desenvolvimento e violÊncia: uma anÁlise a...
TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAIBA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL
DIANA FREITAS DE ANDRADE
DESENVOLVIMENTO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS
PROCESSOS DO TRIBUNAL DO JÚRI EM CAMPINA GRANDE/PB
CAMPINA GRANDE – PB
2015
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DIANA FREITAS DE ANDRADE
DESENVOLVIMENTO E VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS
PROCESSOS DO TRIBUNAL DO JÚRI EM CAMPINA GRANDE/PB
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Regional da
Universidade Estadual da Paraíba, em
cumprimento a exigência para obtenção do
grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Luciano Albino Barbosa
CAMPINA GRANDE – PB
2015
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A Alexandre, meu amado marido,
dedico todas as minhas letras, lutas e liras.
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“As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte
chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma
chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se
levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos.
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.”
Eduardo Galeano (grifo nosso)
http://pensador.uol.com.br/autor/eduardo_galeano/
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Alexandre (Dinho), meu marido, pelo amor que me inspira a querer ser
melhor, pelo companheirismo incondicional e pelo apoio que há dez anos tem dado a todos os
meus projetos acadêmicos e profissionais.
Aos meus pais, Lenimar e Luíza, professores universitários que sempre foram meu
grande exemplo de dedicação aos estudos e à universidade. Agradeço especialmente ao meu
pai, que durante alguns anos abdicou do convívio comigo e meus irmãos para se dedicar ao
doutorado e a todos os compromissos acadêmicos que lhe permitiram recentemente alcançar o
nível máximo da carreira docente da Universidade Federal da Paraíba.
Aos meus tios, Jorge e Deinha, pelo amor filial que nos une, e por vibrarem comigo a
cada pequena conquista que eu tenha podido alcançar.
Aos meus irmãos, Euler, Marina e Débora, agradeço pela fraterna admiração que
sempre demonstraram pela irmã mais velha aqui! É difícil carregar a responsabilidade de ser
um exemplo (como vocês tantas vezes me disseram), mas tentarei nunca decepcioná-los.
Às amigas e colegas de profissão, Ana Emília e Natália, sem as quais eu jamais teria
conseguido conciliar as obrigações acadêmicas com o árduo trabalho na Defensoria Pública
da União. A Ana Emília, cujo companheirismo me permitiu cursar todas as disciplinas, me
substituindo em várias audiências nos horários das aulas e seminários; a Natália, por ter
suportado o desumano volume de trabalho quando precisei me afastar para realizar a pesquisa
de campo e por ter compreendido minhas parciais ausências na fase final da dissertação.
Ao amigo Alfredo, por toda a atenção dada a esse projeto acadêmico quando ele ainda
estava em sua fase inicial, pelos vários diálogos e pelos tantos empréstimos e indicações de
livros.
Ao professor e orientador Luciano Albino, agradeço pelos ensinamentos, pela
confiança e por sua compreensão quanto às minhas várias limitações, sobretudo as
relacionadas à minha profissão (as quais, algumas vezes, quase me fizeram acreditar que eu
não conseguiria levar esta pesquisa adiante).
Aos amigos e colegas, Raquel, Wênio e Elis, por terem me ajudado em tantas e tantas
atividades, por terem me presenteado com seu sincero companheirismo e com tantos
momentos de descontração. Especialmente a Raquel, agradeço por ter me mostrado que, em
todas as fases da vida, é possível fazer grandes amizades, daquelas que levaremos conosco
por toda a vida.
Ao Dr. Bartolomeu Lima Filho, juiz da 1.ª Vara do Tribunal do Júri de Campina
Grande, por ter me concedido irrestrito acesso a todos os processos do órgão. Aos servidores
da vara, José Carlos, Lúcio, Davi, Eriberto e Mírcia, pela ajuda que me deram durante a
pesquisa de campo, por terem respondido tão prontamente a todas as minhas dúvidas e por
terem me proporcionado uma experiência tão agradável durante o tempo em que convivemos
quase diariamente.
Ao professor Tiago Almeida, do Departamento de Estatística da UEPB, pela atenção e
pelo auxílio nos procedimentos metodológicos desta pesquisa.
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LISTA DE TABELAS
Tabela 01 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e seus componentes (Campina
Grande, 2000-2010)
Tabela 02 – Vulnerabilidade social (Campina Grande, 2000-2010)
Tabela 03 - Processos distribuídos nos tribunais de júri (Campina Grande, 2001 a 2010)
Tabela 04 – Definição da amostra
Tabela 05 – Distribuição de réus e vítimas segundo a idade (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 06 – Cor dos réus e das vítimas (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 07– Grau de escolaridade de réus e vítimas (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 08 – Profissão de réus e vítimas (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 09 – Registro antecedentes de réus e vítimas (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela10 – Distribuição de réus e vítimas conforme bairro de residência e distribuição de
crimes conforme bairro de ocorrência (Campina Grande, 2001-2010).
Tabela 11 – Número de coincidências entre bairro de residência da vítima (V) e/ou do réu (R)
e/ou de ocorrência do crime (C) (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 12 – Emprego de arma de fogo no crime (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 13 – Dia da semana em que ocorreu o crime (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 14 – Horário de ocorrência do crime (Campina Grande, 2001-2010)
Tabela 15 – Crimes relacionados ao uso e/ou tráfico de drogas (Campina Grande, 2001-
2010)
Tabela 16 – Distribuição dos homicídios conforme motivação a eles associadas (Campina
Grande, 2001-2010)
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LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Distribuição de réus e vítimas segundo a idade (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 02 – Cor dos réus e das vítimas (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 03 – Grau de escolaridade dos réus (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 04 - Distribuição de réus e vítimas conforme a profissão (Campina Grande, 2001-
2010)
Figura 05 – Registro de antecedentes dos réus (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 06 – Registro de antecedentes das vítimas (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 07– Distribuição de réus e vítimas conforme bairro de residência e distribuição de
crimes conforme bairro de ocorrência (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 08 – Número de coincidências entre bairro de residência da vítima (V) e/ou do réu (R)
e/ou de ocorrência do crime (C) (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 09 – Mapa dos Bairros de Campina Grande
Figura 10 – Emprego de arma de fogo no crime (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 11 – Dia da semana em que ocorreu o crime (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 12 – Horário de ocorrência do crime (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 13 - Crimes praticados em contexto de uso de álcool (Campina Grande, 2001-2010)
Figura 14 - Crimes relacionados ao uso e/ou tráfico de drogas (Campina Grande, 2001-2010)
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RESUMO
A violência tem ocupado um lugar central no debate político e científico contemporâneo. Este
trabalho aborda a violência de forma contextualizada com o cenário socioeconômico do
município de Campina Grande/PB, no período entre 2000 e 2010. A violência é enfocada
como uma das variáveis do processo de desenvolvimento, de forma que se possa analisar se
aquele fenômeno pode ser associado a um determinado modelo de desenvolvimento. São
abordadas teorias do desenvolvimento que o consideram como um processo distinto e mais
abrangente do que o crescimento econômico, complexificando-o com elementos imateriais.
Para os fins propostos nesse estudo, o fenômeno violento, embora conceituado de forma
abrangente, é examinado a partir da violência homicida. Ademais, como se busca identificar
se há alguma relação entre essa forma de violência letal e o desenvolvimento, são analisados
os dados constantes nos documentos catalogados em processos submetidos à 1.ª Vara do
Tribunal do Júri de Campina Grande/PB. A partir das variáveis colhidas nos materiais textuais
disponíveis nesses processos, delineia-se o perfil das pessoas que figuram como autoras ou
vítimas dos homicídios, bem como o contexto e a motivação subjacente aos crimes. Assim,
pretende-se compreender o cenário em que se deu a escalada da violência letal no município
no período em referência, bem como se esse incremento pode ter sido causado ou estimulado
por um determinado padrão de desenvolvimento. Ao fim, a análise dos dados coletados
conduz à conclusão de que, por não tangenciar a dimensão substancial do desenvolvimento e
por não ser vivenciada por larga parcela da população, a simples melhoria nos tradicionais
indicadores socioeconômicos da cidade não tem impedido a manifestação letal da violência.
PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento; Violência; Homicídio; Tribunal do júri.
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ABSTRACT
Violence has occupied a central place at the political and scientific discussion in
contemporary. The analysis is centered in the violence manifestation, collating it and socio-
economic indicators from the city of Campina Grande-PB, in the years 2000-2010. Violence
is focused as one of the components of the development process, thus, it aims to analyze
whether violence may be related to a certain development model. First of all, will be
approached development theories that consider it a distinct and larger process than economic
growth, complexifying it with immaterial elements. For the purposes of this study, violent
phenomenon, although considered in a wide way, is studied as of the homicide violent.
