambos a equalizao, ou num sentido mais lato, a harmonizao.

A igualdade de acesso pode ser definida como o requisito de que os indivduos

enfrentem os mesmos custos pessoais de receber tratamento mdico. A igualdade de acesso e

a igualdade de tratamento para igual necessidade so frequentemente confundidos embora

sejam diferentes (MOONEY; G.; et al.; 1991). O acesso ao tratamento um fenmeno do lado da oferta, enquanto a quantidade de tratamento recebido, efectivamente, depende da

interaco entre a oferta e a procura. A igualdade de acesso, contudo, apresenta tal como a

igualdade de tratamento para igual necessidade o problema da interpretao prtica: como se

dever medir o custo pessoal? (LE GRAND, J.; 1989; PEREIRA, J.; 1993). A questo

fundamental prende-se com a equidade, ou a igualdade de acesso, como objectivo das

polticas de sade (LE GRAND, J.; 1989)

Esta definio consiste no referencial terico a ser utilizado na anlise e discusso dos

resultados deste trabalho, isto , compreender em que medida so disponibilizados os mesmos

recursos para uma situao ou necessidade idntica. Trata-se da abordagem conceptual que

rene maior consenso, em funo igualmente do que se pretende aferir com este estudo de

natureza acadmica.

Uma outra abordagem, distribuio de acordo com os direitos (Entitlement), rejeita em absoluto as teorias da igualdade. O foco principal desta abordagem incide no facto de o

indivduo ter o direito ao que possui, desde que adquirido de forma lcita. Assim, rejeita-se a

redistribuio de recursos, conferindo inclusivamente uma determinada sensao de injustia

moral e tica. Seguindo um ngulo de anlise mais pragmtico, pode concluir-se que esta

teoria falha ao no admitir que indivduos mais vulnerveis ou menos capacitados no devem

beneficiar de uma proteco adicional em matria de promoo da sade (PEREIRA, J.; 1989).

A teoria do Mnimo Decente estipula que deve existir um padro mnimo em termos de segurana, abaixo do qual a sociedade no dever permitir que os indivduos caiam. Alguns

tericos liberais sugerem este conceito, sendo possvel de ser aplicado em sistemas de sade

que visem a cobertura geral e universal. No entanto, torna-se quase que impraticvel dada a

dificuldade em definir o tal mnimo de sade, da mesma forma que seria praticamente

impossvel determinar o nmero de anos que ser razovel para uma pessoa viver, ou a

quantidade e natureza de cuidados de sade a que se deve ter acesso (PEREIRA, J.; 1989).

Desigualdades socioeconmicas na utilizao de cuidados de sade na populao com 65 ou mais anos de idade em Portugal Dados do 4. Inqurito Nacional de Sade 2005/2006

24 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

O utilitarismo como corrente relativa ao conceito de equidade deve ser interpretada como um princpio decisor que requer recursos para serem distribudos por forma a aumentar o

somatrio do bem-estar individual ou das utilidades, e maximizando a utilidade agregada (LE

GRAND, 1989) Aplicando sade ou aos cuidados de sade, uma distribuio ser

considerada como equitativa se for o resultado de um processo de maximizao da utilidade

agregada. No entanto, o utilitarismo no se preocupa em fornecer definies de equidade ou

regras de qualquer tipo para a distribuio de recursos. Seja qual for a distribuio que deriva

da aplicao de princpios de utilitarismo, constitui apenas um produto secundrio da

maximizao do somatrio das utilidades individuais, no sendo o resultado de uma aplicao

conscienciosa de uma noo de equidade ou de justia entre indivduos (LE GRAND, J.; 1989;

PEREIRA, J.; 1993)

O princpio do Maximin de Rawls, por ele designado como princpio da diferena o de que as desigualdades sociais e econmicas devem ser ultrapassadas de forma que sejam tanto para o benefcio dos menos favorecidos e ligadas a posies abertas a todas as condies de justa igualdade de oportunidades. Aplicando estas premissas rea da sade,

depreende-se que a desigualdade em sade ou em cuidados de sade se possa justificar

apenas se essa desigualdade funcionar em prol dos menos favorecidos, isto , uma

distribuio equitativa de sade ou cuidados de sade aquela que potencia o bem-estar dos

que menos possuem ou carecem de cuidados de sade (LE GRAND, J.; 1989; RAWLS, J.;

1972).

