desenvolvimento social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da...

98
Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho

Upload: phamduong

Post on 01-Jan-2019

218 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

1

Introdução

Desenvolvimento Social:conhecimento e trabalho

Page 2: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

2

Os movimentos na casa grande

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTASUCPEL

ChancelerD. Jayme Henrique Chemello

ReitorAlencar Mello Proença

Vice-ReitorCláudio Manoel da Cunha Duarte

Pró-Reitor AcadêmicoGilberto de Lima Garcias

Pró-Reitor AdministrativoCarlos Ricardo Gass Sinnott

Escola de Serviço SocialDiretor: Alceu Salamoni

EDUCAT - EDITORA DA UCPel

EditorFrancisco Paulo de Almeida Lobo

CONSELHO EDITORIALAdenauer Corrêa Yamin

Alex Fernando Teixeira PrimoAntônio Angenor Porto Gomes

Bernardo Lessa HortaCarmen Lúcia M. Hernandorena

Erli Soares MassaúElizabeth Pereira Zerwes

Francisco Paulo de A. LoboJosé da Costa Fróes

Oscar José E. MagalhãesOsmar M. Schaefer - Presidente

Paulo D. M. CarusoRicardo Andrade Cava

Wallney Joelmir HammesWilliam Peres

EDUCATEditora da Universidade Católica de Pelotas - UCPel

Rua Félix da Cunha, 412Fone (0-XX-53) 284.8297 - FAX (0-XX-53) 225.3105 - Pelotas - RS - Brasil

Page 3: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

3

Introdução

EDUCATEditora da Universidade Católica de Pelotas

PELOTAS - 2001

Osmar Miguel SchaeferAgemir Bavaresco(Orgs.)

Desenvolvimento Social:conhecimento e trabalho

Coleção Desenvolvimento Social1

Page 4: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

© 2001 Osmar Miguel SchaeferAgemir Bavaresco (Orgs.)

Direitos desta edição reservados àEditora da Universidade Católica de PelotasRua Félix da Cunha, 412Fone (0-XX-53) 284.8297 - Fax (0-XX-53) 225.3105Pelotas - RS - BrasilE-mail: [email protected]

PROJETO EDITORIALEDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAAna Gertrudes G. Cardoso

CAPALuis Fernando Giusti

ISBN 85-85437-83-9

D451 Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho / [organi-zado por] Osmar Miguel Schaefer; Agemir Bavaresco -Pelotas: EDUCAT, 2001.

98 p. (Desenvolvimento social; 1)

1.Sociologia - modernidade. 2.Globalização. 3.Tra-balho - teoria. I. Schaefer, Osmar Miguel (org.) II.Bavaresco, Agemir

CDD 301

Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecáriaCristiane de Freitas Chim CRB 10/1233

Page 5: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................ 7

Sociedade do Conhecimento – sem sujeito? ............................ 9Osmar Miguel Schaefer

Trabalho, Globalização e Educação ....................................... 23Erli Soares Massaú

O Cenário Epistemológico da Modernidade e as Novasconfigurações epistêmicas ...................................................... 37

Agemir Bavaresco

A comunicação que constrói a realidade ................................ 65Manoel Jesus

Emancipação e Subordinação: duas teorias educativas nomundo do trabalho .................................................................. 75

Reinaldo Tillmann

Conclusão ............................................................................... 93

Page 6: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores
Page 7: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

Apresentação

O estudo e a compreensão da problemática do desenvolvi-mento social, bem como as estratégias para sua efetiva implementação,estão longe de poderem ser considerados como tarefa acabada. E istoem plena época histórica em que ciência e tecnologia demonstramum estágio nunca antes alcançado.

De fato, vivemos num período histórico em que, graças aodesenvolvimento da tecnologia da informação, dispomos de meiose de recursos para eliminar as distâncias (espaço global) e reduzir otempo ao instante (presença total). O impacto dos produtos da “erada informação” enseja que se viva um novo paradigma histórico: oda “sociedade globalizada” ou da “sociedade do conhecimento”. Emais ainda: também ao homem da “nova sociedade” assinala-se-lheum novo ideal, um modo de ser diferente.

Ele será, em primeiro lugar, um ser que sabe o “que” fazer e“como” fazer, não sendo importante saber “porque” e “para quem”.Trata-se de uma sociedade em que se quer a eficiência e a capacidadedo domínio técnico, a habilidade para respostas rápidas, reflexas,mas não essencialmente refletidas. É neste sentido que a “novasociedade” será chamada de “sociedade do conhecimento”. Seushabitantes serão “ricos em conhecimento” e seus líderes serão“empreendedores”.

Se, de um lado, este paradigma, também denominado de“sociedade em rede” ou de “sociedade pós-capitalista”, nos fascinae nos seduz pelas possibilidades que oferece em termos de comuni-cação, de consumo, de facilidades no mundo do trabalho, de outrolado também nos deixa inquietações, indagações e perplexidade.Sem dúvida, a época histórica em que vivemos, como sendo a eraglobalizada, desafia os estudiosos e os atores sociais para além damera curiosidade com este mundo repleto de “progresso” e de“máquinas inteligentes”.

Há, efetivamente, um problema que perpassa as diferentes

Page 8: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

8

Os movimentos na casa grande

interfaces da nova sociedade, sejam elas a informação, a economia,a cultura, a política: É o lugar do ser humano, protagonista, sujeitoe ser histórico deste “novo paradigma”. É, enfim, a preocupação como projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedadeglobalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores emsuas especializações diferentes. Os textos sobre “Conhecimento”,“Trabalho, educação e globalização”, “O cenário epistemológico”,“Comunicação que constrói a realidade”, “Emancipação e subordi-nação”, mesmo apresentando uma diversidade temática, encontramsua unidade neste fundo comum: Produzir um conhecimento queesteja voltado, em primeiro lugar, para um desenvolvimento sensívelàs necessidades e anseios do ser humano histórico e solidariamentesituado.

É este desiderato que reuniu, no Mestrado em Desenvolvi-mento Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), o grupode alunos e professores que apresentam a obra DesenvolvimentoSocial: Conhecimento e Trabalho.

A pesquisa foi desenvolvida na área específica de conheci-mento de cada participante: Filosofia, Comunicação, Economia,Direito e Ciência Política. Semanalmente, durante um ano, foramfeitas reuniões de estudo em que os textos foram avaliados ecriticados. Queremos agradecer à UCPel pelo apoio e registrar azelosa contribuição da bolsista em Serviço Social, Virgínia FerreiraCoelho.

O estudo tenta apontar para uma direção crítica em relação aomodelo de desenvolvimento da chamada “sociedade globalizada”.Se os textos oferecem mais perguntas do que respostas; se nosconduzem mais pelas beiras da dúvida do que pelas estradas dacerteza; é, no entanto, verdade para nós que a temática do desenvol-vimento social passa pelos caminhos do projeto humano e necessitado olhar múltiplo dos saberes, para ser compreendido e realizado.

Osmar Schaefer

Page 9: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

9

Introdução

Sociedade do Conhecimento – sem sujeito?

Osmar Miguel Schaefer

Introdução

Este texto tem sua origem nas discussões das aulas deepistemologia nos cursos de filosofia e de mestrado em desenvolvi-mento social da Universidade Católica de Pelotas. A preocupaçãoprimeira era a de perguntar pelo papel do conhecimento que serelaciona com o trabalho, com o modo pelo qual os homens serelacionam com a existência.

O propósito, no entanto, deixou de ser uma preocupação geralcom o conhecimento, para tornar-se uma indagação mais específica:qual o sentido do conhecimento na assim chamada “Sociedade doConhecimento”?

O referencial limita-se à leitura de textos escolhidos de PeterDrucker e Manuel Castells de um lado e, de outro, como contraponto,a perspectiva de Edgar Morin. O apregoado “Novo Paradigma” deDrucker e de Castells não aparece como sendo tão novo: suafisionomia e postura mostra, de maneira muito clara e até radicalizada,a marca do parentesco com o paradigma unidimensional da ciênciamoderna. Trata-se de um estudo que está em fase inicial. Isto jáescusará sua tonalidade de apresentar mais perguntas do que respos-tas.

Page 10: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

10

Os movimentos na casa grande

Novo paradigma ou tempo de transformação?

O final do Século XX e a aurora do Século XXI são uma épocahistórica em que novos desafios, com matizes peculiares, interpelamo homem contemporâneo. É uma época em que tanto os indivíduosquanto a sociedade questionam seus antigos modelos societários, osvalores que lhes serviam de suporte para regular a existência e asinstituições que lhes davam abrigo seguro. Abre-se o tempo históricodas chamadas “Sociedade Globalizada”, “Sociedade Pós-Industri-al”, “Sociedade em Rede”, “Sociedade Pós-Capitalista”, “Socieda-de do Conhecimento”.

Para onde sinalizam estas denominações? Embora não pos-sam ser tomadas sinonimicamente, não se lhes pode, entretanto,negar o parentesco. Este reside num aparente caráter transformadorda sociedade. A transformação em causa, no dizer de PeterDRUCKER, em poucas décadas, reorganiza a sociedade elaborandouma nova visão de mundo. Transformam-se os valores, a cultura, apolítica, a estrutura social, as instituições...

“Depois de cinquenta anos existe um novo mundo (grifo nosso).As pessoas nascidas nele não conseguem imaginar o mundo emque seus avós viviam e no qual nasceram os seus pais”.(DRUCKER, 1999: XI).

O novo mundo, ao qual o autor se refere, seria um novoparadigma de sociedade. Este fenômeno de transformação ocorreriana história ocidental “a cada dois ou três séculos” e DRUCKERchama-o de “marco divisório” da história (DRUCKER, 1997:3).Cita como exemplos: 1) as transformações ocorridas na Europa noSéculo XIII; 2) a invenção da imprensa em 1455 e a ReformaProtestante em 1517; 3) a revolução americana (1776), a revoluçãofrancesa (1789), a revolução industrial e o comunismo (Séculos XIXe XX).

Hoje haveria um novo “marco divisório da história”, de tãoprofundas repercussões quanto as anteriores, ou quem sabe, comconseqüências ainda mais decisivas. Há, no discurso de renomadosestudiosos do novo paradigma, indícios de que a “nova sociedade”

Page 11: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

11

Introdução

conferiria finalmente aos indivíduos seu sonho há tanto acalentado:“seu espírito libertário” (CASTELLS, 1999 A:24-25).

O fenômeno novo e transformador, como o fora a criação daimprensa em 1455, agora são as descobertas provenientes datecnologia da informação.

“Devido a sua penetrabilidade em todas as esferas da atividadehumana, a revolução da tecnologia da informação será meuponto inicial para analisar a complexidade da nossa economia,sociedade e cultura em formação” (CASTELLS, 1999A:24).

Percebe-se, a partir do texto, que “o fundo”, para não dizer ofundamento, da nova era se deslocou para o mundo da tecnologia e,bem especialmente, para a tecnologia da informação.

CASTELLS, citando Bijker, vai mais longe quando afirmaque “... a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode serentendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas”(CASTELLS, 1999 A:25). Este paradigma da tecnologia da infor-mação, interagindo com as diferentes instâncias da sociedade e, emespecial, com “ a economia global e a geopolítica mundial” (Idem:25)exercerá um impacto decisivo sobre a forma das relações sociais.Ainda, no dizer de CASTELLS, já nos anos 70 este modelo concre-tizou, num determinado segmento da sociedade americana “um novoestilo de produção, comunicação, gerenciamento e vida” (Idem:25 ess.).

Encontramo-nos, assim, diante do que já se convencionouchamar de um novo paradigma histórico. Como podemos pintar afisionomia deste “novo mundo”? Condensando as posições deestudiosos e de entusiastas (?) do assunto, seria uma sociedade pós-industrial em que as relações do homem com a realidade não seriammais diretas, do tipo da manipulação de objetos – característica dassociedades fabril e industrial. A exigência de domínio, aqui posta aohomem, não seria mais o domínio sobre a natureza, mas a exigênciade domínio sobre o modo (ou os instrumentos) como o homemdominaria a natureza. Para usar uma imagem tirada de POPPER, ohabitante do “novo mundo” teria que controlar o “terceiro mundo”(terceiro mundo para o autor significa “conteúdos objetivos do

Page 12: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

12

Os movimentos na casa grande

pensamento”. (POPPER, 1975:108).Neste novo paradigma histórico deparar-nos-emos com situ-

ações (na economia, na cultura, no trabalho) em que ao ser humano,ator e possível sujeito da sociedade, são exigidos uma série derequisitos e aptidões. Com efeito, o ator da nova sociedade deverá serpolivalente, isto é, capaz de desempenhar uma multiplicidade defunções. Lidará com objetos e máquinas “ricos em conhecimento”e, ele mesmo, será alguém dotado de um sofisticado corpo deconhecimentos. Em síntese, a “nova sociedade” e, consequentemente,sua vida, suas relações e seu próprio desenvolvimento formarão a“sociedade do conhecimento”. Ele (o conhecimento) será agora opoder para os enigmas do mundo, a chave para os segredos e odestino da história.

Que sociedade?

Já pudemos perceber que a transformação histórica de nossaépoca encontra sua alavanca principal no conhecimento. Continua-remos aqui o esforço de compreender melhor este mundo emtransformação e, por esta via ficando atentos para identificar o tipode conhecimento de que dá nome ao novo paradigma. De que setrata?

Em períodos históricos, durante os quais se formou nossacivilização ocidental, pode-se observar uma priorização sucessivade recursos. Há períodos em que a terra é mais importante. Em outrosperíodos de formação histórica está em primeiro lugar o capital.Ainda em outros o trabalho.

Em nossa época faz-se-nos crer que o recurso fundamental éo conhecimento:

“É praticamente certo que a nova sociedade será não-socialistae pós-capitalista. E também é certo que seu principal recurso seráo conhecimento” (DRUCKER, 1999: XIII).

É interessante ficar sensível às nuanças terminológicas usa-das por DRUCKER: não-socialista e pós-capitalista. O não parece

Page 13: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

13

Introdução

negar a existência do socialismo. O pós, por sua vez, é uma partículaque não sugere a não presença do capitalismo. Ainda é cedo para setirar conclusões de maior alcance sobre a ideologia que está na baseda sociedade do conhecimento. Deixarei isto para mais tarde, oumesmo para outra ocasião.

Entretanto, é oportuno sublinhar o contexto no qual a tese édesenvolvida. DRUCKER, com efeito, faz alusão à obra O Fim daHistória de Fukayama, apressando-se em afirmar que a

“falência moral, política e econômica do marxismo e o colapsodo regime comunista não foram ‘o fim da história’ (...). Mas oseventos de 1989 e 1990 foram mais que o simples fim de uma era;eles significaram um fim de uma espécie de história” (DRUCKER,1999: XVI).

Trata-se do fim do império de mais de duzentos anos domarxismo e do comunismo, segundo o autor. Como se percebe,DRUCKER não faz nenhum esforço para distinguir os conceitos demarxismo e regime comunista, a não ser que qualifica o primeiro deideologia e o segundo de sistema social. É significativo também queo autor não encontra nenhuma dificuldade em chamá-los (o marxis-mo e o comunismo) indistintamente de “crença” ou de “religião”.Em todo caso fica claro que o início da nova era decretou o fim dosistema social do comunismo e da ideologia marxista.

E o capitalismo? Ao ler nossos autores, protagonistas da“nova sociedade”, tanto CASTELLS quanto DRUCKER dão-nosuma primeira impressão que também o capitalismo chegara ao fim.É DRUCKER quem escreve que

“ambos (capitalismo e marxismo) estão sendo rapidamentesubstituídos por uma nova sociedade, muito diferente”(DRUCKER, 1999: XVI).

No entanto, na medida em que se avança no texto que elucidao que vem a ser a tão apregoada “nova sociedade”, a própria leiturade DRUCKER deixa perplexidade. Com efeito, após afirmar que ocapitalismo se tornara “obsoleto”, na mesma página XVI insiste em

Page 14: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

14

Os movimentos na casa grande

registrar que a nova sociedade pós-capitalista “não será uma ‘soci-edade anti-capitalista’”. E ainda mais: não será também uma “soci-edade não capitalista”. E vai explicando, em seguida e ao longo desua obra, que as instituições capitalistas (bancos, por exemplo)sobreviverão na nova sociedade, com papéis e atribuições “bastante”diferentes. Em todo o caso, não será mais chamada de sociedadecapitalista, mas sim de sociedade do conhecimento.

Conhecer é fazer

Com a breve referência que fiz ao capitalismo não quero darpor encerrado o debate sobre as características capitalistas da cha-mada nova sociedade. Insisto, sim, em deixar a suspeita sobre se elaé tão nova assim, pelo simples fato de pretender que seu fundo sejao conhecimento. Esta questão poderá tornar-se mais clara quandoprocuraremos compreender o sentido que os ideólogos da novasociedade dão ao conhecimento e na proporção em que identificar-mos os sujeitos (os protagonistas) deste conhecimento.

Para se entender melhor a, questão as palavras de DRUCKERsão mais uma vez esclarecedoras:

“o fato do conhecimento ter passado a ser o recurso, ao invés deum recurso, é que torna nossa sociedade ‘pós-capitalista’”(Drucker, 1999:24).

O conhecimento nessa sociedade não é mais genérico. Éaltamente especializado. DRUCKER faz questão de mostrar a mu-dança operada a seu respeito na nova era. Na sociedade tradicionaltratava-se de formar “pessoas educadas”. Elas sabiam muito demuitas coisas. “Mas elas não sabiam o que fazer e como fazê-lo”(DRUCKER, 1999:24).

Para caracterizar o “homem de conhecimento”, em oposiçãoà “pessoa educada” da sociedade tradicional, o autor lembra, nãosem humor, duas situações: a pessoa educada você a quer à mesacomo convidada para jantar. Mas não a quer sozinha, como compa-nheira no deserto, onde você precisa alguém que saiba o que fazer e

Page 15: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

15

Introdução

como fazer.A evocação dos textos e as imagens que daí se depreendem

ajudam a explicitar o sentido que assume aqui o conhecimento.Efetivamente este se esgota na eficácia da ação, na produção deresultados.

“Para nós, conhecimento é informação eficaz em ação, focaliza-da em resultados. Esses resultados são vistos fora da pessoa - nasociedade e na economia, ou no avanço do próprio conhecimen-to” (DRUCKER, 1999:25).

Como se pode perceber, o significado do conhecer não sevolta mais para o “ser” como tal, mas para o “fazer”, “transforman-do-se em um recurso e uma utilidade” (DRUCKER, 1999:3).

Os textos citados são transparentes e falam por si só. Apenasacrescentaria mais um ingrediente para avançar na compreensão daproblemática. Já foi adiantado que o conhecimento tem que serespecializado. A especialização, no entanto, não se caracteriza aquicomo sendo a das “habilidades artesanais”. Ao contrário, o conhecerespecializado cria a disciplina, que se converte em metodologia.Cada metodologia transforma a experiência particular em “sistema,histórias em informações” (DRUCKER, 1999:25), que, por sua vez,se tornam aptidões que podem ser ensinadas e aprendidas.

Pessoa Instruída

E aqui, finalmente chegamos à dissociação entre conhecimen-to e cultura, a exemplo de “pessoa educada” e “homem do conheci-mento”, conforme vimos anteriormente, privilegiando-se a catego-ria de pessoa instruída.

A pessoa instruída não é o sujeito da cultura, como o entendea tradição. É mais uma vez DRUCKER quem sustenta que em todasas sociedades anteriores o homem culto era um ornamento. Agora,na lógica do conhecimento como poder fazer,

“a pessoa instruída é o ‘arquetipo’ social ... Ela define a capaci-

Page 16: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

16

Os movimentos na casa grande

dade de desempenho da sociedade, mas também incorpora seusvalores, crenças e compromissos” (DRUCKER, 1999:166).

Assim como na Idade Média tínhamos o “cavaleiro feudal” ena sociedade industrial o “burguês”, agora, na nova sociedade,temos a pessoa instruída.

A pessoa instruída será uma pessoa universalmente instruí-da.

“Este terá que ser um conceito universal, precisamente porque asociedade do conhecimento é uma sociedade de conhecimentose é global - em seu dinheiro, suas economias, suas carreiras, suastecnologias... e, acima de tudo, em suas informações”(DRUCKER, 1999:166-7).

Para clarear ainda mais sua posição, o texto do autor crítica osdesconstrucionistas, as feministas radicais, ou os anti-ocidentais.Seriam eles o oposto da pessoa instruída. Cabe aqui perguntar: nãoseriam esses grupos exatamente desejosos de uma cultura geral,sensíveis às diferenças e, por isso mesmo, defensores da necessidadede um processo de formação global?

Ainda é cedo para responder. No entanto, já se pode vislum-brar que a concepção de conhecimento aqui veiculada vai no sentidode que ele é recurso para resolver problemas imediatos. E a palavrarecurso, é bom não esquecê-lo, tem um sentido bem preciso aqui:“recurso econômico básico” ou “meios de produção” (DRUCKER,1999: XVI).

