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Desagravo a Calvino Silvio Dutra DEZ/2015

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Desagravo a Calvino

Silvio Dutra

DEZ/2015

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Honra a Quem é Devida

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Introdução

O material contido neste livro é o fruto de traduções que fizemos de textos de autoria de João Calvino, do original inglês, em domínio público.

Tantas são as divisões de nosso texto que não emitimos um sumário para as mesmas, uma vez que este ocuparia um grande número de páginas.

Por uma leitura deste livro, ainda que breve, pode-se entender melhor por que Deus usou Calvino como um dos principais dos seus instrumentos para promover a Reforma no século XVI, pela qual o Protestantismo foi estabelecido em todo o mundo.

Se Calvino foi achado digno de promover uma Reforma de tal envergadura em seus dias, porque ele não deveria ser também ouvido e acatado por nós em nossos presentes dias, especialmente quando a própria Igreja Protestante apresenta sinais de falta de vigor e de apostasia?

Afinal, a Reforma nada mais é do que trazer a verdade de Deus novamente à tona, e moldar a Igreja segundo a mesma santidade que ela possuiu pela prática da Palavra nos dias apostólicos; e Calvino contribuiu para isto de forma extraordinária com a sua muita sabedoria e conhecimento de Deus e da Sua Palavra.

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Orações Por Toda a Humanidade - Comentário de 1 Timóteo 2.1

“Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens,”

“Portanto, exorto, antes de tudo”. Os exercícios religiosos que o apóstolo aqui ordena mantêm e fortalecem em nós o culto sincero e o temor de Deus, bem como nutrem a consciência íntegra de que falamos anteriormente. O termo, portanto, é então perfeitamente apropriado, visto que essas exortações se deduzem naturalmente do encargo que ele pusera sobre Timóteo.

Primeiramente, ele trata da oração pública e de sua regulamentação, a saber: que ela deve ser feita não só em favor dos crentes, mas em favor de todo o gênero humano. É possível que alguém argumente: “Por que devemos preocupar-nos com o bem-estar dos incrédulos, já que não mantêm nenhuma relação conosco? Não é suficiente que nós, que somos irmãos, oremos uns pelos outros e encomendemos a Deus toda a Igreja? Os estranhos não significam nada para nós”. Paulo se põe contra essa perversa perspectiva, e diz aos efésios que incluíssem em suas orações todos os homens, e não as restringissem somente ao corpo da Igreja.

Admito que não entendo plenamente a diferença entre os três ou quatro tipos de oração de que Paulo faz

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menção. É pueril a opinião expressa por Agostinho, a qual torce as palavras de Paulo para adequarem-se ao uso cerimonial de sua própria época. O ponto de vista mais simples é preferível, a saber: que súplicas são solicitações para sermos libertados do mal; orações são solicitações por algo que nos seja proveitoso; e intercessões são nossos lamentos postos diante de Deus em razão das injúrias que temos suportado. Eu mesmo, contudo, não entro em distinções sutis desse gênero; ao contrário, deduzo um tipo diferente de distinção. Proseucai [Proseuche] é o termo grego geral para todo e qualquer tipo de oração; e deh>seiv [deeseis] denota essas formas de oração nas quais se faz alguma solicitação específica. Portanto, essas duas palavras se relacionam como o gênero e a espécie. v´Enteu>xeiv [Enteuxeois] é o termo usual de Paulo para as orações que oferecemos em favor uns dos outros, e o termo usado em latim é intercessiones, intercessões. Platão, contudo, em seu segundo diálogo intitulado, Albibíades, usa a palavra de forma diferenciada para denotar uma petição definida, expressa por uma pessoa em seu próprio favor. Em cada inscrição do livro, bem como em muitas passagens, ele mostra claramente que proseuch [proseuche] é, como eu já disse, um termo geral.

Todavia, para não nos determos desproporcionalmente por mais tempo numa questão que não é de grande relevância, Paulo, em minha opinião, está simplesmente dizendo que sempre que as orações públicas foram oferecidas, as petições e súplicas devem ser formuladas em favor de todos os homens, mesmo daqueles que

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presentemente não mantêm nenhum relacionamento conosco. O amontoado de termos não é supérfluo; pois ao meu ver Paulo, intencionalmente, junta esses três termos com o mesmo propósito, ou seja, com o fim de recomendar, com o maior empenho possível, e pedir com a máxima veemência, que se façam orações intensas e constantes.

Sobre o significado de ações de graças não há nada de obscuro, pois ele não só nos incita a orar a Deus pela salvação dos incrédulos, mas também a render graças por sua prosperidade e bem-estar. A portentosa benevolência que Deus nos demonstra dia a dia, ao fazer “seu sol nascer sobre bons e maus”, é digna de todo o nosso louvor; e o amor devido ao nosso próximo deve estender-se aos que dele são indignos.

O Louvor Devido à Fé e ao Amor - Comentário de Colossenses 1.1-3

“1 Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo,

2 aos santos e fiéis irmãos em Cristo que se encontram em Colossos, graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai.

3 Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quando oramos por vós,”

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“Paulo, apóstolo”. Já expliquei, em repetidas ocasiões, o propósito de tais dedicatórias. Como, contudo, os colossenses nunca tinham lhe visto, e por essa causa sua autoridade não estava ainda tão firmemente estabelecida entre eles a ponto de fazer seu nome por si mesmo suficiente, ele afirma que é um apóstolo de Cristo separado pela vontade de Deus. Disso seguia-se que ele não agia imprudentemente ao escrever a pessoas que não o conheciam, considerando que estava desempenhando a função de embaixador que Deus tinha lhe confiado. Pois ele não estava ligado a uma Igreja meramente, mas seu apostolado se estendia a todas. O termo santos que aplica a eles é muito honroso, mas ao chamá-los de irmãos fiéis, ele os encoraja ainda mais a ouvi-lo desejosamente. Quanto às outras coisas, explicações podem ser encontradas nas Epístolas precedentes.

3. “Damos graças a Deus”. Ele louva a fé e o amor dos colossenses, para que isso possa encorajá-los à maior diligência e constância da perseverança. E mais, ao demonstrar que tem uma persuasão desse tipo com respeito a eles, ele procura a consideração amigável deles, para que possam ser mais favoravelmente inclinados e ensináveis para receber a sua doutrina. Devemos sempre observar que ele faz uso de ação de graças no lugar de congratulação, pelo que nos ensina, que em todas as nossas alegrias devemos prontamente chamar à lembrança a bondade de Deus, visto que tudo o que é agradável e prazeroso para nós, é uma benignidade conferida por ele. Além disso, ele nos

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admoesta, por seu exemplo, a reconhecer com gratidão não meramente aquelas coisas que o Senhor nos confere, mas também as que ele confere aos outros.

Mas por quais coisas ele dá graças ao Senhor? Pela fé e amor dos colossenses. Ele reconhece, portanto, que ambas são conferidas por Deus: de outra forma a gratidão seria fingida. E o que temos que não seja por meio de sua liberalidade? Se, contudo, mesmo os menores favores chegam até nós dessa fonte, quanto mais esse mesmo reconhecimento deve ser feito com referência a esses dois dons, nos quais consiste a soma inteira da nossa excelência?

“Ao Deus e Pai”. Entenda a expressão assim – A Deus, que é o Pai de Cristo. Pois não é lícito para nós reconhecer qualquer outro Deus, que não aquele que se manifestou a nós em seu Filho. E essa é a única chave para abrir a porta para nós, se estivermos desejosos de ter acesso ao Deus verdadeiro. Por esse motivo, também, ele é um Pai para nós, pois nos aceitou em seu Filho unigênito, e nele também apresenta seu favor paternal para a nossa contemplação.

“Sempre por vós”. Alguns explicam isso assim – Nós damos graças a Deus sempre por vós, isto é, continuamente. Outros explicam que significa – Orando sempre por vós. A frase pode ser interpretada dessa forma também: “Sempre que oramos por vós, ao mesmo tempo damos graças a Deus”; e esse é o significado simples: “Damos graças a Deus, e ao mesmo tempo oramos”. Com isso ele indica que a condição dos crentes

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nunca é perfeita neste mundo, de forma a não ter, invariavelmente, algo em falta. Pois mesmo o homem que começou admiravelmente bem, pode ficar aquém em centenas de ocasiões todo o dia; e devemos estar sempre fazendo progresso, enquanto ainda estamos no caminho. Tenhamos, portanto, em mente que devemos nos regozijar nos favores que já recebemos, e dar graças a Deus por eles de tal maneira, que ao mesmo tempo buscamos dele perseverança e progresso.

Distinguidos pela Fé e pelo Amor - Comentário de Colossenses 1.4

“desde que ouvimos da vossa fé em Cristo Jesus e do amor que tendes para com todos os santos;” (Colossenses 1.4)

“Tendo ouvido da vossa fé”. Esse era um meio de provocar seu amor para com eles, e sua preocupação pelo bem-estar deles, quando ouviu que eram distintos pela fé e amor. E, inquestionavelmente, os dons de Deus que são tão excelentes deveriam ter tal efeito sobre nós, a ponto de instigar-nos a amá-los onde quer que apareçam. Ele usa a expressão fé em Cristo, para que possamos sempre ter em mente que Cristo é o objeto apropriado da fé. Ele emprega a expressão amor para com os santos, não com a visão de excluir os outros, mas porque, na proporção em que alguém está unido conosco em Deus, devemos aceitá-lo ainda mais proximamente

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com especial afeição. O amor verdadeiro, portanto, se estenderá à humanidade universalmente, porque todos eles são nossa carne, e criados à imagem de Deus (Gênesis 4.6); mas com respeito a graus, começará com aqueles que são da família da fé (Gálatas 6.10).

A Esperança Reservada nos Céus - Comentário de Colossenses 1.5

“por causa da esperança que vos está reservada nos céus, da qual antes ouvistes pela palavra da verdade do evangelho,” (Colossenses 1.5)

“Por causa da esperança que vós está reservada nos céus”. Porque a esperança da vida eterna nunca será inativa em nós, não deixando assim de produzir amor em nós. O motivo é que, necessariamente, aquele que está plenamente persuadido que um tesouro da vida está reservado para ele nos céus aspirará àquele lugar, desdenhando deste mundo. A meditação, contudo, sobre a vida celestial provoca nossas afeições tanto ao louvor a Deus, como aos exercícios de amor. Os sofistas pervertem essa passagem com o propósito de enaltecer os méritos das obras, como se a esperança da salvação dependesse das obras. O raciocínio, contudo, é fútil. Pois não se segue que, porque a esperança nos estimula a aspirar viver retamente, ela esteja portanto fundamentada sobre as obras, visto que nada é mais eficaz para esse propósito do que a bondade imerecida

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de Deus, que elimina absolutamente toda confiança nas obras.

Há, contudo, um exemplo de metonímia no uso do termo esperança, visto que é usado pela coisa que se espera. Porque a esperança que está em nosso coração é a glória pela qual esperamos no céu. Ao mesmo tempo, quando ele diz, que existe uma esperança que para nós está reservada nos céus, ele quer dizer que os crentes deveriam sentir-se seguros quanto à promessa de felicidade eterna, igualmente como se já tivessem um tesouro reservado num lugar particular. Da qual já antes ouvistes. Como a salvação eterna é uma coisa que ultrapassa a compreensão do nosso entendimento, ele adiciona que a segurança dela foi trazida aos colossenses por meio do evangelho; e ao mesmo tempo diz no princípio que ele não irá apresentar algo novo, mas tem meramente em vista confirmá-los na doutrina que tinham recebido anteriormente. Erasmo traduziu assim – a palavra verdadeira do evangelho. Também estou bem ciente que, de acordo com o idioma hebraico, o genitivo é frequentemente usado por Paulo no lugar de um epíteto; mas as palavras de Paulo aqui são mais enfáticas. Pois ele chama o evangelho, kay ejxoch>n, (com o objetivo de eminência), de palavra da verdade, com a visão de colocar honra sobre ele, para que eles possam aderir mais leal e firmemente à revelação que tinham derivado dessa fonte. Assim, o termo evangelho é introduzido por aposição.

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O Fruto do Evangelho - Comentário de Colossenses 1.6-8

“6 que chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós, desde o dia em que ouvistes e entendestes a graça de Deus na verdade;

7 segundo fostes instruídos por Epafras, nosso amado conservo e, quanto a vós outros, fiel ministro de Cristo,

8 o qual também nos relatou do vosso amor no Espírito.”

6. “Como também em todo o mundo produz fruto”. Isso tem uma tendência tanto de confirmar como confortar os piedosos – ver o efeito do evangelho em todo o lugar, reunindo muitos para Cristo. É verdade que a fé dele não depende do seu sucesso, como se nós devêssemos crer no evangelho com base no fato de muitos crerem. Mesmo que o mundo inteiro desabasse, o próprio céu caísse, a consciência de um homem piedoso não deve hesitar, pois Deus, em quem ela está fundamentada, permanece verdadeiro. Isso, contudo, não impede nossa fé de ser confirmada sempre que percebe a excelência de Deus, que indubitavelmente se mostra com maior poder na proporção do número de pessoas que são ganhas para Cristo. Em adição a isso, na multidão dos crentes naquele tempo havia uma contemplação do cumprimento das muitas predições que estendiam o reino de Cristo do oriente ao ocidente. É um auxílio trivial ou comum à fé, ver realizado diante dos nossos olhos o que os profetas

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há tempos tinham predito quanto à extensão do reino de Cristo por todas as nações do mundo? Não existe nenhum crente que não experimente do que estou falando. Paulo, dessa forma, tinha como objetivo encorajar ainda mais os colossenses com essa declaração, pois, vendo em vários lugares o fruto e progresso do evangelho, eles poderiam abraçá-lo com maior zelo. Aujxano>menon, que traduzi como propagatur, (é propagada) não aparece em algumas cópias; mas, por sua adaptação ao contexto, escolhi não omiti-la. Parece também a partir dos comentários dos antigos que essa leitura foi sempre a mais geralmente recebida.

“Desde o dia em que ouvistes e conhecestes a graça”. Aqui ele os louva por causa de sua docilidade, visto que imediatamente aceitaram a sã doutrina; e louva-os por causa de sua constância, por perseverarem nela. É também com propriedade que a fé do evangelho é chamada o conhecimento da graça de Deus; pois ninguém jamais provou do evangelho, senão o homem que sabe estar reconciliado com Deus, e se apegou à salvação que está em Cristo. Em verdade significa verdadeiramente e sem fingimento; pois como tinha anteriormente declarado que o evangelho é verdade indubitável, assim declara agora que ele tinha sido puramente administrado sobre eles, e isso por Epafras.

Associações Não Aprovadas por Deus - Comentário de 1 Coríntios 5.9,10

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“9 Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros;

10 refiro-me, com isto, não propriamente aos impuros deste mundo, ou aos avarentos, ou roubadores, ou idólatras; pois, neste caso, teríeis de sair do mundo.”

9. “Já escrevi para vocês em uma epístola”. A epístola de que Paulo fala não é existente em nossos dias. Nem há qualquer dúvida de que muitas outros estão perdidas. É o bastante, no entanto, que foram preservadas para nós aquelas que o Senhor previu seriam suficientes. Mas esta passagem, em consequência de sua obscuridade, tem sido foi torcida por uma variedade de interpretações, mas eu não acho que seja necessário ocupar o tempo para refutá-las, senão simplesmente apresentar o que parece-me ser o seu verdadeiro significado. Ele lembra aos coríntios que já lhes tinha ordenado que deveriam se abster de relações sexuais com os ímpios. Porque a palavra traduzida para “associáveis”, significa estar em familiaridade com qualquer um, e ter hábitos de intimidade com ele. Agora, ele recorda que apesar de terem sido admoestados, ainda permaneciam inativos.

Ele acrescenta uma exceção, para que possam entender melhor o que isso se refere especialmente aos que pertencem à Igreja, uma vez que não necessitavam ser admoestados para evitar a sociedade do mundo. Em suma, então, ele proíbe os Coríntios de terem intercâmbio com aqueles que, embora professando ser crentes, no entanto, vivem impiamente e para a desonra de Deus. Essa exceção, no entanto, aumenta a

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criminalidade dos remissos, na medida em que eles admitiam no seio da Igreja uma pessoa abertamente ímpia; pois é mais vergonhoso negligenciar os de sua própria casa do que negligenciar estranhos.

10. "Quando eu te ordeno a evitar os fornicadores, eu não quero me referir a todos eles; caso contrário seria necessário ir em busca de um outro mundo; porque temos de viver entre os espinhos, enquanto permanecemos na terra. É somente isto o que eu exijo, que você não mantenha companhia com os fornicadores, que desejam ser considerados como irmãos em Cristo, para que não pareça pela sua tolerância que aprova a sua iniquidade. "Assim, o termo mundo aqui, deve ser entendido como a presente vida, como em João 17.15: “Não peço, Pai, que os tires do mundo, mas que os livre do mal”.

Contra esta exposição uma pergunta pode ser proposta por meio de objeção: "Como Paulo disse isso em uma época em que os cristãos estavam ainda misturados com pagãos, e dispersados entre eles, o que deveria ser feito agora, quando todos confessavam o nome de Cristo? Pois, mesmo nos dias de hoje é preciso sair do mundo, se quisermos evitar a sociedade dos ímpios; e não há ninguém que seja estranho, quando todos tomam sobre si o nome de Cristo, e são consagrados a ele pelo batismo." Se alguém se sentir inclinado a seguir Crisóstomo, não encontrará qualquer dificuldade em responder, ao que Paulo tem aqui por certo e que era verdade - que, quando há o poder de excomunhão, há um

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remédio fácil para efetuar a separação entre o bem e o mal, se as igrejas fazem o seu dever. Quanto a estranhos, os cristãos de Corinto não tinham jurisdição, e eles não poderiam restringir o seu modo de vida dissoluta. Portanto, eles teriam necessariamente que deixar o mundo, se quisessem evitar a sociedade dos ímpios, cujos vícios não puderam curar.

De minha parte, eu tomo a palavra traduzida por sair no sentido de ser separados , e o termo mundo no sentido das corrupções do mundo. "Que necessidade há de uma união com os filhos deste mundo (Lucas 16. 8), por ter uma vez por todas renunciado ao mundo, você fica por conseguinte distante de sua sociedade; porque o mundo inteiro jaz no maligno" (1 João 5.19). Se alguém não está satisfeito com essa interpretação, aqui está uma outra que ainda é provável: "Eu não escrevo para você, em termos gerais, que você deve evitar uma associação com os devassos deste mundo, todavia você deve fazê-lo, sem qualquer admoestação minha." Prefiro, no entanto, a interpretação anterior.