A abordagem Envy-Free assume que uma distribuio equitativa se cada pessoa no estiver disposta a ter o mesmo consumo de recursos de qualquer outra. Esta teoria surge na

base dos problemas metodolgicos relacionados com o utilitarismo e a teoria de Rawls, conduzindo necessidade de reformular as bases conceptuais para actuar sobre a

problemtica da equidade. Em termos prticos, esta teoria, tambm conhecida pelo critrio da

no-inveja, pressupe que uma determinada distribuio equitativa se cada indivduo no invejar o conjunto de recursos detido por outros. Contudo, esta teoria de equidade no leva em

considerao necessidades distintas ou diferenas acentuadas ao nvel do estado de sade

dos indivduos, tal como contm em si mesma uma subjectividade que torna complexo de ser

justificada a sua implementao (PEREIRA, J.; 1993).

Tendo por base as discrepncias metodolgicas e critrios de aplicabilidade destas

abordagens mais tradicionais de equidade, foram desenvolvidas outras abordagens tericas

especificamente dirigidas ao sector da sade a equidade como escolha e a maximizao da

sade (LE GRAND, J.; 1987; PEREIRA, J.; 1989).

A teoria da equidade como escolha tem por princpio base a dependncia ou no de factores externos para gerar situaes de iniquidade, isto , quando uma doena resulta de

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25 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

factores externos a mesma deve ser considerada como iniquidade, caso contrrio, e a mesma

dependa de factores controlveis ento considera-se dentro de um padro de equidade (LE

GRAND, J.; 1987). Esta conceptualizao introduz variveis que extravasam o domnio do

indivduo, introduzindo assim factores externos, ou seja, determinantes de sade.

Por outro lado, surge a teoria da maximizao da sade, defendendo que uma distribuio apenas ser equitativa caso consiga maximizar o potencial de sade da

comunidade (PEREIRA, J.; 1989). De acordo com esta definio, esto subjacentes princpios

de justia social, o que efectivamente contribui para a redistribuio de recursos de forma a

potenciar o estado de sade geral na comunidade (PEREIRA, J.; 1989; PEREIRA, J.; 1993; LE

GRAND, J.; 1987).

Tendo em conta estes considerandos, torna-se pertinente, do ponto de vista conceptual,

clarificar o conceito de equidade, as suas vrias dimenses e a representao que pode

assumir no mbito deste trabalho. Assim, uma ideia central e condutora do percurso de

investigao a de que a equidade no acesso e utilizao de cuidados de sade

fundamental para a obteno de equidade em sade.

A utilizao dos cuidados de sade constitui um dos principais determinantes do estado

de sade das populaes, pelo que as iniquidades na prestao de cuidados podem reflectir-se

em iniquidades no estado de sade (DAHLGREN, G.; WHITEHEAD, M.; 2006).

Existe uma multiplicidade de definies em torno do conceito equidade, existindo

inclusivamente pouca uniformidade quanto forma de se medir a equidade. Por outro lado,

consensualizou-se que esta consiste num princpio bsico de qualquer sistema de sade,

estando consagrada ao nvel do enquadramento legal portugus, pelo que identificada como

sendo uma dimenso relevante ao nvel da qualidade dos cuidados de sade (CLARK, 2007;

GIRALDES, M. R.; 2001; GIRALDES, M. R.; 2005).

Pese embora a equidade constitua um primado essencial da poltica de sade da maioria

dos pases e deva assumir-se como um princpio norteador da aplicao dessas mesmas

polticas, com monitorizao permanente, existe alguma variao ao nvel do quadro

conceptual deste atributo em termos dos diferentes sistemas de sade. A avaliao das

implicaes dos valores da equidade em matria de polticas de sade deve ser feita com base

na interpretao do seu significado mas sem negligenciar o enquadramento legal e normativo

que suporta o sistema de sade.