Sujeito do conhecimento

Antes de ensaiar uma reflexão crítica mais ampla, é precisoperguntar quem é o “homem do conhecimento”? A “pessoa instru-ída”? E “universalmente instruída”? Em outras palavras, quem é osujeito, autor e depositário do conhecimento nesta nova sociedade?

Em primeiro lugar convém registrar que os autores queestamos pesquisando como fontes principais (DRUCKER E

Page 17: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

17

Introdução

CASTELLS) têm o cuidado de deixar claro que a sociedade de quetratam se refere aos países desenvolvidos. Então, segundo nossaleitura, a expressão “Sociedade do Conhecimento” convém adequa-damente a este tipo de sociedade e talvez, analogicamente, ássociedades emergentes e em desenvolvimento.

Mas, o que aparece como significativo é que nesta novasociedade desapareceriam as classes sociais. Na nova sociedadeteríamos dois “grupos sociais”: 1) os “trabalhadores do conhecimen-to” e 2) os “trabalhadores em serviços” (DRUCKER, 1999: XVI eXVII).

Os primeiros são “executivos que sabem como alocar conhe-cimentos para usos produtivos, assim como os capitalistas sabiamcomo alocar capital para isso...” Curiosamente, poucas linhas maisadiante, Drucker nos diz que “o desafio social da sociedade pós-capitalista será a dignidade da sua segunda classe: os trabalhadoresem serviço”. E continua: “Como regra geral (o grifo é nosso) essestrabalhadores carecem de educação necessária para serem trabalha-dores do conhecimento. E em todos os países, mesmo nos maisadiantados, eles constituírão a maioria” (DRUCKER, 1999: XVII).

Em parte as próprias palavras de Drucker ajudam a esclarecera questão sobre quem é o sujeito do conhecimento neste paradigmasocietário. Os trabalhadores em serviços não são sujeitos, masempregados do conhecimento. Ficam aqui as perguntas: será quea nova sociedade é tão nova assim? Será que de fato desapareceramas classes sociais?

Finalmente, que conhecimento?

A título de reflexão, refaço a pergunta sobre a significação dapalavra conhecimento nesse apregoado paradigma societário. Maisdo que na posse de respostas, encontro-me na situação de quem temperguntas e preocupações principiantes. Isso se deve ao duplo fatode que o objeto em discussão é complexo e de que a pesquisa estámuito em seu início.

Feita esta ressalva, percebo que a ênfase dada ao aspecto de

Page 18: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

18

Os movimentos na casa grande

novidade do novo paradigma tem sabores provenientes de cardápioantigo. Explico.

1) No que se refere ao conhecimento, pode-se perceber que elenão é mais voltado primeiramente à explicação e à compreensão darealidade efetiva (“aplicável a ser”), mas dirige-se fundamentalmen-te à utilidade, ao “fazer”. Aqui, de modo mais explícito, segundo anossa percepção, se concretizam o ideal cientificista e tecnicista dosséculos XIX e XX. Com efeito, durante parte da formação da épocamoderna (aquela referente à sociedade industrial e ao capitalismo),o conhecimento pode parecer apenas como sendo coadjuvante,fazendo-se tão somente a revolução científica e tecnológica após1990 (era da informação).

Ora, parece que é preciso proceder com mais justeza para seperceber que o desenvolvimento científico a que chegamos nestemomento histórico é o resultado do desdobramento do modelo deconhecimento que se tornou hegemônico em nossa civilizaçãoocidental; e que teve sempre um papel decisivo no desenvolvimentodesta mesma sociedade. Trata-se do modelo que progressivamenteelaborou a dissociação entre o ser e o fazer, priorizando cada vezmais a esfera do fazer. Trata-se da concretização do modelo cientí-fico que elaborou

“o corte entre ciência e filosofia que se operou a partir do séculoXVII com a dissociação formulada por Descartes entre o eupensante,..., e a coisa material,..., cria um problema trágico naciência: a ciência não se conhece; não dispõe de capacidadereflexiva” (MORIN, 1998:104).

A ciência corta, assim, as relações com a existência e consigomesma e, deste modo, perde sua identidade. A perda da dimensãoauto-reflexiva da ciência pode ser percebida quando Drucker susten-ta que o conhecimento substitui tanto o capital quanto a mão de obra,na medida que ele se aplica ao trabalho, constituindo a novasociedade “pós-capitalista”. É ainda Morin quem pode nos ajudar:

“de certo modo os cientistas produzem um poder sobre o qualnão têm poder, mas enfatiza instâncias já poderosas, capazes de

Page 19: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

19

Introdução

utilizar completamente as possibilidade de manipulação e dedestruição provenientes do próprio desenvolvimento da ciência”(MORIN, 1998:18).

2) Em relação aos sujeitos, quem faz parte da sociedade doconhecimento? No mínimo seria ficção pretender que o novoparadigma societário promovesse uma sociedade igualitária, nosentido em que o conhecimento fosse essencialmente uma categoriade participação. (Não é sem significação o esforço de Castells aodescrever o surgimento de um “novo mundo”, que ele chama dequarto mundo. O autor descreve o papel dos países e dos sujeitosexcluídos do novo mundo. Os sub-títulos do capítulo são sugestivos:adeus a África... as duas faces da América... quando a sub-classe vaipara o Inferno... por que se desperdiçam as Crianças...(CASTELLS,1999B:95-201). Convém sublinhar, mais uma vez, que os nossosautores, em primeiro lugar, deixam claro que a “nova sociedade” dizrespeito às sociedades desenvolvidas. Em seguida, vimos que os“grupos sociais” estabelecem uma separação entre os “profissionaisdo conhecimento” e os “empregados do conhecimento”. E ainda,esses últimos são maioria e constituem-se em problema para asociedade pós-capitalista.

Voltando ao início de nossa reflexão conclusiva, mais umavez torna-se suspeita a posição que pretende que vivamos num novoparadigma histórico. Pois, quando nos perguntamos quem efetiva-mente participa do conhecimento, na sociedade globalizada, poderiaser ofensivo fazer-se alusão à “agorá” de Atenas e dizer que avança-mos em relação à situação daquela época. Mas, parece que ainda sãomaioria os que não podem frequentar a praça. Ainda são minoria osque podem participar das discussões em que se tomam as decisões.Os que não podem participar ainda não são “pessoas instruídas” e,muito menos, “universalmente instruídas”.

3) As categorias de “pessoa instruída” e de “homem deconhecimento”, em oposição à pessoa educada, expressam, a meujuízo, o pano de fundo do significado do conhecimento nesteparadigma. Haveria aqui indícios de um novo obscurantismo cien-tífico, na medida em que o próprio sentido do conhecer e do saber,em vez de se voltar para o projeto humano concreto, sujeita-se à

Page 20: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

20

Os movimentos na casa grande

manipulação de poderes políticos e econômicos:

“... o saber já não é para ser pensado, refletido, meditado,discutido por seres humanos para esclarecer sua visão de mundoe sua ação no mundo, mas é produzido para ser armazenado embanco de dados e manipulados por poderes econômicos”(MORIN, 1998:120)

Como transformar o significado do conhecimento na socieda-de atual? Mais do que respostas, impõem-se-me perguntas, nosentido forte do perguntar. Apontaria para uma outra posturametodológica: aquela que se preocupara em relacionar ciência esaber com sua finalidade, isto é, com o projeto humano.

Como isto será possível? Sem respostas mágicas, trata-se deoperar um “retorno ao sujeito” Com efeito, na medida em queconhecer somente diz respeito ao fazer técnico, e o processo deeducação vai encontrar sua finalidade na formação de pessoasinstruídas, há um problema de fundo, de subsolo. Este problemapode ser resumidamente caracterizado como sendo a exclusão dosujeito, do ser humano da esfera do conhecimento1.

Morin analisa este fenômeno de crise, como sendo fenômeno

“em que os indivíduos são destituídos do direito de pensar”. Istocriaria “um sobrepensamento que é um subpensamento, porquelhe faltam algumas das propriedades de reflexão e de consciênciapróprios do espírito, do cérebro humano”.(MORIN, 1998:136)

A questão da exclusão do sujeito é uma questão de princípios,ou se quisermos, de paradigma antigo da ciência que pede para sertransformado. Morin insiste que este velho paradigma começou a serformulado por Descartes e persegue o ideal da objetividade cientí-fica. E conclui:

1 Nota: curiosamente, nesta semana foi veiculado pela imprensa internacionalque uma das acusações ao sistema de segurança americano, no episódio de11.09.2001 é o fato de a política americana ter investido exclusivamente emtecnologia, sem ter se preocupado na formação humana dos agentes responsá-veis pela segurança).

Page 21: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

21

Introdução

“... Assim, ignorou-se que as teorias científicas não são o puro esimples reflexos das realidades objetivas, mas os co-produtosdas estruturas do espírito humano e das condições sócioculturaisdo conhecimento. Foi por isso que se chegou a situação atual naqual a ciência é incapaz de determinar seu lugar, seu papel nasociedade, incapaz de prever se o que sairá de seu desenvolvi-mento contemporâneo será o aniquilamento, a subjugação ou aemancipação”. (MORIN, 1998:137-8).

Para fazer retornar o sujeito ao processo do conhecimentopropõe-se uma nova postura metodológica, que eu aproximaria,como tentativa, do esforço de Edgar Morin., quando avança aproblemática do “método da complexidade”.(ver MORIN, 1998:175e ss; ver também MORIN, 1997: 15 e ss.)

“...Assim, a ciência é intrínseca, histórica, sociológica e etica-mente complexa. É essa complexidade específica que é precisoreconhecer”.(MORIN, 1998:9),

para promover o retorno do sujeito ao conhecimento e,porque não, à sociedade do conhecimento.

Referências Bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. A Era da Informação:Economia, Sociedade e Cultura. V.1. São Paulo: Paz e Terra, 1999A_________________. Fim de Milênio. A Era da Informação: Eco-nomia, Sociedade e Cultura. V.3. São Paulo: Paz e Terra, 1999B.DRUCKER, Peter. As novas Realidades, no governo e na política,na economia e nas empresas, na sociedade e na visão de mundo. 4ed. São Paulo: Pioneiro, 1997._______________. Sociedade Pós Capitalista. 7 ed. São Paulo:Pioneira, 1999.FOUREZ, Gérard. A construção das Ciências. Introdução à Filoso-fia e à Ética das Ciências. São Paulo: UNESP, 1995.

Page 22: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

22

Os movimentos na casa grande

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 2 ed. Rio de Janeiro:1998.MORIN, Edgar. Complexidade e Ética de Solidariedade. In: CAS-TRO, Gustavo de (org.) Ensaios de Complexidade. Porto Alegre:Sulina, 1997. P. 15-24POPER, Karl. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia,1975RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da Justiça. Lisboa: InstitutoPiaget, 1995

Page 23: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

23

Introdução

Globalização: Trabalho e Educação

Erli Soares Massaú

Introdução

O emprego é o resultado do contrato entre o empregador e aforça de trabalho (capacidade individual de produzir). É o trabalha-dor que oferece sua capacidade, que passa a ser mercadoria, muitasvezes, aviltada pelo excesso de oferta. Esse fato, que tem seagravado com a globalização, é um processo de reorganizaçãointernacional do trabalho, gerido, em parte, pelas diferenças doscustos de produção entre os países e pelas diferenças de produtivi-dade resultante da qualificação.

Neste contexto, a qualificação se traduz em conhecimento e,ao mesmo tempo, em desemprego. Assim a globalização “faz comque milhões de trabalhadores, que produziram o que depois passoua ser importado, percam seus empregos e que possivelmente mi-lhões de novos postos de trabalho mais qualificados sejam criados,tanto em atividades de exportação como em outras. O desempregoestrutural ocorre porque os que são vítimas da desindustrializaçãoem geral não têm pronto acesso aos novos postos de trabalho”.(SINGER, 1999:23)

Como o desemprego tecnológico, o desemprego estruturaldecorrente da globalização não aumenta necessariamente o númerodos sem trabalho, mas deteriora o mercado de trabalho para aquelesque precisam vender sua capacidade de produzir. Assim, além dodesemprego, um outro fenômeno vem marcar o contexto mundial.É a precarização do trabalho que, na verdade, é pouco menos que odesemprego. Os postos de trabalho que surgem em decorrência dastransformações tecnológicas e da nova divisão do trabalho, induzidapela globalização, quase sempre oferecem baixas remunerações -principalmente nos países do Terceiro Mundo - e não cobrem os

Page 24: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

24

Os movimentos na casa grande

benefícios sociais estabelecidos em lei.Para Paul Singer:

“A precarização do trabalho toma também a forma de relações“informais ou incompletas de emprego(...)”. Esta ampliaçãoda insegurança no emprego”, conforme relata Mattoso(1993:126), deu-se em praticamente todos os países avançados(...) através da redução relativa ou absoluta de empregos está-veis ou permanentes nas empresas e da maior subcontratação detrabalhadores temporários, em tempo determinado, eventuais,em tempo parcial, trabalho em domicílio ou independentes,aprendizes, estagiários etc.” (SINGER, 1999:25).

Paul Singer continua sua argumentação:

“(...) Emprego estável só será assegurado a um núcleo detrabalhadores de difícil substituição em função de suas qualifi-cações, de sua experiência e de suas responsabilidades. Aoredor deste núcleo estável gravitará um número variável detrabalhadores periféricos, engajados por um prazo limitado,pouco qualificados e, portanto, substituíveis (...) (SINGER,1999:25 e 26).

A precarização funciona como um compensador social sobreos movimentos dos trabalhadores, enfraquecendo a organizaçãosindical e decretando a perpetuação do estado de crise.

Abordando a exclusão social é preciso ter a consciência deque ela ocorre em todos os países: ricos e pobres. E, segundo PaulSinger:

“A precarização do trabalho não está confinada ao PrimeiroMundo. Desde a década passada ela se estende a países perifé-ricos que têm legislação trabalhista e fazem observar os direitoslegais dos trabalhadores. (...) É possível afirmar que o conjuntodos países ativamente envolvidos no processo de globalização,isto é, todos os membros da OCDE mais uma ou duas dúzias depaíses da Ásia e da América Latina, estão em graus variadossendo submetidos ao mesmo processo (...).

Page 25: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

25

Introdução

(...) Como não poderia deixar de ser, a contra-revolução docapital teve como conseqüência, em todos os países, o aumentoda exclusão social. Trata-se, na realidade, de um processocumulativo: a precarização do trabalho tornou sem efeito parauma parcela crescente da força de trabalho a legislação dotrabalho, inclusive a que limita a jornada a 8 horas, determinan-do ainda descanso semanal e férias. Essas conquistas históricasdo movimento operário foram decisivas para limitar a extensãodo desemprego em face do crescimento acelerado da produtivi-dade do trabalho durante os anos dourados (1945-73). Agoratodos os ocupados por conta própria, reais ou formais, perderamestes direitos. Seus ganhos em geral se pautam não pelo tempode trabalho dado mas pelo montante de serviços prestados.Nesta situação, os trabalhadores por conta própria tendem atrabalhar cada vez mais, na ânsia de ganhar o suficiente parasustentar o padrão usual de vida” (SINGER, 1999:28 e 29).

O que resulta da análise de Singer é a consciência de quedesemprego e precarização acontecem tanto nos países pobres comonos países ricos. Estes, no entanto, possuem melhores instrumentospara reduzir ou segurar o empobrecimento dos trabalhadores atingi-dos pela nova relação capital/trabalho. Este quadro de empobreci-mento da classe média em todo mundo, aliado às novas condiçõesde trabalho para ricos e pobres, aponta algumas constatações:

* nos países do Primeiro Mundo, o Estado possui maioresrecursos para induzir o surgimento de novos postos de trabalho,mas, mesmo assim, não consegue absorver os desempregados maisaqueles que desejam ingressar no mercado;

* nos países ricos, os empregados não-qualificados aumen-tam seu tempo médio de trabalho, aceitam a redução do saláriomédio e, assim, reduzem as oportunidades dos que procuram empre-go;

* em todos os países surgem o emprego temporário, otrabalho/hora e a prestação de serviços;

* o trabalho terceirizado e a atividade ambulante prosperamcomo alternativa para aqueles que perderam seus empregos;

* aqueles que estão no mercado de trabalho buscam mais deuma atividade, encurtando as possibilidades dos que procuram

Page 26: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

26

Os movimentos na casa grande

oportunidades;* aqueles que se desempregam trocam de atividade, aceitan-

do trabalho com maior desgaste e menor salário;* os investimentos diretos estrangeiros procuram os países

com o custo de mão-de-obra mais baixo, mas se deslocam comrapidez sempre que seus ganhos diminuem;

* os empregos gerados pelos investimentos diretos, emboraajudem os países do Terceiro Mundo, são sempre de menor remu-neração média em relação aos mesmos postos nos países de origem.

1. Quadro mundial

O panorama mundial do trabalho teve importantes mudançasnos últimos vinte anos, com alterações que vão do funcional aoadministrativo e com implicações econômicas e sociais que tendema estabelecer novos paradigmas nas relações capital/trabalho:

* as relações capital/trabalho tornaram-se, em grande parte,informais ou incompletas com o surgimento da subcontratação, dotrabalho temporário, do trabalho eventual, parcial, independente oudomiciliar; com a contratação de estagiários ou pessoal de nívelmédio para serviços outrora prestados por trabalhadores com nívelsuperior;

* essas modalidades que visam redução de custos mantêm aforça de trabalho disponível no formato de just-in-time, evitando oestoque de mão-de-obra, mas criando um exército de reservapermanente;

* o emprego estável passa a ser prerrogativa de poucostrabalhadores, quase sempre, altamente qualificados. Na periferiadeste núcleo circulam trabalhadores menos qualificados, com bai-xas remunerações e com relações de emprego precárias. Estasituação coloca a mão-de-obra periférica em permanente estado deangústia e dependência;

Page 27: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

27

Introdução

* as ocupações por conta própria crescem na forma deprestadores informais de serviços ou de micro e pequenas empresassatélites dos grandes empreendimentos;

* os países menos desenvolvidos passam a ser recebedores deinvestimentos demandantes de grandes contingentes de mão-de-obra, mas, sem a segurança de permanência desses investimentos.Esses países continuam dependentes de tecnologias pelas quais têmque pagar;

* os ocupados (informais, temporários, eventuais) procuramsempre trabalhar, mas, reduzindo as possibilidades dos desempre-gados.

2. Trabalho e educação

Não há como separar trabalho de educação e globalização.Enquanto a educação surge como mecanismo de melhor inserção nomercado de trabalho, a globalização se revela indutora de melhorese mais qualificados postos de um lado e, de outro, se revela comoexcludente de largas faixas de trabalhadores semi-qualificados enão qualificados.

Durante quase todo o século XX o trabalho, como é concebi-do no capitalismo, esteve regido pela relação empresa/trabalhadore pela busca incessante, por parte dos assalariados, da melhoria dosalário médio. Mas o avanço acelerado da tecnologia, a integraçãofinanceira mundial e a transnacionalização das empresas mudaramo padrão de uso e remuneração do trabalho, num contexto degeneralização de políticas macroeconômicas comprometidas com ocontrole da inflação, com o uso de instrumentos recessivos edistantes da geração de empregos como objetivo social.

Os resultados, no final de século XX, foram as altas taxas dedesemprego em todo mundo, a redução dos salários médios, aprecarização e a desestruturação do mercado de trabalho e o avançoda economia informal.

Page 28: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

28

Os movimentos na casa grande

Os primeiros anos do século XXI terão na insegurança socialsua característica principal, em relação às oportunidades de trabalhoe de obtenção de renda.

No âmbito do capitalismo pós-industrial, que avança sobrepreceitos e costumes, desmontando crenças que vigoravam desde oséculo XIX, urge a aplicação de medidas que recoloquem o trabalhono centro dos esforços de sustentação do próprio capitalismo, semo que o panorama social no mundo inteiro determinará a definitivaexclusão de grandes faixas populacionais. Assim, o retorno daspolíticas públicas voltadas para o trabalho e para a reinserção dedesempregados deve ser a prioridade. Havendo um reposicionamentomacroeconômico, agora voltado para a geração de postos e alterna-tivas de trabalho, é possível desencadear esforços na área social quetenham como base o financiamento sólido de encargos e, comocomplemento, a possibilidade de acesso dos trabalhadores às con-quistas do desenvolvimento sustentado. Paralelamente, a democra-tização das relações no trabalho, o reposicionamento sindical e adinamização dos contratos coletivos poderão impulsionar o empre-go formal, além de funcionarem como reguladores do mercado.

Esses dois campos de ação demandam definições num tercei-ro. O campo tecnológico: com a análise da conveniência ou não dosníveis técnico-científicos a serem adotados na produção. Tecnologiasavançadas implicam o uso intensivo de capital, tornam o trabalhomais produtivo e dinamizam toda a economia. Geram postos detrabalho mais especializados e melhor remunerados, mas, emcontrapartida, a quantidade de postos criados não é suficiente paraa absorção de novos trabalhadores que entram no mercado e para areabsorção dos que perderam os empregos.

