desenhos de brasil na crônica de nelson rodrigues

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104 Desenhos de Brasil na crônica de Nelson Rodrigues TCHARLY MAGALHÃES BRIGLIA * Resumo: Neste artigo, intenta-se identificar e analisar o imaginário nacional presente nas crônicas de Nelson Rodrigues, publicadas no fim da década de 1960, no jornal O Globo. Parte-se da hipótese de que a concepção de identidade nacional observada nas referidas crônicas é caracterizada por um imaginário nacionalista, de tom conservador. O método utilizado será o da pesquisa bibliográfica qualitativa descritiva, realizada a partir de uma visão panorâmica da obra de Nelson Rodrigues; seguida de uma compreensão do gênero crônica e o posterior reconhecimento dos textos eleitos para análise, publicados nas obras O óbvio ululante (1993) e A Cabra vadia (1995). Sequencialmente, realiza-se o estudo do contexto histórico dos textos. Por fim, por meio de análise teórico-crítica, será identificado o imaginário nacional esboçado nas crônicas “A morte do teatro”, “O ex-covarde”, “O verdadeiro Cristo é Marx”, “O ópio das Elites” e “O Anti-Brasil”. Dessa forma, será possível discutir, a partir dos Estudos Culturais, as mudanças que se processaram na concepção de identidade e imaginário nacional e o legado das ideias de 1968 na contemporaneidade. Palavras-chave: Imaginário; Identidade Nacional; Crônica. Abstract: This paper aims to identify and analyze the national imaginary present in Nelson Rodrigues’s chronicles published at the end of the 60s in O Globo newspaper. The hypothesis is that the conception of national identity seen in the referred chronicles is featured by a nationalist imaginary, with a conservative tone. The study will be done through bibliographical research. At first, it will be done panoramic view of Nelson Rodrigues’s work; then, there will be the comprehension of literary gender chronicle and the subsequent recognition of his texts elected to this analyze, presented in the works “The Blindingly Obvious” (1993) and “The Goat Bitch” (1995). After that, the historical context will be studied. Finally, through theoretical and critical analyze, it will be identified the national imaginary draft in the chronicles “The death of the theater”, “The former coward”, “The true Christ is Marx”, “Opium of the elites” and “The Anti-Brazil”. Thereby, it will be possible to discuss, from Cultural Studies, the changes processed in the conception of identity national imaginary and the legacy of 1968’s ideas currently. Key words: Imaginary; National identity; Chronicle. * TCHARLY MAGALHÃES BRIGLIA é Graduado em Letras e graduando em Comunicação Social (UESC – Ilhéus-BA). Professor de Língua Portuguesa e Língua Inglesa da Rede Particular de Ensino (Itabuna-BA). Artigo orientado por Inara de Oliveira Rodrigues (Doutora em Letras, professora do Curso de Letras e Coordenador do PPGL Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz /UESC – Ilhéus-BA).

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Artigo sobre crônicas de Nelson Rodrigues.

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    Desenhos de Brasil na crnica de Nelson Rodrigues

    TCHARLY MAGALHES BRIGLIA*

    Resumo: Neste artigo, intenta-se identificar e analisar o imaginrio nacional presente nas crnicas de Nelson Rodrigues, publicadas no fim da dcada de 1960, no jornal O Globo. Parte-se da hiptese de que a concepo de identidade nacional observada nas referidas crnicas caracterizada por um imaginrio nacionalista, de tom conservador. O mtodo utilizado ser o da pesquisa bibliogrfica qualitativa descritiva, realizada a partir de uma viso panormica da obra de Nelson Rodrigues; seguida de uma compreenso do gnero crnica e o posterior reconhecimento dos textos eleitos para anlise, publicados nas obras O bvio ululante (1993) e A Cabra vadia (1995). Sequencialmente, realiza-se o estudo do contexto histrico dos textos. Por fim, por meio de anlise terico-crtica, ser identificado o imaginrio nacional esboado nas crnicas A morte do teatro, O ex-covarde, O verdadeiro Cristo Marx, O pio das Elites e O Anti-Brasil. Dessa forma, ser possvel discutir, a partir dos Estudos Culturais, as mudanas que se processaram na concepo de identidade e imaginrio nacional e o legado das ideias de 1968 na contemporaneidade.

    Palavras-chave: Imaginrio; Identidade Nacional; Crnica.

    Abstract: This paper aims to identify and analyze the national imaginary present in Nelson Rodriguess chronicles published at the end of the 60s in O Globo newspaper. The hypothesis is that the conception of national identity seen in the referred chronicles is featured by a nationalist imaginary, with a conservative tone. The study will be done through bibliographical research. At first, it will be done panoramic view of Nelson Rodriguess work; then, there will be the comprehension of literary gender chronicle and the subsequent recognition of his texts elected to this analyze, presented in the works The Blindingly Obvious (1993) and The Goat Bitch (1995). After that, the historical context will be studied. Finally, through theoretical and critical analyze, it will be identified the national imaginary draft in the chronicles The death of the theater, The former coward, The true Christ is Marx, Opium of the elites and The Anti-Brazil. Thereby, it will be possible to discuss, from Cultural Studies, the changes processed in the conception of identity national imaginary and the legacy of 1968s ideas currently.

    Key words: Imaginary; National identity; Chronicle.

    * TCHARLY MAGALHES BRIGLIA Graduado em Letras e graduando em Comunicao Social (UESC Ilhus-BA). Professor de Lngua Portuguesa e Lngua Inglesa da Rede Particular de Ensino (Itabuna-BA). Artigo orientado por Inara de Oliveira Rodrigues (Doutora em Letras, professora do Curso de Letras e Coordenador do PPGL Linguagens e Representaes da Universidade Estadual de Santa Cruz /UESC Ilhus-BA).