Associações Não Aprovadas por Deus 2 - Comentário de 1 Coríntios 5.11

“Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento,

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ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem ainda comais.” (1 Coríntios 5.11)

“Alguém que dizendo-se irmão”. No grego há um particípio sem um verbo. Aqueles que veem isso como se referindo ao que se segue, dão-lhe um sentido forçado, e em desacordo com a intenção de Paulo. Confesso, de fato, que esse é apenas um sentimento, e digno de ser particularmente notado - que ninguém pode ser punido pela decisão da Igreja, senão alguém cujo pecado tornou-se público e notório; mas estas palavras de Paulo não podem ser obrigadas a suportar esse significado. O que ele quer dizer, então, é o seguinte: "Se alguém é contado como um irmão no meio de vós, e ao mesmo tempo leva uma vida ímpia, e como isto é impróprio para um cristão, mantenham-se afastados de sua companhia." Em suma, ser chamado irmão, significa aqui uma falsa profissão de fé, que não tem nenhuma realidade correspondente. Mais adiante, ele não faz uma enumeração completa de pecados, mas apenas menciona cinco ou seis à guisa de exemplo, e então, depois, sob a expressão “tal pessoa”, ele resume o todo; e ele não menciona ninguém, senão o que caiu sob o conhecimento dos homens. Porque impiedade interior, e tudo o que é secreto, não se enquadra no julgamento da Igreja.

É incerto, porém, o que ele quer dizer com “idólatra”, porque como pode ser dedicado à idolatria quem tenha feito uma profissão de Cristo? Alguns são de opinião que havia entre os coríntios naquela época alguns que receberam a Cristo, mas ao mesmo tempo estava

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envolvidos, no entanto, envolvidos com idolatria, como os israelitas do passado. De minha parte, prefiro entendê-la se referindo àqueles que, enquanto tinham abandonado o culto aos ídolos, no entanto, davam uma homenagem fingida aos ídolos, com a intenção de agradar aos ímpios. Paulo declara que essas pessoas não devem ser toleradas na sociedade dos cristãos; e não sem uma boa razão, na medida em que fizeram tão pouca conta em pisar a glória de Deus debaixo dos pés. Devemos, no entanto, observar as circunstâncias do caso - que, enquanto eles tinham uma igreja, em que podiam adorar a Deus em pureza, e fazer o uso legítimo dos sacramentos, ingressaram na Igreja, de tal forma, que não renunciaram à comunhão profana dos ímpios. Faço esta observação, a fim de que não se possa pensar que devemos empregar medidas igualmente severas contra aqueles que, embora no dia de hoje dispersos sob a tirania de líderes religiosos hereges, poluem-se com muitos ritos corruptos. Estes, na verdade, eu mantenho, que pecam, no geral, a este respeito, e devem ser fortemente tratados com diligência urgente, para que aprendam a consagrar-se totalmente a Cristo; mas não me atrevo a ir tão longe a ponto de contar-lhes dignos de exclusão da comunhão dos santos, pois o seu caso é diferente.

“Com esse tal nem ainda comais”. Em primeiro lugar, temos que verificar se ele se refere aqui a toda a Igreja, ou apenas a indivíduos. Eu respondo que isso é dito, de fato, a indivíduos, mas, ao mesmo tempo, está conectado com a sua disciplina em comum; porque o

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poder de exclusão não é concedido a qualquer membro individual, mas a todo o corpo. Quando, portanto, a Igreja exclui alguém, nenhum crente deve recebê-lo em termos de intimidade para com ele; caso contrário, a autoridade da Igreja seria levada ao desprezo, se cada indivíduo tivesse a liberdade de admitir à sua mesa aqueles que foram excluídos da mesa do Senhor. Por partilhar o alimento aqui, se entende viver junto, ou ter associação familiar nas refeições. Mas se, por entrar em uma pousada, eu vejo aquele que foi excluído sentado à mesa, não há nada que me impeça de jantar com ele; pois eu não tenho autoridade para excluí-lo. O que Paulo quer dizer é que, na medida em que está em nosso poder, devemos evitar a companhia daqueles a quem a Igreja cortou de sua comunhão.

O excluído não deve ser considerado como um inimigo, mas como um irmão (2 Tessalonicenses 3.15) porque ao se colocar essa marca pública de desgraça sobre ele, a intenção é que ele possa se envergonhar e ser conduzido ao arrependimento.

Purificação da Carne e do Espírito - Comentário de 2 Coríntios 7.1

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“Tendo, pois, estas promessas, amados, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” (2 Coríntios 7.1)

“Estas promessas, portanto”. Deus, é verdade, nos contempla em suas promessas por seu puro favor; mas quando ele tem, por sua própria vontade, conferido a nós seu favor, ele logo em seguida exige de nós a gratidão em troca. Assim, o que ele disse a Abraão, “Eu sou teu Deus” (Gênesis 17. 7), foi uma oferta da sua bondade imerecida, mas ele, ao mesmo tempo acrescentou o que ele exigia dele – “Anda na minha presença e sê perfeito”. Como, no entanto, esta segunda frase nem sempre é expressada, Paulo nos ensina que em todas as promessas, esta condição está implícita, as quais devem ser incitações a nós para promover a glória de Deus. Para que propósito ele apresenta um argumento para nos estimular? É a partir disto, que Deus nos confere uma honra tão ilustre. Essa, então, é a natureza das promessas, para que elas nos chamem para a santificação, como se Deus as tivesse interposto por um acordo implícito. Sabemos, também, que a Escritura ensina isto em várias passagens, em referência ao projeto da redenção, e a mesma coisa deve ser vista como a aplicação de cada prova do seu favor.

“De toda a imundícia da carne e do espírito”. Tendo já mostrado, que somos chamados à pureza, agora ele acrescenta, que esta deveria ser vista no corpo, bem como na alma; porque o termo carne significa aqui corpo, e o termo espírito significa alma, é manifesto disto, que

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se o termo espírito significa a graça da regeneração, a declaração de Paulo, em referência à poluição do espírito seria absurda. Ele nos queria então, puros de contaminações, não só interiormente, tendo apenas a Deus como testemunha; mas também no exterior, como estando sob a observação dos homens. "Não devemos ser somente de consciência casta aos olhos de Deus. Também devemos consagrar a ele todo o nosso corpo e todos os nossos membros, para que nenhuma impureza possa ser vista em qualquer parte em nós."

Agora, se considerarmos qual é o ponto que ele tem em vista, facilmente iremos perceber, que são aqueles que agem com imprudência excessiva, que desculpam a sua idolatria, eu não sei sob que pretextos. Porque, assim como a impiedade interior, e superstição, de qualquer tipo, é a contaminação do espírito, o que eles entendem por contaminação da carne, senão uma profissão externa de impiedade, seja isto fingido, ou expressado do coração? Eles se vangloriam de uma consciência pura; que, de fato, está baseada em motivos falsos, mas concedendo-lhes aquilo do que se gabam, eles têm apenas a metade do que Paulo requer dos crentes. Portanto, eles não têm base para pensar, que têm dado satisfação a Deus por aquela metade; porque, deixe uma pessoa mostrar qualquer aparência de uma total idolatria, ou qualquer indicação da mesma, ou tomar parte em rituais maus ou supersticiosos, embora ela fosse - o que ela não pode ser - perfeitamente reta em sua própria mente, ela seria, no entanto, não isenta da culpa de poluir seu corpo.

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“Aperfeiçoando a santidade”. Apesar de que o verbo ἐπιτελεῖν em grego signifique às vezes, “aperfeiçoar”, e às vezes “realizar ritos sagrados”, isto é elegantemente usado aqui por Paulo na antiga significação, que é a mais frequente - de tal forma, porém, como para aludir à santificação, da qual ele está agora tratando. Por enquanto isto denota perfeição, parece ter sido intencionalmente transferido para ofícios sagrados, porque não deve haver nada defeituoso no serviço de Deus, senão que tudo deve ser completo. Assim, a fim de que você possa se santificar a Deus corretamente, você deve se dedicar de corpo e alma inteiramente a ele.

“No temor de Deus”. Porque, se o temor de Deus nos influencia, não estaremos tão dispostos a sermos indulgentes conosco, e nem haverá uma erupção dessa audácia de luxúria que se mostrou entre os Coríntios. Porque como acontece que muitos se deliciam tanto em idolatria exterior, e altivamente defendem tão grosseiro vício, a não ser por eles pensarem que zombam de Deus impunemente? Se o temor de Deus tivesse domínio sobre eles, eles iriam imediatamente, no primeiro momento, deixar todos os sofismas, sem a necessidade de serem constrangidos a isso por qualquer contestação.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino apresenta uma excelente interpretação desta passagem, ao associar o assunto da santificação à vida devotada a Deus, em separação sobretudo de práticas idolátricas, e não

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meramente em seu sentido moral, o qual é importante, mas que é apenas a consequência de um caminhar na presença de Deus e em comunhão com Ele. Apoia a sua interpretação o fato de Paulo ter tratado no contexto imediato anterior, nos últimos versículos do 6º capítulo, à não conveniência da associação dos crentes com as práticas idolátricas daqueles que não conhecem a Deus, seja a qual pretexto for.)

Tristeza que é para Arrependimento e Vida - Comentário de 2 Coríntios 7.8-10

“8 Porquanto, ainda que vos tenha contristado com a carta, não me arrependo; embora já me tenha arrependido vejo que aquela carta vos contristou por breve tempo,

9 agora, me alegro não porque fostes contristados, mas porque fostes contristados para arrependimento; pois fostes contristados segundo Deus, para que, de nossa parte, nenhum dano sofrêsseis.

10 Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo produz morte.”

8. “Porque ainda que eu vos tenha entristecido”. Paulo agora começa a pedir desculpas ao Coríntios por lhes ter tratado um pouco asperamente numa antiga epístola.

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Agora, temos de observar, no que uma variedade de modos ele lida com eles, de forma que ele pudesse parecer como se tivesse suportado diferentes caracteres. A razão é que o seu discurso foi dirigido a toda a Igreja. Havia alguns lá, que entretinham uma visão desfavorável dele - havia outros que o tinham, como merecia, na mais alta estima - alguns tinham dúvidas; os outros estavam confiantes - alguns eram dóceis: outros eram obstinados. Em consequência desta diversidade, ele foi obrigado a dirigir seu discurso agora em um lado, depois de outro, a fim de adequar-se a todos. Agora, ele diminui, ou melhor, ele tira completamente qualquer ocasião de escândalo, por conta da severidade que ele havia usado, em razão de esta ter em vista a promoção do bem-estar deles. "O seu bem-estar", diz ele, "é tanto um objeto de desejo para mim, que tenho o prazer de ver que eu lhes tenho feito o bem." Este abrandamento só é admissível quando o professor fez o bem o tanto quanto foi necessário, por meio de suas reprovações; pois se ele tivesse encontrado, que as mentes dos Coríntios ainda permaneciam obstinadas, e se ele tivesse percebido uma vantagem decorrente da disciplina que ele tinha tentado, ele, sem dúvida, nada teria diminuído de sua antiga severidade. Deve ser observado, entretanto, que ele se alegra por ter sido uma ocasião de tristeza para aqueles a quem ele amava; pois estava mais desejoso de benefício, do que agradá-los.

Mas o que ele quis dizer quando ele acrescenta – “embora já me tenha arrependido? Porque se admitirmos, que Paulo se sentiu insatisfeito com o que

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ele havia escrito, se seguiria uma incoerência de não leve caráter - que s Epístola anterior foi escrita sob uma erupção de impulso, em vez de sob a orientação do Espírito. Respondo que a palavra arrependimento é usada aqui num sentido amplo para significar tristeza. Pois enquanto ele entristeceu os Coríntios, ele próprio também participou da tristeza, e de uma forma infligiu sofrimento ao mesmo tempo a si mesmo. "Ainda que eu lhe tenha causado sofrimento contra minha vontade, e isso me entristeceu sob a necessidade de ser rude com você, eu não estou mais triste por causa disso, quando eu vejo que tem sido um benefício para você." Tomemos por exemplo o caso de um pai; porque um pai sente tristeza em conexão com sua severidade, quando a qualquer momento ele corrige seu filho, mas aprova isto, não obstante, porque vê que é propício para a vantagem de seu filho. Da mesma forma como Paulo não podia sentir qualquer prazer em irritar as mentes dos Coríntios; mas, consciente do motivo que influenciou sua conduta, ele preferiu o dever à inclinação para poupá-los.

“Pois vejo que aquela carta.” A transição é abrupta; mas, afinal, não prejudica a clareza do sentido. Em primeiro lugar, ele diz, que ele havia totalmente apurado o fato pelo efeito, que a epístola anterior, ainda que por um momento indesejável, tinha, no entanto, sido vantajosa, e em segundo lugar, que se alegrou por conta daquela vantagem.

9. “Não porque vocês foram entristecidos”. Ele quer dizer, que ele não sente prazer em qualquer que seja a

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sua tristeza - mais ainda, ele tinha sua escolha, ele iria se esforçar para promover igualmente seu bem-estar e sua alegria, pelos mesmos meios; mas que, como ele não poderia agir de outra forma, o bem-estar deles era de tanta importância, em sua opinião, que se alegrou de que haviam sido contristados para arrependimento. Pois há casos de médicos, que são, de fato, em outros aspectos bons e fiéis, mas são ao mesmo tempo duros, e não poupam seus pacientes. Paulo declara que ele não é de tal disposição em empregar curas duras, quando não constrangido pela necessidade. Como, no entanto, tinha se saído bem, que tinha produzido aflição com aquele tipo de cura, ele se congratula sobre o seu sucesso. Ele faz uso de uma forma similar de expressão em 2 Coríntios 5.4, “os que estamos neste tabernáculo gememos angustiados, não por querermos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida.”

10. “Tristeza segundo Deus”. Em primeiro lugar, a fim de compreender o que se entende por esta frase “segundo Deus”, devemos observar o contraste, porque a tristeza que é segundo Deus é contrastada por ele com a tristeza do mundo. Vamos agora tomar, também, o contraste entre dois tipos de alegria. A alegria do mundo é, quando os homens loucamente, e sem o temor do Senhor, exultam com vaidade, isto é, no mundo, e, embriagados com uma felicidade passageira, nada procuram mais alto do que a terra. A alegria que é segundo Deus é, aquela em que os homens colocam toda a sua felicidade em Deus, e têm satisfação em Sua graça, e mostram desprezo ao mundo, usando a prosperidade terrena como se eles

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não a usassem, e alegres em meio a adversidade. Por conseguinte, a tristeza do mundo é quando os homens ficam desalentados em consequência de aflições terrenas, e ficam sobrecarregados com a dor; enquanto a tristeza segundo Deus é a daqueles que têm um olho voltado para Deus, enquanto eles acham que isto é a única miséria - ter perdido o favor de Deus; quando, impressionados com o temor do Seu juízo, lamentam por seus pecados. Desta tristeza Paulo faz a causa e a origem do arrependimento. Isto deve ser cuidadosamente observado, pois a menos que o pecador esteja insatisfeito consigo mesmo, detestando o seu modo de vida, e ficando profundamente contristado a partir de uma apreensão do pecado, ele nunca vai se valer do Senhor. Por outro lado, é impossível para um homem experimentar uma dor desse tipo, sem que ela dê um nascimento para um novo coração. Daí o arrependimento ter sua origem na tristeza, pela razão que eu mencionei - porque ninguém pode voltar para o caminho direito, senão o homem que odeia o pecado; mas onde o ódio do pecado está, há autoinsatisfação e tristeza.

Há, no entanto, uma bela alusão aqui ao termo arrependimento, quando ele diz - não estar arrependido; porque embora uma coisa seja desagradável ao primeiro gosto, torna-se desejável por sua utilidade. O epíteto, é verdade, pode se aplicar ao termo salvação, igualmente ao arrependimento, mas parece-me que se adequa melhor com o prazo de arrependimento "Somos ensinados pelo próprio resultado, que a dor não deve ser

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dolorosa para nós, ou angustiante. Da mesma forma, embora o arrependimento contenha em si um certo grau de amargura, se, dele é dito que não devemos não nos arrepender, por conta do fruto precioso e agradável que ele produz."

“Para a salvação”. Paulo parece fazer do arrependimento a base da salvação. Se fosse assim, ele afirmaria a seguir, que somos justificados pelas obras. Respondo que devemos observar o que Paulo trata aqui, porque ele não está falando sobre a base da salvação, mas simplesmente elogiando o arrependimento pelo fruto que ele produz, ele diz que é como um caminho pelo qual podemos chegar à salvação. Nem isto é sem uma boa razão; porque Cristo nos chama por meio de favor livre, mas isto é para o arrependimento. (Mateus 9.13). Deus por meio de livre favor perdoa nossos pecados, mas somente quando renunciamos a eles. Mais ainda, Deus realiza em nós a um e ao mesmo tempo duas coisas: somos renovados pelo arrependimento, somos libertos do cativeiro de nossos pecados; e, sendo justificados pela fé, somos libertos também da maldição de nossos pecados. Eles são, portanto, frutos inseparáveis da graça, e, em consequência de sua conexão invariável, o arrependimento pode com idoneidade e propriedade ser representado como uma introdução para a salvação, mas neste modo de falar dele, ele é representado como um efeito, em vez de uma causa. Estes não são refinamentos para fins de evasão, senão uma solução verdadeira e simples, porque, enquanto a Escritura nos ensina que nunca obtemos o perdão dos pecados, sem

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arrependimento, este representa, ao mesmo tempo, em uma variedade de passagens, a misericórdia de Deus somente como o fundamento da nossa obtenção dele.

Vindicando a Santidade de Deus - Comentário de 2 Coríntios 7.11

“Porque quanto cuidado não produziu isto mesmo em vós que, segundo Deus, fostes contristados! Que defesa, que indignação, que temor, que saudades, que zelo, que vindita! Em tudo destes prova de estardes inocentes neste assunto.” (2 Coríntios 7. 11)

“Que cuidado isto produziu em você”. Eu não entrarei em qualquer disputa sobre se as coisas que Paulo enumera são efeitos de arrependimento, ou pertencem a ele, ou sejam preparatórias para isso, pois tudo isto é desnecessário para a compreensão do propósito de Paulo, pois ele simplesmente prova o arrependimento dos Coríntios a partir de seus sinais, ou as coisas que o acompanharam. Ao mesmo tempo, ele faz a tristeza segundo Deus ser a fonte de todas essas coisas, na medida em que surgiram a partir disto - que é seguramente o caso; porque quando nós começamos a sentir autoinsatisfação, somos posteriormente despertados a buscar as outras coisas.