Macroeconomia, políticas sociais e tecnologia devem desem-bocar em políticas gerais de emprego. Políticas essas que determi-nem o uso e a remuneração da força de trabalho, a reutilização damão-de-obra desempregada, o treinamento e a reeducação dostrabalhadores e, ainda, a abertura de frentes de trabalho paraabsorção dos menos qualificados. Se a solução para a ambigüidade,modernização e crescimento da produção com geração insuficientede postos de trabalho não é fácil, é possível, pelo menos, buscaralternativas que ajudem a minimizar o quadro que se apresenta. A

Page 29: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

29

Introdução

busca de alternativas deve levar em conta uma globalização galo-pante, que implica, de um lado, o avanço sistemático do capital quese acumula e reproduz, derrubando fronteiras e, de outro, oconfinamento da mão-de-obra em áreas geográficas cada vez maisrestritas. O caminho para a redução do hiato entre demanda e ofertade emprego passa pela criatividade na geração de trabalho, pelasupressão da tutela autoritária e pela eliminação do clientelismo.

Nos países do Terceiro Mundo, o atual contexto mundial foi,e é, agravado pelos custos econômicos e sociais da dívida externa,que, desde a década 80, consome boa parte da poupança e da rendadesses países. No campo macroeconômico a redução dos altoscustos do serviço da dívida, seja por pressão, seja por negociação,ajudará a aliviar a necessidade de caixa dos governos, fazendorefluir para a região capitais que hoje são captados a custos igual-mente altos. A partir daí, são possíveis medidas macroeconômicasde expansão das economias nacionais com o conseqüente aumentoda oferta de trabalho. Trata-se de dar ênfase ao conjunto investimen-to/consumo, gerando empregos de modo a dinamizar toda a econo-mia e a impedir o fluxo de recursos para uso somente no mercadofinanceiro.

O desenvolvimento não se dissocia das transformações glo-bais e, a partir dessas transformações, sofre influências conjunturaisque, quando não assimiladas, implicam mudanças estruturais queafetam drasticamente o composto sócio-econômico com repercus-sões na estrutura do trabalho. Os anos sessenta instauraram umanova ordem econômica onde capital e trabalho vivem lutas nomínimo desiguais. De um lado o capital expande-se territorialmente,atravessa fronteiras, alia-se a mais capitais e dita as tendências deprodução e mão-de-obra. De outro, é a força de trabalho que, levadade roldão pela globalização, busca espaços, muitas vezes reduzidospara sua absorção.

O movimento de globalização, enquanto impele a rápidareprodução e diversificação do capital, com a incorporação constan-te de novas tecnologias, impele o trabalho à especialização, o quetermina por limitar a oferta de novos postos, além de eliminarmilhares de postos de trabalho existentes. Fica evidente que, en-quanto o capital se internacionaliza, a força de trabalho é comprimi-

Page 30: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

30

Os movimentos na casa grande

da em seus territórios de origem, tendo de fixar-se em áreas cada vezmenores. Os empregos ofertados reduzem-se quase que na medidainversa da expansão econômica e financeira. A oferta de postosinternacionais de trabalho fica cada vez mais reduzida e poucos sãoos profissionais que entram nesse mercado. Nos mercados nacionaiso fenômeno, embora menos drástico, também ocorre, pela incorpo-ração de tecnologias excludentes de mão-de-obra. A globalizaçãoeconômico-financeira e a incorporação constante de tecnologiaterminam fixando a mão-de-obra desempregada em seus países deorigem, restringindo a imigração e promovendo o repatriamento degrandes contingentes humanos. O fenômeno do confinamento damão-de-obra também ocorre no âmbito intra-nacional, com asregiões mais ricas sitiando a força de trabalho em seus redutos deorigem.

O novo cenário aponta para um grande mercado mundial que,além de excluir dezenas de países extremamente pobres, congrega-rá, no mesmo contexto, países ricos, emergentes e em vias dedesenvolvimento. Se o capital, ao modernizar a produção, reduz aoferta de trabalho e, se a expansão das atividades econômicas geramempregos em número insuficiente para absorver a mão-de-obradesempregada mais os novos cidadãos que anualmente entram nomercado, fica patente a necessidade de novas formas de alocação damão-de-obra excedente. A inserção da força de trabalho nessecenário competitivo e insensível, entre outros instrumentos, deverádar ênfase à educação.

3. Educação

A partir das constantes mudanças no campo do trabalho,pode-se descrever o contexto em que o trabalhador do futuro seráinserido e analisar o papel da educação nessas mudanças.

Para Clarice Fontoura Paim, a complexidade do subdesenvol-vimento e a necessidade da superação do atraso depende da mudan-ça das estruturas existentes e da remoção de obstáculos como faltade capital, desperdício de recursos, obsolescência dos processos de

Page 31: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

31

Introdução

produção, precariedade das condições de saúde e higiene, analfabe-tismo e educação deficiente. Neste contexto a educação desempe-nha papel importante, pois é a partir dela que ocorre a dinamizaçãodas forças que induzem o desenvolvimento da economia e a mudan-ça de comportamento da população.

Segundo Vaizey, a educação pressupõe funções como: “pri-meiro, preparação e fornecimento de mão-de-obra qualificada etécnica para uso e aplicação dos meios de produção; segundo,capacitação das populações para raciocinar além das suas neces-sidades básicas; terceiro, qualificação da mão-de-obra rural comomeio de aumentar a produção e acumular recursos no campo”(Vaizey, 1968, apud Paim, 1998: 39).

Alves argumenta que:

“(...) é inegável a proposição de que uma força de trabalhoqualificada representa condição necessária para o crescimentoeconômico auto-sustentado; entretanto, a análise do papel daeducação no processo de desenvolvimento econômico não devese restringir à análise da taxa de crescimento do produto naci-onal, mas sim na análise do papel da educação na distribuiçãodos benefícios do crescimento econômico” (Alves, 1998, apudPaim, 1998: 39).

Paim acredita que a importância e o papel da educação noprocesso globalizante ficam mais acentuados nas transformaçõesdas forças produtivas, das relações de produção, dos sistemasinstitucionais e dos sistemas político-ideológicos, impondo aospaíses uma preocupação central com a busca de produtividade ecompetitividade.

Para Zebral Filho (1997), a globalização vem provocandocontínuas mudanças em conceitos e padrões vigentes, determinandoa construção de uma nova ordem entre as nações, onde a tecnologiae as inovações revolucionam setores e renovam conceitos. Nestequadro expandem-se as funções e objetivos da educação.

As posições e opiniões assumidas pelos autores até aquicitados deixam claro que vencer o desemprego é o grande desafio da

Page 32: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

32

Os movimentos na casa grande

totalidade das nações, desenvolvidas ou não, e se converteu nagrande questão do final do século e do início do novo milênio. Oproblema se agrava à medida que os países ingressam na economiamundializada. Além do problema do desemprego estrutural, que setraduz na eliminação definitiva de postos de trabalhos, a eliminaçãoconjuntural de empregos estáveis e sua substituição por empregosprecarizados colocam a educação como uma alavanca social noquadro de mundialização da economia. Mundialização que, princi-palmente nos países dependentes, esbarra na questão crônica debaixa qualificação da mão-de-obra. O ponto crucial, no campo doemprego, é o evidente estrago que a globalização causou, ao trazerao mercado bens e serviços com alto valor agregado de tecnologiae baixa agregação de mão-de-obra alocada na produção. Substitui-se definitivamente o homem pela técnica.

O processo de modernização, com a disseminação do uso denovas tecnologias e métodos de gerenciamento, impõe um nívelmaior de escolaridade para compreensão de manuais, ajustes deequipamentos, manuseio de planilhas, gerenciamento de comandosnumérico-eletrônicos, uso de softwares em pesquisa e planejamen-to. Este quadro leva a uma maior seletividade das empresas, que,aliada ao crescimento econômico mais lento, que se verifica emgrande número de países, tende a deixar na exclusão definitiva ostrabalhadores de baixa escolaridade.

Nos setores industrial e de serviços a maioria das empresasnão contrata mais ninguém sem o “primeiro grau completo” e muitasexigem o “segundo grau” até mesmo para as linhas de produção. Ostrabalhadores sem uma formação mínima não conseguemimplementar os processos de qualidade que adotam cada vez maisferramentas e processos sofisticados de controle. Hoje um trabalha-dor precisa ler, construir e alterar informações codificadas, eletrô-nicas e informatizadas. Além disso, o trabalhador passou a serexigido como um generalista, no que respeita à linha de produção emque trabalha e ao setor/gênero em que está inserido. Em muitospaíses, a falta de preparo institucional vem sendo suprida pelaspróprias empresas, que formam e aperfeiçoam seus funcionários.Além disso, buscam-se organizações que, na falta do governo, sedediquem a esse fim.

Page 33: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

33

Introdução

No objetivo de qualificar funcionários, empresas e organiza-ções especializadas seguem duas vertentes: a manutenção daempregabilidade e a formação de profissionais polifuncionais quecompreendam a cadeia em que atuam, podendo se deslocar de umaa outra tarefa. Acrescente-se a necessidade de dominar a informáticacom a capacidade de programar equipamentos e controles lógicos eadaptar-se a situações novas. Educação e competência passam a sero binômio capaz de permitir a participação na economia mundial ede induzir investimentos maciços no contexto de um mercadoaltamente competitivo. Em muitos países a reforma e a adaptaçãodos sistemas de ensino se colocam como desafios para soluções deproblemas que começam no ambiente globalizado e se estendem atéespaços restritamente localizados. Neste caminho a educação deveflexibilizar a um maior número de pessoas o acesso ao conhecimen-to e à informação. Este deve ser o corolário, pois competitividade eeficiência não se alcançam com o povo despreparado.

Se é verdade que a educação é o paradigma de enfrentamentoda avalanche de transformações que ocorrem no campo sócio-econômico, é verdade, também, que a educação, nos moldes apre-goados, de instrumento de aperfeiçoamento constante, deixa adesejar, na medida em que milhões de trabalhadores em todo omundo não terão oportunidades educacionais que lhes permitamocupar os postos de trabalho gerados pela tecnologia. Ao contrário,milhões de homens e mulheres carecem de educação que lhespermita acesso aos trabalhos mais simples, os quais estão desapare-cendo na mesma velocidade que a tecnologia substitui o homem.

A questão passa a ser, não a necessidade de educação, masque níveis de educação, que tipos de treinamento e que métodos deaperfeiçoamento da mão-de-obra serão necessários e possíveis para,não apenas ocupar os postos tecnologicamente avançados, mascapacitar para postos e ocupações mais simples. Esta questão nosleva a uma segunda: existirão trabalho e ocupação para aqueles quenão possuem os requisitos para assimilar uma educação maissofisticada e exigente?

O desemprego no campo da globalização não pode ser consi-derado, segundo Singer, um mal, mas um êxito de políticasmacroeconômicas de estabilização que se aplicam em quase todos

Page 34: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

34

Os movimentos na casa grande

os países. Embora seja uma colocação duríssima, é assim que deveser entendido o desemprego, até mesmo, para que se possa proporum paradigma que considere os aspectos sociais e humanos, acimade medidas macroeconômicas de ajustes monetários e fiscais.

Com essa visão é possível o estabelecimento de políticassociais que gerem ocupação e busquem “oferecer à massa social-mente excluída uma oportunidade real de se reinserir na economiapor sua própria iniciativa. Esta oportunidade pode ser criada apartir de um novo setor econômico, formado por pequenas empre-sas e trabalhadores por conta própria, composto por ex-desempre-gados, que tenha um mercado protegido da competição externapara seus produtos”. (Singer, 1999: 122)

Além dessas medidas, é preciso repensar na retomada depolíticas keynesianas para absorção da mão-de-obra menos qualifi-cada - principalmente nos países pobres - onde os efeitos daeducação são menores e mais lentos. Se um dos efeitos negativos daglobalização é a exclusão dos menos capazes, fica evidente quesomente o Estado poderá oportunizar emprego para milhões depessoas no mundo inteiro. Se tal intervenção será temporária oudefinitiva, só o tempo dirá, o certo é que Keynes ressurge com suaspropostas para a amenização do desemprego, pela intervençãoestatal via investimentos públicos.

Referências Bibliográficas

GORZ, André. Crítica da divisão do trabalho. São Paulo: MartinsFontes, 1996.HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do homem. Rio deJaneiro: LTC, 1959.PAIM, Clarice da F. Educação desenvolvimento econômico e otrabalhador do futuro. Análise.A revista acadêmica da faculdadede administração, contabilidade e economia da PUCRS. PortoAlegre, v.9, nº 1, p.1-182, 1998.

Page 35: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

35

Introdução

SINGER, Paul. Globalização e desemprego, diagnóstico e alter-nativa. São Paulo: Contexto, 1999.ZEBRAL FILHO, Silvério T. B. Globalização, desenvolvimentoe desigualdade: evidências, mitos e desafios do mercado brasi-leiro. Brasília: Corolário, 1997.

Page 36: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

36

Os movimentos na casa grande

Page 37: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

37

Introdução

O Cenário Epistemológico da Modernidadee as novas Configurações Epistêmicas

Agemir Bavaresco

A Epistemologia trilhou, classicamente, o caminho da oposi-ção entre dois pressupostos do ato de conhecer: a racionalidade e ahistoricidade. A essas duas condições para efetuar-se a aprendiza-gem, correspondem, na modernidade, duas posições paradigmáticas:a analítica e a histórica. Esse é o cenário epistemológico que serádescrito no primeiro item.

Os dois paradigmas, porém, não conseguem mais responderàs inquietações e às rápidas mudanças que se operam naEpistemologia. Por isso, constata-se uma ruptura de paradigmas epor conseqüência, necessita-se da construção de novas configura-ções epistêmicas que irão aparecer no segundo item.

Enfim, no terceiro item, será apresentado o cenáriotransdisciplinar como o procedimento mais desafiador naEpistemologia atual, e, também, como forma superação da oposiçãoentre os paradigmas analítico e histórico.

1 - Os Dois Cenários Epistemológicos da Modernidade

Em primeiro lugar, é necessário que definamos o termoEpistemologia, como ele é compreendido no debate atual.“Epistemologia (epistéme: ciência, conhecimento + lógos: palavra,discurso). Teoria do conhecimento em geral e, de forma especial, doconhecimento científic, a Epistemologia interessa-se pelos métodos,objetos e formas de pensamento próprios da ciência. É um dostermos mais usados para referir-se à discussão sobre a forma comoconstruímos nossos conhecimentos. Em muitas universidades, exis-tem centros ou institutos contendo esse nome, como por exemplo:Centro de Epistemologia e História da Ciência.

Page 38: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

38

Os movimentos na casa grande

Nas décadas mais recentes, o conceito foi polarizando-se emdireção às teorias sobre o que é aprender. No MIT (MassachusettesInstitute of Technology) há uma linha de pesquisa sobre Epistemologyand Learning (Epistemologia e Aprendizagem) que, por sinal,enfatiza os estudos relacionados com o modo pelo qual as máquinas“inteligentes” são capazes de aprender e, também, com as novasestruturações do aprendizado, que ocorrem na relação entre sereshumanos e computadores. O termo Epistemologia foi adquirindo,dessa maneira, um sentido mais específico do que a clássica expres-são filosófica teoria do conhecimento” 1 .

A Epistemologia, conforme a definição mais recente, é ateoria que estuda a construção do conhecimento, ou seja, como o serhumano aprende. Nesse sentido, existe uma “EpistemologiaEvolutiva” com duas dimensões: em primeiro lugar, a evoluçãoenquanto desenvolvimento dos sentido e da corporeidade fornece asbases biológicas dos processos cognitivos; em segundo lugar, aspróprias formas do conhecimento, linguagens, culturas, idéias, teo-rias e modos de percepção fazem parte de processos evolutivos,cujos padrões podem ser estudados tanto a partir das ciênciasnaturais, quanto das humanas e sociais. Usualmente, costuma-sechamar tal Epistemologia Evolutiva de uma ‘teoria evolucionária doconhecimento’ 2 .

Considerando essa definição, apresentemos, agora, apresen-tar os cenários epistemológicos deste século, isto é, os cenários quemostram como usualmente se entende a produção do conhecimento.Assim, o pressuposto da Epistemologia, enquanto disciplina filosó-fica, é que a condição fundamental do conhecimento surge a partirde dois elementos: a racionalidade e a historicidade 3 . O problema__________________________________________

1 Hugo Assmann. Reencantar à educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p.152.

2 Id. p. 153.

3 Nesta parte seguiremos Luiz Carlos Bombassaro. As fronteiras da Epistemologia.Como se produz o conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 9. “Racionalidadee historicidade, diz Bombassaro, são termos que usamos para caracterizar, emsentido antropológico-filosófico, a “pertença” (zugehörigkeit), aquilo quedefine o homem”. Cf. nota 1, p. 122. A racionalidade e a historicidade sãoconsideradas a base do modo de ser humano, ou seja, esses dois elementos

Page 39: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

39

Introdução

é que esses dois elementos dão origem a duas posições epistemológicasantagônicas. Essas duas posições, na verdade, provocam a articula-ção de dois paradigmas epistemológicos: o paradigma analítico e ohistórico, ligados ao elemento racional e ao histórico, respectiva-mente. Estes dois paradigmas englobam a historiografia daEpistemologia, referente ao período compreendido entre os anosvinte e os anos setenta do século XX.

Cabe, no entanto, observar que essas duas posições acabamgerando um impasse entre os dois paradigmas. A solução dessacontradição passa, primeiramente, pelas novas configuraçõesepistêmicas e, depois, pela transdisciplinaridade epistemológica, ouseja, a produção de um conhecimento transdisciplinar. Vejamos,portanto, em primeiro lugar, os cenários epistemológicos damodernidade: os paradigmas analítico e histórico.

1.1 - O paradigma analítico 4

O paradigma analítico é denominado também de “teoriaanalítica da ciência” ou “filosofia analítica da ciência”. Ele predomi-nou na primeira metade do século, e sua orientação teórica é o

constituem o fundamento de tudo o que diz respeito ao homem. Quando se dizque o homem é racional assume-se a posição clássica de Aristóteles: o homemé um animal dotado de uma alma racional, que o capacita a dizer o mundo. Oque é ser “racional”? Segundo Bombassaro, a definição de Habermas éfundamental: Para Habermas existe uma relação intrínseca entre racionalidadee conhecimento. Todo conhecimento é portador de racionalidade, porque estáestruturado proposicionalmente. Não só as proposições podem ser considera-das racionais, mas também o homem, formador de expressões lingüísticas, quedispõe do conhecimento, deve ser considerado racional. Bombassaro tem,como propósito, a conjugação da racionalidade e da historicidade, enquantoproduzem uma ação humana peculiar: o conhecer. “É no conhecer - processopelo qual o homem compreende o mundo - e no conhecimento - conjunto deenunciados (formalizados ou não) sobre esse mundo - que pode ser demonstradaa presença inseparável das categorias apresentadas acima”. Id. p. 16.

4 Paradigma é um termo de origem grega: parádeigma: modelo, exemplo; e doverbo paradeigmatítzo: propor, mostrar. Esse tempo é colocado em cena peloepistemólogo Thomas Kuhn (The Structurs of Scientific Revolutions), no iníciodos anos 1960. Para Kuhn, o paradigma funciona, primeiro, como filtro na

Page 40: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

40

Os movimentos na casa grande

empirismo lógico do Círculo de Viena; mais tarde, porém, sofreuinfluencia da filosofia de Karl Popper. Vejamos como ele se formouhistoricamente.

a) As raízes históricas encontram-se em diversos autores,como por exemplo, em David Hume, no monismo metodológico dopositivismo de Augusto Comte e John Stuart Mill, a lógica semânticade Gottlob Frege, a lógica matemática de Alfred Whitehead eBertrand Russel, e, sobretudo a teoria do Tractatus de LudwigWittgenstein.

b) A construção lógica do mundo: Rudolph Carnap publicou,em 1928, o livro A construção lógica do mundo, para demonstrarcomo seria possível, a partir de experiências elementares, constituirlogicamente os objetos do mundo.

c) O “contexto de descoberta” e o “contexto de justificação”:Hans Reichenbach afirma que a Epistemologia deve distinguir essesdois elementos e ocupar-se, exclusivamente, do “contexto de justi-ficação”. Ele separa, assim, os dois elementos, pois o “contexto dedescoberta” envolve elementos psicológicos, sociológicos e históri-cos, enquanto o “contexto de justificação” envolve-se apenas com oselementos metodológicos da investigação científica.

d) O Círculo de Viena: fundado em 1929, é o representantemais genuíno do paradigma analítico. Reuniu pesquisadores dasmais diversas áreas - Física, Matemática, Lógica, Filosofia, entreoutras - com a finalidade de pesquisar a concepção científica domundo. O princípio fundamental que guiava suas investigações erao da Filosofia Empirista e Positivista. Esse princípio afirma, primei-ramente, que o conhecimento só é possível, partindo-se da experiên-cia imediata; depois, serve-se da análise lógica da linguagem, como

percepção e projeção da realidade. O paradigma, depois, para tornar-se públicoe implantar-se precisa de um “colegiado de suporte”. De modo geral, paradigmaé o conjunto de convicções e conceitos que caracterizam uma determinadamaneira de perceber o mundo e interagir com ele. Para a epistemologia, oparadigma é o conjunto de categorias e conceitos que formam o marco de leiturae interpretação da realidade; na cultura, é o conjunto de atitudes e açõessimbólicas que se usam para representar o mundo. Hoje, fala-se em mudança deparadigma científico e da própria forma mentis (do modo de configurarconhecimentos) sob a influência da inteligência coletiva e da ecologia cognitiva.

