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26 (DES)ARTICULAÇÃO TEORIA-PRÁTICA EM RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO Adair Vieira Gonçalves (Universidade Federal da Grande Dourados /CNPq) Mariolinda Rosa Romera Ferraz (Universidade Federal da Grande Dourados /CNPq) Este artigo é resultado de algumas indagações sobre a (des)articulação entre teoria e prática nas licenciaturas. A pesquisa está contextualizada na Licenciatura Dupla em Letras (Habilitações Português/Inglês e Português/Literatura), da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Nosso objeto de investigação são relatórios escritos produzidos por professores em formação inicial, ao final da disciplina Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa I, e a própria diretriz curricular da licenciatura mencionada. Confrotamos a proposta de trabalho no estágio supervisionado obrigatório com a proposta das disciplinas Laboratório de Textos Científicos I e II, cuja ementa consiste, basicamente, no estudo dos gêneros textuais e sua didatização por meio de sequências didáticas. Em nosso cenário, antes de efetivar a regência de aulas, os alunos-estagiários investigam a realidade/rotina escolar a partir da realização de entrevistas com o professor regente e de períodos de observação de aula. Nesse sentido, o egresso da Licenciatura em Letras, além de ser um professor-reflexivo, deve se preparar para a possibilidade de construir-se como professor-pesquisador. É, pois, da investigação da conexão entre teoria e prática na formação inicial de professores, a partir do gênero relatório de estágio, que este texto se ocupa. Para tanto, está construído em três etapas interligadas. Na seção introdutória, delineamos as configurações curriculares, especialmente das disciplinas Laboratório de Textos Científicos I e II. Na segunda seção, mapeamos o gênero relatório de estágio. Na terceira, numa abordagem textual- discursiva, efetuamos uma análise dos relatórios na busca de evidências da transposição didática. Ao concluir o artigo, retomamos as notas teórico-metodológicas e apontamos sugestões de como superar alguns entraves gerados durante a produção de objetos de ensino para aulas de Língua Portuguesa, na escola de educação básica. Palavras-chave: estágio supervisionado, licenciatura, interacionismo sociodiscursivo, relatório de estágio. Introdução De acordo com o regulamento do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), ao qual a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) aderiu, as disciplinas devem ser organizadas em ciclos, sendo um Ciclo Geral e um Ciclo Específico. Por isso, constam do currículo do Curso de Letras, da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da referida universidade, disciplinas responsáveis pela formação cidadã (humana, ética, política, cultural) dos acadêmicos a disciplinas que tratam das teorias linguísticas (do Estruturalismo à Pragmática), que investigam a língua e a linguagem em suas diversas manifestações e registros. XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002141

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(DES)ARTICULAÇÃO TEORIA-PRÁTICA

EM RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO

Adair Vieira Gonçalves (Universidade Federal da Grande Dourados /CNPq)

Mariolinda Rosa Romera Ferraz (Universidade Federal da Grande Dourados /CNPq)

Este artigo é resultado de algumas indagações sobre a (des)articulação entre teoria e

prática nas licenciaturas. A pesquisa está contextualizada na Licenciatura Dupla em

Letras (Habilitações Português/Inglês e Português/Literatura), da Faculdade de

Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da Universidade Federal da Grande Dourados

(UFGD). Nosso objeto de investigação são relatórios escritos produzidos por

professores em formação inicial, ao final da disciplina Estágio Supervisionado em

Língua Portuguesa I, e a própria diretriz curricular da licenciatura mencionada.

Confrotamos a proposta de trabalho no estágio supervisionado obrigatório com a

proposta das disciplinas Laboratório de Textos Científicos I e II, cuja ementa consiste,

basicamente, no estudo dos gêneros textuais e sua didatização por meio de sequências

didáticas. Em nosso cenário, antes de efetivar a regência de aulas, os alunos-estagiários

investigam a realidade/rotina escolar a partir da realização de entrevistas com o

professor regente e de períodos de observação de aula. Nesse sentido, o egresso da

Licenciatura em Letras, além de ser um professor-reflexivo, deve se preparar para a

possibilidade de construir-se como professor-pesquisador. É, pois, da investigação da

conexão entre teoria e prática na formação inicial de professores, a partir do gênero

relatório de estágio, que este texto se ocupa. Para tanto, está construído em três etapas

interligadas. Na seção introdutória, delineamos as configurações curriculares,

especialmente das disciplinas Laboratório de Textos Científicos I e II. Na segunda

seção, mapeamos o gênero relatório de estágio. Na terceira, numa abordagem textual-

discursiva, efetuamos uma análise dos relatórios na busca de evidências da transposição

didática. Ao concluir o artigo, retomamos as notas teórico-metodológicas e apontamos

sugestões de como superar alguns entraves gerados durante a produção de objetos de

ensino para aulas de Língua Portuguesa, na escola de educação básica.

