desagravo a calvino parte 2

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Honra a Quem é Devida

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As Injustiças que Sofremos Provam que Deus Julgará o Mundo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.5

“Prova clara do justo juízo de Deus, para que sejais havidos por dignos do reino de Deus, pelo qual também padeceis;” (2 Tessalonicenses 1.5)

“Prova clara do justo juízo de Deus”. Sem mencionar a exposição dada por outros, sou da opinião de que o verdadeiro sentido é este – que as injúrias e perseguições que pessoas piedosas e inocentes sofrem por parte dos ímpios e dissolutos revelam claramente, como em um espelho, que Deus um dia será o juiz do mundo. E esta declaração está em total contraste com aquela noção profana que estamos acostumados a nutrir, sempre que vai bem com os bons e mal com os ímpios. Pois pensamos que o mundo está sob a ordem do mero acaso, e deixamos Deus sem controle. É por isso que a impiedade e o desprezo tomam posse dos corações dos homens, como fala Salomão (Ec 9:3) – pois aqueles que sofrem algo imerecidamente ou lançam a culpa em Deus, ou não pensam que ele se interesse pelos negócios humanos. Ouvimos o que diz Ovídio: “Sou tentado a pensar que não existem deuses”. Mais ainda, Davi confessa (Sl 73.1-12) que, porque via as coisas em um estado tão confuso no mundo, por pouco havia escorregado, como em um terreno escorregadio. Por outro lado, os ímpios tornam-se mais insolentes por ocasião da prosperidade, como se nenhum castigo de seus crimes os aguardasse; assim como Dionísio, ao fazer uma próspera viagem, jactou-se de que os deuses favoreciam os sacrílegos. Por fim,

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quando vemos que a crueldade dos ímpios contra os inocentes circula com impunidade, o senso carnal conclui que não há juízo de Deus, que não há castigos para os ímpios, que não há recompensa para a justiça.

Mas, por outro lado, Paulo declara que, como Deus assim poupa os ímpios por um tempo, e tolera as injúrias infligidas sobre o seu povo, Seu juízo futuro é revelado a nós como em um espelho. Pois ele tem por certo que isto só pode ser porque Deus, que é um justo Juíz, um dia restaurará a paz aos miseráveis, que agora são injustamente afligidos, e pagará aos opressores dos que são piedosos a recompensa que mereceram. Por isso, se mantemos este princípio de fé, de que Deus é o justo Juíz do mundo, e de que é seu ofício dar a cada um a recompensa de acordo com as suas obras, este segundo princípio seguir-se-á incontestavelmente – que o atual estado desordeiro das coisas (ataxian) é uma demonstração do juízo que ainda não se vê.

Pois, se Deus é o justo Juiz do mundo, as coisas que agora estão confusas devem, por necessidade, ser restauradas à ordem. Ora, nada está mais desordenado do que o fato de que os ímpios, com impunidade, causam incômodo aos bons, e circulam com irrestrita violência, enquanto os bons são cruelmente afligidos sem nenhuma falta de sua parte. Através disto pode-se inferir prontamente que Deus um dia subirá à tribuna de Juízo, a fim de remediar o estado das coisas no mundo, trazendo-as a uma melhor condição.

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Por isso, a declaração que ele acrescenta – de que é justo diante de Deus que dê em paga tribulação, etc, é o fundamento desta doutrina, de que Deus provê sinais de um juízo futuro quando se abstém, no presente, de exercer o ofício de juíz. E, sem sombra de dúvida, se as coisas estivessem agora ordenadas de um modo tolerável, de modo que o juízo de Deus pudesse ser reconhecido como tendo sido plenamente exercido, um ajuste desta natureza nos deteria sobre a terra. Por isso Deus, a fim de nos incitar à esperança de um juízo futuro, julga o mundo no presente apenas até certa medida. É verdade que ele fornece muitos sinais do seu juízo, mas é de tal modo que nos obriga a prolongarmos nossa esperança ainda mais. Esta é uma passagem realmente notável, pois nos ensina de que modo nossas mentes deveriam se elevar acima de todos os impedimentos do mundo, sempre que sofremos alguma adversidade – que o justo juízo de Deus possa se apresentar à nossa mente, o qual nos elevará acima deste mundo. Assim a morte será uma imagem da vida.

“Para que sejais havidos por dignos”. Não há nenhuma perseguição que possa ser considerada de tal valor que nos faça dignos do reino de Deus, e Paulo também não discute aqui o fundamento da dignidade, mas simplesmente toma a doutrina comum da Escritura – que Deus destrói em nós as coisas que são do mundo, a fim de restaurar em nós uma vida melhor; e ainda, que, por meio das aflições, ele nos mostra o valor da vida eterna. Em suma, ele simplesmente aponta a maneira em que os crentes são preparados e, por assim dizer, refinados sob

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a bigorna de Deus – porquanto, pelas aflições, são ensinados a renunciar ao mundo e a mirar o reino celestial de Deus. Ademais, eles são confirmados na esperança da vida eterna enquanto lutam por ela. Pois esta é a entrada acerca da qual Cristo discursou aos seus discípulos (Mt 7.13; Lc 13.24).

Os que Atribulam Serão Atribulados no Dia do Juízo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.6

“Se de fato é justo diante de Deus que dê em paga tribulação aos que vos atribulam,” (2 Tessalonicenses 1.6)

“Dê em paga tribulação”. Já temos dito por que Paulo faz menção da vingança de Deus contra os ímpios – para que aprendamos a descansar na esperança de um juízo futuro, porque Deus ainda não tomou vingança dos ímpios, embora seja necessário que sofram o castigo de seus crimes. Contudo, os fiéis, ao mesmo tempo, entendem por meio disto que não há razão para invejarem a felicidade momentânea e evanescente dos ímpios, que em breve será trocada por uma terrível destruição. O que ele acrescenta quanto ao descanso dos que são piedosos, está de acordo com a declaração de Pedro (Atos 3.20), em que ele chama o dia do juízo final de dia de refrigério.

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Contudo, nesta declaração, quanto aos bons e aos maus, ele pretendia mostrar mais claramente quão injusto e confuso seria o governo do mundo se Deus não deferisse os castigos e recompensas até outro julgamento – pois deste modo o nome de Deus seria algo morto. Por isso, ele é privado do seu ofício e poder por todos os que não estão atentos a essa justiça de que Paulo fala.

Ele acrescenta “conosco” a fim de obter crédito para a sua doutrina a partir da experiência de crer em sua própria mente; pois mostra que não filosofa quanto a coisas desconhecidas, ao colocar-se na mesma condição, e no mesmo nível deles. Por outro lado, sabemos quanto maior autoridade é devida àqueles que têm, por longa prática, sido exercitados nas coisas que ensinam, e não exigem de outros nada além do que eles mesmos não estejam preparados para fazer. Portanto, Paulo não dá instruções aos tessalonicenses quanto a como deveriam lutar sob o calor do sol enquanto ele mesmo está na sombra; mas, lutando valorosamente, exorta-os ao mesmo combate.

Os que São Atribulados Injustamente Serão Consolados - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.7

“E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder,” (2 Tessalonicenses 1.7)

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“Quando se manifestar o Senhor”. Aqui temos uma confirmação da declaração anterior. Porque assim como é um dos artigos de nossa fé, que Cristo virá do céu, e não virá em vão, a fé deve indagar a finalidade da sua vinda. Ora, é para que ele venha como um Redentor para o seu povo; mais ainda, para que possa julgar todo o mundo. A descrição que segue tem em vista isto – que os que são piedosos possam compreender que Deus está tanto mais preocupado com suas aflições proporcionalmente ao terror do juízo que aguarda seus inimigos. Pois a maior ocasião de tristeza e angústia é esta – pensarmos que Deus seja pouco afetado pelas nossas calamidades. Sabemos os lamentos a que Davi de tempos em tempos se entregava, enquanto era consumido pelo orgulho e insolência dos seus inimigos. Assim, Paulo apresentou tudo isto para a consolação dos crentes, enquanto ele apresenta o tribunal de Cristo como cheio de terror, para que eles não se abatessem pela sua presente condição oprimida, enquanto se viam calcados orgulhosa e desdenhosamente pelos ímpios.

Qual deve ser a natureza desse fogo, e de que materiais, deixo para as disputas de pessoas de curiosidade tola. Estou satisfeito em manter o que Paulo tinha em vista ensinar – que Cristo será um vingador mui rigoroso das injúrias que os ímpios infligem sobre nós. Contudo, a metáfora labareda de fogo é abundantemente comum na Escritura, quando se trata da ira de Deus.

Por anjos do seu poder, ele se refere àqueles em quem exercerá o seu poder; pois ele trará os anjos consigo com

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o propósito de demonstrar a glória do seu reino. Por isso, também, eles são em outro lugar chamados de anjos da sua majestade.

Deus Tomará Vingança Contra os que se Opõem ao Evangelho - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.8

“Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo;” (2 Tessalonicenses 1.8)

“Tomando vingança”. A fim de melhor persuadir os crentes que as perseguições que agora sofrem não ficarão impunes, Paulo ensina que isto também envolve os interesses do próprio Deus, porquanto as mesmas pessoas que perseguem os que são piedosos são culpadas de rebelião contra Deus. Por isso, é necessário que Deus inflija vingança sobre eles, não apenas com vistas à nossa salvação, mas também por causa da sua glória. Ademais, esta expressão, tomando vingança, relaciona-se com Cristo, pois Paulo sugere que este ofício lhe é atribuído por Deus Pai. Pode-se questionar, porém, se é lícito desejarmos a vingança, pois Paulo a promete como se pudesse ser licitamente desejada. Respondo que não é lícito desejar vingança contra ninguém, porquanto somos ordenados a desejar o bem a todos. Além disso, embora possamos de um modo geral desejar vingança contra os ímpios, ainda assim não devemos discriminá-los, devemos desejar o bem de todos. Ao mesmo tempo,

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a ruína dos ímpios pode ser licitamente esperada com anseio, desde que reine em nossos corações um puro e devidamente regulado zelo por Deus, e não haja nenhum sentimento de anseio excessivo.

“Que não conhecem”. Ele distingue os incrédulos por estas duas marcas – que eles não conhecem a Deus, e não obedecem ao evangelho de Cristo. Pois, se não é prestada obediência ao evangelho através da fé, como ele ensina no primeiro e último capítulos da Epístola aos Romanos (Rom 1.18; 16.17), a incredulidade serve de ocasião à sua resistência. Ao mesmo tempo ele os acusa de ignorância acerca de Deus, pois um conhecimento vivo de Deus produz por si mesmo reverência para com ele. Por isso, a incredulidade sempre é cega, não como se os incrédulos estivessem totalmente privados de luz e inteligência, mas porque têm o entendimento entenebrecido de tal modo que, vendo, não veem (Mt 13.13). Não é sem um bom motivo que Cristo declara que “esta é a vida eterna, que te conheçam por único Deus verdadeiro, etc.” (João 17.3). Portanto, pela falta deste salutar conhecimento, segue-se o desprezo a Deus, e, por fim, a morte. Sobre este ponto tratei mais diretamente ao comentar o capítulo primeiro de Primeira aos Coríntios.

Deus Será Glorificado Quando Fizer Justiça no Dia do Juízo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.9,10

“9. Os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder,

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10. Quando vier para ser glorificado nos seus santos, e para se fazer admirável naquele dia em todos os que creem (porquanto o nosso testemunho foi crido entre vós)”

9. “Eterna perdição, ante a face”. Paulo explica, por aposição, qual é a natureza do castigo de que havia feito menção – destruição sem fim, e morte infinita. A perpetuidade da morte é provada a partir da circunstância de que tem a glória de Cristo como o seu contrário. Ora, esta é eterna, e não tem fim. Portanto, a influência dessa morte nunca cessará. A partir daqui também se pode inferir a terrível severidade do castigo, porquanto será grande em proporção à glória e majestade de Cristo.

10. “Quando vier para ser glorificado”. Como até aqui ele discursou a respeito do castigo dos ímpios, agora se volta para os piedosos, e diz que Cristo virá para ser glorificado neles – ou seja, a fim de iluminá-los com a sua glória, e para que eles sejam participantes dela. “Cristo não terá esta glória para si mesmo individualmente; mas ela será comum a todos os santos”. Este é o coroamento e a superior consolação dos que são piedosos – que, quando o Filho de Deus se manifestar na glória do seu reino, ele os reunirá na mesma comunhão consigo. Contudo, há um contraste implícito entre a condição presente na qual os crentes gemem e sofrem, e essa restauração final. Pois agora eles estão expostos aos opróbrios do mundo, e são vistos como vís e indignos; mas então eles serão preciosos, e cheios de dignidade, quando Cristo derramar

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a sua glória sobre eles. O objetivo disto é que os piedosos possam, por assim dizer, de olhos fechados, seguir a breve jornada desta vida terrena, tendo suas mentes sempre atentas à manifestação futura do reino de Cristo. Pois, com que propósito ele faz menção da Sua vinda em poder, senão para que eles possam com esperança saltar para a frente, em direção àquela bendita ressurreição que ainda está oculta?

Também se deve observar que, após ter feito uso do termo santos, ele acrescenta, como explicação, os que creem – sugerindo por meio disto que não há nenhuma santidade nos homens sem a fé, mas que todos são profanos. Por fim, ele repete novamente os termos: naquele dia, pois aquela expressão está relacionada com esta sentença. Ora, ele a repete com vistas a reprimir os desejos dos crentes, para que não se apressassem além dos devidos limites.

“Porquanto foi crido”. O que havia dito de um modo geral quanto aos santos, agora ele aplica aos tessalonicenses, para que não duvidassem de que pertencem a esse número. “Porquanto”, ele diz, “a minha pregação obteve crédito entre vós, Cristo já vos arrolou no número do seu povo, que ele fará participante da sua glória”.

Ele chama sua doutrina de testemunho, porque os apóstolos são testemunhas de Cristo (Atos 1.8). Aprendamos, portanto, que as promessas de Deus são ratificadas em nós, quando elas obtêm crédito conosco.

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O Trabalho Árduo de Deus em Implantar a Sua Justiça nos Crentes - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.11

“Por isso também rogamos sempre por vós, para que o nosso Deus vos faça dignos da sua vocação, e cumpra todo o desejo da sua bondade, e a obra da fé com poder;” (2 Tessalonicenses 1.11)

“Por isso também rogamos sempre por vós”. A fim de que saibam que precisam da ajuda contínua de Deus, Paulo declara que ora em seu favor. Quando diz: “por isso”, ele quer dizer: para que alcançassem esse alvo final da sua jornada, como se mostra a partir do contexto imediato: e cumpra todo o desejo da sua boa vontade, etc. Contudo, parece que o que ele mencionou antes era desnecessário, pois Deus já lhes havia feito dignos do seu chamado. Porém, ele fala quanto ao fim ou consumação, a qual depende da perseverança. Pois, como estamos sujeitos a recuar, nosso chamado mais cedo ou mais tarde infalivelmente se mostraria, até onde nos diz respeito, ser vão, se Deus não o confirmasse. Por isso, é dito que ele nos faz dignos, quando nos conduz até o alvo em que miramos.

“E cumpra”. Paulo chega a uma maravilhosa eminência ao exaltar a graça de Deus, pois, não se contentando com o termo beneplácito, afirma que o mesmo flui da sua bondade – a não ser que, talvez, alguém prefira considerar a beneficência como se originando deste

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beneplácito, o que equivale à mesma coisa. Quando, porém, somos instruídos de que o propósito gracioso de Deus é a causa da nossa salvação, e que isto tem o seu fundamento na bondade do mesmo Deus, não somos piores do que loucos, se nos aventuramos a atribuir alguma coisa, por menor que seja, aos nossos méritos? Pois as palavras são não pouco enfáticas. Ele poderia ter dito em uma só palavra: para que a vossa fé se cumpra, mas designa isto em termos de beneplácito. Além disso, expressa a ideia ainda mais distintamente, dizendo que Deus era movido por nada mais do que a sua própria bondade, pois não encontra nada em nós além de miséria.

Nem Paulo também atribui à graça de Deus apenas o princípio da nossa salvação, mas todos os aspectos dela. Assim, é posta de lado aquela perspicácia dos sofistas, de que somos, na verdade, antecipados pela graça de Deus, e que ela é ajudada por méritos subsequentes. Paulo, por outro lado, reconhece em todo o progresso da nossa salvação nada além da pura graça de Deus. Como, porém, o beneplácito de Deus já foi cumprido nele, referindo o termo, empregado na sequência, ao efeito que se revela em nós, ele explica o seu significado, quando diz: e a obra da fé. E a chama de obra, em referência a Deus, que opera ou produz a fé em nós – como se tivesse dito: “para que ele complete o edifício da fé que começou”.

Também não é sem um bom motivo que diz “com poder”, pois sugere que o aperfeiçoamento da fé é uma coisa árdua, e uma das maiores dificuldades. Isto também

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sabemos muito bem pela experiência; e a razão, também, não está longe, se considerarmos quão grande é a nossa fraqueza, quão variados são os obstáculos que nos obstruem de todos os lados, e quão violentos são os assaltos de Satanás. Por isso, a menos que o poder de Deus nos propicie ajuda em grau não ordinário, a fé nunca se elevará até a sua plena estatura. Pois levar a fé até a perfeição em um indivíduo não é tarefa mais fácil do que edificar sobre as águas uma torre que possa pela sua firmeza resistir a todas as tempestades e à fúria dos temporais, e elevar-se acima da altura das nuvens; pois não somos menos fluidos do que a água, e é necessário que a estatura da fé alcance o céu.

Somos Glorificados por Cristo Quando o Glorificamos - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.12

“Para que o nome de nosso Senhor Jesus Cristo seja em vós glorificado, e vós nele, segundo a graça de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo.” (2 Tessalonicenses 1.12)

“Para que o nome de nosso Senhor Jesus Cristo seja glorificado”. Paulo nos chama de volta para o objetivo principal de toda a nossa vida – que promovamos a glória do Senhor. O que ele acrescenta, porém, é mais especialmente digno de nota – que aqueles que têm feito avançar a glória de Cristo, por sua vez, também serão

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glorificados nele. Pois nisto, antes de tudo, resplandece a bondade maravilhosa de Deus – que ele quer que a sua glória seja conspícua em nós, que estamos cobertos de ignomínia. Porém, este é um duplo milagre, que depois ele nos ilumine com a sua glória, como se quisesse fazer a nós o mesmo em troca. Por esta causa ele acrescenta: segundo a graça de Deus e de Cristo. Pois não há nada aqui que seja nosso, quer na ação em si, ou no efeito, ou fruto; pois é exclusivamente pela orientação do Espírito Santo que nossa vida contribui para a glória de Deus. E a circunstância de que nasça tanto fruto disto deve ser atribuída à grande misericórdia de Deus. Ao mesmo tempo, se não somos piores do que estúpidos, devemos visar com todo a nossas força ao avanço da glória de Cristo, a qual está relacionada com a nossa. Considero desnecessário explicar agora em que sentido ele representa a glória como pertencendo em comum a Deus e a Cristo, uma vez que já expliquei isto em outro lugar.

Um Viver Sério e Consagrado para a Volta do Senhor - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.1

“Ora, irmãos, rogamo-vos, pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, e pela nossa reunião com ele,” (2 Tessalonicenses 2.1)

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1. “Ora, rogamo-vos, pela vinda”. Isto pode na verdade ser lido como: concernente à vinda, mas é mais conveniente considerá-lo como um pedido sério, a partir do assunto em questão, como em 1 Co 15:31, quando, discursando a respeito da esperança de uma ressurreição, ele faz uso de um juramento por aquela glória que deve ser esperada pelos crentes. E isto tem muito maior eficácia, quando conjura os crentes, pela vinda de Cristo, a que não imaginem temerariamente que o seu dia esteja próximo, pois ao mesmo tempo ele nos admoesta a não pensarmos nisto senão com reverência e sobriedade. Pois é costumeiro conjurar pelas coisas que são consideradas por nós com reverência. Portanto, o sentido é: “Assim como atribuís grande valor à vinda de Cristo, quando ele nos reunirá consigo, e realmente aperfeiçoará aquela unidade do corpo que até agora nutrimos apenas em parte, através da fé; do mesmo modo rogo-vos seriamente pela sua vinda a que não sejais demasiadamente crédulos, caso alguém afirme, sob qualquer pretexto, que o seu dia está próximo”.

Como, na sua Epístola anterior, ele havia se referido, até certo ponto, à ressurreição, é possível que, a partir disto, alguns fanáticos e inconstantes tomassem ocasião para determinar um dia próximo e fixo. Pois não é provável que este erro não tivesse se originado entre os tessalonicenses antes. Pois Timóteo, ao voltar de lá, havia informado a Paulo toda a sua condição, e, como homem prudente e experimentado, não havia omitido nada que fosse de importância. Ora, se Paulo tivesse recebido notícia acerca disto, ele não teria se silenciado

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quanto a uma questão de tão graves consequências. Assim, sou da opinião que, quando fora lida a primeira Epístola de Paulo, a qual continha uma vívida descrição da ressurreição, alguns que estavam dispostos a favorecer a curiosidade filosofaram inoportunamente quanto ao seu tempo. Contudo, esta era uma fantasia absolutamente destrutiva, assim como eram também outras coisas da mesma natureza, que depois se disseminaram, não sem artifício por parte de Satanás. Pois, quando se diz que algum dia está próximo, se não chegar rapidamente, sendo a humanidade por natureza impaciente com maiores dilações, seus espíritos começam a definhar, e logo depois essa languidez é seguida pelo desespero.

Portanto, isto era uma sutileza de Satanás; como ele não podia subverter abertamente a esperança de uma ressurreição, com vistas a solapá-la secretamente, como que por meio de buracos subterrâneos, ele prometera que o seu dia estaria próximo, e logo chegaria. Em seguida, também, ele não cessara de inventar várias coisas com vistas a ofuscar das mentes dos homens, pouco a pouco, a crença de uma ressurreição – uma vez que não podia erradicá-la abertamente. De fato, é algo plausível dizer que o dia da nossa redenção está definitivamente fixado, e por esta causa isto é recebido com o aplauso por parte da multidão, tal como sabemos que os devaneios de Lactâncio e dos quiliastas antigamente causaram grande deleite; e contudo eles não tiveram outra tendência senão a de subverter a esperança de uma ressurreição. Este não era o propósito

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de Lactâncio, mas Satanás, conforme a sua sutileza, perverteu a sua curiosidade, e a dos seus semelhantes, não deixando nada definido ou fixo na religião, e até os dias atuais ele não deixa de empregar os mesmos meios. Agora vemos quão necessária era a admoestação de Paulo, uma vez que, não fosse por isso, toda a religião teria sido subvertida entre os tessalonicenses sob um pretexto plausível.

A Volta do Senhor Será Antecedida pela Apostasia e Manifestação do Anticristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.2

“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto.” (2 Tessalonicenses 2.2)

“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento”. Ele emprega o termo “entendimento” para denotar a fé estabelecida que se apoia na sã doutrina. Ora, através daquela fantasia que ele rejeita, eles teriam sido levados como que ao êxtase. Ele também observa três tipos de embuste, contra os quais deveriam estar de guarda – espírito, palavra e epístola espúria. Pelo termo espírito, ele se refere a pretensas profecias, e parece que este modo de falar era comum entre os piedosos, de modo que aplicavam o termo espírito a profetas, com vistas a lhes dar honra. Pois, para que as

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profecias tenham a devida autoridade, devemos olhar antes para o Espírito de Deus do que para os homens. Mas, como o diabo costuma transformar-se em anjo de luz (2 Cor 11.14), os impostores roubaram este título, a fim de se imporem sobre os simples. Mas, embora Paulo pudesse tê-los privado desta máscara, ele preferiu falar desta maneira, por concessão, como se tivesse dito: “Por mais que possam pretender ter o espírito de revelação, não creiais neles”. João, de modo semelhante, diz: “Provai os espíritos, se são de Deus” (1 Jo 4.1).

“Palavra”, em minha opinião, inclui todo o tipo de doutrina, enquanto os falsos mestres insistam em matéria de razões ou conjecturas, ou de outros pretextos. O que ele acrescenta quanto a epístola é uma evidência de que esta impudência é antiga – a de falsificar os nomes dos outros. Tanto mais maravilhosa é a misericórdia de Deus para conosco, pelo fato de que, embora o nome de Paulo fosse usado falsamente em escritos espúrios, seus escritos, não obstante, foram preservados intactos até os nossos tempos. Isto, sem sombra de dúvida, não poderia ter ocorrido acidentalmente, ou como efeito da mera atividade humana, se o próprio Deus, pelo seu poder, não tivesse restringido Satanás e todos os seus ministros.

“Como se o dia de Cristo estivesse já perto”. Isto pode parecer estar em desacordo com muitas passagens da Escritura, nas quais o Espírito declara que aquele dia está próximo. Mas a solução é fácil, pois está perto em relação a Deus, para quem um dia é como mil anos (2 Pe 3.8). Ao mesmo tempo, o Senhor queria que o aguardássemos

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constantemente, de tal modo a não limitá-lo a certo período de tempo. “Vigiai”, diz ele, “pois não sabeis o dia, nem a hora” (Mt 24.36). Por outro lado, aqueles falsos profetas que Paulo desmascara, embora devessem ter mantido as mentes dos homens em expectativa, mandavam que estivessem certos do seu rápido advento, para que não se cansassem com o aborrecimento da demora.

A Apostaria e o Homem do Pecado e Filho da Perdição - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.3

“Ninguém de maneira alguma vos engane; porque não será assim sem que antes venha a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição,” (2 Tessalonicenses 2.3)

“Ninguém vos engane”. A fim de que não prometessem a si mesmos infundadamente a vinda do alegre dia da redenção em tão curto espaço de tempo, Paulo lhes apresenta uma melancólica descrição quanto à futura dispersão da Igreja. Este discurso corresponde plenamente ao que Cristo fez em presença dos seus discípulos, quando estes lhe perguntaram a respeito do fim do mundo. Pois ele os exorta a se prepararem para suportar duros combates (Mt 24.6); e, depois de discursar acerca da mais terrível, prévia e inaudita das calamidades, pela qual a terra seria reduzida praticamente a um deserto, ele acrescenta que o fim

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ainda não está próximo, mas que estas coisas são os princípios das dores. Do mesmo modo, Paulo declara que os crentes devem exercer guerra por um longo período, antes de alcançarem um triunfo.

Contudo, aqui temos uma passagem notável, e que é, no mais alto grau, digna de observação. Esta era uma terrível e perigosa tentação, que poderia abalar até os mais confirmados, e fazê-los escorregar – ver a Igreja, que tivera, por meio de tantos trabalhos, se levantado gradualmente e com dificuldade até certa posição considerável, abater-se repentinamente, como se afundada por uma tempestade. Portanto, Paulo fortalece de antemão as mentes, não apenas dos tessalonicenses, mas de todos os que são piedosos, para que, quando a Igreja viesse a estar em uma condição dispersa, eles não ficassem alarmados, como se isto fosse algo novo e inesperado.

Como, porém, os intérpretes têm distorcido esta passagem de várias maneiras, devemos antes de tudo nos esforçar por determinar o verdadeiro sentido de Paulo. Ele afirma que o dia de Cristo não virá, enquanto o mundo não tiver caído em apostasia, e o reinado do Anticristo ser estabelecido na Igreja; pois, quanto à exposição que alguns têm dado a respeito desta passagem, como se referindo à queda do Império Romano, é simplória demais para exigir uma refutação extensa. Também fico surpreso de que tantos escritores, em outros aspectos instruídos e perspicazes, tenham incorrido em erro em um assunto que é tão fácil – não

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fosse que, quando alguém comete um erro, outros o sigam em bandos sem consideração. Portanto, Paulo emprega o termo apostasia no sentido de um abandono traiçoeiro de Deus, e isto não por parte de um ou alguns indivíduos, e sim como algo que se estenderia em toda a parte entre uma grande multidão de pessoas. Pois, quando apostasia é mencionada sem qualquer complemento, não pode ser restringida a poucos. Ora, ninguém pode ser denominado apóstata, senão aqueles que anteriormente fizeram uma confissão acerca de Cristo e do evangelho. Portanto, Paulo prediz certa revolta geral da Igreja visível. “A Igreja deve ser reduzida a um assustador e horrível estado de ruína, antes que sua plena restauração seja efetuada.”

A partir disto podemos prontamente deduzir quão útil é esta predição de Paulo , pois poderia parecer que não pudesse ser um edifício de Deus, aquilo que fosse subitamente subvertido, e permanecesse por tanto tempo em ruínas, se Paulo não tivesse muito antes sugerido que isto seria assim. Mais ainda, muitos nos dias atuais, quando consideram consigo mesmos a dispersão de longo tempo da Igreja, começam a vacilar, como se isto não tivesse sido determinado pelo propósito de Deus. Os romanistas também, com vistas a justificar a tirania do seu ídolo, fazem uso deste pretexto – que não era possível que Cristo desamparasse a sua esposa. Contudo, os fracos têm algo aqui em que se apoiar, quando aprendem que o estado inconveniente das coisas que contemplam na igreja foi há muito predito; enquanto, por outro lado, a impudência dos romanistas

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é abertamente desmascarada, porquanto Paulo declara que ocorrerá uma revolta, quando o mundo for trazido sob a autoridade de Cristo. Ora, veremos em breve por que o Senhor permitiu que a Igreja, ou ao menos o que parecia ser tal, decaísse de maneira tão vergonhosa.

“Se manifeste o homem do pecado”. Não era melhor do que uma fábula de velhas o que se concebeu a respeito de Nero; que ele fora arrebatado do mundo, destinado a voltar novamente para afligir a Igreja através da sua tirania; e, contudo, as mentes dos antigos estavam tão enfeitiçadas, que eles imaginavam que Nero seria o Anticristo. Contudo, Paulo não fala só de um indivíduo, mas de um reino, que seria apoderado por Satanás, para que ele estabelecesse um trono de abominação em meio ao templo de Deus, o que vemos cumprido no papado. É verdade que a rebelião se espalhou mais extensamente, pois Maomé, como era um apóstata, desviou de Cristo os turcos, seus seguidores. Todos os hereges têm quebrado a unidade da Igreja pelas suas seitas, e assim tem havido correspondente número de rebeliões contra Cristo.

Paulo, contudo, ao dar o alerta de que haveria tal dispersão, que a maior parte se revoltaria contra, acrescenta algo mais sério – que haveria tal confusão, que o vigário de Satanás manteria o poder supremo na Igreja, e a presidiria ali no lugar de Deus. Ora, ele descreve esse reinado de abominação sob o nome de uma única pessoa porque é apenas um reinado, embora um suceda ao outro. Meus leitores agora entendem que todas as seitas pelas quais a Igreja tem sido reduzida

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desde o princípio têm sido tantas correntes de rebelião que começaram a drenar a água do curso original; mas que a seita de Maomé foi como que um jorro impetuoso de água, que removeu quase a metade da Igreja pela sua violênca. Restava, ainda, que o Anticristo infectasse a parte restante com o seu veneno. Assim, vemos com os nossos próprios olhos que esta predição memorável de Paulo tem se confirmado pelo evento.

Na exposição que apresento, não há nada de forçado. Os crentes naquele tempo sonhavam que seriam transportados para o céu, após terem sofrido dificuldades durante um breve período de tempo. No entanto, pelo contrário, Paulo prediz que, depois de terem inimigos estranhos molestando-os por algum tempo, eles teriam de suportar mais males dos inimigos em casa, porquanto muitos daqueles que fizeram uma confissão de dedicação a Cristo seriam levados a abjeta traição, e porquanto o próprio templo de Deus seria contaminado por sacrílega tirania, de modo que o maior inimigo de Cristo exerceria o seu domínio ali. O termo manifestação é tomado aqui para denotar manifesta posse da tirania – como se Paulo tivesse dito que o dia de Cristo não viria enquanto esse tirano não tivesse se manifestado abertamente, e tivesse, por assim dizer, propositalmente subvertido toda a ordem da Igreja.

O Anticristo Agirá como se Fosse de Deus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.4

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“O qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus.” (2 Tessalonicenses 2.4)

“O qual se opõe, e se levanta”. Os dois epítetos – homem do pecado e filho da perdição – sugerem, em primeiro lugar, quão terrível seria a confusão, a fim de que a sua indecência não desencorajasse as mentes fracas; e ainda, eles tendem a incitar os que são piedosos a um sentimento de abominação, para que não se degenerem com os demais. Contudo, Paulo traça agora, como em um quadro, um surpreendente retrato do Anticristo; pois pode-se facilmente deduzir a partir destas palavras qual é a natureza do seu reino, e de que coisas consiste. Pois, quando o chama de adversário, quando diz que ele reivindicará para si as coisas que pertencem a Deus, de modo que é adorado no templo como Deus; ele põe o seu reino em oposição direta ao reino de Cristo. Por isso, assim como o reino de Cristo é espiritual, do mesmo modo deve haver essa tirania sobre as almas, a fim de rivalizar o reino de Cristo. Também o encontraremos depois atribuindo-lhe o poder de enganar, por meio de doutrinas ímpias e pretensos milagres. Se, portanto, quereis conhecer o Anticristo, deveis vê-lo como diametralmente oposto a Cristo.

Onde traduzi: “tudo o que é chamado Deus”, a leitura mais comumente recebida entre os gregos é: “todo o que é chamado”. Contudo, pode-se conjecturar, tanto a partir da tradução antiga, como de alguns comentários gregos,

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que as palavras de Paulo foram corrompidas. O equívoco, também, de uma única letra prontamente se introduziu, especialmente quando o formato da letra era muito semelhante; pois, onde estava escrito pan to (tudo), algum copista, ou leitor muito atrevido, transformou em “panta” (todos). Esta diferença, porém, não é de tanta importância para o sentido, pois Paulo, sem sombra de duvida, quer dizer que o Anticristo tomaria para si as coisas que pertencem a Deus somente, de modo que se exaltaria acima de toda reivindicação divina, para que toda a religião e todo o culto a Deus estivessem aos seus pés. Neste caso, a expressão: tudo o que se chama Deus, é equivalente a tudo o que se reconhece como Divindade, e sebasma, ou seja, aquilo em que consiste a veneração devida a Deus.