Page 41: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

41

Introdução

método filosófico; enfim, adota a separação entre o contexto dedescoberta e o contexto de justificação, introduzida por Reichenbach.

O programa de investigação do Círculo incluía, entre outrositens, os seguintes: aplicar os conceitos lógicos para reconstruir,racionalmente, os conceitos científicos; passar todos os enunciadoscientíficos pelo princípio da verificabilidade; procurar critérios designificado empírico que eliminassem, pouco a pouco, todo critériode fundamentação metafísica; superar a separação entre ciências danatureza e ciências humanas, através de uma ciência unificada pelalógica. Esse programa, de um lado, contribuiu para estabelecer, naEpistemologia, o rigor metodológico para a investigação; de outro,porém, criticava a pretensão do Círculo de querer reduzir o mundoaos enunciados científicos. Por exemplo, a filosofia tinha, comoúnica atividade, tornar claras as idéias, conceitos e métodos, atravésda análise lógica da linguagem.

e) A autocrítica e a auto-renovação do Círculo de Viena:alguns pontos do programa de investigação do Círculo foram,paulatinamente, sendo criticados e mudados. Por exemplo, o critériode verificabilidade: Carnap, com a publicação do Testability andMeaning, abandona aquele critério e o substitui pelo deconfirmabilidade. Por seu turno, K. Popper propõe não aconfirmabilidade, mas a falseabilidade, defendendo os princípios dafilosofia empirista e, ao mesmo tempo, criticando o indutivismo e opositivismo do Círculo. No seu livro - A lógica da pesquisa cientí-fica, 1934 - ele aponta três problemas na Epistemologia: a lógica dainvestigação, o critério de demarcação e a objetividade científica.Ele propõe a seguinte solução: 1) elaborar de uma lógica dedutiva,para avaliar a validade das proposições científicas; 2) definir umnovo critério de demarcação, pois, antes, só eram consideradascientíficas as teorias que seriam verificadas ou confirmadas atravésda experiência. Agora, Popper sugere a falseabilidade como únicocritério de demarcação entre a ciência e a não-ciência. Desse modo,uma teoria só pode ser considerada científica se for falseada pelaexperiência, ou seja, se tiver a capacidade de ser refutada ou testada5 .Com isso, introduz-se uma “Epistemologia negativa”, porque o

5 Cf. POPPER, Karl. La logique de la découverte scientifique. Paris: Payot, 1984.

Page 42: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

42

Os movimentos na casa grande

avanço do conhecimento científico estaria vinculado à capacidadehumana de errar. 3) afirmar que a objetividade científica depende deuma base empírica que consiste em proposições existenciais singu-lares, os “enunciados básicos”.

Após essa breve descrição das principais características doparadigma analítico, podemos concluir que ele se articula, segundoWright, a partir de três princípios: a) o monismo metodológico, istoé, a aplicação de um único método científico para explicar adiversidade de objetos da investigação científica; b) a consideraçãode que as ciências exatas, sobretudo a Física e a Matemática,estabelecem uma regra ou um ideal metodológico o qual serve paramedir o grau de desenvolvimento e perfeição das demais ciências,entre elas, as humanas; c) o positivismo lógico que tem o princípiocausal como eixo explicativo da ciência. Trata-se de englobar oscasos particulares da natureza sob leis hipotéticas gerais 6 .

1.2 - O paradigma histórico

Cabe caracterizar este paradigma a partir do final da década de1950 e as décadas 60 e 70 do século passado, podendo-se situar trêsgrupos: a) o grupo da “nova Filosofia da ciência”, formado porNorwood R. Hanson, Stephen Toulmin, Thomas Kuhn, Imre Lakatose Paul Feyerabend; b) o grupo que “combate os analíticos”, compos-to por Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Michel Foucault;c) e o grupo da Escola de Frankfurt, representado por Theodor W.Adorno e J. Habermas.

O que é comum a esses três grupos é uma reação crítica aoparadigma analítico. Considerando essa característica, tomemos osrepresentantes do primeiro grupo para descrever os principais ele-mentos paradigmáticos: Norwood R. Hanson (Patterns of Discovery,1958); T. Kuhn (The Structure of Scientif Revolutions, 1962), ImreLakatos (History of Science and Its Rational Reconstructions, 1971);Paul Feyerabend (Against Method, 1975). Como vemos, a grande

6 Cf. Georg H. von Wright. Explicación y comprensión (Explanation andUnderstanding), p. 21. In: L. C. Bombassaro. op. cit. p. 30.

Page 43: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

43

Introdução

produção desse grupo está situada em duas décadas, e as obras deseus componentes são as que mais causam repercussão e discussãoentre a comunidade científica.

Enumeremos quatro críticas feitas aos analíticos, e ao mesmotempo, as correções propostas pelos históricos: a teoria empírica dapercepção, ou seja, a tese dos dados dos sentidos; a questão damudança conceitual e o progresso teórico do conhecimento científi-co; o princípio do monismo metodológico e o ideal da ciênciaunificada; e o critério de demarcação. De modo geral, considera-seque os analíticos tinham uma Epistemologia muito simplista, “pois,ao analisar o conhecimento científico pelos seus enunciados lógicos,deixavam de considerar a ação efetiva dos homens que faziam aciência e o modo pelo qual essa ação se realizava” 7 . Trata-se, de fato,de uma ficção científica, ao invés de uma ciência do real.

Por isso, os históricos questionam os princípios da filosofiapositivista e empirista, os quais, assim, podem ser explicitados:

a) “Toda a observação está carregada de teoria”. Essa é aafirmação de Hanson, a qual mostra que nossas percepções sempretêm algumas pressuposições ou teorias sobre a realidade. Dito deoutro modo, nossa observação vem carregada de conhecimentosprévios, crenças e significados, atribuídos ao que observamos. Osanalíticos, diante dessa crítica, revêem sua teoria sobre os dados dossentidos, isto é, foi necessário levar em conta o “contexto dedescoberta” e não, simplesmente, fixar-se no “contexto de justifica-ção”.

b) A ciência é evolutiva: os analíticos sustentam a invariânciado significado, ou seja, querem fixar os conceitos e o conhecimentocientífico. Os históricos mostram que a história da ciência revelauma mudança permanente no conhecimento científico, produzidopela pesquisa. Por exemplo, Kuhn descreve a mudança ocorrida naAstronomia do século XV, a qual provoca uma alteração nas teoriase no modo de proceder da comunidade científica.

c) A pluralidade de métodos: s analíticos querem a unidade daciência, a partir de um único método. Os históricos afirmam que

7 Luis C. Bombassaro. op. cit., p. 32.

Page 44: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

44

Os movimentos na casa grande

existem muitos métodos para estudar-se a realidade, por exemplo, osnovos modelos introduzidos pelas pesquisas da Biologia, da Antro-pologia, da Etnologia entre outras ciências. Toulmin é um exemplode alguém que se recusa a aceitar o modelo teórico fornecido pelasciências físicas e matemáticas, adotando as categorias extraídas dateoria da evolução.

d) A revalorização da Metafísica: o analítico Popper, assimcomo outros, coloca, como critério de demarcação científica, oprincípio da falseabilidade. No entanto, os históricos dizem que“nenhuma proposição fatual pode ser provada, a partir da experiên-cia”8 . Há, portanto, uma revalorização da Metafísica. SegundoLakatos, “as decisões epistemológicas adotadas pelos cientistas, aodesenvolverem seus ‘programas de investigação’, estãofreqüentemente ligadas a um núcleo metafísico de fundo” 9 . Porexemplo, diz Lakatos, a Metafísica cartesiana foi fundamental naelaboração da teoria mecanicista. Kuhn, por seu turno, fala de “umconjunto de compromissos de nível elevado”, o qual possui “tantodimensões metafísicas como metodológicas”, as quais fornecem aoscientistas uma visão de mundo e um conjunto de regras comopressupostos de suas pesquisas.

Percebe-se que a proposta dos analíticos de superar a Metafísicapela análise lógica da linguagem não foi realizada, porque a Metafísicafoi reintroduzida pelos históricos. A ironia da História mostra que osanalíticos, ao expulsarem a Metafísica pela porta da frente, possibi-litaram seu retorno pela porta dos fundos, através dos históricos.

Essas são as caracterizações dos dois paradigmas científicosque construíram os cenários epistemológicos da modernidade e, emespecial, deste século. Vejamos, agora, as novas configuraçõesepistêmicas.

8 Lakatos, Imre. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisacientífica, nota 51, p. 34, In: Bombassaro, op. cit., p. 34.

9 Id. p. 35.

Page 45: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

45

Introdução

2 - As Novas Configurações Epistêmicas

Observa-se que estamos ingressando numa nova etapaepistemológica. Antes, vigoravam praticamente, em todos os âmbi-tos da natureza e da história, as supostas “leis objetivas” que estariamgarantindo a consistência do real. Hoje, o conceito de vida está sendoredefinido como algo que se dá sempre na fronteira, entre a ordeme o caos 10 , ou seja, como a interpenetração de ambos. O cérebro/mente é analisado numa perspectiva pós-mecanicista, enquanto umsistema dinâmico, complexo e adaptativo. Da mesma forma, ainteligência e a memória são reconceituadas sendo consideradasprocessos complexos e dinamicamente auto-organizativos.

As Epistemologias modernas tinham a preocupação de “fixaro real” em formas estáticas de conhecimento. Elas usavam parâmetrosordenadores, tanto na concepção da natureza e da história, quanto navisão do corpo e das formas de ativação neuronal do cérebrodenominadas “mente”. A nova Epistemologia tem, como referênciabásica, a autopoeisis - o autofazer-se - dos processos vivos, imersosinterativamente em ambientações - ecologias cognitivas 11 - propí-cias ou adversas. Enfim, o processo do conhecimento começa areconciliar-se com a maneira dinâmica pela qual a vida se desenvol-ve.

Hoje se fala em crise dos paradigmas, devido às múltiplas erápidas transformações do mundo. Segundo H. Assmann, as noçõesde paradigma e de mudança de paradigma estão ficando estreitasdemais para a acolher a complexidade de transformações que ocor-rem. Por isso, sugerem-se enfoques epistemológicos mais abertos,

10 A teoria do caos não pode ser confundida com o puro acaso, mas ela significauma dinâmica criativa, entre o fortuito e o aleatório e o surgimento deparâmetros ordenadores. Os seres vivos vivem entre os estados caóticos e osestados ordenadores. Cabe notar que são os estados caóticos que garantem amáxima flexibilidade e a melhor capacidade de aprender. Id. H. Assmann.Reencantar a educação. p. 141.

11 Ecologia cognitiva (EC) é um termo criado por E. Morin e Pierre Levy. A ECestabelece as interfaces dos agentes cognitivos (humanos e/ou máquinas), criaformas de conhecer e uma ambientação pedagógica propícia às experiênciasatravés de tecno-ambientes (computadores, Internet, multimeios).

Page 46: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

46

Os movimentos na casa grande

através de expressões como novos cenários epistemológicos ounovas configurações epistêmicas.

As novas configurações epistêmicas situam-se em três áreasde avanços científico-epistemológicos: a) as Biociências; b) aTecnotrônica (Informática Avançada, Realidade Virtual 12 , Inteli-gência Artificial 13 , Cibernética 14 de Segunda e Terceira Ordem,Vida Artificial 15 ); c) e os Sistemas Dinâmicos Complexos 16 que

12 Realidade virtual (do latim: vir, varão; daí, virtus: força, energia, virtude;) é tudoo que se aplica à mídia eletrônica (a digitalidade) com sua base de existência ereprodutibilidade. A existência virtual (de dados, informação, imagens,simulações etc.) se entrelaça com a experiência (bate-papo eletrônico, chat,simulações etc.). Em sentido específico, a realidade virtual implica o uso de umconjunto de implementos eletrônicos (hardwares e softwares). Cf. H. Assmann.Reencantar a educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 187.

13 O conceito de Inteligência artificial (IA) surgiu na Informática e refere-se ateorias e programas que têm como objetivo conseguir que as máquinas setornem capazes de comportamentos inteligentes (o reconhecimento de formas,tratamento de linguagens, versatilidade inovadora etc.). A IA imita o processobásico do aprendizado humano por meio do qual novas informações que sãoabsorvidas e se tornam disponíveis para referências futuras. A mente humanaincorpora novos conhecimentos, sem alterar seu funcionamento e sem atrapa-lhar os outros fatos que já estão armazenados no cérebro. Um programa de IAfunciona quase do mesmo modo. Id. p. 150-160.

14 Neologismo inventado por Norbert Wiener (do grego: kybernêin: governar;Kybernetés: timoneiro, controlador. Ciência do controle do ir e vir (circulação)da informação e comunicação nos seres vivos, nas máquinas ou em todos ossistemas naturais ou artificiais. Cibernética de primeira ordem é centrada noestudo dos controles detectáveis e/ou possíveis, enquanto que a de segundaordem ocupa-se do estudo dos sistemas complexos (emergência de níveisimprevisíveis, autopoeisis etc.). Id. p. 143.

15 A vida artificial (Artificial Life) é a busca de simular no computador tudo o quese possa imitar acerca dos processos vivos. A hipótese de trabalho é que a vidaé um processo sistêmico complexo composto por múltiplas interações auto-organizativas no processo de aprendizagem e adaptabilidade. A VA utilizaelementos artificiais, especialmente eletrônicos, para simular, explicar e emularprocessos de vida, não tanto para imitar fenômenos biológicos de organismosvivos, tomados isoladamente, mas para introduzir a interatividade e a adapta-bilidade. Id. p. 185.

16 Cf. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1999. Conferir em especial: 2ª parte: cap. 1- O desafio da complexidade; cap.10- Os mandamentos da complexidade.

Page 47: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

47

Introdução

englobam as duas áreas anteriores e elaboram novos conceitos deforma transdisciplinar. A partir dessas novas configurações, enunci-am-se alguns temas fundamentais:

- a auto-organização dos sistemas vivos (autopoeiesis);- a bio-psico-sociogênese do conhecimento humano;- a coexistência da auto-organização e auto-regulação nos

processos sócio-históricos;- as teorias dos sistemas (abertos, fechados, dinâmicos e

complexos);- as tecnologias e sistemas de interação cognitiva entre

aprendentes humanos e máquinas aprendentes (engenharia cognitiva,sistemas aprendentes entre outros.);

- a mimética, enquanto abordagem sociocultural das ideolo-gias e do funcionamento dos consensos e dissensos coletivos (memes= os genes da cultura) 17 .

Nesse processo de elaboração de novas configuraçõesepistêmicas, dois princípios precisam ser levados em conta:

1º) O princípio da complexidade: a complexidade não signi-fica coisas complicadas, conforme se entende no senso comum, masuma ruptura epistemológica com a razão calculante do cientificismomoderno, que pensava analisar tudo pela somatória das análisesparceladas. Os modelos mecanicistas nunca chegam a capturar, poressa via, as interações que existem nos sistemas complexos.

A teoria da complexidade trata dos sistemas cujo comporta-mento se caracteriza por uma dinâmica imprevisível. Por exemplo,um sistema vivo compreende-se a partir do conceito de auto-organização que implica sistemas complexos e adaptativos. Estessuperam o princípio mecânico de causa-efeito, porque, no compor-tamento de um sistema vivo interagem vários fatores. A análise deum tal fenômeno requer um razão não-linear que compreenda ossistemas complexos, as suas várias situações e os parâmetros que osconfiguram.

17 H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. In: Teolo-gia aberta ao futuro. São Paulo: Ed. Loyola, 1997, p. 52-3. Cf. também deAssmann: Metáforas novas para reencantar a educação. Epistemologia edidática. 2ª ed., São Paulo: Ed. UNIMEP, 1998, p. 87: “A reconfiguração docenário epistemológico”.

Page 48: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

48

Os movimentos na casa grande

Em síntese, no entender de E. Morin, “a complexidade surgeportanto no seio do uno ao mesmo tempo como relatividade,relacionalidade, diversidade, alteridade, duplicidade, ambigüidade,incerteza, antagonismo, e na união destas noções que são, umas emrelação às outras, complementares, concorrentes e antagônicas”.Daí, que “o sistema é o ser complexo que é superior, inferior, distintode si mesmo. É, ao mesmo tempo, aberto e fechado. Não háorganização sem antiorganização. Não há funcionamento semdisfunção”18 .

E. Morin propõe o paradigma da complexidade. Este é oconjunto dos princípios de inteligibilidade que, ligados uns aosoutros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa douniverso (físico, biológico, antropossocial). Alguns princípios dainteligibilidade são os seguintes: princípio complementar do reco-nhecimento e de integração do tempo na física, na biologia e naorganização, ou seja, considerar a história em todas as descrições eexplicações; ligar o conhecimento das partes ao dos conjuntos;causalidade complexa, isto é, interferências, sinergias, desvios,reorientações e auto-organização; considerar o fenômeno segundouma dialógica: ordem-desordem-interações-organização; princípioda distinção, mas não de separação, entre o objeto ou o ser e seuambiente interagindo com seu ecossistema; princípio de relaçãoentre o observador/concebedor e o objeto observado/concebido;problemática das limitações da lógica linear para compreendersistemas formais complexos 19 .

2º) O princípio da morfogênese do conhecimento: constata-se, hoje, uma profusão de linguagens novas sobre o conhecimento.As palavras “conhecimento” e “aprender” voltaram a exercer umfascínio quase mágico. Fala-se em Sociedade do Conhecimento(Knowledge society), sociedade aprendente (learning society), sis-temas com base conhecimento (knowledge management), engenha-

18 MORIN, E. O método. V. 1: A natureza da natureza. (La Méthode). Portugal:Europa-América, 1997, p. 141.

19 MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p.333.

Page 49: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

49

Introdução

ria do conhecimento (knowledge engenneering), ecologia cognitivaentre outros. Qual é a gênese do conhecimento?

De uns cinco anos para cá, atribui-se o nome de processoscognitivos ao conjunto de operações mistas que acontecem naparceria entre seres humanos e máquinas informáticas. O conheci-mento implica, atualmente, todos os processos naturais e sociais emque se geram as formas de aprendizagem. Tudo aquilo que é capazde aprender cumpre processos cognitivos. Isso não significa cairnum redutivismo que ignora as diferenças de grau e nível nasoperações cognitivas.

Na área da Pedagogia, precisa-se entender que existe umaequiparação entre processos vitais e processos cognitivos. Onde nãose propiciam processos vitais tampouco se favorecem processos deconhecimento. Com isso, entramos no terceiro ponto de nossaexposição: o cenário transdisciplinar.

3 - O Cenário Transdisciplinar

Vimos, inicialmente, que a oposição entre o paradigma ana-lítico e o histórico tornou-se rígida; depois, o surgimento das novasconfigurações epistemológicas elaborou outros conceitos para com-preender-se o processo cognitivo. Enfim, a prática-teóricatransdisciplinar formula os conceitos de um pensar transdisciplinarcomo forma de superação do impasse inicial. As novas configura-ções epistêmicas exigem conceitos que possam transitar transversal-mente, através das diversas disciplinas. Para isso, podem-se assina-lar três temas emergentes no processo do conhecimento: a coinci-dência entre processos vitais e processos de conhecimento; a insu-ficiência do modelo computacional, para entender o cérebro/mente,enquanto sistema dinâmico e complexo; e, enfim, o tema datransdisciplinaridade em si mesmo.

Cabe destacar que o pressuposto do cenário transdisciplinarimplica o reconhecimento da teoria da complexidade, que é aafirmação das disciplinas no estudo de seu objeto específico, e, aomesmo tempo, é o diálogo entre as diversas disciplinas usando asmúltiplas abordagens metodológicas sobre um mesmo objeto; em

Page 50: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

50

Os movimentos na casa grande

suma, é ir além das disciplinas criando-se um novo campoepistemológico. H. Assmann refere que estamos aproximando-nosde um tipo de pensamento radicalmente transdisciplinar, que acar-reta, simultaneamente, uma nova disposição teórica e uma atitudeprática diante da vida e do mundo, isto é, uma refundamentaçãoético- política 20 . Esse pensar transdisciplinar elabora, inicialmente,a coincidência entre processos vitais e processos de conhecimento.

3.1 - A coincidência entre processos vitais e processos deconhecimento

A escola clássica tinha, como pressuposto, a visão mecanicistado corpo, proposta por Descartes, segundo a qual se procura domes-ticar o lado animal do corpo. Hoje, sabe-se que todo conhecimentotem sua origem e preservação numa inscrição corporal. As formas doconhecimento geram-se, de um lado, pelos processos auto-organizativos corporais, isto é, os processos endógenos do indivíduoe, de outro lado, pela interação com o meio ambiente.

A afirmação básica é que toda morfogênese do conhecimento- sobretudo na criança, mas também no adulto - instaura-se comocognição corporal. Todo conhecimento é um texto corporal, ou umatextura corporal. Toda forma de conhecimento é gerada bio-organizativamente. A auto-organização físico-orgânica constitui,em nós, que somos seres bio-sócio-culturais, um processoautopoiético, um autofazer-se unificado com as formas simbólico-lingüísticas.