O que se entende por desejo sincero, podemos entender do que se lhe opõe; porque contanto não haja qualquer

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apreensão do pecado, permanecemos negligentes e inativos. Daí sonolência ou falta de cuidado, ou indiferença, se opõe a esse desejo, a que ele faz menção. Assim, “desejo sincero” significa simplesmente uma assiduidade ansiosa e ativa na correção do que está errado, e na mudança da vida.

Paulo emprega o termo ἀπολογίαν (defesa). É por esse motivo que eu teria preferido manter o termo defensionem, que o antigo intérprete tinha usado. Deve, no entanto, ser observado, que é um tipo de defesa que consiste antes em súplica por perdão, do que na atenuação do pecado. Como um filho, que está desejoso de livrar-se do castigo de seu pai, não entra em um pleito regular de sua causa, mas reconhecendo suas falhas desculpa a si mesmo, em vez de ter o espírito de um suplicante, e que em tom de confiança, hipócrita, também, se desculpa - ou melhor, eles arrogantemente se defendem, mas é um pouco à maneira de disputarem com Deus, do que de voltarem a buscar o Ser favor; e algum outro preferia a palavra excusationem (desculpa). Eu não me oponho a isto; porque o significado atingirá a mesma coisa, que o Coríntios foram solicitados a se limparem, enquanto que anteriormente eles não se importavam com o que Paulo pensava deles.

“Sim, que indignação”. Esta disposição, também, é em tristeza sagrada - que o pecador está indignado contra os seus vícios, e até mesmo contra si mesmo, como também todos os que são movidos por um zelo correto estão indignados, como muitas vezes eles como que veem que

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Deus está ofendido. Essa disposição, no entanto, é mais intensa do que tristeza. Porque o primeiro passo é que o mal seja desagradável para nós. O segundo é que, sendo inflamados com ira santa, nós pressionamos severamente sobre nós mesmos, para que a nossa consciência possa ser tocada para ser avivada. Pode, no entanto, ser entendido aqui, por indignação, que os Coríntios ficaram inflamados contra os pecados de alguns, a quem haviam poupado anteriormente. Assim, eles se arrependeram de sua concordância ou conivência.

O temor é o que surge a partir de uma apreensão do julgamento divino, enquanto o agressor pensa - "Marque bem isto, uma conta deve ser prestada por ti, e como esperas avançar na presença de tão grande juiz?" Pois, alarmado com tal consideração, ele começa a tremer.

Como, porém, os próprios ímpios são, por vezes, tocados com um alarme desta natureza, ele acrescenta “desejo”. Esta disposição sabemos ser mais de natureza voluntária do que por medo, pois muitas vezes temos medo contra a nossa vontade, mas nunca desejamos, senão por inclinação, por disposição. Assim, como haviam temido o castigo ao receber a admoestação de Paulo, assim eles ansiosamente desejaram se corrigir.

Mas o que devemos entender por zelo? Não pode haver dúvida de que ele pretendia um clímax. Por isso, zelo é mais do que desejo. Agora podemos entender por que, foi despertado um espírito de rivalidade mútua entre os Coríntios. É mais simples, no entanto, compreendê-lo no sentido de que cada um, com grande fervor de zelo, o

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fizeram com o objetivo de dar provas de seu arrependimento. Assim zelo é a intensidade do desejo.

“Sim, que vindita!”. Ou seja, que vingança! O que dissemos em relação à indignação, deve ser aplicado também à vingança, por causa da maldade que tinham encorajado por sua conivência e indulgência, eles tinham se mostrado depois como rigorosos em vindicar a santidade de Deus. Eles tinham há algum tempo tolerado o incesto; mas, ao serem admoestados por Paulo, eles não tinham somente evitado o semblante do ofensor, mas haviam lhe reprovado severamente - esta foi a vingança a que o apóstolo se refere. Como, no entanto, devemos punir pecados onde quer que estejam, e não somente isso, mas devemos começar mais especialmente com nós mesmos, há algo mais para dizer em que o apóstolo diz aqui, pois ele fala dos sinais de arrependimento. Há, entre outros, este em particular - que, por punir os pecados, podemos evitar, de uma forma, o juízo de Deus, como ele ensina em outro lugar, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados pelo Senhor (1 Coríntios 11.31). Nós não devemos, no entanto, inferir a partir disso, que a humanidade, tomando vingança contra si, compense a Deus por causa do castigo que lhe era devido, para que eles se redimam de sua mão. O caso fica assim - que, como é o desígnio de Deus nos castigar, para nos despertar da nossa falta de cuidado, que, sendo lembrados de seu descontentamento, possamos estar em guarda para o futuro, quando o próprio pecador está de antemão infligindo a punição em si mesmo por sua

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própria vontade, o efeito é, que ele já não tem necessidade de tal admoestação de Deus. Mas pergunta-se, se o Coríntios tinham um olho em Paulo, ou em Deus, nesta vingança, assim como no zelo, e na vontade, e quanto ao demais. Respondo que todas estas coisas são, sob todas as circunstâncias, atendidas sob o arrependimento, mas há uma diferença no caso de um indivíduo pecar secretamente diante de Deus, ou abertamente perante o mundo. Se o pecado de uma pessoa é segredo, é o suficiente que ele tenha essa disposição perante os olhos de Deus; por outro lado, onde o pecado está aberto, é requerida uma manifestação de arrependimento aberta. Assim, os Coríntios, que tinham pecado abertamente e com grande ofensa ao bem, estavam obrigados a dar provas do seu arrependimento por essas evidências.

Unidade na Promulgação do Evangelho - Comentário de Filipenses 1.27

“Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo, para que, ou indo ver-vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que estais firmes em um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica;” (Filipenses 1.27)

“Por modo digno do evangelho”. Nós fazemos uso desta forma de expressão, quando estamos inclinados a passar para um novo assunto. Assim, é como se Paulo tivesse

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dito: "Mas, quanto a mim, o Senhor proverá, mas quanto a vocês, etc, seja o que for que possa ocorrer comigo, que seja o seu cuidado, no entanto, avançar no curso correto." Quando ele fala de um comportamento puro e honrado como sendo digno do evangelho, ele afirma, por outro lado, que aqueles que vivem de outra forma fazem injustiça ao evangelho.

“Ou indo ver-vos”. Como a frase no grego usado por Paulo é elíptica, fiz uso de videam (vejo), em vez de videns (vendo). Se isto parecer não satisfatório, você pode aplicar o verbo principal Intelligam (Eu posso aprender) neste sentido: "se, quando eu for vê-los, ou se estando ausente, em relação à sua condição, que eu possa aprender em ambos os sentidos, tanto por estar presente ou por receber informações, que estão num mesmo espírito." Nós não precisamos, no entanto, ficar ansiosos quanto às condições particulares, quando o significado é evidente.

“Estar firme em um só espírito”. Esta, certamente, é uma das principais excelências da Igreja e, portanto, esta é uma forma de preservá-la em um estado saudável, na medida em que é feita em pedaços por dissensões. Mas, apesar de que Paulo estivesse desejoso por meio desse antídoto para prevenir doutrinas novas e estranhas, ele exige uma dupla unidade - do espírito e da alma. A primeira é o que temos como pontos de vista; e a segunda, que sejamos de um só coração. Porque, quando esses dois termos estão ligados entre si, spiritus (espírito) denota o entendimento, enquanto anima (alma) denota

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a vontade. Ainda mais, o acordo de pontos de vista vem em primeiro lugar em ordem; e, em seguida, a partir dele, surge a união proveniente de nossa inclinação, de nossas disposições interiores relativas ao espírito.

“Lutando juntos pela fé”. Este é o laço mais forte de concórdia, quando temos que lutar juntos sob a mesma bandeira, porque isto tem sido muitas vezes ocasião de conciliar até mesmo os maiores inimigos. Assim, a fim de que ele possa confirmar ainda mais a unidade que existia entre os filipenses, ele lhes chama para perceberem que são companheiros de armas, que, tendo um inimigo comum e uma guerra comum, deveriam ter suas mentes unidas em um acordo santo. A expressão que Paulo fez uso no grego (συναθλοῦντες τὣ πίστει) é ambígua. O antigo intérprete a toma como Collaborantes fidei, (trabalhando em conjunto com a fé). Erasmo o interpreta como Adiuvantes fidem (Ajudando a fé), como significando ajudar a fé para o máximo de seu poder. Como, porém, é feito uso do dativo (objeto indireto) grego em vez do ablativo (instrumental), eu não tenho nenhuma dúvida de que a interpretação autêntica do que diz o Apóstolo é a seguinte: "Deixem que a fé do evangelho lhes una, mais especialmente porque essa é uma armadura comum contra um e o mesmo inimigo." desta forma, a partícula σύν (junto, comum) que outros usam para se referir à fé, eu tomo como referência aos Filipenses, e com maior propriedade, se não me engano. Em primeiro lugar, cada um está ciente de quão eficaz incentivo é a concórdia, quando temos que enfrentar um conflito juntos; e ainda mais, sabemos que na guerra

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espiritual estamos equipados com o escudo da fé (Efésios 6.16), para repelir o inimigo; mais ainda, a fé é tanto a nossa bandeira quanto a nossa vitória. Por isso, ele acrescentou esta frase, para que pudesse mostrar qual é a finalidade de uma união piedosa. Os ímpios, também, conspiram juntos para o mal, mas o seu acordo é amaldiçoado; vamos, portanto, lidar com uma só mente sob a bandeira da fé.

Não se Deixando Intimidar pelos Adversários do Evangelho - Comentário de Filipenses 1.28

“e que em nada estais intimidados pelos adversários. Pois o que é para eles prova evidente de perdição é, para vós outros, de salvação, e isto da parte de Deus.” (Filipenses 1.28)

“E em nada estais intimidados”. A segunda coisa que Paulo recomenda aos Filipenses é a fortaleza de ânimo, para que não pudessem ser lançados em confusão pela ira de seus adversários. Naquela época as perseguições mais cruéis assolavam quase todos os lugares, porque Satanás se esforçou com toda sua força para impedir o início do evangelho, e ficava mais enfurecido na proporção em que Cristo estendia poderosamente a graça de seu Espírito. Ele exorta, por isso, os Filipenses a permanecerem destemidos, e não ficarem alarmados.

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”O que é para eles uma prova manifesta”. Este é o sentido apropriado da palavra grega, e não havia nenhuma razão para que alguns a interpretassem como “causa”. Porque os ímpios, quando em guerra contra o Senhor, já dão pela mesma uma prova do sinal de sua ruína, e quanto mais ferozmente insultam os piedoso, mais se preparam para a própria ruína. A Escritura, com certeza, não ensina em qualquer lugar que as aflições que os santos sofrem de ímpios são a causa de sua salvação, mas Paulo em outra instância, também, fala delas como uma prova clara ou evidência (2 Tessalonicenses 1.5) e em vez de ἔνδειξιν, usado em 2 Tes 1.5, ele faz uso nessa passagem do termo ἔνδειγμα. Isto, portanto, é uma consolação escolhida, que quando somos atacados e perseguidos por nossos inimigos, temos nisto uma evidência da nossa salvação. Porque perseguições são de uma certa maneira selos de adoção para os filhos de Deus, se eles a suportam com coragem e paciência; os ímpios dão, ao contrário, uma evidência ou prova de sua condenação, porque tropeçam numa Pedra pela qual eles devem ser quebrados em pedaços (Mateus 21.44).

“E isto da parte de Deus”. Isto está restrito à última frase, para que o gosto da graça de Deus possa aliviar a amargura da cruz. Ninguém vai perceber naturalmente a cruz como um sinal ou evidência de salvação, pois são coisas que são contrárias na aparência. Por isso Paulo chama a atenção dos Filipenses para uma outra consideração - que Deus por sua bênção transforma em uma ocasião de bem-estar as coisas que de outra forma parecem tornar-nos infelizes. Ele prova a partir disto,

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que o suportar a cruz é o dom de Deus. Agora é certo, que todos os dons de Deus são salutares para nós. Para você, diz ele, é dado, não somente crer em Cristo, mas também sofrer por ele. Por isso mesmo os próprios sofrimentos são evidências da graça de Deus; e, já que é assim, você tem a partir desta fonte uma evidência de sua salvação. Oh, se esta persuasão fosse efetivamente inculcada em nossas mentes - de que as perseguições devem ser contados entre os benefícios de Deus, que grande progresso seria feito na doutrina da piedade! E, ainda, mais certo do que isto é a maior honra que é conferida a nós pela graça divina, que soframos por causa do nome de Cristo, reprovação, ou prisão, ou misérias, ou torturas, ou até mesmo a morte, porque assim ele nos adorna com as suas marcas de distinção.

A Graça de Crer em Cristo e de Sofrer por Ele - Comentário de Filipenses 1.29,30

“29 Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele,

30 pois tendes o mesmo combate que vistes em mim e, ainda agora, ouvis que é o meu.”

29. “Crerdes nele”. Paulo sabiamente conjuga a fé com a cruz por uma conexão inseparável, para que os Filipenses

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pudessem saber que eles foram chamados para a fé de Cristo nesta condição – para que suportassem perseguições por sua causa, como se ele tivesse dito que sua adoção não poderia mais ser separada da cruz, do que Cristo possa ser separado de si mesmo. Aqui, Paulo atesta claramente, que a fé, assim como a constância nas perseguições duradouras, é um dom imerecido de Deus. E, certamente, o conhecimento de Deus é uma sabedoria que é muito elevada para que possa ser atingida pelo nosso próprio entendimento, e nossa fraqueza se revela em exemplos diários em nossa própria experiência, quando Deus retira sua mão por um tempo. Para que Paulo pudesse intimar mais distintamente que ambos são imerecidos, ele diz expressamente - pelo amor de Deus, ou pelo menos que nos são dados no fundamento da graça de Cristo; pelo que ele exclui qualquer ideia de mérito.

Esta passagem também está em desacordo com a doutrina dos escolásticos, que sustentam que os dons da graça ultimamente conferidos são frutos de nosso mérito, com o fundamento de termos feito um uso correto dos que tinham sido anteriormente concedidos. Eu não nego, de fato, que Deus recompensa o uso correto de seus dons de graça concedendo-nos ainda mais graça, contanto que não coloquemos mérito, como eles fazem, em oposição à sua liberalidade imerecida e o mérito de Cristo.

30. “tendo o mesmo combate”. Ele confirma, também, pelo seu próprio exemplo o que tinha dito, e isso não

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acrescenta pouca autoridade à sua doutrina. Pelos mesmos meios, também, ele lhes mostra, que não há nenhuma razão pela qual eles deveriam se sentir atribulados em razão das lutas que eles contemplavam na vida do apóstolo, em prol do evangelho.

O Fruto do Espírito Santo no Crente - Comentário de Gálatas 5.22,23

“22 Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,

23 mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei.”

22. “Mas o fruto do Espírito”. Justamente como havia condenado toda a natureza humana como nada produzindo senão frutos nocivos e indignos, agora Paulo nos diz que todas as virtudes, todas as boas e bem ordenadas afeições procedem do Espírito, ou seja, da graça de Deus e da natureza renovada que recebemos de Cristo. Como se houvera dito: “Nada, senão o mal, procede do homem; nada de bom pode proceder senão do Espírito Santo”. Pois ainda que às vezes surjam nos homens não regenerados notáveis exemplos de nobreza, fidelidade, temperança e generosidade, o fato é que não passam de marcas ilusórias. Curio e Fabricio foram famosos por sua coragem; Cato, por sua temperança; Scipio, por sua bondade e generosidade; Fabio, por sua

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paciência. Mas tudo isso era apenas aos olhos dos homens e como membros da sociedade. Aos olhos de Deus, nada é puro senão o que procede da fonte de toda a pureza.

Não tomo alegria, aqui, no sentido de Romanos 14:17, mas como aquele bom humor (hilaritas) para com nossos companheiros, o qual é o posto de melancolia. Fé é usada para verdade, e é contrastada com astúcia, engano e falsidade. Paz contrasto com rixas e contendas. Longanimidade é a suavidade da mente, a qual nos dispõe a levar tudo com otimismo, não permitindo a suscetibilidade. O restante é óbvio, pois a condição da mente se abre a parte de seu fruto.

Pode-se perguntar, porém, que juízo formaremos dos perversos e idólatras que, não obstante, exigem extraordinária semelhança de virtudes. Pois pelo prisma de suas obras parecem espirituais. Eis minha resposta: nem todas as obras da carne despontam numa pessoa carnal; mas sua carnalidade é exibida por um ou outro vício; assim como uma pessoa não pode ser tida como espiritual pelo prisma de uma única virtude. Às vezes se fará óbvio à luz de outros vícios que a carne reina em tal pessoa; e isso é facilmente visto em todos aqueles a quem mencionamos.

23. “Contra tais coisas não há lei”. Há quem entenda isso como significando simplesmente que a lei não é dirigida contra as boas obras, visto que das boas maneiras têm

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emanado boas leis. Mas a intenção de Paulo é mais profunda e menos óbvia, ou seja: onde o Espírito reina, a lei não mais exerce qualquer domínio. Ao modelar nossos corações segundo sua própria justiça, o Senhor nos liberta da severidade da lei, de modo que não trata conosco segundo o pacto da lei, nem obriga nossas consciências sob sua condenação. Não obstante, a lei continua a exercer seu ofício de ensinar e exortar. Mas o Espírito de adoção nos livra da sujeição a ela devida. Paulo, pois, ridiculariza os falsos apóstolos, os quais forçavam a sujeição à lei, mas que ninguém estava mais ansioso do que eles para livrar-se do jugo dela. Paulo nos diz que a única forma pela qual isso se faz possível é quando o Espírito de Deus assume o domínio. À luz desse fato, segue-se que eles não se preocupavam com a justiça espiritual.

Permanecer na Doutrina para Permanecer em Jesus - Comentário de I João 2.24,25

“24 Permaneça em vós o que ouvistes desde o princípio. Se em vós permanecer o que desde o princípio ouvistes, também permanecereis vós no Filho e no Pai.

25 E esta é a promessa que ele mesmo nos fez, a vida eterna.”

24. “Que permaneça em vós”. João acrescenta uma exortação à doutrina anterior; e para que isto pudesse ter

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mais peso, ele aponta os frutos que receberiam da obediência. Ele, então, exorta-os à perseverança na fé, para que pudessem reter fixamente em seus corações o que tinham aprendido.