Aqui, porém, o assunto tratado não é propriamente o nome de Deus, e sim a sua majestade e adoração; e, em geral, tudo o que ele reivindica para si. “A verdadeira religião é aquela pela qual o verdadeiro Deus é exclusivamente adorado; isto, o filho da perdição transferirá para si”. Ora, todo aquele que aprendeu pela Escritura quais são as coisas que pertencem mais especialmente a Deus, e, por outro lado, observar o que o papa reivindica para si – ainda que fosse um menino de dez anos de idade – não terá grande dificuldade em reconhecer o Anticristo. A Escritura declara que Deus é o único Legislador (Tg 4.12) que pode salvar e destruir; o único Rei, cujo ofício é governar as almas pela sua palavra. Ela o apresenta como o autor de todos os ritos sagrados; ela ensina que a justiça e a salvação devem ser

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buscadas de Cristo somente; e designa, ao mesmo tempo, o meio e o modo. Não existe nenhuma destas coisas que o papa não afirme estar sob sua autoridade. Ele se orgulha de que cabe a ele impor às consciências as leis que lhe pareçam boas, e sujeitá-las ao castigo eterno. Quanto aos sacramentos, ou ele institui novos, de acordo com a sua própria inclinação, ou corrompe e deforma aqueles que foram instituídos por Cristo – sim, descarta-os completamente, para por em lugar deles os sacrilégios que inventou. Ele inventa meios de alcançar a salvação que estão completamente em desacordo com a doutrina do Evangelho; e, por fim, não hesita em mudar toda a religião de acordo com a sua vontade. Dizei-me, o que é exaltar-se acima de tudo o que se chama Deus, se o papa não faz isto? Quando deste modo priva a Deus de sua honra, ele não lhe deixa nada além de um título vazio de Divindade, enquanto transfere para si todo o seu poder. E é isto o que Paulo acrescenta logo depois, que o filho da perdição quererá parecer Deus. Pois, conforme foi dito, ele não insiste no simples termo Deus, mas sugere que o orgulho do Anticristo seria tal que, levantando-se acima do número e posição dos servos, e subindo na tribuna de Deus, reinaria, não com autoridade humana, mas divina. Pois sabemos que tudo o que é levantado em lugar de Deus é um ídolo, ainda que não traga o nome de Deus.

“No templo de Deus”. Apenas por este termo há uma refutação suficiente do erro; mais ainda, da estupidez daqueles que consideram que o papa seja o Vigário (o que está no lugar de alguém) de Cristo, pelo fato de ter o

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seu trono na Igreja, seja de que maneira possa se conduzir; pois Paulo não põe o Anticristo em nenhum outro lugar senão no próprio santuário de Deus. Pois este não é um inimigo estranho, mas doméstico, que se opõe a Cristo sob o próprio nome de Cristo. Mas, questiona-se, como pode a Igreja ser apresentada como covil de tantas superstições, ao passo que foi destinada para ser a coluna da verdade (1 Tm 3:15)? Respondo que ela é assim representada, não pelo fato de reter todas as qualidades da Igreja, e sim porque tem algo dela remanescente. Portanto, admito que esse é o templo de Deus em que o papa tem domínio, mas ao mesmo tempo profanado por inúmeros sacrilégios.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino se refere ao papa como sendo o Anticristo nem tanto pela terrível perseguição que a Igreja Romana da época realizou contra ele e todos os reformadores, que tinham em vista trazer o evangelho à sua pureza original na vida dos crentes; mas certamente assim o identificou porque por séculos a citada igreja constituía o poder soberano político e religioso em todo o mundo, de modo que até mesmo o registro de pessoas, quer de nascimentos, casamentos e óbitos não era realizado pelo estado, mas pela igreja. Além disso, tantos foram os acréscimos sem respaldo na doutrina bíblica que foram acrescentados na prática devocional da citada igreja, que o evangelho ficou grandemente transfigurado, a ponto de se chegar ao extremo de se colocar a confiança da salvação muito mais nas obras de homens do que na mera fé em Jesus Cristo. Chegou-se mesmo a ensinar que a salvação poderia ser comprada

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por meio de indulgências dadas pelo papa àqueles que as comprassem com certa quantia em dinheiro ou propriedades. Todavia, por estarmos vivendo quinhentos anos depois de Calvino, muitas luzes têm si derramadas sobre estas profecias relativas ao fim dos tempos, e sabemos agora que Satanás tem se valido de muitos poderes seculares, aparte do religioso, para destruir o modo de vida judaico-cristão, e tudo leva a crer que o Anticristo será um governante mundial, apoiado por uma igreja ecumênica também mundial, cujo líder é identificado como sendo o Falso Profeta no livro de Apocalipse; e nesta gigante igreja mundial serão achados também protestantes e todo tipo de confissões cristãs que se aliarão ao erro e se afastarão da sã doutrina bíblica. Na verdade isto já está acontecendo a passos largos em nossos dias, e muitos têm sido enganados por não darem ouvido às Escrituras, senão a ensinos de homens e de demônios.)

Paulo Ensinava Sobre a Volta de Jesus com Constância - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.5

“Não vos lembrais de que estas coisas vos dizia quando ainda estava convosco?” (2 Tessalonicenses 2.5

“Não vos lembrais? Isto acrescentou não pouco peso à doutrina – que anteriormente eles tinham ouvido pela

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boca de Paulo – para que não pensassem que havia sido inventado por ele no momento. E, como ele lhes havia dado um aviso inicial quanto ao reino do Anticristo, e a devastação que sobreviria à Igreja, quando nenhuma questão ainda havia sido levantada quanto a tais coisas, ele considerou fora de dúvida que era especialmente útil conhecer a doutrina. E, sem sombra de dúvida, isto é realmente assim. Aqueles a quem se dirigira estavam destinados a ver muitas coisas que os afligiria; e, quando a posteridade visse uma grande proporção daqueles que haviam feito confissão da fé de Cristo se rebelarem contra a piedade, enlouquecidos como que por uma mosca, ou antes por uma fúria, o que poderiam fazer, senão vacilar? Porém, esta era uma muralha de fogo – que as coisas foram assim designadas por Deus porque a ingratidão dos homens era digna de tal vingança. Aqui podemos ver como os homens são esquecidos em questões que afetam a sua salvação eterna. Também devemos notar a mansidão de Paulo; pois, embora pudesse ter veementemente se aborrecido, ele apenas os repreende mansamente; pois é um modo paternal de censurá-los dizer que haviam consentido que o esquecimento de uma questão tão importante e tão útil entrasse furtivamente em suas mentes.

A Manifestação do Mal no Mundo é Controlada por Deus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.6

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“E agora vós sabeis o que o detém, para que a seu próprio tempo seja manifestado.” (2 Tessalonicenses 2.6)

“E agora o que o detém. Katechon significa aqui propriamente um impedimento ou ocasião de demora. Crisóstomo, que pensa que isto só se pode entender em referência ao Espírito, ou ao Império Romano, prefere apoiar esta última opinião. Ele aponta uma razão plausível – porque Paulo não teria falado do Espírito em termos enigmáticos, mas, ao falar do Império Romano, queria evitar despertar um sentimento desagradável. Ele explica também a razão pela qual o estado do Império Romano retarda a revelação do Anticristo – porque, assim como a monarquia da Babilônia foi subvertida pelos persas e medos, e os macedônios, tendo conquistado os persas, novamente tomaram posse da monarquia, e os macedônios foram finalmente subjugados pelos romanos; do mesmo modo o Anticristo tomaria para si a supremacia vacante do Império Romano. Não há nenhuma destas coisas que não tenha sido confirmada depois pelos acontecimentos reais. Portanto, Crisóstomo fala com verdade até onde diz respeito à história. Contudo, sou da opinião de que a intenção de Paulo era diferente disto – que a doutrina do evangelho precisava se espalhar aqui e ali, até que praticamente todo o mundo estivesse convencido de obstinação e malícia deliberada. Pois não pode haver dúvida de que os tessalonicenses haviam ouvido da boca de Paulo quanto a este impedimento, seja de que natureza fosse, pois ele evoca à recordação deles o que havia anteriormente ensinado em sua presença.

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Que os meus leitores considerem agora qual dos dois é mais provável – ou que Paulo declarou que a luz do evangelho deve ser difundida por todas as partes da terra antes que Deus assim dê rédeas soltas a Satanás; ou que o poder do Império Romano permaneceu no caminho da ascensão do Anticristo, porquanto ele só poderia abrir caminho para um domínio vacante. Ao menos tenho a impressão de ouvir Paulo discursando quanto ao chamado universal dos gentios – que a graça de Deus deve ser oferecida a todos; de que Cristo deve iluminar a todo o mundo pelo seu evangelho, a fim de que a impiedade dos homens fosse mais plenamente atestada e demonstrada. Portanto, esta foi a demora, até que a carreira do evangelho fosse completada – porque um convite gracioso à salvação era o primeiro na ordem. Por isso acrescenta: a seu tempo, porque a vingança estaria madura depois que a graça tivesse sido rejeitada.

A Vinda do Anticristo Está Sendo Preparada Pelo Diabo Desde Há Muito - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.7

“Porque já o mistério da injustiça opera; somente há um que agora resiste até que do meio seja tirado;” (2 Tessalonicenses 2.7)

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“O mistério da iniquidade”. Isto é oposto a revelação; pois, como Satanás ainda não havia reunido tanta força, para que o Anticristo pudesse oprimir abertamente a Igreja, ele diz que ele está realizando secreta e clandestinamente o que faria abertamente em seu devido tempo. Portanto, naquele tempo ele estava lançando secretamente os fundamentos sobre os quais posteriormente levantaria o edifício, tal como realmente aconteceu. E isto tende a confirmar mais plenamente o que eu já disse – que não é um indivíduo que é representado sob o termo Anticristo, e sim um reino, que se estende por muitas eras. No mesmo sentido, João afirma que o Anticristo virá, mas que já havia muitos em seu tempo (1 Jo 2.18). Pois ele admoesta aqueles que viviam naquela ocasião a estarem de guarda contra essa pestilência mortal, que então estava crescendo de diversas formas. Pois estavam nascendo seitas que eram, por assim dizer, as sementes daquela erva desgraçada que quase sufocou e destruiu toda a lavoura de Deus. Mas, embora Paulo transmita a ideia de uma forma secreta de operação, ele fez uso do termo mistério ao invés de qualquer outro, aludindo ao mistério da salvação, do qual fala em outro lugar (Col 1.26); pois ele insiste atentamente na luta de repugnância entre o Filho de Deus e esse filho da perdição.

“Somente há um que agora resiste”. Embora faça ambas as declarações em referência a uma só pessoa – que ela manterá a supremacia por um período de tempo, e que logo será tirada do caminho – não tenho dúvida de que ele se refere ao Anticristo; e o particípio resistindo deve

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ser explicado no tempo futuro. Pois, em minha opinião, ele acrescentou isto para a consolação dos crentes – que o reinado do Anticristo será temporário, seus limites tendo sido designados por Deus; pois os crentes poderiam objetar: “De que vale que o evangelho seja pregado, se Satanás agora está incubando uma tirania que ele exercerá para sempre?” Portanto, ele exorta à paciência, porque Deus aflige sua Igreja apenas por um tempo, para que possa um dia dar-lhe o livramento; e, por outro lado, a perpetuidade do reinado de Cristo deve ser considerada, a fim de que os crentes possam repousar nisto.

O Anticristo Será Destruído Quando da Volta de Jesus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.8

“E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca, e aniquilará pelo esplendor da sua vinda;” (2 Tessalonicenses 2.8)

“E então será revelado”, ou seja, quando aquele impedimento (katechon) for removido; pois ele não assinala o tempo da revelação como sendo quando aquele que agora tem a supremacia for tirado do caminho, mas tem em vista o que havia dito antes. Pois ele dissera que havia certo impedimento no caminho do Anticristo para que este chegasse à posse declarada do reino. Em seguida, acrescentou que ele estava incubando uma obra secreta de impiedade. Em terceiro lugar,

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intercalou uma consolação, com base em que esta tirania chegaria a um fim. Ele agora repete novamente que aquele que ainda estava oculto seria revelado neste tempo; e a repetição tem este objetivo – que os crentes, estando equipados com a armadura espiritual, possam, não obstante, lutar valorosamente sob Cristo, e não se permitirem vencer, ainda que a avalanche de impiedade seja tão difusa.

“A quem o Senhor”. Ele havia prenunciado a destruição do reinado do Anticristo; agora, assinala o modo da sua destruição – que ele será reduzido a nada pela palavra do Senhor. Contudo, é incerto se ele fala da aparição final de Cristo, quando ele será manifestado desde o céu como o Juíz. As palavras, de fato, parecem ter este sentido, mas Paulo não quer dizer que Cristo realizaria isto em um só momento. Por onde devemos entendê-lo no sentido de que o Anticristo seria totalmente e em cada aspecto destruído, quando aquele dia final da restauração de todas as coisas chegasse. Contudo, Paulo sugere, ao mesmo tempo, que Cristo colocará em fuga, através dos raios que emitirá antes do seu advento, a escuridão em que o Anticristo reinará; assim como o sol, antes de ser visto por nós, afugenta as trevas da noite pela emanação dos seus raios.

Portanto, esta vitória da Palavra se revelará neste mundo, pois o espírito da sua boca simplesmente se refere à Palavra, assim como também em Is 11.4; passagem à qual Paulo parece aludir. Pois ali o Profeta toma no mesmo sentido o cetro da sua boca, e o sopro

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dos seus lábios, e também provê Cristo destas mesmas armas, a fim de que ele aniquile seus inimigos. Esta é uma notável recomendação da verdadeira e sã doutrina – que ela seja apresentada como suficiente para pôr um fim a toda a impiedade; e como destinada a ser invariavelmente vitoriosa, em oposição a todas as maquinações de Satanás; como também quando, pouco depois, a sua proclamação é expressa como a vinda de Cristo a nós.

Quando Paulo acrescenta: “esplendor da sua vinda”, ele sugere que a luz da presença de Cristo será tal que tragará as trevas do Anticristo. Ao mesmo tempo, ele sugere indiretamente que o Anticristo terá permissão para reinar por um tempo, quando Cristo, de certa forma, se tem retirado, como geralmente acontece quando, ao se apresentar, voltamos nossas costas para ele. E, sem sombra de dúvida, este é um triste afastamento de Cristo, quando ele retira sua luz dos homens, a qual foi imprópria e indignamente recebida, de acordo com o que se segue. Ao mesmo tempo, Paulo ensina que, apenas pela sua presença, todos os eleitos de Deus estarão abundantemente seguros, em oposição a todas as sutilezas de Satanás.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Quão temerário é que coloquemos a confiança e segurança da nossa salvação nas mãos de determnadas instituições religiosas, sejam elas quais forem, porque poderemos afinal estar apoiando simplesmente homens e projetos humanos, que podem ser inclusive contrários aos propóstios de

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Deus. Somos portanto advertidos constantemente nas Escrituras a colocar tão somente a nossa confiança em Jesus Cristo e em nada e ninguém mais, quando o que está em foco é a segurança eterna da nossa alma. Ademais, o ensino doutrinário que nos convém é aquele que é afirmado na Bíblia – faremos bem portanto, em rechaçar tudo o que não esteja conformado à sã doutrina bíblica).

O Anticristo Atuará pelo Poder e Mentiras de Satanás - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.9

“A esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira,” (2 Tessalonicenses 2.9)

“Cuja vinda”. Ele confirma o que disse através de um argumento a partir de opostos. Pois, como o Anticristo não pode permanecer de outro modo senão através dos embustes de Satanás, ele deve necessariamente desaparecer tão logo Cristo resplandeça. Por fim, como é apenas nas trevas que ele reina, a aurora do dia põe em fuga e extingue as densas trevas do seu reinado. Agora estamos de posse do propósito de Paulo, pois ele queria dizer que Cristo não teria dificuldade em destruir a tirania do Anticristo, o qual não era apoiado por outros recursos senão os de Satanás. Ao mesmo tempo, porém, ele indica as marcas pelas quais aquele ímpio pode ser distinguido. Pois, após ter falado acerca da operação ou eficácia de

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Satanás, ele a assinala particularmente, quando diz: com sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano. E, certamente, para que possa ser oposto ao reino de Cristo, isto deve consistir parcialmente de falsa doutrina e erros, e parcialmente de pretensos milagres. Pois o reino de Cristo consiste da doutrina da verdade, e do poder do Espírito. Portanto, Satanás, tendo em vista se opor a Cristo na pessoa do seu Vigário, veste a máscara de Cristo, enquanto, ao mesmo tempo, escolhe uma armadura com que possa se opor diretamente a Cristo. Cristo, pela doutrina do seu evangelho, ilumina nossas mentes na vida eterna; o Anticristo, treinado sob a instrução de Satanás, por meio de perversa doutrina, envolve os ímpios em ruína; Cristo apresenta o poder do seu Espírito para salvação, e sela o seu evangelho por meio de milagres; o adversário, pela eficácia de Satanás, nos aliena do Espírito Santo, e pelos seus encantamentos confirma os homens miseráveis no erro.

Ele dá o nome de prodígios de mentira, não apenas àqueles que são falsa e enganosamente concebidos por homens astutos, com vistas a se impor sobre os simples – um tipo de engano com que abunda todo o papado, pois eles fazem parte do seu poder, do qual anteriormente tratou; mas toma a mentira como consistindo disto, que Satanás leva a um fim contrário obras que de outro modo são realmente obras de Deus, e abusa dos milagres para obscurecer a glória de Deus. Ao mesmo tempo, porém, não pode haver dúvida de que ele engana através de encantamentos – dos quais temos um exemplo nos magos do Faraó (Êx 7.11).

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O Anticristo Atuará pelo Poder e Mentiras de Satanás - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.9

“A esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira,” (2 Tessalonicenses 2.9)

“Cuja vinda”. Ele confirma o que disse através de um argumento a partir de opostos. Pois, como o Anticristo não pode permanecer de outro modo senão através dos embustes de Satanás, ele deve necessariamente desaparecer tão logo Cristo resplandeça. Por fim, como é apenas nas trevas que ele reina, a aurora do dia põe em fuga e extingue as densas trevas do seu reinado. Agora estamos de posse do propósito de Paulo, pois ele queria dizer que Cristo não teria dificuldade em destruir a tirania do Anticristo, o qual não era apoiado por outros recursos senão os de Satanás. Ao mesmo tempo, porém, ele indica as marcas pelas quais aquele ímpio pode ser distinguido. Pois, após ter falado acerca da operação ou eficácia de Satanás, ele a assinala particularmente, quando diz: com sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano. E, certamente, para que possa ser oposto ao reino de Cristo, isto deve consistir parcialmente de falsa doutrina e erros, e parcialmente de pretensos milagres. Pois o reino de Cristo consiste da doutrina da verdade, e do poder do Espírito. Portanto, Satanás, tendo em vista se opor a Cristo na pessoa do seu Vigário, veste a máscara de Cristo, enquanto, ao mesmo tempo, escolhe uma

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armadura com que possa se opor diretamente a Cristo. Cristo, pela doutrina do seu evangelho, ilumina nossas mentes na vida eterna; o Anticristo, treinado sob a instrução de Satanás, por meio de perversa doutrina, envolve os ímpios em ruína; Cristo apresenta o poder do seu Espírito para salvação, e sela o seu evangelho por meio de milagres; o adversário, pela eficácia de Satanás, nos aliena do Espírito Santo, e pelos seus encantamentos confirma os homens miseráveis no erro.

Ele dá o nome de prodígios de mentira, não apenas àqueles que são falsa e enganosamente concebidos por homens astutos, com vistas a se impor sobre os simples – um tipo de engano com que abunda todo o papado, pois eles fazem parte do seu poder, do qual anteriormente tratou; mas toma a mentira como consistindo disto, que Satanás leva a um fim contrário obras que de outro modo são realmente obras de Deus, e abusa dos milagres para obscurecer a glória de Deus. Ao mesmo tempo, porém, não pode haver dúvida de que ele engana através de encantamentos – dos quais temos um exemplo nos magos do Faraó (Êx 7.11).

O Anticristo é um Juízo de Deus Para os que Amam a Mentira - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.10

“E com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem.” (2 Tessalonicenses 2.10)

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“Para os que perecem”. Ele limita o poder de Satanás, como não sendo capaz de prejudicar os eleitos de Deus, assim como Cristo também os isenta deste perigo (Mt 24.24). A partir disto se mostra que o Anticristo não tem um poder tão grande, senão pela sua permissão. Ora, esta consolação era necessária. Pois todos os que são piedosos, se não fosse por isto, necessariamente seriam dominados pelo temor, se vissem um abismo escancarado pervadindo todo o caminho pelo qual devem passar. Por isso Paulo, por mais que deseje que eles estejam em um estado de ansiedade, a fim de que estejam de guarda para que não voltem atrás devido a uma negligência excessiva, sim, até mesmo se lancem em ruína; não obstante, os manda nutrir boa esperança, porquanto o poder de Satanás está restringido, a fim de que ele não envolva em ruína ninguém senão os ímpios.

“Porque não receberam o amor”. Para que os ímpios não se queixem de que perecem inocentemente, e de que foram destinados à morte mais por crueldade da parte de Deus, do que por qualquer erro da parte deles, Paulo explica com que bons motivos virá sobre eles tão severa vingança da parte de Deus –porque não receberam na moderação de espírito que deveriam, a verdade que lhes fora apresentada; mais ainda, rejeitaram a salvação por sua própria vontade. E a partir disto se mostra mais claramente o que já tenho explicado – que o evangelho precisava ser pregado ao mundo antes que Deus desse a Satanás tanta permissão; pois ele nunca teria permitido que seu templo fosse tão abjetamente profanado, se não tivesse sido provocado pela extrema ingratidão por parte

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dos homens. Em suma, Paulo declara que o Anticristo será o ministro da justa vingança de Deus contra aqueles que, sendo chamados à salvação, rejeitaram o evangelho, e preferiram aplicar sua mente à impiedade e ao engano. Por isso, agora não há razão para os papistas objetarem que está em desacordo com a clemência de Cristo deixar cair a sua Igreja desta maneira. Pois, embora o domínio do Anticristo tenha sido cruel, ninguém pereceu, senão aqueles que foram merecedores disto; mais ainda, por sua própria vontade escolheram a morte (Pv 8.36). E, sem sombra de dúvida, ainda que a voz do Filho de Deus tenha soado por toda a parte, ela acha os ouvidos dos homens moucos, sim, obstinados; e, embora uma confissão do Cristianismo seja comum, existem, não obstante, poucos que verdadeiramente e de coração têm se entregado a Cristo. Por isso, não é de se surpreender, se semelhante vingança rapidamente suceder a um desprezo tão criminoso.

Questiona-se se o castigo da cegueira não cai senão sobre aqueles que deliberadamente se rebelaram contra o evangelho. Eu respondo que este juízo especial pelo qual Deus tem vingado uma clara obstinação não o impede de abater com severidade, tantas vezes quanto lhe pareça bom, aqueles que nunca ouviram uma única palavra a respeito de Cristo; pois Paulo não discursa de um modo geral quanto às razões pelas quais Deus permitiu desde o princípio que Satanás siga à vontade com as suas mentiras, e sim quanto a que vingança horrível paira sobre os desprezadores grosseiros da nova e anteriormente incomum graça.

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Ele usa a expressão: recebendo o amor da verdade, no sentido de aplicar a mente ao seu amor. Por onde aprendemos que a fé sempre está associada a uma doce e voluntária reverência a Deus – porque não cremos devidamente na palavra de Deus, a menos que ela seja amável e agradável a nós.

Deus Permite a Manifestação do Mal Para Provar os Corações - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.11

“E por isso Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira;” (2 Tessalonicenses 2.11)

“A operação do erro”. Ele quer dizer que o engano não apenas terá um lugar, mas os ímpios serão cegados, de modo que se precipitarão à ruína sem consideração. Pois, assim como Deus nos ilumina interiormente pelo seu Espírito, para que a sua doutrina seja eficaz em nós, e abre os nossos olhos e corações, para que ela faça o seu caminho, do mesmo modo, por um justo juízo, ele entrega a uma mente réproba (Rom 1:28) aqueles que destinou à destruição, para que, com olhos fechados e uma mente insensata, eles possam, como se estivessem enfeitiçados, se entregar a Satanás e seus ministros para serem enganados. E, certamente, temos uma amostra notável disto no papado. Nenhuma palavra pode expressar que antro monstruoso de erros existe ali, que absurdo grosseiro e vergonhoso de superstições existe ali, e que ilusões em desacordo com o senso comum.

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Ninguém que possua até mesmo um senso moderado da sã doutrina pode pensar em coisas tão monstruosas sem o maior terror. Então, como o mundo todo poderia se perder de espanto com eles, se não fosse porque os homens têm sido feridos de cegueira pelo Senhor, e convertidos, por assim dizer, em tocos de madeira?

(Nota do Pr Silvio Dutra: Já apresentamos anteriormente algumas das razões que levaram Calvino a focar mais na Igreja Romana do que em quaisquer outras instituições religiosas ou pessoas que alegam estar a serviço de Cristo. Sabemos que a existência do erro doutrinário e das operações enganadoras de Satanás são muito mais extensas do que possamos imaginar, inclusive nas próprias fileiras da Igreja Protestante, especialmente a de nossos dias, que possui vários segmentos que não sustentam a doutrina de Cristo do modo pelo qual importa ser sustentada. Todavia, o vigor das advertências bíblicas quanto ao juízo terrível de condenação divina que paira sobre todos os que não se arrependem dos seus pecados é claramente apresentado por uma grande misericórdia de Deus, para que sejamos despertados do sono e do engano, de modo a buscarmos a salvação e a graça que se encontram somente na pessoa de Jesus Cristo.)

Quem Tem Prazer na Iniquidade Será Julgado por Deus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.12

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“Para que sejam julgados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer na iniquidade.” (2 Tessalonicenses 2.12)

“Para que sejam julgados todos”. Ou seja, para que recebam o castigo devido à sua impiedade. Assim, aqueles que perecem não têm nenhum motivo justo para discutir com Deus, porquanto alcançaram o que buscavam. Pois devemos ter em vista o que é dito em Dt 13:3, que os corações dos homens são sujeitos a prova, quando surgem falsas doutrinas, porquanto elas não têm poder, exceto entre aqueles que não amam a Deus com um coração sincero. Então, que aqueles que têm prazer na injustiça colham o seu fruto. Quando ele diz todos, significa que o desprezo a Deus não acha escusa no grande número e multidão daqueles que se recusam a obedecer o evangelho; pois Deus é o Juiz do mundo todo, de modo que infligirá castigo a cem mil não menos do que a um único indivíduo.

O particípio grego eudokesantes (tido prazer) significa, por assim dizer, uma inclinação voluntária para o mal, pois deste modo é removida toda a desculpa dos ingratos, quando têm tanto prazer na injustiça que preferem-na à justiça de Deus. Pois, através de que violência dirão ter sido impelidos a se alienarem por uma louca rebelião contra Deus, em direção a quem eles eram conduzidos pela orientação da natureza? Ao menos fica manifesto que eles, voluntária e conscientemente, deram ouvidos a mentiras.

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(Pr Silvio Dutra: É vão atacar a religião ou denominações religiosas para justificarmos a nossa falta de amor à santidade de Deus. De fato, as coisas especialmente em nossos dias estão tão complicadas quanto à possibilidade de encontramos instituições que sigam estrita e corretamente a norma bíblica, fazendo uma exposição adequada da doutrina, e disciplinando os seus membros segundo a mesma doutrina, com toda a longanimidade, que não me aventuro a dizer quando alguém se converte que procure esta ou aquela igreja mais próxima de sua residência, para nela congregar. Entretanto, não seremos dados como escusados por Deus caso não tenhamos tido o devido cuidado com a salvação e santificação de nossas vidas. Assim, devemos nos dedicar à oração, à vigilância e ao estudo e aplicação da verdade da Sua Palavra, para que tenhamos a direção que nos virá do Alto, para que possamos viver do modo que seja agradável ao Senhor, na comunhão com outros, que com um coração puro o invocam.)

Eleitos para Salvação em Santificação do Espírito e Fé na Palavra - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.13

“Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade;” (2 Tessalonicenses 2.13)

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“Mas devemos sempre dar graças”. Agora Paulo separa mais abertamente os tessalonicenses dos réprobos, a fim de que a fé deles não vacilasse pelo temor da rebelião que deveria acontecer. Ao mesmo tempo, ele tinha em vista considerar não apenas o bem-estar deles, mas também o da posteridade. E ele não apenas os confirma para que não caiam no mesmo precipício com o mundo, mas através desta comparação, exalta ainda mais a graça de Deus para com eles, pelo fato de que, embora vejam praticamente todo o mundo compelido ao mesmo tempo para a morte, como que por uma violenta tempestade; eles são, pela mão de Deus, mantidos em uma condição de vida tranquila e segura. Assim, devemos contemplar os juízos de Deus sobre os réprobos de tal modo que possam ser para nós como que espelhos, para considerarmos a sua misericórdia para conosco. Pois devemos deduzir esta conclusão – de que é exclusivamente devido à graça singular de Deus que não perecemos miseravelmente com eles.

Ele os chama de amados do Senhor por esta razão – para que melhor considerem que a única razão pela qual estão isentos da ruína quase que universal do mundo é porque Deus exerceu para com eles amor imerecido. Assim Moisés admoestou os judeus: “Deus não vos exaltou tão magnificamente porque fosseis mais fortes do que outros, ou fosseis numerosos, mas porque amou a vossos pais” (Dt 7:7-8). Pois, quando ouvimos o termo amor, aquela declaração de João deve imediatamente ocorrer à nossa mente – não que o amamos primeiro (1 Jo 4:19). Em suma, aqui Paulo faz duas coisas; pois ele confirma a

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fé, para que os que são piedosos não se deixem vencer pelo temor, e os exorta à gratidão, para que valorizem tanto mais a misericórdia de Deus para com eles.

“Por vos ter Deus elegido”. Ele declara a razão pela qual nem todos são envolvidos e tragados na mesma ruína – porque Satanás não tem poder algum sobre aqueles que Deus escolheu, de modo a impedi-los de serem salvos, ainda que o céu e a terra sejam confundidos. Esta passagem é lida de diversas maneiras.

O intérprete antigo traduziu-a como primeiros frutos, como estando no grego aparchen ; mas como quase todos os manuscritos gregos trazem aparchos segui de preferência esta leitura. Se alguém preferir primeiros frutos, o sentido será que os crentes foram, por assim dizer, postos de lado para uma oferta sagrada, por uma metáfora tirada do costume antigo da lei. Contudo, mantenhamos o que é mais geralmente aceito, que ele afirma que os tessalonicenses foram escolhidos desde o princípio.

Alguns entendem que o sentido é que eles foram chamados entre os primeiros; mas isto é estranho ao sentido de Paulo, e não está de acordo com o contexto da passagem. Pois ele não isenta do temor apenas alguns indivíduos, que haviam sido levados a Cristo logo no princípio do evangelho, mas esta consolação pertence a todos os eleitos de Deus, sem exceção. Portanto, quando diz: desde o princípio, ele quer dizer que não há perigo de que a salvação deles, que está fundamentada na eleição eterna de Deus, seja subvertida, sejam quais forem as

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mudanças tumultuosas que possam ocorrer. “Por mais que Satanás possa misturar e confundir todas as coisas no mundo, vossa salvação, apesar disso, foi colocada em uma posição de segurança, antes da criação do mundo”. Portanto, aqui está o verdadeiro porto de segurança, que Deus, que nos escolheu desde a antiguidade, nos livrará de todos os males que nos ameaçam. Pois somos eleitos para a salvação; portanto, estaremos seguros da destruição. Mas, como não cabe a nós penetrar no conselho secreto de Deus, para encontrar aí a certeza da nossa salvação, ele especifica sinais e indícios de eleição, que deveriam nos bastar para a certeza acerca dela.

Em santificação do espírito, diz ele, e fé da verdade. Isto pode ser explicado de duas maneiras; com santificação, ou por santificação. Não é de muita importância qual dos dois você escolha, pois é certo que Paulo pretendia simplesmente apresentar, em conexão com a eleição, aqueles sinais mais imediatos que manifestam a nós o que em sua própria natureza é incompreensível, e estão associados a ela por um elo indissolúvel. Por isso, a fim de que saibamos que somos eleitos por Deus, não há razão para inquirirmos quanto ao que ele decretou antes da criação do mundo; mas encontramos em nós mesmos uma prova satisfatória de que ele nos tem santificado pelo seu Espírito – se ele nos tem iluminado na fé do seu evangelho. Pois o evangelho é para nós uma evidência da nossa adoção; e o Espírito o sela; e aqueles que são guiados pelo Espírito estes são filhos de Deus (Rom 8.14); e aquele que pela fé possui a Cristo tem a vida eterna (1 Jo 5.12). Estas coisas devem ser atentamente observadas

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para que, desprezando a revelação da vontade de Deus, com a qual ele nos manda permanecermos santificados, não mergulhemos em um labirinto profundo por um desejo de extraí-la a partir do seu conselho secreto, de cuja investigação ele nos afasta. Por isso, convém que fiquemos satisfeitos com a fé do evangelho, e com aquela graça do Espírito pela qual temos sido regenerados. E, deste modo, é refutada a impiedade daqueles que fazem da eleição de Deus um pretexto para todo o tipo de iniquidade, ao passo que Paulo a relaciona com a fé e a regeneração de tal modo que ele não queria que a julgássemos sobre qualquer outro fundamento.

Chamados pelo Evangelho para Alcançar a Glória Eterna - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.14

“Para o que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo”.

“Para o que vos chamou”. Paulo repete a mesma coisa, embora em termos um tanto diferentes. Pois os filhos de Deus não são chamados à crença da verdade de outro modo. Contudo, Paulo pretendia mostrar aqui quão competente testemunha ele é para confirmar aquilo de que era ministro. Portanto, ele se apresenta como uma garantia, a fim de que os tessalonicenses não duvidem de que o evangelho, no qual haviam sido instruídos por ele,

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é a reconfortante voz de Deus, pela qual são despertados da morte, e salvos da tirania de Satanás. Ele o chama de seu evangelho, não como se tivesse se originado com ele, e sim porque a pregação dele lhe havia sido confiada.

O que ele acrescenta, para a aquisição ou possessão da glória de Cristo, pode ser entendido quer em um sentido ativo ou passivo – ou como significando que eles são chamados para que um dia possuam uma glória em comum com Cristo, ou que Cristo os adquiriu tendo em vista a sua glória. E assim será um segundo meio de confirmação o fato de que ele os defenderá, como sendo nada menos do que sua própria herança; e, ao manter a salvação deles, se apresentará em defesa da sua própria glória; este último sentido, em minha opinião, soa melhor.

Firmes por Reter a Doutrina de Cristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.15

“15. Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa.

16. E o próprio nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Deus e Pai, que nos amou, e em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança,

17. console os vossos corações, e vos confirme em toda a boa palavra e obra.”