Furthermore, as it tries to identify if there is any relation between this form of lethal violence
and development, the information contained in the documents of the judicial proceedings of
the 1st. Jury Court from Campina Grande. According to the information collected in the texts
that compose the proceedings, the profile of the authors and victims of the homicides is
established, as well as the context and the reasons associated to these crimes. So, it intends to
comprehend the scenery in which the lethal violence has raised in the city in the period
mentioned above, even as the variation at these criminal data could have been caused or
stimulated by a certain development model. In the end, the analysis of the collected data leads
to the conclusion that, as it doesn‟t reaches the development substantive dimension and as it is
not experienced by a large part of the population, the mere improvement in the traditional
socio-economic indicators hasn‟t prevented the lethal violence manifestation.
KEYWORDS: Development; Violence; Homicide; Jury Court.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................13
CAPÍTULO I ..........................................................................................................................19
FUNDAMENTAÇÃO TÉORICA ............................................................................19
1.1. O desenvolvimento na perspectiva de Celso Furtado e Amartya Sen ..................19
1.1.1 Celso Furtado: desenvolvimento e criatividade ..................................................19
1.1.2 Amartya Sen: desenvolvimento e liberdade ....................................................... 26
1. 2. Sociedade e desenvolvimento ............................................................................. 33
1.2.1 A força do social sobre o indivíduo ................................................................... 33
1.2.2 Desintegração social e violência ........................................................................ 39
1.2.3 Violência letal e direito....................................................................................... 48
CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 53
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.............................................................53
2.1. Corpus da pesquisa e definição da amostra....................................................... ...56
2.2. Variáveis analisadas................................................................................... ...........59
CAPÍTULO III....................................................................................................................... 61
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS...........................................................................61
3.1. Perfil dos réus e vítimas ..................................................... ................................62
3. 1. 1. Gênero ............................................................................................................. 62
3. 1. 2. Idade ................................................................................................................ 62
3. 1. 3. Cor ................................................................................................................... 64
3. 1. 4. Grau de escolaridade ........................................................................................67
3. 1. 5. Profissão............................................................................................................69
3. 1. 6. Antecedentes criminais ................................................................................... 73
3.2. Contexto dos homicídios .....................................................................................76
3. 2. 1. Bairro de ocorrência do crime/ Bairro de residência de réus e vítimas.............77
3. 2. 2. Emprego de arma de fogo ................................................................................83
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3. 2. 3. Dia da semana e horário .......................................................................84
3. 2. 4. Uso de álcool ......................................................................................86
3. 2. 5. Uso/tráfico de drogas ...........................................................................87
3. 2. 5. Pluralidade de autores ..........................................................................89
3. 2. 6. Motivação ..........................................................................................90
3. 2. 6. 1. Rixa anterior (não relacionada a crime) ...............................................94
3. 2. 6. 2. Rixa anterior (relacionada a crime) ..............................................................96
3. 2. 6. 3. Desentendimento ocasional não relacionado ao uso de álcool ..................97
3. 2. 6. 4. Desentendimento ocasional relacionado ao uso de álcool ...........................97
3. 2. 6. 5. Dinâmica do tráfico/uso de drogas ...............................................................99
3. 2. 6. 6. Legítima defesa, Passional e Conflito intrafamiliar ...................................100
3. 2. 6. 7. Vingança (de crime anterior que não homicídio, tentativa de homicídio ou
ameaça) ......................................................................................................................101
3. 2. 6. 8. Vingança (de homicídio, tentativa de homicídio ou ameaça) ...................102
CAPÍTULO IV......................................................................................................................104
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................104
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................106
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INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a violência tem ocupado um lugar central na pauta política,
midiática e social, passando a ser encarada como núcleo irradiador de uma sensação de
insegurança por todo o mundo. Ilustrativo desse pânico generalizado é o resultado da pesquisa
realizada em 2012 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre a percepção da
segurança pública nas regiões brasileiras, a qual revelou que 73,4% dos nordestinos têm muito
medo de serem assassinados, enquanto apenas 6,1% não cultivam nenhum receio dessa
violência letal (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2012). No mesmo
sentido, um levantamento feito pelo Instituto Datafolha apontou que a violência/segurança é a
segunda maior preocupação dos brasileiros, havendo sido apontada principalmente pelos
entrevistados pertencentes às camadas mais ricas da população (SEGURANÇA, 2014).
Na verdade, os discursos alarmistas sustentados pelos meios de comunicação de
massa – e por vezes também pela comunidade científica - têm atendido a uma intenção
política de rechaçar o Estado como ente responsável pela promoção de uma sociedade
inclusiva. O que afirmam, por outro lado, é que irremediavelmente uma parte da população há
de ficar excluída, incumbindo ao Estado apenas o dever de controlá-la para que não cause
demasiados problemas ao restante da sociedade.
Tanto em noticiários e conversas diárias quanto em campanhas eleitorais e debates
políticos, os temas afetos ao crime - agora sob a rubrica de “segurança pública” - deslocaram
da discussão pública assuntos relacionados à educação, trabalho, moradia, previdência, saúde
e demais direitos sociais. Subjacente a isso, tem-se a ideia de que o poder punitivo estatal está
apto a resolver todos os conflitos sociais, seja mediante a mera tipificação de determinada
conduta como crime, seja através do endurecimento das penas ou da ampliação da parcela da
população penalmente imputável (reduzindo-se a menoridade penal, para citar um exemplo
que está na ordem do dia do debate político atual).
É por isso que não há como se pensar a sociedade contemporânea sem atribuir um
papel verdadeiramente protagonista ao fenômeno da violência.
O presente trabalho aborda a violência de forma contextualizada com o cenário
socioeconômico do município de Campina Grande/PB no período entre 2000 e 2010. A
violência será enfocada, assim, como uma das variáveis do processo de desenvolvimento, de
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forma que se possa analisar se aquele fenômeno se relaciona a um determinado modelo de
desenvolvimento.
Segundo o Relatório Regional de Desenvolvimento Humano 2013-2014, elaborado
pelo PNUD, a insegurança é um desafio comum e um obstáculo para o desenvolvimento
social e econômico em todos os países da América Latina. Contudo, o relatório aponta que,
para reduzir a insegurança na região de forma duradoura, mais do que medidas de controle do
delito, são necessárias políticas voltadas à melhoria da qualidade de vida da população,
prevenindo-se a violência por meio de um crescimento inclusivo, com um sistema de justiça
penal eficaz e com medidas que estimulem a convivência social. (PROGRAMA DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2013)
Quanto ao desenvolvimento, o conceito será enfatizado sob a perspectiva que
abertamente o diferencia do mero crescimento econômico, tratando-o como um processo de
mudança social associado à inventividade, criador de novos valores culturais e liberador de
energias humanas. É, em larga medida, o enfoque proposto por Celso Furtado, economista
paraibano e renomado teórico do desenvolvimento (e do subdesenvolvimento) (FURTADO,
1961). Sem embargo dessa concepção, o estudo também se fundamentará na ideia de
desenvolvimento como libertação, de modo a encarar a expansão das liberdades básicas do ser
humano como meio e fim do processo de desenvolvimento. Aqui, trata-se da teoria defendida
por Amartya Sen, economista indiano laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1998
(SEN, 2010).
A definição de violência será empreendida através de sua contraposição ao conceito
de poder, tal como teorizado pela filósofa alemã Hannah Arendt (2001). Nessa perspectiva, a
violência é tida no máximo como um meio para consecução de um fim absoluto (o poder, o
agir em conjunto), podendo mesmo chegar a ser justificada, embora nunca legitimada. É
justamente nos momentos de desagregação do poder que a sociedade se torna mais vulnerável
aos atos de violência, correndo-se o risco de que os meios substituam os fins. (ARENDT,
2001, p. 41). Outras conceitualizações do fenômeno, às quais também se reportam esta
pesquisa, são as que foram levadas a cabo por Michel Wieviorka (2007), para quem a
violência traduz a existência de problemas sociais que não são transformados em debates e em
conflitos de sociedade, sendo assim o negativo do conflito institucionalizável (WIEVIORKA,
2007, p. 1150), e por Loic Wacquant (2011), que argumenta contra o protagonismo da
violência do Estado penal no tratamento dos problemas causados pelas camadas mais pobres
da população, deslocando-se ao segundo plano o tratamento social da miséria
(WACQUANT, 2011, p. 11).
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No entanto, apesar de concordar com Arendt, Wieviorka e Wacquant em suas
abrangentes definições do fenômeno violento, a presente investigação tem como foco de
análise a evolução da violência em Campina Grande/PB. Assim, para uma melhor apreensão
do objeto de pesquisa, serão tomados como indicadores da violência os crimes de homicídio
praticados no município. Esse recorte se faz necessário tanto porque nem todas as formas de
violência são passíveis de registro, quanto porque, mesmo nos casos em que existem esses
assentamentos – como ocorre com os crimes - os dados contabilizados representam apenas
uma mínima parcela da violência realmente perpetrada.