Palavras-chave: estágio supervisionado, licenciatura, interacionismo sociodiscursivo,

relatório de estágio.

Introdução

De acordo com o regulamento do Programa de Reestruturação e Expansão das

Universidades Federais (REUNI), ao qual a Universidade Federal da Grande Dourados

(UFGD) aderiu, as disciplinas devem ser organizadas em ciclos, sendo um Ciclo Geral e

um Ciclo Específico. Por isso, constam do currículo do Curso de Letras, da Faculdade

de Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da referida universidade, disciplinas

responsáveis pela formação cidadã (humana, ética, política, cultural) dos acadêmicos a

disciplinas que tratam das teorias linguísticas (do Estruturalismo à Pragmática), que

investigam a língua e a linguagem em suas diversas manifestações e registros.

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Potencialmente, as ementas das diversas disciplinas da licenciatura contemplam

os saberes teóricos e práticos peculiares ao profissional das Letras: dos estudos de

Saussure à Linguística da Enunciação, da abordagem do sistema fonológico aos estudos

do texto/discurso. O objetivo é delinear uma visão global de todas as teorias linguísticas

e, sobretudo, que, ao final do curso, os alunos-estagiários circunscrevam-se, diante das

demandas atuais, nas abordagens interacionistas dos estudos da linguagem,

principalmente os aplicados.

No que tange à disciplina Laboratório de textos Científicos I e II, seu ementário

consiste da leitura, escrita e reescrita (análise linguística) de gêneros da esfera

acadêmica e do estudo das Normas da ABNT. A metodologia dessas disciplinas está

fundamentada na Linguística Aplicada, particularmente na concepção teórica genebrina

e vertente didática denominada interacionismo sociodiscursivo (ISD). Para atingir os

objetivos da disciplina, é muito frequente a utilização de sequências didáticas (SD), tais

como defendem Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Para esta abordagem teórico-

metodológica, o agir comunicativo (BRONCKART 2006; 2007) é uma ação social,

sempre situada em contextos de produção específicos, e baseado no conhecimento que

temos dos usos da linguagem nesses contextos. Por isso, sugere o ensino por meio de

gêneros textuais, visto que são convenções linguísticas relativamente estáveis

(BAKHTIN, 2003) aplicadas e aplicáveis em contextos comunicativos distintos.

Depreende-se que os enunciados, ou gêneros textuais em si, constituem-se em

modelos a serem seguidos em dadas circunstâncias comunicativas. Por isso, em sua

vertente didática, tal abordagem teórico-metodológica entende que os gêneros textuais

devem transformar-se em objetos de ensino e, para controlar a transposição de um

gênero para a escola, se faz necessário o estudo do conjunto dos elementos que descreve

o gênero em seus aspectos contextuais, sócio-históricos e estruturais – compreendidos

pela infraestrutura textual (contexto de produção, plano geral do texto, tipos de discurso

e organização sequencial), pelos mecanismos de textualização (conexão, coesão

nominal e verbal) e pelos mecanismos enunciativos (modalização, variação linguística e

seleção lexical).

O estudo dos elementos estáveis de um gênero textual aponta em duas direções:

tanto é possível compreender como os gêneros textuais se materializam quanto que

capacidades de linguagem necessitam ser desenvolvidas para o domínio da produção de

um gênero.

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São três as capacidades de linguagem a serem desenvolvidas: capacidade de

ação, capacidade discursiva e capacidade linguístico-discursiva. Não de forma estanque,

mas em intersecção entre si, elas apontam para os elementos constituintes do gênero

textual. Além disso:1) norteiam a identificação dos saberes prévios do aluno nas

produções iniciais; 2) indicam os elementos estáveis do gênero a serem apreendidos e;

3) orientam a elaboração de uma SD para o ensino de um gênero textual (BAKHTIN,

2003). Por tudo isso, o processo ensino-aprendizagem de língua portuguesa precisa ser

marcado por atividades que favoreçam o aperfeiçoamento das capacidades de

linguagem, visto que, quando os sujeitos se apropriam devidamente das convenções

linguísticas e aplicam-nas de acordo com os contextos, ocorre o desenvolvimento

humano (BRONCKART, 2006).