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26 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

2.3.4 Equidade em Cuidados de Sade

Conforme foi possvel abordar no captulo anterior, nomeadamente em termos do

conceito de equidade como igual tratamento para igual necessidade, torna-se particularmente

oportuno dedicar alguma reflexo questo das potenciais fontes de iniquidade na utilizao

de cuidados de sade. Numa primeira fase ser discutida genericamente a questo da

equidade em cuidados de sade em termos da evidncia cientfica disponvel ao nvel

internacional, seguidamente centrar-se- a abordagem no plano nacional por parte da

populao em geral e da forma como processada a utilizao dos cuidados de sade em

geral. Posteriormente, torna-se pertinente apontar o foco da discusso utilizao de cuidados

de sade pela populao idosa, ou seja, procurar encontrar diferenas significativas no que

concerne evidncia cientfica disponvel e aquilo que torna este conceito de equidade

especfica numa rea distintiva das restantes situaes de acesso a cuidados de sade.

2.3.4.1 Evidncia cientfica no plano internacional

Os cuidados de sade primrios constituem uma primeira linha de actuao de qualquer

sistema de sade. Deste modo, e por forma a avaliar o acesso a este nvel de cuidados, foi

desenvolvida uma anlise de equidade com factores demogrficos, rendimento, estado de

sade e cobertura de seguro de sade. Os resultados mais relevantes mostram que ao nvel

dos mdicos de famlia e cuidados de enfermagem no se observam disparidades

significativas, sendo estes equitativos para a generalidade da populao, quando comparados

com outras especialidades clnicas (FERRER, R. L.; 2007).

Uma das principais concluses desta avaliao consiste no reforo do papel que os

cuidados de sade primrios, designadamente os mdicos de famlia, assumem na assistncia

mdica aos grupos social e economicamente menos favorecidos (FERRER, R. L.; 2007).

Por outro lado, a consulta de especialistas encontra-se altamente associada educao,

uma vez que se considera esta varivel como indutora de estilos de vida saudveis e como

tendo um efeito positivo ao nvel do estado geral de sade (GRUBER, S.; KIESEL, M.; 2010).

Os resultados deste estudo sugerem a existncia de algumas iniquidades quanto s consultas

de especialidade, nomeadamente em desfavor dos trabalhadores por conta prpria, dadas as

condicionantes da sua situao profissional, e revelam ainda que os homens recorrem a este

nvel de cuidados de sade de acordo com factores predisponentes ou facilitadores, ao passo

que nas mulheres as variveis sociodemogrficas apresentam menor grau de influncia na

utilizao de cuidados de sade (GRUBER, S.; KIESEL, M.; 2010).

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Ainda segundo a mesma fonte, denota-se a existncia de um sistema de sade

bipolarizado e com iniquidades bem patentes, uma vez que providencia cuidados de sade

primrios aos beneficirios da cobertura pblica e cuidados de sade mais especializados aos

utilizadores de unidades de sade privadas (GRUBER, S.; KIESEL, M.; 2010). Outras

iniquidades podem ser referidas, tais como por exemplo a observao de um gradiente

educacional transversal ao sistema de sade alemo e que correlaciona uma maior utilizao

de cuidados de sade com habilitaes literrias superiores; ou ainda a associao entre

consultas de clnica geral com reas mais rurais e um maior grau de diferenciao de cuidados

de sade em zonas mais urbanas (GRUBER, S.; KIESEL, M.; 2010).

Relativamente aos seguros de sade, pblicos ou privados, estes desempenham um

forte valor preditivo no que diz respeito ao tempo de espera por consultas, e por conseguinte

na equidade no acesso a cuidados de sade. Um estudo acerca da utilizao de cuidados de

sade na Alemanha revelou que os indivduos com seguro de sade pblico esperavam, em

mdia, trs vezes mais por uma consulta de especialidade do que os utentes de uma

seguradora privada (LUNGEN, M.; et al.; 2008).