Porém, não é exclusivamente em razão de o subregistro ser menor no caso dos
homicídios que serão esses o critério adotado nesta pesquisa para apontar a violência. Na
verdade, a utilização desse indicador também parte da consideração de que, ainda que a
violência possa assumir diversas formas, manifestando-se tanto em condutas tipificadas como
crime quanto em atos cotidianos que escapam à legislação penal, é no ato de ceifar a vida
humana que o fenômeno violento se exprime em seu mais alto grau.
Com o intuito de averiguar a existência de alguma relação entre a violência e o
desenvolvimento, este estudo procura identificar no modelo de desenvolvimento
contemporâneo elementos que possam ser tomados como fatores propulsores do crime, a
exemplo de seu caráter desigual e excludente, da elevação do consumismo ao patamar de
padrão para se encarar todas as atividades dos sujeitos da sociedade atual e do
enfraquecimento dos laços de solidariedade social. Dito de outro modo, pretende-se examinar
se a criminalidade violenta é uma disfunção do desenvolvimento ou se, ao contrário, é ela um
produto próprio e inescapável de uma sociedade onde a maioria dos indivíduos não pode
aceder à felicidade e ao sucesso identificados com o consumo em excesso.
A associação do desenvolvimento à violência tem assumido tanto relevo na pauta
política contemporânea que os dirigentes estatais não raras vezes se valem do crescimento
econômico para legitimar a violência. Um exemplo disso foram as declarações prestadas no
início de 2014 pela governadora do estado do Maranhão, Roseana Sarney. Ao tentar justificar
(ou minimizar a gravidade) os assassinatos cruéis ocorridos dentro do presídio de Pedrinhas,
em São Luís/MA, a governadora declarou que o recrudescimento da violência se deveria ao
crescimento econômico do estado. Segundo ela: “É um Estado que está se desenvolvendo,
crescendo. E um dos problemas que está piorando a segurança do nosso estado é que nosso
estado está mais rico, mais populoso também. [...] O estado está indo muito bem.”
(VIOLÊNCIA, 2014)
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A presente pesquisa, integrante do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional, analisará a manifestação da violência na cidade de Campina Grande/PB. Nesse
município, no período compreendido entre os anos 2000 e 2010, o tradicional Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM, que sintetiza indicadores de educação,
longevidade e renda, apresentou um substancial progresso, partindo do patamar de 0,601 em
2001 para o de 0,720 em 2010. Aqui, vale registrar que o IDHM é considerado alto quando se
situa entre 0,700 e 0,799. Além disso, do primeiro ao último ano do período em referência, a
extrema pobreza, consistente na proporção da população com renda familiar per capita menor
do que R$70,00 (em agosto de 2010), caiu de uma cifra de 12,07% para 5,02%. A
desigualdade também diminuiu, com a concentração de renda medida pelo Índice de Gini
passando de 0,62 em 2000 para 0,58 em 2010. Por fim, a taxa de desocupação,
correspondente ao percentual da população economicamente ativa que estava desocupada,
saiu de 17,65% em 2000 para 10,53% em 2010. (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA O DESENVOLVIMENTO, 2013)
O panorama desenhado por esses indicadores, que apresentam importantes aspectos
do contexto socioeconômico do município na década sob análise, parece sinalizar para um
processo de verdadeira melhoria das condições de vida da população campinense.
Contudo, em contraste com esse cenário aparentemente animador, nessa mesma
década observou-se também um substancial incremento da violência letal na Paraíba (que em
2010 passou a integrar o rol dos seis estados mais violentos do país) (NOBREGA JR;
ZAVERUCHA, 2013), em Campina Grande inclusive. Nesse município, conforme os dados
fornecidos pelo SIM, no ano 2000 ocorreram 125 homicídios, enquanto em 2010 o número
saltou para 218 (SISTEMA DE INFORMAÇÕES DE MORTALIDADE, 2014). Com essa
escalada das mortes por homicídio, Campina Grande passou a figurar como a quarta mais
violenta na lista de cidades de estatura populacional semelhante. (NOBREGA JR;
ZAVERUCHA, 2013)
Assim, um aparente conflito analisado no curso deste trabalho diz respeito a esses
caminhos opostos que aparentemente têm tomado as condições de vida e a violência letal no
município pesquisado. A propósito, sabe-se que a miséria, a baixa escolaridade, a
desigualdade e o desemprego têm sido tradicionalmente listados como fatores propulsores do
crime. Porém, os dados brevemente apresentados acima já deixam entrever que o relativo
progresso nessa dimensão estrutural não tem sido acompanhado pelo decréscimo ou pela
estagnação da violência em Campina Grande.
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Por isso, esta dissertação procede a um cotejo entre os indicadores de violência e os
socioeconômicos e de qualidade de vida, fazendo-o de forma a tentar delinear qual seria a
relação que esses dados mantêm entre si.
O presente estudo se propõe, em suma, esboçar uma possível resposta ao problema:
se indicadores de qualidade de vida apresentam uma evolução positiva, e se os índices de
homicídio aumentam, quais são as relações existentes entre desenvolvimento e a violência no
município de Campina Grande Grande/PB entre os anos de 2000-2010?
A metodologia através da qual se pretende buscar respostas ao problema apresentado
será exposta detalhadamente no Capítulo II da presente dissertação, razão pela qual, nesse
tópico introdutório, cabe adiantar apenas que o perfil dos autores e vítimas dos homicídios,
bem como o contexto e a motivação subjacente a esses crimes serão apresentados a partir da
análise das informações coletadas nos processos judiciais submetidos à jurisdição da 1.ª Vara
do Tribunal do Júri em Campina Grande.
Como já se adiantou linhas atrás, o estudo da temática a ser abordada por este
trabalho mostra-se da maior relevância, visto que, como bem enfatizado por Celso Furtado, “a
ideia de desenvolvimento está no centro da visão de mundo que prevalece na época atual [...]
e uma reflexão sobre o desenvolvimento tem implícita uma teoria geral do homem, uma
antropologia filosófica” (FURTADO, 2011, p. 170).
Na verdade, a discussão gerada em torno do desenvolvimento e da violência é
permeada por intensas controvérsias, nos âmbitos internacional e nacional. É que, embora
ainda encontre defensores a concepção do desenvolvimento tão-somente como crescimento
econômico, desvinculado de quaisquer preocupações com os direitos fundamentais do ser
humano, a ideia do processo de desenvolvimento conduzido como políticas públicas
garantidoras de todos os direitos humanos – especialmente dos direitos sociais à educação,
saúde, moradia, previdência, trabalho - vem ganhando cada vez mais apoio nos círculos
acadêmicos.
Além disso, com este trabalho pretende-se enfatizar o desenvolvimento como um
processo no qual a acumulação deve conduzir ao enriquecimento do universo valorativo do
ser humano, ao alargamento do patrimônio existencial das pessoas e à realização das
múltiplas potencialidades dos membros da sociedade. Essa ideia contrapõe-se à lógica
segundo a qual a capacidade inventiva do homem deve ser canalizada apenas para o processo
acumulativo e para a elaboração de técnicas tendentes a ampliar o raio de abrangência do agir
humano.
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18
Trata-se, na verdade, de uma investigação que tentará chamar a atenção para o
importante problema da subordinação dos fins pelos instrumentos do desenvolvimento, com o
processo de crescimento econômico submetendo a criação de valores a sua própria lógica - o
que pode ser exemplificado com a emergência de valores como a soberania do consumidor.
A par disso, a pesquisa igualmente se ocupa do exame do incremento da violência
experimentado nos últimos anos, fazendo-o com o objetivo de analisar se, em uma sociedade
pautada pelos valores consumistas, onde o individualismo é exarcebado e as
responsabilidades por fenômenos sociais (como o violento) são privatizadas, a violência pode
ser considerada como uma variável integrante do processo de desenvolvimento, e não como
um simples efeito colateral de um desenvolvimento virtuoso de per se.
Portanto, esta investigação sobreleva de importância ao ser considerada por seu
propósito de discussão acadêmica, no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento
Regional, de uma concepção do desenvolvimento como processo orientado ao enriquecimento
de valores do ser humano e à expansão da proteção dos direitos humanos. Essa proposta
contrapõe-se ao modelo de desenvolvimento que tem a violência como um de seus elementos
mais perversos e, não obstante, a cada dia mais evidente.
Com efeito, é chegada a hora de trazer para o núcleo da pesquisa em
desenvolvimento o fenômeno que atualmente tem ocupado um lugar central na agenda das
preocupações políticas, privadas e midiáticas: a violência. Com isso, poder-se-á compreender
o comportamento individual violento dentro de um contexto socioeconômico, deixando-se
tanto de atribuir os desvios criminosos à suposta degeneração moral de indivíduos quanto de
absolver completamente uma cultura e estrutura social demasiadamente férteis para a escalada
da violência.