Mas, quando ele diz, desde o início, ele não quer dizer que a antiguidade era suficiente para provar qualquer doutrina verdadeira; mas assim como ele já tem mostrado que eles haviam sido corretamente instruídos no puro evangelho de Cristo, ele conclui que eles deveriam continuar no mesmo. E esta ordem deveria ser especialmente observada; porque somos dispostos a divergir daquela doutrina que temos uma vez abraçado, seja ela qual for, e isso não seria perseverança, mas obstinação perversa. Assim, a distinção deveria ser exercida, de modo que a razão da nossa fé possa ser evidenciada a partir da palavra de Deus; então devemos seguir uma perseverança inflexível.

“Desde o princípio ouvistes”. Aqui está o fruto da perseverança - que aqueles em quem a verdade de Deus permanece, permaneçam em Deus. Nós, portanto, aprendemos o que devemos procurar em cada verdade relativa à religião. Faz, portanto, a maior proficiência, quem faz tal progresso estando completamente apegado a Deus. Mas em quem o Pai não habita através de seu Filho, é completamente fútil e vazio, qualquer conhecimento que ele possa possuir sobre religião. Além disso, esta é a mais alta comenda da sã doutrina, a qual nos une a Deus, e que nela se encontra tudo o que diz respeito à verdadeira fruição de Deus.

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Em último lugar, João nos lembra que isto é a verdadeira felicidade, quando Deus habita em nós. As palavras que ele usa são ambíguas. Elas podem ser interpretadas: "Esta é a promessa que ele nos prometeu a vida eterna." Você pode, no entanto, adotar qualquer uma destas interpretações, porque o significado ainda é o mesmo. A suma do que é dito é que não podemos viver, exceto em nutrir até o fim a semente da vida semeada em nossos corações. João insiste muito sobre este ponto, que não somente o começo de uma vida abençoada deve ser encontrada no conhecimento de Cristo, mas também a sua perfeição. Mas nenhuma repetição disto será demais, desde que é sabido que isto tem sido sempre a causa de ruína para os homens, que estando, não contentes com Cristo, eles têm tido um desejo para vaguear além da simples doutrina do evangelho.

O Espírito Santo nos Guia na Verdade Doutrinária - Comentário de I João 2.26-29

“26 Isto que vos acabo de escrever é acerca dos que vos procuram enganar.

27 Quanto a vós outros, a unção que dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensina todas as

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cousas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensinou.

28 Filhinhos, agora, pois, permanecei nele, para que, quando ele se manifestar, tenhamos confiança e dele não nos afastemos envergonhados na sua vinda.

29 Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele.”

26. “Estas coisas vos escrevi”. O próprio apóstolo se desculpa novamente por ter admoestado aqueles que eram bem dotados de conhecimento e julgamento. Mas ele fez isso, para que eles pudessem se aplicar à orientação do Espírito Santo, para que sua admoestação não fosse em vão; como se ele tivesse dito: "Eu, na verdade faço a minha parte, mas ainda é necessário que o Espírito de Deus deve encaminhá-los em todas as coisas; em vão seria até o som da minha voz, batendo nos seus ouvidos, ou melhor, o ar, a menos que ele fale dentro de vocês."

Quando ouvimos que ele escreveu a respeito de sedutores, devemos ter sempre em mente, que é o dever de um bom e diligente pastor, não somente reunir um rebanho, mas também afugentar os lobos; porque do que adiantaria proclamar o evangelho puro, se formos coniventes com as imposturas de Satanás? Ninguém, então, pode ensinar fielmente à Igreja, a não ser que ele seja diligente em banir erros, sempre que encontrá-los espalhados por sedutores. O que ele diz sobre a “unção que dele recebestes”, eu o aplico a Cristo.

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27. “E não tendes necessidade de que alguém vos ensine”. Deve ter sido o propósito de João, como eu já disse, se ele pretendia apresentar o ensino como sendo inútil. Ele não lhes atribui tanta sabedoria, como para negar que eles fossem estudiosos de Cristo. Ele só quis dizer que eles não eram de nenhuma forma tão ignorantes como se precisassem que as coisas desconhecidas lhes fossem ensinadas, porque ele não colocou diante deles qualquer coisa, que o Espírito de Deus não pudesse lhes sugerir de si mesmo. Absurdamente, então, agem os homens fanáticos leigos que usam essa passagem, com o fim de excluir da Igreja o uso do ministério externo (que chamam de leigo). Ele diz que o fiéis, ensinados pelo Espírito, já entenderam o que ele lhes entregou, porque eles não tinham necessidade de aprender coisas desconhecidas para eles. Ele disse isso, para que pudesse acrescentar mais autoridade à sua doutrina, enquanto cada um a recebendo em seu coração, a gravasse como se fosse pelo dedo de Deus. Mas, como cada um tinha conhecimento de acordo com a medida de sua fé, e como a fé em alguns era pequena, e em outros mais forte, e em nenhum era perfeita, portanto, segue-se que ninguém sabia tanto, que não houvesse espaço para o progresso.

Há também um outro uso para ser feito desta doutrina, - que quando os homens realmente entendem o que é necessário para eles, ainda devemos adverti-los e despertá-los, para que possam ser mais confirmados. Por que o que João diz que eles foram ensinados sobre todas as coisas pelo Espírito, não deve ser

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tomado genericamente, mas deve ser limitado ao que está contido nessa passagem. Ele tinha, em suma, nenhuma outra coisa em vista senão fortalecer a fé deles, enquanto ele lhes lembrou do exame do Espírito, que é o único corretor e aprovador de doutrina, que a sela em nossos corações, para que possamos conhecer com certeza o que Deus fala. Por enquanto a fé deve olhar para Deus, somente ele pode ser um testemunho de si mesmo, de modo a convencer os nossos corações que o que nossos ouvidos recebem tem vindo dele.

E o mesmo é o significado dessas palavras, “como a sua unção ensina todas as coisas”, e é verdade; isto é, o Espírito é como um selo, pelo qual a verdade de Deus é testificada a você. Quando ele acrescenta, “e não é falsa”, ele aponta outro ofício do Espírito, pois ele nos reveste com julgamento e discernimento, para que não sejamos enganados por falsidades, para que não hesitemos e fiquemos perplexos, para que não vacilemos em coisas duvidosas.

“Permanecei nele, como também ela vos ensinou”. Ele tinha dito, que o Espírito habitava neles; agora ele os exorta a permanecerem na revelação feita por ele, e especifica que revelação era, "permanecei", diz ele, "em Cristo, conforme o Espírito Santo vos ensinou." Outra explicação, eu sei, é comumente dada: “Permanecei nela", isto é, na unção. Mas, como a repetição que se segue imediatamente, não pode ser aplicada a qualquer outro, senão a Cristo, eu não tenho nenhuma dúvida de que ele fala aqui também de Cristo; e isso é exigido pelo

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contexto; porque o Apóstolo discorre muito sobre este ponto, que os fiéis devem reter o verdadeiro conhecimento de Cristo, e que eles não devem ir a Deus de qualquer outra forma.

Ele, ao mesmo tempo mostra, que os filhos de Deus são iluminados pelo Espírito, para nenhum outro fim, senão para que possam conhecer a Cristo. Providenciando para que eles não se desviassem dele, ele lhes prometeu o fruto da perseverança, mesmo da confiança, de modo a não terem vergonha na sua presença. Pois a fé não é uma nua e fria apreensão de Cristo, mas um sentimento vivo e real do seu poder, que produz confiança. De fato, a fé não pode permanecer, enquanto jogada diariamente por tantas ondas, senão somente por se esperar a vinda de Cristo, e, apoiado por seu poder, isto traz tranquilidade à consciência. Mas a natureza da confiança é bem expressada, quando ele diz que ela pode corajosamente sustentar a presença de Cristo. Pois aqueles que se entregam de forma segura aos seus vícios, viram as costas para Deus; e nem podem de outra forma obter a paz do que por esquecê-lo. Esta é a segurança da carne, que entorpece os homens; para que se afastando de Deus, nunca tenham medo do pecado, nem da morte; enquanto evitam o tribunal de Cristo. Mas uma piedosa confiança encanta o olhar para Deus. Por isso, é que os santos calmamente esperam por Cristo, nem temem a sua vinda.

29. “Se sabeis que ele é justo”. Ele passa novamente às exortações, para que ele as misture continuamente com

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a doutrina em toda a Epístola; mas ele prova por muitos argumentos que a fé é necessariamente conectada com uma vida santa e pura. O primeiro argumento é que somos gerados espiritualmente à semelhança de Cristo; que daí resulta, que ninguém nasce de Cristo, senão aquele que vive em retidão. É ao mesmo tempo incerto se ele quer dizer Cristo ou Deus, quando ele diz que os que nascem dele praticam a justiça. É um modo de falar certamente utilizado nas Escrituras, que nascemos de Deus em Cristo; mas não há nada inconsistente em dizer também, que aqueles que são nascidos de Cristo, são aqueles que são renovados por seu Espírito.

O Amor de Deus por Israel - Comentário de Oseias 11:1

“Quando Israel era um menino, eu o amei, e chamei meu filho do Egito” (Oseias 11.1)

Deus, aqui, protesta contra o povo de Israel por causa da ingratidão. A obrigação deles era dupla, pois Deus lhes adotara desde o início, quando não havia nenhum mérito ou valor no povo. De fato, era outra a sua condição, ao ser emancipado dos seus trabalhos servis no Egito? Indubitavelmente, eles pareciam, então, como um homem meio morto ou uma ossada podre; pois não possuíam vigor algum remanescente neles. O Senhor, pois, estendeu sua mão ao povo quando esse estava em tal desesperado estado, puxou-o, por assim dizer, do

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túmulo, e restaurou-o da morte para a vida. Porém, em segundo lugar, não reconheciam isso como um tão maravilhoso favor de Deus, senão que, logo depois, petulantemente, deram as costas a ele. Que impiedade foi essa, e quão vergonhosa imoralidade, dar as costas, assim, ao autor da vida e da salvação deles? O Profeta, portanto, realça o pecado e a vileza do povo com esta circunstância, que o Senhor lhes amara ainda na infância; quando, ele diz, Israel ainda era uma criança, eu o amei. O nascimento do povo foi sua saída do Egito. O Senhor, deveras, celebrara seu concerto com Abraão quatrocentos anos antes; e, como sabemos, os patriarcas também foram reputados por ele como seus filhos: mas Deus queria que sua Igreja fosse, por assim dizer, extinta, quando a redimiu. Desse modo, a Escritura, quando fala da libertação do povo, amiúde se refere àquela mercê divina como que de alguém trazido para o mundo. Não é, por conseguinte, sem razão que o Profeta lembra o povo, aqui, de que esse fora amado quando na meninice. A prova de tal amor era que fora trazido do Egito. O amor precedera, como a causa vem sempre antes do efeito.

Mas o Profeta expande o argumento: Eu amei Israel, precisamente quando ele ainda era uma criança; eu o chamei do Egito; ou seja: “Eu não somente o amei quando criança, mas, antes que tivesse nascido, eu comecei a amá-lo; pois a libertação do Egito foi o nascimento, e meu amor precedeu esse. Então, fica claro que o povo havia sido amado por mim, antes que viesse à luz; pois o Egito era como uma tumba sem qualquer centelha de vida; e a condição miserável em que esse

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povo se encontrava era pior do que duzentas mortes. Então, ao chamar meu povo do Egito, eu provei que meu amor foi gratuito, antes deles nascerem”. O povo, por isso, era menos desculpável quando retribuiu a Deus com uma tão indigna recompensa, visto que esse tinha, anteriormente, conferido seu livre favor sobre eles. Compreendemos, agora, o sentido dado pelo Profeta.

Mas aqui se levanta uma questão difícil; pois Mateus, no capítulo segundo, acomoda essa passagem à pessoa de Cristo. Aqueles que não são bem versados na Escritura, confiantemente, aplicam esse ponto a Cristo; todavia, o contexto se opõe a isso. Por esse motivo, ocorreu de os escarnecedores haverem tentado perturbar toda a religião de Cristo, como se o Evangelista tivesse aplicado erroneamente a declaração do Profeta. Dão uma resposta mais conveniente aqueles que dizem que, nesse caso, há somente uma comparação: como quando uma passagem de Jeremias é citada em outro lugar, quando a crueldade de Herodes - o qual se enraiveceu contra todos os infantes de seu domínio, abaixo de dois anos de idade - é mencionada: “Raquel, chorando por seus filho, não quis receber consolação, porque eles não mais existem” (Jer 31.15). O Evangelista diz que tal profecia foi cumprida (Mt 2.18). Mas é certo que o objetivo de Jeremias era outro; contudo, nada impede que tal declaração seja aplicada ao que Mateus relata. Assim entendem essa passagem. Não obstante, penso que Mateus tenha considerado mais profundamente o propósito de Deus ao ter levado Cristo para o Egito, bem como seu retorno posterior à Judeia. Em primeiro lugar,

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deve ser lembrado que Cristo não pode ser separado de sua Igreja, visto que o corpo ficará mutilado e imperfeito sem uma cabeça. Tudo o que ocorreu outrora à Igreja, devia, por fim, ser cumprido pela cabeça. Isso é uma coisa. Então, não há dúvida alguma de que Deus, em sua maravilhosa providência, tencionava que seu Filho partisse do Egito para que fosse um redentor para os fiéis; e, dessa forma, ele indica que uma libertação verdadeira, real e perfeita foi, finalmente, efetuada, quando o Redentor prometido surgiu. Foi, pois, o pleno nascimento da Igreja quando Cristo partiu do Egito para redimi-la. Assim, em minha opinião, é insípido demais aquele comentário que adota a ideia de que Mateus fez apenas uma comparação. Pois convém a nós considerar isto, que Deus, quando dantes resgatou seu povo do Egito, somente provou, através de um indiscutível prêmio, a redenção que ele protelou até a vinda de Cristo. Por isso, como o corpo foi, pois, trazido do Egito para a Judeia, assim, finalmente, a cabeça também saiu do Egito: e, então, Deus revelou plenamente ser ele o verdadeiro libertador de seu povo. Eis, então, o significado. Mateus, portanto, com a maior propriedade, acomoda essa passagem a Cristo, que Deus amou seu Filho desde sua primeira infância e o chamou do Egito. Ao mesmo tempo, sabemos que Cristo é denominado o Filho de Deus em um aspecto diferente do povo de Israel; pois a adoção fez dos filhos de Abraão os filhos de Deus, mas Cristo é, por natureza, o unigênito Filho de Deus. Contudo, a dignidade dele deve permanecer na cabeça, para que o corpo continue em seu estado inferior. Não há, pois, nada incoerente nisso. Porém, quanto à

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acusação de ingratidão, que tão grande mercê de Deus não fosse reconhecida, isso não pode ser adaptado à pessoa de Cristo, como bem conhecemos; tampouco é necessário, nesse sentido, aludir a ele; pois vemos, a partir de outros lugares, que nem tudo que é dito de Davi, do sumo sacerdote ou da posteridade davídica se aplica a Cristo; apesar de terem sido tipos de Cristo. Porém, há sempre uma grande diferença entre a realidade e seus símbolos.

A Verdade Revelada por Deus ao Seu Povo - Comentário do Salmo 78.1,2 “1 Escutai, povo meu, a minha lei; prestai ouvidos às palavras da minha boca.

2 Abrirei os lábios em parábolas e publicarei enigmas dos tempos antigos.”

Para compreender muitas coisas dentro de pouco espaço deve-se observar que neste Salmo há dois tópicos principais. Por um lado, declara-se como Deus adotou para si a Igreja, oriunda da posteridade de Abraão, quão terna e graciosamente ele cuidou dela, quão maravilhosamente ele a tirou do Egito e quão variadas foram as bênçãos que ele lhe outorgou. Por outro lado, os judeus, que lhe eram tão devedores pelas grandes

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bênçãos que ele lhes conferira, são censurados por terem de tempo em tempo perversa e traiçoeiramente se revoltado contra um Pai tão liberal; de modo que sua inestimável bondade foi claramente manifesta, não só em havê-los outrora adotado tão graciosamente, mas também em continuar no curso ininterrupto de sua bondade, tudo fazendo contra a rebelião de um povo tão pérfido e contumaz. Além disso, faz-se menção da renovação da graça de Deus, e como foi de uma segunda eleição que ele escolheu a Davi, da tribo de Judá, para alçar o cetro sobre o reino de Israel.

“Dai ouvidos a minha lei, povo meu!” Por todo o Salmo podemos conjeturar, com boa probabilidade, que ele foi escrito muito depois da morte de Davi; pois aí temos celebrado o reino erigido por Deus na família de Davi. Aí também a tribo de Efraim, a qual lemos ter sido rejeitada, é contrastada e posta em oposição à casa de Davi. Disto é evidente que as dez tribos estavam naquele tempo em estado de separação do restante do povo eleito; porque deve haver alguma razão pela qual o reino de Efraim é estigmatizado com o estigma da desonra como sendo ilegítimo e bastardo.

Quem quer que tenha sido o escritor inspirado deste Salmo, ele não introduziu Deus falando como alguns imaginam, mas ele mesmo se dirige aos judeus no caráter de mestre. Não há objeção quanto ao fato de ele chamar o povo de meu povo e a lei, minha lei; não sendo algo incomum que os profetas tomavam por empréstimo o nome daquele por quem eram enviados, para que sua

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doutrina desfrutasse de maior autoridade. Aliás, a verdade que lhes havia sido confiada pode, com propriedade, ser chamada sua. Assim Paulo, em Romanos 2.16, se gloria no evangelho como sendo meu evangelho, expressão essa que não deve ser entendida como significando que ele [o evangelho] era um sistema que devia sua origem a ele [Paulo], mas que ele era meramente pregador e testemunha dele. E tenho dúvidas se os intérpretes estão estritamente certos em traduzir a palavra hrwt, torah, por lei. O significado dela parece ser um tanto mais geral, como transparece da sentença seguinte, onde o salmista usa a frase: as palavras de minha boca, no tempo sentido. Se considerarmos com que intenção mesmo aqueles que fazem veementes confissões de por serem discípulos de Deus ouvem sua voz, ficaremos admirados com o fato de que os profetas tivessem boa razão para introduzir suas lições de instruções com uma solene chamada de atenção. É verdade que ele não se dirige aos obstinados que não se deixam instruir, que teimosamente recusam submeter-se à Palavra de Deus; mas como até mesmo os verdadeiros crentes geralmente são tão relutantes em receber instrução, esta exortação, longe de ser supérflua, era muitíssimo necessária para curar a indolência e inatividade entre eles.

