desconstruindo a escrita: paráfrase como mecanismo de silenciamento do sujeito-aluno

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Desconstruindo a escrita: paráfrase como mecanismo de silenciamento do sujeito-aluno José Humberto dos S. Santana Evando Marcos dos Santos Islan Bispo de Oliveira Orientadora: Profa. Dra. Márcia Mariano (DLI/UFS)

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Desconstruindo a escrita: paráfrase como mecanismo de silenciamento do

sujeito-aluno

José Humberto dos S. Santana

Evando Marcos dos Santos

Islan Bispo de Oliveira

Orientadora: Profa. Dra. Márcia Mariano (DLI/UFS)

Introdução

• Neste trabalho propõe-se analisar e discutir o modo como asnormas culta, padrão e gramatical são abordadas em livrosdidáticos da primeira etapa do ensino fundamental (1º ao 5ºano) adotados por escolas públicas sergipanas,especificamente por escolas da microrregião do Agreste deItabaiana/SE.

Objetivos

• Observar se o livro didático:

– Trabalha a diferença entre fala e escrita;

– Oferece ao aluno a oportunidade de conhecer a normapadrão escrita, bem como refletir sobre a metalinguagemusada nas gramáticas;

– Valoriza a gramática internalizada;

– as atividades propostas permitem que o aluno seja um sujeitoativo, com pontos de vista próprios e críticos.

– reconhece o aluno como um falante competente de sua língua;

– a regras gramaticais são impostas sem relação com o uso dalíngua;

Metodologia

• Adotaram-se, como corpora de análise:

• o capítulo V ( Os diferentes estilos (p. 26-30)) da Parte I,intitulada “Textos: leitura e interpretação”;

• e o capítulo XI (“Mix” ortográfico: LHA/LIA; ERA/EIRA;AO/OUA; EM/EIM (p. 214-215)) da Parte II, intitulada“Gramática e ortografia” do livro “Construindo a escrita:textos, gramática e ortografia”, de Carvalho, Panachão,Kutnikas e Salmaso (Ática, 2001), cujo público-alvo são alunosda 4ª série (5º ano).

Análises e discussões

• Parte I “Textos: leitura e interpretação”:

• Após a leitura da Crônica “Os diferentes estilos”, deRubem Braga, os autores aplicam um estudo dirigidointitulado “Descobertas textuais”, constituído de 6questões.

• A 1ª questão é constituída de duas etapas:

• Primeiramente, solicita-se ao aluno que procure descobrir osignificado das palavras que não conhece, considerando ocontexto.

• Posteriormente, solicita-se ao aluno que consulte o dicionáriopara verificar o sentido correto.

“Caso tenham errado, apague a resposta eescreva o sentido correto” (p. 28)

• Nesta questão, os autores desconsideram, de formagrosseira, os conhecimentos prévios (conhecimento demundo) do aluno e desconhecem-no como um falantecompetente de sua língua.

• Obrigam-no a apagar o sentido que atribuiu, por meio deseu conhecimento de mundo, aos vocábulos, caso tenhaerrado, e a reescrever o sentido único, o correto, como se aspalavras não fossem polissêmicas, como se existissemsomente em estado de dicionário.

• Nesse sentido, tal questão não possibilita o desenvolvimentodo conhecimento linguístico do aluno (percepção de queuma palavra, dependendo do contexto, pode apresentarmais de um sentido), nem permite que este seja um sujeitoativo, com pontos de vista próprios e críticos, pois exerce afunção de copista.

• A 4ª questão afirma que “os diferentes estilos de narrar o fatoprovocam em nós, leitores, emoções diferentes em relação aomorto e ao fato narrado”, e exige que o aluno identifique emqual ou em quais estilos o leitor acha que o narrador revelouas seguintes preocupações, desconsiderando a hipótese de osreferidos estilos não terem provocado tais EMOÇÕES noaluno.

– deixar o leitor comovido;

– levar o leitor a achar que o morto estava atrapalhando ou outros;

– a perceber que o narrador não estava se importando com o morto;

– a perceber que o narrador estava preocupado consigo mesmo.

• A 6ª questão, que é voltada para a produção escrita, exigeque o leitor observe bem cada um dos estilos que aparecemno texto e imagine como é a pessoa que está falando.

• Em seguida, propõe que o professor divida a classe em oitogrupos, para que cada grupo escolha um dos estilos econstrua uma “personagem” que apresente características(modo de falar, vestir, trejeitos) idênticas ao do estiloescolhido.