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CAPÍTULO I
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1. O desenvolvimento na perspectiva de Celso Furtado e Amartya Sen
1. 1. 1. Celso Furtado: desenvolvimento e criatividade
O desenvolvimento é um processo que tem sido conceituado de diversas formas e,
neste estudo, serão considerados especialmente os enfoques teóricos levados a cabo por Celso
Furtado e Amartya Sen. Trata-se de teóricos que pensaram o processo de desenvolvimento
sob diferentes perspectivas, mas que convergem ao encampar um acepção do
desenvolvimento como fenômeno não só distinto, mas também muito mais complexo do que
o crescimento econômico, já que fortemente relacionado a valores imateriais.
Celso Furtado, economista e cientista social brasileiro, é autor de uma vasta produção
científica, voltada principalmente ao estudo do desenvolvimento. Sua obra é formada
basicamente por cerca de trinta livros e algumas dezenas de artigos, publicados em não menos
do que quinze idiomas. O principal livro de Furtado, “Formação Econômica do Brasil”
(1959), é considerado um dos maiores clássicos das ciências sociais brasileiras, e foi no bojo
dessa obra que Furtado definiu a especificidade do capitalismo brasileiro e, indo além,
forneceu subsídios teóricos e históricos para a atuação política e estatal comprometidas com a
remoção dos entraves ao desenvolvimento. (BRANDÃO, 2002)
No pensamento furtadiano, é acentuada a influência do positivismo da ciência
experimental, das concepções econômicas de Keynes (principalmente na interpretação das
consequências da crise de 1929 sobre a economia brasileira), da articulação entre teoria e
história propugnada por Marx e da forma de conceber o papel do intelectual e a necessidade
do planejamento na democracia de Mannheim. (BRANDÃO, 2002)
Como homem público, Furtado integrou o corpo científico da Comissão Econômica
das Nações Unidas para América Latina – CEPAL, órgão que viria ser o principal fomentador
da reforma intelectual e moral do desenvolvimento latino-americano da segunda metade do
século XX (BRANDÃO, 2002). Ainda no âmbito da ONU, liderou, durante o segundo
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governo de Getúlio Vargas, a comissão elaboradora do “Esboço de um Programa de
Desenvolvimento para o Brasil”.
No Governo Juscelino Kubistchek, Furtado preparou o plano de recuperação e
desenvolvimento do Nordeste, que, posteriormente, serviria de fundamento para a criação da
Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), da qual o paraibano foi
superintendente até 1964. Já no Governo João Goulart, Furtado foi designado ministro do
Planejamento, ocasião em que elaborou o Plano Trienal, que, no entanto, não obteve êxito ao
tentar conter a inflação, impulsionar o desenvolvimento brasileiro e garantir o regime
democrático.
Com o golpe militar de 1964, Furtado teve seus direitos políticos cassados e passou à
condição de exilado político. Alijado do país, embora sem nunca haver perdido o contato com
a economia e a política brasileiras, o cientista voltou seus esforços à vida acadêmica,
tornando-se professor em Yale e, depois, em Sorbonne. Somente em 1985, com o
restabelecimento do regime democrático no Brasil, Furtado volta ao país e assume o cargo de
ministro da Cultura do Governo José Sarney.
Em perspectiva histórica, Furtado destaca que, na análise da formação dos antigos
Impérios, o desenvolvimento foi identificado com a capacidade de aglutinação de
comunidades. A partir do momento em que se formou um sistema regular de comunicações
entre as comunidades subordinadas a um mesmo Império, a estrutura política daí derivada
criou as condições necessárias para a evolução da atividade comercial. A partir de então, o
sistema de apropriação do excedente, que antes tomava por alicerce a escravização de povos,
passou-se a fundamentar no lucro comercial. Nesse segundo sistema de apropriação do
excedente econômico, observa-se que, mais do que um mero fenômeno de transferência de
rendas, o desenvolvimento referia-se à criação de uma nova renda atribuída ao aumento da
produtividade.
No século VIII, com o advento do feudalismo na Europa, tem-se a configuração de um
sistema econômico fechado e com um nível relativamente alto de consumo. Na economia
feudal, a produção, composta basicamente por bens perecíveis, não se mostrava passível de
acumulação. As únicas formas de acumulação então existentes eram a construção de vultosas
obras ou a formação de grandes séquitos ao redor dos senhores feudais.
A retomada do desenvolvimento europeu ocorreu somente no século XI, com a
formação de unidades econômicas maiores. Tal processo foi desencadeado pelas invasões
árabes ao Império Bizantino, privando-o de suas fontes de abastecimento situadas ao sul e ao
leste do Mediterrâneo, ensejando, com isso, o nascimento de correntes comerciais ao longo de
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todo o litoral da Europa. Com a intensa atividade dos mercadores, constituiu-se uma nova
classe – a burguesia -, cujos interesses discrepavam dos anseios da antiga elite feudal. O
crescimento da burguesia e a aliança desta classe ao poder real na luta contra a elite feudal
criaram o pano de fundo necessário para que as reivindicações burguesas por segurança e por
regulamentação na atividade comercial ensejassem a formação dos Estados nacionais.
Os Estados surgiram, inicialmente, como uma forma de proteção e de regulamentação
da sociedade de base urbana que então se formava. A grande burguesia uniu-se para defender-
se dentro dos limites nacionais, passando a exigir do governo a tomada de medidas
protecionistas para os comerciantes locais. Contudo, a proteção aos mercados internos gerou
uma série de tensões no comércio europeu, levando os empresários locais a reduzirem suas
despesas para conseguirem lutar contra a alta das tarifas aduaneiras, bem como para concorrer
com capitalistas locais cada vez mais resguardados. Em conseqüência, os capitalistas
passaram a demandar organizações coletivas que aumentassem a eficiência e diminuíssem os
custos da produção: surgem, então, as fábricas. Nesse momento, houve uma redução dos
salários dos trabalhadores e uma divisão mais racional do trabalho, com a técnica de produção
alçada ao patamar de elemento fundamental do sistema econômico.
Com a Revolução Industrial que ocorreu na Europa, no século XVIII, houve uma
ruptura econômica que exerceu profundas influências no processo de desenvolvimento de
praticamente todas as regiões do globo. Para Furtado, a atuação desse núcleo dinâmico
industrial deu-se em três principais linhas. (FURTADO, 1961, p. 92)
A primeira delas é verificada dentro da Europa, no âmbito dos estados nacionais
formados após o declínio da estrutura feudal. Esse desenvolvimento teria sido marcado pelo
desmantelamento da economia artesanal pré-capitalista, o que ensejou uma maior
produtividade econômica e, consequentemente, a absorção dos fatores liberados com essas
mudanças. A segunda linha corresponde a um deslocamento das fronteiras do
desenvolvimento para terras até então desocupadas e que guardavam características
semelhantes às da Europa. Aqui, o processo de desenvolvimento guardaria similaridades com
o Europeu, uma vez que os emigrantes transferiam às novas terras as técnicas e os hábitos de
consumo europeus, implantando-os em um contexto de abundância de recursos naturais, o que
teria propiciado o alcance rápido de elevados níveis de produtividade e de renda. Por fim, a
terceira linha da expansão do desenvolvimento industrial europeu teria ocorrido em direção a
terras já ocupadas e geralmente povoadas, nas quais predominavam uma economia de
natureza pré-capitalista. Para Furtado, esse contato assumiu formas distintas, de abertura de
novas linhas de comércio ou de busca por incrementos na produção de matéria-prima.
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Dessa última dimensão do desenvolvimento no processo de industrialização europeu
teria resultado a formação de estruturas híbridas nas regiões até então caracterizadas por uma
economia pré-capitalista, em que uma parte do sistema operava de forma semelhante a uma
economia capitalista, enquanto outra permanecia atuando nos moldes da estrutura arcaica
preexistente. Para Furtado, esse tipo de dualismo é o rasgo fundamental do fenômeno do
subdesenvolvimento contemporâneo, daí devendo-se concluir que esse processo não constitui
um estágio inicial pelo qual passaram as economias desenvolvidas, mas um processo histórico
dotado de inegável autonomia. Com efeito, o economista sustenta que tais constatações:
[...] explicam por que a expansão do comércio internacional no século XIX –
expansão decorrente do desenvolvimento industrial da Europa – não determinou
uma propagação, na mesma escala, do sistema capitalista de produção. O
deslocamento da fronteira econômica europeia traduziu-se, quase sempre, na
formação de economias híbridas em que um núcleo capitalista passava a coexistir,
pacificamente, com uma estrutura arcaica. Na verdade, era raro vermos o chamado
núcleo capitalista modificar as condições estruturais preexistentes, pois estava
ligado à economia local apenas como elemento formador de uma massa de salários.
(FURTADO, 1961, p. 97)
Uma diferença crucial entre o desenvolvimento industrial ocorrido no âmbito europeu
e aquele sucedido nas regiões onde se formaram estruturas heterogêneas evidencia o elemento
dinâmico dos sistema econômicos. No primeiro, a introdução de novas técnicas e de novas
combinações de fatores de produção possibilitaram uma baixa nos custos dos produtos e o
conseqüente aumento da oferta. No segundo, o elemento dinâmico deu-se pelo lado da
procura, porquanto o desenvolvimento foi impulsionado por fatores exógenos (de fora para
dentro) através do aumento da busca por manufaturas obtidas por meio da importação.