Na seção a seguir, analisamos flagrantes de teoria/prática no gênero relatório de

estágio supervisionado.

Análise da transposição didática

As dificuldades substanciais de leitura e escrita que ainda persistem no contexto

da educação básica e do ensino superior dão o norte para a renovação da prática

pedagógica, ou seja, fazem reconhecer que é preciso enfatizar o trabalho com a leitura e

com a escrita, pois o ensino normativo muito comum nas escolas não tem promovido a

formação de alunos com proficiência linguística. Entendemos que a consciência da

necessidade de mudança já foi absorvida pelos profissionais da educação e até por

alguns professores em formação inicial. O relatório 1, nesse sentido, destaca:

Para se trabalhar com textos e ainda fazer o uso da gramática é necessário

que o educador esteja atento às transformações, às informações atuais, e

consequentemente estando em contato com o mundo em que alunos estão

incluídos, e com isso havendo uma ponte, entre educador e educando, que

será a interação. Essa ponte é essencial para o educador transmitir a sua

prática e sua didática visando às condições reais que seus alunos vivem.

Quando o educador trabalha de acordo, ele tem o poder de transformar outra

pessoa para que ele possa ter uma visão crítica do mundo em que ele

convive. (relatório 1)

Apesar de alguns truncamentos na escrita desse trecho do relatório, é possível

depreender que os estagiários são conscientes da teoria que compreende a linguagem

como fator de desenvolvimento humano, que é preciso investigar os contextos de

produção em que os alunos estão inseridos e, a partir daí, fomentar o trabalho com os

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gêneros textuais para a formação de um aluno crítico e transformador de sua realidade.

Por outro lado, a prática pedagógica continua tradicional. Encontramos a seguinte

situação no relatório de estágio.

Hoje explicamos para eles o que são “tipos e Gêneros textuais”, e trouxemos

de exemplos um texto informativo. Foi explicado o que é um Acróstico e

pedimos para eles produzir um com a Copa do Mundo como Exemplo.

(relatório 1)

Entendemos que o conhecimento da distinção entre tipos e gêneros textuais nem

sempre seja um conteúdo necessário ao aluno da educação básica. A nosso ver, enfatizar

essa diferença é, na verdade, a manutenção de um ensino tradicional em que conceitos

são mais importantes que o uso da língua em si.

Além disso, destacamos na situação apresentada que os alunos-estagiários

fizeram uso de um texto para trabalhar a referida distinção, porém não há descrição

suficiente da aula para sabermos que gênero foi utilizado, persistindo assim a tradicional

classificação dos textos em narrativo, descritivo, dissertativo, informativo etc.,

tampouco para verificarmos a “validade” da atividade. Sobretudo, logo após a

diferenciação e o uso do “texto informativo”, os professores em formação inicial

introduzem na aula um acróstico, que, no nosso entendimento, é um gênero da esfera

artística (poético), e que, a não ser por um objetivo de mostrar a diferença entre gêneros

bastante distintos em relação ao plano textual global, não teria efeito no aprimoramento

das capacidades de linguagem de gêneros de aspectos mais informativos.

De acordo com o aporte teórico que utilizamos, a comunicação humana acontece

em contextos próprios, a que chamamos de esferas da comunicação (BAKHTIN, 2003;

BRONCKART, 2007). São várias as esferas: artística, cotidiana, publicitária,

escolar/acadêmica, jornalística, científica, política, entre outras, e cada qual gera um

número quase irrestrito de gêneros textuais. Ainda não encontramos na literatura da

área, autores que tratam exclusivamente de esfera da informação. Todavia, gêneros

como panfletos, fôlderes, banneres, campanhas institucionais e, particularmente, a

notícia jornalística são, eminentemente, informativos.

Outra situação que destacamos no relatório 1 o trabalho realizado com o gênero

Charge. Em primeiro lugar destacamos o seguinte relato:

Hoje trabalhamos com o gênero Charge, explicamos o que é, e o que

aborda, e para fazer interpretação de uma. Depois para descontrair,

trouxemos uma Cruzadinha sobre a Copa do Mundo.