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    Nelson Rodrigues (1912-1980)

    Nelson Rodrigues e os contornos de um brasileiro

    Nelson Rodrigues considerado um dos principais dramaturgos brasileiros. Sua obra teatral j est consagrada h muitas dcadas. A pea Vestido de Noiva, por exemplo, de 1943, considerada um marco na histria da dramaturgia brasileira. A produo narrativa do autor, no entanto, no conta com o mesmo reconhecimento da crtica e do pblico, que, em geral, deixa num plano secundrio suas outras experincias literrias, embora sejam dotadas de similar qualidade. Os contos e crnicas, publicados em muitos peridicos do nosso pas, retratam um Brasil em constante transformao, num perodo que oscila entre o progresso propagado pelos anos dourados (segunda metade da dcada de 1950 do sculo XX) e a represso e o esprito revolucionrio que caracterizaram o ano de 1968. Parte dessa produo foi, anos depois, compilada e publicada sob a organizao do jornalista Ruy Castro, exmio pesquisador da obra

    rodrigueana, responsvel tambm pela biografia O anjo pornogrfico: a vida de Nelson Rodrigues (1992).

    Pode-se dizer que o dramaturgo era um pernambucano com alma carioca. Nascido em 1912, com apenas trs anos de idade mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade que se tornaria cenrio de boa parte de suas histrias. No teatro, o escritor ganhou fama, que oscilou entre uma boa e uma m recepo por parte da crtica e do pblico em geral. Em algumas ocasies, suas peas foram censuradas e consideradas imorais, mas isso no significou desprestgio nem abalou seu reconhecimento no conjunto da literatura brasileira. As montagens dos textos sempre ganharam repercusso na mdia, sejam enquanto objetos de valorizao, sejam como exemplos de imoralidade e dignas de censura.

    Nesse universo literrio rico, muitos personagens foram imortalizados pela pena rodrigueana. Reais ou imaginrios, contriburam para tornar as crnicas e contos mais populares. Destacam-se o Padre de Passeata; a Gr-fina das Narinas

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    de Cadver; a Estagiria do calcanhar sujo; a Ptria em chuteiras; Palhares, o canalha que encerrava tal esteretipo de modo incisivo, sendo capaz, inclusive, de cortejar a cunhada; e Suzana Flag, personagem que ganhou vida prpria, em 1944, quando o escritor passou a utiliz-la como pseudnimo para os folhetins dos Dirios Associados. Muitos tipos criados eram recorrentes nas suas histrias, como as meninas sensuais, os maridos marcados pela traio, entre outros.

    As crnicas de Nelson Rodrigues publicadas em 1968, na seo Confisses, do jornal O Globo, representam verdadeiro documento histrico de uma poca conturbada. Sua postura abertamente conservadora causou uma reao negativa em muitas reas, inclusive, no campo das artes. Era incompreensvel que o dramaturgo se posicionasse a favor de um regime ditatorial to cruel quanto foi o do governo militar brasileiro. Diante desse cenrio, a fora jovem, o marxismo brasileira, a revoluo, o comunismo, enfim, tudo aquilo que representava os ares de um novo mundo, era combatido enfaticamente nos seus textos. Num pas e num mundo que se apresentavam de modo transformador, numa poca histrica, Nelson Rodrigues resolveu questionar os novos valores, mas sem deixar de tentar esboar uma viso do pas. No entanto, cabe desvendar e refletir sobre o pas que se desenha nos textos do autor, considerando-se desenho como configurao de traos, de contornos, propsito a ser alcanado a seguir.

    A crnica: retratos do gnero

    A crnica um gnero situado entre o jornalismo e a literatura. Os textos dos nossos maiores cronistas foram publicados na imprensa originalmente. Os fatos do cotidiano acabam

    funcionando como pretextos para que o escritor associe o real e o imaginrio, o circunstancial e o humano, enfim, a objetividade e o lirismo. Sendo o meio jornalstico seu veculo habitual, a crnica acaba por ganhar ares de efemeridade, no entanto, ao passar do jornal para o livro essa situao se altera. o caso, por exemplo, da seo Confisses, composta por crnicas de Nelson Rodrigues publicadas em 1968, no jornal O Globo. Passados quase trinta anos da sua veiculao inicial, Ruy Castro selecionou os textos daquele perodo que representariam melhor a escrita do dramaturgo e os compilou em obras, como O bvio ululante (1993) e A Cabra vadia (1995). Com a mudana de suporte, as crnicas acabam tornando-se mais duradouras, escapam da circunstancialidade tpica e adquirem um carter maior de elaborao, tendo em vista a definio de determinados critrios para a seleo dos textos.

    Ao se desprender do vis jornalstico, a crnica passa a retratar os acontecimentos de modo potico, por vezes humorstico, utilizando-se de uma linguagem leve e estabelecendo uma humanizao presente, inclusive, na linguagem, no momento em que se buscam efeitos da oralidade na escrita. Esse trabalho lrico a partir dos fatos no impede que os textos atinjam, em muitos casos, o tom da crtica social. Ao citar uma situao, em particular, o cronista pode analisar a sociedade ou at mesmo o pas. Uma notcia do dia ou um assunto de interesse da maior parte dos leitores, geralmente, o ponto de partida para tal anlise.

    No Brasil, o gnero passou a circular efetivamente e a tornar-se conhecido como tal nos rodaps dos jornais, dividindo espao com textos de outros contedos e formatos. A dcada de 1930, no Brasil, emblemtica, pelo

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    fato de se firmar como a consolidao da crnica moderna e dos seus grandes representantes, tais como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Rubem Braga (CANDIDO, 1992, p. 17). A associao entre a crnica e a notcia da pgina, em certas ocasies, influenciava a relao com o pblico. o caso de Nelson Rodrigues, cujos textos, em determinado perodo da sua trajetria literria, dividiam espao com os relatos policiais.