No caso do sistema de sade britnico, foram investigadas potenciais iniquidades

socioeconmicas no acesso a consultas de clnica geral, consultas de ambulatrio, episdios

dirios e estadias de internamento. Assim, foram identificadas algumas fontes de iniquidade na

utilizao dos cuidados de sade supracitados, designadamente no que respeita ao

rendimento, etnia, estatuto profissional e educao. Os indivduos com menor instruo e/ou

pertencentes a minorias tnicas apresentam um menor ndice de utilizao de cuidados

hospitalares, pese embora observem taxas de utilizao superiores ao nvel dos cuidados de

sade primrios (MORRIS, S.; SUTTON, M.; GRAVELLE, H.; 2008). Estes resultados so

ainda corroborados pelo estudo da equidade horizontal a nvel europeu, que sublinha existir

uma iniquidade a favor das classes economicamente mais favorecidas ao nvel dos cuidados

hospitalares ou especialistas, e uma iniquidade que favorece os indivduos mais

desfavorecidos ao nvel das consultas de clnica geral (BAGO DUVA, T.; 2007). Ainda neste

estudo foi salientado o facto de, analogamente iniquidade revelada a favor dos mais ricos no

acesso a consultas de especialidade, tambm ser possvel observar uma iniquidade

semelhante ao nvel dos indivduos que apresentam um maior crescimento ao nvel dos seus

rendimentos (BAGO DUVA, T.; 2007).

Numa outra dimenso, e que releva a importncia social e econmica das polticas

pblicas de sade, encontra-se a questo do enquadramento social, cultural e poltico do

prprio pas. De acordo com Espelt (2008), a opo poltica e ideolgica de um determinado

estado pode implicar, a mdio-longo prazo, alteraes no mercado de trabalho e nas polticas

sociais e, consequentemente, induzir efeitos no mbito das iniquidades e principais indicadores

de sade. Assim, e comparando as iniquidades em sade registadas em trs tipologias de

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28 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

regime social-democracia, democracias crists ou democracias recentes pode aferir-se

uma maior distino das mesmas ao nvel das mulheres nas democracias mais recentes. As

iniquidades so deste modo mais marcadas ao nvel das habilitaes literrias quando

comparadas com as restantes dimenses sociais (ESPELT, A.; et al.; 2008). Poucos so os estudos que se ocupam em enquadrar as caractersticas polticas na anlise s iniquidades em

sade, porm pode ainda destacar-se que as mesmas so mais evidentes na auto-percepo

do estado de sade do que nos indicadores de cuidados de longa-durao, assim como uma

maior significncia nos indivduos do sexo feminino (ESPELT, A.; et al.; 2008).

Em forma de sntese, pode concluir-se, com base nos principais estudos internacionais

neste domnio, que relativamente utilizao de consultas existe uma maior necessidade

concentrada junto da populao com menores recursos econmicos, porm, quando efectuado

um ajustamento pela necessidade, observa-se um padro de iniquidade horizontal que

favorece os indivduos com maior rendimento na maior parte dos pases, quer em termos de

probabilidade de ter uma consulta, quer inclusivamente no nmero mdio de consultas. Este

padro particularmente elevado, entre outros, em Portugal. (VAN DOORSLAER, E.; et al.; 2000). Mais a mais, se feita a anlise em funo da natureza dos cuidados de sade obtidos,

observa-se um padro distinto entre consultas de clnica geral, que tende a favorecer os

indivduos mais pobres, e as consultas mdicas de especialidade, que favorecem os indivduos

com maiores rendimentos. Uma vez mais, verifica-se um padro acentuado de iniquidade

horizontal neste mbito em Portugal (VAN DOORSLAER, E.; et al.; 2000; 2006). Apesar de no existir um consenso claro relativamente ao padro de iniquidade ao nvel dos pases

estudados, bvio que estes padres derivam, em parte, das prprias caractersticas de cada

sistema de sade.

Num estudo que se debruava sobre a utilizao de cuidados de sade em pases em

via de desenvolvimento, foram corroboradas concluses produzidas por estudos anteriores, ou

seja, as classes com maiores rendimentos registam uma utilizao superior de recursos de

sade, apresentando inclusivamente maiores despesas em sade (MAKINEN, M.; et al.; 2000).