A industrialização ocasionada pela procura de manufaturas, num contexto
internacional que inviabilizava a importação desses produtos,1 iniciou-se com o
estabelecimento de indústrias de bens de consumo ligadas a desejos supérfluos das elites
nacionais. Com isso, formou-se uma economia de estrutura complexa, que, segundo Furtado,
poderia ser subdividida em três setores básicos: o primeiro abrangia as atividades de
subsistência, com reduzido fluxo monetário; o segundo correspondia às atividades voltadas ao
comércio exterior; o terceiro, por sua vez, vinculava-se à demanda interna por produtos
manufaturados.
O aparato produtivo das economias periféricas foi incrementado para atender às
necessidades de uma minoria rica desses países, imitando os padrões de consumo das
1 Como, por exemplo, aquele com que se deparou o Brasil, após a crise de 1929.
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economias centrais. Dessa forma, gerou-se uma estrutura de atividades manufatureiras
descentralizada e sem correspondência com as necessidades reais da maioria da população.
Significa que os países periféricos não se industrializaram no sentido de garantir a sua própria
autonomia produtiva, mas localizaram-se em subsistemas dependentes. Nesse contexto, os
tipos de indústrias copiadas pela periferia demandaram uma grande quantidade de capital, sem
que houvesse correspondência com a disponibilidade relativa de recursos. Na sequência,
impediu-se, de certa forma, o investimento em setores produtivos que, de fato, atendessem aos
interesses da maioria da população. Considerando que o progresso tecnológico nas técnicas de
produção se difunde por meio da elevação do coeficiente de capital, esse processo de
estabelecimento de indústrias ligadas aos desejos de ricas minorias implicou uma lenta
distribuição dos avanços técnicos pelos outros setores da indústria que não interessavam
diretamente às elites, obstruindo alguma viragem efetiva no sentido da homogeneização da
estrutura produtiva.
Não obstante esse panorama, o cientista considera que a superação do
subdesenvolvimento é possível, desde que seja abandonado esse mimetismo cultural
enraizado na noção de modernização assimilada pelos países periféricos. Para Furtado, o
desenvolvimento não será fruto da livre atuação das forças de mercado nem da
universalização do padrão de vida das populações dos países centrais, somente vindo a
ocorrer quando as economias periféricas passarem a assumir sua própria identidade. Seria
preciso deixar de reproduzir os padrões de consumo dos países ricos e passar a ter como foco
a satisfação das necessidades básicas da maioria de suas populações. Nas palavras de Furtado,
O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o
curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da
acumulação num curto horizonte de tempo para a lógica dos fins em função do
bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos.
Devemos nos empenhar para que essa tarefa seja a maior dentre as que preocuparão
os homens no correr do próximo século: estabelecer novas prioridades para a ação
política em função de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao alcance
de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico. O fantasma do
subdesenvolvimento deve ser exorcizado. O objetivo deixaria de ser a
reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a
satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a
educação concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos
planos ético, estético e da ação solidária. (FURTADO, 1991, grifo nosso)
Ao voltar-se para a realidade do Brasil, Furtado ressalta que a heterogeneidade
estrutural do país, consequente da expansão industrial europeia, reproduziu no plano interno a
lacuna existente entre o centro industrializado e a periferia explorada (BRANDÃO, 2002).
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Desse modo, e considerando que o processo de industrialização aqui implantado teria como
elemento dinâmico a demanda externa, obstava-se o estabelecimento de um sistema industrial
capaz de gerar seu próprio dinamismo. Para superar o subdesenvolvimento, era preciso que a
classe dominante se incumbisse da tarefa de conduzir o país para a industrialização e
abandonasse, de uma vez, a ânsia pela imitação dos padrões de consumo dos países centrais.
Com efeito, no pensamento furtadiano, o desenvolvimento desponta como o único
meio capaz de humanizar a vida da maioria da população brasileira. Nesse sentido, o
desenvolvimento significaria mais do que uma determinada combinação de índices formais: o
processo de desenvolvimento passaria a identificar-se, na verdade, com a incorporação de
padrões institucionais, culturais e econômicos que, pela via democrática, aproximem a nação
brasileira da noção de modernidade. Essa modernidade, segundo Furtado, somente será
alcançada com a efetiva participação das massas na vida política, lutando pela extirpação das
práticas predatórias pré-capitalistas de que ainda é vítima o trabalhador brasileiro. Deve ser
dada ao processo de desenvolvimento uma orientação verdadeiramente igualitária, que
favoreça formas coletivas de consumo em detrimento da diversificação dos padrões
consumistas de ricas minorais.
Além disso, um padrão de desenvolvimento fundado na exclusão também mereceria
ser rechaçado por uma questão de justiça social, seja porque a pobreza enseja uma saturação
da capacidade de crescimento endógeno de uma economia capitalista, seja porque a exclusão
impulsiona soluções políticas radicais (golpes, ditaduras, conflitos armados etc.). (CEPEDA,
2014)
Na defesa de uma acepção do desenvolvimento conectado ao universo valorativo do
ser humano, Furtado assinala que, na história da humanidade, só excepcionalmente o
excedente econômico foi canalizado para o desenvolvimento, ou seja, para a realização das
potencialidades múltiplas do ser humano. Para ele,
Em rigor, é quando a capacidade criativa do ser humano se volta ao descobrimento
de si mesmo, se empenha em enriquecer seu universo de valores, que se pode falar
em desenvolvimento. Quando a acumulação conduz à criação de valores que se
difundem em segmentos importantes da coletividade o desenvolvimento se realiza.
(FURTADO, 2011, p. 172)
Furtado sustenta ainda que uma característica sobressalente da civilização industrial é
a canalização da capacidade inventiva para a criação tecnológica, para o processo de
acumulação. Isso também explicaria por que os estudos sobre o desenvolvimento teriam dado
tanta ênfase à lógica da acumulação em detrimento de outros aspectos (inclusive até mais
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importantes) do processo de desenvolvimento. Segundo o pensador, dentro dessa ótica a
difusão da civilização industrial se resumiria ao avanço da dominação sobre a natureza e à
maior eficiência na utilização de recursos escassos. (FURTADO, 2011, p. 173)
Contrapondo-se a essa artificiosa simplificação da difusão da civilização ocidental,
Furtado encampou uma teoria do subdesenvolvimento por meio da qual denunciou a falsa
neutralidade das técnicas e chamou a atenção para uma dimensão oculta do desenvolvimento:
a criação de valores substantivos. Nesse sentido, sua defesa de um desenvolvimento endógeno
“não é outra coisa que a faculdade que possui uma comunidade humana de ordenar o processo
de acumulação em função de prioridades definidas por ela mesma”. (FURTADO, 2011, p.
173-174).
Invertendo a lógica que toma a produção do excedente e o crescimento econômico
como o fim último (ou o sinônimo) do desenvolvimento, Furtado (2008) assevera que é
quando associado à criatividade que o desenvolvimento adquire certa nitidez, sendo a
emergência de um excedente adicional um fato passível de revelar aos membros da sociedade
uma miríade de opções. Então, mais do que meramente reproduzir suas estruturas tradicionais,
as sociedades podem se valer do excedente para ampliar o campo do imediatamente possível,
no qual se concretizam as potencialidades humanas. De outro lado, assumindo a feição de
uma via de mão dupla, a criatividade, na medida em que estimula a busca por um novo
excedente e impulsiona o surgimento de novos valores culturais, também pode ser tida como a
fonte última do desenvolvimento. (FURTADO, 2013, p. 462)
Segundo o pensamento furtadiano, os impulsos mais fundamentais do homem, gerados
pela sua necessidade de auto-identificação e de se situar no mundo – os quais seriam a base de
toda atividade criativa, como a reflexão filosófica, a invenção artística, a pesquisa científica
básica etc. - foram subordinados ao processo de modificação do mundo físico pela
acumulação. São suas palavras: “Atrofiaram-se os vínculos de criatividade com a vida
humana concebida como um fim em si mesma, e hipertrofiaram-se suas ligações com os
instrumentos que utiliza o homem para transformar o mundo.” (FURTADO, 2013, p. 464)
Diante desse esboço sobre o pensamento furtadiano, pode-se dizer que, por mais que
se levantem críticas ao economista sob o argumento de que ele, em sua análise do
desenvolvimento, não se havia preocupado com as questões institucionais relacionadas a esse
processo,2 o fato é que, no conjunto de sua obra, o papel da ordem jurídica, da democracia, da
criatividade e da participação política das massas no desenvolvimento foi considerado como
2 Cf. BARRAL, W. As relações entre direito e desenvolvimento. Revista Direito e democracia. v.8, n.2,
jul/dez. 2007. p. 220.
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de fundamental importância na concepção de um modelo de desenvolvimento para os países
subdesenvolvidos.