• Nesta questão, em vez de estimular a produção escrita pormeio da criação de um texto que valorize os conhecimentosprévios do aluno (gramática internalizada), que permitatrabalhar a diferença entre fala e escrita (construção de umtexto em estilo mais próximo da oralidade e reconstrução emestilo mais formal), que possibilite o aluno inferir e construirseus próprios pontos de vista,

• os autores induzem o aluno a repetir e disseminar, no âmbitoescolar, estereótipos sociais, a partir do modo como aspessoas falam, vestem-se ou compartam-se em determinadassituações.

• Esta metodologia “estereotipada” que impõe o sentido único(discurso parafrástico) consiste em um mecanismo desilenciamento do sujeito-aluno, pois inibe a possibilidade deeste criar suas próprias concepções e perspectivas acerca domundo em que está sendo inserido, e, consequentemente, defazer suas próprias escolhas.

• Nesse sentido, trata-se de uma metodologia de controle socialque visa moldar o comportamento do aluno, para que esteenxergue a realidade por um único ângulo, bem comoreproduza e propague os preconceitos sociais vigentes.

• Parte II “Gramática e ortografia”:

• Pretendendo orientar aluno quanto a inserção da semivogal/u/ do ditongo oral decrescente /ou/ na modalidade escritada língua, os autores inserem, em balões coloridos, algumaspalavras que apresentam tal ditongo, junto a outras queapresentam o hiato “oa”, como pessoa, por exemplo.

• Em seguida, propõe ao aluno que escreva em seu caderno aquantidade de palavras que ele acredita que está escrita sema letra U.

• O professor diz somente a quantidade de palavras que nãosão escritas com a letra u.

• Após escrever a quantidade de palavras que devem serescritas com a letra u, solicita-se ao aluno que escreva aspalavras dos balões em seu caderno, corrigindo aquelas emque o u está faltando e organizando-as em 2 duas colunas:uma das palavras escritas com u e outra das escritas sem o u.

• Nesta atividade os autores não desvalorizaram osconhecimentos prévios (conhecimento linguístico, textual e demudo) do aluno alfabetizando: foram eles que não souberamexplicar ao aluno os contextos de maior incidência (classe depalavra (substantivo) e contexto fonológico posterior aoditongo (consoante r, p, c, x, g, seguindo esta sequência)) doprocesso de apagamento da semivogal /u/ do ditongo /ou/na modalidade escrita.

• Mostraram um verdadeiro desconhecimento da influência dafala na escrita, no ciclo da infância: para a criança, a escritaassume uma relação biunívoca com a fala, o que não éverdadeiro.

• Por conseguinte, podemos inferir que os autoresdesconhecem fenômenos fonológicos que influenciam aescrita de crianças, sobretudo nos três primeiros anos daalfabetização, bem como estudos sociolinguísticos depesquisadores consagrados, como os presentes na obraInfluência da fala na alfabetização, de Maria Cecília Mollica(Tempo Brasileiro, 1998), que descrevem detalhadamente osfatores linguísticos que condicionam a presença/apagamentodos ditongos /ei/ e /ou/ na escrita de alfabetizandos.

• Chegamos a tal constatação porque os próprios autoresafirmam, no manual do professor anexado ao livro, que:

“Quanto ao grupo de palavras que são escritascom o encontro vocálico OU, não conseguimosdescobrir nenhuma forma de pensamento quepudesse servir como instrumento de decisão emum momento de dúvida ortográfica” (CARVALHOet al., 2001, p. 125).

• Este completo desconhecimento é, possivelmente, resultadoda ausência de estudos fonéticos e fonológicos noembasamento (referência bibliográfica) da obra.

• Nesta atividade os autores perderam a oportunidade de trabalhar,considerando a faixa etária e escolaridade do aluno, a diferençaentre a língua oral e a escrita, a distinção entre registros ou marcasfonológicas (processos estigmatizados socialmente, portantoconsiderados “errados”, “feios”) e fenômenos fonológicos (nãoestigmatizados, como a monotongação que ocorre em todas asregiões brasileiras, em todas a situações de fala, em todas asclasses sociais, em todos os níveis de escolaridade, em todas asfaixas etárias).

• Além disso, perderam a oportunidade de reconhecer o aluno comoum falante competente da língua portuguesa e de oferecer-lhe aoportunidade de conhecer a norma padrão, por meio da produçãode um texto (relatar um acontecimento (gênero notícia) em estilomais formal a ser publicado no “Caderno de Causos da Turma”, porexemplo) em que ele fosse orientado a escrever palavras queapresentam o ditongo /ou/ na escrita e que reduzem tal ditongo àvogal /o/, na modalidade oral da língua.

• Essa produção certamente levaria o aluno a perceber que afala nem sempre apresenta uma relação biunívoca com aescrita, e, consequentemente, contribuiria para seuautomonitoramento no que diz respeito aos contextos demaior incidência do processo de monotongação namodalidade escrita da língua.