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Paulo deduz esta exortação, com bons motivos, a partir do que vem antes; porquanto nossa firmeza e poder de perseverança não se apoiam em nada mais do que na certeza da graça divina. Quando, porém, Deus nos chama para a salvação, como que estendendo a nós sua mão; quando Cristo, pela doutrina do evangelho, se apresenta a nós para ser desfrutado; quando o Espírito nos é dado como um selo e penhor da vida eterna; ainda que o céu caia, não podemos ficar abatidos. Portanto, Paulo queria que os tessalonicenses permanecessem de pé, não apenas quando outros continuam de pé, mas com uma estabilidade ainda mais segura; de modo que, ao ver quase todos se desviando da fé, e todas as coisas cheias de confusão, eles retenham o seu lugar. E, certamente, o chamado de Deus deveria nos fortalecer contra todas as ocasiões de escândalo, de tal modo que nem mesmo a ruína de todo o mundo abalasse, muito menos subvertesse, a nossa estabilidade.

15. “Retende as tradições”. Alguns restringem isto a preceitos de conduta exterior; mas isto não me contenta, pois ele aponta para o modo de permanecer firme. Ora, estar equipado com força invencível é muito mais do que disciplina exterior. Por isso, em minha opinião, ele inclui toda a doutrina sob este termo, como se tivesse dito que eles têm um fundamento sobre o qual podem permanecer firme, desde que perseverem na sã doutrina, conforme o que haviam sido instruídos por ele. Não nego que o termo paradoseis seja adequadamente aplicado às ordenanças que são estabelecidas pelas igrejas, com vistas à promoção da paz e à manutenção da ordem; e

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admito que é empregado neste sentido quando se tratam de tradições humanas (Mt 15.6). Contudo, Paulo será encontrado no próximo capítulo fazendo uso do termo tradição, no sentido da regra que havia formulado, e a própria significação do termo é genérica. O contexto, porém, conforme eu disse, exige que ela seja entendida aqui no sentido da totalidade daquela doutrina na qual eles haviam sido instruídos. Pois o assunto tratado é o mais importante de todos – que a fé deles permanecesse segura em meio a uma terrível agitação da Igreja.

Os papistas, porém, fazem um uso indevido desta passagem ao deduzirem a partir disto que suas tradições deveriam ser observadas. Na verdade, eles raciocinam da seguinte maneira – que, se era permissível para Paulo prescrever tradições, também era permissível para outros mestres; e que, se era algo piedoso observar as primeiras, as últimas também não deveriam ser menos observadas. Contudo, concedendo-lhes que Paulo fala de preceitos pertencentes ao governo exterior da Igreja, digo que, não obstante, eles não foram inventados por ele, mas comunicados divinamente. Pois ele declara em outro lugar (1 Co 7:35) que não era sua intenção prender as consciências, pois isto não era lícito, nem para si, nem para todos os apóstolos juntos. Eles fazem um uso ainda pior, ao fazer do seu objetivo passar, sob isto, o escoadouro abominável de suas próprias superstições, como se fossem as tradições de Paulo. Mas, “adeus” para essas ninharias, quando estamos na posse do verdadeiro sentido de Paulo. E podemos julgar, em parte através desta Epístola, que tradições ele recomenda aqui, pois

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diz: quer por palavra, ou seja, discurso, ou por epístola. Ora, o que estas Epístolas contêm senão a pura doutrina, que subverte o próprio fundamento de todo o papado, e toda a invenção que esteja em desacordo com a simplicidade do Evangelho?

Confirmação em Toda Boa Palavra e Obra - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.16,17

“16. E o próprio nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Deus e Pai, que nos amou, e em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança,

17. Console os vossos corações, e vos confirme em toda a boa palavra e obra.”

“E o próprio Senhor”. Quando Paulo atribui a Cristo uma obra totalmente divina, e o apresenta em comum com o Pai, como o Autor das mais excelentes bênçãos; assim como temos nisto uma prova clara da divindade de Cristo, do mesmo modo somos admoestados de que não podemos obter nada de Deus a menos que o busquemos no próprio Cristo; e, quando pede que Deus lhes dê aquelas coisas que havia prescrito, ele mostra mui claramente quão pouca influência têm as exortações, a menos que Deus mova ou afete interiormente os nossos corações. Sem sombra de dúvida, haverá apenas um som oco atingindo os ouvidos, se a doutrina não receber a eficácia do Espírito.

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O que ele acrescenta em seguida, que nos amou, e nos deu uma consolação, etc, relaciona-se com a confiança ao pedir; pois ele queria que os tessalonicenses se sentissem persuadidos de que Deus fará aquilo pelo que ele ora. E através do que prova isto? Em razão de que outrora revelou que eles lhe eram caros, ao mesmo tempo em que já lhes conferira distintos favores, e assim se comprometera com eles pelo tempo futuro. É isto o que ele quer dizer com eterna consolação. O termo esperança, ademais, tem o mesmo objeto em vista – para que eles esperassem confiantemente uma continuidade nunca deficiente de dons. Mas o que ele pede? Que Deus possa sustentar os seus corações pela sua consolação; pois este é o seu ofício – guardá-los de ceder à ansiedade ou desconfiança; e ainda, para que lhes dê perseverança, tanto em um curso santo e piedoso de vida, como na sã doutrina; pois sou da opinião de que é mais disto que ele fala do que do discurso comum, de modo que isto concorda com o que vem antes.

Glorificação da Palavra de Deus em Nossas Vidas - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.1

“No demais, irmãos, rogai por nós, para que a palavra do Senhor tenha livre curso e seja glorificada, como também o é entre vós;” (2 Tessalonicenses 3.1)

“Rogai por nós”. Embora o Senhor o ajudasse poderosamente, e embora ultrapassasse todos os outros

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em ardor de oração, Paulo não despreza as orações dos crentes, pelas quais o Senhor quer que sejamos auxiliados. Convém-nos, segundo o seu exemplo, desejar avidamente esta ajuda, e encorajar nossos irmãos a orarem por nós.

Quando, porém, acrescenta: para que a palavra de Deus tenha livre curso, ele mostra que não tem tanta preocupação e consideração pessoalmente por si, como por toda a Igreja. Pois, por que ele deseja ser recomendado às orações dos tessalonicenses? Para que a doutrina do evangelho possa ter livre curso. Portanto, ele não deseja tanto que lhe fosse dada consideração a si mesmo quanto à glória de Deus e ao bem comum da Igreja. Curso significa aqui disseminação; glória significa algo mais – que a sua pregação possa ter o poder e a eficácia para renovar os homens conforme à imagem de Deus. Por isso, a santidade de vida e a justiça por parte dos cristãos é a glória do evangelho; assim como, por outro lado, difamam o evangelho aqueles que o confessam com a boca, mas ao mesmo tempo vivem em impiedade e torpeza. Ele diz: como entre vós, porque seria um estímulo para os que são piedosos verem todos os outros semelhantes como eles. Por isso, aqueles que já entraram no reino de Deus são exortados a orarem diariamente para que ele venha (Mt 6:10).

A Fé Não é de Todos - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.2

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“E para que sejamos livres de homens dissolutos e maus; porque a fé não é de todos.” (2 Tessalonicenses 3.2)

“Para que sejamos livres”. O intérprete antigo traduziu isto, não inadequadamente, em minha opinião, por irracionais. Ora, por este termo, assim também como por aquele que vem em seguida (poneron - maus), Paulo se refere a homens ímpios e traiçoeiros, que espreitavam na Igreja, sob o nome de cristãos; ou, ao menos, a judeus que, com um zelo insano pela lei, perseguiam furiosamente o evangelho. Ele sabia, porém, quanto perigo pairava sobre ambas estas classes. Crisóstomo, no entanto, pensa que são referidos apenas aqueles que se opunham maliciosamente ao evangelho por meio de falsas doutrinas – não por armas de violência, como por exemplo Alexandre, Himeneu, e outros como eles; mas, de minha parte, estendo isto genericamente a todos os tipos de perigos e inimigos. Naquela ocasião ele estava a caminho de Jerusalém, e escrevia durante as suas jornadas. Ora, ele já havia sido divinamente prevenido de que lhe aguardavam prisões e perseguições lá (Atos 20:23). Contudo, ele se refere ao livramento, para que possa sair vitorioso, quer pela vida ou pela morte.

“A fé não é de todos”. Isto poderia ser explicado no sentido de que “a fé não está em todos”. Contudo, esta expressão seria tanto ambígua como mais obscura. Portanto, retenhamos as palavras de Paulo, pelas quais sugere que a fé é um dom de Deus que é mui raro para ser encontrado em todos. Portanto, Deus chama a muitos que não vêm a ele pela fé. Muitos pretendem vir a ele,

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tendo seu coração à maior distância dele. Além disso, ele não fala de todos indiscriminadamente, mas apenas censura aqueles que pertencem à Igreja – pois os tessalonicenses sabiam que muitíssimos tinham aversão à fé; mais ainda, eles sabiam quão pequeno era o número dos crentes. Por isso, teria sido desnecessário dizer isto quanto aos estranhos; mas Paulo simplesmente afirma que todos quantos fazem confissão de fé não são tais na realidade. Se considerásseis todos os judeus, eles pareceriam ter uma proximidade com Cristo, pois deveriam tê-lo reconhecido por meio da lei e dos profetas. Não pode haver dúvida que Paulo assinala especialmente aqueles com quem teria de se ver. Ora, é provável que fossem aqueles que, embora tivessem aparência e título honroso de piedade, estavam muito distantes da realidade. Disto veio o combate.

Portanto, com vistas a mostrar que não era sem fundamento, ou sem um bom motivo, que antecipava com receio as lutas com homens ímpios e perversos, ele afirma que a fé não é comum a todos, porque os ímpios e réprobos sempre estão misturados com os bons, assim como o joio com o bom trigo (Mt 13.25). E isto deveria ser recordado por nós sempre que temos aborrecimentos causados por pessoas ímpias, as quais, não obstante, desejam ser consideradas como pertencentes à sociedade dos cristãos – que nem todos os homens têm fé. Mais ainda, quando ouvimos em algumas situações que a Igreja é afligida por aviltantes facções, que seja este um escudo para nós contra escândalos desta natureza; pois não apenas cometeremos injustiça aos mestres

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piedosos, se tivermos dúvidas quanto à sua fidelidade, sempre que inimigos domésticos lhes causem dano, mas a nossa fé vacilará de quando em quando, a menos que tenhamos em mente que, entre aqueles que se gloriam do nome de cristãos, existem muitos que são traiçoeiros.

Confirmados por Deus e Guardados do Maligno - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.3

“Mas fiel é o Senhor, que vos confirmará, e guardará do maligno.” (2 Tessalonicenses 3.3)

“Mas fiel é o Senhor.” Como era possível que as mentes deles, influenciadas por relatos desfavoráveis, viessem a entreter algumas dúvidas quanto ao ministério de Paulo; tendo lhes ensinado que a fé nem sempre se encontra nos homens, ele agora os chama de volta para Deus, e diz que ele é fiel, assim confirmando-os contra todas as invenções dos homens, pelas quais se esforçariam para abalá-los. “De fato, eles são traiçoeiros, mas em Deus há apoio abundantemente seguro, assim impedindo que recueis”. Ele chama o Senhor de fiel, porquanto ele adere ao seu propósito preservar até o fim a salvação do seu

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povo, oportunamente o ajudando, e nunca o desamparando em perigos, como em 1 Co 10:13, “Deus é fiel para não permitir que sejais tentados acima do que podeis suportar”.

Estas palavras, no entanto, mostram por si mesmas que Paulo estava mais aflito quanto a outros do que quanto a si mesmo. Homens maliciosos dirigiam contra ele os aguilhões da sua malignidade; toda a violência disto caía sobre ele. Ao mesmo tempo, ele dirige todas as suas preocupações aos tessalonicenses, para que esta tentação não lhes causasse nenhum dano.

O termo maligno pode se referir tanto à coisa – isto é, à malícia – como às pessoas dos ímpios. Contudo, prefiro interpretar isto com respeito a Satanás, o cabeça de todos os ímpios. Pois seria algo pequeno ser livrado da astúcia ou violência dos homens, se o Senhor não nos protegesse de todo dano espiritual.

Deus Guia o Coração no Amor e na Paciência de Cristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.4,5

“4. E confiamos quanto a vós no Senhor, que não só fazeis como fareis o que vos mandamos.

5. Ora o Senhor encaminhe os vossos corações no amor de Deus, e na paciência de Cristo.”

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4. “Confiamos”. Através deste prefácio ele prepara o caminho para prosseguir dando a instrução, a qual o encontraremos acrescentando logo em seguida. Pois a confiança que ele diz possuir com respeito a eles os tornara muito mais prontos para obedecer do que se tivesse exigido obediência deles de um modo duvidoso ou desconfiado. Contudo, ele diz que esta esperança que nutria em relação a eles estava fundamentada no Senhor, porquanto cabe a ele constranger seus corações à obediência, e conservá-los nela; ou, por esta expressão (como me parece mais provável), ele pretendia testificar que não é sua intenção prescrever coisa alguma senão por mandamento do Senhor. Aqui, portanto, ele estabelece limites para si mesmo quanto a prescrever, e para eles quanto a obedecer – de que isto deveria ser apenas no Senhor. Portanto, todos os que não observam esta limitação recorrem sem propósito ao exemplo de Paulo, com o fim de constranger a Igreja e sujeitá-la às suas leis. Talvez ele tivesse isto em vista, que o respeito devido ao seu apostolado permanecesse intacto entre os tessalonicenses, por mais que os ímpios tentassem privá-lo da honra que lhe pertencia; pois a oração que ele acrescenta em seguida tende a este objetivo. Pois, contanto que os corações dos homens continuem a estar direcionados para o amor a Deus, e em paciente espera de Cristo, as demais coisas estarão em um estado desejável,– e Paulo declara não desejar nada mais. A partir disto fica manifesto quão distante ele está de buscar domínio propriamente para si. Pois está satisfeito, desde que eles perseverem no amor a Deus, e na esperança da vinda de Cristo. Ao acompanhar com

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oração a sua expressão de confiança, ele nos admoesta de que não devemos relaxar no ardor da oração pelo fato de nutrirmos boa esperança.

Contudo, como ele declara aqui de forma sumária as coisas que sabia eram extremamente necessárias para os cristãos, que todos façam do seu esforço ter aproveitamento nestas duas coisas, tanto quanto desejem fazer progresso em direção à perfeição. E, sem sombra de dúvida, o amor de Deus não pode reinar em nós a menos que o amor fraternal também seja exercido. Aguardar a Cristo, por outro lado, nos ensina a exercitar o desprezo pelo mundo, a mortificação da carne, e a resignação da cruz. Ao mesmo tempo, a expressão poderia ser explicada no sentido de paciência de Cristo – aquela que a doutrina de Cristo produz em nós; mas prefiro entender isto em referência à esperança da redenção final. Pois esta é a única coisa que nos sustenta na batalha da vida presente, que aguardemos o Redentor; e, ademais, esta espera exige resignação paciente em meio aos exercícios contínuos da cruz.

Não Ter Comunhão com os Que Andam Desordenadamente - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.6-8

“6. Mandamo-vos, porém, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que

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anda desordenadamente, e não segundo a tradição que de nós recebeu.

7. Porque vós mesmos sabeis como convém imitar-nos, pois que não nos houvemos desordenadamente entre vós,

8. Nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós.”

Agora Paulo passa à correção de um erro particular. Como havia algumas pessoas indolentes, e ao mesmo tempo curiosas e palradoras que, a fim de acumularem uma subsistência às custas de outros, andavam de casa em casa, ele proíbe que a indolência deles fosse encorajada pela indulgência, e ensina que vivem piamente aqueles que obtêm para si as coisas necessárias da vida através de trabalho útil e honroso. E, antes de tudo, ele aplica o apelativo de pessoas desordeiras, não àqueles que são de vida dissoluta, ou àqueles cujo caráter está manchado por crimes flagrantes, e sim a pessoas indolentes e indignas que não se empregam em nenhuma ocupação honrosa e útil. Pois isto na verdade é ataxia )desordem) – não considerar com que propósito fomos criados, e regular nossa vida com vistas a esse fim, ao passo que é somente quando vivemos de acordo com a regra prescrita a nós por Deus que esta vida está devidamente regulada. Seja esta ordem posta de lado, e não há nada além de confusão na vida humana. Isto,

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também, é digno de ser observado, para que ninguém tenha prazer em se exercitar sem um legítimo chamado da parte de Deus; pois Deus distinguiu de tal modo a vida dos homens, a fim de que cada um possa se dispor em proveito dos outros. Portanto, aquele que vive somente para si, assim não sendo útil de modo algum à raça humana, e mais ainda, sendo um fardo para outros, não prestando auxílio a ninguém, é, com bom fundamento que deve ser considerado ataktos (desordeiro). Por isso Paulo declara que tais pessoas devem ser separadas da sociedade dos crentes, para que não tragam desonra à Igreja.

6. “Mandamo-vos, porém, em nome”. Erasmo traduz isto como: “pelo nome”, como se isto fosse uma súplica. Embora não rejeite totalmente esta tradução, ao mesmo tempo, sou mais da opinião de que a partícula em é redundante, assim como em muitas outras passagens; e isto de acordo com o idiomatismo hebraico. Assim, o significado seria que este mandamento deveria ser recebido com reverência, não como da parte de um homem mortal, e sim como da parte do próprio Cristo; e Crisóstomo explica-o assim. Este afastamento, seja de quem ele fale, relaciona-se não com a excomunhão pública, e sim com o relacionamento particular. Pois ele simplesmente proíbe que os crentes tenham qualquer relacionamento familiar com ociosos desta sorte, que não têm nenhum meio honroso de vida no qual possam se exercitar. Contudo, ele diz expressamente: de todo o irmão, porque, se confessam ser cristãos, eles são mais

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intoleráveis do que todos os outros, porquanto são, de certo modo, as manchas da religião.

“Não segundo a tradição”, a saber, a que o encontramos acrescentando pouco depois – que não se deveria dar alimento ao homem que se recusa a trabalhar. Antes de passar a isto, porém, ele declara que exemplo lhes dera em sua própria pessoa. Pois a doutrina adquire muito mais crédito e autoridade quando não impomos a outros outro fardo senão o que tomamos sobre nós mesmos. Ora, ele menciona que ele mesmo estivera ocupado trabalhando com suas próprias mãos de dia e de noite, para não sobrecarregar a ninguém com despesas. Ele também havia tratado um pouco desta questão na Epístola anterior – à qual meus leitores devem recorrer para uma explicação mais completa deste ponto.

Quanto ao seu dito de que não havia comido de graça o pão de homem algum, certamente ele não teria feito isto, ainda que não tivesse trabalhado com suas próprias mãos. Pois o que é devido no caminho da justiça não é algo gratuito, e a recompensa do trabalho que os mestres dispõem em favor da Igreja é bem maior do que o alimento que recebem dela. Mas Paulo tinha em vista aqui pessoas inconsideradas, pois nem todos têm tanta equidade e discernimento para considerar que remuneração é devida aos ministros da palavra. Mais ainda, tal é a mesquinhez de alguns que, embora não contribuam com nada de si mesmos, eles invejam a subsistência destes, como se fossem homens ociosos. Ele também declara logo em seguida que abrira mão de seus

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direitos, quando se absteve de tomar qualquer remuneração – sugerindo assim que deve ser muito menos suportado que aqueles que nada fazem vivam do que pertence a outros. Quando diz que sabem como devem imitar, ele não quer dizer apenas que o seu exemplo deveria ser considerado por eles como uma lei, mas o sentido é de que sabiam o que haviam visto nele que era digno de imitação, mais ainda, que a própria coisa de que está falando no momento fora apresentada diante deles para imitação.

A Necessidade de Trabalhar - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.9,10

“9. Não porque não tivéssemos autoridade, mas para vos dar em nós mesmos exemplo, para nos imitardes.

10. Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também.”

9. “Não porque não tivéssemos”. Assim como Paulo queria estabelecer um exemplo através do seu trabalho, para que as pessoas ociosas, como parasitas, não comessem o pão de outros, do mesmo modo ele não desejava que isto prejudicasse os ministros da palavra, de modo que as igrejas os defraudassem da sua devida

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subsistência. Nisto podemos ver a sua singular moderação e humanidade, e quão distante ele estava da ambição daqueles que abusam de seus poderes, infringindo os direitos de seus irmãos. Havia o perigo de que os tessalonicenses, tendo recebido desde o princípio a pregação do evangelho pela boca de Paulo gratuitamente, estabelecessem isto como uma lei para o futuro quanto aos demais ministros; a disposição da humanidade sendo tão mesquinha. Portanto, Paulo previne este perigo, e ensina que ele tinha direito a mais do que havia feito uso, para que outros mantivessem sua liberdade intacta. Ele tinha a intenção de infligir, por este meio, conforme já notei antes, a maior desgraça àqueles que não fazem nada, pois é um argumento do maior para o menor.

10. “Se alguém não quiser trabalhar”. Por estar escrito no Salmo 128.2, “Feliz serás, comendo do trabalho das tuas mãos”, e também em Pv 10:4, “A benção do Senhor está sobre as mãos do que trabalha”, é certo que a indolência e ociosidade são amaldiçoadas por Deus. Ademais, sabemos que o homem foi criado com vistas a que fizesse algo. Não apenas a Escritura nos testifica isto, mas a própria natureza ensinou-o aos pagãos. Por isso é razoável que aqueles que querem se isentar da lei comum sejam também privados de alimento – a recompensa do trabalho. Quando, porém, o Apóstolo mandou que tais pessoas não comessem, ele não quer dizer que dera mandamento a essas pessoas, mas proibira que os tessalonicenses encorajassem a indolência delas fornecendo-lhes comida.

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Também se deve observar que existem diferentes formas de trabalho. Pois todo aquele que auxilia a sociedade dos homens através da sua atividade, quer governando sua família, ou administrando negócios públicos ou privados, ou aconselhando, ou ensinando, ou de qualquer outro modo, não deve ser contado entre os ociosos. Pois Paulo censura aqueles vadios preguiçosos que viviam do suor de outros, enquanto não contribuíam com nenhum serviço comum em auxílio à raça humana. Desta sorte são os nossos monges e sacerdotes que são em grande parte mimados, não fazendo nada, exceto cantando nos templos para frustrar o enfado. Isto sim é, como diz Plautus, “viver musicalmente”.

Quem Não Trabalha se Entrega ao que é Vão - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.11

“Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas vãs.” (2 Tessalonicenses 3.11)

“Ouvimos que alguns entre vós”. É provável que esta espécie de vadios fossem, por assim dizer, a semente do ocioso monacato. Pois, desde o começo, havia alguns que, a pretexto de religião, ou exploravam as mesas dos outros, ou sugavam astuciosamente para si a subsistência dos simples. Eles também haviam chegado, no tempo de Agostinho, a prevalecer tanto, que ele fora constrangido a escrever um livro expressamente contra

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os monges ociosos, onde se queixa com toda a razão do seu orgulho, porque, desprezando a admoestação do Apóstolo, eles não apenas se escusavam por motivo de fraqueza, mas queriam parecer mais santos do que todos os outros pelo fato de estarem isentos de trabalhos. Ele censura, com toda a razão, esta indecência, de que, enquanto os senadores são laboriosos, o operário, ou pessoa de vida humilde, não vive apenas em ociosidade, mas ficaria contente em que sua indolência se passasse por santidade. Tais são suas ideias. Ao mesmo tempo, porém, o mal tem crescido a tal ponto que os ventres ociosos ocupam praticamente a décima parte do mundo, tendo por única religião estar bem cheios, e isentos de todo o incômodo do trabalho. E este modo de vida eles dignificam, às vezes com o nome de Ordem, outras com o de Regra, deste ou daquele personagem.

Mas, por outro lado, o que o Espírito diz pela boca de Paulo? Ele os declara a todos como sendo irregulares e desordeiros, seja por que nome distintivo possam ser dignificados. Não é necessário relatar aqui o quanto a vida ociosa dos monges tem invariavelmente desagrado às pessoas de um juízo mais são. É um dito memorável de um monge antigo, que é registrado por Sócrates no Livro Oitavo da História Tríplice – de que aquele que não trabalha com suas mãos é semelhante a um saqueador. Não cito outros casos, nem é necessário. Que nos baste esta declaração do Apóstolo, em que ele afirma que eles são dissolutos, e de certo modo ilegais.

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“Não trabalhando”. Nos particípios gregos há um elegante (prosonomasia) jogo de palavras, que tentei imitar de algum modo, traduzindo-o no sentido de que eles nada fazem, mas têm bastante que fazer no sentido da curiosidade. Contudo, ele censura uma falta de que as pessoas ociosas são, na sua maioria, culpáveis, que, alvoroçando-se inoportunamente, elas causam aborrecimentos a si mesmas e a outros. Pois sabemos que aqueles que nada têm a fazer ficam muito mais fatigados não fazendo nada, do que se estivessem ocupados em alguma obra muito importante; eles correm de lá para cá; por onde vão têm a aparência de grande fadiga; reúnem todos os tipos de informações, e as põem em circulação de maneira confusa. Poderíeis dizer que eles trazem o peso de um reino em seus ombros. Poderia haver exemplo mais notável disto do que nos monges? Pois que classe de homens tem menos repouso? Onde a curiosidade reina mais extensamente? Ora, como esta doença possui um efeito destrutivo para o povo, Paulo admoesta que isto não deveria ser encorajado pela ociosidade.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Convém ter sempre em mente que Calvino estava se referindo mormente às condições prevalecentes na religião em seus dias.)

Não Viver às Custas de Terceiros - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.12

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“A esses tais, porém, mandamos, e exortamos por nosso Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o seu próprio pão.” (2 Tessalonicenses 3.12)

“A esses tais, porém, mandamos”. Paulo corrige os dois erros aos quais havia feito menção – uma inquietação tempestuosa, e o afastamento da ocupação útil. Portanto, ele os exorta, antes de tudo, a cultivarem a tranquilidade – ou seja, a se manterem tranquilamente dentro dos limites do seu chamado; ou, como normalmente dizemos, “sans faire bruit” (sem fazer barulho). Pois esta é a verdade: são os mais pacíficos de todos aqueles que se exercitam em ocupações legítimas; enquanto aqueles que nada têm a fazer causam aborrecimentos a si mesmos e a outros. Ademais, ele acrescenta outro preceito – que eles deveriam trabalhar, ou seja, que deveriam estar atentos ao seu chamado, e devotarem-se a ocupações honrosas e legítimas, sem o que a vida do homem é de natureza errante. Por onde, também, segue-se esta terceira injunção – que eles deveriam comer o seu próprio pão; querendo dizer com isto que eles deveriam estar satisfeitos com o que lhes pertence, para que não fossem opressivos ou desmedidos com outros. “Bebe a água”, diz Salomão, “da tua cisterna, e que as correntes fluam para os vizinhos” (Pv 5:15). Esta é a primeira lei da equidade – que ninguém faça uso do que pertence a outro, mas use apenas o que pode propriamente chamar de seu. A segunda é que ninguém trague, como um abismo, o que pertence a si, mas que seja beneficente para os seus vizinhos, e que possa aliviar a indigência deles através da sua

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abundância. Do mesmo modo, o Apóstolo exorta aqueles que anteriormente haviam sido ociosos a trabalharem, não apenas para que possam ter para si um meio de vida, mas para que também possam ser úteis às necessidades dos seus irmãos – assim como também ensina em outro lugar (Ef 4:28).

Ser Incansável em Fazer o Bem - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.13

“E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem.” (2 Tessalonicenses 3.13)

“E vós, irmãos”. Ambrósio é de opinião que isto é acrescentado para que os ricos, com um espírito mesquinho, não se recusassem a prestar ajuda aos pobres; porque ele os havia exortado a que cada um comesse o seu próprio pão. E, sem sombra de dúvida, sabemos como quantos são indecorosamente engenhosos em esforçar-se por apanhar um pretexto para a desumanidade. Crisóstomo explica isto assim – que as pessoas indolentes, por mais justamente que possam ser condenadas, não obstante devem ser assistidas quando em necessidade. Sou simplesmente da opinião de que Paulo tinha em vista prevenir algum pretexto de escândalo, que poderia surgir pela indolência de alguns. Pois geralmente ocorre que aqueles que, de outro modo, estão particularmente prontos e precavidos para a beneficência, tornam-se frios ao ver que

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desperdiçaram seus favores orientando-os erroneamente. Por isso Paulo nos admoesta a que, embora possa haver muitos que sejam imerecedores, ao passo que outros abusam da nossa liberalidade, não devemos por esta causa deixar de ajudar àqueles que precisam da nossa assistência. Aqui temos uma declaração digna de ser observada – que, por mais que a ingratidão, a melancolia, o orgulho, a arrogância, e outras disposições inconvenientes por parte dos pobres, possam ter a tendência de nos aborrecer, ou de nos desanimar, por um sentimento de fadiga, devemos nos esforçar, não obstante, para nunca deixarmos de visar em fazer o bem.

Não Aprovar o Mau Comportamento Com Vistas ao Arrependimento - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.14

“Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com ele, para que se envergonhe.” (2 Tessalonicenses 3.14)

“Se alguém não obedecer”. Ele já dissera antes que não manda nada senão da parte do Senhor. Por isso, o homem que não quisesse obedecer, não seria contumaz contra um mero homem, mas seria rebelde contra o

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próprio Deus; e, portanto, ele ensina que tais pessoas devem ser severamente punidas. E, antes de tudo, deseja que elas lhe sejam notificadas, para que as repreenda pela sua autoridade; e, em segundo lugar, ordena que sejam excluídas da comunhão da Igreja, para que, sendo tocadas de vergonha, possam se arrepender. A partir disto inferimos que não devemos poupar a reputação daqueles que não podem ser detidos de outro modo senão por ter os seus erros expostos; mas devemos ter o cuidado de tornar conhecidas as suas enfermidades ao médico, para que ele possa curá-las pelo seu trabalho.

“Não vos mistureis”. Não tenho dúvida de que ele se refere à excomunhão; pois, além do fato de que a desordem (ataxia) a que havia se referido merecia um castigo severo, a contumácia é um vício intolerável. Ele havia dito antes: Apartai-vos deles, pois vivem de modo desordeiro (2 Ts 3.6). E agora diz: Não vos mistureis, pois rejeitam a minha admoestação. Portanto, ele expressa algo mais por esta segunda forma de expressão do que pela primeira; pois uma coisa é afastar-se da familiaridade íntima com um indivíduo, e outra bem diferente manter-se completamente longe da associação com ele. Em suma, aqueles que não obedecem, após serem admoestados, ele exclui da sociedade comum dos crentes. Através disto somos ensinados que devemos empregar a disciplina da excomunhão contra todas as pessoas obstinadas que, de outro modo, não aceitariam ser trazidas à sujeição; e devem ser estigmatizadas com desgraça, até que, tendo sido dominadas e subjugadas, elas aprendam a obedecer.

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“Para que se envergonhe”. Há, é verdade outras finalidades às quais a excomunhão é útil – para que o contágio não se espalhe mais, para que a impiedade pessoal de um indivíduo não sirva à desgraça comum da Igreja, e para que o exemplo de severidade leve os outros ao temor (1 Tim 5.20); mas Paulo trata apenas desta – para que aqueles que pecaram possam ser constrangidos ao arrependimento através da vergonha. Pois aqueles que se deleitam em seus vícios tornam-se cada vez mais obstinados; assim o pecado é alimentado pela indulgência e dissimulação. Portanto, este é o melhor remédio – quando um sentimento de vergonha é despertado na mente do ofensor, de modo que começa a ficar descontente consigo mesmo. De fato, pequeno seria o lucro em fazer os indivíduos se envergonharem; mas Paulo tinha em vista um progresso adicional – quando o ofensor, confundido pela descoberta da sua própria infâmia, é assim levado a uma plena correção; pois a vergonha, assim como a tristeza, é uma preparação útil para o aborrecimento do pecado. Por isso, todos os que se tornam devassos devem, conforme eu disse, ser refreados por esta rédea, para que sua audácia não aumente em consequência da sua impunidade.

Repreender como amigo e Irmão - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.15

“Todavia não o tenhais como inimigo, mas admoestai-o como irmão.”

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“Não o tenhais como inimigo”. Imediatamente Paulo acrescenta um abrandamento ao seu rigor; pois, como ordena em outro lugar, devemos ter o cuidado de que o ofensor não seja devorado pela tristeza (2 Co 2.7) – o que aconteceria se a severidade fosse excessiva. Por isso vemos que o uso da disciplina deveria ser de tal modo que contribuísse para o bem-estar daqueles em quem a Igreja inflige castigo. Ora, a severidade apenas machucará, quando for além dos devidos limites. Por isso, se queremos beneficiar, são necessárias a bondade e brandura, para que aqueles que são repreendidos saibam que, não obstante, são amados. Em suma, a excomunhão não serve para afastar os homens do rebanho do Senhor, e sim antes para trazê-los de volta quando estão errantes e extraviados.

Contudo, devemos observar por meio de que sinal ele queria que o amor fraternal fosse demonstrado – não através de engodos ou bajulação, e sim por meio de admoestações; pois assim acontecerá que todos aqueles que não forem incuráveis sentirão que há uma preocupação pelo seu bem-estar. Ao mesmo tempo, a excomunhão é distinguida do anátema; pois, quanto àqueles que a Igreja assinala pela severidade da sua censura, Paulo admoesta que não deveriam ser definitivamente lançados fora, como se estivessem privados de toda a esperança de salvação; mas devem ser envidados esforços para que sejam trazidos de volta a uma mente sã.

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Paz em Todas as Circunstâncias - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.16-18

“16. Ora, o mesmo Senhor da paz vos dê sempre paz de toda a maneira. O Senhor seja com todos vós.

17. Saudação da minha própria mão, de mim, Paulo, que é o sinal em todas as epístolas; assim escrevo.

18. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém.”

16. “Ora, o Senhor da paz”. Esta oração parece estar relacionada com a sentença anterior, com vistas a recomendar os esforços pela concórdia e mansidão. Paulo lhes havia proibido tratarem até mesmo os contumazes como inimigos; mas, antes, com vistas a que fossem trazidos de volta a uma mente sã através de admoestações fraternais. Ele poderia apropriadamente, depois disto, acrescentar uma injunção quanto ao cultivo da paz; mas, como na verdade esta é uma obra divina, ele passa à oração, o que, não obstante, também tem a força de um preceito. Ao mesmo tempo, também, ele pode ter outra coisa em vista – que Deus possa refrear as pessoas desregradas, para que não perturbem a paz da Igreja.