Até nossos dias, predominou a concepção mentalista doconhecimento, isto é, os processos cognitivos eram, principalmente,processos mentais. O ensino era, então, uma transação entre mentes:da mente do professor para a mente do aluno. Esse modelo mentalistanão é mais suficiente, considerando o funcionamento do cérebro/mente e a função da corporeidade - há uma inscrição corporal doconhecimento - na profunda identidade entre processos vitais e

20 Cf. H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. p. 42-3.

Page 51: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

51

Introdução

processos de conhecimento.

3.2 - O cérebro/mente como sistema complexo21 e dinâmico

O que é o cérebro/mente? Para a Epistemologia objetivista -entrega e recepção de saberes - o cérebro/mente é um processador desímbolos, o espelho da natureza, uma máquina abstrata para mani-pular símbolos. Já, para a Epistemologia construtivista - construçãointerativa de conhecimento -, ele é o criador de símbolos, perceptor/intérprete da natureza e história, sistema conceitual para construir arealidade.

A história das ciências cognitivas, grosso modo, tem trêsetapas: 1) o simbolismo computacional, que modeliza os processoscognitivos enquanto processos digitais (entendendo-se por “símbo-los” algo semelhante aos “bits” do computador); 2) o conexionismo,que usa o modelo das redes neuronais complexas; 3) o dinamicismo,que estuda o cérebro/mente como um sistema dinâmico complexo.

Predominam, agora, as posições científicas que utilizam osconceitos complexidade dinâmica, auto-organização (autopoiesis,na linguagem de Maturana e Varela em Biologia; e, em N. Luhman,na teoria dos sistemas sociais), interpenetração de caos e ordem. Océrebro/mente do ser humano possui uma plasticidade extraordiná-ria que rompe com as lógicas rígidas e lineares. Muitos cientistasafirmam que as lógicas mais apropriadas ao modo de funcionar donosso cérebro/mente são as lógicas multivariantes e sistemicamente

21 O conceito de complexidade não é simplesmente contraposto ao que é simples,nem ao do senso comum que funciona como um curinga para dizer coisascomplicadas. A teoria da complexidade se ocupa de sistemas cujo comporta-mento é imprevisível. A complexidade se refere àqueles processos que nãopodem ser analisados apenas pela somatória das partes. A complexidade seocupa dos sistemas que não se enquadram mais dentro do clássico princípio decausa e efeito, quando os fatores co-determinantes são múltiplos e variados eque vão para além de um pensar linear. A experiência de aprendizagem sãoprocessos emergentes entre indivíduos, grupos e organizações que encontraramou criaram um contexto - uma ecologia cognitiva - que propicia esta emergência.O aspecto fundante da aprendizagem é que ela é a emergência de estadoscomplexos da auto-organização do conhecimento. Cf. H. Assmann. Reencantara Educação, p. 148.

Page 52: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

52

Os movimentos na casa grande

abertas como, por exemplo, a “lógica nebulosa” (fuzzi logic), queleva em conta o predomínio de áreas oscilatórias e indefinidas, e aelasticidade do cérebro/mente 22 .

Por isso, recomenda-se uma pedagogia plástica e sinuosa queincentive certezas operacionais imprescindíveis, capacite paramodelizações da “realidade”, mas preserve incertezas sobre osrumos, para que sejam desafios do ato de aprender. Surge, assim, aoportunidade de optar por lógicas mais dinâmicas e mais conformesaos sistemas dinâmicos e complexos. Fica aberto um caminho parauma pedagogia que trabalhe o jogo de certeza e incerteza queconstitui um aspecto importante do novo cenário epistemológico daeducação23 .

3.3 - Uma epistemologia transdisciplinar

Considerando os cenários epistemológicos e as novas confi-gurações epistêmicas, constata-se uma forte tendência para a elabo-ração de uma Epistemologia transdisciplinar. Vejamos, primeira-mente, os fatos que justificam essa Epistemologia, depois o seudesenvolvimento histórico e, enfim, a sua finalidade.

3.3.1 - Implicações do pensar transdisciplinar

Apontamos, abaixo, alguns fenômenos que implicam a produ-ção de uma Epistemologia transdisciplinar:

a) a fragmentação das disciplinas ou a fragmentação doobjeto e do método: observa-se uma crescente fragmentação dasdisciplinas, a qual corresponde à fragmentação do próprio objeto e

22 Podemos mencionar também a lógica para-consistente, de Newton C. A. Costacomo modelo lógico não linear. Remetemos aos seus livros: Ensaios sobre osfundamentos da Lógica. São Paulo: Hucitec; Sistemas formais inconsistentes.Paraná: UFPR, 1993.

23 Cf. H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. p. 63-4.

Page 53: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

53

Introdução

do método de estudo das disciplinas 24 .b) a perda da aptidão em unir os conhecimentos ou a perda

da aptidão em analisar e sintetizar: no entender de E. Morin, “nóssabemos que o modo de pensar ou de conhecer parcial,compartimentado, monodisciplinar, quantificador nos conduz a umainteligência cega, na medida onde a aptidão humana normal a unir osconhecimentos se encontra aí sacrificada em proveito da aptidão nãomenos normal a separar. Pois conhecer, é num anel ininterrompido,separar para analisar, e unir para sintetizar ou complexificar. Aprevalência das disciplinas, separadora, nos faz perder a aptidão aunir, a aptidão a contextualizar, isto é a situar uma informação ou umsaber no seu contexto natural. Nós perdemos a aptidão a globalizar,isto é, a introduzir os conhecimentos num conjunto mais ou menosorganizado. Ora as condições de todo conhecimento pertinente sãojustamente a contextualização, a globalização” 25 .

c) a separação entre sujeito e objeto: “A crise da fragmenta-ção começa por uma ilusão, por uma miragem, que é a separaçãoentre sujeito e objeto. Antes dessa ilusão, há uma não-separatividadeou mesmo uma identidade entre o conhecedor, o conhecimento e oconhecido, ou seja, entre sujeito, conhecimento e objeto” 26 .

d) mudança de paradigma epistemológico: a transdisci-plinaridade trata “de algo mais que a mera intensificação do neces-sário diálogo entre as distintas áreas e disciplinas científicas, porquea questão que precisa ser explicitada é a da mudança de paradigmaepistemológico” 27 .

e) a cisão entre cultura humanístico-artística e cultura cientí-fica; entre fé e razão; entre a modernidade - razão única ou unicidadeda razão - e a pós-modernidade - multiplicidade de razões: fragmen-

24 Jean Ladrière. In: Recherche interdisciplinaire et théologie. Paris: Cerf, 1970,p. 53-58.

25 Edgar Morin. Réforme de pensée, transdisciplinarité, réforme de l’Université.Cf. CIRET, na Internet.

26 Pierre Weil et alii. Rumo à nova transdisciplinaridade. Brasília: Summuseditorial, 1992, p. 15.

27 Hugo Assmann. Reencantar a educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 95.

Page 54: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

54

Os movimentos na casa grande

tação e nihilismo.f) mudança de sistema de referência: no Congresso Interna-

cional de Locarno/Suiça, afirma-se enfaticamente que “atransdisciplinaridade corresponde a um novo modo de conhecimen-to, não redutível ao conhecimento disciplinar, gera uma nova teoriae uma nova prática da decisão. Na abordagem transdisciplinar, nãohá mais condições iniciais bem definidas do problema a resolver.Mais precisamente, conseqüência imediata da complexidade intrín-seca do mundo em que vivemos, essas condições “iniciais” mudamcontinuamente. Em nossa vida universitária, deparamo-nos com issotodos os dias e, no entanto, ainda não perdemos a ilusão de uma“reforma”, de um milagre capaz de eliminar todos os males queatingem as universidades. Se as condições iniciais dos diferentesproblemas mudarem incessantemente e se uma reforma milagrosafor simplesmente impossível, estamos, então, condenados a assistir,impotentes, à decadência progressiva, mas certa das universidades?A resposta será certamente “não”, se aceitarmos mudar de sistemade referência, isto é: 1) considerar cada problema não mais a partirde um único nível de Realidade, mas situando-o simultaneamente nocampo de vários níveis de Realidade;

2) não mais esperar encontrar a solução de um problema nostermos de “verdadeiro” ou “falso” da lógica binária, mas recorrer anovas lógicas, particularmente à lógica do terceiro termo incluso: asolução de um problema só pode ser encontrada pela conciliaçãotemporária dos contraditórios, ligando-os a um nível de Realidadediferente daquele no qual esses contraditórios se manifestam; 3)reconhecer a complexidade intrínseca do problema, isto é, a impos-sibilidade da decomposição desse problema em partes simples,fundamentais. Em outras palavras, substituir a noção de “fundamen-to” pela coerência deste mundo multidimensional emultireferencial”28 .

Esses seriam alguns dos fenômenos que situam o problema da

28 Congresso Internacional de Locarno. Projeto CIRET-UNESCO. Evoluçãotransdisciplinar da Universidade. Locarno, Suíça, 30 de abril a 2 de maio de1997, p. 7-8. Nas próximas citações usaremos a abreviação CIL.

Page 55: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

55

Introdução

transdisciplinaridade e que nos desafiam a elaborar uma novaEpistemologia. Vejamos, agora, como evoluiu historicamente omovimento transdisciplinar.

3.3.2 - O movimento para a transdisciplinaridade

Descreveremos, brevemente, os principais momentos queapontam para um pensamento transdisciplinar.

1 - O momento da predisciplinaridade e a disciplinaridade:o todo e a fragmentação

Esse momento predisciplinar caracteriza-se pela unidadeentre sujeito e objeto, entre exterior e interior. Aqui não há distinçãoentre arte, conhecimento religioso, científico e filosófico. Entretan-to, com o surgimento do paradigma newtoniano-cartesiano temosuma visão mecanicista do mundo, o predomínio do racionalismocientífico, e a conseqüência é a fragementação do conhecimento emdisciplinas. Do todo harmonioso passa-se a fragmentação das disci-plinas29 .

2 - O momento da multi ou pluridisciplinaridade: o problemado objeto

No século XVII Descartes propõe um método científico queoriginará as várias disciplinas. Em pouco tempo, porém, percebe-seque a complexidade dos fenômenos exige a justaposição dos conhe-cimentos das disciplinas, a qual se chamará, na metade do séculoXX, de pluridisciplinaridade. “A pluridisciplinaridade diz respeitoao estudo de um objeto de uma única disciplina por diversasdisciplinas ao mesmo tempo. A abordagem pluridisciplinar ultrapas-sa as disciplinas, mas sua finalidade permanece inscrita no quadro dapesquisa disciplinar 30 .

29 P. Weil et alii. op. cit. p. 15-16.

30 Cf. CIL, p. 3.

Page 56: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

56

Os movimentos na casa grande

3 - O momento da interdisciplinaridade: o problema dométodo

A interdisciplinaridade diz respeito à transferência dos méto-dos de uma disciplina à outra. É possível distinguir três graus deinterdisciplinaridade: a) o grau da aplicação é, por exemplo, quandoos métodos da física nuclear são transferidos à medicina, possibili-tando novos tratamentos do câncer; b) o grau epistemológico é, porexemplo, a transferência dos métodos da lógica formal ao campo doDireito, gerando novas análises na Epistemologia do Direito; c) ograu da geração de novas disciplinas é, por exemplo, a transferênciados métodos da matemática ao campo da física gerando a física-matemática.

Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultra-passa as disciplinas, porém sua finalidade também permanece inscri-ta na pesquisa disciplinar.

4 - O momento da transdisciplinaridade: a razão transversalEtimologicamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo

“trans” o indica, diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre asdisciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda discipli-na. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dosimperativos para isso é a unidade do conhecimento” 31 .

Os três pilares da transdisciplinaridade são os níveis darealidade (a pesquisa disciplinar restringe-se, na melhor das hipóte-ses, a um único e mesmo nível da realidade), a lógica do terceirotermo incluso e a complexidade. A transdisciplinaridade não é umanova disciplina, nem uma superdisciplina, mas ela alimenta-se dapesquisa disciplinar, que, por sua vez, é clareada, de uma maneiranova e fecunda, pelo conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido,as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas,mas complementares. No entanto, a transdisciplinaridade é radical-mente distinta da pluridisciplinaridade quanto a sua finalidade, poisa compreensão do mundo atual não pode ser totalmente alcançadadentro do quadro de referência da pesquisa disciplinar. Se atransdisciplinaridade é freqüentemente confundida com a

31 Cf. CIL, p. 3-4.

Page 57: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

57

Introdução

interdisciplinaridade e com a pluridisciplinaridade, isso se explicaem grande parte pelo fato de que todas as três ultrapassam asdisciplinas. Enfim, “a disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, ainterdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as quatro flechasde um único arco: o do conhecimento” 32 .

A partir de 1950, a pluridisciplinaridade e a interdiscipli-naridade entraram timidamente em algumas universidades. Atransdisciplinaridade está, no entanto, quase totalmente, ausente dasestruturas e programas da Universidade. Nos EUA, por exemplo, ospoucos departamentos pluridisciplinares e interdisciplinares, emvárias universidades, conduziram, na maioria dos casos, a umasimples justaposição passiva e não interativa entre professores eestudantes. Esse impasse é compreensível, pois é justamente atransdisciplinaridade, segundo o Congresso Internacional de Locarno,a condição sine qua non de uma interação fecunda e duradoura entrea disciplinaridade, a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade.Sua ausência equivale à ausência de orientação, à falta de direção dasabordagens que ultrapassam as fronteiras disciplinares. Vejamos,por isso, como evoluiu o conceito de transdisciplinaridade.

A fonte do conceito de transdisciplinaridade encontra-se emNiels Bohr, no artigo de 1955, sobre a unidade do conhecimento. Otermo não aparece aí, mas o conceito está subjacente: “O problemada unidade do conhecimneto está intimamente ligado a nossa buscade uma compreensão universal, destinada a elevar a cultura huma-na”33 . Essa atitude geral, “caracterizada como um esforço paracompreender harmoniosamente os aspectos sempre mais vastos denossa situação”, foi provocada pela revolução quântica. Levandoisso em conta, podemos constatar, a propósito do uso do termotransdisciplinar, o seguinte:

a) Jean Piaget - segundo Basarab Nicolescu foi Jean Piagetquem usou, pela primeira vez, o termo “transdiciplinar”, em 1970, noColóquio sobre a interdisciplinaridade, realizado em Nice/França.

32 Cf. CIL, p. 4.

33 Niels Bohr. The Unity of Knowledge. New York/Doubleday: 1955. Trad.Francesa. Physique et connaissance humaine. Paris/Gallimard: 1991, p. 249-273.

Page 58: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

58

Os movimentos na casa grande

“Enfim, diz Piaget, no estágio das relações interdisciplinares, pode-mos esperar o aparecimento de um estágio superior que seria“transdisciplinar”, que não se contentaria em atingir as interações oureciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essasligações no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entreas disciplinas” 34 .

b) Veneza - em 7 de março de 1986, o Comunicado final docolóquio de Veneza, que tratou da “ciência face aos confins doconhecimento: o prólogo de nosso passado cultural” afirma que “osdesafios contemporâneos exigem a criação de órgãos de orientaçãoe mesmo de decisão de natureza pluri- e transdisciplinar” 35 .

c) Portugal - de 2 a 6 de novembro de 1994, no Convento deArrábida, em Portugal, ocorreu o Primeiro Congresso Mundial daTransdisciplinaridade, o qual lançou a Carta da Transdis-ciplinaridade36 . Trata-se de um manifesto que torna pública atransdisciplinaridade.

d) CIRET (Centre International de Recherches et ÉtudesTransdisciplinaires) - de 30 de abril a 2 de maio de 1997, realizou-se, em Locarno/Suiça, o Congresso Internacional, tendo por tema,Que Universidade para o amanhã? Em busca de uma evoluçãotransdisciplinar da Universidade. Neste Congresso elaborou-se oProjeto CIRET-UNESCO com o título: Evolução transdisciplinarda Universidade. Esse projeto foi elaborado pelo CIRET em colabo-ração com a UNESCO desde 1995, através de um grupo de direçãointernacional e transdisciplinar, com a realização de uma jornada deestudos em 1996. Com esse Congresso, o conceito de transdisci-plinaridade torna-se mais claro e definido e estrutura-se um projetotransdisciplinar.

Dentro do movimento transdisciplinar, encontramos váriastendências que destacam um enfoque, uma área ou, ainda, uma

34 J. Piaget. Colloque sur l’interdisciplinarité. Nice: OCDE , 1970. Citado porBasarab Nicolescu: Sciences et Tradition. Paris, Troisième Millénaire, nº 23,1992, p. 83. In: P. Weil et alii. op. cit. p. 31.

35 Declarção de Veneza. Veneza: 1986. Cf. Internet.

36 CIL, p. 4.

Page 59: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

59

Introdução

racionalidade. Restringimo-nos, porém, a apresentar o enfoqueholístico e a razão transversal que parecem se tornar, atualmente,hegemônicas.

a) O enfoque holístico 37 : “É absolutamente fundamental quese tenha uma visão global. A totalidade está sempre presente. Opasso fundamental da mecânica quântica, revelando o comporta-mento interativo das particulas, é reconhecido como a essência douniverso. A única possibilidade de conhecer a totalidade é adotar umenfoque holístico [ítalico nosso] indo além das disciplinas, transcen-dendo objetos e métodos disciplinares. Isto é a transdiscipli-naridade38 ” D’Ambrosio reconhece o holismo enquanto uma visãodentro do momento transdisciplinar. P. Weil afirma que “o novoparadigma holístico consiste em encontrar axiomas comuns entre aciência e a tradição, principalmente, nos seus aspectos experienciale transpessoal. E, ao mesmo tempo, é a procura de uma axiomáticatransdisciplinar 39 . Como vemos, o enfoque holístico propõe ir alémdo objeto e do método, acentuando a busca de axiomas comuns entrea tradição e a ciência, a fim de construir, por sua vez, os axiomastransdisciplinares .

b) A razão transversal - a Declaração de Veneza - 1986 - jáanuncia “a aparição de uma nova visão da humanidade, até mesmode um novo racionalismo”, ou seja, de uma nova razão. O ProjetoCIRET-UNESCO define o projeto como sendo transversal: “Opresente projeto estratégico transversal [itálico nosso] é Evoluçãotransdisciplinar da Universidade” 40 . Trata-se, de fato, de uma nova

37 P. Weil assim define a abordagem holística: “De um lado, holístico implica umavisão resultante de uma experiência, que, por sua vez, é geralmente o resultadode uma combinação de holopráxis ou prática experiencial com o estudointelectual, ou holologia, de um enfoque analítico e sintético, de uma mobilizaçãodas funções ligadas ao cérebro direito e esquerdo e da sua sinergia, de umequilíbrio entre as quatro funções psíquicas, ou seja, a sensação, o sentimento,a razão e a intuição. Chamamos a essa conjugação de ‘abordagem holística’”.

38 Id. P. Weil et alii. op. cit. p. 38.

39 Id. P. Weil et alii. p. 40

40 CIL, p. 1.

Page 60: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

60

Os movimentos na casa grande

racionalidade que pode ser qualificada de transversal. O que é umarazão transversal?

1º) O uso da palavra transversalidade (enfoques transversais,temas transversais) penetrou no vocabulário de reformas educacio-nais da Espanha e de alguns países latino-americanos, incluindo-seo Brasil. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, o concei-to se torna peculiar, porque apenas os temas ético-humanistas levamo nome de Temas transversais.

2º) Qual é o tipo de racionalidade exigida para esse novocontexto transdisciplinar? Na era dos hipertextos - texto eletrônico,como os da Internet e CD-ROMs que admitem sub-entradas, re-envios e múltiplas conexões - e dos multimeios, a reconfiguraçãotransdisciplinar dos conteúdos disciplinares exige um novo tipo deracionalidade: a transversal. “Transversal significa o que perpassade través ou obliquamente (rua transversal). O termo provém dageometria. Transversalidade tornou-se uma das metáforas para não-linearidade. Noção próxima a transdisciplinaridade. Razão transver-sal é o nome que o filósofo alemão Wolfgang Welsch dá ao tipocontemporâneo de razão que não se organiza segundo esquemashierárquicos, mas de forma transversal, possibilitando os hipertextos,a Internet, o CD-ROM, os multimeios. Trata-se de uma lógica dotransitar/transmigrar; um novo modo de pensar e agir segundo umaracionalidade-em-trânsito. Mike Sandbothe, filósofo alemão, faladas três características da era dos multimeios e da Internet:hipertextualidade, interatividade, transversalidade. Acrescentemos,modestamente, uma sílaba: transversatilidade” 41 .