Para assegurar uma atenção mais firme, ele declara ser seu propósito discutir temas de um caráter profundo, elevado e difícil. A palavra lXm mashal, a qual traduzi por parábola, denota sentenças graves e notáveis, tais como adágios, provérbios e apotegmas. Como, pois, a própria

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questão que temos tratado, se é de peso e importante, desperta a mente dos homens, a pena inspirada afirma que é seu propósito pronunciar somente sentenças notáveis e ditos extraordinários. A palavra twdyx, chidoth, a qual, seguindo a outros, traduzi por enigmas, é aqui usada não tanto para sentenças obscuras, mas para ditos que são enfatizados e dignos de nota especial. Ele não pretendia encerrar seu cântico com linguagem ambígua, mas clara e distintamente conservar tanto os benefícios de Deus quanto a gratidão do povo. Como eu já disse, seu desígnio é apenas estimular seus leitores a pensarem e considerarem mais atentamente o tema proposto. Esta passagem é citada por Mateus 13.35 e aplicada à pessoa de Cristo quando ele manteve a mente do povo em suspenso através de parábolas às quais não podiam entender. O objetivo de Cristo, de agir assim, era provar que ele era um Profeta de Deus distinto dos demais, e que assim pudesse ser recebido com maior reverência. Visto que ele então se assemelhava a um profeta por pregar mistérios sublimes num estilo de linguagem acima do gênero comum, isso que o escritor sacro afirma aqui acerca de si mesmo é com propriedade transferido para ele [Cristo]. Se neste Salmo resplandece uma majestade tal que com razão incita e inflama os leitores com o desejo de aprender, deduzimos disto com que solícita atenção ele nos faz receber o evangelho, no qual Cristo nos abre e nos exibe os tesouros de sua celestial sabedoria.

O Único Cordeiro Sacrificado que Tira o Pecado do Mundo - Comentário de João 1.29

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“No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1.29)

No dia seguinte”. Não pode haver dúvida de que João já havia falado sobre a manifestação do Messias; mas quando Cristo começou a aparecer, ele desejou que o anúncio dele fosse rapidamente conhecido, e o tempo havia chegado no qual Cristo poria fim ao ministério de João, assim como, quando o sol se levanta, e a aurora desaparece. Depois de ter testemunhado aos sacerdotes que foram enviados a ele, sobre Aquele no qual deveriam buscar a verdade e o poder de batizar com o Espírito Santo, já se achava presente, e João estava conversando no meio do povo, e no dia seguinte, ele apontou Jesus à vista de todos. Porque esses dois atos, um após o outro, em rápida sucessão, devem ter afetado poderosamente suas mentes. Esta também é a razão por que Cristo apareceu na presença de João.

“Eis o Cordeiro de Deus”. O principal ofício de Cristo é breve e claramente indicado; que tira os pecados do mundo pelo sacrifício da sua morte, e reconcilia os homens com Deus. Existem outros favores, de fato, que Cristo nos concede, mas este é o principal favor, e o resto depende disso; que, por apaziguar a ira de Deus contra o pecado, faz com que sejamos contados como santos e justos. Porque a partir desta fonte fluem todos os rios de bênçãos, que, por não imputar os nossos pecados, ele nos recebe em seu favor. Assim, João, a fim de nos conduzir

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a Cristo, começa com o perdão gratuito dos pecados que nós obtemos através dele.

Pela palavra Cordeiro ele alude aos antigos sacrifícios da Lei. Ele tinha que tratar com os judeus que, tendo sido acostumados a sacrifícios, não poderiam ser instruídos sobre a expiação dos pecados de qualquer outra forma que não fosse por meio de um sacrifício. Como havia diversos tipos deles, ele apresenta um, por uma figura de linguagem, para representar o todo; e é provável que João tenha feito alusão ao cordeiro pascal. Deve-se observar, em geral, que João empregou este modo de expressão, que era melhor adaptado para instruir os judeus, e possuía uma força maior; assim como em nossos próprios dias, em consequência do batismo ser geralmente praticado, nós entendemos melhor o que se refere à obtenção do perdão dos pecados através do sangue de Cristo, quando nos dizem que somos lavados e purificados por ele de nossas poluições. Ao mesmo tempo, como os Judeus comumente tinham noções supersticiosas sobre os sacrifícios, ele corrige essa falha, lembrando-lhes o objeto para o qual todos os sacrifícios foram dirigidos. Foi um abuso muito perverso da instituição dos sacrifícios, que eles tivessem fixado a sua confiança nos sinais exteriores; e, portanto, João, apontando para Cristo, testificou que ele é o Cordeiro de Deus; pelo que se entende que todos os sacrifícios, que os judeus estavam acostumados a oferecer nos termos da Lei, não tinham poder algum para expiar os pecados, mas que eles eram apenas figuras, da verdade que foi manifestada em Cristo.

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“Que tira o pecado do mundo”. Ele usa a palavra pecado no singular, para qualquer tipo de iniquidade; como se tivesse dito, que todo tipo de injustiça que aliena os homens de Deus são afastadas por Cristo. E quando ele diz, o pecado do mundo, ele estende esse favor indiscriminadamente a toda a raça humana; para que os judeus não pensassem que ele tinha sido enviado somente a eles. Mas daí podemos inferir que o mundo inteiro está envolvido na mesma condenação; e que, assim como todos os homens sem exceção, são culpados de injustiça diante de Deus, eles precisam se reconciliar com ele. João Batista, pois, falando genericamente do pecado do mundo, tinha por propósito incutir em nós a convicção de nossa própria miséria, e nos exorta a buscar o remédio. Agora é nosso dever, abraçar o benefício que é oferecido a todos, que cada um de nós possa ser convencido de que não há nada para nos impedir de obter a reconciliação em Cristo, desde que venhamos a ele pela orientação da fé.

Uma Fé Que Não Foi Confirmada - Comentário de João 2.23

“23 Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome;

24 mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos.

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25 E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana.”

(O comentário dos versos 24 e 25 está registrado em outro texto com título alusivo aos mesmos)

3. “Muitos acreditaram”. O evangelista liga adequadamente esta narrativa com a anterior. Cristo não tinha dado o sinal que os judeus lhe solicitaram; e agora, quando ele não produziu qualquer bom efeito sobre eles por muitos milagres - exceto que eles entretiveram uma fé fria, que era apenas a sombra da fé - este evento prova suficientemente que não mereciam que ele atendesse aos seus desejos. Isto foi, de fato, alguns frutos dos milagres, que muitos viessem a acreditar em Cristo e em seu nome, assim como professar que desejavam seguir a sua doutrina; porque a palavra “nome” é usada aqui em lugar de “autoridade”. Este aspecto da fé, que até então era inútil, poderia vir a ser transformado em verdadeira fé, e poderia ser uma útil preparação para celebrar o nome de Cristo; e ainda o que temos aqui escrito, é verdade, pois eles estavam longe de ter bons sentimentos, de modo a serem beneficiados com as obras de Deus, como deveriam ter feito.

No entanto, esta não era uma fé fingida pela qual eles desejavam ganhar reputação entre os homens; pois eles estavam convencidos de que Cristo era algum grande Profeta, e talvez até mesmo atribuíram-lhe a honra de ser o Messias, em relação a quem havia naquela época uma forte e geral expectativa. Mas, como eles não

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entenderam o ofício peculiar do Messias, sua fé era um absurdo, porque estava exclusivamente direcionada para o mundo e as coisas terrenas. Foi também uma crença fria, e desacompanhada dos verdadeiros sentimentos do coração. Porque hipócritas não aderem ao Evangelho, para que possam se dedicar em obediência a Cristo, nem com aquela sincera piedade para que possam seguir a Cristo quando ele lhes chama, mas porque não se aventuram a rejeitar totalmente a verdade que eles conhecem, e especialmente quando não encontram razão para se oporem a ele. Porque, assim como eles voluntariamente, ou de comum acordo, fazem guerra contra Deus, por isso, quando percebem que sua doutrina é contrária à carne e aos seus desejos ímpios, eles ficam imediatamente ofendidos, ou, pelo menos, retiram-se da fé que já tinham abraçado.

Quando o evangelista diz, portanto, que aqueles homens “creram”, eu não entendo isto como se eles tivessem uma fé que não existia, mas que foram, de alguma forma constrangidos a se alistarem como seguidores de Cristo; e, no entanto, parece que a sua fé não era verdadeira e genuína, porque Cristo os excluiu do número daqueles cujos sentimentos eram verdadeiros. Além disso, aquela fé dependia apenas de milagres, e não tinha raízes no Evangelho e, portanto, não poderia ser estável ou permanente. Os milagres, ajudam de fato, os filhos de Deus a chegarem à verdade; mas não correspondem à crença real, quando eles admiram o poder de Deus, a fim de crer meramente que isto é verdade, mas não para se submeterem inteiramente a ele, e, portanto, quando

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falamos genericamente sobre a fé, saibamos que há um tipo de fé que é percebida pelo entendimento apenas, e depois desaparece rapidamente, porque ela não é fixada no coração; e é a fé a que Tiago chama de morta; mas a verdadeira fé sempre depende do Espírito de regeneração (Tiago 2.17, 20, 26). Observe-se, que nem todos obtêm um igual benefício com as obras de Deus; porque alguns são conduzidos por elas a Deus, e os outros só são movidos por um impulso cego, assim que, embora eles percebam realmente o poder de Deus, ainda não deixam de vaguear em suas próprias imaginações.

Jesus e Nicodemos - Comentário de João 3.1

“Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus.” (João 3.1)

“Ora, havia um homem dos fariseus”. Na pessoa de Nicodemos o Evangelista exibe agora, a nosso ver, quão vã e passageira era a fé daqueles que, tendo sido animados por milagres, de repente, professavam ser discípulos de Cristo. Pois desde que este homem era da ordem dos fariseus, e ocupava o posto de um governante em seu país, ele deve ter sido muito mais excelente do que outros. As pessoas comuns, em sua maior parte, são superficiais e instáveis; mas quem não teria pensado que aquele que era letrado e experiente era também um homem sábio e prudente? No entanto, da resposta de Cristo é evidente, que nada estava mais distante do seu

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propósito em ter vindo a este mundo, do que uma pretensão de aprender os primeiros princípios da religião. Se ele, que era um príncipe entre os homens é menos do que uma criança, o que deveríamos pensar da multidão em geral? Agora, embora o desígnio do Evangelista tenha sido o de exibir, como em um espelho, quão poucos houve em Jerusalém que estavam corretamente dispostos para receber o Evangelho, ainda, por outras razões, esta narrativa é muito útil para nós; e especialmente porque nos instrui sobre a natureza depravada do homem, sobre o que é a entrada correta na escola de Cristo, e qual deve ser o início do nosso treinamento para fazer progressos na doutrina celeste. Porque a suma do discurso de Cristo é, que, a fim de que possamos ser seus verdadeiros discípulos, devemos nos tornar homens novos. Mas, antes de prosseguir mais adiante, temos de confirmar pelas circunstâncias que são aqui descritas pelo Evangelista, quais foram os obstáculos que impediram Nicodemos de entregar-se sem reservas a Cristo.

“Dos fariseus”. Esta designação era, sem dúvida, estimada por seus conterrâneos como honrosa para Nicodemos; mas não é por uma questão de honra que isto lhe é atribuído pelo evangelista, que, ao contrário, chama a nossa atenção, para o que o impediu de vir voluntária e alegremente a Cristo. Por isso, somos lembrados que os que ocupam uma posição elevada no mundo são, em sua maioria, envolvidos por muitas armadilhas perigosas; não, vemos muitos deles tão firmemente empenhados, e nem mesmo o menor desejo

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ou oração surge a partir deles para o céu ao longo de toda sua vida. Por que eles foram chamados fariseus temos explicado em outra parte; porque se gabavam de serem os únicos expositores da Lei, como se estivessem na posse, do cerne e do sentido escondido da Escritura; e por essa razão eles se chamavam phrvsym (Perushim). Embora os essênios levassem uma vida mais austera, que granjeou-lhes uma grande reputação de santidade; ainda porque, como eremitas, abandonaram a vida cotidiana e os costumes dos homens, a seita dos fariseus era tida em estima mais elevada. Além disso, o Evangelista menciona não somente que Nicodemos era da ordem dos fariseus, mas que ele era um dos governantes de sua nação.

Os Verdadeiros Mestres da Palavra de Deus - Comentário de João 3.2

“Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.” (João 3.2)

“Ele veio a Jesus à noite”. A partir da circunstância de sua vinda à noite inferimos que sua timidez era excessiva; porque seus olhos estavam deslumbrados, por assim

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dizer, pelo esplendor da sua própria grandeza e reputação. Talvez ele também foi prejudicado pela vergonha, pois homens ambiciosos pensam que a sua reputação será completamente arruinada, uma vez que tiverem descido da dignidade dos mestres para o posto de alunos; e ele estava, sem dúvida, inchado com um parecer tolo de seu conhecimento. Em suma, como ele tinha uma opinião elevada de si mesmo, ele não estava disposto a perder uma parte da sua altura. E, no entanto, aparecem nele algumas sementes de piedade; por ter ouvido que um Profeta de Deus tinha aparecido, ele não desprezou ou rejeitou a doutrina que tem sido trazida do céu, e é movido por um desejo de obtê-la, - um desejo que surgiu a partir de nada mais do que do temor e reverência a Deus. Muitos estão deliciados com uma ociosa curiosidade de perguntar ansiosamente sobre qualquer coisa que é nova, mas não há nenhuma razão para duvidar que foi um princípio religioso e sentimento consciente que animaram em Nicodemos o desejo de obter um conhecimento mais íntimo da doutrina de Cristo. E, apesar daquela semente ter permanecido muito tempo oculta e aparentemente morta, todavia, após a morte de Cristo rendeu frutos, como nenhum homem jamais teria esperado, como podemos ver em João 19.39.

O Novo Nascimento Faz Ver o Reino de Deus - Comentário de João 3.3

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“A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” (João 3.3)

“Em verdade, em verdade te digo”. A palavra verdade (amém) é duas vezes repetida, e isto é feito com a finalidade de provocar uma atenção mais séria. Pois, quando Jesus estava prestes a falar sobre o mais importante de todos os assuntos, ele achou necessário despertar a atenção de Nicodemos, que poderia ter passado por todo esse discurso de uma forma desatenciosa ou descuidada. Tal, então, é o desígnio da dupla afirmação.

Embora esse discurso pareça ser muito forçado e quase inapropriado, todavia foi com a máxima propriedade que Cristo abriu seu discurso desta maneira. Porque, assim como é inútil semear em um campo que não tenha sido preparado pelo trabalho do lavrador, de igual modo é sem propósito espalhar a doutrina do Evangelho, se a mente não tiver sido previamente subjugada e devidamente preparada para a docilidade e obediência. Cristo viu que a mente de Nicodemos estava cheia de muitos espinhos, sufocada por muitas ervas daninhas, de modo que não havia praticamente nenhum espaço para a doutrina espiritual. Esta exortação, portanto, se assemelhava a um arado para purificá-lo, para que nada pudesse impedi-lo de ser beneficiado com a doutrina. Lembremos que isto foi falado a um indivíduo, de tal modo que o Filho de Deus se dirige a todos nós diariamente na mesma linguagem. Pois qual de nós irá

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dizer que é tão livre de afeições pecaminosas que não precisa de uma tal purificação? Se, portanto, queremos fazer um bom e útil progresso na escola de Cristo, aprendamos a partir deste ponto.

“A menos que um homem nasça de novo”. Ou seja, desde que és destituído daquilo que é da maior importância no reino de Deus, eu me importo pouco com o teres me chamando de Mestre; porque a primeira entrada no reino de Deus é, tornar-se um novo homem. Mas, como esta é uma notável passagem, será adequado examinar todas as partes da mesma minuciosamente.

Ver o reino de Deus é o mesmo que entrar no reino de Deus, como vamos perceber imediatamente a partir do contexto. Mas estão enganados aqueles que supõem que o reino de Deus significa Céu; porque; pelo contrário, significa a vida espiritual, que é iniciada pela fé neste mundo, e aumenta gradualmente a cada dia de acordo com o contínuo progresso da fé. Assim, o significado é que nenhum homem pode ser verdadeiramente unido à Igreja, de modo a ser contado entre os filhos de Deus, até que ele tenha sido previamente renovado. Esta expressão mostra brevemente o que é o início do cristianismo, e ao mesmo tempo nos ensina que nascemos exilados e totalmente alienados do reino de Deus, e que há um perpétuo estado de variação entre Deus e nós, até que ele nos faz completamente diferentes pelo nosso novo nascimento; porque a declaração é geral, e abrange toda a raça humana. Se Cristo tivesse dito a uma pessoa, ou para alguns indivíduos, que não

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poderiam entrar no céu, a menos que tivessem sido previamente nascidos de novo, podemos supor que se trataria apenas de certos indivíduos que foram designados, mas ele fala de todos, sem exceção; porque a linguagem é ilimitada, e é da mesma importância de termos universais, como estes: Quem não nascer de novo não pode entrar no reino de Deus.

Pela frase nascer de novo não se expressa a correção de uma parte, senão a renovação de toda a natureza. Daí segue-se que nada há em nós que não seja pecaminoso; pois, se a reforma é necessária ao todo e em cada parte, a corrupção deve ter sido espalhada por toda parte. Sobre este ponto em breve teremos ocasião de falar mais detalhadamente. Erasmo, adotando a opinião de Cirilo, tem indevidamente traduzido o advérbio anothen, como “do alto”, e torna a frase assim: se alguém não nascer do alto. A palavra grega, é ambígua; mas sabemos que Cristo conversou com Nicodemos na língua hebraica. Não teria, então, havido espaço para a ambiguidade que ocasionou o erro de Nicodemos e levou-o a escrúpulos infantis sobre um segundo nascimento da carne. Ele, portanto, entendeu que Cristo teria dito nada mais do que, que um homem deve nascer de novo, antes que ele seja admitido no reino de Deus. Ou seja, pela resposta que dera, com certeza ele ouviu Cristo dizer nascer de novo, e não nascer do alto.