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Do relato depreende-se que as atividades realizadas com o gênero Charge

enfatizam o contexto de produção (“o que é, o que aborda”). Elas desenvolvem a

capacidade de ação dos alunos; estes passam a ter domínio de situações comunicativas

em que a charge se torna um gênero producente: contexto de crítica, de sátira, relativas

asituações sócio-políticas, por exemplo, as quais, para produzirem efeito, precisam estar

no conhecimento prévio do leitor. Logo, pensamos, uma atividade adequada após a

leitura de uma charge seria a produção de um texto do gênero argumentativo (artigo de

opinião, carta argumentativa, por exemplo), em que o aluno pudesse expor sua opinião

sobre o tema da charge. Todavia, os alunos-estagiários utilizaram, em seguida, uma

cruzadinha, gênero que, potencialmente, não contribui para a reflexão/argumentação

provocada pelo primeiro gênero. Portanto, revela-se, na transposição didática, uma

deficiência no entendimento dos objetivos do gênero bem como do trabalho nessa

perspectiva.

Além disso, quando, pelo anexo do relatório, temos contato direto com a

atividade, percebemos que, logo após a charge (Figura 1, adiante), há um conceito do

gênero: “ é um desenho ou uma pequena história em quadrinhos que possui um caráter

humorístico e crítico. Destacam-se pela criatividade e abordagem de temas da

atualidade. Os personagens geralmente são desenhados segundo o estilo de caricaturas.”

Destacamos que o conceito, a nosso ver, poderia ser formulado pelo próprio aluno se, ao

longo do processo de interpretação (atividade, preferencialmente, oral), fossem

observados aspectos relativos ao contexto de produção do gênero, ao discurso que

veicula, e a estrutura linguística aplicada (e quando aplicada). Enfim, novamente,

questões conceituais prevalecem em detrimento da análise de elementos

multissemióticos próprios do gênero em questão. Atividades com destaques para os

elementos multissemióticos estabeleceriam um diálogo com a disciplina Estudos

Semióticos. Não podemos afirmar que não tenha havido esse diálogo, porém, o

desenvolvimento da atividade não se revelou producente para análise do gênero.

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Figura 1: Charge

(Fonte da charge: <http://jowcartoons.wordpress.com/2008/12/04/o-

ouro-e-nosso/>. Acesso em 03 de março de 2012)

As questões de interpretação são apenas: “Que tema da atualidade a charge está

abordando?” e “O que você acha desta charge?”Entendemos que o tema da charge seja

bastante complexo para alunos do ensino fundamental. Na atividade anexada pelos

alunos-estagiários ao relatório, a resposta dada para a primeira questão foi: “o

desemprego, a pobreza e a fome”. Todavia, no nosso entender, a crítica da charge gira

em torno da alienação humana diante de certas situações. Em outras palavras, no país do

futebol, não importam o desemprego, a pobreza e fome, desde que seja campeão.

Tocante a segunda questão, a resposta pode direcionar para diversos aspectos.

Um simples “é boa; é bonita”, por exemplo, seriam suficientes (respostas que

revelariam veementemente a alienação). Compreendemos que o importante seria

discutir a crítica feita e conduzir o aluno à reflexão da realidade brasileira e,

consequentemente, à desalienação.

No relatório 3, agora em foco, o aluno-estagiário leva para a sala de aula uma

atividade de interpretação escrita “O lobo e o cordeiro”, de autoria de La Fontaine.

Segue a atividade:

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Atividade de Interpretação 1

Corroborando a opinião de Marcushi (2008), quando o autor afirma que

misturadas às propostas de compreensão de textos aparecem questões “que nada tem a

ver com o assunto” (p.266), na Questão 1, misturam-se questões de oralização às de

escrita. Ao lermos o sintagma “acompanhando o ensaio dos grupos”, compreendemos

que a atividade não é de busca ao significado no dicionário, mas de expressão oral, para

efeito de leitura em voz alta.

A Questão 2 é subcomposta de outras questões, que vão de A a G. Para

flagrarmos o mesmo texto em outro relatório, reduzimos a análise deste aluno-estagiário

às letras A-B. Na Questão 2a, pede-se que o estudante “enumere, pelo menos, três

adjetivos definidores do caráter do lobo e do cordeiro”. Temos aqui uma atividade de

compreensão em desacordo com os pressupostos defendidos pelos documentos oficiais,

o de que a leitura ocorre na interação entre texto/autor/leitor. Na opinião de Marcushi

(2008, p.267), esse tipo de questão resume-se a atividade de “identificação de

informações objetivas e superficiais” e, até mesmo, de focalização da metalinguagem.