No entender de H. Assmann, “a razão linear tinha que serabalada em seu ponto de origem: a linearidade de Pitágoras projetadana matemática e na geometria. A razão linear é, literalmente, umalógica de uma única superfície, ou seja, ela é superficial” 42 . Por issoé necessária a afirmação da razão transversal. Para Welsch, a razãoe a lógica transversal se caracterizam pelo seguinte:

41 H. Assmann. op. cit. p. 183.

42 Id. p. 103-104.

Page 61: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

61

Introdução

- “a constituição bio-orgânica e simbólico-lingüística daracionalidade se caracteriza pela inclusão do parâmetrosdesordenadores intransponíveis;

- a razão é capaz, em princípio, de desconstruir/reconstruire descrever com precisão esse parâmetros caóticos;

- somente quando a razão consegue penetrar e entregar-seprodutivamente aos entrelaçamentos insconscientes da racionalidadeela passa a ter condições para enfrentar adequadamente a soluçãodos problemas da atualidade” 43 .

3.3.3 - O horizonte transdisciplinar

Por que pensar transdisciplinarmente? Quais são os objetivosdo movimento transdisciplinar? A razão transdisciplinar tem porfinalidade as seguintes metas:

a) No entender de H. Assmann, a transdisciplinaridade visaa melhorar as disciplinas;

b) fazer a Universidade evoluir para a sua missão, isto é, oestudo do universal;

c) a idéia central do projeto é a de que há uma relação diretaentre paz e transdisciplinaridade;

d) considerar a Universidade não apenas como lugar deaprendizado de conhecimentos, mas também como lugar de cultura,de arte, de espiritualidade e de vida;

e) rigor, tolerância e abertura são três objetivos datransdisciplinaridade;

f) a transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelosentido. Uma educação neutra e objetiva não passa de um fantasmaque nos foi legado pela ideologia cientificista. A transdisciplinaridadetem, como ambição, a unificação, em suas diferenças, do objeto e dosujeito: o sujeito-conhecedor faz parte integrante da Natureza e doconhecimento;

g) a vocação transdisciplinar da Universidade está inscrita nasua própria natureza: o estudo do universal é inseparável da relação

43 Id. p. 101.

Page 62: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

62

Os movimentos na casa grande

entre os campos disciplinares, buscando o que se encontra entre,através e além de todos os campos disciplinares 44 .

Para concluir este estudo, desejamos citar uma experiênciaque a USP irá implementar a partir de 2002. Trata-se de um Curso deHumanidades. O projeto é pioneiro, sendo a característica funda-mental a interdisciplinaridade.

O curso de Humanidades não habilitará para nenhuma profis-são no mercado, mas somente servirá para continuar a fazer pesquisadepois da graduação. O que ele oferecerá de novo é um bomconhecimento de filosofia, literatura e artes. Isso servirá para aformação de futuros pesquisadores em ciências humanas e sociais.“A filosofia ensina a ler com rigor os conceitos, a literatura e as artesa lidar com as imagens e os sons. A cultura assim será a base parachegar a pesquisas criativas” 45 . Conforme, um dos idealizadores, oProf. Renato Janine Ribeiro, o curso destina-se aos que têm umacuriosidade intensa.

Nós cremos que projetos como esses apontam para a constru-ção de um cenário transdisciplinar capaz de abrir horizontes parauma nova Epistemologia.

Referências Bibliográficas

ASSMANN, Hugo. Reencantar à educação. Petrópolis: Vozes,1998.______________. Paradigmas ou cenários epistemológicos com-plexos. In: Teologia aberta ao futuro. São Paulo: Ed. Loyola, 1997._______________. Metáforas novas para reencantar a educação.Epistemologia e didática. 2ª ed., São Paulo: Ed. UNIMEP, 1998.BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da Epistemologia.Como se produz o conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1993.Congresso Internacional de Locarno. Projeto CIRET-UNESCO.Evolução transdisciplinar da Universidade. Locarno, Suíça, 30 deabril a 2 de maio de 1997.

44 CIL, p. 13.

45 Personagem. Folha de São Paulo. Caderno MAIS!. São Paulo: 24.06.2001, p.3.

Page 63: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

63

Introdução

FOUREZ, Gérard. A construção das ciências. São Paulo: UNESPEditora, 1991.Personagem. Folha de São Paulo. Caderno MAIS!. São Paulo:24.06.2001.LADRIÈRE, Jean. In: Recherche interdisciplinaire et théologie.Paris: Cerf, 1970.MORIN, E. O método. V. 1: A natureza da natureza. (La Méthode).Portugal: Europa-América, 1997, p. 141._________. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1999._________. Réforme de pensée, transdisciplinarité, réforme del’Université. Disponível em: <http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret>POPPER, Karl. La logique de la découverte scientifique. Paris:Payot, 1984.WEIL, Pierre et alii. Rumo à nova transdisciplinaridade. Brasília:Summus editorial, 1992.

Page 64: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

64

Os movimentos na casa grande

Page 65: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

65

Introdução

A Comunicação que Constrói a Realidade

Manoel Jesus

Introdução

O padre e professor Pedrinho Guareschi, no seu livro Socio-logia Crítica, inicia a discussão sobre “O Aparelho Ideológico daComunicação” salientando a necessidade de que se conheça “comoa comunicação constrói a realidade” (GUARESCHI, 1999, 134).Com este elemento provocando um aprofundamento mais filosóficoe sociológico do que de conhecimento de mercado e estratégias decomunicação, decidi incluir em minha dissertação de Mestrado emDesenvolvimento Social um capítulo que levou o título acima. E que,agora, faz parte desta obra.

Na verdade, a vontade era de direcionar o estudo sobre “APropaganda em Televisão Criando Hábitos de Consumo em Popula-ção de Baixa Renda” (com um estudo de caso) para o imenso ecomplexo mundo do entretenimento. Como uma das variáveis,vislumbrava-se que a população de baixa renda, mais do que formarseus hábitos de consumo, tinha no instrumento televisão, um dosseus poucos e raros momentos de entretenimento.

Ao se tratar esta questão, muitas vezes se parte para, literal-mente, pensar que se lida com emoções baratas e de como a culturaem todas as suas manifestações acabou sendo diluída no sensaciona-lismo, em fofoca e trivialidades. Nicolau Sevcenko, num artigo queescreveu para o jornal Folha de São Paulo, a respeito do livro “Vida– O Filme” (de Neal Gabler), afirma que “não há tema mais relevantena cena cultural desse fim de século que esse assalto da frivolidadesobre a imaginação, a crítica e a criação” (SEVCENKO, 2000,Internet).

Sevcenko diz que Gabler vai atrás de autores americanos,como o historiador da cultura Daniel Boorstin -autor da obra “TheImage - A Guide to Pseudo-Events in America” (1987)-, mas

Page 66: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

66

Os movimentos na casa grande

mergulha também nos mestres Marshall McLuhan, Umberto Eco,Jean Baudrillard e o historiador Richard Sennet. Só este referencialjá ratifica a dramática atualidade do tema.

O foco é colocado nas mudanças rápidas e intensas da estru-tura tecnológica no mundo contemporâneo. Elas atuariam como oelemento dinâmico das transformações no imaginário, na sensibili-dade e nos sistemas de percepção das populações nas metrópolesmodernas. A eletricidade primeiro e agora a microeletrônica funda-ram uma cultura em que as tendências predominantes são a acelera-ção das informações, a fragmentação da percepção e o alcancecoletivo da comunicação. As populações, sobretudo nas megacidades,tornaram-se um gigantesco público padronizado pelas estatísticas,mobilizado pela publicidade e seduzido pelo consumo. É o que NeilGabler chama de “a invasão do entretenimento” ou, de forma aindamais épica, “a revolução do entretenimento”. Neste sentido, seriampraticamente sinônimos a cultura popular e o mundo do entreteni-mento.

É bom ouvir os críticos, como Neil Postman:

“Quando toda uma população vê suas atenções atraídas pelotrivial, quando a vida cultural é redefinida como uma sucessãoperene de entretenimentos, quando toda conversação públicaséria se torna um balbucio infantil, quando, em suma, um povovira platéia e seus negócios públicos, um número de teatro derevista, então a nação se acha em risco: a morte da cultura é umapossibilidade nítida” (POSTMAN, 2000, Internet).

1.1 A televisão como entretenimento

Ao se encaminhar uma reflexão a respeito da influência dautilização dos espaços publicitários na criação de hábitos de consu-mo, não se pode deixar de lado o componente entretenimento.“Progressivamente, este parâmetro sofreu o desafio da referênciacomercial que trazia uma outra concepção da distração, muito maisafastada da ”ascese” da aprendizagem cultural. A referência comer-cial corroía igualmente a representação piramidal da sociedade,

Page 67: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

67

Introdução

reivindicando o caráter “massa-popular” de suas audiências”(MATTELARD, 1989, 168).

Está claro que, hoje, distrair passou à frente das outrasfunções, designadas para a televisão, como também das outrasformas de seu uso social. Ora, da mesma forma que as funções deinformar e educar, anteriormente, imprimiam sua marca sobre a dedistrair, a função hegemônica do divertimento tende a marcar cadavez mais as outras duas.

A reflexão feita por pensadores franceses já se preocupavacom a questão da audiência, levando em consideração seu carátereconômico, mas não desprezando o elemento político e cultural:

“Em artigo recente que suscitou numerosos debates na área dapesquisa anglo-saxônica, Dallas Smythe mostrou que a audiên-cia constitui a forma comercial dos produtos de comunicação nocapitalismo contemporâneo. As emissoras de televisão vendemaos anunciantes audiências com especificações precisas. Quantoaos programas, só servem para recrutar audiência potencial emanter sua atenção. Se esta teoria insiste com razão no pontonevrálgico ocupado pelos mecanismos publicitários no funcio-namento da televisão; demonstra se claramente que os progra-madores procuram não só maximizar sua audiência, mas tambémdirigir se a públicos-alvos relativamente precisos – emcontrapartida, não se define absolutamente quanto ao papelpolítico da televisão. Por trás da distinção puramente empíricaentre televisão estatal e televisão privada, manifestam-se antesdois modos diferentes de articulação entre duas racionalidades:uma de caráter econômico, a outra de natureza política e cultural.É essencial que se leve em consideração este caráter dual datelevisão, se se quer evitar as armadilhas do economicismo”.148-149 (P. Béaud, P. Flichy, M. Sauvage, “La télévisioncomme industrie culturelle”, projeto de pesquisa INA-Unesco,mimeografado, 1981 (reproduzido em Réseaux, CNET, nº 9,dezembro, 1984).

As teorias críticas produzidas durante as décadas de 60 e 70na Europa, em contextos colocados sob o signo das democraciasliberais e dos serviços audiovisuais estatais, baseiam a esperança deuma democracia cultural numa concepção do papel do Estado como

Page 68: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

68

Os movimentos na casa grande

protetor. Por sua vez, os autores da televisão brasileira, confrontadoscom o Estado autoritário, foram levados a interrogar-se sobre osinterstícios de liberdade abertos pelo mercado. A questão que seapresentava era: Quem, o Estado ou o mercado, tem mais capacidadepara estabelecer conexão com os públicos populares?

No entanto, tudo se encaminha para que se gestem novasnecessidades e a influência no sentido da aceitação de outrospadrões, principalmente pela imposição técnica e pela embalagemdas produções. O formato luxuoso de grande montagem (embala-gem) e padrão técnico também prenunciavam o desejo de exporta-ção.

Para isto, a reflexão se encaminha para a idéia de classepopular:

Em uma realidade onde a característica principal das classessubalternas não é o trabalho em fábricas, mas o desemprego, agreve disfarçada, a falta de terra, as migrações para a cidade, amarginalidade social, não mais o problema das “minorias étni-cas” e sim o das “maiorias étnicas”, o pensamento de esquerdadescobre que há “classes populares” que escapam às representa-ções estreitas a elas atribuídas pela definição esquemática de“classe operária” (MATTELARD, 1989, 169).

Roberto Schwartz constata que a evolução deste quadro temmuito de econômico, bastante de cultural, mas que não escapa aocomponente político:

“Não basta culpar o regime pelo marasmo intelectual reinante,que é também das oposições. Atenuaram-se a censura e o medo,e nem por isso as idéias e as artes entraram em fase brilhante.Inexplicável? Graças à ilusão de ótica criada pela ditadura, aintelligentsia custou a perceber que a sua inserção social e seupensamento são menos oposicionistas do que pareciam. O Brasilrevelado pela abertura é mais conservador do que o esperado. Osetor institucionalizado da cultura – a mídia, a universidade, asfundações, com verbas do governo e do grande capital – progre-diu (comparado àquele período de desenvolvimento excepcio-nal do movimento cultural e de ativação da classe intelectual que

Page 69: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

69

Introdução

caracterizou os anos de 62-64). Seu crescimento e os compro-missos práticos que implica são uma das causas de nosso atualmarasmo modernizado. A aspiração principal, aqui, se não meengano, é quantitativa: mais pessoa, mais dinheiro, melhoressalários. A questão democrática não é vista em termos substan-tivos de classe e nacionais, mas de maior acesso à gestão porparte dos funcionários, dentro de uma linha corporativa... Asoposições necessitam formular e especificar o interesse dosexplorados no campo da cultura para começar a defendê-lo”.(SCHWARZ, 1985, 27-28)

1.2 O aparelho ideológico da comunicação

A televisão é, hoje, um dos aparelhos ideológicos maiscentrais e abrangentes de nossa sociedade. Podendo parecer parado-xal, a Comunicação se torna o instrumento mais importante deresistência à mudança e de manutenção de um determinado status.

A partir daqui, abordam-se dois pontos: Como a comunicaçãoconstrói a realidade e a relação entre comunicação e poder.

Já há uma certa regra na relação de quem é fonte e quem detémas condições de veicular informação: uma coisa passa a existir nomomento em que é comunicada, é notícia. E também de que a suaforça está, muitas vezes, mais no silenciar do que no comunicar.

Quando Mattelard esteve no Brasil, estudando a televisãobrasileira, classificou o golpe do governo brasileiro como “o maiorexercício de marketing internacional do Brasil” (MATTELARD,1989, 136). Foi a descoberta de que sua força está na capacidade quetem, inclusive, de montar a agenda de discussão, que despertou ointeresse dos militares e os idealizadores de 64.

Para quem não acredita, basta sair às ruas, entrar nas casas,chegar à sala de aula e comprovar o que dizem as pesquisas:aproximadamente 80% de tudo o que as pessoas falam na rua, notrabalho, nas viagens, etc. são assuntos que foram apresentadospelos meios de comunicação (GUARESCHI, 1999, 135).

Um dos fortes elementos para que se tenha o controle destaagenda é a publicidade e a propaganda. Nenhum meio de comunica-

Page 70: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

70

Os movimentos na casa grande

ção vive sem comerciais (propaganda), ou o seu similar de hoje, ochamado apoio cultural (especialmente nos veículos ligados à redepública). Esta é controlada por firmas internacionais, que só favore-cem os meios que estiverem de acordo com sua filosofia, com seusinteresses.

1.3 Meios de comunicação e cultura

Jesús Martin Barbero dá especial importância à mediaçãohistórica entre a cultura de massa e as culturas populares. É precisa-mente por tê-la esquecido que certos retornos às culturas popularespodem tomar hoje – sob todas as latitudes – a forma de umacelebração unívoca de um paraíso reencontrado, sem contradições,puro de toda contaminação e que conteria sozinho a alternativa paraa produção industrial e mercadológica.

Em seu artigo Dinámicas Urbanas de la Cultura, Barbero dizque

“Intento pensar no sólo los medios sino también los fines: cómoestán cambiando los modos de constitución y reconocimiento delas identidades colectivas y las incidencia en la reconstitución deéstas tanto de los medios como de los procesos de comunicación”(Extraído da revista Gaceta de Cultura. Medellin, nº 12, diciembrede 1991, editada pelo Instituto Colombiano de Cultura)

Classificando Cultura como tudo que o homem faz, vamosencontrar incluída a maneira de falar (língua), a maneira de vestir, demorar, de comer, de trabalhar, de rezar, de se comunicar etc. Pode sever que todo povo se afirma como povo na medida em que consegueproduzi-la e fortificá-la. Um povo que perde a sua cultura, perde suaalma, fica sem identidade.

Para se ter uma idéia histórica da necessidade que osdominadores tem de sufocar a cultura local, contam os historiadoresque, na cidade do México, as fogueiras arderam durante semanas,queimando tudo o que os conquistadores encontravam. Sobraramalguns registros e um deles diz que o calendário asteca, por exemplo,

Page 71: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

71

Introdução

era corrigido num décimo de segundo de 52 em 52 anos.Hoje, os Meios de Comunicação Social estão entre os princi-

pais transmissores da cultura de um país. Óbvio que, como pano defundo está todo um conjunto cultural. Oferecendo uma maneiradiferente de se viver, em suma, um padrão cultural diferente.

Quem pensa em trabalhar com os Meios de Comunicaçãofazendo a mudança nos países em que chegam sabe que a transmis-são ou mudança de cultura se dá quase inconscientemente. Traba-lhando com estes elementos, fica claro que há uma ligaçãoestreitíssima entre a dependência cultural e a econômica.

1.4 O intervalo comercial

Cerca de um terço do tempo da nossa televisão é dedicado aanúncios publicitários. Em especial, se destacam dois tipos deinformação ou comunicação publicitária: Inicialmente, a que temcomo fundo a informação objetiva da coisa e procura informar ascaracterísticas essenciais mais importantes em relação a objeto outópicos. Podemos considerar como necessária para o funcionamentoda sociedade.

Mas é a outra, que nos preocupa: lida com a comunicaçãoafetiva, inconsciente, conotativa. Leva em conta as forças básicas,que são os desejos e aspirações que todos nós possuímos, como porexemplo o desejo de realização, o desejo de sucesso, o desejo deliberdade, o desejo de estima, desejo de amar e ser amado, a forçasexual, o desejo de prestígio, de aceitação, de ser identificado eaceito como pessoa humana.

O que faz, então, esse segundo tipo de propaganda? Ele ligaum determinado produto a uma dessas forças básicas, muitas vezesinconscientes, pouco controláveis, a um determinado produto que sedeseja vender.

As técnicas de tal propaganda são altamente sofisticadas. Sãoinúmeros os processos psicológicos, todos eles inconscientes ousemiconscientes, que arrastam as pessoas a se aprisionarem e iludi-rem. Citando Guareschi:

Page 72: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

72

Os movimentos na casa grande

”a) Mutação: é geralmente inconsciente, dá-se de cima parabaixo (a gente imita os mais importantes) e de fora para dentro(primeiro se aceita a pessoa, depois imita se a ela)b) Sugestão ou auto-sugestão: é um ato psicológico automático,no qual não intervém a iniciativa nem o querer das pessoas, àsquais se inspira uma idéia por métodos quase hipnóticos.c) Persuasão: é uma insistência sobre a sensibilidade, que éatacada por uma série de motivações afetivas, às vezes conscien-tes, mas pouco lógicas, mesmo quando se apresentam comorazões.d) Pressão moral: sentimento de culpa, tipo: você não será bomfilho se no dia das mães não apertar a mão de sua mãe e não deixarnela um relógio.e) E a percepção subliminar” (GUARESCHI, 1999, 152).

O certo é que a propaganda se vale destes elementos parapassar a sua mensagem. Mesmo que se diga que a aspiração a statuse o esnobismo, a discriminação racial e sexual, o egoísmo e acarência de contato, a inveja, a cobiça, a avareza e a ausência deescrúpulos, não são criadas pela propaganda, fica a impressão de quetodas são usadas, articuladas e costuradas para que produzam seusefeitos, sob a batuta deste instrumental da comunicação.

Conclusão

Aqui vale a pena lembrar, novamente, de Mattelart: “A defesaexaltada de uma nova ordem econômica, de uma nova ordem deinformação, de uma nova ordem tecnológica é, muitas vezes, umaboa desculpa para manter, sem mudanças, a situação interior.”(MATTELART, 1996, 215)

O conhecimento de que a televisão junta elementos e osmanipula para passar sua mensagem (como os já citados - aspiraçãoa status e o esnobismo, a discriminação racial e sexual, o egoísmo ea carência de contato, a inveja, a cobiça, a avareza e a ausência deescrúpulos) nos possibilita um recorte, que faz vislumbrar umarealidade. É tão rico que pode até provocar o seu des cobrimento,mas não significa que o revele em sua plenitude.

Page 73: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

73

Introdução

A Comunicação, em conjunto com a Sociologia, tem levanta-do dados interessantes: o receptor da comunicação, normalmente, éum sujeito passivo. No entanto, os estudiosos preocupados com otema, como Pedrinho Guareschi, chegam a falar na necessidade denão se perder os “hábitos de liberdade” (GUARESCHI, 1999, 153).Segue o que defende Pierre Bourdieu, de que aquele que assistetelevisão e tem neste meio seu único veículo de informação, pode terseriamente comprometido o hábito de pensar.

Já existem estudos que se preocupam com o chamado“agendamento” (a Comunicação fala em “Agenda Setting”): OsMeios de Comunicação de Massa estariam tentando influenciarfortemente no que é feito e dito por quem os assiste. Infelizmente,não se tem subsídios suficientes para confirmar esta presença. Masjá sabemos que a preocupação e o direcionamento para este campovão gestar os futuros rumos da comunicação.