A modernização da estrutura política e a expansão do universo valorativo do ser
humano sempre integrou a concepção multissetorializada de desenvolvimento encampada por
Furtado. Para ele, a preservação ecológica, a proteção aos trabalhadores, a criatividade e a
democracia não podiam ser tidos como metas a serem alcançadas com o desenvolvimento,
porquanto são dele partes constitutivas.
Desse modo, o cientista paraibano, indo além de concepções meramente
estruturalistas, combinou sua análise do processo de desenvolvimento com uma visão
historicista da economia e, principalmente, com sua preocupação quanto aos fins e valores do
desenvolvimento, o que o levou à conclusão de que somente a participação política e a
subordinação da técnica pelos valores poderiam empoderar a sociedade de forma a torná-la a
principal responsável pela condução do desenvolvimento.
1.1.2. Amartya Sen: desenvolvimento e liberdade
Amartya Kumar Sen, laureado com o prêmio Nobel de economia em 1998, é um
dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) adotado pela Organização das
Nações Unidas (ONU) como um indicador mais apropriado do que o Produto Interno Bruto
(PIB) per capita na avaliação das condições de vida de determinada região. Seus estudos
voltados à estrita relação existente entre a economia e a ética, bem como à pobreza, à
desigualdade e ao desenvolvimento alcançaram notoriedade internacional, vindo a influenciar
análises e programas da ONU e do Banco Mundial.
De acordo com Sen, perante a ideia de desenvolvimento comumente são verificáveis
duas atitudes: a primeira identifica o desenvolvimento com um processo feroz e sangrento,
que exige sacrifícios para “aumentar o bolo e, depois, dividi-lo”; uma segunda postura encara
o desenvolvimento como um processo amigável, possibilitando trocas mutuamente benéficas
e a atuação de redes de segurança social, liberdades políticas e desenvolvimento social. Sob a
perspectiva dessa última concepção, o desenvolvimento é considerado como a expansão das
liberdades reais do ser humano, sendo esta ampliação o fim e o meio do processo de
desenvolvimento.
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Em sendo assim, a liberdade passa a ter, quanto ao desenvolvimento, um papel
constitutivo (fim), relacionado às capacidades3 elementares do ser humano – evitar a fome,
saber ler e fazer cálculos simples, ter participação política etc. Com isso, o economista
indiano sustenta a existência de liberdades que não são meros instrumentos conducentes ao
desenvolvimento – como, v.g., a liberdade de participação e dissenso -, mas que, de fato, são
elementos constitutivos do próprio processo de desenvolvimento. Entretanto, além dessas
liberdades constitutivas, há aquelas que figuram como instrumentos para o desenvolvimento,
as quais se inter-relacionam de forma tal que a garantia de um tipo de liberdade acaba por
influenciar diretamente a promoção de liberdades de outras espécies.
Na concepção seniana, as liberdades instrumentais podem ser agrupadas em: (1)
liberdades políticas (oportunidades de diálogo político, dissenso, crítica, pluripartidarismo,
liberdade de expressão política numa imprensa sem censura); (2) facilidades econômicas
(disponibilidade de financiamento e acesso a ele); (3) oportunidades sociais (disposições nas
áreas de educação, saúde etc.); (4) garantias de transparência (inibidores da corrupção,
irresponsabilidade financeira e transações ilícitas); e (5) segurança protetora (benefícios para
desempregados e indigentes, distribuição de alimentos em crises de fome etc.). A garantia
dessas liberdades aumenta diretamente as capacidades das pessoas e, uma vez que são
extremamente inter-relacionadas, suplementam-se mutuamente, reforçando-se umas às outras.
Para que haja o desenvolvimento, Sen entende que é imprescindível a remoção das
principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania, carência das oportunidades
econômicas, precariedade dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de
Estados opressores. Contudo, o autor observa que, no plano fático, salta aos olhos a negação
das liberdades básicas à maioria da população mundial, sendo que essa privação de liberdades
relaciona-se diretamente com a pobreza, o que impossibilita o efetivo exercício das liberdades
elementares de saciar a fome, de alimentar-se adequadamente, de tratar-se com remédios
apropriados, de morar de forma digna, de ter acesso à água e ao saneamento básico. Em
outros casos, diferentemente, a privação de liberdades está vinculada à ausência de serviços
públicos e assistência social, podendo ainda decorrer da negação de liberdades civis e
políticas por parte de regimes autoritários.
3 Em Desigualdade reexaminada (SEN, 2001), Ricardo Dorninelli Mendes esclarece o sentido do termo
capacidade no pensamento seniano. No glossário da obra, o tradutor afirma que: “‟capacidade‟ é um termo
seniano que abrange „oportunidade‟ (Cohen, 1989) [condições externas para realizar funcionamentos precisam
ser de algum modo incluídas como componentes de capacidades [...]]; „capacidades‟ refletem liberdades
substantivas: P é capaz de fazer x se, dada a oportunidade de fazer x, também poderia escolher deixar de fazer
x”. (SEN, 2001, p. 234).
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Tendo em vista isso, é possível asseverar que a teoria seniana do desenvolvimento
como liberdade fundamenta-se na concepção de que as liberdades substantivas são de uma
relevância tal que suas implicações para o desenvolvimento não podem ser estabelecidas a
posteriori, com base simplesmente em sua contribuição para o crescimento do PIB ou da
industrialização. Essas liberdades, na verdade, integram o desenvolvimento humano como um
processo expansivo das escolhas dos indivíduos, aumentando as possibilidades de ser e de
fazer da pessoa humana. Desse modo, o desenvolvimento deve ser compreendido de forma
ampla, de maneira a não identificá-lo com o mero incremento da renda per capita de uma
determinada região. Para o indiano, o crescimento econômico não pode ser tomado como um
fim em si mesmo, mas como um meio para melhorar a vida das pessoas e para ampliar as
liberdades de que desfrutam.
A partir dessa perspectiva, a expansão das capacidades das pessoas, permitindo-lhes
desenvolver o projeto de vida que elas justificadamente valorizam, não só pode ser fomentada
pelas políticas públicas, mas também essas podem ser influenciadas pelo exercício das
capacidades participativas dos indivíduos e dos grupos sociais. Em outras palavras: em uma
relação de mão dupla, as políticas públicas aumentam as capacidades das pessoas e, ao
mesmo tempo, a participação popular otimiza a elaboração e a implantação daquelas políticas.
A importância fundamental da liberdade individual na conceituação do
desenvolvimento elaborada por Sen deriva basicamente de duas razões. A primeira delas
funda-se na consideração de que o processo de desenvolvimento deve ser avaliado
principalmente a partir das liberdades substantivas que os indivíduos desfrutam. E ter mais
liberdade para fazer aquilo que é justamente valorizado, aqui, é importante de per se e,
também, enquanto instrumento para alcançar resultados valiosos. A segunda razão toma por
alicerce a premissa de que ter mais liberdade permite que as pessoas sejam mais
independentes e que possam cuidar de si mesmas, além de levar a uma maior participação
política, o que constitui uma questão central para o processo de desenvolvimento.
Ao analisar a fundamentalidade da participação política na teoria do desenvolvimento,
Sen destaca que uma objeção por vezes levantada contra esse processo fundamenta-se no
argumento de que o desenvolvimento pode levar à eliminação das tradições culturais de um
país. Entretanto, na visão do economista, essa problemática refere-se, na verdade, à escolha
que os indivíduos envolvidos no processo têm de fazer, pois, se algum elemento tradicional
deve ser sacrificado em homenagem à redução da pobreza ou à melhoria das condições de
vida de uma população, serão as pessoas diretamente afetadas que deverão ter a oportunidade
de eleger aquilo que melhor atenda a seus interesses. O que não se pode é aceitar uma rejeição
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a priori do desenvolvimento em favor de uma tradição que, não raro, é imposta por líderes
religiosos, ditadores ou estudiosos admiradores do passado cultural. Nessa linha de
argumentação, não há que se falar em supressão da liberdade participativa para que se possam
defender determinadas tradições culturais: as pessoas envolvidas sempre têm de tomar parte
nas decisões a respeito daquilo que elas querem ou aceitam. Ademais, Sen ressalta que
Como a participação requer conhecimentos e um grau de instrução básico, negar a
oportunidade de educação escolar a qualquer grupo – por exemplo, às meninas - é
imediatamente contrário às condições fundamentais das liberdades participativas.