Na Questão 2b, o aluno-estagiário propõe a seguinte questão: “O encontro do

lobo e do cordeiro acontece ‘nas águas limpas de um regato’. É possível determinar a

localização exata do cenário onde se passa a ação: justifique sua reposta”. Temos uma

atividade subjetiva. Para Marcushi (2008, p.271), tais atividades “em geral, têm a ver

com o texto de maneira apenas superficial, sendo que a reposta fica por conta do aluno e

não há como testá-la em sua validade”.

No relatório 2, de outro aluno-estagiário, também há o texto “O lobo e o

cordeiro”. São propostas seis questões nesta sessão de estágio de regência. Na primeira,

temos: “Segundo a fábula, predominou o direito da força ou a força do direito? A fábula

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mostra que predomina.....”. Temos aqui uma questão que se autorresponde. Marcushi

(2008) chama tais atividades de “A cor de cavalo branco de Napoleão”, em que há

perspicácia mínima, ou seja, cuja resposta está na própria formulação.

Em seguida, temos uma questão em que se pede para assinalar o que for correto.

Novamente uma questão de identificação objetiva de fatos e dados. As Questões 3,4,5 e

6 são todas do tipo “subjetivas”, na medida em que o professor deverá aceitar quaisquer

respostas de seus alunos. Para Marcushi (2008), são comuns perguntas do tipo “‘Qual a

sua opinião sobre...’; ‘O que você acha do....’; ‘Do seu ponto de vista, a atitude do

menino diante da velha senhora foi correta?’” (p.271). Estes exemplos evidenciam, a

nosso ver, a dificuldade em transpor didaticamente os saberes acadêmicos,

especialmente os adquiridos em disciplinas como Leitura e Ensino, Laboratórios de

textos científicos I e II, entre outras. Eis a atividade:

Atividade de Interpretação 2

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Da mesma forma, o relatório 5 apresenta duas atividades de interpretação

escrita. A primeira toma como texto base a canção “Saudosa Maloca”, de João Gilberto

e Adoniram Barbosa. A letra apresenta uma variedade linguística popular, carregada de

fenômenos fônicos marcadores de uma realidade regional. Além disso, a letra revela a

subjugação e a “incapacidade” do ser humano diantede certas situações. Com

sentimentos “engasgados”, os personagens da história cantada se conformam com o

sofrimento.

A nossa ver, a semântica do texto, inegavelmente revelada também pela norma

linguística empregada, é o foco de sua interpretação. Entretanto, destacamos algumas

questões da análise e observamos os seguintes aspectos: a primeira questão (O que mais

lhe chama atenção no texto Saudosa Maloca?), a nosso ver, admite várias respostas

(trata-se de uma questão vale-tudo, na acepção de Marcushi (2008). Interessante notar

que, no texto escrito, destacam-se os “erros” linguísticos em detrimento do sentimento

das personagens e é exatamente esse o foco na análise da questão, considerando a

resposta dada pelo aluno: “O jeito de falar”. A segunda questão (A linguagem utilizada

dificulta a compreensão do texto? Justifique.) já na sua formulação chama a atenção

para a variedade e parece ratificar o preconceito linguístico.

A terceira questão (Com relação ao tipo de texto, como você classifica Saudosa

Maloca? Trata-se de um texto informativo, opinativo ou do relato de um fato?) mostra a

tendência do ensino conceitual, ou seja, um ensino voltado para nomenclaturas e

definições, quando o destaque deveria ser o uso das sequências narrativas e descritivas

na produção de uma história cantada.

A quinta questão (Na sua opinião, a história contada no texto poderia ter

acontecido na vida real? Justifique utilizando exemplos.), a nosso ver, timidamente se

destaca entre questões possíveis de serem empregadas para análise do texto, visto que

extrapola os limites do texto e, minimamente, conduz o aluno a enxergar a realidade.

Nesse sentido, nos apropriamos das reflexões de Arroyo (2011), quando argumenta:

[...] Quando os currículos são pobres em experiências sociais seus

conhecimentos se tornam pobres em significados sociais, políticos,

econômicos e culturais para a sociedade. [...] Difícil encontrar significados

atraentes em noções, leis e conceitos formulados sem referência a

experiências sociais e culturais significativas. (p. 119)

Ou seja, apoiando-nos nas reflexões de Arroyo (2011), vemos que a pobreza da

atividade revela a não utilização de aspectos sociais da música, tais como o retratar da

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cidade de São Paulo, mais especificamente o bairro do Bexiga. Em síntese,

desconsidera-se que São Paulo não conservou parte de arquitetura original e, em seu

lugar, construíram-se casarões e prédios modernos. Entendemos que o foco de análise

da música solapam aspectos mais relevantes para o entendimento das variações

linguísticas e de questões sociais dignas de discussão para a formação cidadã dos

alunos.