Considerações finais

• O que nos assusta não é a péssima qualidade do livrodidático; é a APROVAÇÃO COM DISTINÇÃO pelo MEC:

Referências

• CARVALHO, C. S. et al. Construindo a escrita: textos,gramática e ortografia. São Paulo: Ática, 2001.

• MENDONÇA, M. C. Língua e ensino: políticas defechamento. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (orgs.).Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v. 2. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 233-264.

• MOLLICA, M. C. Influência da fala na alfabetização. Riode Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

Obrigado!

Proposta de intervenção

• Analisando as atividades propostas pelos autores no capítuloV (Os diferentes estilos) da primeira parte “Textos: leitura einterpretação) e no capítulo XI (“Mix” ortográfico: LHA/LHIA;ERA/EIRA; OA/OUA; EM/EIM) da segunda parte (Gramática eortografia), propomos a reformulação das questões 1, 4 e 6do capítulo V e das questões 1 e 2 do capítulo XI.

Capítulo V

• Questão 1:

• Não apresentaríamos as palavras que julgássemosdesconhecidas pelos alunos, após a leitura da Crônica. Nomomento da leitura, lançaríamos perguntas à turma,questionando os possíveis sentidos das palavras quejulgássemos não fazer parte do conhecimento linguístico decada aluno, considerando o contexto, para que, aquele(s) quesoubesse (m) um dos sentidos possíveis, pudesse (m) semanifestar, despertando, assim, a participação da turma.

• Desse modo, estaríamos valorizando os conhecimento préviosdos alunos, reconhecendo o aluno como um falantecompetente de sua língua e permitindo que ele seja umsujeito ativo, com pontos de vista próprios.

• Ao término da leitura, todos já teriam conhecimento de cadapalavra que, no início, julgávamos serem desconhecidas poralguns ou por todos os alunos. É óbvio que algumas palavrasdesse texto são desconhecidas pelos alunos, haja vista ovocabulário diminuto, condicionado pelo grau de maturidadee escolaridade. Dessa forma, evitaríamos pedir que a criançaapagasse o sentido que ela atribuiu a cada palavra acionandoseus conhecimentos de mundo e linguístico.

• Nessa perspectiva, não estaríamos impondo o sentido único,o correto, mas os possíveis para aquele contexto.

• Solicitar que que cada aluno escrevesse em seu caderno aspalavras cujos significados desconhecessem servira para quê?Para consulta futura? Para isso há o dicionário, que, sóutilizaríamos, caso os alunos não compreendessem osignificado de alguma palavra durante a leitura.

• Questão 4:

• Anularíamos essa questão porque os diferentes estilos denarrar o fato: o encontro do corpo de um homem dequarenta anos por um vigia de uma construção podemprovocar diferentes emoções ou nenhuma emoção nosleitores em relação ao morto. Sendo assim, não poderíamosperguntar ao aluno em quais estilos o narrador revelou asmencionadas preocupações.

• Questão 6 e questões 1 e 2 do cap. XI.

• Uniríamos as três questões supracitadas em uma única,solicitando aos alunos que, considerando os diferentes estilosestudados, redigissem uma mesma notícia (relatassem umfato jocoso ou sério do cotidiano que eles presenciaram ouque alguém lhes disse: pais, irmãos, amigos) em dois estilosdiferentes:

• O 1º texto seria escrito no estilo aí (estilo mais informal umavez que está mais próximo da oralidade: o advérbio de lugarexercendo a função de marcador discursivo) que seassemelha ao estilo então, já que aquele é mais presente queeste na fala das crianças.

• O 2º texto, seria escrito em um estilo mais formal (adequaçãoà norma padrão escrita), portanto teriam que retirar omarcador discursivo aí, que é recorrente na fala, e inserir asemivogal /u/ do ditongo /ou/, que geralmente é apagada namodalidade oral.

• Por meio desta atividade de produção: recontar um únicofato em dois estilos diferentes, em que cada um valoriza umamodalidade específica, o professor trabalha a diferença entrea língua oral e a escrita, valoriza a gramática internalizada doaluno (os conhecimentos linguísticos, textuais e de mundo) eoferece-lhe a oportunidade de conhecer a norma padrãoescrita e as diferentes possibilidades de uso (estilos) da

língua.

• Objetivo desta atividade de produção:

• Publicar os dois textos no “Caderno de Causos da Turma”, quedeve ficar na biblioteca da escola para que outros alunos deoutras turmas também tenham acesso. Desse modo, osalunos irão perceber que todo gênero textual tem umpropósito comunicativo: finalidade, uma esfera de circulaçãoe um leitor implícito ou enunciatário, leitor esse que não seráo “professor-corretor”, mas seus colegas.