[...] A abordagem do desenvolvimento como liberdade tem implicações muito
abrangentes não só para os objetivos supremos do desenvolvimento, mas também
para os processos e procedimentos que têm que ser respeitados. (SEN, 2000, p. 48-
49)
Dada sua concepção do desenvolvimento como um processo mais abrangente do que o
crescimento econômico, o indiano defende que a pobreza tem de ser vista como uma privação
das capacidades básicas do ser humano, e não simplesmente como um baixo nível de renda,
não obstante o critério da renda venha sendo tradicionalmente utilizado como único indicador
da pobreza de determinada região. É que, não obstante seja inegável que a insuficiência de
recursos financeiros é uma condição tendente a resultar em uma vida pobre, a avaliação da
pobreza com base no indicador da renda não torna visível a importante distinção entre a
extensão da liberdade, os recursos que auxiliam a liberdade e a realização da liberdade. De
acordo com a concepção seniana:
Os recursos que uma pessoa tem, os bens primários que detém, podem ser
indicadores bastante imperfeitos da liberdade que essa pessoa realmente desfruta
para fazer isto ou ser aquilo. [...] As características pessoais e sociais de pessoas
diferentes podem diferir enormemente e resultar em variações interpessoais
substanciais na conversão de recursos e bens primários em realizações. Exatamente
pela mesma razão, as diferenças interpessoais nessas características pessoais e
sociais podem tornar similarmente variável a conversão de recursos e bens
primários em liberdade para realizar. (SEN, 2000, p. 73, grifo do autor)
Nesse sentido, o foco exclusivo nas realizações ou nos recursos não se mostra
adequado para um exame da extensão das liberdades. A consideração isolada dos recursos (tal
como procedida por Dworkin ou Rawls) falha ao pressupor que um mesmo pacote de recursos
–um mesmo nível de renda, p. ex. – necessariamente implica o mesmo conjunto de
realizações, ignorando-se, em conseqüência, os problemas de conversão dos recursos em
realizações. Tal equívoco é facilmente apreendido ao se levar em conta a hipótese de duas
pessoas pobres que dispõem da mesma renda, mas que não têm a mesma liberdade para
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converter esse recurso na capacidade de estar livre da subnutrição, em razão de uma delas
estar, v. g., acometida por uma doença parasítica.
Ademais, o economista indiano assinala que a análise de alguns elementos intrínsecos
ao desenvolvimento frequentemente mostra a impropriedade da utilização da renda real per
capita como indicador único do desenvolvimento de uma região. Para este, a abordagem da
pobreza como privação das capacidades tem em seu favor três argumentos principais: (1) o
baixo nível de renda não é importante em si mesmo, mas apenas enquanto instrumento para
satisfação das necessidades humanas. A abordagem com foco nas capacidades,
diferentemente, centra-se em carências que são intrinsecamente importantes; (2) a renda não é
o único meio para realização das capacidades. Em sendo assim, a abordagem das capacidades
permite que sejam analisados os demais fatores que influenciam a pobreza real; (3) as
relações entre baixa renda e baixas capacidades apresentam variações entre as diversas
regiões, e até mesmo entre indivíduos.
Esmiuçando esse terceiro argumento, Sen aponta que várias condicionantes são
extremamente importantes no exame da relação entre renda e capacidade, tais como: a idade
do indivíduo (idosos e crianças têm necessidades específicas), o gênero (a mulher tem
deveres especiais em virtude da maternidade), a localização (situações de violência ou de
propensão a desastres naturais em algumas regiões), as condições epidemiológicas (maior
sujeição a doenças endêmicas em determinados lugares). Em adição, destaca que a privação
da renda pode dar azo a uma falsa ideia sobre a pobreza real dos indivíduos, pois
contingências relacionadas à idade, ao gênero etc. não só podem reduzir o potencial do
indivíduo para auferir renda, mas também geram uma maior dificuldade para que essas
pessoas convertam a renda em capacidades.
Arrematando sua linha argumentativa, traz à tona a necessidade de se levar em conta
as desigualdades inter e intra-regionais, ressaltando que, em virtude dessas discrepâncias, uma
deficiência relativa no espaço da renda pode ensejar uma deficiência absoluta no espaço das
capacidades. Segundo ele:
Ser relativamente pobre em um país rico pode ser uma grande desvantagem em
capacidade, mesmo quando a renda absoluta da pessoa é elevada pelos padrões
mundiais. Em um país generalizadamente opulento, é preciso mais renda para
comprar mercadorias suficientes para realizar o mesmo funcionamento social. [...]
Por exemplo, as dificuldades que alguns grupos de pessoas enfrentam para
“participar da vida da comunidade” podem ser cruciais para qualquer estudo de
“exclusão social”. A necessidade de participar da vida de uma comunidade pode
induzir demandas por equipamentos modernos (televisores, videocassetes,
automóveis etc.) em um país onde essas comodidades são quase universais
(diferentemente do que seria necessário em países menos ricos), e isso impõe
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exigências severas a uma pessoa relativamente pobre em um país rico mesmo
quando ela possui um nível de renda muito mais elevado em comparação com o dos
habitantes de países menos opulentos. (SEN, 2000, p. 112)
Ao citar o exemplo de Kerala, um dos estados indianos com os mais baixos índices de
renda per capita, porém com a expectativa de vida ao nascer muito maior do que a das demais
regiões do país, Sen ressalta que a distinção entre privação de renda e a capacidade para
realizar funcionamentos4 básicos não é importante somente para o estudo do
desenvolvimento, mas também para a elaboração e implementação de políticas públicas. No
ilustrativo caso de Kerala, o sucesso logrado no campo da realização de funcionamentos
elementares, a despeito do baixo nível renda per capita, pode ser atribuído ao histórico das
políticas públicas promovidas pelo estado nas áreas de educação, serviços de saúde e
distribuição de alimentos, na contramão das ações desenvolvidas nas demais regiões da Índia.
Aproximando-se ao pensamento de Furtado, Sen (2010) chama a atenção para o
equívoco de, na análise sobre benefícios ou privações, as abordagens econômicas atribuírem
uma excessiva importância aos meios (renda e bens consumíveis) ao invés de se focarem nas
coisas que têm valor intrínseco para as pessoas. Para ele, a renda e os bens têm importância
enquanto instrumentos para a consecução de outros fins, de modo que possuir bens ou renda
não possui nenhum valor de per se. Em sua acepção:
Na verdade, buscamos renda primeiramente pela ajuda que ela pode nos
proporcionar na obtenção de uma boa vida – uma vida que tenhamos motivos para
valorizar. Essa visão sugere que nos concentremos nas características da qualidade
de vida, a qual – como Aristóteles analisou (em Ética a Nicômaco e na Política) –
consiste de funcionamentos específicos: o que podemos fazer e ser. (grifos no
original) (SEN, 2010, p. 96)
Em seu esforço por densificar a carga substancial do desenvolvimento, Sen (2010)
propõe a utilização da mortalidade como um indicador de sucesso econômico. Nessa
proposta, ele destaca que a conexão entre a mortalidade e os fenômenos econômicos
remontam às influências que os últimos exercem sobre o aumento ou a redução da
mortalidade. Subjacente a esse argumento está a consideração de que a vida longa é uma
aspiração geral, algo valorizado universalmente e com grande intensidade, tanto porque a vida
tem um valor absoluto, intrínseco, quanto porque estar vivo é a condição elementar para a
4 Em Desigualdade reexaminada (SEN, 2001), Ricardo Dorninelli Mendes esclarece o sentido do termo
funcionamento no pensamento seniano. No glossário da obra, o tradutor afirma que: “funcionamentos referem-se
a „atividades’ [activities] (como ver, comer) ou „estados de existência ou ser’ [states of existence or being]
(como estar bem nutrido estar livre da malária, não estar envergonhado pela pobreza ou da roupa vestida].”
(SEN, 2001, p. 236)
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realização de qualquer outro projeto que se tenha motivos para valorizar. (SEN, 2010, p. 99)
Ademais, o foco na mortalidade permite que, além da renda pessoal, os outros diversos fatores
(acesso a atendimento de saúde, seguridade social, educação básica etc.) envolvidos na vida e
na morte também possam ser apreendidos no exame da qualidade de vida e das chances de
sobrevivência das pessoas. (SEN, 2010, p. 101)
Ilustrando a importância de se expandir o foco nas análises de sucesso econômico, o
pensador indiano estabelece um cotejo entre a taxa de sobrevivência (nos anos 1980) de
homens negros residentes no Harlem (região de Manhattan habitada majoritariamente por
comunidades afro-americanas) e a da população masculina do pobre estado indiano de
Bangladesh. Nessa comparação, Sen constata que:
[...] os altos índices de mortalidade por idades específicas no Harlem fazem com que
as chances cumulativas de sobrevivência destes afundem para abaixo dos índices
referentes aos homens da faixa etária de mais de trinta anos de Bangladesh. Por
outro lado, qualquer comparação referente à renda per capita revela que os
moradores do Harlem são bem mais ricos do que os de Bangladesh (e também do
que a população chinesa e de Kerala). (SEN, 2010, p. 117)
Portanto, como se viu no que foi exposto acima, o conceito de desenvolvimento em
Sen, assim como em Furtado, é integrado por elementos como liberdade, democracia,
participação popular, qualidade de vida, distribuição dos recursos e promoção de políticas
públicas que visem a diminuir o fosso que separa uma rica minoria da majoritária população
pobre dos países subdesenvolvidos. Para esses economistas, por mais que o espaço da renda
per capita seja de suma relevância, ele não pode ser tomado como o único indicador do
desenvolvimento.