Pressupomos que algumas dificuldades relativas à articulação entre teoria e

prática, além das responsabilidades oriundas do próprio processo de ensino-

aprendizagem da/na academia, resultam da história da educação. O cenário formal da

educação brasileira, historicamente, revela uma educação marcada pela predileção a

conteúdos formais e a conhecimentos científicos acumulados em detrimento dos saberes

culturais e/ou contextualizados. Além disso, houve, e talvez ainda haja, uma ditadura

escolar em que os sujeitos da escola apenas cumprem ordens e não refletem sobre suas

(deles próprios e até da escola) condições de agentes sociais transformadores da

sociedade. Assim, prime-se a necessidade de mudanças na educação. Inovar é preciso,

muito é dito. Entretanto,

[...] a inovação não vale por si só, depende do conteúdo da inovação.

Existem inovações ruins, existem inovações boas; existem práticas

chamadas, rotuladas de tradicionais, que às vezes são melhores do que

práticas rotuladas de construtivistas. [...] O discurso é pedagogicamente

correto, mas, na cabeça, persistem as ideias enraizadas na vivência e no

cotidiano do professor na sala de aula. Que formação poderia mudar tal

situação para que certas ideias não fossem apenas o discurso da moda, mas

entrassem realmente dentro das cabeças? E quais são as ideias mais

importantes para o professor? (CHARLOT, 2002, p. 93)

Para entender e promover mudanças, além da compreensão dos contextos

históricos da educação, pensamos ser necessário compreender os saberes docentes na

perspectiva apontada por Tardif (2010), entre os quais destacamos três: saberes

disciplinares, produzidos pela academia por meio das diversas disciplinas que compõem

o currículo dos cursos; saberes curriculares, correspondentes aos “(objetivos, conteúdos,

métodos) que os professores devem aprender e aplicar” (TARDIF, 2010, p. 38); saberes

experienciais, saberes práticos adquiridos ao longo de um tempo no exercício da

docência ou reflexo/refração das experiências enquanto aluno, enfim, é um saber

resultante das interações. Em síntese, de acordo com o autor,

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Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais,

compósitos, heterogêneos, pois trazem à tona, no próprio exercício do

trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-fazer e do saber-ser

bastante diversificados e provenientes de fontes variadas, as quais podemos

supor também que sejam de natureza diferente. (TARDIF, 2010, p. 61, grifo

do autor)

Defendemos que a associação entre história da educação, saberes docentes e, em

primeiro lugar, a análise da realidade do aluno (as manifestações linguísticas em que

está inserido) promovem a formação de professores reflexivos; por conseguinte, o

fortalecimento de um processo ensino-aprendizagem producente tocante à leitura e à

escrita, que eleve os baixos índices indicativos da qualidade da educação. A esse

respeito, assim como Machado (2007), entendemos que são indispensáveis pesquisas

que investiguem a escola interna e externamente e que contribuam para a revisão e o

estabelecimento de novas políticas públicas para a educação.

Considerações finais

Neste trabalho, inicialmente, delineamos o contexto de pesquisa. Posteriormente,

trouxemos um panorama das disciplinas Laboratórios de Textos Científicos I e II,

ambas ministradas no primeiro ano do Curso. Em seguida, procuramos, apoiados nos

estudos aplicados da linguagem, tratar o gênero relatório de estágio como elemento

catalisador que pode favorecer mudanças tanto para a prática do professor orientador de

estágio, quanto para a transposição didática do estudante-estagiário. A terceira seção do

artigo foi destinada às análises de atividades envolvendo a transposição didática.

Pela análise dos relatórios de estágio, concluímos que há a absorção da teoria de

gêneros textuais e dos documentos oficiais nos relatórios de estágio, ou seja, dos saberes

disciplinares na denominação de Tardif (2010). Entretanto é frágil a transposição

didática. A formação inicial não dá conta dela. É preciso que a Universidade expanda

sua atuação para além de seus muros e invista em Projetos de Extensão e, em parceria

com as Instituições gestoras da Educação Básica, fomente (realize) a formação

continuada dos professores, para cujos encaminhamentos teórico-metodológicos,

defendemos as proposições do ISD.

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Referências

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Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002152