17. “Saudação da minha própria mão”. Aqui ele previne novamente o perigo ao qual havia anteriormente feito menção – que epístolas falsamente atribuídas a ele viessem a abrir caminho nas igrejas. Pois este era um artifício antigo de Satanás – apresentar escritos espúrios,

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a fim de que pudesse depreciar o crédito dos que são genuínos; e ainda, sob pretensas designações de apóstolos, disseminar erros perversos com vistas a corromper a sã doutrina. Através de uma bondade singular da parte de Deus, aconteceu que, sendo baldadas as suas fraudes, a doutrina de Cristo chegou até nós sã e íntegra através do ministério de Paulo e de outros. A oração conclusiva explica de que modo Deus ajuda seu povo fiel – através da presença da graça de Cristo.

Uma Igreja Não Fundada e Conhecida por Paulo - Comentário de Colossenses 1.1-3

“1 Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo,

2 aos santos e fiéis irmãos em Cristo que se encontram em Colossos, graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai.

3 Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quando oramos por vós,”

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“Paulo, apóstolo”. Já expliquei, em repetidas ocasiões, o propósito de tais dedicatórias. Como, contudo, os colossenses nunca tinham lhe visto, e por essa causa sua autoridade não estava ainda tão firmemente estabelecida entre eles a ponto de fazer seu nome por si mesmo suficiente, ele afirma que é um apóstolo de Cristo separado pela vontade de Deus. Disso seguia-se que ele não agia imprudentemente ao escrever a pessoas que não o conheciam, considerando que estava desempenhando a função de embaixador que Deus tinha lhe confiado. Pois ele não estava ligado a uma Igreja meramente, mas seu apostolado se estendia a todas. O termo santos que aplica a eles é muito honroso, mas ao chamá-los de irmãos fiéis, ele os encoraja ainda mais a ouvi-lo desejosamente. Quanto às outras coisas, explicações podem ser encontradas nas Epístolas precedentes.

3. “Damos graças a Deus”. Ele louva a fé e o amor dos colossenses, para que isso possa encorajá-los à maior diligência e constância da perseverança. E mais, ao demonstrar que tem uma persuasão desse tipo com respeito a eles, ele procura a consideração amigável deles, para que possam ser mais favoravelmente inclinados e ensináveis para receber a sua doutrina. Devemos sempre observar que ele faz uso de ação de graças no lugar de congratulação, pelo que nos ensina, que em todas as nossas alegrias devemos prontamente chamar à lembrança a bondade de Deus, visto que tudo o que é agradável e prazeroso para nós, é uma benignidade conferida por ele. Além disso, ele nos

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admoesta, por seu exemplo, a reconhecer com gratidão não meramente aquelas coisas que o Senhor nos confere, mas também as que ele confere aos outros.

Mas por quais coisas ele dá graças ao Senhor? Pela fé e amor dos colossenses. Ele reconhece, portanto, que ambas são conferidas por Deus: de outra forma a gratidão seria fingida. E o que temos que não seja por meio de sua liberalidade? Se, contudo, mesmo os menores favores chegam até nós dessa fonte, quanto mais esse mesmo reconhecimento deve ser feito com referência a esses dois dons, nos quais consiste a soma inteira da nossa excelência?

“Ao Deus e Pai”. Entenda a expressão assim – A Deus, que é o Pai de Cristo. Pois não é lícito para nós reconhecer qualquer outro Deus, que não aquele que se manifestou a nós em seu Filho. E essa é a única chave para abrir a porta para nós, se estivermos desejosos de ter acesso ao Deus verdadeiro. Por esse motivo, também, ele é um Pai para nós, pois nos aceitou em seu Filho unigênito, e nele também apresenta seu favor paternal para a nossa contemplação.

“Sempre por vós”. Alguns explicam isso assim – Nós damos graças a Deus sempre por vós, isto é, continuamente. Outros explicam que significa – Orando sempre por vós. A frase pode ser interpretada dessa forma também: “Sempre que oramos por vós, ao mesmo tempo damos graças a Deus”; e esse é o significado simples: “Damos graças a Deus, e ao mesmo tempo oramos”. Com isso ele indica que a condição dos crentes

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nunca é perfeita neste mundo, de forma a não ter, invariavelmente, algo em falta. Pois mesmo o homem que começou admiravelmente bem, pode ficar aquém em centenas de ocasiões todo o dia; e devemos estar sempre fazendo progresso, enquanto ainda estamos no caminho. Tenhamos, portanto, em mente que devemos nos regozijar nos favores que já recebemos, e dar graças a Deus por eles de tal maneira, que ao mesmo tempo buscamos dele perseverança e progresso.

Saudação Inicial de Paulo aos Efésios - Comentário de Efésios 1.1,2

“Efs 1:1 Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus, aos santos que vivem em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus,

Efs 1:2 graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.”

“Paulo, apóstolo”. Uma vez que a mesma forma de saudação, ou, ao menos, com bem pouca diferença, é

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usada em todas as epístolas, seria supérfluo repetir aqui o que já ficou expresso em outras partes. Ele se intitula apóstolo de Jesus Cristo; pois a todos quantos foi concedido o ministério da reconciliação, sua função é a de embaixador de Cristo. A palavra “apóstolo” é, deveras, mais especializada; pois não é todo ministro do evangelho (como veremos mais adiante, em 4:11) que de fato é apóstolo. Este tema, porém, eu já o abordei mais amplamente em Gálatas.

O apóstolo adiciona: “pela vontade de Deus”. Porquanto nenhum homem deve tomar essa honra para si próprio, mas deve esperar pela vocação divina, pois Deus é o único que pode legitimar os ministros. Ele assim confronta os escárnios dos homens ímpios com a autoridade de Deus, e remove toda e qualquer ocasião de disputa irrefletida.

Ele os denomina santos, a quem em seguida chama de fiéis em Cristo. Portanto, nenhuma pessoa crente deixa de ser igualmente santa; em contrapartida, nenhuma pessoa santa deixa de ser igualmente crente. A maioria das cópias gregas omite o termo todos; fiquei, todavia, relutante em eliminá-lo, visto que, ao menos, ele deve ser compreendido.

Abençoados com Toda Sorte de Bênçãos Espirituais - Comentário de Efésios 1.3

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“Efs 1:3 Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo,”

“Bendito seja Deus”. O apóstolo enaltece sublimemente a graça de Deus para com os efésios, buscando incitar seus corações à gratidão com o fim de deixá-los todos inflamados, e assim invadi-los e enchê-los com essa ideia. Aqueles que reconhecem em si mesmos uma efusão tal da bondade de Deus, tão plena e absolutamente perfeita, e que se exercitam nela com fervorosa meditação, jamais abraçarão novas doutrinas, as quais obscurecem a própria graça que sentem tão poderosamente em seu interior. O propósito do apóstolo, portanto, ao afirmar a imensurabilidade da graça divina para com os efésios, era prepará-los a fim de que não permitissem que sua fé fosse abalada pelos falsos apóstolos, como se seu chamamento fosse algo duvidoso, ou como se sua salvação devesse ser vista por outro prisma. Ele lhes assegura, ao mesmo tempo, que a plena certeza da salvação consiste no fato de que, através do evangelho, Deus revela, em Cristo, seu amor para conosco. A fim de confirmar, porém, a questão mais plenamente, ele chama sua atenção para a causa primeira, para a fonte, ou seja, a eterna eleição divina, por meio da qual, antes que houvéssemos nascido, fomos adotados como filhos. E isso para que soubessem eles [e nós!] que já estavam salvos, não por meio de qualquer ocorrência fortuita ou prevista, mas por meio do eterno e imutável decreto de Deus.

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O verbo abençoar é aqui usado em mais de um sentido, tanto em se referindo a Deus como em se referindo aos homens. Encontro na Escritura uma quádrupla significação para ele. Bendizemos a Deus quando O louvamos, declarando Sua bondade. Diz-se, porém, que Deus nos abençoa, quando Ele torna nossas atividades bem sucedidas, e em Sua benevolência nos concede felicidade e prosperidade; e a razão é que somos abençoados unicamente em Seu beneplácito. Notemos como ele expressa o grande poder que habita em toda a Palavra de Deus para a Igreja e para cada crente individualmente. Os homens abençoam uns aos outros através da oração. A bênção sacerdotal é mais do que uma oração, visto ser ela um testemunho e garantia da bênção divina; porquanto os sacerdotes receberam a incumbência de abençoar no Nome do Senhor. Portanto, Paulo, aqui, bendiz a Deus com uma confissão de louvor, porque Deus nos abençoou, ou seja, nos enriqueceu com toda sorte de bênção ou graça.

Não faço objeção alguma contra a observação de Crisóstomo, quando ele diz que a palavra “espirituais” traça um contraste implícito entre a bênção de Moisés e a de Cristo. A lei continha suas bênçãos, mas é só em Cristo que a perfeição é encontrada, porquanto é Ele a perfeita revelação do reino de Deus, que nos conduz diretamente ao céu. Quando a própria substância é revelada, as figuras não são mais necessárias.

Quando ele diz celestiais, pouco importa se antepomos “lugares” ou “benefícios”. Ele simplesmente desejava

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expressar a superioridade daquela graça que nos é concedida através de Cristo; que sua felicidade não está neste mundo, e, sim, no céu e na vida eterna. A religião cristã, sem dúvida, como ensinamos alhures [1 Timóteo 4:8], contém promessas não só referentes à vida futura, mas também com referência à vida presente; seu alvo, porém, é a felicidade espiritual, quanto mais sendo o reino de Cristo espiritual. O apóstolo contrasta Cristo com todos os símbolos judaicos, nos quais está contida a bênção sob o regime da lei. Porque, onde Cristo se faz presente, todas aquelas coisas se fazem supérfluas.

Paulo, Constituído Apóstolo pelo Mandato de Deus - Comentário de 1 Timóteo 1.1 "Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, pelo mandato de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança,” (1 Timóteo 1.1)

“Paulo, apóstolo”. Se porventura tivesse ele escrito tão-somente a Timóteo, não haveria necessidade alguma de anunciar seus títulos e reafirmar suas reivindicações ao apostolado, como o faz aqui, pois certamente Timóteo ficaria suficientemente satisfeito com o mero nome. Ele sabia que Paulo era apóstolo de Cristo, e não havia

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necessidade de comprovação alguma para convencê-lo, pois ele estava perfeitamente disposto a reconhecê-lo, e há muito que nutria tal sentimento. Portanto Paulo está aqui visando a outros que não estavam tão dispostos a dar-lhe ouvidos ou tão prontos a aceitar o que ele dizia. É por causa desses “outros” que ele declara seu apostolado, a fim de não pudessem tratar com leviandade o que ele escreve, ele afirma que ele é "um apóstolo de Cristo."

De acordo com a nomeação de Deus, nosso Salvador, e do Senhor Jesus Cristo, Ele confirma o seu apostolado com a nomeação ou comando de Deus; porque ninguém pode fazer-se um apóstolo, senão aquele que Deus tem nomeado como sendo um verdadeiro apóstolo, e digno de honra. Nem ele apenas diz que ele deve seu apostolado a Deus Pai, mas o atribui a Cristo também; e, de fato, no governo da Igreja, o Pai não faz nada, senão através do Filho, e, portanto, eles atuam em em conjunto.

Ele denomina a Deus de o Salvador, título este mais comumente destinado ao Filho. E no entanto é um título perfeitamente apropriado ao próprio Pai, pois foi ele quem nos deu seu Filho, de modo que é justo destinar-lhe a glória de nossa salvação. Pois somos salvos unicamente porque o Pai nos amou de tal maneira, que foi de sua vontade redimir-nos e salvar-nos através do Filho. A Cristo ele denomina de esperança nossa, título este que pertence especificamente a ele, pois é somente quando olhamos para ele que começamos a desfrutar de

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boa esperança, porquanto é tão somente nele que se encontra toda a nossa salvação.

Saudação Inicial de Paulo a Timóteo - Comentário de 1 Timóteo 1.2

“a Timóteo, verdadeiro filho na fé, graça, misericórdia e paz, da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor. (1 Timóteo 1.2)

“A Timóteo, meu verdadeiro filho”. Esta qualificação comunica grande honra a Timóteo, pois Paulo o reconhece como seu filho legítimo, não menos digno que seu pai, e deseja que outros o reconheçam como tal. De fato, ele enaltece a Timóteo como se ele fosse outro Paulo. Todavia, como seria isso consistente com o mandamento de Cristo: “A ninguém sobre a terra chameis vosso pai” [Mateus 23:9], e com a própria afirmação do apóstolo: “Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muito pais”; “não haveríeis de estar em muito maior submissão ao Pai dos espíritos” (1 Coríntios 4:15; Hebreus 12:9)? Minha resposta é que a alegação de Paulo de ser pai de forma alguma anula ou diminui a honra devida a Deus. Diz-se com frequência que, se uma coisa é subordinada a outra, não haverá conflito entre elas. Isso procede no tocante à reivindicação de Paulo ao título pai em relação a Deus. Deus é o único Pai de todos no âmbito da fé, porquanto regenera a todos os crentes pela

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instrumentalidade de sua Palavra e pelo poder de seu Espírito, e é exclusivamente ele que confere a fé. Aqueles a quem graciosamente lhe apraz empregar como seus ministros, ao fazer isso ele admite que participem de sua honra, todavia sem resignar nada de si próprio. Assim, Deus, e somente Deus, era, estritamente falando, o Pai espiritual de Timóteo; mas Paulo, que foi o ministro de Deus no novo nascimento de Timóteo, reivindica para si direito a este título, porém em segundo plano.

“Graça, misericórdia e paz”. Ao introduzir aqui a palavra misericórdia em segundo plano, ele se afasta de seu método usual, provavelmente em função de seu amor especial por Timóteo. Ele, porém, não está observando a ordem exata das palavras, porque ele coloca primeiro o que deveria ser colocado por último, designando a graça que emana da misericórdia. É em razão de ser misericordioso que Deus primeiro nos recebe em sua graça, e então prossegue nos amando. Mas é perfeitamente normal mencionar a causa e em seguida o efeito, à guisa de explicação. Já discorri sobre a graça e a paz em outras ocasiões.

Não Deve Ser Ensinada Doutrina Diferente da de Cristo e dos Apóstolos à Igreja - Comentário de 1 Timóteo 1.3

“Quando eu estava de viagem, rumo da Macedônia, te roguei permanecesses ainda em Éfeso para admoestares

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a certas pessoas, a fim de que não ensinem outra doutrina,” (1 Timóteo 1.3)

“Como te exortei”. Ou a afirmação é deixada incompleta, ou a partícula grega iná (para que) é redundante; e em ambos os casos o significado será óbvio. Primeiramente, ele lembra a Timóteo por que lhe pedira que ficasse em Éfeso. Foi com grande relutância, e por causa de uma dura necessidade, que Paulo se separou de um companheiro tão amado e fiel como Timóteo, para que pudesse llaboriosamente cumprir os deveres que demandavam a responsabilidade que nenhum outro homem poderia ter sido competente para cumprir; e, portanto Timóteo deve ter sido poderosamente incentivado por esta consideração, não sometne a não somente desperdiçar seu tempo, como também a se conduzir de uma maneira excelente e distinta.

“Para admoestares a certas pessoas”. Daqui se infere que Paulo exortou Timóteo a se opor aos falsos mestres que estavam adulterando a pureza da doutrina. Neste apelo dado a Timóteo para cumprir seu dever em Éfeso, devemos observar a santa ansiedade do apóstolo; porque, enquanto se esforçava por estabelecer muitas novas igrejas, ele não deixava as anteriores destituídas de um pastor. Indubitavelmente, como diz o escritor antigo, “Para guardar o que já tem sido ganho é necessária não uma menor virtude do que a que fez a nova aquisição.” A palavra admoestar (ordenar) denota autoridade, pois era o propósito de Paulo revestir a

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Timóteo com autoridade para que pudesse refrear a outros.

“A não ensinarem uma doutrina diferente”. O termo grego, (heterodidaskalein), que Paulo utiliza, é composto, e embora possa ser traduzido num sentido ou de “ensinar de modo diferente”, ou seguindo um um novo método, ou “ensinar uma doutrina diferente”. A tradução de Erasmo, “seguir”, não me satisfaz, porque isto pode ser entendido ocmo aplicar-se aos ouvintes. Agora, Paulo se refere àqueles que, por causa de ambição, ensinavam uma nova dou trina.

Se lermos: “ensinar de uma forma diferente”, o significado será mais amplo, porque por esta expressão ele estaria proibindo Timóteo de permitir a introdução de novos métodos de ensino que não concordassem com a verdadeira e pura doutrina que ele tinha ensinado. Assim, na segunda epístola, ele recomenda hupotuposis, isto é, um padrão vivo de sua doutrina. Porque, como a verdade de Deus é única, assim há senão um só método de ensiná-la, o qual é livre de falsos ornamentos e que compartilha mais a majestade do Espírito do que as demonstrações de eloquência humana. Se alguém se aparta disso, ele desfigura e corrompe a própria doutrina; e assim, “ensinar de maneira diferente”, aponta para a forma.

Se lermos: “ensinar algo diferente”, isto se relacionará à substância do ensino. Ainda é digno de nota que, ele dá o nome d eoutra doutrina, não só ao que está abertamente em desacordo com a pura doutrina do

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evangelho, mas também tudo o que, ou corrompe a pureza do evangelho por meio de invenções novas, ou que o obscurece por meio de especulações irreverentes. Porque todas as manipulações humanas são muito corruptoras do evangelho, e aqueles que fazem mau uso das Escrituras, como costumam fazer as pessoas ímpias, fazendo do Cristianismo um ato de exibição, obscurecem o evangelho. Sua maneira de ensinar portanto, é completamente oposta à Palavra de Deus e àquela pureza de doutrina que Paulo ordena aos efésios a permanecerem firmes nela.

Focando o Que é Essencial na Doutrina para o Ensino dos Crentes - Comentário de 1 Timóteo 1.4

“nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que, antes, promovem discussões do que o serviço de Deus, na fé." (1 Timóteo 1.4)

“Nem se ocupem com fábulas”. Em minha opinião, o apóstolo quer dizer, por fábulas, não tanto as falsidades artificiais, senão aquelas coisas sem importância ou tolas que não têm em si nada de sólido; porque é possível que algo que não seja falso possa ainda ser fabuloso. É nesse sentido que Suetônio falou de “história fabulosa”, e Livy

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usa o verbo fabular, “inventar fábulas”, como denotando falta de uso ou palavrório tolo. E, não há dúvida de que a palavra muthos (que Paulo usa aqui), é equivalente à palavra phluaria, isto é, “bagatelas”. Ainda mais, por se referir a uma classe para servir de exemplo, e quando ele menciona um tipo de fábula como exemplo do que tem em mente, toda dúvida se esvai. Ele inclui entre fábulas as controvérsias sobre genealogias, não porque tudo o que se pode dizer sobre elas seja fictício, mas porque isto é sem utilidade e perda de tempo.

Esta passagem, portanto, pode ser assim explicada: “Que eles não se deem a fábulas daquele caráter e descrição ao qual as genealogias pertencem” E realmente é isso precisamente o que Suetônio quis dizer por história fabulosa, a qual, mesmo entre os homens das letras, tem sido com justa razão criticada pelas pessoas de bom senso; porque era impossível não considerar como ridícula essa curiosidade que, negligenciando o conhecimento útil, gastou toda a vida examinando a genealogia de Aquiles e Ajax, e despendeu suas energias em reconhecer os filhos de Príamo. Se tal coisa é intolerável no aprendizado em salas de aulas, onde há espaço para agradável passatempo, quanto mais intolerável será a mesma para o nosso conhecimento de Deus. Ele fala de genealogias intermináveis, porque a fútil curiosidade não tem limites, mas continuamente passa de um labirinto a outro.

“Que mais produzem questionamentos”. Ele julga a doutrina por seu fruto; porque cada coisa que não edifica

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deve ser rejeitada, ainda que não tenha nenhum outro defeito; e tudo o que só serve para suscitar controvérsia deve ser duplamente condenado. Tais são as questões sutis nas quais os homens ambiciosos praticam suas habilidades. É mister que nos lembremos de que todas as doutrinas devem ser comprovadas mediante esta regra: aquelas que contribuem para a edificação devem ser aprovadas, mas aquelas que ocasionam motivos para controvérsias infrutíferas devem ser rejeitadas como indignas da Igreja de Deus.

Se este teste tivesse sido aplicado durante muitos séculos, então, ainda que a religião viesse a se corromper por muitos erros, ao menos a arte diabólica das controvérsias ferinas, a qual recebeu a aprovação da teologia escolástica, não haveria prevalecido em grau tão elevado. Pois tal teologia outra coisa não é senão contendas e vãs especulações sem qualquer conteúdo de real valor. Por mais versado que um homem seja nela; mais miserável o devemos considerar. Estou cônscio dos argumentos plausíveis com que isto é defendido, mas jamais descobrirão que Paulo haja falado em vão ao condenar aqui tudo quanto é da mesma natureza.

“Promovem discussões do que o serviço de Deus”. Sutilezas desse gênero edificam os homens na soberba e na vaidade, mas não em Deus. Paulo chama isto “a edificação de Deus”, ou porque Deus o aprova, ou porque isto é concorde com a natureza de Deus.

“Que consiste na fé”. Em seguida Paulo mostra que esta edificação consiste em fé; a por este termo ele não exclui

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o amor ao nosso próximo, ou o temor a Deus, ou o arrependimento, porque o que são todos estes senão frutos da “fé” que sempre produz o temor de Deus? Sabendo tudo aquilo em que a adoração a Deus é fundada somente na fé, ele reconhece portanto isto como sendo suficiente para mencionar “fé” da qual tudo o mais depende.

O Logos Divino - Comentário de João 1.1

“No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus.” (João 1.1)

“No princípio era o Logos”. Nesta introdução João afirma a eterna divindade de Cristo, de maneira a nos informar que ele é o Deus eterno, que foi manifestado na carne (1 Timóteo 3:16). O propósito é o de mostrar que isto foi necessário para que a restauração da humanidade pudesse ser realizada pelo Filho de Deus, uma vez que com o seu poder todas as coisas foram criadas, e que somente ele sopra em todas as criaturas vida e energia, de forma que elas permanecem no seu estado; e no próprio homem ele tem dado uma notável exibição tanto de seu poder quanto da sua graça, e mesmo posteriormente à queda do homem não deixou de mostrar libertação e bondade para com a sua posteridade. E esta doutrina é altamente necessária de ser conhecida; porque desde que fora de Deus não devemos procurar a vida e a salvação, como poderia a

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nossa fé descansar em Cristo, se não soubéssemos com certeza o que é ensinado aqui? Com estas palavras, portanto, o evangelista nos assegura que não somos afastados do único e eterno Deus, quando cremos em Cristo, e da mesma forma que a vida agora é restaurada para os mortos pela bondade daquele que foi a fonte e a causa da vida, quando a natureza do homem era ainda incorrupta.

Como o evangelista chama o Filho de Deus, o Logos, a simples razão parece-me ser, em primeiro lugar, porque ele é a Sabedoria eterna e a Vontade de Deus; e, em segundo lugar, porque ele é a imagem viva de Seu propósito; pois, assim como da faculdade da fala pode ser dito ser entre os homens a imagem da mente, por isso não é inapropriado aplicar isso a Deus, e dizer que Ele se revela a nós pelo seu Logos. As outras significações da palavra grega logos não se aplicam tão bem. Ela significa, sem dúvida, definição, razão e cálculo; mas estou indisposto a atender ao hermetismo da filosofia além da medida da minha fé. E nós percebemos que o Espírito de Deus está muito longe de aprovar tais sutilezas que, balbuciando conosco, por seu próprio silêncio, ele clama em voz alta com que sobriedade devemos lidar com esses mistérios sublimes.

Agora, como Deus, ao criar o mundo, revelou-se por esse Logos, por isso, ele anteriormente estava escondido com ele mesmo, de modo que há uma dupla relação; a primeira para com Deus, e a última para com os homens. Serveto, um arrogante pertencente à nação espanhola,

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inventa a declaração, que este eterno Logos começou a existir naquele momento, quando ele foi exibido na criação do mundo, como se ele não existisse antes de seu poder ter sido dado a conhecer pela operação externa. Muito diferente é o que o Evangelista ensina nesta passagem; pois ele não atribui ao Logos um início de tempo, mas diz que ele era desde o princípio, e, assim, ultrapassa todas as eras. Uma objeção a isto foi levantada anteriormente pelos arianos, ou seja, que no princípio Deus criou o céu e a terra (Gênesis 1.1), que, no entanto, não era o Logos eterno, porque a palavra refere-se a início e a ordem, em vez de denotar a eternidade. Mas o evangelista responde a essa calúnia, quando diz: “E o Logos estava com Deus.” Se o Logos começou a existir em algum momento, eles devem descobrir alguma sucessão de tempo em Deus; e, sem dúvida, por esta cláusula João visa a distingui-lo de todas as coisas criadas. Porque muitas perguntas poderiam surgir, onde estava esse Logos? Como é que ele exerce seu poder? Qual era a sua natureza? Como é que ele pode ser conhecido? O evangelista, portanto, declara que não devemos limitar nossa visão ao mundo e às coisas criadas; pois ele esteve sempre unido a Deus, antes que o mundo existisse. Agora, quando os homens datam o início da origem do céu e da terra, eles não reduzem Cristo à ordem comum do mundo, da qual ele é excluído em termos expressivos por esta passagem? Por este procedimento eles apresentam um insulto flagrante não só para o Filho de Deus, mas, para seu eterno Pai, que eles privaram de sua sabedoria. Se não temos a liberdade de conceber Deus sem a sua sabedoria, isto deve ser reconhecido, que não

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devemos procurar a origem do Logos em algum lugar a não ser na Sabedoria Eterna de Deus.

Serveto objeta que o Logos não pode ser admitido como tendo existido antes de Moisés ter falado de Deus como um orador. Como se ele não subsistisse em Deus, porque ele não foi feito publicamente conhecido, ou seja, como se ele não existisse, até que começou a aparecer externamente. Mas cada pretexto para fantasias escandalosamente absurdas desta descrição é cortado pelo evangelista, quando afirma, sem reservas, que o Logos estava com Deus; porque ele expressamente nos retira de cada momento de tempo.

Aqueles que inferem a partir do pretérito imperfeito do Logos, que é aqui usado, que denota existência continuada, têm pouca força de argumento para apoiá-los. “Foi”, eles dizem, é uma palavra mais apropriada para expressar a ideia de sucessão ininterrupta, do que se João tivesse dito, “tem sido”. Mas em questões tão pesadas devemos empregar argumentos mais sólidos; e, na verdade, o argumento que eu trouxe deve ser contado por nós como suficiente; ou seja, que o evangelista nos envia aos segredos eternos de Deus, para que possamos aprender que o Logos era, como estava escondido, antes de se revelar na estrutura exterior do mundo. Justamente, por isso, Agostinho faz a observação, que este princípio, que agora é mencionado, não tem começo; pois, embora, na ordem da natureza, o Pai veio antes de sua Sabedoria, e aqueles que concebem qualquer ponto do tempo, quando ele veio antes de sua

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Sabedoria, privam-no de sua glória. E esta é a geração eterna, a qual, durante um período de extensão infinita antes da fundação do mundo, estava escondida em Deus, por assim dizer - a qual, por uma longa sucessão de anos, estava obscurecida pela sombra para os patriarcas sob a Lei, e por fim foi mais plenamente manifestada em carne.

Eu me pergunto o que induziu os latinos a traduzirem “ho logos” por “Verbum” (a Palavra); porque isto teria sido mais a tradução de “to rhema”. Mas concedendo que eles tinham alguma razão plausível, ainda não pode ser negado que Sermo (o discurso) teria sido muito mais apropriado. Por isso é evidente, que a tirania bárbara foi exercida pelos teólogos da Sorbonne, que brincaram e saíram a Erasmo, de tal maneira, porque ele tinha mudado uma simples palavra para melhor.

“E o Logos estava com Deus”. Já dissemos que o Filho de Deus é, assim, colocado acima do mundo e, acima de todas as criaturas, e é declarado ter existido antes de todas as eras. Mas, ao mesmo tempo, esse modo de expressão atribui a ele uma personalidade distinta da do Pai; pois teria sido um absurdo o Evangelista dizer que o Logos estava sempre com Deus, se ele não tivesse algum tipo de subsistência peculiar a si mesmo em Deus. Esta passagem serve, portanto, para refutar o erro de Sabélio; pois mostra que o Filho é distinto do Pai. Eu já observei que devemos ser sóbrios em pensamento, e modestos ao falar, sobre tais mistérios elevados. E ainda os antigos escritores da Igreja foram desculpáveis, quando, achando que eles não podiam de qualquer outra forma manter a

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sã doutrina pura em oposição à fraseologia perplexa e ambígua dos hereges, que eram compelidos a inventar algumas palavras, que afinal não tinham nenhum outro significado do que aquilo que é ensinado nas Escrituras. Eles disseram que há três Hipóstases, ou subsistências, ou pessoas, na única e simples essência de Deus. A palavra; hupostasis (hipóstase) ocorre neste sentido em Hebreus 1:3, à qual corresponde a palavra latina Substaatia, (substância) como ela é empregada por Hilary. As pessoas (ta Prosopa) foram chamadas por eles de propriedades distintas em Deus, que se apresentam para o ponto de vista de nossas mentes; como diz Gregório Nazianzeno: "Eu não consigo pensar no Único (Deus) sem ter as Três (pessoas) brilhando ao meu redor.”

“E o Logos era Deus”. Para que não houvesse qualquer dúvida remanescente sobre a essência divina de Cristo, o evangelista claramente afirma que ele é Deus. Agora, já que há um só Deus, segue-se que Cristo é da mesma essência com o Pai, e ainda que, em alguns aspectos, ele é distinto do Pai. Mas da segunda cláusula já temos falado. Quanto à unidade da essência divina, Arius mostrou prodigiosa maldade, quando, para evitar ser forçado a reconhecer a eterna Divindade de Cristo, ele tagarelou sobre não sei qual divindade imaginária; mas da nossa parte, quando somos informados de que o Logos era Deus, que direito temos de colocar por mais tempo em questão a sua essência eterna?

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Libertados dos Mandamentos Cerimoniais da Lei - Comentário de Colossenses 2.16

“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados,” (Colossenses 2.16) “Ninguém, pois, vos julgue”. O que ele havia dito anteriormente sobre a circuncisão, ele agora estende à diferença de alimentos e dias. Porque a circuncisão foi o primeiro contato com a observância da lei, e outras coisas se seguiram depois. Julgar significa aqui, considerar alguém culpado de um crime, ou impor um escrúpulo de consciência, de modo que não sejamos mais livres. Ele diz, portanto, que não está no poder dos homens nos fazer sujeitos à observância dos ritos que Cristo tem abolido pela sua morte, e nos isenta do seu jugo, para que não permitamos que sejamos restringidos pelas leis que eles impuseram. Ele tacitamente, no entanto, coloca Cristo em contraste com toda a humanidade, para que ninguém devesse se exaltar tão ousadamente assim como tentar tirar o que ele tem dado. Em relação ao dia de festa. Alguns entendem τὸ μέρος significando participação. Crisóstomo, concordando com isso, pensa que Paulo usou o termo festa, porque eles não observaram as festas, estritamente, nem os dias de descanso, de acordo com a designação da lei. Isto, contudo, é apenas uma má interpretação. Considere se isto não pode ser entendido como separação, porque aqueles que fazem uma distinção de dias, separam, como isto sucedeu, um do outro. Tal modo de separação era

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adequado para os judeus, para que pudessem celebrar religiosamente os dias que foram apontados pela Lei, separando-os dos outros. Entre os cristãos, no entanto, tal divisão tem cessado.

Mas alguém dirá: "Nós ainda mantemos alguma observância de dias." Eu respondo que não temos, por qualquer meio, que observar dias, como se houvesse qualquer sacralidade em feriados, ou como se não fosse lícito trabalhar neles , senão que o respeito é pago ao governo e à ordem – não a dias. E é isso que ele imediatamente acrescenta.

A Lei Cerimonial Era uma Figura e Sombra de Cristo - Comentário de Colossenses 2.17

“porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” (Colossenses 2.17) “Que são sombras das coisas futuras”. A razão pela qual ele liberta os cristãos da observância dos dias festivos da Lei, é que eles eram sombras numa época em que Cristo ainda não havia se manifestado. Porque ele contrasta sombras com revelação e ausência com manifestação. Aqueles, portanto, que ainda aderem a essas sombras, agem como aquele que deve julgar a aparência de um homem pela sua sombra, enquanto nesse meio tempo ele o tinha pessoalmente diante de seus olhos. Porque

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Cristo é agora manifestado a nós, e por isso, vamos desfrutá-lo como presente. O corpo, diz ele, é de Cristo, isto é, EM Cristo. Porque a substância das coisas que as cerimônias antigamente prefiguravam agora é apresentada diante de nossos olhos em Cristo, na medida em que ele contém em si tudo o que eles aguardavam para o futuro. Assim, o homem que retorna às cerimônias do VT, ou enterra a manifestação de Cristo, ou furta Cristo de sua excelência, e o torna dessa maneira, vão. Assim, se qualquer um dos mortais assumir para si mesmo neste assunto o cargo de juiz, não vamos nos submeter a ele, na medida em que Cristo, o único juiz competente, nos liberta. Pois, quando ele diz: Ninguém vos julgue, ele não aborda os falsos apóstolos, mas proíbe os Colossenses de ceder seu pescoço a exigências descabidas. Abster-se, é verdade, de carne de porco, é em si inofensivo, mas a ligação de fazê-lo com o fim de se salvar ou se santificar, é perniciosa, porque torna nula a graça de Cristo.

Se qualquer um perguntar: "Que ponto de vista, então, é para ser tomado de nossos sacramentos (ceia e batismo)? Será que eles não representam também Cristo a nós como ausente?" Eu respondo que eles são muito diferentes das antigas cerimônias. Porque, assim como os pintores não fazem no primeiro projeto uma imagem em cores vivas, e (εἰκονικῶς) expressivamente, mas em primeira instância, desenham linhas rudes e obscuras com carvão, então a representação de Cristo sob a lei não era polida, e era, como se fosse, um primeiro esboço, mas nos sacramentos isto é visto retirado da vida. Paulo, no

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entanto, tinha algo mais em vista, pois ele contrasta o aspecto nu da sombra com a solidez do corpo, e lhes adverte, que é próprio de um louco tomar posse de sombras vazias, quando está em seu poder lidar com a substância sólida. Ainda, enquanto os nossos sacramentos representam o testemunho que ele foi uma vez manifestado, e agora eles também o apresentam a nós para ser desfrutado. Eles não são, portanto, sombras nuas, mas ao contrário, símbolos da presença de Cristo, porque eles contêm o Sim e o Amém de todas as promessas de Deus (2 Coríntios 1.20), que foi uma vez manifestado a nós em Cristo.