O incremento do PIB, por conseguinte, não é condição suficiente para que se possa
apontar uma superação do subdesenvolvimento em determinada região: a acumulação, o
aumento da renda é, na verdade, um instrumento para que as pessoas possam levar vidas que
elas julguem valer a pena, para fazer as coisas que elas tenham razão para valorizar. Desse
modo, crescimento econômico não é sinônimo de desenvolvimento, e é preciso que, no estudo
desse último processo, seja resgatada a dimensão valorativa e substancial que parece ter sido
solapada pela canalização de toda a potencialidade humana a uma racionalidade meramente
instrumental.
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1. 2. Sociedade e desenvolvimento
1.2.1 A força do social sobre o indivíduo
Nos itens anteriores deste trabalho, defendeu-se, com fundamento nas teorias de Celso
Furtado e Amartya Sen, que o desenvolvimento não é um processo limitado a fatores
econômicos, mas que, logo o contrário, ele deve subordinar o incremento da renda e os
demais indicadores econômicos de forma que as sociedades possam utilizá-los para
concretizar as potencialidades humanas relativas aos impulsos mais fundamentais do homem,
às atividades criativas, à reflexão filosófica, à invenção artística, à pesquisa científica básica.
Assim, conectando essa concepção a investigações mais amplas sobre o mundo social,
este trabalho passará ao exame das teorias que se voltaram à relação entre a sociedade e o
indivíduo, enfatizando a força social sobre a vida humana. A relação da abordagem teórica
desses autores com o desenvolvimento desponta a partir da consideração do processo de
desenvolvimento como um caminho através do qual se busca acessar a determinados fins
sociais, sejam eles materiais ou imateriais. Além do mais, essas teorias fornecem um substrato
sólido para que se possam entrever causas estruturais no fenômeno violento, permitindo o
rechaço às ideias que atribuem ao indivíduo toda a responsabilidade pela prática da violência.
Um dos mais importantes pensadores da sociologia, o francês Émile Durkheim,
dedicou-se ao estudo da vida coletiva partindo da consideração que ela não se tratava de uma
mera ampliação da vida individual. Esse pensador assevera que a explicação da vida social
deve ser radicada no exame da sociedade, e não no sujeito individual, defendendo a ideia de
que a sociedade é muito mais do que a soma de indivíduos que a integram (DURKHEIM,
1978, p. 133). Para o cientista, no estudo dos fatos sociais, é preciso ir além da atividade de
descrevê-los e classificá-los, sendo necessário explicá-los de forma a evidenciar as causas e
razões subjacentes ao comportamento coletivo. Na teoria durkheimiana, sobreleva de
importância o conceito de função social, e aqui os fatos sociais (partes) existem em função da
sociedade (todo). Assim, a ideia funcionalista remonta à ligação existente entre as práticas e
instituições sociais e o conjunto social como um todo.
Ao inflexionar sua investigação sobre o tema da modernidade, Durkheim sustenta
que, com a passagem da sociedade de solidariedade mecânica para a de solidariedade
orgânica, a esfera da individualidade sofreu um processo de ampliação. O paradoxo da
modernidade residiria na contraposição entre a maior autonomia dos sujeitos individuais e o
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risco que essa liberdade implica para a coesão social, já que, nas sociedades avançadas, a
consciência coletiva tem menos poder de agregação, sendo mais frágeis os laços entre os
indivíduos, especialmente porque a solidariedade passa a ser resultante das funções
diferenciadas de cada sujeito individual. De todo modo, o autor vê o individualismo
moderno com otimismo: “E como cada um de nós encarna algo da humanidade, cada
consciência individual encerra algo de divino e fica assim marcada por um caráter que a torna
sagrada e inviolável para os outros. O individualismo é isso.” (DURKHEIM, 1975, p. 244)
O individualismo durkheimiano opunha-se frontalmente ao egoísmo, embora na
contemporaneidade o primeiro termo possa vir a sugerir uma identificação com o último.
Com efeito, ao se voltar sobre a obra de Durkheim, Anthony Giddens (1995) esclareceu que,
para o pensador francês, o individualismo seria o culto ao indivíduo, mas que isso de forma
alguma promoveria a decadência moral. São palavras de Giddens:
Esse [individualismo de Durkheim] era, em um aspecto importante, o verdadeiro
oposto do egoísmo. Envolvia a não-glorificação do autointeresse, mas a do bem-
estar dos outros: era a moralidade da cooperação. Individualismo, ou “culto do
indivíduo”, estava baseado no sentimento de comiseração pelo sofrimento humano,
em um desejo de igualdade e de justiça. (GIDDENS, 1995 citado por BELLI, 2004,
p. 116)
Outro conceito fundamental na obra de Durkheim é o de anomia. Na teoria
durkheimiana, a anomia surge quando aquilo que até certo momento era tido como positivo
ou que permitia um determinado projeto de vida deixa de sê-lo diante do surgimento de novas
normas às quais os sujeitos não conseguem se adaptar, daí advindo sua frustração. Anomia,
portanto, não se equaciona com a ausência de normas, mas sim com o processo de mudança
gerador um sentimento de falta de objetivos e de desespero (DURKHEIM, 2000). Além disso,
a anomia durkheimiana parte do pressuposto de que, na era moderna, as pessoas têm menos
limites do que nas sociedades tradicionais, de modo que o alargamento do espaço das escolhas
pessoais engendra um inevitável grau de inconformidade ou desvio (GIDDENS, 2012, p.
666).
Para combater esse estado de anomia, contudo, o sociólogo francês entende ser
necessária uma nova moralidade, que pudesse se desenvolver no mesmo ritmo do crescimento
econômico e do avanço da industrialização, de forma a controlar os afetos – esses últimos
desregrados justamente em razão da inexistência de normas ou da falta de respeito a elas. Em
sua acepção, por mais que a atividade econômica tenha acompanhado a civilização, a última é
moralmente neutra e, por isso, não se presta ao progresso moral. Não por outra razão, são
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justamente as regiões de maior opulência industrial que apresentam os mais elevados índices
de suicídios e imoralidade coletiva (QUINTANEIRO, 2009, p. 88). Defende Durkheim que o
Estado deveria ter
[...] como tarefa essencial, não o crescer, o estender as fronteiras, e sim o organizar,
o melhor que possa, sua autonomia, chamar a uma vida moral mais e mais alta o
maior número de seus membros [...] Não tenha o Estado outro fim senão fazer, de
seus cidadãos, homens, no sentido completo da palavra, e os deveres cívicos não
passarão de forma mais particular dos deveres gerais da humanidades. [...] As
sociedades, porém, podem consagrar seu amor próprio, não a ser as maiores, ou as
mais abastadas, e sim a ser as mais justas, as mais bem organizadas, a possuir a
melhor constituição moral. (DURKHEIM, 2009, p. 88)
Um fato social ao qual Durkheim (2000) devotou grande atenção foi o suicídio. Na
análise desse fato, o autor não analisou casos isolados de suicídio, pois defendia que a causa
geradora do comportamento suicida não estava encerrada em cada sujeito: ela era exterior aos
indivíduos. Em sua acepção, as predisposições particulares, o temperamento pessoal, as
condições do meio físico, apesar de em regra serem tomadas como a causa imediata do
suicídio, refletem apenas o estado moral da sociedade. Ao buscar no meio social as
disposições ao suicídio, Durkheim assevera que elas têm relação constante e imediata com
certas condições sociais, concluindo que:
[...] a taxa social de suicídios só se explica sociologicamente. É a constituição moral
da sociedade que estabelece, a cada instante, o contingente de mortes voluntárias.
Existe, portanto, para cada povo, uma força coletiva, de energia indeterminada, que
leva os homens a se matar. Os movimentos que o paciente realiza e que, à primeira
vista, parecem exprimir apenas seu temperamento pessoal, são na verdade a
consequência e o prolongamento de um estado social que eles manifestam
exteriormente. (DURKHEIM, 2000, p. 384)
Aqui, mesmo quando os acontecimentos privados são vistos pelo próprio indivíduo
como hábeis a explicar seu desinteresse pela vida, ainda assim Durkheim sustenta que quando
o sujeito está triste a tristeza lhe vem de fora, do grupo social de que ele faz parte
(DURKHEIM, 2000, p. 385). Nessa linha argumentativa, o autor assevera que cada sociedade
tem seu maior ou menor grau de disposição coletiva ao surgimento de comportamentos
suicidas. Essa disposição é constituída por tendências na coletividade que estimulam o
egoísmo, altruísmo ou o surgimento da anomia. A partir dessas três correntes suicidógenas,
Durkheim elabora uma tipologia do suicídio, classificando-o em: suicídio egoísta (mais
frequente em sociedades modernas, onde há uma excessiva individuação); suicídio altruísta
(comum nos grupos sociais inferiores, onde o ato é considerado um dever que, uma vez não
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cumprido, é punido pela desonra); e, por fim, suicídio anômico (também típico de sociedades
modernas, e derivado da ausência ou da falta de resp