    Em A crnica: o gnero, sua fixao e suas transformaes no Brasil (1992), Antnio Candido apresenta trs traos essenciais desse tipo de narrativa: a simplicidade, a brevidade e a graa. Acrescenta ainda: Quero dizer que por serem leves e acessveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a viso humana do homem na sua vida de todo dia (CANDIDO, 1992, p. 19). Quando voltadas para a viso particular do cronista e o extravasamento da sua subjetividade, os textos parecem restringir-se a uma viso individual do autor. Observa-se, no entanto, que tal posicionamento acaba por registrar tambm uma viso sobre o ser humano e , nesse instante, que se evidencia de modo mais enftico o seu carter lrico, se considerarmos o lirismo como o trato potico dos fatos do cotidiano. ngela Soares, em Gneros Literrios (1997), analisa esse carter de poesia presente na crnica:

    Ligada ao tempo (chrnos), ou melhor, ao seu tempo, a crnica o atravessa por ser um registro potico e muitas vezes irnico, atravs do qual se capta o imaginrio coletivo em suas manifestaes cotidianas. Polimrfica, ela se utiliza afetivamente do dilogo, do monlogo, da alegoria, da confisso, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se sempre da

    mera reproduo de fatos. E enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o (SOARES, 1997, p.64).

    Existem variaes que fazem com que a crnica, em algumas ocorrncias, esteja mais prxima de outros gneros, como a biografia lrica, a anedota, o conto. De fato, os limites de definio so complexos, mas o que se encontra em comum a capacidade de fazer do mnimo o mximo e de tentar esboar um perfil do homem e do mundo. De importncia crucial nessa investida, ser a capacidade de o escritor traduzir, por meio da linguagem, angstias coletivas: Tal efeito de linguagem o ponto de referncia na discusso entre o papel do cronista e da identidade do narrador, e do que isso implica, em termos de causalidade, para o sucesso de uma narrativa onde so vigorosas as marcas do subjetivismo, da oralidade, do dramatismo... (CANDIDO, 1992, p. 31). Logo, as estratgias narrativas do cronista podem dirigir o leitor para uma reflexo que ultrapassa barreiras temporais e individuais, atingindo relaes com o presente e com o coletivo.

    Se a relao da crnica com o tempo est at na etimologia da palavra, embora seja dotado de uma sequncia cronolgica, esse tipo de narrativa tem menos compromisso com os fatos precisos do que a notcia, gnero com o qual divide espao nas pginas do jornal. A relao entre o fato, o texto e o leitor cresce em importncia medida que se assegura o nvel de lirismo e de tom potico ambicionados pelo cronista.

    S (1985) aponta para a relao inevitvel entre a escrita jornalstica e o texto da crnica. No s o fato retratado que interessa ao leitor, mas a relao de tal acontecimento com suas angstias e anseios pessoais, afirmao

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    que conduz a anlise do ncleo situacional e humano dos textos:

    Com seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevssimo que tambm faz parte da condio humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um ncleo estruturante de outros ncleos, transformando a simples SITUAO no dilogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crtico que nos interessa o lado circunstancial da vida e da literatura tambm (S, 1985, p. 11 - grifos do autor).

    A capacidade de captar o brevssimo e utilssimo instante confere crnica um carter ambguo entre o circunstancial e o sempiterno. A situao particular do gnero s vai despertar interesse no leitor quando se configura como uma metfora do real. Esse instante da crnica capaz de nos projetar em direes vrias, que contribuem para a formao da nossa identidade. S chega a colocar o cronista como um espio da vida e isso mesmo que ele faz ao narrar o mundo e estabelecer relaes entre o tempo e o espao, entre o objeto e os seres. Seja na reflexo sobre a cidade seja na discusso sobre um fato do cotidiano ou no lirismo de um relato esportivo, a crnica nunca perde a dimenso literria. Quando bem associada ao tempo no qual se encontra, funciona como um dos pilares do painel de uma poca, o que afirma tambm seu valor sociolgico e seu teor poltico, captados pela cmera do cronista e transformados pelo seu gnio criativo.

    Essa relao entre a notcia e uma viso mais aprofundada acerca das questes humanas est presente de modo enftico nas crnicas de Nelson Rodrigues. Mesmo quando os fatos pareciam falar por si, como os ocorridos no ano de 1968, o cronista conseguia retirar dos acontecimentos do dia um ingrediente

    indispensvel para a sua receita sobre o humano e sobre as suas concepes de nao brasileira. Seja ligada vida do escritor, seja relacionada diretamente ao contexto, a crnica transforma o acontecimento em reflexo.

    Desenhos de uma histria

    O ano de 1968 foi marcado por um esprito revolucionrio, tanto no territrio francs, com o movimento estudantil disposto a derrubar o governo em nome de reformas educacionais, quanto no Brasil, onde a fora jovem tambm se fez presente na luta contra a ditadura. Naquele ano de intensas emoes, teve incio o perodo mais severo do regime militar brasileiro. Com o decreto do Ato Institucional n 5, em dezembro de 1968, ficou a sensao de um ano que no chegou ao fim. Pelo menos essa a metfora utilizada por Zuenir Ventura em 1968: o ano que no terminou (1988), obra que d conta de apresentar e analisar os fatos histricos marcantes do ano em que mais de cem mil brasileiros foram s ruas clamar pela liberdade. Muitas foram as formas de demonstrar a insatisfao com o regime e muitas tambm foram as estratgias do governo militar para manter o seu poderio inabalado naquele momento de sucessos e fracassos para a nossa democracia.

    A juventude rejeitou categoricamente as separaes entre a teoria e a prtica, a arte e a vida, a poltica e a existncia. O chamado poder jovem contribuiu, inclusive, para o aprofundamento das divergncias entre o lder conservador Alceu Amoroso Lima e o lder progressista Gustavo Coro. Pelo menos nesse aspecto das contradies, realizou-se uma revoluo. Sexo, poltica e violncia eram os ingredientes constantes da pauta poltica.

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    Alm de uma revoluo comportamental, o ano de 1968 foi palco de significativas manifestaes, numa espcie de revoluo planetria (VENTURA, 1988, p. 43). O entusiasmo foi uma das caractersticas daquela gerao, influenciada mais pelos livros do que pela televiso. Era acentuada a cumplicidade com a linguagem escrita, fenmeno que seria abafado posteriormente com a ascenso da tev e sua consequente massificao. A mdia preferencial oscilava entre msica e cinema, sendo que esse ltimo era visto como uma potencial experincia esttica de alcance poltico.