Não se Entende o que é Espiritual com a Mente Natural - Comentário de João 3.4

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“Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (João 3.4)

“Como pode um homem nascer, sendo velho?” Embora a forma de expressão que Cristo empregou não estivesse contida na Lei e nos profetas, ainda assim, como a renovação é frequentemente mencionada nas Escrituras, e é um dos primeiros princípios da fé, torna-se evidente quão imperfeitamente hábeis eram os Escribas naquela época na leitura das Escrituras. Isto certamente não se deu apenas com Nicodemos, que fosse culpado por não saber o que significava a graça da regeneração; mas com quase todos que dedicavam a sua atenção às sutilezas inúteis, e o que era de maior importância na doutrina da piedade era desconsiderado. O papado exibe para nós, nos dias atuais, uma instância do mesmo tipo em seus teólogos. Por enquanto eles gastam toda a sua vida com especulações profundas, como a tudo o que se refere estritamente à adoração a Deus, à esperança confiante de nossa salvação, ou aos exercícios da religião, eles não sabem mais sobre estes assuntos do que um sapateiro ou um vaqueiro sabe sobre o curso das estrelas; e, ainda mais, tendo prazer em mistérios estranhos, eles desprezam abertamente a verdadeira doutrina da Escritura como indigna da posição elevada, que pertence a eles como mestres. Não precisamos nos surpreender, portanto, em encontrar Nicodemos tropeçando em uma palha; pois é uma justa vingança de Deus, que os que se julgam os mais elevados e mais excelentes professores, e em cuja estima a comum simplicidade da doutrina é vil e

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desprezível, fiquem maravilhados com pequenos assuntos.

Nascer da Água e do Espírito Santo - Comentário de João 3.5

“Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.” (João 3.5)

“A menos que um homem nasça da água”. Esta passagem tem sido explicada de várias maneiras. Alguns têm pensado que as duas partes da regeneração estão apontadas claramente, e que pela palavra água é indicada a renúncia ao velho homem, enquanto pelo Espírito compreende a nova vida. Outros pensam que há um contraste implícito, como se Cristo contrastasse água e Espírito, que são puros elementos, com a natureza terrena e bruta do homem. Assim, eles veem a linguagem como alegórica, e supõem que Cristo ensinou que devemos deixar de lado a massa da pesada carne, e tornar-nos como a água e o ar, que podem se mover livremente. Mas ambas as opiniões me parecem estar em contradição com o significado de Cristo.

Crisóstomo, com quem a maior parte dos expositores concordam, faz com que a palavra água se refira ao batismo. O significado seria então, que pelo batismo entramos no reino de Deus, porque no batismo somos

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regenerados pelo Espírito de Deus. Daí surgiu a crença da necessidade absoluta do batismo, a fim de se ter a esperança da vida eterna. Mas, ainda que nós fôssemos admitir que Cristo fala aqui do batismo, ainda que não devemos pressionar suas palavras tão fortemente a ponto de imaginar que ele confina a salvação ao sinal externo; mas, pelo contrário, ele conecta a água com o Espírito, porque por esse símbolo visível ele atesta e sela aquela novidade de vida que só Deus produz em nós pelo seu Espírito. É verdade que, por negligenciar o batismo, somos excluídos da salvação; e neste sentido, reconheço que é necessário; mas é absurdo falar da esperança de salvação como confinada ao sinal. Até onde nos leve o que se refere esta passagem, eu não posso ser levado a crer que Cristo fala do batismo; porque isso teria sido inapropriado.

Devemos sempre ter em mente o propósito de Cristo, o qual já temos explicado; ou seja, que tinha a intenção de exortar Nicodemos à novidade de vida, porque ele não seria capaz de receber o Evangelho, até que começasse a ser um novo homem. É, portanto, uma simples declaração, que devemos nascer de novo, a fim de que possamos ser filhos de Deus e que o Espírito Santo é o autor deste segundo nascimento. Porque enquanto Nicodemos estava sonhando com a regeneração (palingenesia) ou transmigração ensinada por Pitágoras, que imaginou que as almas, depois da morte de seus corpos, passam para outros corpos, Cristo, a fim de curá-lo desse erro, acrescentou, à guisa de explicação, que não é de uma forma natural que os homens nascem uma

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segunda vez, e que não é necessário que sejam revestidos de um novo corpo, mas que são nascidos quando são renovados na mente e no coração pela graça do Espírito.

Assim, ele empregou as palavras Espírito e água para significar a mesma coisa, e isso não deve ser considerado como uma interpretação severa ou forçada; pois é uma forma frequente e comum de se falar na Escritura, quando o Espírito é mencionado, adicionar a palavra água ou fogo, expressando seu poder. Às vezes, encontrar-se com a declaração, que é Cristo que batiza com o Espírito Santo e com fogo (Mateus 3:11; Lucas 3:16), onde o fogo não significa nada diferente do Espírito, mas apenas mostra o que é a sua eficácia em nós. Saber porque a palavra água é colocada em primeiro lugar, é de pouca importância; ou melhor, este modo de falar flui mais naturalmente do que o outro, porque a metáfora é seguida por uma declaração simples e direta, como se Cristo tivesse dito que o homem não é um filho de Deus, até que ele tenha sido renovado pela água, e que esta água é o Espírito que nos purifica de novo e que, por espalhar sua energia sobre nós, dá-nos o vigor da vida celestial, embora por natureza, sejamos totalmente secos. E mais apropriadamente o faz Cristo, a fim de reprovar Nicodemos por sua ignorância, empregando uma forma de expressão que é comum na Escritura; porque Nicodemos deveria pelo menos ter reconhecido, que o que Cristo tinha dito foi extraído da doutrina comum dos Profetas.

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Pela água, portanto, significa nada mais do que a purificação interior e fortalecimento, que é produzido pelo Espírito Santo.

Carne Gera Carnal e Espírito Gera Espíritual - Comentário de João 3.6

“O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.” (João 3.6)

“O que é nascido da carne”. Pelo raciocínio de contrários, Cristo argumenta que o reino de Deus está fechado para nós, a menos que uma entrada seja aberta para nós por um novo nascimento. Porque ele dá como garantido, que não podemos entrar no reino de Deus se não formos espirituais. Mas nada trazemos desde o ventre materno, senão uma natureza carnal. Segue-se portanto, que estamos naturalmente banidos do reino de Deus, e, tendo sido privados da vida celestial, permanecemos sob o jugo da morte espiritual. Além disso, quando Cristo argumenta aqui, que os homens devem nascer de novo, porque eles são apenas carne, ele, sem dúvida, abrange toda a humanidade sob o termo carne. Por carne, por conseguinte, entende-se neste lugar, não o corpo, mas a alma também, e, consequentemente, todas as partes da mesma.

Quando alguns teólogos restringem a palavra carne à parte que chamam de sensual, eles fazem isso em

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absoluta ignorância do seu significado; porque Cristo teria usado, neste caso, um argumento inconclusivo, que precisamos de um segundo nascimento, porque uma parte de nós é corrompida. Mas, se a carne é contrastada com o Espírito, como uma coisa corrupta é contrastada com uma que é incorruptível, uma coisa torta com uma que é reta, uma coisa poluída com uma que é sagrada, uma contaminada com uma que é pura, podemos facilmente concluir que toda a natureza do homem é condenada por um única palavra. Cristo, portanto, declara que o nosso entendimento e razão estão corrompidos, porque são carnais, e que todos os afetos do coração são maus e perversos, porque eles também são carnais.

Aqui surge uma questão; pois é certo que nesta natureza degenerada algum resquício dos dons de Deus ainda permanece; e, portanto, segue-se que não estamos em todos os aspectos corrompidos. A resposta é fácil. Os dons que Deus deixou para nós, desde a queda, se eles são avaliados em si mesmos, são, de fato dignos de louvor; mas, como o contágio da maldade está espalhado por todas as partes, nada será encontrado em nós que seja puro e livre de toda contaminação. Que possuímos naturalmente algum conhecimento de Deus, que alguma distinção entre o bem e o mal está gravada em nossa consciência, que nossas faculdades são suficientes para a manutenção da vida presente, que – em suma - somos em tantos aspectos superiores aos animais irracionais, que isto é excelente em si mesmo, na medida em que procede de Deus; mas em todos nós estas coisas estão

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completamente poluídas, da mesma maneira como o vinho que foi totalmente infectado e corrompido pelo gosto ofensivo do recipiente perde a agradabilidade do seu bom sabor, e adquire um sabor amargo e ruim. Porque tal conhecimento de Deus como agora permanece nos homens nada mais é do que uma fonte terrível de idolatria e de todas as superstições; o julgamento exercido para escolher e distinguir coisas está parcialmente cego e insensato, em parte imperfeito e confuso; todas as nossas faculdades fluem para a vaidade e ninharias; e a própria vontade, com impetuosidade furiosa, corre freneticamente para o que é mau. Assim, em toda a nossa natureza não permanece uma gota de pura retidão. Por isso, é evidente que deve ser formada pelo segundo nascimento, para que possamos ser equipados para o reino de Deus; e o significado das palavras de Cristo é que, como um homem nasce apenas carnal do ventre de sua mãe; ele deve ser formado de novo pelo Espírito, para que possa começar a ser espiritual.

A palavra Espírito é usada aqui em dois sentidos, a saber, por graça, e o efeito da graça. Porque em primeiro lugar, Cristo nos informa que o Espírito de Deus é o único autor de uma natureza pura e reta, depois, ele afirma, que somos espirituais, porque temos sido renovados pelo seu poder.

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O Espírito Santo Age como o Vento - Comentário de João 3.7

“7 Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo.

8 O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.”

“Não te admires”. Esta passagem tem sido torcida por comentaristas de várias maneiras. Alguns pensam que Cristo reprova a ignorância de Nicodemos e outras pessoas da mesma classe, dizem que não é surpreendente, se eles não compreendem esse mistério celeste da regeneração, uma vez que, mesmo na ordem da natureza não percebemos a razão das coisas que caem sob o conhecimento dos sentidos. Outros inventam um significado que, embora engenhoso, é muito forçado: o de que, quando o vento sopra livremente, por isso, pela regeneração do Espírito somos postos em liberdade, e, depois de ter sido libertados do jugo do pecado, ouvimos voluntariamente a Deus. Igualmente distante do significado de Cristo é a exposição dada por Agostinho, que o Espírito de Deus exerce sua energia de acordo com o seu próprio prazer. A melhor interpretação é dada por Crisóstomo e Cirilo, que dizem que a comparação é extraída do vento, e aplicada assim, à presente passagem; apesar de seu poder ser sentido, não sabemos a sua origem e causa. Quanto a mim, enquanto não difiro

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muito de sua opinião, eu devo me esforçar para explicar o significado de Cristo com maior clareza e certeza.

Eu mantenho por este princípio, que Cristo faz uma comparação a partir da ordem da natureza. Nicodemos reconheceu que o que ele tinha ouvido falar sobre regeneração e uma nova vida era inacreditável, porque a forma desta regeneração excedia sua capacidade. Para impedi-lo de entreter qualquer escrúpulo deste tipo, Cristo mostra que, mesmo na vida material é exibido um incrível poder de Deus, cuja razão está escondida. Porque percebemos a agitação do ar, mas não sabemos de onde vem a nós, nem para onde ele se afasta. Se nesta vida frágil e transitória Deus age de maneira tão poderosa que somos obrigados a admirar o seu poder, que loucura é tentar medir pela percepção de nossa própria mente o seu trabalho secreto na vida celestial e sobrenatural, de modo a acreditar somente naquilo que vemos? Assim, Paulo, quando se expressa em indignação contra aqueles que rejeitam a doutrina da ressurreição, na base de ser impossível que o corpo que está agora sujeito à putrefação, após ter sido reduzido a pó, deva ser revestido com uma bendita imortalidade, repreende-os pela insensatez de não considerarem que uma exibição semelhante do poder de Deus pode ser vista em um grão de trigo; porque a semente não germina até que ela morra (1 Coríntios 15:36, 37). Esta é a sabedoria surpreendente da qual Davi exclama: “Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! em sabedoria fizeste todas elas,” (Salmos 104.24).

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São, portanto, excessivamente insensatos aqueles que tendo sido advertidos pela ordem comum da natureza, não sobem mais alto, de modo a reconhecer que a mão de Deus é muito mais poderosa no reino espiritual de Cristo. Quando Cristo diz a Nicodemos que ele não deveria se maravilhar, nós não devemos entendê-lo de tal forma como se pretendesse que nós desprezemos uma obra de Deus, que é tão ilustre, e que é digna da maior admiração; mas significa que nós não devemos nos maravilhar com aquele tipo de admiração que dificulta a nossa fé. Porque muitos rejeitam como sendo fábula o que eles pensam ser muito elevado e difícil. Em uma palavra, não duvidemos que pelo Espírito de Deus, somos formados de novo e feitos novos homens, embora sua maneira de fazer isso seja ocultada a nós.

Como Ocorre o Novo Nascimento do Espírito Santo - Comentário de João 3.8-10

“8 O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.

9 Então, lhe perguntou Nicodemos: Como pode suceder isto? Acudiu Jesus:

10 Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?”

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8. “O vento sopra onde quer”. Não que, a rigor, há vontade no vento, mas porque a agitação é livre, incerta e variável; porque o ar é transportado, por vezes, numa direção e, por vezes, em outra. Como isso se aplica ao caso em mão; porque se fluísse num movimento uniforme, como a água, seria menos milagroso.

“Assim é todo aquele que é nascido do Espírito”. Cristo afirma que o movimento e operação do Espírito de Deus não é menos perceptível na renovação do homem do que no movimento do ar nesta vida terrestre e exterior, mas que a forma disto é oculta; e que, portanto, somos ingratos e maliciosos, se não adoramos o poder inconcebível de Deus na vida celeste, da qual vemos tão impactante exposição neste mundo, e se nós atribuímos a ele menos em restaurar a salvação de nossa alma do que na defesa da estrutura corporal. A aplicação será um pouco mais evidente, se você tomar a sentença desta maneira: Tal é o poder e a eficácia do Espírito Santo no homem renovado.

9. “Como pode ser isso?” Nós vemos o que é o principal obstáculo no caminho de Nicodemos. Cada coisa que ele ouve parece absurda, porque não entende a maneira das mesmas; de modo que não há maior obstáculo para nós do que nosso próprio orgulho; isto é, sempre desejamos ser sábios além do que é apropriado e, portanto, rejeitamos com orgulho diabólico cada coisa que não é explicada pela nossa razão; como se fosse adequado limitar o poder infinito de Deus pela nossa pobre capacidade. Nos é permitido, de fato, em certa medida,

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que investiguemos a forma e a razão das obras de Deus, desde que o façamos com sobriedade e reverência; mas Nicodemos rejeita como uma fábula, com base na qual, ele não acreditou que fosse possível. Sobre este assunto trataremos mais detalhadamente no âmbito do sexto capítulo.

10. “Tu és mestre em Israel”. Como Cristo vê que ele está gastando seu tempo sem propósito no ensino de homem tão orgulhoso, ele começa a repreendê-lo. E, certamente, essas pessoas nunca farão qualquer progresso, até que a confiança ímpia, com a qual se ensoberbecem, seja removida. Cristo censura a sua ignorância. Ele pensava, que não admitir uma coisa como não possível seria considerado uma prova de gravidade e inteligência. Mas ainda Nicodemos, com toda a sua magistral altivez, se expõe ao ridículo por sua mais do que infantil hesitação sobre os primeiros princípios da religião. Essa hesitação, certamente, é vergonhosa. Por que qual é a religião que temos... que conhecimento de Deus, que governa o bem viver... que esperança temos da vida eterna, se não crermos que o homem é renovado pelo Espírito de Deus? Há uma ênfase, por conseguinte, na palavra “estas coisas”; porque desde que a Escritura repete com frequência esta parte da doutrina, não deveria ser desconhecido até mesmo para a mais baixa classe de iniciantes. É absolutamente insuportável que qualquer homem seja ignorante e inábil quando afirma ser um professor na Igreja de Deus.

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Jesus Não Inventou uma Religião - Deu Testemunho da Verdade Eterna - Comentário de João 3.11

“Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto; contudo, não aceitais o nosso testemunho.” (João 3.11)

“Nós dizemos o que sabemos”. Alguns aplicam isto a Cristo e João Batista; outros dizem que o número plural é utilizada em vez do singular. De minha parte, não tenho dúvida de que Cristo menciona a si mesmo em conexão com todos os profetas de Deus, e fala na pessoa de todos. Os filósofos e os outros vangloriosos mestres, frequentemente afirmam as bagatelas que eles próprios inventaram; mas Cristo afirma em relação a si mesmo e a todos os servos de Deus, que eles não entregaram nenhuma doutrina, senão a que é certa. Porque Deus não envia ministros para tagarelarem sobre coisas que são desconhecidas ou duvidosas, mas os treina em sua escola, para que aprendam dele próprio aquilo de posteriormente entregarão a outros. Ainda, como Cristo, por este testemunho, recomenda-nos a certeza da sua doutrina, assim ele prescreve a todos os seus ministros a lei da modéstia, para não exporem os seus sonhos ou conjecturas próprias - não para pregar invenções humanas, que não têm nenhuma solidez, mas para prestarem um testemunho fiel e puro para Deus. Deixe cada homem, portanto, ver o que o Senhor tem revelado a ele, que nenhum homem possa ir além dos limites da sua fé; e, por último, que nenhum homem possa permitir-se falar qualquer coisa, senão o que ouviu do Senhor.

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Deve-se observar, igualmente, que Cristo aqui confirma a sua doutrina por um juramento, para que pelo mesmo tenha total autoridade sobre nós.

“Você não aceita o nosso testemunho”. Isso é adicionado, que o Evangelho nada pode perder por causa da ingratidão dos homens. Porque desde que poucas pessoas devem ser encontradas, que exercem fé na verdade de Deus, e uma vez que a verdade é em todos os lugares rejeitada pelo mundo, devemos defendê-la contra o desprezo, para que sua majestade não seja tida em menor estima, porque todo o mundo a despreza, e a obscurece por impiedade. Agora, o significado das palavras é simples e único, e ainda devemos tirar dessa passagem uma doutrina dupla. A primeira é que a nossa fé no Evangelho não pode ser enfraquecida, se ele tiver poucos discípulos na terra; como se Cristo dissesse: Ainda que você não receba minha doutrina, ela permanece no entanto, certa e durável; porque a incredulidade dos homens nunca irá impedir que Deus permaneça sempre verdadeiro. A outra é que aqueles que, nos dias de hoje, não acreditam no Evangelho, não escaparão impunemente, uma vez que a verdade de Deus é santa e sagrada. Devemos ser fortalecidos com este escudo, para que possamos perseverar na obediência ao Evangelho em oposição à obstinação dos homens. Na verdade, temos que assegurar por este princípio, que a nossa fé seja fundada em Deus. Mas quando temos Deus como nossa segurança, devemos, como pessoas elevadas, acima dos céus, corajosamente trilhar o mundo inteiro sob os nossos pés, ou considerá-lo com elevado desdém,

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ao invés de permitir que a incredulidade de qualquer pessoa venha a nos alarmar. Quanto à acusação que Cristo faz, que o seu testemunho não é recebido, nós aprendemos com ele, que a palavra de Deus tem, em todas as épocas, sido distinguida por esta característica peculiar, que os que creem são poucos; para a expressão - você não aceita - pertence ao maior número de pessoas do mundo. Não há razão, portanto, que deveríamos agora ficar desencorajados, se o número daqueles que acreditam é pequeno.