Mortos para os Rudimentos do Mundo - Comentário de Colossenses 2.20

“Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças:” (Colossenses 2.20)

“Se estais mortos”. Ele havia dito anteriormente, que as ordenanças estavam ligadas à cruz de Cristo (Col 2.14). Agora, ele emprega uma outra figura de linguagem - que estamos mortos para elas, como ele nos ensina em outro lugar, que estamos mortos para a lei, e a lei, por outro lado, para nós (Gál 2.19). O termo morte significa revogação, mas isto é mais expressivo e mais enfático, (καὶ ἐμφατικώτερον). Ele diz, portanto, que os Colossenses, nada têm a ver com as ordenanças

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cerimoniais da Lei. Por quê? Porque eles morreram com Cristo para aquelas ordenanças; isto é, depois que morreram com Cristo através da regeneração (novo nascimento do Espírito), eles foram, por Sua graça, libertos das ordenanças, para que elas não lhes pertençam mais. Por isso, ele conclui que eles não estavam vinculados de qualquer forma às ordenanças que os falsos apóstolos se esforçaram para impor-lhes.

A Inutilidade do Ascetismo - Comentário de Colossenses 2.21

“não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro,” (Colossenses 2.21)

“Não coma, não proves”. Até agora isto tinha sido processado – Não pegues, mas como outra palavra imediatamente se segue, a qual significa a mesma coisa, cada um vê quão fria e absurda foi tal repetição. Ainda mais, o verbo ἅπτεσθαι é empregado pelos gregos, entre suas outras significações, no sentido de comer, de acordo com o que tenho apresentado. Plutarco faz uso dele na vida de César, quando ele relata que seus soldados, destituídos de todas as coisas, comeram animais que eles não estavam acostumados anteriormente a usar como

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alimento. E este arranjo é em outros aspectos ainda mais natural e está mais conforme com a conexão da passagem; porque Paulo aponta, (μιμητικῶς,) por meio de imitação, para mostrar a que extensão de obstinação aqueles que amarram consciências por suas leis costumam proceder. Desde o início eles são excessivamente rigorosos; daí partem com a sua proibição - e não apenas contra o comer, mas mesmo contra ligeiramente participar. Depois de terem obtido o que eles desejam eles vão além daquele comando, para que depois declarem como sendo ilegal provar aquilo que eles não desejam que devesse ser comido. Por fim, eles consideram um crime até mesmo o tocar no que foi proibido. Em suma, quando as pessoas têm decidido uma vez tiranizar as almas dos homens, não há fim para novas leis que estarão sendo diariamente adicionadas aos antigos e novos decretos que eles formulam. Daí Paulo age admiravelmente bem em nos advertir que as tradições humanas são um labirinto, em que as consciências são cada vez mais enredadas; as quais desde o princípio ficam presas a tal maneira que no decorrer do tempo se estrangulam no final.

A Alma Não se Alimenta do que e Material - Comentário de Colossenses 2.22

“segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem.” (Colossenses 2.22)

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“Todas estas coisas tendem à corrupção”. Ele deixa de lado, por um argumento duplo, os atos aos quais ele fez menção - porque eles fazem a religião consistir em coisas externas e frágeis, que não têm ligação com o reino espiritual de Deus; e em segundo lugar, porque são de homens, não de Deus. Ele combate o primeiro argumento, também, em Romanos 14.17, quando ele diz: “O reino de Deus não consiste em comida e bebida;”. Da mesma forma, em 1 Coríntios. 6.13:

“O alimento é para o estômago e o estômago para os alimentos: Deus destruirá a ambos.”

Cristo também diz:

“O que quer que entra pela boca não contamina o homem, porque desce para o ventre, e é lançado fora.” (Mateus 15.11)

A suma é esta - que o culto a Deus, a verdadeira piedade e a santidade dos cristãos, não consistem em bebida e comida, e roupas, que são coisas que são transitórias e passíveis de corrupção, e perecem por abuso. Porque o abuso é propriamente aplicável a essas coisas que são corrompidas pelo uso das mesmas. Daí, decretos não têm nenhum valor em referência a essas coisas que tendem a excitar escrúpulos de consciência.

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A segunda refutação é adicionada - que elas se originaram com os homens, e não têm a Deus como seu autor; e por este trovão Paulo prostra e engole todas as tradições dos homens. Por que? Este é o raciocínio de Paulo: "Aqueles que trazem consciências em cativeiro injuriam a Cristo, e tornam sem efeito a sua morte. Porque tudo o que é da invenção humana não se liga à consciência."

Não se Purifica a Alma com Ascetismo e Cerimônias Religiosas - Comentário de Colossenses 2.23

“Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.” (Colossenses 2.23)

“O que tem de fato uma aparência”. Aqui temos a expectativa de uma objeção, em que, enquanto ele reconhece nos seus adversários o que eles alegam, ele ao mesmo tempo reconhece isto como sendo totalmente inútil. Pois é como se ele tivesse dito, que ele não considera terem uma demonstração de sabedoria. Mas a aparência é colocada em contraste com a realidade, pois

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é uma aparência, como eles geralmente falam, que engana por semelhança.

Observe-se, porém, de que cores esta aparência é composta, de acordo com Paulo. Ele faz menção a três - o culto de adoração autoinventado, humildade e disciplina do corpo. A superstição entre os gregos recebe o nome deἐθελοβρησκεία - o termo que Paulo faz uso aqui. Ele tem, no entanto, em vista, a etimologia do termo, porqueἐθελοβρησκεία literalmente denota um serviço voluntário, que os homens escolhem para si mesmos, à sua escolha, sem a autoridade de Deus. As tradições humanas, portanto, são agradáveis para nós por causa disso, porque elas estão de acordo com o nosso entendimento, porque qualquer um encontrará em seu próprio cérebro os primeiros esboços das mesmas. Este é o primeiro pretexto.

O segundo é a humildade, na medida em que a obediência a Deus e aos homens é almejada, assim, os homens não recusam até mesmo encargos excessivos. E, na maior parte as tradições deste tipo são de tal natureza que parecem ser exercícios admiráveis de humildade. Elas seduzem, também, por meio de um terceiro pretexto, na medida em que parecem ser de grande proveito para a mortificação da carne, enquanto não há nenhuma moderação no uso do corpo. Paulo, no entanto, reprova esses disfarces, porque aquilo que está em alta estima entre os homens muitas vezes é uma abominação aos olhos de Deus (Lucas 16.15).

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Ainda, isto é uma obediência traiçoeira, e uma humildade perversa e sacrílega, que transfere para os homens a autoridade de Deus; e a negligência do corpo não é de tão grande importância, a ponto de ser digno de ser exposto à admiração assim como ao culto de Deus. Alguém, no entanto, se sentirá surpreso, que Paulo não tenha mais dores em retirar essas máscaras. Respondo que ele em bons fundamentos, repousa satisfeito com a simples exibição do termo. Porque os princípios que tomara em oposição a isso são incontestáveis - de que o corpo está em Cristo, e que, consequentemente, aqueles nada fazem, senão se impor sobre os homens infelizes, colocando diante deles sombras. Em segundo lugar, o reino espiritual de Cristo não é de nenhuma forma tomado de elementos frágeis e corruptíveis. Em terceiro lugar, pela morte de Cristo tais observâncias foram extintas, para que não tenhamos qualquer conexão com elas; e, em quarto lugar, Deus é o nosso único Legislador (Isaías 33.22).

Ainda, ele reconheceu ser suficiente admoestar os Colossenses, para não serem enganados por serem colocados diante de coisas vazias. Não houve necessidade de maior repreensão. Porque isso deve ser um ponto resolvido entre todos os piedosos, que o culto a Deus não deve ser medido de acordo com os nossos pontos de vista; e que, portanto, qualquer tipo de serviço não é lícito, simplesmente pelo fato de que seja agradável para nós. Isso, também, deveria ser um ponto comumente recebido - que devemos a Deus, tal humildade assim como nos submetermos simplesmente

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aos seus mandamentos, que não devemos nos dirigir, agindo e pensando conforme a nossa própria compreensão (Provérbios 3.5) - e que o limite de humildade para com os homens é este - que cada um se submeta aos outros em amor. Agora, quando eles afirmam que a lascívia da carne é reprimida por abstinência de alimentos, a resposta é fácil - que não devemos, portanto, abster-nos de qualquer alimento específico como sendo imundo, mas devemos comer com moderação, para que possamos sóbria e moderadamente fazer uso dos dons de Deus, e para que não venhamos, impedidos por muita comida e bebida, a esquecer as coisas que são de Deus.

Tudo Foi Criado por Meio de Jesus e para Jesus - Comentário de João 1.2,3

“1:2 Ele estava no princípio com Deus.

1:3 Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.”

2. “Ele estava no princípio”. A fim de impressionar mais profundamente em nossa mente o que já foi dito, o Evangelista condensa as duas frases anteriores em um breve resumo, que o verbo sempre foi, e que ele estava com Deus; de modo que pode ser entendido que o princípio foi antes de todos os tempos.

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3. “Todas as coisas foram feitas por ele”. Depois de ter afirmado que o Logos é Deus, e de ter afirmado a sua essência eterna, ele agora prova a sua Divindade a partir de suas obras. E este é o conhecimento prático, ao qual devemos estar principalmente acostumados; porque o mero nome de Deus atribuído a Cristo nos afetará pouco, se a nossa fé não sentir isto como por experiência. Em referência ao Filho de Deus, ele faz uma afirmação que estrita e corretamente se aplica à sua pessoa. Às vezes, de fato, Paulo simplesmente declara que todas as coisas são de Deus (Romanos 11.36), mas sempre que o Filho é comparado com o Pai, ele é normalmente identificado por esta marca. Por conseguinte, o modo normal de expressão é aqui empregado, que o Pai fez todas as coisas por meio do Filho, e que todas as coisas são por Deus através do Filho. Agora, o propósito do evangelista é, como eu já disse, mostrar que assim que o mundo foi criado, que o verbo de Deus veio em operação externa; porque tendo sido anteriormente incompreensível em sua essência, ele se tornou então publicamente conhecido pelo efeito de seu poder. Há alguns, de fato, mesmo entre os filósofos, que fazem de Deus o arquiteto do mundo de tal modo a atribuir-lhe a inteligência na elaboração deste trabalho. Até aqui, eles estão corretos, pois concordam com as Escrituras; mas como eles imediatamente voam para especulações frívolas, não há razão pela qual devemos ansiosamente desejar ter seus testemunhos; mas, pelo contrário, devemos ficar satisfeitos com esta declaração inspirada, bem sabendo que ela transmite muito mais do que a nossa mente é capaz de compreender.

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“E, sem ele, nada do que foi feito se fez”. Embora exista uma variedade de interpretações desta passagem, de minha parte, não tenho hesitado em entendê-la continuamente assim: nem qualquer coisa que foi feita foi feita sem ele; e nisto quase todos os manuscritos gregos, ou pelo menos aqueles dentre eles que são mais aprovados, encontram-se de acordo; além disso, o senso exige isto. Aqueles que separam as palavras, o que foi feito, a partir da frase precedente, de modo a ligá-la com a seguinte, apresentam um senso forçado: o que foi feito era nele vida; isto é, viveu, ou manteve-se em vida. Mas eles nunca vão mostrar que este modo de expressão é, em qualquer instância, aplicado a criaturas. Agostinho, que é excessivamente viciado na filosofia de Platão, é levado junto, segundo o costume, à doutrina das ideias; que antes de Deus ter criado o mundo, ele tinha a forma de todo o edifício concebida na sua mente; e assim a vida daquelas coisas que ainda não existiam estava em Cristo, porque a criação do mundo foi designada nele. Mas quão amplamente isso é diferente da intenção do evangelista veremos imediatamente.

Volto agora ao primeiro período. Esta não é uma redundância defeituosa (perittologia), assim como isto parece ser; porque como Satanás se esforça, por todos os método possíveis, para tirar qualquer coisa de Cristo, o evangelista declara expressamente que, das coisas que tinham sido criadas lá não há uma única exceção que seja.

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A Vida Que Recebemos do Logos Eterno - Comentário de João 1.4

“A vida estava nele e a vida era a luz dos homens.” (João 1.4)

“Nele estava a vida”. Até agora, João nos ensinou, que todas as coisas foram criadas pelo Logos de Deus. Ele agora atribui a ele, da mesma forma, a preservação das coisas que tinham sido criadas, como se ele tivesse dito, que na criação do mundo não foi apenas exibido um exercício repentino de seu poder, que logo faleceu, mas que se manifestou na forma constante e regular da natureza, como dele é dito que mantém todas as coisas pela palavra ou a vontade de seu poder (Hebreus 1.3). Esta vida pode ser estendida ainda às criaturas inanimadas (que vivem segundo a sua própria maneira, embora elas sejam desprovidas de sentimentos) ou pode ser explicado em referência às criaturas vivas exclusivamente. É de pouca consequência que você escolha; porque o significado simples é, que o Logos de Deus não era apenas a fonte de vida para todas as criaturas, de modo que aqueles que não existiam começaram a ser, senão que a sua doação de poder vivificante faz com que eles permaneçam em sua condição; porque se não fosse a sua contínua inspiração dando vigor ao mundo, tudo o que vive decairia imediatamente, ou seria reduzido a nada. Em uma palavra, o que Paulo atribui a Deus, que nele existimos, nos movemos, e vivemos (Atos 17:28), João declara ser

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realizado pela agência graciosa do Logos; de modo que é Deus quem nos dá a vida, mas isto é pelo Logos eterno .

“A vida era a luz dos homens”. Eu deixo de lado as outras interpretações que não são feitas de acordo com o significado do evangelista. Na minha opinião, ele fala aqui daquela parte da vida em que os homens se diferenciam dos outros animais; e informa-nos que a vida que foi conferida aos homens não era de uma descrição comum, mas estava unida à luz da compreensão. Ele separa o homem da posição de outras criaturas; porque percebemos mais facilmente o poder de Deus, sentindo-o em nós, do que por contemplá-lo à distância. Assim, Paulo nos exorta a não procurar Deus à distância, porque ele se faz sentir dentro de nós (Atos 17.27.) Depois de ter apresentado uma exposição geral da bondade de Cristo, a fim de induzir os homens a ter uma visão mais próxima da mesma, ele aponta o que foi concedido peculiarmente em si mesmos; ou seja, que eles não foram criados como os animais, mas tendo sido dotados de razão, tinham obtido uma classificação mais elevada. Como não é em vão que Deus dá sua luz à sua mente, segue-se que a finalidade para a qual eles foram criados era, que eles pudessem reconhecer Aquele que é o Autor de tão excelente bênção. E uma vez que esta luz, da qual o Logos foi a fonte, foi transportada dele para nós, isto deveria servir como um espelho, em que podemos contemplar claramente o poder divino do Logos.

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A Luz de Jesus Prevalece Contra as Trevas Espirituais - Comentário de João 1.5

“A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.” (João 1.5)

“E a luz resplandece nas trevas”. Pode ser objetado que as passagens da Escritura em que os homens são chamados de cegos são tão numerosas e que a cegueira pela qual eles são condenados, é muito bem conhecida. Pois em todas as suas faculdades de raciocínio eles miseravelmente falham. Como com isto há tantos labirintos de erros do mundo, senão porque os homens, por sua própria orientação, são levados apenas a vaidade e mentiras? Mas se nenhuma luz aparece nos homens, aquele testemunho da divindade de Cristo, que o Evangelista recentemente mencionou, é destruído; pois este é o terceiro passo, como já disse, que na vida dos homens, há algo mais excelente do que movimento e respiração. O evangelista antecipa essa pergunta, e em primeiro lugar, estabelece essa cautela, que a luz que foi originalmente concedida a homens não deve ser estimada pela sua presente condição; porque nesta corrompida e degenerada natureza a luz tem sido transformada em trevas. E, no entanto, ele afirma que a luz da compreensão não é inteiramente extinta; porque, em meio à espessa escuridão da mente humana, algumas faíscas restantes da luz ainda brilham.

Meus leitores agora entendem que esta frase contém duas cláusulas; pois ele diz que os homens estão agora

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amplamente distantes daquela natureza perfeitamente santa com que foram dotados originalmente; porque a sua compreensão, que deveria ter lançado luz em todas as direções, está mergulhada em escuridão, e está miseravelmente cega; e que, portanto, da glória de Cristo pode ser dito estar obscurecida em meio a essa corrupção da natureza. Mas, por outro lado, o evangelista afirma que, no meio da escuridão ainda existem alguns restos de luz, que mostram, em algum grau o poder divino de Cristo. O evangelista admite, portanto, que a mente do homem está cegada; de modo que pode ser justamente coberta com a escuridão. Pois ele pode ter usado um termo mais ameno, e poderia ter dito que a luz é escura ou turva; mas ele preferiu afirmar mais claramente como a nossa condição miserável tornou-se desde a queda do primeiro homem. A afirmação de que a luz resplandece nas trevas não é em tudo destinada para recomendar a natureza depravada, mas sim para tirar toda desculpa para a ignorância.

“E as trevas não a compreenderam”. Embora essa pequena medida de luz, ainda permaneça em nós, o Filho de Deus tem sempre convidado os homens a si mesmo, mas ainda o evangelista diz que isto não apresentou qualquer vantagem, porque vendo, eles não enxergam (Mateus 13.13). Pois desde que o homem perdeu o favor de Deus, sua mente está tão completamente dominada pela escravidão da ignorância, que qualquer parte da luz que permanece nele é misturada e inútil. Isto é provado pela experiência diária; porque todos que não são regenerados pelo Espírito de Deus possuem alguma

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razão, e esta é uma prova inegável de que o homem foi feito não somente para respirar, mas para ter entendimento. Mas por aquela orientação de sua razão eles não vieram a Deus, e nem sequer se aproximaram dele; de modo que todo o seu entendimento é nada mais do que mera vaidade. Daí segue-se que não há esperança de salvação dos homens, a não ser que Deus conceda novos auxílios; porque embora o Filho de Deus derrame sua luz sobre eles, eles estão tão cegos que não entendem de onde essa luz provém, mas são levados por imaginações tolas e iníquas à loucura absoluta.

A luz que ainda habita na natureza corrompida consiste principalmente de duas partes; porque, em primeiro lugar, todos os homens possuem naturalmente uma parte da semente da religião; e, em segundo lugar, a distinção entre o bem e o mal está gravada em suas consciências. Mas quais são os frutos que, em última instância brotam, exceto que a religião degenera em mil monstros de superstição, e a consciência perverte cada decisão, de modo a confundir vício com virtude? Em suma, a razão natural nunca vai dirigir os homens a Cristo; e assim, serem dotados com prudência para regular suas vidas, ou nascidos para cultivar as artes liberais e ciências, tudo isso perece sem oferecer qualquer vantagem.

Deve ser entendido que o evangelista fala de dons naturais apenas, e não se refere ainda a qualquer coisa sobre a graça da regeneração. Pois há dois poderes distintos que pertencem ao Filho de Deus: o primeiro, o

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que se manifesta na estrutura do mundo e a ordem da natureza; e o segundo, pelo qual ele renova e restaura a natureza caída. Como ele é o Logos eterno de Deus, por ele o mundo foi feito; pelo seu poder todas as coisas continuam a possuir a vida que, uma vez foi recebida; o homem foi especialmente dotado de um dom extraordinário de entendimento; e que por sua rebelião, ele perdeu a luz da compreensão, mas ele ainda vê e compreende, de modo que o que possui naturalmente a partir da graça do Filho de Deus não é totalmente destruído. Mas desde que por sua insensatez e perversidade ele escurece a luz que ainda habita nele, isto permanece que um novo ofício é realizado pelo Filho de Deus, o ofício de Mediador, para renovar, pelo Espírito de regeneração, o homem que tinha sido arruinado. Portanto, raciocinam absurda e inconclusivamente, aquelas pessoas que se referem a esta luz, que o evangelista menciona, como sendo o evangelho e a doutrina da salvação.

João Batista Foi Enviado por Deus - Comentário de João 1.6

“Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.” (João 1.6)

“Houve um homem”. O evangelista agora começa a discorrer sobre a maneira pela qual o Filho de Deus se manifestou em carne; e para que ninguém possa duvidar

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que Cristo é o Filho eterno de Deus, ele relata que Cristo foi anunciado por João Batista, como seu arauto. Para não somente para Cristo ser exibido para ser visto pelos homens, mas ele escolheu também ser feito conhecido pelo testemunho e doutrina de João; ou melhor, Deus, o Pai enviou este testemunho diante do seu Cristo, para que pudessem receber a salvação oferecida por ele mais voluntariamente.

Mas pode parecer ridículo à primeira vista que Cristo deveria receber testemunho de outro, como se ele precisasse disso; enquanto, ao contrário, ele declara que ele não procura testemunho de homem (Jo 5.34). A resposta é fácil e óbvia, que este testemunho foi nomeado, não por causa de Cristo, mas por nossa causa. Se se objetar que o testemunho do homem é muito fraco para provar que Cristo é o Filho de Deus, é igualmente fácil de responder, que o Batista não é apresentado como uma testemunha particular, mas como alguém que, tendo recebido autoridade de Deus, sustentou o caráter mais de um anjo do que de um homem. Assim, ele recebe comenda não por suas próprias virtudes, mas para esta única circunstância, que ele era o embaixador de Deus. Nem isso está em desacordo com o fato de que a pregação do evangelho foi cometida a Cristo, para que pudesse ser uma testemunha de si mesmo; porque o desígnio contemplado pela pregação de João foi o de que os homens pudessem atender à doutrina e milagres de Cristo.

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“Enviado por Deus”. Ele não diz isso com a finalidade de confirmar o batismo de João, mas somente mencioná-lo de passagem. Esta circunstância não é suficiente para produzir certeza, uma vez que muitos se gabam de que Deus lhes enviou; mas o evangelista, pretendendo falar mais detalhadamente depois sobre esse testemunho, relata o suficiente, para o momento, por dizer em uma única palavra, que João não veio, senão que foi enviado pelo mandamento de Deus. Vamos depois ver como ele mesmo afirma que Deus é o autor de seu ministério. Temos agora de lembrar - o que eu anteriormente assinalei - que o que é afirmado sobre João é aplicável a todos os mestres da Igreja, que eles são chamados por Deus; de modo que a autoridade de ensino não pode ser fundada em qualquer outro do que em Deus somente.

“Cujo nome era João”. Ele indica o nome, não apenas para o propósito de apontar o homem, mas porque isto foi dado a ele de acordo com o que ele realmente era. Não há espaço para duvidar que o Senhor tinha referência ao cargo para o qual ele nomeou João, quando ele ordenou pelo anjo que ele deveria ser chamado assim, para que por meio de tudo isso pudessem reconhecê-lo como sendo o arauto da graça divina. Porque o nome yhvchnn (Jehohannan) pode ser entendido numa significação passiva, e pode, assim, ser referido à pessoa, como denotando que João era agradável a Deus; ainda de minha parte, eu de bom grado estendo isto ao benefício que outros deveriam receber a partir dele.

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João Veio Dar Testemunho da Luz de Jesus - Comentário de João 1.7,8

“1:7 Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele.

1:8 Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz,”

7. “Este veio como testemunha”. O fim da vocação de João Batista é brevemente notado; que era, para que pudesse preparar uma Igreja para Cristo, como, convidando todos a Cristo, ele mostra claramente o suficiente para que ele não tivesse vindo por sua própria conta.

8. “Ele não era a luz”. Agora João Batista necessitou desta advertência que foi apresentada pelo evangelista, para que seu brilho excessivo não pudesse obscurecer a glória de Cristo. Pois havia alguns que o olharam assim tão avidamente que negligenciaram a Cristo; como se uma pessoa, extasiada por contemplar o amanhecer do dia, não se atrevesse a voltar seus olhos para o sol. Em que sentido o evangelista emprega a palavra luz veremos imediatamente. Todos os piedosos, de fato, são luz no Senhor (Efésios 5.8), porque, em consequência da sua iluminação pelo Espírito, eles não somente veem por si mesmos, mas da mesma forma direcionam a outros pelo

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seu exemplo para o caminho da salvação. Os apóstolos da mesma forma são peculiarmente chamados de luz (Mateus 5.14), porque eles vão na vanguarda, elevando a tocha do Evangelho, para dissipar a escuridão do mundo. Mas aqui o evangelista fala daquele que é a única e eterna fonte de iluminação, como ele logo após mostra mais claramente.

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A Verdadeira Luz do Mundo - Comentário de João 1.9

“a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem.” (João 1.9)

“Pois a verdadeira luz”. O evangelista não tinha a intenção de contrastar a luz verdadeira com a falsa, mas distinguir Cristo de todas as demais, para que ninguém pudesse imaginar que o que é chamado de luz pertence a ele em comum com os anjos ou homens. A distinção é, que tudo o que é luminoso no céu e na terra toma emprestado o seu esplendor a partir de algum outro objeto; mas Cristo é a luz, brilhando em si e por si mesmo, e iluminando todo o mundo por seu brilho; de modo que nenhuma outra fonte ou causa de esplendor é para ser achada em qualquer lugar. Ele deu o nome de verdadeira luz, por conseguinte, Àquele que tem por natureza o poder de dar luz.

“Que ilumina a todo homem”. O evangelista insiste principalmente sobre este ponto, a fim de mostrar, a partir do efeito que cada um de nós percebe nele, que Cristo é a luz. Ele poderia ter fundamentado mais engenhosamente, que Cristo, como a luz eterna, tem um esplendor que é natural e não o trouxe de qualquer outra parte; mas em vez de fazer assim, ele nos remete à experiência que todos nós possuímos. Porque, assim como Cristo faz de nós todos participantes do seu brilho, deve ser reconhecido que somente a ele pertence estritamente esta honra de ser chamado de luz.

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Esta passagem é geralmente explicada de duas maneiras. Alguns restringem a frase, a cada homem, àqueles que, tendo sido renovados pelo Espírito de Deus, se tornam participantes da luz que dá vida. Agostinho emprega a comparação de um mestre que, se acontecer de você ser a única pessoa que tem uma escola na cidade, será chamado de o mestre de todos, embora haja muitas pessoas que não vão à sua escola. Eles, portanto, entendem a frase em sentido comparativo, que todos são iluminados por Cristo, porque nenhum homem pode se orgulhar de ter obtido a luz da vida em qualquer outra forma que não seja pela sua graça. Mas desde que o evangelista emprega a frase geral, “todo homem que vem a este mundo”, eu estou mais inclinado a adotar outro significado, que é, que a partir desta luz os raios são difundidos sobre toda a humanidade, como já tenho dito. Porque sabemos que os homens têm esta excelência peculiar que lhes eleva acima de outros animais, porque são dotados de razão e inteligência, e carregam a distinção entre o certo e o errado gravada na sua consciência. Não há nenhum homem, portanto, a quem alguma percepção da luz eterna não chegue.

Mas como há fanáticos que imprudentemente forçam e torcem esta passagem, de modo a inferir a partir dela que a graça de iluminação é igualmente oferecida a todos, lembremo-nos de que o único assunto tratado aqui é a luz comum da natureza, que é muito inferior à fé; porque nunca será qualquer homem, por toda a agudeza e sagacidade de sua própria mente, que entrará no reino de Deus. É o Espírito de Deus somente quem abre a porta

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dos céus para os eleitos. Então, vamos lembrar que a luz da razão que Deus implantou nos homens tem sido tão obscurecida pelo pecado, que no meio da grande escuridão e da ignorância, e do golfo de erros, há apenas algumas faíscas brilhantes que não são totalmente extintas.

O Logos Divino Rejeitado pela Nação de Israel - Comentário de João 1.10,11

“1:10 O Logos estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu.

1:11 Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.”

10. “Ele estava no mundo”. Ele acusa os homens de ingratidão, por causa de seu comum acordo, por assim dizer, eles estavam tão cegos, que a causa da luz que eles apreciavam era desconhecida para eles. Isso se estende a todas as épocas do mundo; porque antes de Cristo ter se manifestado na carne, seu poder foi exibido em todos os lugares; e, portanto, esses efeitos diários deveriam corrigir a insensatez dos homens. O que pode ser mais irrazoável do que tirar água de um riacho, e nunca pensar na fonte a partir da qual esse fluxo flui? Segue-se que nenhuma desculpa adequada pode ser encontrada para a ignorância do mundo em não conhecer a Cristo, antes que ele se manifestasse na carne; porque isso surgiu a partir da indolência e da insensatez daqueles que tiveram

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a oportunidade de vê-lo sempre presente pelo seu poder. O conjunto pode ser resumido dizendo, que nunca Cristo estivera, de tal forma ausente do mundo, mas que os homens, despertados por seus raios, deveriam ter levantado os olhos para ele. Por isso segue-se que a culpa deve ser imputada a eles mesmos.

11. “Veio para o que era seu”. Aqui é exibida a absolutamente desesperada iniquidade e malícia dos homens; aqui é apresentada a sua execrável impiedade, que, quando o Filho de Deus se manifestou em carne aos judeus, a quem Deus tinha separado para si mesmo a partir de outras nações para ser a sua particular herança, ele não foi reconhecido ou recebido. Esta passagem tem também recebido várias explicações. Porque alguns pensam que o evangelista fala de todo o mundo de forma indiscriminada; e, certamente, não existe nenhuma parte do mundo que o Filho de Deus não pudesse legitimamente reivindicar como sua própria propriedade. De acordo com eles, o significado é: "Quando Cristo veio para baixo para o mundo, ele não chegou a entrar em territórios de outras pessoas, porque toda a raça humana era sua herança." Mas eu aprovo muito mais a opinião daqueles que a submetem apenas aos judeus; porque há uma comparação implícita, pela qual o Evangelista representa a ingratidão atroz dos homens. O Filho de Deus havia solicitado uma morada para ele em uma nação; quando ele apareceu lá, foi rejeitado; e isso mostra claramente a cegueira terrivelmente perversa dos homens. Ao fazer esta declaração, o único objetivo do evangelista deve ter sido

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remover a ofensa que muitos estariam aptos a tomar em consequência da incredulidade dos judeus. Pois, quando ele foi desprezado e rejeitado pelos da nação para a qual havia sido especialmente prometido, quem iria considerá-lo como sendo o Redentor do mundo inteiro? Vemos as dores extraordinárias que o apóstolo Paulo teve em lidar com este assunto.

Aqui, tanto o verbo quanto o pronome são altamente enfáticos. “Ele veio”. O Evangelista diz que o Filho de Deus veio a este lugar onde ele antigamente estivera; e por esta expressão ele quer significar um novo e extraordinário tipo de presença, pela qual o Filho de Deus se manifestou, para que os homens possam ter uma visão mais próxima dele.

“O que era seu”. Por esta frase o Evangelista compara os judeus com outras nações; porque por um privilégio extraordinário eles haviam sido adotados na família de Deus. Cristo, portanto, foi primeiro oferecido a eles como à sua própria família, e como pertencente a seu império por um direito peculiar. Para a mesma finalidade é a acusação de Deus por Isaías: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono, mas Israel não me conhece (Isaías 1.3); porque se ele tem domínio sobre o mundo inteiro, ainda ele apresenta a si mesmo, de maneira peculiar, como o Senhor de Israel, a quem ele tinha escolhido, por assim dizer, de uma forma sagrada.

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A Filiação a Deus é Obtida Somente pela Fé em Jesus - Comentário de João 1.12

“Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome;” (João 1.12)

“Mas, a todos quantos o receberam”. Para que ninguém seja detido por esta pedra de tropeço, Cristo, a quem os judeus desprezaram e rejeitaram, o Evangelista exalta acima do céu os piedosos que acreditam nele; porque ele diz que pela fé eles obtêm essa glória de serem contados como filhos de Deus. O termo universal contém um contraste implícito; porque os Judeus foram levados por sua vangloriosa cegueira, a pensar que Deus havia se ligado exclusivamente a eles. O evangelista declara que a sua condição é mudada, porque os judeus foram rejeitados, e seu lugar, que havia sido deixado vazio, é ocupado pelos gentios; pois isso é como se ele tivesse transferido o direito de adoção para estrangeiros. Isto é o que Paulo diz, que a destruição de uma nação resultou em vida para o mundo inteiro (Romanos 11.12;) porque do Evangelho, pode ser dito que foi banido deles, e começou a ser espalhado por todas as partes do mundo. Eles foram, assim, privados do privilégio que desfrutavam acima dos outros. Mas sua impiedade não foi uma obstrução para Cristo; porque ele erigiu em outro lugar o trono do seu reino, e chamou indiscriminadamente para a esperança da salvação todas as nações que anteriormente pareciam ter sido rejeitadas por Deus.

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“Ele lhes deu o poder”. A palavra exousia (poder) aqui, me parece significar um direito, ou título; e seria melhor traduzi-la assim, a fim de refutar as falsas opiniões; que pervertem perversamente essa passagem por entender que ela signifique, que seja nada mais do que uma escolha que nos é permitida, se nos achamos aptos para avaliarmos a nós mesmos para tirar proveito desse privilégio. Desta forma o livre arbítrio (de termos o poder de escolher ou rejeitar a Cristo) é retirado a partir desta frase; e além disso eles podem extrair o fogo a partir da água. Há alguma plausibilidade nisso à primeira vista; porque o evangelista não diz que Cristo lhes fez filhos de Deus, mas que ele lhes dá o poder de se tornarem tais. Assim eles inferem que é somente esta graça que nos é oferecida, e que a liberdade de desfrutá-la ou rejeitá-la é colocado à nossa disposição. mas esse esforço fútil que se baseia em uma única palavra é posto de lado pelo que se segue imediatamente; porque o evangelista acrescenta, que eles se tornam filhos de Deus, não pela vontade que pertence à carne, mas quando eles são nascidos de Deus. Mas se a fé nos regenera, de modo que nós somos filhos de Deus, e se Deus sopra a fé em nós do céu, se torna evidente que não é pela possibilidade apenas, mas realmente - como se diz - é a graça de adoção que nos é oferecida por Cristo. E, de fato, a palavra grega, exousia é por vezes substituída por axiosis (dignidade), um significado que cai admiravelmente com esta passagem, pois teríamos “deu-lhes a dignidade de serem feitos filhos de Deus”.

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A prolixidade que o evangelista tem empregado tende mais para ampliar a excelência da graça, do que se ele tivesse dito uma única palavra, que todos os que creem em Cristo são feitos por ele filhos de Deus. Porque ele fala aqui do impuro e do profano, que, tendo sido condenado à ignomínia perpétua, estava na escuridão da morte. Cristo exibiu um exemplo surpreendente de sua graça em conferir esta honra a tais pessoas, de modo que eles começaram, instantaneamente, a serem filhos de Deus; e a grandeza deste privilégio é justamente exaltada pelo evangelista, como também por Paulo, quando ele o atribui a Deus, que é rico em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou (Efésios 2.4).