    Foi tambm uma gerao curiosa e vida por teorias esquerdistas, caractersticas que podem explicar o sucesso da Revista Civilizao Brasileira, veculo de publicao das ideias dos intelectuais de esquerda. Um dos grandes dolos e gurus da gerao foi Herbert Marcuse, que invadiu a cabea dos jovens primeiro pela imprensa e depois pelos livros. Entre os polos de discusso, estavam o consumismo, a sociedade de massa, a socialdemocracia no mundo capitalista e a importncia das minorias.

    A despeito de terem as suas convergncias, os membros do movimento estudantil tambm sinalizavam o carter antagnico da poca. Vladimir Palmeira, presidente da UME, pensava em estratgias eficazes de combate, mas que no beirassem o radicalismo, uma das bandeiras de Luis Travassos, presidente da UNE. De fato, estudante, militante, jovem, poltico, intelectual, enfim, era impossvel ficar indiferente e neutro no Brasil de 1968. As divises ideolgicas, todavia, acabavam sendo, muitas vezes, mais pessoais do que polticas, o que permite classificar a falta de um projeto poltico

    bem definido com um dos motivos para o fracasso das reivindicaes estudantis.

    Na arena cultural, a Tropiclia, visto como um movimento de engajamento cultural, foi o grande marco de 1968, a ponto de polarizar os trabalhos de Caetano Veloso e Chico Buarque. No teatro, a revoluo veio pela batuta de Jos Celso Martinez e da sua adaptao da obra de Chico Buarque, Roda Viva. Os artistas tambm protagonizaram outros momentos de oposio ao regime, como a greve de fevereiro de 1968, em protesto contra a censura. At mesmo Nelson Rodrigues marcou presena na viglia na escadaria do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

    Embora a agitao dos artistas fosse justa e surtisse efeito, o primeiro grande acontecimento que mobilizou a opinio pblica em relao causa estudantil foi o assassinato do jovem dson Luis Lima Souto, em maro daquele ano. A ao militar foi alvo da revolta tanto dos estudantes quanto dos artistas e de outros setores da populao que passavam a se importar e a se tornar menos tolerantes com os mtodos desumanos do regime militar. A frase Mataram um estudante. E se fosse um filho seu? acabou por funcionar como uma sinal de alerta do horror daqueles tempos e da necessidade de um movimento de contraposio mais efetiva.

    A juventude reagiu com uma srie de protestos que culminariam na Passeata dos Cem Mil, evento responsvel por levar milhares de brasileiros para as ruas, num grito contra a ditadura. Momentos memorveis foram inmeros, inclusive, quando a populao sentou em via pblica para ouvir os discursos e as reivindicaes cujo protagonista maior era Vladimir Palmeira. No entanto, foi no interior de So Paulo que os revolucionrios de

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    1968 concretizaram um ato suicida: o XXX Congresso da UNE, que culminou com o massacre de muitas das foras estudantis e com a priso de todo o movimento, que j se mostrava desgastado e impossibilitado de seguir adiante por suas tendncias internas to opostas.

    No campo poltico, Arthur da Costa e Silva exerceu um mandato contraditrio, como tudo que se realizava naquele ano. O marechal que governou o pas entre 1967 e meados de 1969 era realmente tropicalista, pelo menos no que o movimento teve de exaltao dos modos e valores cafonas (VENTURA, 1988, p.126). Para alguns, o presidente era desprovido de uma sofisticao intelectual; para outros, ele encarnava o papel de um homem de bem. O que se sabe e o que se viu, todavia, foi uma ao questionvel para um lder da nao, considerando-se que o ministro da Justia, Gama e Silva algoz da juventude , era mais poderoso do que o prprio presidente.

    Outro episdio importante para a compreenso da histria de 1968 foi o discurso do deputado Mrcio Moreira Duarte, no qual ele manifestou a necessidade dos estudantes e dos seus pais realizarem um boicote contra as aes torturadoras do exrcito brasileiro, sugerindo, inclusive, que as moas que mantinham relaes com os cadetes fizessem greve de sexo. bvio que as reaes no foram nada agradveis por parte do governo. A atitude do parlamentar foi vista, por alguns dos estudiosos da poca, como um dos estopins para a decretao do AI-5. O que se sabe, de fato, que o pas ainda iria vivenciar, no fim daquele inverno, o horror da ao militar na Universidade de Braslia, responsvel por ferir e prender muitos dos jovens militantes. Esse foi um dos muitos

    acontecimentos que contribuiu para a construo da opinio pblica favorvel ao movimento jovem.

    Os dias que precederam a promulgao do mais cruel dos atos institucionais contaram com acontecimentos extremamente relevantes, de ordem poltica e cultural. A revolta geral ganharia um novo tom com III Festival Internacional da Cano. O hino daquela gerao foi Pra no dizer que no falei de flores, de Geraldo Vandr. Na anlise de Napolitano (2001), talvez nunca mais tenha havido, no Brasil, melhor comunho sinttica [...] entre arte, vida e poltica [...] Antes de ser reflexo, a cultura era uma espcie de cimento que reforava identidades e valores polticos e sociais que informavam aquela gerao (p.73). A vitria do festival, no entanto, no ficou com a cano que o pblico cantou em coro, como se estivesse, de fato, caminhando. O ttulo foi conferido a Sabi, de Chico Buarque, o que revoltou a multido presente, j acima dos nveis de excitao aps a histrica performance de Caetano Veloso, que criticou a postura da juventude brasileira e foi retribudo com vaias calorosas. O protesto contra Caetano foi assunto para uma das centenas de crnicas de Nelson Rodrigues. O escritor saiu na defesa da valorizao do artista.

    Supersties parte, 13 de dezembro de 1968 seria um sexta-feira que entraria para a histria como uma das mais terrveis da recente repblica brasileira.