Elevados do Terreno ao Celestial - Comentário de João 3.12

“Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?” (João 3.12)

“Se vos falei de coisas terrenas”. Cristo conclui que deveria ser colocado para Nicodemos e outros, se eles não fazem progresso na doutrina do Evangelho; pois ele mostra que não é culpa dele, que todos não sejam adequadamente instruídos, uma vez que ele desceu à terra, para que ele possa nos elevar ao céu. É uma falha muito comum que os homens desejem ser ensinados por um engenhoso e rebuscado estilo. Daí, a maior parte dos homens ficar tão encantada com elevadas e confusas especulações. Daí, também, muitos têm o Evangelho em menos estima, porque não encontram nele palavras altissonantes para preencherem seus ouvidos, e por esse

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motivo não se dignam a conceder sua atenção a uma doutrina tão baixa. Mas isso mostra um grau extraordinário de impiedade, que rende menos reverência a Deus por falar conosco, porque ele condescende em nossa ignorância; e, portanto, quando Deus se expõe para nós nas Escrituras em um estilo áspero e popular, deixe-nos saber que isto é feito por causa do amor que ele tem por nós. Quem exclama que ele é ofendido por tal mediocridade de linguagem, ou usa isto como um argumento para se desculpar por não se submeter à Palavra de Deus, fala falsamente; pois aquele que não pode suportar abraçar a Deus, quando ele se aproxima dele, muito menos correrá para encontrá-lo acima das nuvens.

“Coisas terrenas”. Alguns explicam que isso significa os elementos da doutrina espiritual, pois da autonegação pode ser dito que é o início da piedade. Mas prefiro concordar com aqueles que o relacionam à forma de instrução; pois, embora a totalidade do discurso de Cristo fosse celeste, todavia ele falou de uma maneira tão familiar, que o próprio estilo teve algum aspecto de forma terrena. Além disso, estes termos não devem ser considerados como se referindo exclusivamente a um único sermão; porque o método comum de Cristo ensinar – que é com uma simplicidade popular de estilo - é aqui contrastado com as frases pomposas e altissonantes às quais homens ambiciosos estão tão fortemente viciados.

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É Somente em Jesus que Temos Revelação do que é Celestial - Comentário de João 3.13

“Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu.” (João 3.13)

“Ninguém subiu ao céu”. Jesus novamente exorta Nicodemos a não confiar em si mesmo e em sua própria sagacidade, porque nenhum homem mortal pode, por seus próprios poderes, entrar no céu, senão somente aquele que vai para lá sob a orientação do Filho de Deus. Porque subir ao céu significa aqui, "ter um conhecimento puro dos mistérios de Deus, e a luz de entendimento espiritual." Porque Cristo dá aqui a mesma instrução que é dada por Paulo, quando declara que o homem natural não compreende as coisas que são de Deus (1 Coríntios 2.14), e, portanto, ele exclui as coisas divinas de toda a agudeza do entendimento humano, pois está muito abaixo de Deus.

Mas devemos entender das palavras, que só Cristo, que é celestial, ascende aos céus, mas que a entrada está fechada para todos os demais. Pois, na frase anterior, ele nos humilha, quando ele exclui todo mundo do céu. Paulo ordena àqueles que desejam ser sábios com Deus que devem ser tolos em relação a si mesmos (1 Coríntios 3.18).

Nada há para o que temos maior relutância. Para este propósito devemos lembrar, que todos os nossos

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sentidos falham e fogem quando intentamos ir a Deus; mas, depois de nos ter colocado fora do céu, Cristo rapidamente propõe um remédio, quando ele acrescenta, que o que foi negado a todos os outros é concedido ao Filho de Deus. E isso também é a razão pela qual ele se chama o Filho do homem, para que não duvidemos que podemos ter uma entrada no céu em comum com ele, que se vestiu com a nossa carne, para que pudesse nos fazer participantes de todas as bênçãos. Uma vez que, portanto, somente ele é Conselheiro do Pai (Isaías 9. 6), ele nos admite naqueles segredos que de outra forma teriam permanecido em segredo.

“Que está no céu”. Pode-se pensar ser absurdo dizer que ele está no céu, enquanto ele ainda habitava na terra. Se for respondido que isso é verdade no que diz respeito à sua natureza divina, o modo de expressão significa alguma outra coisa, a saber, que, porquanto ele fosse homem, ele estava no céu. Pode-se dizer que nenhuma menção é feita aqui de qualquer lugar, mas apenas que Cristo é distinguido dos outros, no que diz respeito ao seu estado, porque ele é o herdeiro do reino de Deus, do qual toda a raça humana está banida; mas, uma vez que muito frequentemente acontece, em virtude da unidade da Pessoa de Cristo, que o que pertence propriamente a uma natureza é aplicado a outra, não devemos procurar outra solução. Cristo, portanto, que está nos céus, se vestiu da nossa carne, para que, esticando a mão fraternal para nós, ele possa nos elevar para o céu juntamente com ele.

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Jesus é Elevado pelo Evangelho à Vista dos Que se Salvam - Comentário de João 3.14,15

“14 E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado,

15 para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.”

14. “E como Moisés levantou a serpente”. Jesus explica mais claramente por que ele disse que é somente para ele que o céu é aberto; ou seja, que ele traz para o céu somente a todos os que estão dispostos a segui-lo como seu guia; pois ele atesta que ele vai ser aberto e publicamente manifestado a todos, para que ele possa difundir seu poder sobre os homens de todas as classes. Ser levantado significa ser colocado numa situação elevada, de modo a ser exibido à vista de todos. Isso foi feito através da pregação do Evangelho; porque a explicação que alguns dão, como se referindo à cruz, nem está de acordo com o contexto, nem é aplicável ao presente assunto. O simples significado das palavras, portanto, é que, pela pregação do Evangelho, Cristo seria exaltado, como um padrão para o qual os olhos de todos deveriam ser dirigidos, como Isaías tinha predito (Isaías 2.2). Como um tipo desse levantamento, ele se refere à serpente de bronze, que foi erguida por Moisés, a visão da qual era um remédio salutar para aqueles que foram feridos pela picada mortal de serpentes. A história desta ocorrência é bem conhecida, e é detalhada em Números 21.9. Cristo a introduz nesta passagem, para mostrar que

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ele deve ser colocado diante dos olhos de todos pela doutrina do Evangelho, para que todos os que olham para ele pela fé possam obter salvação. Por isso, deve-se inferir que Cristo é claramente exibido a nós no Evangelho, a fim de que ninguém possa se queixar de obscuridade; e que esta manifestação seja comum a todos, e que a fé tem o seu próprio olhar, pelo qual é percebida como presente; como Paulo nos diz que um retrato vivo de Cristo com a cruz é exibido, quando ele é verdadeiramente pregado (Gálatas 3.1).

A metáfora não é imprópria ou rebuscada. Assim como era apenas a aparência de uma serpente, mas não continha nada em si que fosse pestilento ou venenoso, assim Cristo vestiu-se com a forma de carne do pecado, e ainda sendo puro e livre de todo o pecado, para que pudesse curar em nós a ferida mortal do pecado. Não foi em vão que, quando os judeus foram feridos pelas serpentes, que o Senhor preparou previamente este tipo de antídoto; e isto intentava confirmar o discurso que Cristo entregou. Porque quando viu que ele seria desprezado como uma pessoa desconhecida, ele poderia produzir nada mais apropriado do que a elevação da serpente, para dizer-lhes, que eles não devem achar isto estranho, mas, ao contrário da expectativa dos homens, ele foi levantado de sua muito baixa condição, porque isso já havia sido tipificado nos termos da Lei pela serpente de bronze.

A questão agora é: Será que Cristo comparou-se à serpente, porque há alguma semelhança; ou, ele

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pronunciou isto para ser um sacramento, como foi o maná? Porque embora o maná fosse um alimento material, Paulo ainda testifica que era um mistério espiritual (1 Coríntios 10.3) sou levado a pensar que este também foi o caso com a serpente de bronze, tanto por essa passagem, e pelo fato de ter sido preservado para o futuro, até que a superstição das pessoas a tivessem convertido em um ídolo (2 Reis 18. 4). Se qualquer um formar uma opinião diferente, eu não debato o ponto com ele.

Jesus nos Foi Dado por Causa do Amor de Deus - Comentário de João 3.16

“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3.16)

“Porque Deus amou o mundo”. Cristo abre a primeira causa, e, por assim dizer, a fonte da nossa salvação, e ele faz isso, para que nenhuma dúvida possa permanecer; pois as nossas mentes não conseguem encontrar calmo repouso, até que chegamos ao amor gratuito de Deus. Como toda a questão da nossa salvação não deve ser procurada em qualquer outro lugar do que em Cristo, por isso temos de ver de onde Cristo veio a nós, e por que ele foi oferecido para ser nosso Salvador. Ambos os pontos são claramente afirmados para nós: a saber, que a fé em Cristo traz a vida a todos, e que Cristo trouxe a vida,

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porque o Pai Celestial ama a raça humana, e deseja que eles não se percam. E esta ordem deveria ser cuidadosamente observada; porque tal é a ambição ímpia que pertence à nossa natureza, que, quando a questão está relacionada com a origem da nossa salvação, nós rapidamente formamos imaginações diabólicas sobre nossos próprios méritos. Assim, imaginamos que Deus está reconciliado conosco, porque ele tem nos contado como dignos de que ele deveria olhar para nós. Mas as Escrituras em todos os lugares exaltam sua misericórdia pura e sem mistura, que deixa de lado todos os méritos.

E as palavras de Cristo significam nada mais do que isto, quando ele declara a causa de estarmos no amor de Deus. Porque se quisermos subir mais alto, o Espírito fecha a porta, pela boca de Paulo, quando ele nos informa que este amor foi fundado sobre o propósito da sua vontade (Efésios 1. 5). E, de fato, é muito evidente que Cristo falou desta maneira, a fim de chamar os homens para longe da contemplação de si mesmos e olharem somente para a misericórdia de Deus. Nem ele diz que Deus foi movido para nos libertar, porque ele percebeu em nós algo que era digno de tão excelente bênção, mas atribui a glória de nossa libertação inteiramente ao seu amor. E isto fica ainda claro no que se segue; porque ele acrescenta, que Deus deu seu Filho aos homens, para que não pereçam. Daí segue-se que, até Cristo conceder seu auxílio no resgate dos perdidos, todos estão destinados a eterna destruição. Isto é também demonstrado por Paulo na consideração do tempo; “porque ele nos amou, quando

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éramos ainda inimigos por causa do pecado” (Romanos 5. 8, 10).

E, de fato, onde reina o pecado, nada iremos encontrar, senão a ira de Deus, que chama a morte juntamente com isto. É a misericórdia, portanto, que nos reconcilia com Deus, para que ele possa também restaurar-nos à vida.

Este modo de expressão, no entanto, pode parecer estar em desacordo com muitas passagens das Escrituras, que põem em Cristo o primeiro fundamento do amor de Deus para conosco, e mostra que fora dele somos odiados por Deus. Mas devemos lembrar - o que eu já disse - que o amor secreto com que o Pai Celestial nos amou em si mesmo é maior do que todas as outras causas; mas que a graça pela qual ele deseja ser feito conhecido a nós, e pela qual somos encorajados à esperança da salvação, começa com a reconciliação, que foi adquirida por meio de Cristo. Porque desde que ele odeia o pecado, necessariamente, como devemos acreditar que somos amados por ele, senão até que a expiação tenha sido feita para aqueles pecados por conta dos quais ele está justamente ofendido conosco? Assim, o amor de Cristo intervém com o objetivo de conciliar Deus conosco, antes de termos qualquer experiência de sua bondade paternal. Mas, como somos informados de que primeiro Deus nos amou, porque deu o seu Filho para morrer por nós, por isso é imediatamente adicionado, que é Cristo para quem, a rigor, a fé deve olhar.

“Ele deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça”. Isso, diz ele, é o olhar correto da fé,

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ser fixada em Cristo, no qual se contempla o peito de Deus cheio de amor: isto é um apoio firme e duradouro, contar com a morte de Cristo como a única promessa daquele amor. A palavra unigênito é enfática, para ampliar o fervor do amor de Deus para conosco. Porque os homens não são facilmente convencidos de que Deus os ama, a fim de eliminar qualquer dúvida, ele declarou expressamente que somos muito queridos por Deus que, em nossa conta, nem sequer poupou o seu Filho unigênito. Uma vez que, por conseguinte, Deus tem mais abundantemente testemunhado seu amor para conosco; quem não fica satisfeito com este testemunho, e ainda permanece em dúvida, oferece um alto insulto a Cristo, como se ele tivesse sido um homem comum dado aleatoriamente à morte. Mas devemos considerar ainda que, em proporção à estima que Deus tem por Seu Filho unigênito, muito mais preciosa a nossa salvação lhe parece, pela redenção para a qual ele escolheu que seu Filho unigênito morresse. Para este nome Cristo tem um direito, porque ele é, por natureza, o único Filho de Deus; e ele comunica esta honra para nós por adoção, quando somos enxertados em seu Corpo.

“Para que todo aquele que nele crê não pereça”. Isto é um notável louvor à fé, que nos liberta da destruição eterna. Porque ele pretendia expressamente afirmar que, embora pareçamos ter sido nascidos para a morte, uma libertação inquestionável nos é oferecida pela fé em Cristo; e, portanto, não devemos temer a morte, que de outra forma, teria pairado sobre nós. E ele empregou o termo universal todo aquele que, tanto para convidar

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todos indiscriminadamente para participarem da vida, e para cortar qualquer desculpa dos incrédulos. Essa é também a importação do termo mundo, que ele usou anteriormente; porque nada será encontrado no mundo que seja digno do favor de Deus, e ainda ele se mostra reconciliado com o mundo inteiro, quando ele convida todos os homens sem exceção, à fé nEle, que é nada mais do que uma entrada na vida.

Lembremo-nos, por outro lado, que enquanto a vida é prometida universalmente para todos os que creem em Cristo, ainda a fé não é comum a todos. Porque Cristo é dado a conhecer à vista de todos, mas somente os eleitos são aqueles cujos olhos Deus abre, para que possam procurá-lo pela fé. Aqui, também, é exibido um efeito maravilhoso da fé, pois por ela recebemos a Cristo como ele nos é dado pelo Pai - isto é, como tendo nos libertado da condenação da morte eterna, e nos feito herdeiros da vida eterna, porque, pelo sacrifício de sua morte, ele tem expiado os nossos pecados, para que nada possa impedir que Deus nos reconheça como seus filhos. Uma vez que, portanto, a fé abraça Cristo, com a eficácia de sua morte e os frutos da sua ressurreição, não precisamos nos maravilhar se é por isto que obtemos também a vida de Cristo.

Ainda assim, não é muito evidente por que e como a fé nos dá a vida. É isto porque Cristo nos renova pelo seu Espírito, que a justiça de Deus possa viver e ser vigorosa em nós; ou é porque, tendo sido purificados pelo seu sangue, somos considerados justos diante de Deus por

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um perdão gratuito? Na verdade, é certo que essas duas coisas estão sempre unidas; mas como a certeza da salvação é o assunto agora em mãos, devemos principalmente atentar para esta razão, que nós vivemos, porque Deus nos ama gratuitamente, por não nos imputar os nossos pecados. Por esta razão o sacrifício é expressamente mencionado, pelo qual, em conjunto com os pecados, a maldição e a morte são destruídos. Já expliquei o objeto dessas duas cláusulas, que é, para nos informar que, em Cristo, recuperamos a posse da vida, da qual somos destituídos em nós mesmos; na presente condição miserável da humanidade, e a redenção, na ordem do tempo, vai adiante de salvação.

A Missão Presente de Jesus é Salvar e Não Julgar - Comentário de João 3.17

“Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.” (João 3.17)

“Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo”. Isto é uma confirmação da declaração anterior; por isso não foi em vão que Deus enviou seu próprio Filho para nós. Ele não veio para destruir; e, portanto, se segue que é o ofício peculiar do Filho de Deus, que todos os que creem possam obter a salvação por ele. Agora não há razão para que qualquer homem esteja em um estado de hesitação ou de

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angustiante ansiedade, quanto à maneira pela qual ele pode escapar da morte, quando acreditamos que foi o propósito de Deus que Cristo nos livrasse dela. A palavra mundo é repetida novamente, para que ninguém possa pensar de si mesmo como totalmente excluído, se ele somente guardar o caminho da fé.

A palavra julgar (krino) é aqui colocada como condenar, como em muitas outros passagens. Quando ele declara que não veio para condenar o mundo, ele observa, assim, o desígnio real da sua vinda; porque que necessidade haveria que Cristo deveria vir para nos destruir, nós que estamos completamente arruinados? Não devemos, pois, olhar para qualquer outra coisa em Cristo, senão aquilo que Deus, por sua bondade infinita escolheu estender sua ajuda para salvar os que estavam perdidos; e sempre que nossos pecados nos pressionarem - sempre que Satanás puder nos levar ao desespero - que mantenhamos este escudo, que Deus não está disposto em nos deixar sobrecarregados com eterna destruição, porque ele designou seu Filho para a salvação do mundo.

Quando Cristo diz, em outras passagens, que ele há de vir para julgar (João 9.39); quando ele é chamado de uma pedra de escândalo (1 Pedro 2.7); quando dele é dito ser destinado para a destruição de muitos (Lucas 2.34), isto pode ser considerada como acidental, ou como resultante de uma causa diferente; porque aqueles que rejeitam a graça oferecida nele merecem encontrá-lo como o Juiz e o Vingador de desprezo tão indigno e vil. Um exemplo marcante disto pode ser visto no Evangelho;

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porque ele é estritamente o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê (Romanos 1.16). A ingratidão de muitos faz com que isto se torne para eles a morte. Ambos têm sido bem expressados por Paulo, quando ele se gloria da vingança próxima, pela qual ele punirá todos os adversários de sua doutrina, depois que a obediência do piedoso tiver sido cumprida (2 Coríntios 10. 6).