Referências Bibliográficas

BARBERO, Jesús Martin. Dinâmicas Urbanas de la Cultura. Extra-ído da revista Gaceta de Cultura. Medellin, nº 12, diciembre de 1991,editada pelo Instituto Colombiano de Cultura.BÉAUD, P., FLICHY, P., SAUVAGE, M., La télévision commeindustrie culturelle, projeto de pesquisa INA-Unesco, mimeografado,1981 (reproduzido em Réseaux, CNET, nº 9, dezembro, 1984).BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor. 1997.GUARESCHI, Pedrinho. Sociologia Crítica – alternativas de mu-dança. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. 45a edição.MATTELART, Michèle & Armand. O Carnaval das Imagens - AFicção na TV. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.MATTELART, Armand. La invención de la comunicación. Barce-lona: Bosch Casa Editorial. 1995.POSTMAN, 2000.http://www.uol.com.br, acesso em 09 de Janeirode 2000.

Page 74: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

74

Os movimentos na casa grande

SCHWARZ, Roberto. A questão da cultura. Rio de Janeiro. LuaNova, janeiro-março, 1985. Pp 27-28.SEVCENCO, 2000.http://www.uol.com.br.

Page 75: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

75

Introdução

Emancipação e Subordinação: duas teoriaseducativas no mundo do trabalho

Reinaldo Tillmann

Introdução

Ao abordar o presente tema, não se pretende efetivar umaanálise a partir da qualificação do trabalhador para o exercício dedeterminada profissão ou atividade, tema, por sinal, extremamenteatual e rotineiro como discussão de políticas públicas ligadas àgeração de renda, numa perspectiva de atualização do trabalhador àsexigências do mercado empregador.

O objetivo do presente artigo é, utilizando-se dos ensinamentosde Émile Durkheim e Karl Marx, distinguir parâmetros que estabe-leçam um entendimento do mundo do trabalho a partir de umprincípio educativo peculiar a esta categoria e que, conforme um ououtro pensador, poderá estabelecer efeitos de emancipação ousubordinação aos interesses do capital.

1. Subordinação em Émile Durkheim

Durkheim será de grande valia para a análise da subordinaçãotendo-se em vista a clareza com que trata das concepções quedefende. Entende-se que uma das grandes contribuições que oteórico traz ao pensamento científico atual consiste na forma quaseingênua com que trata das teorias sociológicas, em especial, o modocomo essas teorias se aplicam na manutenção da estrutura socialvigente, ou seja, Durkheim preocupa-se em explicar e criar mecanis-mos de funcionamento da sociedade, através da eliminação quasetotal da possibilidade de conflitos que venham a desestruturá-la em

Page 76: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

76

Os movimentos na casa grande

seus pilares fundamentais.Na verdade, ao retratarmos, dentro de nós mesmos, a socieda-

de e seus mecanismos estruturantes, somos levados a visualizar asteses durkheimianas e, com um profundo olhar crítico reconhecer –com algum espanto – que a concepção teórica esboçada não tem nadade ingênua; pelo contrário, é extremamente pertinente e inclusivepragmática. Ocorre, porém, que não passa de um pragmatismoartificialmente produzido, induzindo a sociedade a entender que nãoexistem alternativas para um determinado padrão de funcionamento,de coesão social, enfim. O que importa, para Durkheim, é inexistiremespaços de conflitos abertos, livres de qualquer controle e quepossam revolucionar o “status quo” vigente. Durkheim estabelecepadrões e mecanismos de manutenção desses padrões, como aotratar da solidariedade enquanto um efeito moral da divisão dotrabalho.

“Somos levados assim, a considerar a divisão do trabalho sob umnovo aspecto . Nesse caso, de fato, os serviços econômicos queela pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeitomoral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duasou várias pessoas um sentimento de solidariedade. Como querque esse resultado seja obtido, é ela que suscita essas sociedadesde amigos, e ela as marca com seu cunho.” (Durkheim, 1999:21)

1.1 Por que a divisão do trabalho produz solidariedade?

Durkheim não tem interesse em responder a esse tipo dequestionamento. O que coordena seu raciocínio não são as relaçõesde fato (concretas) ocorridas a partir da divisão do trabalho e sim osefeitos que são esperados a partir de determinado fato social.“Perguntar-se qual é a função da divisão do trabalho é, portanto,procurar a que necessidade ela corresponde” (Durkheim,1999:13);assim, não é considerada a realidade, a materialidade dos fatos quese desdobram a partir da divisão do trabalho, porque a realidade podepossuir outras necessidades.

Page 77: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

77

Introdução

O que parece vai ficando claro é uma falta de autonomia doreal, visto que as relações sociais estão subordinadas a uma concep-ção ideal de sociedade; idealização estática e estratificada que, aobuscar a coesão social, está, na verdade, criando mecanismos artifi-ciais de sepultamento dos conflitos que existem no plano real e quepoderiam revolucionar a concepção idealizada .

“Não temos apenas de procurar se, nessas espécies de sociedade,existe uma solidariedade social proveniente da divisão do traba-lho. É uma verdade evidente, pois a divisão do trabalho é muitodesenvolvida nelas e produz a solidariedade. Mas é precisodeterminar, sobretudo, em que medida a solidariedade que elaproduz contribui para a integração geral da sociedade, poissomente então saberemos até que ponto essa solidariedade énecessária, se é um fator essencial da coesão social, ou então, aocontrário, se nada mais é que uma condição acessória e secundá-ria.” (Durkheim, 1999:30)

1.2 Trabalho e subordinação

Fica latente que o teórico em questão não vai desenvolver amaterialidade da divisão do trabalho, mas procurar integrar, deforma coesa, a sociedade a esse fato social que, por ser inegável,precisa ser estudado a partir de elementos de subordinação darealidade, - construída a partir das relações humanas, em especialno trabalho – aos efeitos artificialmente esperados por quem desejaa estabilidade e a paz social. Na verdade a integração geral citadapor Durkheim representa uma falsa estabilidade e uma falsa pazsocial, pois deseja uma integração que desconsidera a instabilidadee o conflito existentes no campo real, sobretudo nas relações mate-riais que tratam da divisão do trabalho. Ocorre que o sociólogoimpõe, como efeito necessário da divisão do trabalho, a solidarieda-de, ou seja, não interessa se existe ou não solidariedade, o queinteressa é que ela se torna necessária.

Qual é a solidariedade em Durkheim?

Page 78: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

78

Os movimentos na casa grande

“A solidariedade social, porém é um fenômeno totalmentemoral, que por si só, não se presta à observação exata , nemsobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa classificaçãoquanto a essa comparação, é necessário, portanto, substituir ofato interno que nos escapa por um fato externo que o simbolizee estudar o primeiro através do segundo.Este símbolo visível é o direito.” (Durkheim, 1999:31)

A solidariedade não existe de fato, e sim de direito. São tãosuperficiais os vínculos de solidariedade da forma que o sociólogoprevê que é impossível inclusive observá-los, como Durkheim tantoaprecia, transfigurando uma metodologia própria das ciências natu-rais para as ciências sociais. Assim necessita valer-se de regrasjurídicas, criadas fora da materialidade na qual ocorrem as relaçõesde trabalho, para apresentar vínculos artificiais de solidariedade,conforme características intrínsecas de uma estrutura jurídica quetem, em sua criação, o monopólio do poder do Estado

O que mais interessa em Durkheim, para este trabalho, éapresentar uma visão crítica do que o pensador entende por “carátersocial da educação”, relacionando-o com o mundo do trabalho emostrando seus efeitos de subordinação.

Com efeito, em sua obra, Sociologia, Educação e Moral ,Durkheim expõe, de forma cristalina – como de costume –, o seuentendimento a respeito do caráter social da educação, tema que seráabordado, por um critério didático, após ser apresentada uma visãomarxiana sobre o trabalho como princípio educativo.

2. Emancipação em Karl Marx

Marx apresenta conclusões opostas às de Durkheim sobre omundo do trabalho. Na verdade, são duas posições que se chocam apartir de suas funções para a subordinação (Durkheim) ou emanci-pação (Marx) do trabalhador em relação ao capital.

O tema do capital é introduzido por Marx, principalmente,enquanto denúncia do papel que exerce na concentração de riquezase conhecimento, tema que será tratado especificamente neste item.

Page 79: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

79

Introdução

Acontece que, embora Durkheim não articule suas concepçõestendo, como pressuposto, a noção do capital, este se encontra, deforma oculta, como central em sua argumentação, a partir da noçãode coesão social, ou seja, uma sociedade sem conflitos em que ocapital encontre o ambiente propício para reproduzir-se de formaconcentrada e autoritária (efeitos de subordinação em relação aotrabalho), aparentando uma naturalidade das relações sociais.

Para Marx, o central é o conflito; para Durkheim, o central éa coesão. Conforme o pensamento marxiano, a sociedade estádividida em classes, e a percepção das relações entre essas classes éfundamental para o entendimento da cisão, e não da coesão, queperpassa o tecido social.

Segundo muitos teóricos tem procedido, relembrar e analisaros ensinamentos clássicos de Marx sobre o tema, torna-se muitoimportante

“Diversos fatores específicos ajudam e até bastam para definiruma classe, assim podemos dizer:- o lucro define a classe capitalista- o salário define a classe operária- a renda do solo define a classe latifundiária”

(apud Ianni,1996:100-101)

É sabido também que essas definições se estabelecem a partirde uma relação entre a classe em questão e seu elemento definidor.O salário define a classe operária por ser o fator que compra a forçade trabalho do indivíduo e, ao comprá-la, exclui o operário doprocesso de produção pagando-lhe o necessário para sua sobrevivên-cia e reprodução. O lucro define a classe capitalista porque éjustamente este fator que é extraído da expropriação do trabalhador,ou seja, o lucro existe pois a força de trabalho é remunerada de formaa buscar alienar o operário do produto de seu trabalho. O preço de talalienação é o caminho do lucro através do processo de mais valia.

A renda proveniente da terra caracteriza a classe latifundiáriaa qual recebe recursos do capitalista que não possui terra própria paraexplorar. Hoje, a classe proveniente da renda da terra já se confundecom a própria classe capitalista, que, devido ao processo de acumu-

Page 80: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

80

Os movimentos na casa grande

lação, vem adquirindo terras e exercendo nestas uma atividadecapitalista.

Vê-se, portanto, que as definições de classe dependem de umdeterminado estágio da civilização. A noção de classe é uma noçãode movimento e deve ser analisada em sua totalidade. Marx já diziano manifesto que “... a nossa época, a época da burguesia, carac-teriza-se por ter simplificado os antagonismos de classes.” (Marx/Engels,1998:40)

Classe, enfim, é antagonismo, é conflito. A definição declasse só se torna possível dentro de uma visão total de espaço etempo. É fundamental a visualização de confronto, conflito entredois setores cujos interesses só poderão ser satisfeitos com a elimi-nação de um setor ou submissão de um ao outro.

Estabelecidas as confrontações basilares entre os pensadoresé fundamental analisar, para alcançarem-se os objetivos almejados,o entendimento marxiano sobre a divisão do trabalho, de modo acriar condições para uma síntese entre as duas concepções e relacioná-las com o mundo do trabalho.

Na verdade, Marx e Durkheim recorrem a Adam Smith, comouma referência ao tratar de divisão do trabalho (Cf. Durkheim,1995:01 e Marx, 1998:827), porém as conclusões que estabelecem,são evidentemente opostas entre si. Marx não aceita a perspectiva dadivisão do trabalho enquanto um processo de integração social; pelocontrário, denuncia esse processo como de formação e sedimentaçãodo capitalismo.

“O processo que produz o assalariado e o capitalista tem suasraízes na sujeição do trabalhador.” (Marx,1998:829).

A afirmativa acima de Marx concerne ao espaço de suaprodução científica, quando trata da acumulação primitiva, ou seja,da origem do capital; porém, quando se refere à divisão do trabalho,é que analisa e demonstra, com maior profundidade, como seconstituiu esta subordinação do trabalhador.

Page 81: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

81

Introdução

2.1 Por que a divisão do trabalho produz mais valia ealienação?

O mundo do trabalho é constituído por uma diversidade deindivíduos que não possuem nada além de sua força de trabalho a fimde garantir a sua subsistência e a de sua família. O trabalho artesanalrepresenta o exercício livre e soberano do conhecimento do trabalha-dor, que, exercendo o seu ofício na plenitude e transmitindo esseconhecimento de geração para geração, assegura o seu sustento semdepender de nenhum outro fator – além do seu ofício – para oexercício daquela atividade.

O que Marx descreve, com extrema precisão, é a introduçãodo capital e do capitalista nessa realidade, transformando um proces-so natural de exercício das habilidades do ser humano, em proveitodo seu sustento, em um processo social a favor do capital.

“Se o modo de produção capitalista se apresenta como necessi-dade histórica de transformar o processo de trabalho num pro-cesso social, essa forma social do processo de trabalho se revelaum método empregado pelo capital para ampliar a força produ-tiva do trabalho e daí tirar mais lucro.” (Marx.1998:388)

Esse processo social representa o desmantelamento do ofíciolivre e soberano do trabalhador na busca do seu sustento e asubordinação ao capital, que estabelece uma relação de compra daforça de trabalho, ou seja, com esse processo social o trabalhadorpassa a ser um instrumento de produção dentro da estrutura capita-lista, não mais pertencendo a si mesmo o que produz, e sim a umterceiro que paga um valor pela sua força de trabalho.

A cooperação segundo Marx, é o germe da forma capitalistade exploração e extração concentrada de mais valia, isto é, ocapitalista agrupa, em um único estabelecimento, um conjunto detrabalhadores, comprando a força individual de trabalho de cada ume extraindo uma força de trabalho coletiva, a qual não é paga,potencializando, assim, a extração de mais valia de cada trabalhador.

“A cooperação capitalista, entretanto, pressupõe, de início,o assalariado livre que vende sua força de trabalho ao capital.”

Page 82: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

82

Os movimentos na casa grande

(Marx,1988:387)O processo de extração de mais valia representa justamente a

implementação da venda de força de trabalho, na qual o trabalhadorque não exerce mais livremente o seu ofício – a liberdade é só paravender a força de trabalho – negocia tal força com o capitalista queefetua a compra de duas formas: a primeira pagará a subsistência dotrabalhador e de sua família, permitindo, assim, a reprodução contí-nua dessa mesma força; a outra é o próprio trabalhador que paga aocapitalista, visto que, embora receba somente por sua manutenção ereprodução, a força de trabalho vendida acresce, em muito mais,valor o capital, através do trabalho empregado na transformação dedeterminada matéria prima e na posterior venda com lucro daprodução. Ora este lucro, que é só do capitalista, é produzido pelotrabalho, e não pelo capital. Essa contradição – que não é aparente– é a lógica do processo de mais valia conforme Karl Marx.

A cooperação representa, em Marx, a intensificação desseprocesso, visto que o capitalista agora não se contenta somente emextrair mais valia de cada trabalhador, mas sim quer agrupá-los emum único estabelecimento cooperando a força de trabalho coletivaem seu favor, e, o que é pior, sem pagar um centavo a mais por essacooperação.

“Não se trata aqui da elevação da força produtiva individualatravés da cooperação, mas da criação de uma força produtivanova, a saber, a força coletiva.” (Marx,1998:379)

Torna-se relevante entender que essa força coletiva só existesubordinada ao capital e, somente a partir desta premissa, é que sepode defender as conclusões marxianas como procedentes. Estasubordinação, porém, não termina com o período da cooperação; elaavança em direção ao período da manufatura e da implementação dadivisão do trabalho, intensificando a subordinação aqui analisada.

Page 83: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

83

Introdução

2.2 Conhecimento e emancipação

De fato, a cooperação amplia a extração de mais valia masmantém a centralidade da produção na esfera de conhecimento decada trabalhador. A cooperação não consegue dissociar o trabalha-dor da totalidade do processo produtivo, uma vez que se intensificaa produtividade – para aumentar a extração de mais valia –, todaviase produz a partir do conhecimento e habilidade de cada trabalhador.

Sem dúvida essa centralidade da produção, através do conhe-cimento, nas mãos do trabalhador representava um fator deintranqüilidade para o capitalista, precisando ser superado, sob penade não alcançar o objetivo maior de subordinação total do trabalha-dor ao capital, como forma de intensificar, cada vez mais, a continui-dade e aperfeiçoamento do processo de mais valia.

A divisão do trabalho enfrentou, com sucesso, essaintranqüilidade do capital, principalmente porque o que se dividiunão foi necessariamente o trabalho, mas sobretudo se dividiu oconhecimento no trabalho.

“A mercadoria deixa de ser produto individual de um artíficeindependente que faz muitas coisas para se transformar noproduto social de um conjunto de artífices, cada um dos quaisrealiza, ininterruptamente, a mesma e única tarefa parcial.”(Marx,1988:392)

A parcialização estabelecida no desenvolvimento do períododa manufatura é traduzida por Marx como o momento central dedissociação do trabalhador de seu conhecimento, que trazia porinteiro até então, mesmo com o processo de cooperação capitalista.A parcialização das tarefas é engendrada enquanto um elemento deotimização dos serviços a favor do capital, mas também apresenta,em seu bojo, um outro elemento de extrema importância estratégicapara a garantia da subordinação do trabalhador ao capital. O queocorre é a transferência do conhecimento historicamente adquiridopela habilidade no exercício de um ofício ao capitalista, que,cindindo esse conhecimento apropria-se do seu todo.

Concretiza-se, dessa maneira, um estreitamento das perspec-

Page 84: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

84

Os movimentos na casa grande

tivas de emancipação pelo trabalho, visto que o artesão1 é desapro-priado do processo produtivo que realizava desde a compra damatéria-prima, transformação e comercialização do produto final,cabendo a esse artesão, com a divisão do trabalho, somente aexecução parcial de uma etapa do processo. E a liberdade dotrabalhador existe apenas para vender a sua força de trabalho, sendoque o capital só a compra de forma cindida, parcializada, garantindo,assim, a hegemonia do capitalista e a eterna submissão do trabalha-dor a um processo perverso de extração de mais valia.

“A manufatura produz realmente a virtuosidade do trabalhadormutilado, ao reproduzir e levar sistematicamente ao extremo,dentro da oficina, a especialização natural dos ofícios queencontra na sociedade. Por outro lado, sua ação de transformaro trabalho parcial em profissão eterna de um ser humanocorresponde à tendência de sociedades antigas de tornar heredi-tários os ofícios, petrificá-los em castas ou, então, ossificá-losem corporações, quando determinadas condições históricas pro-duziam no indivíduo uma tendência a variar, incompatível como sistema de castas.” (Marx,1988:394)

A perversidade desse processo se apresenta sob duas formas.A primeira consiste em intensificar a extração de mais

valia, já que, ao decompor as diversas atividades, o capitalista ganhauma economia de tempo, ou seja, com o aumento da produtividadese consegue alavancar o período de tempo que o trabalhador dá degraça ao patrão, sem aumentar a jornada de trabalho e sem pagar maispor esse acréscimo produtivo, decorrente da repetição contínua datarefa parcializada.

A segunda perversidade é justamente o efeito esperadopelo capital com relação à divisão do trabalho: a aculturação dofator trabalho como elemento de formação de uma classe,imobilizando aquele que não tem capital a sua condição eterna demercanciar sua força nas condições impostas pelo capital.

1 Segundo Marx, a manufatura origina-se e forma-se a partir do artesanato(Marx,1998:393).

Page 85: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

85

Introdução

A emancipação do trabalho, em Marx, reside justamentenesse processo que é denunciado em sua obra. Enfim não se encontrana divisão do trabalho e no entendimento da mais valia uma atitudede emancipação do trabalhador frente ao capital; pelo contrário, cria-se uma inteligência do capital no aprisionamento do trabalhador aosseus interesses. Para Marx a emancipação encontra-se, fundamen-talmente, na superação dessas condições denunciadas, porque otrabalhador imerso no caldeirão cultural em que fervilham suaexploração e alienação, detém, especialmente, de modo coletivo, ascondições de revolucionar a estrutura social vigente.

A revolução pelo trabalho, melhor dito pela conscientizaçãoque o trabalho enquanto princípio educativo, opera na coletividade,enfrenta uma série de resistências, sendo a introdução da maquinariae o avanço tecnológico servil ao capital elementos importantes, osquais merecem uma análise apurada2 , a fim de compreendermos acaminhada histórica da classe trabalhadora em constante lutaemancipatória do capital.

Voltar a Durkheim, agora, torna-se vital, pois analisar critica-mente sua visão a respeito do caráter social da educação e daconstituição de um ser social reforça a denúncia marxiana, jáestabelecida no mundo do trabalho.

3. Trabalho e conhecimento: uma educação emancipatória

Neste tópico, serão tratados os efeitos esperados pela educa-ção em relação ao meio social, e não propriamente uma definição deeducação em Durkheim, que se referiria mais a uma especial ação deuma geração de adultos sobre uma geração de jovens.

É, porém, nos efeitos esperados ou no caráter social daeducação nos moldes durkheimianos que se encontram elementosmais propícios para uma análise crítica, a partir de Marx, do papel daeducação.