    Naquele dia 13, o marechal seria protagonista de um espetculo em que 22 dos 23 figurantes pareciam dirigidos pela esttica de Jos Celso Martinez Corra, que era capaz de dar a uma tragdia a forma de farsa, misturando chanchada, teatro de revista, circo e Chacrinha. Em apenas um ato, os atores que

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    comandavam o pas representaram todas as alegorias que o Tropicalismo havia posto na moda: o Cinismo, a Hipocrisia, o Servilismo, a Pusilanimidade, a Lisonja, a Subservincia (VENTURA, 1988, p. 164-5).

    Entre os arbtrios e horrores causados pelo ato militar, houve o fechamento do Congresso, a suspenso do habeas corpus e o uso da censura e da violncia contra toda e qualquer manifestao contrria ao regime. Certamente, essas foram apenas algumas das medidas que marcaram o incio de um dos perodos mais sangrentos da histria brasileira. Torturas, priso e exlio de grandes personalidades polticas e artsticas, a luta diria entre a fora armada e a imprensa, enfim, a suspenso da liberdade de um povo. Com certeza, a maior e impagvel dvida histrica contra a nao. Nas palavras de Napolitano: O AI-5 foi uma espcie de corte abrupto de uma grande festa revolucionria que estava em pleno auge (NAPOLITANO, 2001, p. 76). O desafio cultural e poltico da gerao seguinte seria caminhar a favor da democracia, expediente nada fcil num pas que passaria a ser regido pelos acordes do poder ditatorial, responsvel por contribuir, entre outros fatores, para uma relao de dependncia econmica entre o Brasil e outras naes, assim como empreender um sistema de censura nada favorvel queles que viam na arte uma eficiente ferramenta de protesto.

    Imaginrio, identidades e cores

    No caso do Brasil, em 1968, possvel identificar a construo de um imaginrio poltico, patrocinado e divulgado pelo governo ditatorial que tentava construir novas imagens para o pas.

    O vnculo inevitvel entre o imaginrio individual e o coletivo visto

    constantemente em certas atitudes subjetivas, tais como as manifestaes culturais, sexuais, esportivas, entre outras. A fora de um imaginrio social influencia por completo o posicionamento de um indivduo dentro de uma esfera coletiva. o caso dos acontecimentos do ano de 1968, analisados sob a tica de Baczko (1985):

    O discurso contestatrio do ano de 1968 um exemplo flagrante desta deslocao da imaginao no campo discursivo. [...] A associao entre imaginao e poder continha algo de paradoxal, ou mesmo de provocatrio, na medida em que um termo, cuja acepo corrente designava uma faculdade produtora de iluses, sonhos e smbolos, e que pertencia, sobretudo, ao domnio das artes, irrompia agora num terreno reservado as coisas srias e reais. Do mesmo passo, estes slogans elevavam a prpria imaginao ao nvel de um smbolo (BACZKO, 1985, p. 296 grifos do autor).

    Embora Baczko, no texto A imaginao social (1985), esteja se referindo ao revolucionria dos estudantes franceses, a relao com o contexto brasileiro coerente, na medida em que tambm se observou, na ao dos grupos esquerdistas do nosso pas, a necessidade de vincular imaginrio e poder, na forma de um dispositivo simblico capaz de definir uma nova identidade para a nao. No referido texto, Baczko destaca que o imaginrio coletivo atua de modo decisivo nos momentos de guerra e revoluo, que se envolvem numa atmosfera de poltica, poder e desejo de vitria.

    A supremacia do sociolgico diante do psicolgico reforada pelo terico, inclusive, com a referncia ao conceito de fato social, de Durkheim,

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    considerado numa perspectiva simblica, visto que os homens se comunicam por meio de smbolos exteriores que formam a conscincia coletiva. No caso de naes que apresentam imaginrios antagnicos, Baczko (1985) realiza uma anlise bem pertinente e que se aplica realidade brasileira da mencionada dcada. O imaginrio social visto aqui, tambm, como uma fora reguladora da vida coletiva.

    A concepo de imaginrio e a sua relao com o fictcio discutida por Iser (1996). Conforme a viso iseriana, o fictcio precisa do imaginrio para poder realizar-se e o imaginrio se desenvolve atravs do fictcio. Tal interao contextual seria vivida na literatura, num processo de ativao do imaginrio, a partir do fictcio, considerando que o autor seleciona quais elementos da realidade faro parte da sua obra literria. A literatura, desse modo, funciona como uma articuladora dessas duas disposies antropolgicas, j que corresponde a uma metfora do real e no se prende a determinaes pragmticas, dada a liberdade ficcional do escritor. Nesse sentido, o mundo do texto deve ser considerado real, embora no o seja, o que ocasiona o chamado autodesnudamento da ficcionalidade literria (ISER, 1999, p. 69). Em sntese:

    Abrindo espaos de jogo, o fictcio pressiona o imaginrio a assumir uma forma, ela ainda no um jogo, apesar de ser causa do movimento iterativo do que foi duplicado. Se o fingir como transgresso de limites excede o que dado, a inteno que aqui se manifesta certamente um sentido de orientao que visa a algo que no se pode controlar totalmente. Por isso, o fictcio depende do imaginrio, para cuja ativao

    parece oferecer condies ideais. capaz, por meio de sua estrutura de duplicao, de liberar o imaginrio como jogo de uma forma muito diferente daquela permitida pelas orientaes pragmticas dos paradigmas discutidos (ISER, 1996, p. 266).

    Diante de tais espaos de jogo, a literatura se mostra como espao ideal para a interao entre as duas instncias. O autodesnudamento da ficcionalidade a separa de tais realidades e, por meio do como se, transforma o mundo resultante da seleo e da combinao em pura possibilidade (ISER, 1999, p. 74, grifo do autor). Logo, a escrita conotativa aciona um real possvel, mas para isso parte de dados da realidade, reinterpretando-os com base no imaginrio defendido pelo escritor. Embora parta de um como se fosse realidade, o escritor de literatura ativa o ficcional, que seleciona o aspecto ideolgico presente no imaginrio. A construo de um fictcio, por certo escritor, ativa a sedimentao de um imaginrio capaz de alcanar instncias sociais. No caso de Nelson Rodrigues, o ficcional presente nas crnicas reflete o imaginrio nacional defendido pelo dramaturgo, vido por uma manifestao nacionalista, de cunho transformador. Para isso, o escritor utilizou-se de imagens simblicas, ora como sinal de crtica juventude revoltada e sem ideal, ora como manifestao de apoio s foras militares.