Mas se qualquer pessoa preferir tomar a palavra poder palavra em sua aceitação comum, ainda, o evangelista não lhe empresta o significado de ser isto qualquer faculdade intermediária, ou algo que não inclui o efeito total e completo; mas, pelo contrário, significa que Cristo deu ao impuro e ao incircunciso o que parecia ser impossível; porque uma mudança incrível ocorreu quando das pedras Cristo ressuscitou filhos a Deus (Mateus 3.9). O poder, portanto, é aquela aptidão (hikanotes) que Paulo menciona, quando ele dá graças a Deus, que nos fez idôneos para participar da herança dos santos (Colossenses 1.12).

“Que creem no seu nome”. Ele expressa sucintamente o modo de receber a Cristo, isto é, acreditar nele. Tendo sido enxertados em Cristo pela fé, obtemos o direito de adoção, de modo a sermos filhos de Deus. E, de fato,

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como ele é o Filho unigênito de Deus, isto sucede conosco somente por sermos membros dAquele por quem afinal esta honra nos pertence. O evangelista declara que este poder é dado àqueles que já creem. Agora é certo que tais pessoas são, na realidade, os filhos de Deus.

O Evangelista diz que aqueles que creem já nasceram de Deus. Não é, portanto, uma mera liberdade de escolha que é oferecida. Embora a palavra hebraica, sm (Nome) é por vezes utilizada para designar poder, ainda, denota aqui uma relação com a doutrina do Evangelho; porque quando Cristo é pregado a nós, então é que nós cremos nele. Falo do método comum pelo qual o Senhor nos leva à fé; e isso deve ser cuidadosamente observado, pois há muitos que tolamente se esforçam para uma fé confusa, sem qualquer compreensão da doutrina, sem qualquer conhecimento de Cristo, por não ouvir o Evangelho. Cristo, portanto, oferece-se a nós pelo Evangelho, e nós o recebemos pela fé.

Os Crentes São Gerados pela Vontade Exclusiva de Deus - Comentário de João 1.13

“os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” (João 1.13)

“Os quais não nasceram do sangue”. Alguns pensam que uma referência indireta é feita aqui à disparatada

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confiança dos judeus, e eu de bom grado adoto essa opinião. Eles tinham continuamente em sua boca a nobreza de sua linhagem, como se, porque eles eram descendentes de uma casta santa, eram naturalmente santos. E eles poderiam ter justamente se vangloriado de sua descendência de Abraão, se fossem filhos legítimos, e não bastardos; mas o brilho da fé nada atribui a qualquer geração carnal, mas reconhece a sua obrigação para com a graça de Deus somente por tudo o que é bom. João, então, diz que aqueles entre os gentios que eram anteriormente impuros, que creem em Cristo, não nascem como filhos de Deus desde o ventre materno, mas são renovados por Deus, para que possam começar a ser seus filhos. A razão pela qual ele usa a palavra sangue no plural, no original grego, parece ter sido, para que pudesse expressar mais plenamente uma longa sucessão de linhagem; porque isto era uma parte da jactância entre os Judeus, que poderiam traçar a sua genealogia, por uma linha ininterrupta, até os patriarcas.

“Nem da vontade da carne, nem da vontade do homem”. Parece-me significar a mesma coisa, pois não vejo nenhuma razão para que por carne deva ser suposto significar mulher, como Agostinho e muitos outros o explicam. Pelo contrário o Evangelista repete a mesma coisa em uma variedade de palavras, a fim de explicá-la mais plenamente, e imprimi-la mais profundamente nas mentes dos homens. Embora ele se refira diretamente aos judeus, que glorificavam a carne, contudo nesta passagem uma doutrina geral pode ser obtida: a de que o sermos contados como filhos de Deus

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não pertence à nossa natureza, e não procede de nós, mas porque Deus nos gerou de bom grado (Tiago 1.18), que é, por amor imerecido. Daí segue-se, em primeiro lugar, que a fé não procede de nós mesmos, mas é fruto da regeneração espiritual; porque o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a menos que ele seja gerado de Deus, e, portanto, a fé é uma dom. A isto segue, em segundo lugar, que a fé não é um nu e frio conhecimento, já que nenhum homem pode crer caso não tenha sido renovado pelo Espírito de Deus.

Pode-se pensar que o evangelista inverte a ordem natural por fazer a regeneração preceder a fé, ao passo que, pelo contrário, é um efeito da fé, e, portanto, deve ser colocada depois. Eu respondo, que ambas as afirmações concordam perfeitamente; porque pela fé recebemos a semente incorruptível (1 Pedro 1.23), pela qual nascemos de novo para uma nova vida divina. E ainda a própria fé é uma obra do Espírito Santo, que habita em ninguém a não ser nos filhos de Deus. Então, em vários aspectos, a fé é uma parte da nossa regeneração, e uma entrada para o reino de Deus, para que ele possa nos contar entre os seus filhos. A iluminação das nossas mentes pelo Espírito Santo pertence à nossa renovação e, assim, a fé flui da regeneração a partir de sua fonte; mas desde que é pela mesma fé que recebemos a Cristo, o qual nos santifica por seu Espírito, de modo que é dito que isto é o início de nossa adoção.

Outra solução, ainda mais simples e fácil, pode ser oferecida; porque quando Senhor sopra a fé em nós, ele

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nos regenera por um método que é oculto e desconhecido para nós; mas depois de termos recebido a fé, nós percebemos, por um sentimento vivo de consciência, não somente a graça de adoção, mas também a novidade de vida e os outros dons do Espírito. Porque desde que a fé, como já dissemos, recebe a Cristo, ela nos coloca na posse, por assim dizer, de todas as suas bênçãos. Assim, tanto quanto respeite ao nosso senso, é somente depois de ter crido - que começamos a ser filhos de Deus. Mas, se a herança da vida eterna é o fruto da adoção, vemos como o Evangelista atribui toda a nossa salvação à graça de Cristo somente; e, de fato, quanto mais os homens se examinarem a si mesmos, eles nada vão encontrar que lhes faça dignos de serem filhos de Deus, a não ser o que Cristo derramou sobre eles.

A Superioridade e Excelência Eterna de Jesus - Comentário de João 1.15

“João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia antes de mim.” (João 1.15)

“João dá testemunho”. Ele agora relata o que foi a pregação de João Batista. Por usar o verbo o testemunhar (marturei) no tempo presente, ele denota um ato continuado, e, certamente, essa doutrina deve ser continuamente vigorosa, como se a voz de João estivesse

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ressoando continuamente nos ouvidos dos homens. Do mesmo modo que ele usa depois a palavra “clamar”, para insinuar que a doutrina de João não se encontrava em nenhum grau obscura ou ambígua, e que ele não murmurava entre alguns homens, mas abertamente, e com grande voz, pregava a Cristo. A primeira frase se destina a transmitir a declaração, que ele foi enviado por causa de Cristo, e que, portanto, teria sido razoável que ele deveria ser exaltado, enquanto Cristo não entrasse em cena.

“Este é aquele de quem eu falava”. Por essas palavras ele quer dizer que a sua intenção foi, desde o início, que Cristo fosse conhecido, e que esta era a razão de seus discursos públicos; como, de fato, não havia outra maneira para que ele pudesse cumprir o seu dever como embaixador do que conduzir seus discípulos a Cristo.

“Já existia antes de mim”. Apesar de que João Batista fosse mais velho do que Cristo por alguns meses, todavia ele não fala agora de idade; mas como ele tinha cumprido o ofício de profeta por um curto período antes de Cristo aparecer em público, então ele faz a si mesmo o predecessor em relação ao tempo. No que diz respeito, por conseguinte, à manifestação pública, Cristo veio depois de João Batista. As palavras que se seguem podem ser literalmente declaradas, “ele veio depois de mim, tem contudo a primazia porque já existia antes de mim”; mas o significado é, que Cristo foi justamente preferido a João, porque ele era mais excelente. Ele, portanto, rendeu seu ofício a Cristo e – assim como diz o provérbio

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“passou-lhe o bastão", ou deu a ele lugar como seu sucessor. Mas, como Cristo surgiu mais tarde na ordem do tempo, João lembra seus ouvintes que isso não é razão para que ele não devesse ser preferido a ele mesmo, como sua posição merecida. Assim, todos os que são superiores aos outros, quer nos dons de Deus ou em qualquer grau de honra, devem permanecer na sua própria posição, de modo a ser colocada abaixo de Cristo.

Recebendo da Plenitude de Jesus Graça Sobre Graça - Comentário de João 1.16

“Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.” (João 1.16)

“E da sua plenitude”. João começa agora a pregar sobre o ofício de Cristo, que contém em si uma abundância de todas as bênçãos, para que nenhuma parte da salvação devesse ser procurada em qualquer outro lugar. É verdade, de fato, a fonte da vida, a justiça, virtude e sabedoria, estão com Deus, mas para nós é uma fonte oculta e inacessível. Mas uma abundância dessas coisas é exibida a nós em Cristo, para que nos seja permitido recorrer a ele; porque ele está pronto para fazê-las fluir para nós, desde que abramos um canal pela fé. Ele declara, em geral, que fora de Cristo não devemos buscar qualquer coisa boa, embora esta sentença consista de várias cláusulas. Primeiro, ele mostra que estamos todos totalmente destituídos e vazios de bênçãos espirituais;

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porque a abundância que existe em Cristo se destina a suprir nossa carência, para aliviar nossa pobreza, para saciar a nossa fome e sede. Em segundo lugar, ele nos adverte que, assim que nos temos afastado de Cristo, é vão para nós buscarmos uma única gota de felicidade, porque Deus determinou que tudo o que é bom deve residir somente nele. Assim, encontraremos anjos e os homens a secar, o céu vazio, a terra improdutiva, e, em suma, tudo não terá qualquer valor, se quisermos participar dos dons de Deus de qualquer outra forma que não através de Cristo. Em terceiro lugar, ele nos assegura que não haverá qualquer razão para temer qualquer coisa que seja, desde que possamos tirar da plenitude de Cristo, que é em todos os aspectos; tão completo, que vamos experimentar ser uma fonte inesgotável verdadeiramente; e João inclui a si mesmo nisto com os demais, não por uma questão de modéstia, mas para tornar mais evidente que nenhum homem é exceção quanto a isto.

Na verdade, é incerto se ele fala em geral de toda a raça humana, ou se ele se refere apenas àqueles que, posteriormente à manifestação de Cristo na carne, foram feitos mais plenamente participantes das suas bênçãos. Todos os piedosos, sem dúvida, que viveram sob a Lei, tiraram da mesma plenitude; mas, como João imediatamente depois distingue entre diferentes períodos, é mais provável que aqui ele especialmente recomende quão rica abundância de bênçãos Cristo exibiu na sua vinda. Porque sabemos que, nos termos da Lei os dons de Deus foram mais moderadamente

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provados, mas que, quando Cristo se manifestou em carne, eles foram vertidos, por assim dizer, com uma mão cheia, até à saciedade. Não que qualquer um de nós tenha obtido uma maior abundância da graça do Espírito do que Abraão, mas eu falo da dispensação comum de Deus, e da maneira e forma de distribuição. João Batista, que pode convidar mais livremente seus discípulos para virem a Cristo, declara que nele é depositada para todos uma abundância das bênçãos das quais eles são destituídos. E, no entanto, se alguém optar por estender o significado mais além, não haverá absurdo ao fazê-lo; ou melhor, ele concordará melhor com o tom do discurso, que todos os pais, desde o começo do mundo, retiraram de Cristo todos os dons que possuíram; porque a Lei foi dada por Moisés, mas eles não puderam obter a graça por ela. Mas eu já disse o que me parece ser o ponto de vista preferível; ou seja, que João aqui nos compara com os patriarcas, de modo a aumentar, por meios de comparação, o que nos tem sido dado.

“E, graça sobre graça”. De que maneira Agostinho explica essa passagem é bem conhecido - que todas as bênçãos que Deus nos concede de tempos em tempos, e para a extensão da vida eterna, não são concedidas como recompensa devido aos nossos méritos, mas que procede de pura liberalidade com que Deus assim recompensa primeiro com a graça, e nos coroa com os seus dons. Isto é piedosa e criteriosamente dito, mas nada tem a ver com a presente passagem. O significado seria mais simples se você tivesse que tomar a palavra “porque” do início do versículo, comparativamente,

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como significando, que sejam quais forem as graças que Deus nos concede, procede igualmente da mesma fonte (Cristo). Isto pode ser também tomado como apontando a causa final, pela qual agora recebemos a graça, para que Deus possa um dia completar a obra da nossa salvação, que será o cumprimento da graça. De minha parte, concordo com a opinião daqueles que dizem que são regados com as graças derramadas a partir de Cristo; porque o que recebemos de Cristo ele não derrama sobre nós como sendo Deus, mas o Pai, comunicou a Ele o que deveria fluir para nós como através de um canal. Esta é a unção com o qual ele foi ungido, para que pudesse nos ungir com a mesma. Por isso, também, que é chamado Cristo (o Ungido), e nós somos chamados cristãos.

A Graça e a Verdade que Vieram por Jesus Cristo - Comentário de João 1.17

“Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.” (João 1.17)

“Porque a lei foi dada por Moisés”. Esta é uma antecipação, pela qual João encontra uma objeção que era provável que surgiria porque em tão alta conta Moisés era estimado pelos judeus que dificilmente poderiam receber qualquer coisa que diferisse dele. Por isso, o evangelista mostra quão longe estava de ser inferior ao ministério de Moisés o poder de Cristo. Ao mesmo tempo, esta comparação não traz pequeno brilho

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ao poder de Cristo; porque enquanto a maior deferência possível era proferida a Moisés pelos judeus, o Evangelista lembra-lhes que o que ele trouxe era extremamente pequeno, quando comparado com a graça de Cristo. Isto teria sido, caso contrário, um grande obstáculo, que eles esperavam receber através da Lei o que podemos obter somente através de Cristo.

Mas é preciso atentar para a antítese, quando contrapõe a lei com graça e a verdade; porque seu significado é que a lei carecia de ambos. A palavra Verdade denota, na minha opinião, um estado fixo e permanente das coisas. Pela palavra Graça eu entendo o cumprimento espiritual dessas coisas, a letra nua que estava contida na Lei. E destas duas palavras pode ser suposto que se referem à mesma coisa, por uma figura bem conhecida de expressão, (hypallage;) como se ele tivesse dito, que a graça, na qual a verdade da lei consiste, foi longamente exibida em Cristo. Mas, como o significado será, em nenhum grau afetado, é de nenhuma importância se você os vê como unidos ou como distintos. Isto pelo menos, é certo, que o evangelista quer dizer que a Lei não era nada mais do que uma imagem sombria de bênçãos espirituais, senão que elas são realmente encontradas em Cristo; de onde se segue que, se você separar a Lei de Cristo, continua a nada haver nela, mas figuras vazias (especialmente as tipologias relativas a Cristo e que se cumpriram nele). Por esta razão, Paulo diz que as sombras estavam na lei, mas o corpo está em Cristo (Colossenses 2.17).

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E, ainda, não se deve supor que nada foi exibido pela Lei de forma a enganar; pois Cristo é a alma que dá vida ao que teria estado morto sob a lei. Mas aqui uma questão totalmente diferente nos encontra, ou seja, o que a lei poderia fazer por si mesma e sem Cristo; e o Evangelista afirma que nada permanentemente valioso é encontrado na mesma até que cheguemos a Cristo. Esta verdade consiste em nossa obtenção por meio de Cristo daquela graça que a lei não poderia em qualquer sentido outorgar; e, portanto, tomo a palavra graça no sentido geral, como denotando tanto o perdão incondicional dos pecados, e a renovação do coração. Por enquanto, o evangelista aponta brevemente a distinção entre o Antigo e o Novo Testamento, (o que é mais detalhadamente descrito em Jeremias 31.31), ele inclui nesta palavra tudo o que se relaciona com a justiça espiritual. Agora a justiça consiste em duas partes; em primeiro lugar, que Deus está reconciliado conosco pela graça livre, não nos imputando os nossos pecados; e, por outro, que ele tem gravado sua lei nos nossos corações, e, pelo seu Espírito, renovado os homens na obediência interior a ele; a partir do que torna-se evidente que a Lei é incorreta e falsamente exposta, se há alguém cuja atenção está fixada exclusivamente na Lei, ou quem por ela é impedido de vir a Cristo.

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Deus Só pode Ser Conhecido em Jesus Cristo - Comentário de João 1.18

“Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.” (João 1.18)

“Nenhum homem jamais viu a Deus”. Isto é adicionado apropriadamente para confirmar a afirmação anterior; porque o conhecimento de Deus é a porta pela qual entramos no gozo de todas as bênçãos; e uma vez que é por Cristo que Deus se dá a conhecer a nós, portanto, também se segue que devemos buscar todas as coisas a partir de Cristo. Esta doutrina deveria ser cuidadosamente observada. Nenhuma afirmação parece ser mais comum do que esta, que cada um de nós recebe, de acordo com a medida da sua fé, o que Deus nos oferece; mas são poucos os que pensam que devemos trazer o vaso da fé e do conhecimento de Deus com o qual somos enchidos.

Quando ele diz que nenhum homem jamais viu a Deus, não devemos entender que ele se refere à percepção externa do olho corporal; porque ele se refere ao fato de que como Deus habita em luz inacessível (1 Timóteo 6.16), ele não pode ser conhecido, senão em Cristo, que é a sua imagem viva. Esta passagem é geralmente assim explicada que, como a majestade de Deus está escondida dentro de si mesmo, ele nunca poderia ser compreendido, exceto na medida em que ele se revelou em Cristo; e, portanto, que era somente em Cristo que Deus foi conhecido anteriormente aos pais. Mas eu

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prefiro pensar que o Evangelista segue aqui a comparação já citada, ou seja, quão muito melhor é a nossa condição do que a dos pais, porque Deus, que antigamente era escondido em sua glória secreta, agora pode-se dizer que se tornara visível; pois certamente quando Cristo é chamado de imagem viva de Deus (Hebreus 1.3), isto se refere ao peculiar privilégio do Novo Testamento. Da mesma forma, o evangelista descreve, nesta passagem, algo novo e incomum, quando ele diz: que o Filho unigênito, que estava no seio do Pai, tem feito conhecido a nós o que antigamente era escondido. Ele, portanto, amplia a manifestação de Deus, que foi trazida a nós pelo evangelho, em que nos distinguimos dos pais, e mostra que somos superiores a eles; como também Paulo explica mais detalhadamente no terceiro e quarto capítulos da Segunda Epístola aos Coríntios. Porque ele sustenta que não há mais nenhum véu agora, como existia sob a Lei, mas que Deus é abertamente contemplado na face de Cristo.

Se se pensar que é irrazoável que os pais são privados do conhecimento de Deus, o qual os profetas tinham diariamente apresentado diante deles, eu respondo, que o que é atribuído a nós não é simplesmente ou absolutamente negado a eles, mas que é feita uma comparação entre o menor e o maior, como se diz; porque eles não tinham nada mais do que pequenas faíscas da verdadeira luz, do brilho total, que agora brilha diariamente em torno de nós. Se se objetar, que, naquela época, também Deus foi visto face a face (Gênesis 32.30; Deuteronômio 34.10), eu mantenho que essa visão não é

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de todo para ser comparada com a nossa; senão como Deus estava acostumado naquele tempo a se exibir obscuramente, e, por assim dizer, à distância, aqueles a quem ele tinha mais claramente se revelado dizem que o viram face a face. Eles dizem assim com referência à sua própria época; mas eles não viram Deus em qualquer outra forma do que envolvido em muitas figuras e cerimônias. Aquela visão que Moisés obteve na montanha foi notável e mais excelente do que quase todo o resto; e Deus ainda declara expressamente, “não poderás ver a minha face, somente verás as minhas costas (Êxodo 33.23), por qual metáfora ele mostra que o tempo para uma completa e clara revelação ainda não havia chegado. Também deve ser observado que, quando os pais desejavam ver a Deus, eles sempre voltaram seus olhos para Cristo. Eu não somente quero dizer que eles contemplaram a Deus em seu Logos eterno, mas também que eles participaram, com toda a sua mente e com toda o seu coração, para a manifestação prometida de Cristo. Por esta razão, acharemos o que Cristo disse depois, “Abraão viu o meu dia” (João 8.56) e o que é subordinado não é contraditório. Isto é portanto, um princípio fixo, que Deus, que antes era invisível, tem agora se feito visível em Cristo.

Quando ele diz que o Filho estava no seio do Pai, a metáfora é emprestada de homens, dos quais se diz receberem no seu seio aqueles aos quais eles comunicam todos os seus segredos. O seio é o assento do conselho. Ele, portanto, mostra que o Filho estava familiarizado com os segredos mais escondidos de seu Pai, a fim de nos

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informar que temos o seio de Deus, por assim dizer, colocado aberto para nós no Evangelho.

Orar Para Obter Conhecimento e Crescimento Espiritual - Comentário de Colossenses 1.9

“Por esta razão, também nós, desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós e de pedir que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento espiritual;” (Colossenses 1.9) “Por esta razão, nós também”. Como ele já havia mostrado antes seu afeto por eles em suas ações de graças, por isso ele agora o mostra ainda mais na sinceridade de suas orações em favor deles. E, seguramente, quanto mais que a graça de Deus é visível em alguém, devemos na mesma proporção especialmente amá-lo e estimá-lo, e estarmos interessados, pelo seu bem estar. Mas pelo que ele ora em favor dos colossenses? Para que eles possam conhecer a Deus mais plenamente; porque ele indiretamente lhes afirma, que algo ainda está faltando neles, para que ele possa preparar o caminho para lhes transmitir instruções, e se assegurar da sua atenção para uma declaração mais completa da doutrina. Porque aqueles que pensam que já alcançaram tudo o que é digno de ser conhecido, desprezam e desdenham de tudo o mais que lhes é apresentado. Por isso, ele remove dos

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colossenses uma impressão desta natureza, para que isso não fosse um empecilho no caminho do seu progresso, e fazendo provisão para que o que havia sido iniciado neles recebesse um acabamento adicional. Mas qual é o conhecimento que ele deseja para eles? O conhecimento da vontade divina, pelo qual ele deixa de lado todas as invenções dos homens, e todas as especulações que estão em desacordo com a palavra de Deus. Porque sua vontade não deve ser procurada em qualquer outro lugar, senão em sua palavra.

Ele acrescenta – “em toda a sabedoria”; pela qual ele dá a entender que a vontade de Deus, da qual ele havia feito menção, era a única regra de conhecimento correto. Porque, se alguém está desejoso simplesmente de saber as coisas que aprouve a Deus revelar, este é o homem que sabe com precisão o que é ser verdadeiramente sábio. Se desejamos algo além disso, isto será nada mais do que ser insensato, por não se manter dentro dos devidos limites. Pela palavra συνέσεως – que tenhamos prudência, eu entendo – aquele discernimento que procede da inteligência. Ambos são chamados de espirituais por Paulo, a saber, a sabedoria e a inteligência (ou prudência) porque não são atingidos de qualquer outra forma, senão apenas pela orientação do Espírito Santo. “Porque o homem natural não percebe as coisas que são de Deus.” (1 Coríntios 2.14).

Enquanto os homens são dirigidos por suas próprias percepções carnais, eles também têm a sua própria

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sabedoria, mas é de tal natureza que é mera vaidade, por mais que possam se deleitar nisto. Vamos, no entanto, ter em mente, que a única sabedoria que é louvada por Paulo está compreendida na vontade de Deus.

O Viver Digno de Deus - Comentário de Colossenses 1.10

“a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus;” (Colossenses 1.10)

“A fim de viverdes de modo digno de Deus”. Em primeiro lugar, ele ensina, qual é a finalidade do entendimento espiritual, e com que propósito devemos fazer proficiência na escola de Deus - para que possamos caminhar de modo digno de Deus, isto é, que possa se manifestar em nossa vida, que nós não temos sido ensinados em vão por Deus. Quem quer que seja que não direcione seus esforços para esse objetivo, pode, eventualmente, trabalhar e se esforçar muito, mas nada fará melhor do que vagar em voltas intermináveis, sem fazer qualquer progresso. Mais adiante, ele nos adverte que, se quisermos andar de maneira digna de Deus, devemos acima de tudo tomar cuidado para que regulemos todo o nosso curso de vida de acordo com a vontade de Deus, renunciando à nossa própria

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compreensão, e despedindo-nos de todas as inclinações da nossa carne.

Isso também se confirma mais uma vez ao dizer – “para toda a obediência”, ou, como geralmente dizem, “para o seu inteiro agrado”. Por isso, se for perguntado, que tipo de vida é digna de Deus, vamos sempre ter em vista essa definição de Paulo - que isto é uma vida como, deixando as opiniões dos homens, e deixando, em suma, toda inclinação carnal, estarmos em sujeição a Deus. A isto seguem as boas obras, que são os frutos que Deus exige de nós. “Crescendo no pleno conhecimento de Deus”. Ele mais uma vez repete, que eles não têm chegado a tal perfeição, que não lhes seja necessário um maior crescimento, e assim por sua admoestação os prepara, e com isto os conduz pela mão, para uma aspiração por proficiência, para que possam se mostrar prontos para ouvir, e aptos para aprender. O que é dito aqui aos colossenses, que todos os crentes considerem como sendo dito a si mesmos, e tirem disso uma exortação comum que sempre devemos fazer progressos na doutrina da piedade até a morte.

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Fortalecidos com Poder Espiritual - Comentário de Colossenses 1.11

“sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua glória, em toda a perseverança e longanimidade; com alegria,” (Col 1.11)

“Sendo fortalecidos com todo o poder”. Como ele já havia orado antes para que eles pudessem ter tanto um bom entendimento espiritual, quanto o uso correto do mesmo, assim também agora ele ora para que tenham coragem e constância. Desta forma, coloca em suas mentes a convicção de sua fraqueza, pois ele diz, que eles não serão fortes, exceto com a ajuda do Senhor; e não somente isso, mas com a visão de ampliar o exercício da graça, acrescenta, “de acordo com o poder da sua glória”. Assim como está tão longe que alguém seja capaz de ficar de pé, através da dependência de sua própria força, o poder do próprio Deus mostra-se distintamente em ajudar a nossa fraqueza. Finalmente, ele mostra em que é que a força dos crentes deve ser exibida - em toda a paciência e longanimidade. Pois eles são constantemente, enquanto neste mundo, exercitados com a cruz, e milhares de tentações se apresentam diariamente, de modo a pressioná-los para baixo, e eles nada veem de tudo o que Deus tem prometido. Devem, portanto, armar-se com uma paciência admirável, da qual Isaías diz que deve ser obtida “na esperança e na confiança, estará a vossa força” (Isaías 30.15). É preferível conectar com esta frase a cláusula, “com alegria”. Pois, embora a outra leitura seja mais

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comumente encontrada nas versões latinas, isso está mais de acordo com os manuscritos gregos, e, sem dúvida, a paciência não é sustentada, exceto em vivacidade de espírito, e nunca será mantida com firmeza por qualquer um que não esteja satisfeito com sua condição.

O Que Resta das Aflições de Cristo? - Comentário de Colossenses 1.24

“Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja;” (Colossenses 1.24)

“Agora me regozijo”. Ele tinha previamente reivindicado para si mesmo autoridade em razão da sua vocação. Agora, porém, ele defende a honra de seu apostolado de ser prejudicada pelas detrações e perseguições que ele sofreu por causa do evangelho. Porque Satanás, também, perversamente transforma essas coisas em ocasiões para representar publicamente os servos de Deus, da forma mais desprezível. Mais adiante, ele os encoraja com o seu exemplo para não ficarem intimidados por perseguições, e expõe a eles a visão do seu zelo. Mais ainda, ele dá provas de sua afeição para com eles por nenhuma obrigação formal, quando ele declara que carregava de bom grado por causa deles as aflições que suportava. "Mas de onde", alguém vai perguntar: "surge esta

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alegria?" De ver os frutos que dela brotavam. "A aflição que eu suportei por vocês é agradável para mim, porque eu não sofri em vão." Da mesma forma, em sua Primeira Epístola aos Tessalonicenses, ele diz, que se alegrou em todas as necessidades e aflições, com base no que tinha ouvido falar a respeito de sua fé (1 Tessalonicenses 3. 6,7).

“E preencher o que resta das aflições de Cristo”. A conjunção “e”, eu entendo a razão pela qual ele atribui estar alegre em seus sofrimentos, porque ela reside em ser um parceiro de Cristo, e nada mais feliz pode ser desejado do que esta parceria. Ele também traz uma consolação comum a todos os piedosos, que em todas as tribulações, especialmente na medida em que eles sofrem qualquer coisa pela causa do evangelho, eles são participantes da cruz de Cristo, para que possam desfrutar de comunhão com ele em uma ressurreição abençoada.

Mais ainda, ele declara que tem preenchido o que está faltando nas aflições de Cristo. Porque, como ele fala em Romanos 8.29: “Aos que Deus elegeu, ele também predestinou para serem conformes à imagem de Cristo, para que ele seja o primogênito entre os irmãos.”

Ainda, sabemos que há uma tão grande unidade entre Cristo e seus membros, que o nome de Cristo, por vezes, inclui todo o corpo, como em 1 Coríntios. 12.12, porque enquanto discursava em relação à Igreja, ele chega à conclusão de que, em Cristo, sucede o mesmo que num corpo humano. Como, portanto, Cristo sofreu uma vez

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em sua própria pessoa, ele sofre ainda diariamente nos seus membros, e desta forma são preenchidos esses sofrimentos que o Pai designou para seu corpo por seu decreto. Aqui temos uma segunda consideração, para guardar as nossas mentes e confortá-las nas aflições, que estão, assim, fixadas e determinadas pela providência de Deus, que devemos estar conformados com Cristo na perseverança da cruz, e que a comunhão que temos com ele estende-se a isso também.

Ele acrescenta, ainda, uma terceira razão - que seus sofrimentos são vantajosos, e não apenas para alguns, mas para toda a Igreja. Ele havia dito anteriormente que ele sofreu em favor dos Colossenses, e declara agora ainda mais, que o benefício se estende a toda a Igreja. Esta vantagem foi mencionada em Filipenses 1.12. O que poderia ser mais claro, menos forçado, ou mais simples, do que esta exposição, que Paulo está alegre na perseguição, porque ele considera, de acordo com o que ele escreve em outro lugar, que devemos carregar conosco em nosso corpo a mortificação de Cristo, para que a sua vida se manifeste em nós? (2 Coríntios 4.10).

Ele diz também em Timóteo: “Se sofrermos com Ele, também reinaremos com ele: se morrermos com ele, também viveremos com ele (2 Timóteo 2.11,12), e, portanto, a questão será abençoada e gloriosa. Ainda, ele considera que não se deve recusar a condição que Deus determinou para a sua Igreja, a saber, que os membros de Cristo possam ter uma correspondência adequada com a cabeça; e, em terceiro lugar, que as aflições devem

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ser alegremente suportadas, na medida em que são proveitosas para todos os piedosos, e promovem o bem-estar de toda a Igreja, por adornar a doutrina do evangelho.

Traduzido, reduzido e adaptado por Silvio Dutra.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino vai expor adiante no comentário desta passagem de Colossenses, que os sofrimentos dos crentes não têm qualquer efeito expiatório do pecado, ou contribuem para a justificação dos pecadores, porque isto é devido somente ao sacrifício, sofrimentos e mérito de Jesus Cristo).

Consequência de Não Ouvir e Obedecer a Deus - Comentário de Levítico 26.14

“Mas, se me não ouvirdes e não cumprirdes todos estes mandamentos;” (Lev 26.14) (Nota do Pr Silvio Dutra: Na leitura de todos os comentários de Calvino que traduzimos do texto de Levítico 26.14-46, que trata das maldições previstas na Lei de Moisés para o povo de Israel em caso de desobediência à Aliança que Deus fizera com eles, deve ser levado em consideração que os juízos descritos apesar de serem inerentes àquela Antiga Aliança, descrevem de maneira muito vívida qual é o caráter de Deus e da Sua justiça, e o modo como Ele tratou com o

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Seu próprio povo de Israel para lhes conduzir na obediência à Aliança, de modo que pudesse ser a nação por meio da qual o Messias se manifestaria ao mundo na plenitude do tempo.)

Até agora um convite amável foi exposto perante o povo em forma de promessas, em Lev 26.1-13, onde são descritas as bênçãos decorrentes da obediência à Lei, a fim de que a observância da Lei pudesse ser realizada de modo agradável; uma vez que, como já vimos, a nossa obediência é, então, apenas aprovada por Deus quando obedecemos voluntariamente. Mas, na medida em que a lentidão da nossa carne tem necessidade de ser estimulada, ameaças também são adicionadas para inspirar temor, e de qualquer forma para remover o que deveria ter sido realizado de forma espontânea. Pode parecer, de fato, que isto pode ser portanto inferido, que as ameaças são absurdamente equivocadas quando aplicadas para produzir a obediência à Lei, a qual deveria ser voluntária; pois aquele que é compelido pelo medo nunca vai amar a Deus; e este é o ponto principal na Lei. Mas o que eu já mostrei, vai em alguma medida servir para resolver esta dificuldade, a saber, que a Lei é mortal para os transgressores, porque os mantém sob aquela condenação da qual gostariam de ser libertados por presunções vãs; enquanto as ameaças também são úteis para os filhos de Deus para um propósito diferente, para que eles possam estar preparados para temer a Deus de todo coração, antes de serem regenerados, e também para que, após a sua regeneração, seus afetos corruptos possam ser diariamente subjugados. Porque embora

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desejem sinceramente dedicar-se completamente a Deus, eles ainda têm de lidar continuamente com os pecados que remanescem na carne. Assim, pois, embora o objeto direto das ameaças seja para alarmar os reprovados, ainda que igualmente se aplique aos crentes, com a finalidade de acelerar a sua lentidão, considerando como eles não são ainda completamente regenerados, senão que ainda se acham sobrecarregados com os resquícios do pecado.