2 O tema é muito bem exposto por Marx em sua obra. O Capital, cap. XIII – AMaquinaria e a Indústria Moderna.

Page 86: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

86

Os movimentos na casa grande

Os efeitos esperados por Durkheim em relação à educação emnada se assemelham aos efeitos esperados por Marx. À emancipa-ção, que é possível através da consciência da situação de expropri-ação denunciada na concepção marxiana do processo educativo nomundo do trabalho, se contrapõe a estrutura de subordinação dopensamento durkheimiano.

Durkheim vê, na educação, um poderoso instrumento deconservação dos padrões sociais já estabelecidos. “Para que serveimaginarmos uma educação que seria fatal para a sociedade que apusesse em prática.” (Durkheim,1984:10)

O que o sociólogo citado não torna claro são os interesses queesta sociedade quer conservar. Ao discorrer sobre a sociedade, tratacomo se fosse um espaço de consenso e integração social, nãohavendo cisões profundas em seu interior, cisões estas denunciadaspor Marx, as quais demonstram a superficialidade da teoriadurkheimiana da coesão social. Coesão, integração e consenso sãopalavras vazias potencializadas por uma construção educativa capazde conciliar interesses inconciliáveis.

Impossível uma compreensão do caráter social da educaçãosem considerar o capital como um importante fator dentro doprocesso educacional. Pensar a educação em Durkheim é pensar naalienação, pois desconecta o homem da realidade, apresentando umprojeto de ser humano idealizado e despersonalizado. A formaçãoda consciência não é um espaço de liberdade, é sim um espaçolimitado por interesses obscuros e não revelados por esse sociólogo.

“Qualquer educação tanto a do rico como a do pobre, a que dáacesso às carreiras liberais como a que prepara para as funçõesindustriais tem por objetivo fixá-las nas consciências.”(Durkheim,1984:16)

A conformação das consciências, na verdade, é o objetivomaior e está expresso na construção teórica do caráter social daeducação, ou na construção de um ser social, como um homemdesprovido de personalidade e abstraído de sua própria conflitualidadeconsigo mesmo e com a sociedade.

Page 87: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

87

Introdução

Efetivamente, assim como Adam Smith não nega a acumula-ção primitiva, mas salienta-a e apresenta-a como um fator natural dodesenvolvimento da humanidade, que foi acumulando o que sobra-va, Durkheim, também, não nega uma espécie de conflito original,o qual representaria uma dualidade dentro do próprio ser humano.

“Poder-se-á dizer que em cada um de nós , existem dois seres que,para serem inseparáveis que não por abstração, não deixam deser distintos. Um é constituído por todos os estados mentais queapenas se referem a nós próprios e aos acontecimentos relacio-nados com a nossa vida pessoal: é aquilo a que poderíamoschamar o ser individual. O outro é um sistema de idéias, desentimentos e de hábitos que expressam em nós, não a nossapersonalidade, mas sim o grupo ou diferentes grupos de quefazemos parte; é o caso das crenças religiosas, credos e práticasmorais, tradições nacionais ou profissionais, opiniões coletivasde qualquer espécie. O seu conjunto constitui o ser social. Aconstituição desse ser em cada um de nós, eis a finalidade daeducação.” (Durkheim,1984:17)

Adam Smith naturalizou a acumulação primitiva,3

desconsiderando os efeitos nocivos dessa concentração, principal-mente em sua origem violenta e exacerbada intensificação de formaconcentrada, fatos esses denunciados de forma contundente porMarx.4 . Ora, Durkheim procura demonstrar que o conflito pode seradmitido e, inclusive, é um processo natural da constituição do serhumano enquanto indivíduo e ser social. O que não pode ocorrer éa exteriorização desse conflito, devido à importância da subordina-ção dos indivíduos a um interesse superior à própria conflitualidadenatural.

O interesse superior não aparece na teoria, contudo, o métodode conformação está, como de costume em Durkheim, visceralmenteexposto: É a educação.

3 Cf. Smith,Adam. Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações.Cap. VI

4 Marx,Karl. O Capital. livro 1, vol 2, caps. 24 e 25

Page 88: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

88

Os movimentos na casa grande

A educação é solução para um conflito original insuperável,pois presente nas entranhas de nossa própria constituição, e dificil-mente qualquer método que não contasse com a total adesão socialobteria êxito. A educação é a solução que conforma o indivíduo aogrupo do qual faz parte, grupo esse também condicionado pelaprópria educação. Eis um belo círculo nada virtuoso para quem épartidário da liberdade e da transformação social a partir daexteriorização das contradições presentes na vida real.

Em Marx, educação é a consciência de um processo queexplora o trabalhador pela extração de mais valia, como vistoanteriormente. Essa cultura é adquirida pela vivência do real erepresenta, se absorvida de forma coletiva, a possibilidade concretade emancipação à uma classe oprimida sobre outra opressora. Estacultura se obtém na conflitualidade cotidiana e no aprendizado quea exteriorização do conflito traz em seu bojo.

A concepção marxiana, portanto, vai de encontro à construçãode um ser social amorfo e despersonalizado. Em Marx, o ser humanoé vivo e sujeito de sua própria história; já em Durkheim, o indivíduo,pela educação, é morto de sua própria originalidade .

A possibilidade de o conflito original exteriorizar-se e esprai-ar-se pela sociedade é a grande preocupação de Durkheim ao tratardo caráter social da educação. Explicitando: Durkheim eliminateoricamente a possibilidade do conflito pela construção do sersocial, criando uma armadilha de infelicidade, apesar das afirmati-vas de James Mill de que “a educação teria por objectivo transfor-mar o indivíduo num instrumento de felicidade...” (apudDurkheim,1984:09).

Ao educar o homem descolado de sua originalidade, Durkheimcria um processo artificial de convencimento de que o ser humano éo oposto daquilo que realmente constitui a sua personalidade,fazendo, assim, com que cada indivíduo busque a solução ouexplicação para seus conflitos pessoais ou coletivos na sua incapa-cidade pessoal de conformação a padrões universalmente aceitos. Oque ocorre, porém, é que esses padrões são falsos sendo constituídose legitimados por um processo educacional que visa à manutençãodos interesses superiores ao próprio grupo. Interesses não reveladosem Durkheim e denunciados, em Marx, como os do capital.

Page 89: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

89

Introdução

4. Conclusão

O princípio educativo no mundo do trabalho fica evidenciadoa partir de duas visões opostas sobre a função da educação, como desubordinação ou emancipação do ser humano em relação a si próprioe à sociedade em que está inserido. Os efeitos, conforme aceitarmosuma ou outra teoria, poderão ser de manutenção do “status quo”vigente ou da sua profunda alteração.

Na verdade, a emancipação é auto emancipação, pois otrabalhador, ao tomar consciência de um processo de divisão dotrabalho, apropria-se das condições básicas para ele próprio sersujeito de sua história.

O trabalhador, portanto, está à mercê de duas teorias que,conforme seu grau de conscientização em relação aos efeitos reaisdessas concepções, poderá trilhar os caminhos da emancipação ouda subordinação.

Tais constatações serão de extrema valia para podermosdefender a idéia de uma construção coletiva de geração de renda que,realmente tenha o significado de uma emancipação do trabalhadorsobre o capital, emancipação essa que só será possível através de umprocesso que desconsidere a “socialização metódica da novageração”(Durkheim,1984:17) e apresente as bases de um novométodo educacional, a partir dessa geração de renda, reintegrando oser humano trabalhador em sua originalidade conflituada.

A emancipação está colocada como uma realidade que podeser levada a efeito pelos trabalhadores. Ademais, a possibilidadeconcreta de articular a auto-emancipação só é possível ser pensadadentro de uma organização coletiva dos trabalhadores que vá alémda tradicional organização sindical, articulando-se na autogestão deempreendimentos produtivos e de serviços, o que representa aconcretização de um princípio educativo do trabalho: libertador eemancipatório.

A emancipação do trabalhador representa a possibilidadedesse integrar-se materialmente na discussão e articulação de ummodelo de desenvolvimento social que não atenda exclusivamenteas demandas do capital. Um modelo em que o mundo do trabalho não

Page 90: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

90

Os movimentos na casa grande

fique limitado as derivações de uma concepção desenvolvimentistamais ou menos geradora de empregos subordinados.

Não existe a menor possibilidade de pensarmos o desenvolvi-mento social sem a participação efetiva do mundo do trabalho na suagênese, nas suas articulações totais. O trabalhador auto-emancipadoreúne as condições necessárias de construir em condições soberanasum plano de geração de renda em que ele não represente o ladosubordinado de relações materiais que lhe oprimem de sua constitui-ção total como ser humano e trabalhador.

A idéia de desenvolvimento social só é possível de ser levadaa efeito quando o trabalho não for uma condição quantitativa,expressa pelo número de empregos ou pelo valor do salário, mas simquando o trabalho passar a ser considerado como uma condiçãoqualitativa que represente as linhas mestras de uma política públicade desenvolvimento que gere renda de forma desconcentrada etrabalho de forma não alienada.

Referências Bibliográficas

1. Livros

DURKHEIM, Émile. Sociologia, educação e moral. Porto: Rés,1984._______________. Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São Paulo:Martins Fontes,1999._______________. As regras do método sociológico. São Paulo:Martins Fontes,1995.DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação – Na idade da globalizaçãoe da exclusão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.FERNANDES, Florestan (Org.). K. Marx e F. Engels – História. 3ed. São Paulo: Ática,1989.GHIGGI, Gomercindo (Org. et alii). Trabalho, conhecimento eformação do trabalhador. Pelotas: Ed. Universitária.UFPel,1993.GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. SãoPaulo : Editora Atlas S.A., 1995.GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura.9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1995.

Page 91: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

91

Introdução

IANNI, Octávio (Org.). Marx – Sociologia. 8ª ed. São Paulo:Ática,1996.KAMMER, Marcos. A Dinâmica do Trabalho Abstrato na Socieda-de Moderna: uma leitura a partir das barbas de Marx. Porto Alegre:EDIPUCRS,1998.MARX, Karl; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 4ª ed. São Paulo:Hucitec,1984.____________________. Manifesto Comunista. São Paulo:Boitempo Editorial, 1998.MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1, vol.I e II. 16ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1998.__________. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 2, 8ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.__________. A Questão Judaica. Rio de Janeiro: Achiamé, s/d.SINGER, P.e SOUZA, A.R.(Orgs.). A Economia Solidária no Bra-sil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contex-to, 2000.

2. Boletins, jornais, revistas, cadernos, textos e documentos

ANTEAG – Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresasde Autogestão e Participação Acionária. Autogestão: construindouma nova cultura nas relações de trabalho. São Paulo,2000.UNITRABALHO. Sindicalismo & cooperativismo: a economiasolidária em debate. São Paulo. s/d______________. Universidade, Trabalho e Trabalhadores. SãoPaulo: Unitrabalho, 1998.

Page 92: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

92

Os movimentos na casa grande

Page 93: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

93

Introdução

Conclusão

O estudo que realizamos revela que o desenvolvimento socialnão se limita ao âmbito do progresso econômico e não é uma tarefaque visa, prioritariamente, a incorporação dos instrumentos e dastécnicas provenientes da tecnologia da informação. Em nossa ótica,o desenvolvimento traz em seu bojo um quê utópico (no sentidoetimológico) que aponta para além do status quo, em direção a umasociedade de inclusão. Quisemos mostrar esta face quase escondidapor debaixo de teorias, de projetos e de planos econômicos queconstituem o universo de nosso modelo de desenvolvimento.

Os temas analisados – o Conhecimento e suas configuraçõesepistêmicas, o Trabalho e a Educação na sociedade globalizadaenquanto subordinação ou emancipação e a Comunicação queconstrói a realidade – não esgotam a complexa problemática quepensamos ser o desafio do desenvolvimento. Temos, no entanto, aconvicção de que o olhar multidisciplinar faz-se necessário para queo desenvolvimento não se torne unidimensional e, consequentemente,excludente. Nesta ótica propomos as seguintes reflexões:

1. No que se refere ao modelo de conhecimento da sociedade“pós-capitalista”, o conhecimento proposto volta-se para o “saberfazer”. As categorias significativas são as do “homem do conheci-mento” e de “pessoa instruída”, em oposição a uma concepçãoantropológica e histórica de “pessoa educada”.

- A própria sociedade anunciada como “novo paradigmahistórico” precisa ser olhada com circunspecção no que se refere ao“novo”. De fato, nos limites da pesquisa revela-se que há possibili-dades que se oferecem ao homem no que diz respeito à comunicação;há facilidades que o conhecimento coloca para o mundo do trabalho.Entretanto, percebe-se que o modelo se refere às sociedades desen-volvidas.

Page 94: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

94

Os movimentos na casa grande

- A generalização – Sociedade do Conhecimento – pareceenganosa, ao menos sob alguns aspectos. De fato, o conhecimento,nesse paradigma histórico, é propriedade dos “trabalhadores doconhecimento”. Ficam excluídos os “trabalhadores em serviços”,que são a maioria. Por isso, a denominação de “Sociedade doConhecimento” precisa de um olhar de suspeita.

- Enfim, sentimo-nos desafiados a olhar o próprio conheci-mento sob o prisma da idéia de desenvolvimento que veiculamos.Aqui o método da complexidade de Edgar Morin se nos afigurafecundo, justamente porque propõe a inclusão do sujeito “histórico,sociológico e ético” como protagonista da sociedade.

2. Na era da globalização, para realizar um desenvolvimentosocial que combine trabalho com educação é preciso reestimular asatividades sindicais fazendo com que os trabalhadores reorganizemsua forças de pressão. Repensar o processo de terceirização e reduziras margens da chamada flexibilização, são medidas que no campo dotrabalho podem levar à redução do desemprego apoiada numprocesso educacional que balize a exclusão social provocada pelaglobalização

Os países emergentes que não têm acesso aos conhecimentostecnológicos de ponta devem fazer da educação o seu principalinvestimento para alcançar a autonomia. Assim, é possível reduzir asrelações de dependência e estancar o modelo de reprodução dadivisão internacional do trabalho que hoje prima, de um lado, peloagravamento da dependência centro/periferia e, de outro, exige cadavez mais qualificação.

Como conseqüência deste contexto, as políticas públicasreferidas às questões trabalho/educação passam a assumir caráterprioritário, tanto no âmbito nacional como campo das instânciassupranacionais, ao mesmo tempo que colocam a exigência decriação de atividades que impliquem cada vez mais a aplicação dosaber à produção de bens e serviços. Em outras palavras, a relaçãotrabalho/educação se converte num problema para ser resolvido nocampo da política e em direção ao desenvolvimento humano e social.

Page 95: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

95

Introdução

3. A ciência moderna tinha como grande pressuposto a idéiailuminista de progresso. Este foi o leitmotiv que desenvolveu omundo moderno. No entanto, a idéia de progresso científico justifi-cou o reducionismo de um único método para compreender arealidade; o uso da tecnologia para a destruição do meio ambiente;e um modelo de política científica que provocou a concentração dosbens e das riquezas.

Considerando que a idéia de progresso científico, própria daepistemologia moderna, entrou em crise, que modelo de desenvolvi-mento científico garante o desenvolvimento social?

O cenário epistemológico inter e transdisciplinar pode sermais favorável ao desenvolvimento social pelos seguintes motivos:há a contribuição de muitas disciplinas e a aplicação de diferentesmétodos para resolver os problemas e enfrentar os desafios sócio-econômicos; um sujeito científico que mantém uma relação desimbiose com a matéria e o meio ambiente; uma ciência integral, istoé, que desenvolve a cultura humanístico-artística e a cultura cientí-fica; e um desenvolvimento científico com sentido ético e responsa-bilidade social.

Considerando este pressuposto epistemológico, o desenvol-vimento social implica uma política científica. O conhecimentoengendra o poder e este, por sua vez, conduz à possibilidade de tomaruma decisão política e ética pelo desenvolvimento científico etecnológico simétrico e sustentável. Segundo J. Habermas, pode-seclassificar as interações entre a ciência e a sociedade em trêsmodelos: 1º) no modelo tecnocrático são os especialistas que deter-minam as políticas; 2º) no modelo decisionista são os consumidoresque determinam os fins, e os técnicos os meios; 3º) e no modelopragmático-político são as interações e as negociações entre espe-cialistas e não-especialistas que determinam a política científica.

Esses três modelos não são neutros e não existem em estadopuro. Na verdade, eles se imbricam e exigem que os tomadores dedecisão elaborem uma política científica que corresponda às neces-sidades da sociedade e que priorize o desenvolvimento social. Porisso, o Estado tem um papel fundamental no sentido de garantir aparticipação orgânica de todos os atores sociais na definição dapolítica científica

Page 96: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

96

Os movimentos na casa grande

4. O principal objetivo dos Meios de Comunicação de Massa,com atuação comercial, é influenciar na criação e manutenção dehábitos de consumo. No entanto, estudos já se dão conta de que estainfluência não acontece da mesma forma, nos diversos segmentossociais. Comprovadamente, a classe média é a que mais sofre o seupoder de sedução – baliza praticamente todas as suas compras pelasinserções comerciais. Já a classe de maior poder aquisitivo fogedesta influência e tem nos Meios de Comunicação, em especial, natelevisão e seus correlatos, um elemento de entretenimento.

No lado oposto, a população de baixa renda, que mais tempopassa diante da televisão, até por ser o seu único espaço de lazer,busca adaptar o que vê à sua rotina diária, mesmo que não possaconsumir o que lhe é oferecido.

E daí, o que isto tem a ver com o mundo do trabalho? Muito,para não se dizer, tudo. Desprezados até pouco tempo com espaçosadequados a senhoras e senhorias, a partir da metade do séculopassado, os meios de comunicação passaram a ser respeitados comoelemento que tem que ser levado em consideração em todos osestudos que envolvem as relações sociais. Dão palpites na economia,provocam os sociólogos, deixam em polvorosa os educadores eavançam, de forma assustadora.

Qualquer uma das categorias sociais, em pouco tempo, teráque reaprender este relacionamento, para que não seja apenas meroobjeto prazeroso de consumo, mas aqueles que apontam mudançasde rumos.

Prospectam novos tempos que sinalizam em duas direções: oaperfeiçoamento de sua atuação, para o desenvolvimento integral dohomem; ou a sua destruição, com a perda efetiva da capacidade derecriar, a cada dia, um mundo assustadoramente velho para quemaprendeu a balbuciar, tão recentemente, vislumbrando as diversasteias de comunicação, que possibilitam perspectivas que poderiamser tão ricas.

5. O princípio educativo no mundo do trabalho fica evidenci-ado a partir de duas visões opostas sobre a função da educação:subordinação ou emancipação do ser humano em relação a si próprioe à sociedade em que está inserido. Os efeitos, conforme aceitarmos

Page 97: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

97

Introdução

uma ou outra teoria, poderão ser de manutenção do status quovigente, ou de sua profunda alteração.

Na verdade, a emancipação é auto emancipação. Pois, otrabalhador, ao tomar consciência de um processo de divisão dotrabalho, apropria-se das condições básicas para ele próprio sersujeito de sua história.

O trabalhador, portanto, está à mercê de duas teorias que,conforme seu grau de conscientização em relação aos efeitos reaisdessas concepções, poderá trilhar os caminhos da emancipação ouda subordinação.

Estas constatações são de extrema valia para podermos defen-der a idéia de uma construção coletiva de geração de renda, querealmente tenha o significado de uma emancipação do trabalhadorsobre o capital. Essa emancipação só será possível através de umprocesso que desconsidere a “socialização metódica da nova gera-ção” e apresente as bases de um novo método educacional, a partirda geração de renda, reintegrando o ser humano trabalhador em suaoriginalidade conflituada.

É uma realidade que pode ser levada a efeito pelos trabalha-dores. Ademais, a possibilidade concreta de articular a auto-eman-cipação só é possível dentro de uma organização coletiva dostrabalhadores que vá além da tradicional organização sindical,articulando-se na autogestão de empreendimentos produtivos e deserviços, o que representa a concretização de um princípio educativodo trabalho: libertador e emancipatório.

A emancipação do trabalhador representa a possibilidade deintegrar-se materialmente na discussão e articulação de um modelode desenvolvimento social que não atenda exclusivamente às de-mandas do capital. Um modelo em que o mundo do trabalho nãofique limitado às derivações de uma concepção desenvolvimentistamais ou menos geradora de empregos subordinados.

Não existe a menor possibilidade de pensarmos o desenvolvi-mento social sem a participação efetiva do mundo do trabalho na suagênese, nas suas articulações totais. O trabalhador auto-emancipadoreúne as condições necessárias para construir, em condições sobera-nas, um plano de geração de renda em que ele não represente o ladosubordinado de relações materiais que o oprimem.

Page 98: Desenvolvimento Social: conhecimento e trabalho · o projeto humano, veiculado pelo destino da ciência na sociedade globalizada, que motiva os textos deste livro e une seus autores

98

Os movimentos na casa grande

A idéia de desenvolvimento social só é possível de ser levadaa efeito quando o trabalho não for uma condição quantitativa,expressa pelo número de empregos ou pelo valor do salário, mas simquando o trabalho passar a ser considerado como uma condiçãoqualitativa que represente as linhas mestras de uma política públicade desenvolvimento, que gere renda de forma desconcentrada etrabalho de forma não alienada.