    A construo de imagens simblicas vai ao encontro da noo de imaginrio nacional, no sentido que se tornam evidentes as vises coletivas que se tm de uma determinada ptria e povo. Jos Mattoso, no texto A identidade nacional (2011), salienta a necessidade de se compreender que a identidade nacional se reveste de formas diferentes ao longo

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    da histria. No se trata de um fenmeno unicamente mental, pelo contrrio, perpassa por questes indispensveis, a saber: a existncia de uma expresso poltica representada pelo Estado; um territrio definido, mesmo que este seja redefinido em determinadas pocas; e a permanncia, por um tempo considervel e contnuo, da autonomia poltica e de um plo espacial slido, fatores definidores de uma identidade nacional, na viso de Mattoso.

    Outro terico que apresenta vasta pesquisa sobre imaginrio Michel Maffesoli. Numa entrevista de 2001, possvel compreender um pouco das suas discusses acerca do assunto. Em seu ponto de vista, o imaginrio forma-se a partir da relao entre o subjetivo e o objetivo. A cultura seria uma parte do imaginrio impondervel criado pelo estado de esprito de um povo. Maffesoli insiste na ideia de que o imaginrio s pode ser concebido do ponto de vista coletivo, pois parte desse e ultrapassa o indivduo. Alguns conceitos importantes so esmiuados pelo terico e merecem destaque.

    A imagem, por exemplo, seja ela pictrica, cinematogrfica, literria, definida pela existncia de um imaginrio. Trata-se de uma construo histrica imbuda de uma srie de smbolos imagticos, representativos de uma dada nao ou de um determinado grupo. No intuito de discutir a composio do imaginrio, Maffesoli destaca:

    O imaginrio tambm a aura de uma ideologia, pois, alm do racional que a compe, envolve uma sensibilidade, o sentimento, o afetivo. Em geral, quem adere a uma ideologia imagina faz-lo por razes necessrias e suficientes, no percebendo o quanto entra na sua adeso outro componente, que

    chamarei de no racional: o desejo de estar junto, o ldico, o afetivo, o lao social, etc. O imaginrio , ao mesmo tempo, impalpvel e real. [...] (MAFFESOLI, 2001, p. 77).

    Por esse vis, possvel compreender as relaes entre a ideologia e a realidade que compem o imaginrio. Do mesmo modo, no possvel classificar o imaginrio como de direita ou esquerda, pois os pilares modernos que antes representavam ncoras no so mais capazes de traduzir as peculiaridades do imaginrio nacional. A tentao do conceito, do rigor cartesiano, levou vrios intelectuais a noes rgidas de imaginrio, quando a sua fora consiste no oposto, na maleabilidade, numa certa impreciso (MAFFESOLI, 2001, p. 79).

    A questo do poder e sua ligao com o imaginrio percebida quando se compreende que o exerccio da autoridade dialoga com a inteno de se legitimar o poder da classe dominante. Toda sociedade precisa criar tal imaginrio poltico a fim de embasar a sua representao simblica. Quando regimes polticos autoritrios lutam para legitimar o poder, manifestam-se imaginrios contrrios. No Brasil, a fora jovem estudantil um claro exemplo de um grupo que desejava contribuir para a construo de novas representaes simblicas para o pas, o que passa, fatalmente, pelo campo da poltica. Os governos totalitrios tentam bloquear, das mais variadas formas, como a censura, as manifestaes de uma nova imaginao social. Nesse contexto, a propaganda poltica e ideolgica uma grande aliada.

    No Brasil do ano de 1968, percebe-se que o governo militar tinha o desejo de reinterpretar determinadas categorias, como o nacional e o popular. Assim discute Renato Ortiz em Cultura Brasileira e Identidade Nacional:

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    [...] vimos que com o golpe militar o Estado autoritrio tem a necessidade de reinterpretar as categorias de nacional e de popular, e pouco a pouco desenvolve uma poltica de cultura que busca concretizar a realizao de uma identidade autenticamente brasileira (ORTIZ, 2008, p. 130).

    O processo de construo de tal identidade no se deu de modo fcil. A cultura da poca sofreu com a censura desmedida a tudo aquilo que no legitimasse o poder ditatorial. Apesar da presso psicolgica e ideolgica, o perodo entrou para a histria exatamente pela efervescncia artstica demonstrada no teatro, no cinema, na msica e na literatura. Alguns artistas optaram por reinterpretar o nacional por meio da construo de uma identidade claramente oposta ao regime. Nem todos, no entanto, seguiram a mesma linha. O escritor Nelson Rodrigues, por exemplo, optou por seguir uma via bem peculiar, o que conferiu as suas crnicas um carter polmico e inimitvel. O desenho de Brasil esboado pelo dramaturgo no agradou a todos. As cores utilizadas chegaram a chocar pela ousadia, considerando que, muitas vezes, o escritor manteve-se do lado do regime ditatorial e contra a juventude, que supostamente representava o lado mais correto do conflito imposto na poca. Roberto Schwarz (1978) observa a semelhana entre a crtica burguesia e a crtica literatura rodrigueana, no sentido que essa apoiou, de certa forma, o governo militar, algo incompreensvel para um artista, tendo em vista que a arte foi uma das arenas que mais sofreu com as medidas polticas do perodo em questo.

    Nelson Rodrigues foi, assim, um dos principais crticos da gerao de 1968. Suas crnicas representam um valioso documento referente poca, como

    comenta Zuenir Ventura (1988): A onda de educao sexual inspirou a Nelson algumas de suas mais deliciosas crnicas. Se na poca elas irritavam pelo reacionarismo, hoje divertem pelo humor e exagero [...] (VENTURA, 1988, p. 34). As aes radicais da juventude brasileira no escapavam pena incisiva de Nelson Rodrigues:

    A antena reacionria ento mais visvel, o cronista Nlson Rodrigues, transformava a sua implicncia com a hegemonia dos jovens numa cruzada que no deixava de ser engraada, principalmente depois que a categoria jovem virou marketing para tudo - de refrigerantes a idias. [...] Na cabea de Nlson, os jovens politizados se misturavam com uma outra categoria alvo de seu obsessivo reacionarismo: a esquerda festiva (VENTURA, 1988, p.46).