Consequências da Rejeição dos Mandamentos de Deus - Comentário de Levítico 26.15-17

Lev 26:15 se rejeitardes os meus estatutos, e a vossa alma se aborrecer dos meus juízos, a ponto de não cumprir todos os meus mandamentos, e violardes a minha aliança, Lev 26:16 então, eu vos farei isto: porei sobre vós terror, a tísica e a febre ardente, que fazem desaparecer o lustre dos olhos e definhar a vida; e semeareis debalde a vossa semente, porque os vossos inimigos a comerão. Lev 26:17 Voltar-me-ei contra vós outros, e sereis feridos diante de vossos inimigos; os que vos aborrecerem assenhorear-se-ão de vós e fugireis, sem ninguém vos perseguir. “E se desprezardes os meus estatutos”. Isso parece se aplicar apenas aos apóstatas ímpios e depravados, que deliberadamente se rebelassem contra o serviço e

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adoração a Deus, porque se uma pessoa cai em fraqueza, e ofende com leviandade e falta de consideração, ela não dirá que rejeitou a lei de Deus, ou que invalidou a Sua aliança. E, certamente, é provável que Deus intencionalmente falou de rebelião grosseira, que não poderia ser atenuada com o pretexto de erro. Ainda assim, deve-se ter em mente que todos os transgressores, independentemente de terem violado a lei, no todo ou em parte, são colocados sob a maldição. Mas Deus deveria lembrar o seu povo em boa hora a que ponto procederiam finalmente aqueles que assumem a liberdade de pecar; e também de que fonte surgem todas as transgressões. Porque, apesar de todo aquele que se desvia do caminho reto, para o pecado, não repudiar completamente ou abominar a Lei, mas ainda assim todos os pecados carregam o desprezo da Lei, e tendem a quebrar o pacto de Deus. Ele com justiça, portanto, os denuncia como violadores do pacto, e desprezadores orgulhosos, a menos que obedeçam os Seus mandamentos, e, em primeiro lugar, Ele ameaça que lhes destruirá com "terror e tísica”, e outras doenças; e em seguida, adiciona calamidades externas, tais como a escassez de trigo, invasões violentas de inimigos, e o saque de seus bens; do que será mais conveniente falar mais detalhadamente ao expor a passagem paralela em Deuteronômio.

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A Desobediência nos Sujeita aos Juízos de Deus - Comentário de Levítico 26.18-20

Lev 26:18 Se ainda assim com isto não me ouvirdes, tornarei a castigar-vos sete vezes mais por causa dos vossos pecados. Lev 26:19 Quebrantarei a soberba da vossa força e vos farei que os céus sejam como ferro e a vossa terra, como bronze. Lev 26:20 Debalde se gastará a vossa força; a vossa terra não dará a sua messe, e as árvores da terra não darão o seu fruto. “Se ainda assim com isto não me ouvirdes”. A gradação das penas, que é aqui mencionada, mostra que elas são tão temperadas pela bondade de Deus, que Ele apenas castiga levemente aqueles cuja insensatez ou dureza de coração Ele não tem ainda provado; mas quando a obstinação no pecado é acrescentada, a severidade das penas são igualmente aumentadas; e justamente porque aqueles que, sendo admoestados, não têm o cuidado para se arrependerem, encomendam uma guerra aberta contra Deus. Por isso, quanto mais moderadamente Ele lida conosco, mais atentos devemos ser às suas correções, a fim de que mesmo os golpes mais suaves, com os quais Ele, em Sua bondade amacia e tempera, possam ser o suficiente. Paulo diz que os hipócritas amontoarão para si um tesouro de maior vingança, se eles se aproveitarem do momento de Sua paciência para continuarem impassíveis (Romanos 2.4,5); porque aqueles que não se arrependem, quando admoestados

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por castigos leves, são menos desculpáveis. Por isso vamos dar atenção a essa exortação de Davi: "Não sejais como o cavalo ou a mula, sem entendimento, os quais com freios e cabrestos são dominados; de outra sorte não te obedecem. Muito sofrimento terá de curtir o ímpio, mas o que confia no Senhor, a misericórdia o assistirá." (Salmo 32.9,10). Em suma, tão logo Deus tenha começado a estender a mão para nos afligir, há um remédio pelo qual ele pode ser apaziguado, isto é, a nossa docilidade. Seria mais prudente no anteciparmos a Ele, e voltarmos a Ele de nossa própria vontade, embora Ele mantenha a punição; mas quando somos afligidos, sem proveito, isto é um pecado de maldade obstinada. Ele ameaça, portanto, que a menos que se arrependam quando castigados com a palmatória, ele usará a vara para corrigi-los. Quando Ele diz: "Eu vou castigar-vos sete vezes mais," Ele não pretende definir o número exato, mas, de acordo com a frase comum das Escrituras, usa o número sete, para significar amplificação. No versículo seguinte, Ele mostra que há uma justa causa para a Sua ação ser mais severa, porque eles não podem ser subjugados, exceto por meios violentos; pois, embora a palavra גאון, geon, nem sempre é usada num mau sentido, ainda, nesta passagem, significa que eles são desobedientes, inchados de orgulho pelo seu poder; pois, como Moisés diz em outro lugar, Israel "engordou e deu coices" contra Deus, assim como cavalos ficam impacientes por serem superalimentados. Ele, portanto, se refere à sua obstinação, que lhes tornou mais endurecidos, embora Deus lhes tivesse poupado. "Quebrantarei a soberba da sua força". Porque a

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prosperidade gera segurança, na qual os homens teimosos aplicam a sua força contra os flagelos de Deus.

As Más Consequências da Falta de Arrependimento - Comentário de Levítico 26.21-24

Lev 26:21 E, se andardes contrariamente para comigo e não me quiserdes ouvir, trarei sobre vós pragas sete vezes mais, segundo os vossos pecados. Lev 26:22 Porque enviarei para o meio de vós as feras do campo, as quais vos desfilharão, e acabarão com o vosso gado, e vos reduzirão a poucos; e os vossos caminhos se tornarão desertos. Lev 26:23 Se ainda com isto não vos corrigirdes para volverdes a mim, porém andardes contrariamente comigo, Lev 26:24 eu também serei contrário a vós outros e eu mesmo vos ferirei sete vezes mais por causa dos vossos pecados. “E, se andardes contrariamente para comigo”. Tradutores dão várias acepções à palavra קרי, Keri – “contrariamente”. O Caldeu a traduz como dureza, como se fosse o seu propósito lutar contra Deus. Jerônimo a toma como “ex adverso mihi” (em oposição a mim), mas, desde que a palavra significa uma ocorrência acidental, ou contingência, esse sentido, pareceu-me muito mais adequado. "Andar em aventuras" (fortuito) com Deus, portanto, é equivalente a passar por seus juízos, com os

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olhos fechados; e ainda assim atribuir insensatamente as suas adversidades ao destino, e, portanto, não se humilhar sob Sua poderosa mão; porque daí surge obstinação invencível, quando o pecador imagina que tudo o que ele sofre acontece por acaso. Portanto Jeremias protesta contra os judeus em uma repreensão severa, porque eles pensavam que o mal e o bem não procedem da ordenança e do decreto de Deus (Lamentações 3.38) porque daí se origina uma loucura brutal, para que os homens ímpios corram com todo seu poder para a sua própria destruição. Disto decorre então, que, se os homens não dão a devida atenção aos juízos de Deus, senão que se lançam adiante como animais furiosos, Seu encontro com eles será, por assim dizer, fortuito, quando ele lhes afligir indiscriminadamente, da direita para a esquerda, ou do alto para baixo. Isto, portanto, o pecador longamente obtém por sua obstinação insensata, que, dominado por suas aflições múltiplas, ele não vê fim para seus problemas. Enquanto isso, não há dúvida de que Moisés repreende a obstinação férrea do povo, como declara Davi, “para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro, também íntegro.” (Salmo 18.25,26). Ele finalmente aponta a fonte de obstinação, quando o pecador é intoxicado por sua estupidez em desprezar a Deus, enquanto ele afasta de si mesmo, tanto quanto possível, o sentido da Sua ira. Vamos aprender, então, a retirar os nossos pensamentos de especulações vagas para a consideração da mão de Deus em todas as punições que ele inflige; porque daí surgirá o reconhecimento da nossa culpa, o qual pode levar ao arrependimento. Outra coisa que ocorrerá a qual

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Isaías parece ter tomado a partir desta passagem, é que a ira de Deus nunca será afastada; senão que, quando pensarmos que fomos absolvidos, Sua mão ainda estará estendida (Isaías 9.12).

Razão das Derrotas de Israel nas Guerras - Comentário de Levítico 26.25

“Trarei sobre vós a espada vingadora da minha aliança; e, então, quando vos ajuntardes nas vossas cidades, enviarei a peste para o meio de vós, e sereis entregues na mão do inimigo.” (Levítico 26.25)

“E trarei a espada sobre vós”. Não há dúvida de que Ele está se referindo às espadas hostis de todas as nações, pelas quais os israelitas seriam afligidos; e ensina que todo aquele que trouxesse tribulações e perplexidades sobre eles eram apenas os agentes executores de Sua vingança; assim como Ele constantemente declara pelos profetas que Ele era o líder dos inimigos do povo, e que tanto os assírios e caldeus lutaram contra Israel sob o Seu comando. Ele chama a Assíria de o machado, e a vara da Sua ira que Ele empunha em Sua mão (Isaías 10.15) e Nabucodonosor Seu soldado contratado. Ele diz que iria chamar os egípcios com um silvo, e que iria despertar os caldeus, pelo som de Sua trombeta (Isaías 7.20,18). Mas uma vez que este ponto fosse suficientemente conhecido, não haveria ocasião para novas provas. A suma é, que todas estas guerras são provocadas por Seu

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comando, e que os soldados estão armados conforme a Sua vontade, e são fortes em Sua força. Daí segue-se que Ele tem inúmeras forças por cuja mão pode executar Sua vingança quando e como Lhe agrada. Depois, portanto, quando os israelitas foram perseguidos, e até mesmo cruelmente oprimidos por seus inimigos, a verdade de Deus se manifestou em todas aquelas derrotas contínuas; ao passo que, a partir de Sua grande severidade, podemos concluir quão grosseira foi a perversidade da conduta dos israelitas.

O Caráter Gradativo das Ameaças e Maldições da Lei de Moisés - Comentário de Levítico 26.26-28

Lev 26:26 Quando eu vos tirar o sustento do pão, dez mulheres cozerão o vosso pão num só forno e vo-lo entregarão por peso; comereis, porém não vos fartareis. Lev 26:27 Se ainda com isto me não ouvirdes e andardes contrariamente comigo,

Lev 26:28 eu também, com furor, serei contrário a vós outros e vos castigarei sete vezes mais por causa dos vossos pecados.

“E quando eu vos tirar o sustento do pão”. Com estas palavras Deus afirma que, embora Ele não deveria puni-los com esterilidade da terra, ainda assim Ele estava preparado com outros meios para destruí-los pela fome. Vamos ver daqui em diante, de fato, que, quando Deus

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se indignou muito, a terra de certa maneira fechou suas entranhas, de modo a não produzir mantimento; e o céu também se fechou para não fertilizá-la com o orvalho ou chuva. Em uma palavra, todas intempéries e infertilidade do solo são um sinal da maldição de Deus; mas agora ele vai mais longe, porque, embora não haja escassez de alimentos, ainda devem sofrer com a fome, quando Ele tirasse as qualidades nutritivas do seu pão. Esta maldição confirma a instrução que temos visto em outros lugares, que o homem não vive somente de pão, mas por toda ordem de Deus, como se a eficácia contida no pão saísse da Sua boca (Deuteronômio 8.3). E certamente uma coisa inanimada não poderia dar vigor aos nossos sentidos, exceto pela ordem secreta de Deus. Ele emprega uma comparação muito apropriada, chamando o sustento de pão, em que a força do homem é revigorada - "o cajado" como vemos apoiando o homem velho e fraco, quando de outra forma teria cambaleado e caído. Deus diz, então, que está em Seu poder quebrar esse cajado, porque o pão somente encheria seus estômagos sem revigorar a sua força.

Ezequiel emprestou de Moisés esta figura, da qual ele faz uso em vários lugares, (Ezequiel 4.16; 5.16 e 14.13), embora ele não alerte para os dois tipos de punição, como um outro profeta, quando diz "Tendes semeado muito e recolhido pouco; comeis, mas não chega para fartar-vos; bebeis, mas não dá para saciar-vos; vestis-vos, mas ninguém se aquece; e o que recebe salário, recebe-o para pô-lo num saquitel furado.", e ainda, "Esperastes o muito, e eis que veio a ser pouco, e esse pouco, quando

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o trouxestes para casa, eu com um assopro o dissipei;" (Ageu 1.6, 9) porque ele aponta a escassez de alimentos como um dos flagelos de Deus, e a incapacidade para ter proveito da sua abundância; e com isto Miqueias também está de acordo, pois disse: "Tu comerás, mas não ficarás satisfeito", e ele acrescenta, " Semearás; contudo, não segarás; pisarás a azeitona, porém não te ungirás com azeite; pisarás a vindima; no entanto, não lhe beberás o vinho." (Miqueias 6.14,15).

Moisés, porém, a fim de que a maldição possa ser mais aparente, diz que haverá abundância de pão; e também que não haverá falha no trabalho de amassar e assar; porque dez mulheres viriam a um forno juntas, para que pudessem manter o trabalho do preparo de pães em dia. Ele afirma, portanto, que haveria abundância em suas mãos e, no entanto, quando eles estivessem cheios, eles não seriam saciados.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Isto é muito comum e acontece com pessoas que não andam de modo fiel com Deus, pois apesar da muita abundância de bens, todavia suas almas são definhadas por Ele, de modo que não encontram satisfação no que possuem.)

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Ameaças e Maldições da Lei de Moisés - Comentário de Levítico 26.29-33

Lev 26:29 Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas. Lev 26:30 Destruirei os vossos altos, e desfarei as vossas imagens do sol, e lançarei o vosso cadáver sobre o cadáver dos vossos deuses; a minha alma se aborrecerá de vós. Lev 26:31 Reduzirei as vossas cidades a deserto, e assolarei os vossos santuários, e não aspirarei o vosso aroma agradável. Lev 26:32 Assolarei a terra, e se espantarão disso os vossos inimigos que nela morarem. Lev 26:33 Espalhar-vos-ei por entre as nações e desembainharei a espada atrás de vós; a vossa terra será assolada, e as vossas cidades serão desertas. “E comereis a carne de vossos filhos”. Este flagelo é ainda mais grave e terrível (do que os outros) e no entanto, sabemos que os israelitas foram feridos com ele mais de uma vez. Este ato selvagem seria incrível; mas aprendemos disto quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo, quando os homens, por adicionarem crime a crime, não deixam de provocar a Sua ira. Jeremias menciona este caso monstruoso entre outros: “As mãos das mulheres outrora compassivas cozeram seus próprios filhos; estes lhes serviram de alimento na destruição da filha do meu povo.” (Lamentações 4.10) e, portanto, não sem motivo, ele lamenta que isto não tinha sido feito em outro lugar, que as mulheres devessem devorar os filhos

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que elas próprias haviam gerado (Lamentações 2.20). E no último cerco de Jerusalém, que na plenitude dos seus crimes foi, por assim dizer, o ato final da vingança de Deus, as pessoas ímpíasque estavam desesperadas para se manterem vivas, comumente partilharam deste alimento profano. Quando Ele voltou a declarar que Ele "lançaria o cadáver deles sobre o cadáver dos seus ídolos" Ele revela pela própria natureza do castigo que a impiedade deles seria manifesta; porque os apóstatas têm um prazer maravilhoso em suas superstições, até que Deus apareça abertamente como o vingador de Seu culto. Mas que os seus ídolos deveriam ser lançados em uma pilha comum com os ossos dos mortos, foi como se o dedo de Deus indicasse a Sua abominação daquela falsa adoração. E então, porque o seu último recurso estava em sacrifícios, Ele declara que eles não seriam de qualquer proveito para a expiação; porque, na expressão "e não aspirarei o vosso aroma agradável", Ele engloba todos os ritos expiatórios, pela confiança deles nestas coisas em que eram mais obstinados. Depois Ele ameaça com o banimento, bem como com a desolação da terra; por qual punição Ele deixou claro que eles estavam totalmente extraviados, como iremos ver novamente um pouco mais adiante. (Todos estes flagelos que haviam sido profetizados pelo Senhor através de Moisés viriam a se cumprir posteriormente na vida da nação de Israel, inclusive muitos séculos depois destas profecias relativas às ameaças e maldições da Lei, para o caso de

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descumprimento da aliança que Deus havia feito com Israel - nota do tradutor).

A Razão de Ser do Dia do Descanso - Comentário de Levítico 26.34-38

Lev 26:34 Então, a terra folgará nos seus sábados, todos os dias da sua assolação, e vós estareis na terra dos vossos inimigos; nesse tempo, a terra descansará e folgará nos seus sábados. Lev 26:35 Todos os dias da assolação descansará, porque não descansou nos vossos sábados, quando habitáveis nela. Lev 26:36 Quanto aos que de vós ficarem, eu lhes meterei no coração tal ansiedade, nas terras dos seus inimigos, que o ruído de uma folha movida os perseguirá; fugirão como quem foge da espada; e cairão sem ninguém os perseguir. Lev 26:37 Cairão uns sobre os outros como diante da espada, sem ninguém os perseguir; não podereis levantar-vos diante dos vossos inimigos. Lev 26:38 Perecereis entre as nações, e a terra dos vossos inimigos vos consumirá.

“Então a terra folgará nos seus sábados”. Para que a observância do sábado fosse mais honrada, Deus de certa maneira associou a terra nisto juntamente com o homem; para que a terra tivesse descanso a cada sete anos desde a sementeira e colheita, e todo o cultivo. Ele

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assim o designou para estimular os homens mais efetivamente a uma maior reverência para com o sábado. Deus agora amargamente repreende os israelitas porque eles não somente violaram o sábado, como também não permitiram que a terra desfrutasse de seu descanso prescrito; porque este repouso do sétimo ano não impediu a terra de gemer continuamente sob uma carga pesada enquanto alimentava tais habitantes ímpios. Ele diz, portanto, que a terra foi perturbada pela inquietude incessante, e, assim, foi privada de seus sábados legais, uma vez que trazia em seus ombros, por assim dizer, e não sem grande angústia, esses desprezadores ímpios de Deus. Além disso, porque toda a adoração a Deus às vezes é incluída por sinédoque na palavra Sabbath (Jeremias 17.21, Ezequiel 20.12), Ele administra indiretamente uma repreensão severa para o Seu povo, porque Ele não somente é defraudado do seu direito pela impiedade deles, senão que Ele não pode ser devidamente honrado na Terra Santa, a menos que Ele os expulse todos de lá; como se ele tivesse dito, que este era o único meio que sobraria para a afirmação da honra devida ao Seu nome, a saber, que a terra deveria ser limpa de seus habitantes, e reduzida à desolação.

(Deus criou a Terra para que fosse habitada em santidade. Por isso nosso Senhor Jesus Cristo diz que aqueles que são submissos a Deus (mansos) terão a Terra por Sua herança depois da sua segunda vinda. A Terra não foi criada para ser habitado em impiedade e por conseguinte, não para ser um caos, mas para ser o lar dos que amam a justiça, a verdade e paz - nota do tradutor).

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Aprendendo dos Juízos de Deus no Passado - Comentário de Levítico 26.39

“Aqueles que dentre vós ficarem serão consumidos pela sua iniquidade nas terras dos vossos inimigos e pela iniquidade de seus pais com eles serão consumidos.” (Levítico 26.39)

“Aqueles que dentre vós ficarem”. Esta é uma outra forma de vingança, que, embora eles pudessem sobreviver por um tempo, eles ainda deveriam ser gradualmente expulsos; e isso pode ser aplicado tanto àqueles que iriam para o cativeiro, e àqueles que permaneceriam na terra. Ele havia ameaçado antes que eles deveriam ser destruídos ou pela fome ou pela espada; mas agora para que eles não se vangloriassem de que haviam escapado, se não tivessem perecido por uma morte violenta, Ele pronuncia que eles também devem morrer por uma morte lenta; e Ele também declara a maneira dela, ou seja, que Ele vai encher seus corações com tremor, de modo que eles deveriam fugir quando ninguém os perseguisse (como Salomão também diz: em Provérbios 28.1), e o medo que teriam ao ouvir o som de uma caindo. Assim, Ele quer dizer que o ímpio não poderia estar melhor, embora livre de problemas externos, porque eles estariam aflitos internamente por tormentos ocultos; porque, embora a sua audácia possa prosseguir até à loucura, isto ainda não pode ser, senão que a sua má consciência deveria afligi-los continuamente. Seu esquecimento de Deus pode, por vezes brutalizá-los; ou melhor, eles podem buscar sacudir

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todo o sentimento; mas, depois de Deus lhes ter suportado estando eles assim brutalizados, Ele presentemente interrompe a sua letargia, e lhes apressa de modo que eles sejam os seus próprios carrascos. Esta passagem nos mostra que, quanto mais estreitos de coração os ímpios ficam no seu desprezo a Deus, mais fracos se tornam, assim como a tremer por sua própria sombra; e esta condição é muito mais infeliz do que ser cortado de um só golpe.

(O apóstolo Paulo nos ensina que tudo o que sucedeu a Israel no passado quanto aos juízos de Deus sobre o pecado, foi registrado nas páginas do Velho Testamento para nos servir de advertência e exemplo quanto ao fato de que Ele é perfeito Juiz e demanda uma satisfação plena pelo pecado. Bem faremos portanto em buscar a salvação que há em Cristo Jesus, confessarmos os nossos pecados, e nos empenharmos em viver em verdadeira santidade perante Deus e os homens - nota do tradutor).

A Importância da Confissão a Deus - Comentário de Levítico 26.40-42

Lev 26:40 Mas, se confessarem a sua iniquidade e a iniquidade de seus pais, na infidelidade que cometeram contra mim, como também confessarem que andaram contrariamente para comigo,

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Lev 26:41 pelo que também fui contrário a eles e os fiz entrar na terra dos seus inimigos; se o seu coração incircunciso se humilhar, e tomarem eles por bem o castigo da sua iniquidade,

Lev 26:42 então, me lembrarei da minha aliança com Jacó, e também da minha aliança com Isaque, e também da minha aliança com Abraão, e da terra me lembrarei. “Mas, se confessarem a sua iniquidade”. Embora Moisés estivesse discorrendo sobre punições muito severas e cruéis, ainda que ele declara que, mesmo em meio a esta terrível severidade Deus seria aplacado se o povo se arrependesse, apesar de que eles poderiam ter se despojado de toda a esperança de perdão por seus longos e contínuos pecados. Porque ele não aborda os pecadores em geral, senão aqueles que pela sua obstinação e impetuosidade brutal vêm cada vez mais perto para a vingança de Deus; e mesmo estes são incentivados por ele a uma boa esperança, se eles se converterem de coração. Tenhamos então certeza, que a misericórdia de Deus é oferecida para o pior dos homens, que esteve mergulhado por sua culpa nas profundezas do desespero, como se tivesse chegado até o próprio inferno. Daí, também, segue-se que todas as punições são como esporões para despertar o inerte e hesitante em arrependimento, enquanto as dolorosas pragas são destinadas a quebrar seus corações endurecidos. No entanto, ao mesmo tempo, deve-se observar que este favor é concedido por privilégio especial para a Igreja de Deus; porque Moisés atribui logo depois expressamente

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a sua causa, isto é, que Deus se lembrará do pacto. Daí é evidente que Deus, por consideração à sua adoção gratuita, será gracioso para com o indigno a quem Ele tem elegido; de onde também se conclui que isto vem a ocorrer, que, desde que não feche a porta da esperança contra nós mesmos, Deus ainda virá voluntariamente e se adiantará para nos reconciliar com Ele, se tão somente lançarmos mão do pacto do qual caímos por nossa própria culpa, como os marinheiros de um navio naufragado usam um barco salva vidas para levá-los em segurança ao porto. Mas será bom para nós examinarmos sinceramente os frutos do arrependimento que Moisés aqui enumera. Em primeiro lugar está a confissão, não como é exigida sob o papado, que os homens ímpios devem se aliviar ao ouvido de um sacerdote (sacrifício), como se secretamente despejassem seus pecados, pelos quais se reconhecem culpados diante de Deus. Esta confissão contrasta tanto com as queixas ruidosas, quanto com os subterfúgios e evasivas dos ímpios. Um exemplo memorável disto ocorre no caso de Davi, que, quando esmagado pela repreensão do profeta Natã, confessa que tinha pecado contra Deus (2 Samuel 12.13). Pela palavra "iniquidade de seus pais" Ele amplia a grandeza de seus pecados, porque por um longo espaço de tempo eles não tinham deixado de acrescentar pecado a pecado, como se os pais tivessem conspirado com os seus filhos, e os filhos com seus próprios descendentes; e, uma vez que Deus é um vingador até a terceira e quarta geração, não é sem razão que à posteridade é comandado orar humildemente para que Deus perdoe a culpa contraída

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há muito tempo. Por isso, também é claramente visto quão pouco a imitação de seus pais servirá para atenuar as faltas dos filhos, uma vez que percebemos que os torna menos desculpáveis, longe está Deus de admitir este fundamento tolo. É ainda acrescentado que sua confissão deveria corresponder à grandeza de suas transgressões, e que não deveria ser banal e superficial; pois, embora os hipócritas, quando convencidos, não negam que eles têm pecado, ainda que confessem para atenuar a sua culpa, como se fossem apenas culpados de ofensas veniais. Deus, portanto, teria as circunstâncias de seus pecados levadas em consideração, e isso também Ele prescreve em relação à sua obstinação, para que não imaginem que as punições não foram merecidamente redobradas, pois eles haviam caminhado contrariamente com Deus.

Finalmente, a fim de provar a realidade de sua conversão, toda dissimulação é excluída pela humilhação de seus corações; pois isto é como se Deus fosse rejeitar suas orações, até que em humildade sincera e sentida no coração procurassem o perdão. Esta humilhação é contrastada com segurança, bem como com contumácia e orgulho; e também é comparada com a circuncisão, onde o coração é chamado circuncidado antes de ser subjugado e reduzido à obediência. Pois, enquanto a circuncisão era uma marca de distinção entre o povo de Deus e as nações pagãs, é necessário que tenha sido também um sinal de regeneração. Mas como os judeus negligenciaram a verdade, e tola e impropriamente glorificavam apenas o símbolo exterior, Moisés,

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reprovando a incircuncisão de seus corações, refuta que estivessem vazios de orgulho. Assim, como Paulo testifica, a menos que a lei seja cumprida, a circuncisão literal é inútil, e é feita em incircuncisão (Romanos 2.25). Então Moisés acusa os israelitas de infidelidade, porque eles professam ser o povo santo de Deus, ao mesmo tempo que amam a imundícia e a impureza no seu coração. Os profetas também muitas vezes os acusa de serem incircuncisos de coração ou de ouvidos; e nisto Estevão os seguiu (Jeremias 6.10; Ezequiel 44.7; Atos 7.51). Outros extraem um significado muito diferente das palavras que traduzimos, "deixá-los expiar (propitient) a sua iniquidade." – “tomarem eles por bem o castigo da sua iniquidade”. O substantivo usado é עון, gnevon, o que significa tanto iniquidade e punição; e o verbo רצה, ratzah, que é expiar, ou estimar de modo grato, ou apaziguar. Alguns, portanto, explicam isto como sendo, levarão o seu castigo pacientemente, e o tomarão por agradável; mas parece-me que Moisés se conecta com o arrependimento do desejo de satisfazer a Deus, sem o qual os homens nunca estão realmente insatisfeitos consigo mesmos, ou renunciar a seus pecados; e sua alusão é aos sacrifícios e abluções legais, pelos quais se reconciliavam com Deus. A suma é que, quando eles se esforçarem seriamente para voltar ao favor de Deus, Ele será propício em relação a eles por causa de sua aliança.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Ao estarmos chegando à conclusão do comentário de Calvino sobre o texto de

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Levítico 26.14-46, consideramos oportuno reafirmar o que ele diz acerca do favor que recebemos da parte de Deus, exclusivamente por causa da aliança que fez conosco através da morte e ressurreição de Jesus Cristo, o qual se ofereceu em nosso lugar para que pudéssemos ser reconciliados com Deus e adotados como seus filhos. Isto porque é evidente que somos pecadores por natureza, e nos acharíamos numa situação miserável e sem qualquer esperança, caso Deus não fizesse uma aliança conosco baseada na sua graça e misericórdia, pelas quais nossos pecados e transgressões são perdoados e esquecidos, ou seja, não são levados em conta para condenação, caso nos encontremos em Cristo. Todavia, cabe ressaltar que temos aprendido pela santa e perfeita Lei de Deus quanto ao modo como Ele vê e abomina qualquer pecado, de forma que somos agradáveis a Ele somente quando confessamos sinceramente as nossas faltas e procuramos andar de modo digno na Sua presença por buscarmos a aplicação de Sua vontade e Palavra em nossas vidas pela operação do Espírito Santo em nossas mentes e corações. Assim, a aliança da graça manifestará os seus benefícios de paz, reconciliação e comunhão com Deus, a todos aqueles que buscarem andar de modo santo e ordenado na presença do Senhor, e caso contrário, seremos corrigidos por Ele, não mais com base nos castigos de destruição previstos na Lei de Moisés, conforme vemos nas maldições de Levítico 26.14-39, porque estamos nesta nova dispensação inaugurada há cerca de 2.000 anos atrás, debaixo da graça de Cristo, mas certamente,

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seremos corrigidos com a severidade que for necessária para nos curar da prática do mal.)

A Terra é Herdada pelos que Obedecem a Deus - Comentário de Levítico 26.43-46

Lev 26:43 Mas a terra na sua assolação, deixada por eles, folgará nos seus sábados; e tomarão eles por bem o castigo da sua iniquidade, visto que rejeitaram os meus juízos e a sua alma se aborreceu dos meus estatutos. Lev 26:44 Mesmo assim, estando eles na terra dos seus inimigos, não os rejeitarei, nem me aborrecerei deles, para consumi-los e invalidar a minha aliança com eles, porque eu sou o Senhor, seu Deus. Lev 26:45 Antes, por amor deles, me lembrarei da aliança com os seus antepassados, que tirei da terra do Egito à vista das nações, para lhes ser por Deus. Eu sou o Senhor. Lev 26:46 São estes os estatutos, juízos e leis que deu o Senhor entre si e os filhos de Israel, no monte Sinai, pela mão de Moisés.

Ele mais uma vez se refere à punição de banimento, o que equivale a serem deserdados; e, ao mesmo tempo, repete que a adoração a Deus não poderia ser restaurada na Terra Santa, até que ele lhes tivesse purificado das suas corrupções; contudo, imediatamente depois ele modera esta severidade, na medida em que, quando parecia lidar com eles mais rigorosamente, ele ainda não lhes havia totalmente rejeitado. Os verbos que Ele usa

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estão no passado, apesar de se referirem ao futuro; tanto quanto para dizer, que "eles devem sentir que não são rejeitados." Ele, portanto, estende a mão para eles, por assim dizer, na sua miserável condição, para elevá-los à confiança, e ordena-lhes, embora afligidos com uma tribulação extrema, no entanto, a colocarem a sua confiança em seu Pacto. Aqui Sua bondade maravilhosa e inestimável é exibida, em manter como Seus aqueles que estão alienados dele: assim, se diz em Oseias 2.23: "Tu és o meu povo! Ele dirá: Tu és o meu Deus!" Quando Ele promete que vai se lembrar do seu Pacto "por causa deles", Ele não quer dizer pelo seu mérito, ou porque adquiriram tal favor para si; mas para o seu benefício ou para a sua salvação, em que a lembrança do Pacto será estendida a eles. Sua libertação (do Egito) também é adicionada na confirmação da aliança, como se Ele tivesse dito que estaria mais disposto a perdoá-los, não somente porque Ele sempre persevera em sua fidelidade às suas promessas, mas porque iria manter sua bondade para com eles, e conduzi-los até o fim. Assim, vemos que Ele atribui a causa da Sua misericórdia apenas a Si mesmo.

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Alegria Espiritual Constante - Comentário de Filipenses 4.4

“Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos.” (Filipenses 4.4)

Regozijai-vos no Senhor é uma exortação adequada; pois, como a condição dos santos era extremamente turbulenta e perigos ameaçavam de todos os lados, era possível que eles pudessem ficar desanimados, vencidos pela tristeza ou impaciência. Daí ele lhes prescreve isto, para que, em meio a circunstâncias de hostilidade e perturbação, nunca deixassem de se alegrar no Senhor, assim como seguramente esses consolos espirituais, por meio dos quais o Senhor nos refrigera e alegra, deveriam então mais do que tudo mostrar sua eficácia quando o mundo inteiro nos tenta ao desespero. Vamos, no entanto, em relação às circunstâncias da época, considerar a eficácia desta palavra proferida pela boca de Paulo, que poderia ter tido ocasião especial de tristeza. Porque, se eles estão consternados com perseguições ou prisões ou o exílio ou morte, aqui está o apóstolo colocando a si mesmo como exemplo, que, em meio a prisões, mesmo no calor da perseguição e, em suma, em meio a temores de morte, não apenas se alegrava, mas ainda desperta outros à alegria. A súmula então, é esta - aconteça o que acontecer, os crentes, tendo o Senhor em pé ao seu lado, têm um fundamento amplamente suficiente de alegria.

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A repetição da exortação serve para dar mais força a ela: Que esta seja a sua força e estabilidade, alegrar-se no Senhor, e que, também, não por um momento apenas, mas para que a sua alegria nele possa ser perpetuada. Porque inquestionavelmente difere da alegria do mundo a este respeito - que sabemos por experiência que a alegria do mundo é enganadora, frágil, e falha, e Cristo mesmo pronuncia isto como sendo um anátema (Lucas 6.25). Por isso, que somente a alegria em Deus que é constante e que é a única que nunca é tirada de nós.

Espírito de Moderação - Comentário de Filipenses 4.5

“Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor.” (Filipenses 4.5)

“Sua moderação”. Isto pode ser explicado de duas maneiras. Podemos entender como se Paulo lhes estivesse propondo que seria melhor renunciarem a seus direitos, do que reclamá-los com aspereza e severidade. "Deixe que todos os que têm que lidar com você tenham a experiência de sua equidade e humanidade." Desta forma, “ser conhecida” significa “experimentar”. Ou podemos entendê-lo como lhes exortando a perseverarem em todas as coisas com equanimidade. Eu prefiro este último significado; porque é um termo que é usado pelos próprios gregos para denotar moderação de espírito - quando não somos facilmente movidos por injúrias que recebemos, quando

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não ficamos facilmente irritados com a adversidade, mas mantemos a equanimidade de temperamento. De acordo com isto, Cícero faz uso da seguinte expressão: "Minha mente está tranquila, que toma tudo pela parte boa." Tal equanimidade - que é como se fosse a mãe da paciência - ele requer aqui da parte dos Filipenses, e, de fato, como se manifesta a todos, segundo a ocasião exige, por produzir seus efeitos apropriados. O termo modéstia não parece apropriado aqui, porque Paulo não está nesta passagem lhes advertindo contra a insolência arrogante, mas os direciona a se conduzirem pacificamente em tudo, e a exercerem controle sobre si, mesmo na resistência a injúrias ou inconvenientes.