Uma outra anlise do espectro internacional relativamente utilizao de servios de

sade em 19 pases da OCDE, revela uma iniquidade horizontal idntica relativamente s consultas mdicas. Aps ajustamento pela necessidade de cuidados de sade, os indivduos

com maiores rendimentos apresentam maior probabilidade em ter consultas mdicas,

sobretudo ao nvel das especialidades mdicas. Porm, se centrarmos a anlise ao nvel dos

CSP o cenrio altera-se, sendo que na maioria dos pases analisados, para o mesmo nvel de necessidade, os indivduos de menor rendimento apresentam probabilidade semelhante em ter

consultas de clnica geral, fazendo inclusivamente uma utilizao mais frequente das mesmas

(DEVAUX, M.; DE LOOPER, M.; 2012). Adicionalmente, esta mesma publicao observa

outros padres de iniquidade, nomeadamente no campo da medicina dentria e algumas

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29 Escola Nacional de Sade Pblica - Universidade Nova de Lisboa Ricardo Rosado, 2014

tcnicas de diagnstico (DEVAUX, M.; DE LOOPER, M.; 2012). Assim, so mltiplas as

comparaes internacionais aos diversos sistemas de sade que vm sublinhar a ideia de

iniquidades persistentes na utilizao dos servios de sade, com especial enfoque ao nvel

das especialidades mdicas e da medicina dentria derivadas do rendimento (VAN

DOORSLAER, E.; MASSERIA, C.; 2004), mas igualmente padres de iniquidade resultantes do

nvel educacional (OR, Z.; JUSOT, F.; YILMAZ, E.; 2008). No que respeita s consultas de

clnica geral, no mbito dos CSP, no existe um consenso mas so diversos os autores a apontar no sentido de iniquidades que tendem a favorecer os indivduos de menor rendimento

na utilizao deste gnero de cuidados (BAGO DUVA, T.; et al.; 2008).

2.3.4.2 Equidade no acesso a cuidados de sade em Portugal

A maioria dos estudos que se ocupam do sistema de sade em Portugal observa a

existncia de factores, para alm da condio clnica intrnseca dos doentes, que determinam a

utilizao de cuidados de sade, evidenciando a existncia de iniquidades a favor dos grupos

com rendimentos superiores (PEREIRA, J.; 2002; LOURENO, O.; et al.; 2007; PEREIRA, J.; LOPES, S.; 2006). Esta tendncia corroborada pelo estudo realizado pela OCDE, e que permite contextualizar o desempenho de Portugal com outros 21 pases, revelando um dos ndices de iniquidade mais elevados (VAN DOORSLAER, E.; MASSERIA, C.; 2004).

Assim, e como metodologia de abordagem s iniquidades socioeconmicas e

geogrficas no acesso aos cuidados de sade, optou-se pela sistematizao de evidncia

cientfica nos diferentes sectores de actuao: cuidados de sade primrios, cuidados de

sade secundrios ou hospitalares e meios complementares de diagnstico e teraputica.

Cuidados de Sade Primrios A relevncia deste nvel de cuidados traduz-se pela importncia que os mesmos

assumem no acompanhamento do doente ao nvel dos cuidados primrios e posteriormente

por uma eventual referncia para um nvel de cuidados mais especializados ou,

inclusivamente, para a realizao de exames complementares de diagnstico e teraputica

(FURTADO, C.; PEREIRA, J.; 2010).

Em Portugal, a probabilidade de ter uma consulta de clnica geral continuava a

apresentar um ndice de iniquidade na prestao estatisticamente significativo, podendo ter

ocorrido um agravamento a favor dos mais ricos ao longo do tempo, o que sugere que as

iniquidades so maiores no acesso inicial consulta (VAN DOORSLAER, E.; MASSERIA, C.;

2004). Comparativamente com os restantes pases europeus includos no estudo, Portugal

dos que apresenta uma maior iniquidade favorecendo os grupos de maior rendimento (VAN

DOORSLAER, E.; MASSERIA, C.; 2004).

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Um outro estudo, em que se procedia a uma anlise longitudinal (1995-2001) da equidade na prestao de cuidados de sade, apresentou ndices de iniquidade favorecendo

os grupos de maior rendimento para o nmero total de visitas aos mdicos de clnica geral,

padro idntico ao observado na ustria e Finlndia, e que contraria os restantes pases onde

se observa um ndice de iniquidade na prestao, que favorece os grupos de rendimento

inferior (BAGO DUVA, T.;