    Alm das crticas a essa esquerda festiva, que s se preocupava em se autopromover, outros objetos do escrnio de Nelson Rodrigues, quanto s contradies artsticas e jovens, eram as assembleias. Para ele, j no se podia mais saudar um artista, pois ele j trazia impregnada a noo de coletivo. No texto A morte do teatro (1968), publicado em A Cabra Vadia (1995), o cronista comenta:

    Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz Cacilda Becker. Ia cumpriment-la, mas no me atrevi. Como trat-la? Outrora, eu diria: Ol, Cacilda, ou Bom dia, Cacilda, ou Tudo azul, Cacilda?. Sim, houve um tempo em que Cacilda era Cacilda, simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cengrafo um misterioso ser impessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim:

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    Ol, Comisso, Ol, Assemblia, Ol, Passeata. (RODRIGUES, 1995, p. 168).

    Era como se o brasileiro fosse um adepto tpico das passeatas, recurso que estava se tornando desgastado e incmodo na viso do escritor. A ironia diante do assunto perpassa todo o texto. Em outro trecho, ele acrescenta:

    Eis o que eu queria dizer: entendo, como ningum, as posies da CLASSE. timo que cada ator, ou atriz, ou diretor, tenha uma nfase de 14 de Julho, de tomada da Bastilha, de Hino Nacional. A poltica a grande linguagem do nosso tempo. E cada qual, para sobreviver, simplesmente existir, precisa ter um toque ideolgico. Tudo isso certo e eu concordo. Mas esto acontecendo coisas que justificam, a meu ver, uma relativa perplexidade (RODRIGUES, 1995, p. 169).

    Podemos afirmar, considerando-se os tons de seus textos, que a viso nacional de Nelson Rodrigues se mostra, assim, como paradigma de uma concepo prpria da modernidade. No entanto, hoje, num mundo cada vez mais atravessado por questes identitrias que evidenciam a impossibilidade de essencialismos, percebem-se as vrias e profundas mudanas que impedem uma viso hegemnica do sentido de nao. Os Estudos Culturais sinalizam a necessidade de compreenso das representaes da diversidade cultural. Nesse contexto, de que forma as preocupaes de Nelson Rodrigues ainda ecoam no atual estgio da modernidade? Essa uma questo que pode ser respondida a partir da anlise de outras crnicas do autor.

    O imaginrio nacional desenhado nas crnicas

    Quando se fala no esprito revolucionrio da gerao de 1968, foroso discutir o modo como Nelson Rodrigues interpretou a ao daqueles que eram contra ao regime militar. Para o escritor, o que mais incomodava naquelas aes era a falta de um teor nacionalista mais enftico, que no se confundisse com outras revoltas em outros territrios. Esse um dos temas discutidos na crnica O ex-covarde, publicada em A Cabra Vadia (1995):

    Ningum quer fazer a Revoluo Brasileira. No se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietn. Por que no fazer do Brasil o prprio Brasil? Ah, o Brasil no uma ptria, no uma nao, no um povo, mas uma paisagem. H tambm os que o negam at como valor plstico (RODRIGUES, 1995, p. 15).

    Pelo trecho acima, nota-se que o cronista sentia a necessidade de os manifestantes comportarem-se de modo mais nacionalista, o que denota o esprito um tanto avesso interferncia do estrangeiro em territrio nacional. A problemtica da nao uma constante nas crnicas. Um dos posicionamentos do autor anunciar publicamente a inquietao diante da inexistncia de um projeto poltico efetivo, algo que ao longo da histria foi colocado como uma das razes para o fracasso do movimento jovem da poca. Em outra crnica daquele perodo, O Verdadeiro Cristo Marx, publicada em O bvio Ululante (1993), Nelson Rodrigues clama por uma atitude mais nacionalista, capaz de dar conta das nossas idiossincrasias: De vez em quando, vejo muros pichados com vivas a Cuba. Eis o que me pergunto, gelado de pavor: Vivas a Cuba e no ao

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    Brasil? Nunca, at hoje, se sujou um muro brasileiro com um honesto e desesperado viva ao Brasil (RODRIGUES, 1993, p. 192). Acerca de uma conversa que teve ao telefone com uma estudante da PUC, Rodrigues escreve, no mesmo texto:

    Com relativa pacincia, fiz-lhe ver a sua confuso geogrfica. Isto aqui o Brasil. E repeti: Ponha-se no Brasil! Ponha-se no Brasil!. Finalmente, tomei a palavra e no a larguei mais. Disse-lhe que, no momento, s me interessa um fato: a solido do Brasil. Cuidar do Vietn, de Cuba, da frica, a melhor maneira de no fazer nada, de no sair do Antonios, de no deixar a praia. H todo um Brasil por fazer. E o pio ideolgico justifica e absolve a nossa deslavada ociosidade (RODRIGUES, 1993, p. 195).

    Podemos enriquecer as discusses acerca da concepo de imaginrio nacional nas crnicas de Nelson Rodrigues, trazendo cena a abordagem de Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas (2008), obra a partir da qual se pode dialogar com o texto rodrigueano, ao problematizar-se a condio nacional e o nacionalismo como produtos culturais dotados de especificidades, cujo entendimento depende de considerar: [...] suas origens histricas, de que modo seus significados se transformaram ao longo do tempo, e por que dispem, nos dias de hoje, de uma legitimidade emocional to profunda (ANDERSON, 2008, p. 30).