“O Senhor está perto”. Aqui temos uma antecipação, pela qual ele elimina uma objeção que poderia ser apresentada. Porque o senso carnal se levanta em oposição à afirmação anterior. Porque, como a ira dos ímpios é mais inflamada em proporção à nossa brandura, e quanto mais eles nos veem preparados para perseverar, são mais encorajados a infligir injúrias, somos em meio às dificuldades induzidos a possuir as nossas almas com paciência (Lucas 21.19). Daí esses provérbios: "Devemos uivar quando entre lobos". "Aqueles que agem como ovelhas serão rapidamente devorados por lobos". Daí se pode concluir erroneamente, que a ira dos ímpios deve ser reprimida pela violência correspondente, para que eles não possam nos insultar impunemente. A tais considerações Paulo aqui opõe a confiança na Divina Providência.

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Ele replica, eu digo, que o Senhor está perto, cujo poder pode superar a sua audácia, e cuja bondade pode conquistar sua malícia. Ele promete que ele vai nos ajudar, desde que obedeçamos o seu mandamento. Agora, quem não preferiria ser protegido somente pela mão de Deus, que tem todos os recursos do mundo sob seu comando?

Aqui temos um sentimento mais belo, a partir do qual podemos aprender, em primeiro lugar, que a ignorância da providência de Deus é a causa de toda impaciência, e que esta é a razão pela qual somos tão rapidamente, e em assuntos triviais, lançados na confusão, e, muitas vezes, também, nos tornamos desanimado porque nós não reconhecemos o fato de que o Senhor cuida de nós. Por outro lado, aprendemos que este é o único remédio para tranquilizar nossas mentes - quando repousam sem reservas em seu cuidado providencial, como sabendo que não estamos expostos ou à imprudência de fortuna, ou ao capricho dos ímpios, senão que estamos sob a regulação do cuidado paternal de Deus. Em suma, o homem que está na posse desta verdade, que Deus está presente com ele, tem o que pode lhe dar descanso com segurança. Há, porém, duas maneiras pelas quais é dito que o Senhor está perto - seja porque seu julgamento está próximo, ou porque ele está preparado para dar uma ajuda para o seu povo, sentido este que é usado aqui; e também no Salmo 145.18: “O Senhor está perto de todos os que o invocam.” Assim, o significado é - "Miserável seria a condição do piedoso, se o Senhor estivesse longe dele". Mas, como

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ele os recebeu sob sua proteção e tutela, e os defende por sua mão, que está presente em toda parte, deixe-os descansar sobre esta consideração, que não podem ser intimidados pela ira dos ímpios. Isto é bem conhecido, e questão de ocorrência comum, que o termo solicitude (cuidado) é empregado para indicar a ansiedade que procede da desconfiança do poder ou ajuda divinos.

Como Vencer a Ansiedade - Comentário de Filipenses 4.6

“Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças.” (Filipenses 4.6)

“De coisa alguma”. Isto está no número singular conforme usado por Paulo, mas é o gênero neutro; a expressão, portanto, é equivalente a negotio omni (em cada matéria) pela (oração) e (súplica) são substantivos femininos. Com estas palavras, ele exorta os filipenses, como Davi faz a todos os piedosos no Salmo 55.22, e Pedro também em 1 Pedro 5.7, para lançar todos os seus cuidados sobre o Senhor. Porque não somos feitos de ferro, de modo a não sermos abalados pelas tentações. Mas este é o nosso consolo - depositar, ou (para falar com maior propriedade) lançar nossos fardos sobre o seio de Deus, lançar tudo o que nos assedia. A confiança, é verdade, traz tranquilidade às nossas mentes, mas isto é

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o caso somente quando nos exercitamos em orações. Sempre que, por isso, se somos assaltados por qualquer tentação, devemos nos recolher imediatamente à oração, como a um asilo sagrado.

O termo “petição” é empregado aqui para denotar desejos. Ele quer que os tornemos conhecidos diante de Deus pela oração e súplica, como se os crentes derramassem seu coração diante de Deus, quando eles consagram tudo o que são e o que têm, a ele. Aqueles, na verdade, que olham para cá e para lá os confortos vãos do mundo, podem parecer estar em algum grau aliviados; mas há somente um refúgio seguro – lançar-se sobre o Senhor. “Com ação de graças”. Como muitas vezes oramos a Deus de modo errado, cheios de queixas ou de murmúrios, como se tivéssemos fundamento para acusá-lo, enquanto outros não podem tolerar demoras, se ele não satisfizer imediatamente seus desejos, Paulo nesta conta conjuga ação de graças com orações. É como se ele tivesse dito, que as coisas que são necessárias para nós devem ser desejadas por nós para serem recebidas do Senhor de tal maneira, que nós, no entanto, submetemos nossos afetos à sua boa vontade, e damos graças ao apresentar petições. E, sem dúvida, a gratidão terá esse efeito sobre nós - que a vontade de Deus será a grande essência de nossos desejos.

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O Caminho para Alcançar a Paz Divina - Comentário de Filipenses 4.7

“E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus.” (Filipenses 4.7)

“E a paz de Deus”. Alguns, mudando o tempo futuro para o modo optativo, convertem esta declaração em uma oração, mas isto não possui um fundamento adequado. Pois é uma promessa na qual ele aponta a vantagem de uma firme confiança em Deus, e invocação dele. "Se vocês fizerem isso", diz ele, "a paz de Deus vai manter suas mentes e corações." A Escritura está acostumada a dividir a alma do homem, quanto às suas fragilidades, em duas partes - a mente e o coração. A mente significa o entendimento, enquanto o coração denota todas as disposições ou inclinações. Estes dois termos, portanto, incluem, nesse sentido, a alma inteira - "A paz de Deus irá protegê-lo, de modo a impedi-lo de se afastar de Deus por pensamentos ou desejos maus". É de um bom e firme fundamento que ele chama a paz de Deus, na medida em que não depende do aspecto atual das coisas, e não se dobra às várias mudanças do mundo, mas se baseia na firme e imutável palavra de Deus. É com bons motivos, também, que ele fala dela como superando todo o entendimento ou percepção, pois nada é mais estranho para o entendimento humano, do que experimentar, no entanto, na profundidade do desespero, um sentimento de esperança, na profundidade de pobreza ver opulência, e na

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profundidade de fraqueza não ceder, e, enfim, prometer a nós mesmos que nada faltará para nós quando ficarmos destituídos de todas as coisas; e tudo isso na graça de Deus somente, porque isto não é conhecido de outra forma do que através da palavra e da operação interior do Espírito.

Ocupando o Pensamento com o Que é Aprovado por Deus - Comentário de Filipenses 4.8

“Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento.” (Filipenses 4.8)

“Finalmente”. O que se segue consiste em exortações gerais que dizem respeito a toda a vida. Em primeiro lugar, ele recomenda a verdade, que nada mais é do que a integridade de uma boa consciência, com os seus frutos; em segundo lugar, o que é respeitável, ou santidade, porque τὸ σεμνόν denota uma excelência que consiste no fato de andarmos de modo digno da nossa vocação (Efésios 4.1) mantendo uma distância de tudo o que é profano: em terceiro lugar, a justiça, que tem a ver com a relação mútua da humanidade - que não injuriemos ou defraudemos a qualquer um; e, em quarto lugar, a pureza, que denota a castidade em todas as esferas da vida. Paulo, no entanto, não reconhece todas

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essas coisas como suficientes, se não fizermos, ao mesmo tempo, esforço para nos tornarmos agradáveis a todos, na medida em que podemos fazê-lo legalmente no Senhor, e ter em conta também o nosso bom nome. Pois é dessa forma que eu entendo as palavras - “Se há algum louvor”, ou seja, algo louvável, pois em meio a tal corrupção dos costumes há tão grande perversidade nos julgamentos dos homens que o elogio é muitas vezes dado ao que é censurável, e não é permitido para os cristãos sequer desejar o verdadeiro louvor entre os homens, na medida em que eles são em outro lugar proibidos a se gloriarem, a não ser somente em Deus (1 Coríntios 1.31). Paulo, portanto, não lhes recomenda tentarem ganhar aplausos ou elogios por ações virtuosas, nem mesmo a regularem suas vidas de acordo com os julgamentos das pessoas, mas simplesmente significa que eles deveriam se dedicar à realização de boas obras, as quais merecem elogios, que os ímpios, e aqueles que são inimigos do evangelho, enquanto ridicularizam os cristãos e lançam opróbrio sobre eles, sejam, no entanto, constrangidos a elogiar sua conduta.

A Verdade Divina é Para Ser Vivida - Comentário de Filipenses 4.9

“O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus da paz será convosco.” (Filipenses 4.9)

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“O que tendes aprendido, e recebido, e ouvido”. Por esse acúmulo de termos ele dá a entender, que ele era assíduo em inculcar essas coisas. "Esta foi a minha doutrina - a minha instrução - meu discurso no meio de vós". Os hipócritas, por outro lado, em nada insistem, senão em cerimônias. Agora, era uma coisa desonrosa abandonar a instrução santa, que tinham totalmente absorvido, e com a qual tinham sido minuciosamente imbuídos. “Vistes em mim”. Agora, a principal coisa num orador público deveria ser, que ele possa falar, não com a boca apenas, mas por sua vida, e adquirir autoridade para sua doutrina pela retidão de vida. Paulo, portanto, adquire autoridade para sua exortação por este motivo, que ele tinha, por sua vida nada menos do que por sua boca, sido um líder e mestre de virtudes.

“E o Deus da paz”. Ele tinha falado da paz de Deus; e agora, mais particularmente, confirma o que havia dito, com a promessa de que o próprio Deus, o autor da paz, estará com eles. Porque a presença de Deus nos traz todo tipo de bênção: como se ele tivesse dito, que eles sentiriam que Deus estava presente com eles para fazer todas as coisas saírem bem e prosperamente, desde que aplicassem a si mesmos as ações piedosas e santas.

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Cristo é Ganho e o Resto é Perda - Comentário de Filipenses 3.8

“Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo.” (Filipenses 3.8) “Sim, deveras considero tudo como perda”. Ele quer dizer, que ele continua a ser da mesma opinião, porque muitas vezes acontece, que, transportados com prazer em coisas novas, vamos esquecer tudo o mais, e depois a gente se arrepende. Daí Paulo, tendo dito que ele renunciou a todos os impedimentos, para que pudesse ganhar a Cristo, agora acrescenta, que ele continua a ser da mesma mente.

“Por causa da excelência do conhecimento”. Ele exalta o evangelho em oposição a todas as noções que tendem a nos seduzir. Porque há muitas coisas que têm uma aparência de excelência, mas o conhecimento de Cristo supera a um tal grau tudo o mais por sua sublimidade, que, em comparação com ele, não há nada que não seja desprezível. Vamos, portanto, aprender com isso, qual o valor que devemos dar ao conhecimento de Cristo. Quanto a chamá-lo de “meu Senhor”, ele faz isso para expressar a intensidade de seu sentimento. “Por quem sofri a perda de todas as coisas”. Ele expressa mais do que ele havia feito anteriormente; pelo menos ele se expressa com maior clareza. É uma comparação

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tirada de marinheiros, que, quando instigados por perigo de naufrágio, jogam tudo ao mar, para que, ficando o navio menos pesado, eles possam chegar ao porto em segurança. Paulo, então, estava preparado para perder tudo o que tinha, ao invés de ser privado de Cristo. Mas pergunta-se, se isto é necessário para nós, renunciar a riquezas e honras, e nobreza de descendência, e até mesmo à justiça externa, para que nos tornemos participantes de Cristo (Hebreus 3.14), porque todas estas coisas são dons de Deus, os quais, em si mesmos, não devem ser desprezados? Respondo que o Apóstolo não fala aqui tanto das coisas em si mesmas, tanto quanto da qualidade das mesmas. Isto é de fato verdade, que o reino dos céus é semelhante a uma pérola preciosa, para a compra da qual ninguém deve hesitar em vender tudo o que tem (Mateus 13.46). Há, porém, uma diferença entre a substância das coisas e a qualidade. Paulo não achou ser necessário repudiar a conexão com sua própria tribo e com a raça de Abraão, e tornar-se um estrangeiro, para que pudesse se tornar um cristão, mas renunciar à dependência de sua descendência. Não convinha, que sendo casto ele devesse se tornar impuro; que sendo sóbrio, devesse se tornar imoderado; e que sendo honrado e respeitado, se tornasse dissoluto; senão que ele deveria se despojar de uma falsa estimativa de sua própria justiça, e tratá-la com desprezo. Nós, também, ao tratar da justiça da fé, não discutimos a substância das obras, mas contra a qualidade que os sofistas lhe atribuem, na medida em que afirmam que os homens são justificados por elas. Paulo, portanto, se despojou - não das obras, mas daquela confiança

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equivocada em obras, com a qual ele havia sido inchado. Quanto a riqueza e honras, quando temos nos despojado do apego a elas, estaremos preparados, também, a renunciar às próprias coisas, sempre que o Senhor exigir isso de nós, e assim deve ser. Não é expressamente necessário que você seja um homem pobre, a fim de que possa ser cristão; mas se for do agrado do Senhor que deve ser assim, você deve estar preparado para suportar a pobreza. Em suma, não é lícito que os cristãos nada tenham além de Cristo. Eu considero como separado de Cristo tudo o que é um empecilho no caminho de Cristo ser o nosso único motivo de nos gloriarmos, e de ter uma completa influência sobre nós.

“E eu considero como refugo”. Aqui ele não apenas por palavras, mas também em realidade, amplia enormemente o que havia antes declarado. Porque aqueles que lançam suas mercadorias e outras coisas ao mar, para que possam escapar em segurança, não o fazem, portanto, por desprezarem as riquezas, mas agem como pessoas preparadas, porque é melhor de viver na miséria e necessidade, do que ser afogado junto com suas riquezas . Eles se separam delas, de fato, mas é com pesar e com um suspiro; e quando eles escapam, eles lamentam a perda delas. Paulo, no entanto, declara, por outro lado, que ele tinha não apenas abandonado tudo o que anteriormente considerava precioso, mas que lhe era como esterco, ofensivo para ele, ou perderam a sua estima como coisas que são jogadas fora com desprezo. Crisóstomo usa a palavra - palha. Os gramáticos, porém, são de opinião, que σκύβαλον é empregado como se

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fosse κυσίβαλον - o que é jogado para cães. E, certamente, há uma boa razão por que tudo o que se opõe a Cristo deva ser ofensivo para nós, na medida em que é uma abominação, aos olhos de Deus (Lucas 16.15). Há uma boa razão por que deve ser ofensivo para nós também, em razão de ser uma imaginação sem fundamento. “Para que eu possa ganhar a Cristo”. Por esta expressão dá a entender que não podemos ganhar a Cristo, exceto por perder tudo o que temos. Porque ele nos queria ricos pela sua graça somente: ele sozinho teria que ser nossa completa bem-aventurança. Agora, de que maneira devemos sofrer a perda de todas as coisas, já foi dito - de tal maneira que nada vai nos desviar da confiança em Cristo. Mas se Paulo, com tal inocência e integridade de vida, não hesitou em contar sua própria justiça como perda e esterco, o que significam aqueles fariseus dos dias de hoje, que, embora cobertos com todos os tipos de maldade, no entanto, não sentem vergonha em exaltar seus próprios méritos em oposição a Cristo?

Comentário de Filipenses 3.9

“e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé;” (Filipenses 3.9) “E ser achado nele”. O verbo está na voz passiva, e,

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portanto, outros o traduzem como “eu possa ser encontrado”. Eles passam sobre o contexto, embora, de uma maneira muito indiferente, como se ele não tivesse nenhuma força peculiar. Se você lê-lo na voz passiva, uma antítese será entendida – que Paulo estava perdido antes de ser encontrado em Cristo, como um rico comerciante é como um perdido, enquanto ele tem seu navio carregado de riquezas; mas quando elas foram lançadas ao mar, como ele é encontrado? O que ele quer dizer aqui nos conduz admiravelmente ao ponto - "Eu estaria perdido, se eu não tivesse sido perdido." Mas como o verbo εὐρίσκομαι, enquanto ele tem uma terminação passiva, tem uma significação ativa, e os meios - para recuperar aquilo que você voluntariamente renunciou (como Budaeus mostra por vários exemplos). Eu não hesito em ser diferente da opinião dos outros. Pois, desta forma, o significado será mais completo, e a doutrina mais ampla - que Paulo renunciou a tudo o que tinha, para que ele pudesse recuperá-lo em Cristo; o que corresponde melhor à palavra ganho, pois isso significa que isto não era um ganho trivial ou comum, na medida em que Cristo contém tudo em si mesmo. E, sem dúvida, não perdemos nada quando chegamos a Cristo nus e vazios de tudo, porque aquelas coisas que nós previamente imaginávamos, por motivos falsos, que possuíamos, começamos então realmente a adquirir. Ele, portanto, mostra mais plenamente, quão grandes são as riquezas de Cristo, porque obtemos e encontramos todas as coisas nele.

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“Não tendo justiça própria”. Aqui temos uma passagem notável, se alguém está desejoso de ter uma descrição específica da justiça da fé, e compreender a sua verdadeira natureza. Porque Paulo faz aqui uma comparação entre dois tipos de justiça. A que ele fala de como pertencendo ao homem, enquanto ele a chama, ao mesmo tempo, de a justiça da Lei; e a outra, que ele nos diz, ser de Deus, que é obtida por meio da fé, e repousa sobre a fé em Cristo. Ele as representa como tão diretamente opostas uma à outra, que não podem ficar juntas. Portanto, há duas coisas que devem ser observadas aqui. Em primeiro lugar, que a justiça da Lei deve ser abandonada e renunciada, que você pode ser justo por meio da fé; e em segundo lugar, que a justiça da fé procede da parte de Deus, e não pertence ao indivíduo. Quanto a esses dois tipos de justiça é que temos nos dias de hoje uma grande controvérsia com os papistas; porque, por um lado, eles não admitem que a justiça da fé é totalmente de Deus, mas atribuem isso em parte ao homem; e, por outro lado, eles as misturam em conjunto, como se uma não destruísse a outra. Por isso, devemos examinar cuidadosamente as diversas palavras das quais Paulo fez uso, pois não há uma só que não seja muito enfática. Ele diz que os crentes não têm justiça própria. Agora, não se pode negar que, se houvesse alguma justiça de obras, poderia ser dito com propriedade que seria nossa. Por isso, ele não deixa qualquer espaço que seja para a justiça de obras. Por que ele a chama de justiça da lei, ele mostra em Romanos 10.5; porque esta é a sentença da lei, aquele que faz estas coisas viverá por elas. A lei, portanto,

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pronuncia o homem justo por meio de obras. Também não há qualquer fundamento para o sofisma de papistas, que tudo isso deve ser restrito às cerimônias. Porque em primeiro lugar, é uma frivolidade desprezível afirmar que Paulo era justo apenas através de cerimônias; e em segundo lugar, ele traça desta forma um contraste entre esses dois tipos de justiça - uma do homem, e outra, de Deus. Ele sugere, portanto, que uma é a recompensa de obras, enquanto a outra é um dom gratuito de Deus. Ele, assim, de um modo geral, coloca o mérito do homem em oposição à graça de Cristo; porque enquanto a lei traz obras, a fé apresenta o homem diante de Deus como nu, para que possa ser vestido com a justiça de Cristo. Quando, portanto, ele declara que a justiça da fé é de Deus, não é simplesmente porque a fé é um dom de Deus, mas porque Deus nos justifica por sua bondade, ou porque recebemos pela fé a justiça que ele nos tem conferido.

Comentário de Filipenses 3.10,11

“para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte;

para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos.” (Filipenses 3.10,11)

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“Para que eu possa conhecê-lo”. Ele ressalta a eficácia e a natureza da fé - que é o conhecimento de Cristo, e que, também, não de forma despida ou indistinta, senão de tal forma que o poder da sua ressurreição é sentido. Ele se refere à ressurreição com o sentido de conclusão da redenção, assim que isto engloba ao mesmo tempo a ideia da morte. Mas como não é o suficiente conhecer a Cristo como crucificado e ressuscitado dentre os mortos, a menos que você experimente, também, o fruto disto, ele fala expressamente de eficácia. Cristo, portanto, é justamente conhecido, quando sentimos quão poderosa é a sua morte e ressurreição, e como são eficazes em nós. Agora todas as coisas são fornecidas a nós - expiação e destruição do pecado, a liberdade da condenação, a satisfação da justiça de Deus, a vitória sobre a morte, a realização da justiça e da esperança de uma bendita imortalidade. “E a comunhão dos seus sofrimentos”. Tendo falado da justiça que é livremente conferida, que foi adquirida por nós através da ressurreição de Cristo, e é obtida por nós através da fé, ele passa a tratar dos exercícios dos piedosos, e para que não parecesse como se ele tivesse apresentado uma fé inativa, que não produz efeitos na vida. Ele também sugere, indiretamente, que estes são os exercícios em que o Senhor deseja que seu povo se empenhe; enquanto os falsos apóstolos apresentavam os elementos inúteis de cerimônias. Que cada um, portanto, que se tornou, pela fé, participante de todos os benefícios de Cristo, reconheça que uma condição deve ser apresentada a ele - que toda a sua vida seja conformada com a sua morte.

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Há, no entanto, uma dupla participação e comunhão na morte de Cristo. A primeira é interior - que a Escritura costuma chamar de mortificação da carne, ou a crucificação do velho homem, do qual Paulo trata no sexto capítulo de Romanos; a outra é exterior - que é chamada de mortificação do homem exterior. É a perseverança da Cruz, da qual ele trata, no oitavo capítulo da mesma epístola, e aqui também, se eu não me engano. Porque depois de introduzir junto com esta o poder da sua ressurreição, Cristo crucificado é colocado diante de nós, para que possamos segui-lo através de tribulações e angústias; e, portanto, é feita expressamente menção à ressurreição dos mortos, para que saibamos que temos de morrer antes de viver. Este é um assunto contínuo de meditação para os crentes, enquanto estiverem peregrinando neste mundo. Isso, no entanto, é uma consolação especial, que em todas as nossas misérias somos participantes da Cruz de Cristo, se nós somos seus membros; assim que, através de aflições o caminho está aberto para nós à bem-aventurança eterna, como lemos em outros lugares, “Se morrermos com ele, também viveremos com ele; se sofremos com Ele, também reinaremos com ele.” (2 Timóteo 2.11).

Todos nós devemos, portanto, estar preparados para isso - de que toda a nossa vida deve representar nada mais do que a imagem da morte, até produzir a própria morte, como a vida de Cristo não é nada mais do que um prelúdio da morte. Nós desfrutamos, no entanto, nesse meio tempo, desta consolação - que o fim é a eterna bem-

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aventurança. Porque a morte de Cristo está ligada com a ressurreição. Por isso Paulo diz que ele está conformado com sua morte, para que ele possa alcançar a glória da ressurreição. A frase, “se, por qualquer meio”, não indica dúvida, mas expressa a dificuldade, com vista a estimular o nosso esforço sincero, na medida em que devemos lutar contra tantos e tão sérios impedimentos.

Conquistando Mais e Mais de Cristo - Comentário de Filipenses 3.12

“Não que eu o tenha já recebido ou tenha já obtido a perfeição; mas prossigo para conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus.” (Filipenses 3.12) “Não que eu o tenha já recebido”. Paulo insiste sobre isto, para que ele possa convencer aos filipenses que ele não pensava em nada além de Cristo - nada mais conhecia - não desejava nada mais – não estava ocupado com nenhum outro objeto de meditação. Em conexão com isso, há muito peso no que ele acrescenta agora - que ele próprio, enquanto tinha desistido de todos os tropeços, no entanto, não tinha alcançado o objetivo final, e que, por esse motivo, ele sempre visou e aspirava ansiosamente por algo mais. Quanto mais isto competia aos Filipenses, que ainda estavam muito atrás dele? É perguntado, no entanto, o que é que Paulo diz que ele ainda não alcançou? Porque inquestionavelmente, tão

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logo que somos enxertados pela fé no corpo de Cristo, já temos entrado no reino de Deus, e, como se afirma em Efésios 2.6, já estamos, na esperança, assentados nos lugares celestiais. Eu respondo, que a nossa salvação, nesse meio tempo, é na esperança, porque a herança de fato é segura; mas temos algumas coisas em cuja posse ainda não nos encontramos. Ao mesmo tempo, Paulo aqui olha para outra coisa - o avanço da fé, e aquela mortificação à qual tinha feito menção antes. Ele havia dito que ele visava ansiosamente e aspirava à ressurreição dos mortos pela participação na Cruz de Cristo. Ele acrescenta, que ele ainda não chegou a isso. Em quê? Na consecução de ter comunhão inteira nos sofrimentos de Cristo, tendo um desfrutar completo do poder da sua ressurreição, e conhecê-lo perfeitamente. Ele ensina, portanto, pelo seu próprio exemplo, que devemos fazer progressos, e que o conhecimento de Cristo é uma realização de tal dificuldade, que mesmo aqueles que se aplicam exclusivamente a isso, no entanto, não alcançam a perfeição nisto, enquanto aqui viverem. Isso, no entanto, não diminui em qualquer grau a autoridade da doutrina de Paulo, na medida em que ele tinha adquirido, o tanto quanto era suficiente para cumprir o ofício que lhe foi designado. Nesse meio tempo, era necessário que ele fizesse progressos, para que o instrutor divinamente equipado com tudo possa ser treinado para a humildade.

“Para o que também fui conquistado por Cristo”. Esta cláusula ele inseriu a título de correção, para que pudesse atribuir todos os seus esforços à graça de Deus. Não é de

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muita importância a forma como você leia, porque em ambos os casos o significado é o mesmo - que Paulo foi conquistado por Cristo, para que pudesse conquistar a Cristo; isto é, que ele não fez nada, exceto sob influência e orientação de Cristo.

Sempre Prosseguindo para o Alvo da Perfeição - Comentário de Filipenses 3.13,14

Flp 3:13 Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão,

Flp 3:14 prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.

“Eu não julgo havê-lo alcançado”. Ele não coloca em causa aqui a certeza da sua salvação, como se ele ainda estivesse em suspense, mas repete o que havia dito antes - que ele ainda visava a um progresso maior, porque ele ainda não tinha atingido o fim da sua vocação. Ele mostra isso imediatamente depois, dizendo que ele estava intentando apenas uma coisa, deixando de fora tudo o mais. Agora, ele compara a nossa vida a uma pista de corridas, e os limites que Deus traçou para nós, para percorrê-la. Porque, assim como nada aproveitaria ao corredor ter deixado o ponto de partida, a menos que ele fosse para a frente para o alvo, por isso devemos também

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prosseguir o curso da nossa vocação até a morte, e não devemos parar até que tenhamos obtido o que buscamos. Mais ainda, como o caminho está marcado para o corredor, para que ele não venha a se cansar sem qualquer propósito vagando nesta ou naquela direção, então há também um objetivo diante de nós, para o qual devemos dirigir o nosso curso sem desvios; e Deus não nos permite vagar descuidadamente. Em terceiro lugar, como se requer do corredor que esteja livre de impedimentos, e não parar o seu curso por conta de qualquer obstáculo, assim devemos tomar cuidado para que não apliquemos a nossa mente ou coração a tudo o que possa desviar a atenção, senão que devemos, pelo contrário, empenhar o nosso esforço, livres de qualquer distração, de modo que possamos aplicar toda a inclinação da nossa mente exclusivamente ao chamado de Deus. Estas três coisas Paulo apresenta, numa só similitude. Quando ele diz que ele faz uma coisa, e esquece todas as coisas que estão para trás, dá a entender a sua assiduidade, e exclui tudo que possa distrair. Quando ele diz que ele se apressa para o alvo, ele dá a entender que ele não está se desviando do caminho. “Esquecendo-me das coisas que para trás ficam”. Ele alude aos corredores, que não voltam seus olhares para o lado em qualquer direção, para que não afrouxem a velocidade do seu curso, e, mais especialmente, não olham para trás para ver quanto terreno já avançaram, mas se apressam à frente incessantemente em direção à meta, Assim, Paulo nos ensina, que ele não pensava no que ele foi, ou no que ele fez, senão simplesmente corria

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para a frente em direção ao objetivo determinado, e que, também, com tal ardor, que ele corria para a frente, por assim dizer, com os braços estendidos. Porque uma metáfora dessa natureza está implícita no particípio que ele emprega.

Caso houvesse qualquer observação, por meio de oposição, que a lembrança de nossa vida passada é de uso para nos mover, tanto porque os favores que já nos foram conferidos nos dão o incentivo para entreter a esperança, e porque somos admoestados pelos nossos pecados a alterar o nosso curso de vida, eu respondo, que os pensamentos dessa natureza não desviam a nossa visão do que está diante de nós para o que está atrás, mas sim ajudam a nossa visão, para que possamos discernir mais claramente o objetivo. Paulo, no entanto, condena aqui como olhar para trás, aquilo quer destrói ou danifica o entusiasmo. Assim, por exemplo, qualquer um deveria persuadir a si mesmo que ele tem feito suficiente progresso, reconhecendo que tem feito o bastante, ele se tornará indolente, e se sentirá inclinado a entregar o bastão para os outros; ou, se alguém olhar para trás com um sentimento de pesar pela situação que ele tem abandonado, ele pode não se aplicar com toda a inclinação de sua mente àquilo em que está envolvido. Tal seria a natureza dos pensamentos da mente de Paulo para que ele voltasse atrás, se ele não seguisse com seriedade a vocação de Cristo. Como, no entanto, não foi feito menção aqui de esforço e perseverança, para que ninguém imagine que a salvação consiste nessas coisas, ou mesmo atribuída à industriosidade humana que vem

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de outra parte, com a visão de apontar a causa de todas essas coisas, ele acrescenta - em Cristo Jesus.

Crescimento Rumo à Maturidade Espiritual - Comentário de Filipenses 3.15

“Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá.” (Filipenses 3.15) “Todos, pois, que somos perfeitos”. Para que ninguém viesse a entender isso como se referindo à humanidade em geral, como se estivesse explicando os elementos simples para aqueles que são meras crianças em Cristo, ele declara que isto é uma regra que todos os que são perfeitos deveriam seguir. Agora, a regra é esta - que devemos renunciar à confiança em todas as coisas, para que possamos nos gloriar somente na justiça de Cristo, e preferindo-a a tudo o mais, aspirar por uma participação em seus sofrimentos, que pode ser o meio de conduzir-nos a uma abençoada ressurreição.

(Perfeição espiritual neste mundo é equivalente ao grau de maturidade espiritual que é atingido por meio da fé em Cristo que habilita a entender e a viver o evangelho tal como ele é de fato - nota do tradutor)“E, se, porventura, pensais doutro modo”. Pelos mesmos meios ele tanto os humilha, e os inspira com boa esperança, porque os adverte para não se exaltarem em sua

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ignorância e, ao mesmo tempo, ele lhes ordena que tenham bom ânimo, quando diz que devemos aguardar a revelação de Deus. Porque sabemos quão grande obstáculo à verdade é a obstinação. Este, “porventura”, é a melhor preparação para a docilidade - quando não temos prazer no erro. Paulo, portanto, ensina indiretamente, que devemos abrir caminho para a revelação de Deus, se nós ainda não alcançamos aquilo que buscamos. Mais adiante, quando ele ensina que devemos avançar por graus, ele lhes incentiva para não recuarem no meio da jornada. Ao mesmo tempo, ele mantém para além de toda controvérsia o que já havia ensinado previamente, quando ele ensina que outros que discordam dele terão uma revelação dada a eles do que ainda não sabem. Porque isto é como se tivesse dito: "O Senhor, um dia, vos dirá que a própria palavra que tenho afirmado é uma regra perfeita de conhecimento verdadeiro e do viver justo." Ninguém poderia falar desta maneira, se não estivesse totalmente assegurado da razoabilidade e precisão de sua doutrina. Vamos nesse meio tempo aprender também a partir desta passagem, que devemos topar por um tempo com a ignorância em nossos irmãos fracos, e perdoá-los, se não lhes é dado imediatamente serem de uma mente conosco. Paulo se sentia seguro da sua doutrina, e ele ainda acolhe àqueles que ainda não puderam chegar à hora de fazer progressos, e não deixa por conta disso de considerá-los como irmãos; somente os adverte contra ficarem inchados em si mesmos, em sua ignorância.

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Paulo, um Modelo para os Cristãos - Comentário de Filipenses 3.16,17

Flp 3:16 Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos. Flp 3:17 Irmãos, sede imitadores meus e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós. v. 16 – “Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos”. Mesmo os manuscritos gregos divergem quanto à divisão dos períodos, pois em alguns deles há duas frases completas. Se alguém, no entanto, prefere dividir o verso, o significado será como Erasmo o tomou. Da minha parte, eu preferiria uma leitura diferente, o que implica que Paulo exorta os Filipenses a imitá-lo, para que possam finalmente alcançar o mesmo objetivo, de modo a pensar a mesma coisa, e caminhar pela mesma regra. Porque onde o afeto sincero existe, assim como reinou em Paulo, o caminho é fácil para uma concórdia santa e piedosa, como, portanto, ainda não tinham aprendido o que a perfeição verdadeira era, a fim de que pudessem alcançar isso ele deseja que eles sejam seus imitadores; ou seja, buscarem a Deus com uma consciência pura (2 Timóteo 1.3), para nada arrogarem para si, e com calma submeter seu entendimento a Cristo. Porque na imitação de Paulo todas estas excelências estão incluídas - zelo puro, temor do Senhor, modéstia, autorenúncia, docilidade, amor e desejo de concórdia. Ele lhes ordena, no entanto, a serem um e ao mesmo tempo imitadores dele; isto é, todos com o mesmo espírito, e com uma só mente.

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Observe, que a meta da perfeição para a qual ele convida os Filipenses, pelo seu exemplo, é que eles pensem a mesma coisa, e caminhem pela mesma regra que ele tem, embora, tenha atribuído o primeiro lugar à doutrina em que eles deveriam se harmonizar, e à regra à qual deveriam se conformar.

v. 17 – “Observai os que”. Por essa expressão ele quer dizer, que isto é tudo o que as pessoas devem fazer individualmente para si mesmas, para a imitação, conformando-se com a pureza da qual ele era um modelo. Por este meio toda suspeita de ambição é removida, porque o homem que se dedica a seus próprios interesses não deseja ter qualquer rival. Ao mesmo tempo, ele lhes avisa que todos não devem ser imitados de forma indiscriminada, como ele explica mais detalhadamente depois.