    Anderson destaca, em seu texto, o carter de produto cultural do nacionalismo, bem como da transformao dos seus significados ao longo da histria. Desse modo, pode-se compreender a especificidade literria de Nelson Rodrigues como condizente

    em relao ao momento histrico do Brasil, nos anos finais da dcada de 1960, quando se manifestou a extrema necessidade de se redefinir o nacional, a identidade do pas, num movimento semelhante ao ocorrido nos anos dourados e reacendido, pelo menos do ponto de vista poltico, no decnio de 1980. O cronista ansiava que a populao e cada um dos sujeitos que a compem dessem vivas ao pas, entoassem uma revoluo nacional definidora de um perfil autntico.

    Diante desse cenrio de busca identitria, nota-se que as imagens do passado dialogam com as imagens do presente de modo a sustentar um imaginrio mais prximo do real, mas num processo ininterrupto. Se considerarmos a histria do nosso pas, poderemos observar que as imagens criadas para represent-lo variaram conforme o perodo histrico, poltico e social, entretanto, as transformaes ocorridas no passado eram (e so) transfiguradas pelas abordagens contemporneas.

    Nesse sentido, a posio de Nelson Rodrigues, no contexto de 1968, contrrio fora jovem que intentava instaurar um regime de libertao, confunde-se um pouco com seu esprito nacionalista, nem um pouco disfarado em muitas das suas crnicas. No texto O pio das elites, o cronista esboa uma crtica intelectualidade nacional:

    [...] o Brasil um pas por fazer. Fazer o Brasil seria a nossa tarefa. No damos um passo sem esbarrar, sem tropear num problema. Tudo no Brasil problemtico. Mas reparem: quanto mais odiamos o americano, menos pensamos no Brasil e, repito, menos o amamos. O Vietn est mais prximo de ns do que Mag. E sabem por que essa impotncia nacional para qualquer

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    trabalho srio? Por causa dos Estados Unidos.

    Mas temos as nossas elites. As elites, porm, esto entretidas em odiar o americano. E no tapam um buraco de rua, no soldam um cano furado, no desentopem uma bica. Na hora de pichar o muro, damos vivas a Cuba, e ao vietcong, e a Mao Ts-tung, e a Guevara, e a Fidel. Vivas ao Brasil, jamais. (RODRIGUES, 1995, p. 234).

    Criar uma pintura coerente com esse Brasil plural estava entre os objetivos de Nelson Rodrigues em suas crnicas. No caso da fora jovem, o escritor tecia duras crticas, tendo em vista que, em sua percepo, havia um uso abusivo de um discurso notadamente influenciado pela ideologia francesa, ou seja, faltava revoluo brasileira, ares de Brasil.

    Como destaca Souza (2006), na tese Nelson Rodrigues: inventrio ilustrado e recepo crtica comentada dos escritos do Anjo Pornogrfico, os fatos da realidade cotidiana acabaram por ganhar tons mticos, carter evidenciado na relao entre os discursos ficcional e fatual. No caso das crnicas confessionais, consideradas como parte integrante da fase de maturidade do escritor, observa-se um texto que ousava transcender o factual e um autor altamente conservador. Embora tenha sido visto como aliado do governo militar, no deixou de lutar a favor da libertao dos artistas e intelectuais presos pelo regime, em destaque para a defesa do amigo Helio Pellegrino.

    Na concepo de Edward Pimenta, em texto publicado na Revista Bravo (2007), Nelson Rodrigues faz parte de uma gerao de artistas que se preocupou em pensar o Brasil. Na crnica O Anti-Brasil, o autor enftico nas crticas:

    Vejam as redaes, as escolas, as famlias, as festas, as esquinas e os botecos. Por tudo que se diz, e ouve, e l, percebemos que h vrios projetos do novo Brasil. Qual deles h de vingar, finalmente? Qual deles ter bastante vitalidade histrica?

    H muita gente disposta a matar e a morrer pelo Brasil do dio. Pode parecer que eu esteja exagerando. Mas os sintomas esto nossa vista com apavorante nitidez. (RODRIGUES, 1993, p. 112).

    Para os projetos de Brasil em questo, a tendncia da resposta apontar para a afirmao, justamente, da pluralidade de perspectivas. Entretanto, considerando-se a importncia desse pensar sobre o pas, pode-se concluir que os desenhos rodrigueanos por certo foram transfigurados, mas no perderam a importncia nem sero esquecidos.

    Consideraes finais

    Observando-se a relao da crnica com a construo do painel de uma poca, nota-se que os textos de Nelson Rodrigues escritos no ano de 1968 foram capazes de representar as vrias facetas de um pas em desenvolvimento. Sem perder a dimenso literria, mas enriquecida com um bem dosado vis sociolgico, as crnicas rodrigueanas problematizaram o imaginrio nacional, na tentativa de se esboar uma identidade autenticamente brasileira. Ainda se acreditava numa concepo essencialista de identidade nacional, projeto questionado atualmente pelas diferentes perspectivas terico-crticas da chamada ps-modernidade.

    Pelo percurso analtico aqui realizado, foi possvel confirmar-se a hiptese quanto ao perfil reacionrio do autor, que evidenciou o carter extremo do seu nacionalismo, nos diversos textos reivindicatrios da construo de um efetivo projeto nacional, e no momento

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    em que se declarou contrrio s foras que lutavam contra a ditadura vigente no perodo em foco. Tal postura foi coerente com o prprio cenrio da poca, marcado por transformaes constantes, de ordem poltica, econmica, ideolgica e cultural.

    No trnsito entre as diferentes linguagens e, especialmente nas crnicas, nota-se que os desenhos rodrigueanos ressignificam o imaginrio, por meio do ficcional, misturando sujeitos, cores e imaginrios, elementos fomentadores de uma identidade nacional polimrfica e reacendida a cada dia na pena e na ideia dos diversos autores que compem a nossa histria, seja literria, seja factual. Pode-se concluir que as problemticas levantadas por Nelson Rodrigues, no sculo passado, ainda so objeto de investigao das teorias sociais contemporneas. O que se evidencia, hoje, o carter ambivalente e hbrido da identidade autctone e a constatao da existncia de vrios Brasis.

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    Recebido em 2014-05-24 Publicado em 2015-02-27