O significado equivalente a isto, que o Evangelho é especialmente, e na primeira instância, nomeado para os crentes, para que possa ser a salvação para eles; todavia, depois dos crentes não escaparão impunes aqueles que, desprezando a graça de Cristo, optaram por tê-lo como autor de morte ao invés de vida.

O Que Crê Não é Julgado para Condenação Eterna - Comentário de João 3.18

“Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.”

“Aquele que crê não é condenado”. Quando Jesus tão frequentemente e tão seriamente repete, que todos os crentes estão fora de perigo de morte, nós podemos inferir a partir disso a grande necessidade da firme e segura confiança, que a consciência não pode ser mantida perpetuamente em estado de tremor e alarme. Ele voltou a declarar que, quando nós cremos, não há

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condenação remanescente, o que ele explicará depois com mais detalhes no quinto capítulo. O tempo presente - não é condenado - é aqui usado em vez do tempo futuro - não deve ser condenado - de acordo o costume da língua hebraica; pois significa que os crentes são salvos do medo da condenação.

“Mas aquele que não crê já está condenado”. Isto significa que não há nenhum outro remédio pelo qual qualquer ser humano possa escapar da morte; ou, em outras palavras, que, para todos os que rejeitam a vida dada a eles em Cristo, resta senão a morte, uma vez que a vida consiste em nada mais do que em fé. O passado do verbo, já está condenado, (ede kekritai) foi usado por ele enfaticamente (emphatikos), para expressar mais fortemente que todos os incrédulos estão totalmente arruinados. Mas deveria ser observado que Cristo fala especialmente daqueles cuja iniquidade é exibida no desprezo do Evangelho. Pois, embora seja verdade que nunca houve qualquer outro remédio para escapar da morte do que os homens se valerem de Cristo, ainda como Cristo aqui fala da pregação do Evangelho, o qual deveria ser espalhado em todas as partes do mundo, ele dirige seu discurso contra aqueles que deliberada e maliciosamente apagam a luz que Deus acendeu.

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Só Sai das Trevas quem Vem para a Luz de Jesus - Comentário de João 3.19

“O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más.” (João 3.19)

“E a condenação é esta”. Ele conhece os murmúrios e reclamações, pelos quais os homens ímpios estão acostumados para censurar - que eles imaginam ser um rigor excessivo de Deus, quando ele age em relação a eles com maior severidade do que eles esperavam. Todos pensam que é duro que aqueles que não creem em Cristo devam ser destinados à destruição. Para que ninguém possa atribuir sua condenação a Cristo, ele mostra que todo homem deveria imputar a culpa a si mesmo. A razão é que a incredulidade é um testemunho de uma má consciência; e, portanto, torna-se evidente que é a sua própria impiedade o que dificulta os incrédulos de se aproximarem de Cristo. Alguns pensam que ele aponta aqui nada mais do que a marca de condenação; mas, o desígnio de Cristo é, conter a impiedade dos homens, para que eles não possam, de acordo com o seu costume, contestar ou discutir com Deus, como se ele os tratasse injustamente, quando castiga a incredulidade com a morte eterna. Ele mostra que tal condenação é justa, e não está sujeita a quaisquer censuras, não somente porque os homens agem perversamente, por preferirem as trevas à luz, e recusam vir para a luz que é livremente oferecida a eles, mas porque esse ódio à luz surge somente a partir de uma mente que é má e consciente de

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sua culpa. Uma bela aparência e o brilho da santidade pode de fato ser encontrado em muitos, que, afinal, se opõem ao Evangelho; mas, embora eles pareçam ser mais santos do que os anjos, não há espaço para duvidar de que eles são hipócritas, que rejeitam a doutrina de Cristo por nenhuma outra razão senão porque eles amam seus esconderijos nos quais a sua baixeza possa ser escondida. Uma vez que, portanto, a hipocrisia somente conduz os homens a odiarem a Deus, todos são condenados, porque se não fosse isso, que cegados pelo orgulho, se deleitam com os seus crimes, eles teriam facilmente e de bom grado recebido a doutrina do Evangelho.

Quem Ama a Verdade Vem para a Luz - Comentário de João 3.20,21

“20 Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras.

21 Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque feitas em Deus.”

20. “Porque todo aquele que pratica o mal”. O significado é que a luz é odiosa para eles por nenhuma outra razão, senão de que são maus e desejam esconder seus pecados, tanto quanto esteja ao seu alcance. Por isso

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segue-se que, por rejeitarem o remédio, pode ser dito deles que propositalmente se agradam da razão da sua condenação. Estamos muito enganados, portanto, se supusermos que os que estão enfurecidos contra o Evangelho são movidos pelo zelo divino, quando, pelo contrário, eles abominam e evitam deliberadamente a luz, para que possam se gloriar mais livremente na escuridão.

21. “Mas quem pratica a verdade”. Esta parece ser uma declaração indevida e absurda, a menos que você opte por admitir que alguns são retos e verdadeiros, antes de terem sido renovado pelos Espírito de Deus, os quais, em nenhum grau, concordam com a doutrina uniforme da Escritura; pois sabemos que a fé é a raiz da qual surgem os frutos de boas obras. Para resolver essa dificuldade, Agostinho diz, que praticar a verdade significa "reconhecer que somos miseráveis e indigentes de todo o poder de fazer o bem ", e, certamente, isto é uma verdadeira preparação para a fé, quando uma convicção da nossa pobreza nos obriga a fugir para a graça de Deus. Mas tudo isso é amplamente removido do significado de Cristo, pois ele pretendia simplesmente dizer que aqueles que agem sinceramente desejam nada mais intensamente do que a luz, para que a suas obras possam ser provadas; porque, quando tal prova tem sido feita, torna-se mais evidente que, aos olhos de Deus, eles falam a verdade e estão livres de todo o engano. Agora seria um raciocínio inconclusivo, inferirmos a partir disso, que os homens têm uma boa consciência, antes de terem fé; porque Cristo não diz que os eleitos creem, como para

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merecer o louvor de boas obras, mas somente o que os incrédulos fariam, se não tivessem uma má consciência.

Cristo empregou a palavra verdade, porque, quando somos enganados pelo brilho exterior das obras, não consideramos o que está escondido dentro. Assim, ele diz, que os homens que são retos e sem hipocrisia entram voluntariamente na presença de Deus, o único que é o Juiz competente de nossas obras. Porque dessas obras é dito serem feitas em Deus ou de acordo com Deus, que são aprovadas por Ele, e que são boas de acordo com a Sua regra. Portanto, vamos aprender que não devemos julgar as obras de qualquer outra maneira do que por trazê-las à luz do Evangelho, porque a nossa razão é totalmente cega.

Adoração em Espírito e em Verdade - Comentário de João 4.23

“Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores.” (João 4.23)

“Mas a hora vem”. Agora segue a primeira frase, a revogação do culto, ou cerimônias, prescritos pela Lei de Moisés. Quando Jesus diz que a hora vem, ou vai chegar, ele mostra que a ordem estabelecida por Moisés não será perpétua. Quando ele diz à mulher samaritana que a hora

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já é chegada, ele põe fim às cerimônias, e declara que o tempo de reforma, de que fala o Apóstolo (Hebreus 9.10), tem sido, assim, cumprido. No entanto, ele aprova o Templo, o Sacerdócio, e todas cerimônias ligadas a eles, no que concerne ao tempo passado. Ainda, como para mostrar que Deus não escolhe ser adorado tanto em Jerusalém ou no monte Gerizim, ele apresenta um princípio superior, que a verdadeira adoração a Ele consiste no espírito; para que, daí se segue, Ele possa ser corretamente adorado em todos os lugares.

Mas a primeira pergunta que se apresenta aqui é: por que, e em que sentido, é a adoração de Deus chamada espiritual? Para entender isso, nós devemos atender ao contraste entre o espírito e os emblemas exteriores, como entre as sombras e a verdade. Da adoração a Deus é dito que consiste no espírito, porque ela não é nada mais do que aquela fé interior do coração que produz oração, e, depois, a pureza de consciência e autonegação, para que possamos ser dedicados a obedecer a Deus como sacrifícios vivos e santos.

Daí surge outra pergunta, os patriarcas não adoraram a Deus espiritualmente sob a Lei? Eu respondo, como Deus é sempre o mesmo, ele não aprovou desde o início do mundo qualquer outro culto do que aquele que é espiritual, e que está de acordo com sua própria natureza. Isto é abundantemente atestado pelo próprio Moisés, que declara em muitas passagens que a Lei não tem outro objetivo senão que o povo se apegue a Deus com fé e uma consciência pura (Dt 10.12,16 etc). Mas

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ainda mais é claramente declarado pelos profetas quando eles atacam com severidade a hipocrisia do povo, porque eles pensavam que tinham satisfeito a Deus, quando acabaram de apresentar os sacrifícios e fizeram uma devoção exterior. É desnecessário citar aqui muitas provas que devem ser encontradas em toda parte, mas as passagens mais marcantes são as seguintes: Salmo 50; Isaías 1, 58, 66; Miqueias 5; Amós 7. Mas, enquanto a adoração de Deus, sob a Lei era espiritual, ela estava envolvida com tantas cerimônias exteriores, que se assemelhava a algo carnal e terreno. Por esta razão Paulo chama as cerimônias de rudimentos fracos e pobres (Gálatas 4. 9). Da mesma maneira, o autor da Epístola aos Hebreus diz que o antigo santuário, com seus utensílios, era terreno (Hebreus 9.1). Assim, podemos dizer com justiça que a adoração da Lei era espiritual em sua substância, mas, no que diz respeito à sua forma, foi tanto terrena e carnal; para o conjunto daquela dispensação, que em relação à realidade com a qual está agora plenamente manifestada, ela consistiu em sombras.

Vamos ver agora o que os judeus tinham em comum conosco, e o que diz respeito a eles diferirem de nós. Em todos os tempos Deus quis ser adorado por fé, oração, agradecimento, pureza de coração, e inocência da vida; e em nenhum momento ele se deleitou com todos os outros sacrifícios. Mas sob a Lei havia várias adições, porque o espírito e em verdade estavam escondidos sob tipos e sombras, que, agora que o véu do templo foi rasgado (Mateus 27.51), nada é escondido ou obscuro.

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De fato, há entre nós, nos dias de hoje, alguns exercícios de piedade exterior, os quais se tornam necessários em razão da nossa fraqueza, mas tal é a moderação e sobriedade deles (ceia e batismo), que eles não obscurecem a pura verdade de Cristo. Em suma, o que foi exibido para os patriarcas sob figuras e sombras agora é exibido abertamente.

Não se pode negar que Cristo estabelece aqui uma clara distinção entre nós e os judeus. Quaisquer que sejam os subterfúgios que são usados por aqueles que insistem em manter ritos e cerimoniais no culto de adoração, estão usando coisas que foram abolidas pela vinda de Cristo. Assim todos os que oprimem a Igreja com uma multiplicidade excessiva de cerimônias, fazem o que está em seu poder para privar a Igreja da presença de Cristo. Eu não paro para examinar as desculpas vãs que eles pleiteiam, afirmando que muitas pessoas nos dias de hoje têm ainda necessidade desses auxílios como os judeus tinham em tempos antigos. É sempre o nosso dever investigar por que ordem o Senhor quis que a sua Igreja fosse governada, pois somente Ele sabe completamente o que é conveniente para nós. Agora é certo que nada está mais em desacordo com a ordem designada por Deus do que a grosseira pompa carnal que prevalece em várias instituições religiosas ditas cristãs. O espírito era de fato ocultado pelas sombras da Lei, essas máscaras o desfiguram completamente; e, portanto, não devemos ceder a tais corrupções vergonhosas. Quaisquer que sejam os argumentos que possam ser empregados pela engenhosidade de homens, ou por aqueles que não

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têm coragem suficiente para corrigir vícios - certamente não podem ser tolerados para que a regra prevista por Cristo não seja violada.

“Os verdadeiros adoradores”. Cristo parece reprovar indiretamente a obstinação de muitos, a qual mais tarde foi exibida; pois sabemos quão obstinados e contenciosos foram os judeus, quando o Evangelho foi revelado, na defesa das cerimônias a que estavam acostumados. Mas esta declaração tem um significado ainda mais amplo; porque, sabendo que o mundo nunca mais seria inteiramente livre de superstições, Jesus separa assim os fiéis devotos e retos daqueles que eram falsos e hipócritas. Armados com este testemunho, não vamos hesitar em condenar os que violam o culto verdadeiro, e sejamos corajosos para desprezar suas censuras. Por que razão deveríamos temer, quando sabemos que Deus fica contente com esta adoração pura e simples, que é desprezada por aqueles que não o adoram da forma devida?

O que é adorar a Deus em espírito e verdade aparece claramente a partir do que já foi dito. É deixar de lado as complicações das antigas cerimônias, e manter apenas o que é espiritual no culto de Deus; porque a verdade da adoração de Deus consiste no espírito, e cerimônias são apenas uma espécie de apêndice. E aqui, novamente, deve ser observado, que a verdade não é comparada com a falsidade, mas com a prática da Palavra de Deus, que é a verdade (João 17.17) e pela qual somos santificados pela operação do Espírito Santo.

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Jesus é Espírito Vivificante - Comentário de João 5.21

“Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer.” (João 5.21)

“Pois assim como o Pai ressuscita os mortos”. Aqui, Jesus dá uma visão resumida da natureza do ofício que tinha sido dado a ele pelo Pai; porque embora ele pareça especificar uma classe, no entanto, esta é uma doutrina geral em que declara ser o Autor da vida. Agora a vida contém em si não só a justiça, mas todos os dons do Espírito Santo, e cada parte da nossa salvação. E, certamente, este milagre deve ter sido uma prova muito notável do poder de Cristo, como para produzir este fruto comum; ou seja, para abrir uma porta para o Evangelho. Nós também devemos observar de que maneira Cristo nos concede a vida; porque ele nos encontrou a todos mortos espiritualmente, e, portanto, era necessário começar com uma ressurreição No entanto, quando ele junta as duas palavras, “ressuscita” e “vivifica”, ele não usa uma linguagem supérflua; pois não teria sido suficiente que fôssemos resgatados da morte, se Cristo não restaurasse total e perfeitamente a vida para nós. Mais uma vez, ele não fala dessa vida como uma graça dada indiscriminadamente a todos; pois diz que ele dá vida a quem ele quer; pelo que ele quer dizer que confere especialmente esta graça a ninguém, senão a certas pessoas, isto é, por meio de eleição.

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Jesus é o Rei Supremo do Céu e da Terra - Comentário de João 5.22

“E o Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo julgamento,” (João 5.22)

“Porque o Pai a ninguém julga”. Jesus agora afirma com mais clareza a verdade geral, que o Pai governa o mundo na pessoa do Filho e exerce o domínio pela sua mão; porque o evangelista emprega a palavra julgamento, concordando com a expressão idiomática da língua hebraica, como denotando autoridade e poder. Percebemos agora a suma do que é dito aqui, que o Pai deu ao Filho um Reino, para que ele possa governar o céu e a terra de acordo com a sua vontade. Mas isso pode parecer ser muito absurdo, a saber, que o Pai, renunciando ao seu direito de governar, deve permanecer desocupado no céu, mas a resposta é fácil. Isto é dito, tanto em relação a Deus e aos homens; porque nenhuma mudança ocorreu no Pai, quando nomeou Cristo como supremo Rei e Senhor do céu e da terra; pois ele está no Filho, e trabalha nele. Mas uma vez que, quando queremos nos elevar a Deus, todos os nossos sentidos imediatamente falham, Cristo é colocado então diante de nossos olhos como uma imagem viva do Deus invisível. Não há razão, portanto, por que devemos trabalhar arduamente para nenhum propósito em explorar os segredos do céu, uma vez que Deus provê para a nossa fraqueza, por se revelar tão próximo na pessoa de Cristo; mas, por outro lado, sempre que a indagação diz respeito ao governo do mundo, à nossa

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própria condição, à tutela celestial de nossa salvação, vamos aprender a dirigir os olhos para Cristo, porque todo o poder foi dado a ele (Mateus 28.18), e em sua face, Deus Pai, que de outra forma teria ficado ocultado e à distância, aparece para nós, para que a majestade revelada de Deus não nos consuma pelo seu brilho inconcebível.

Honra-se a Deus Pai Honrando-se a Jesus - Comentário de João 5.23

“a fim de que todos honrem o Filho do modo por que honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.” (João 5.23)

“Para que todos os homens honrem o Filho”. Esta frase confirma suficientemente a sugestão que eu dei um pouco atrás, que quando se diz que Deus reina na pessoa de Cristo, isto não significa que ele repousa no céu, como reis indolentes estão acostumados a fazer, mas porque em Cristo, ele manifesta o seu poder e mostra-se presente. Porque, qual seria o significado dessas palavras, para que todos os homens honrem o Filho, senão que o Pai deseja ser reconhecido e adorado através do Filho? O nosso dever, portanto, é buscar a Deus, o Pai, em Cristo, para contemplar a seu poder em Cristo e adorá-lo em Cristo. Pois, como imediatamente segue, quem não honra o Filho retira de Deus a honra que é devida a ele. Todos admitem que devemos adorar a Deus,

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e esse sentimento, que é natural para nós, está profundamente enraizado em nossos corações, de modo que ninguém se atreve absolutamente a recusar a Deus a honra que é devida a ele; e ainda as mentes dos homens se perdem em sair do caminho para buscar a Deus. Daí tantas divindades pretensas, daí tantos modos perversos de adoração. Jamais, portanto, se encontrará o verdadeiro Deus, senão em Cristo, nem estaremos sempre adorando-lhe corretamente, senão ao beijar o Filho, como Davi nos diz no Salmo 2.12, pois, como João declara em outro lugar, “aquele que não tem o Filho não tem o Pai” (1 João 2:23).

Maometanos e judeus, de fato, adornam com belos e magníficos títulos o Deus a quem eles adoram; mas devemos lembrar que o Nome de Deus, quando ele é separado de Cristo, nada mais é do que uma vã imaginação. (Uma vez que é através de Jesus que é revelado na Bíblia e que se manifestou na carne, confirmando e ensinando a Palavra de Deus, que podemos achar e honrar a Deus Pai, ao único Deus verdadeiro – nota do tradutor).

Todo aquele que deseja ter seu culto aprovado pelo verdadeiro Deus, nunca deve se apartar de Cristo. Também não foi de outra forma com os patriarcas sob a Lei de Moisés no período do Velho Testamento; porque eles contemplaram Cristo obscuramente sob sombras, porque Deus nunca se revelou aparte de Cristo. Mas agora, uma vez que Cristo foi manifestado na carne e nomeado para ser Rei sobre nós, o mundo inteiro deve

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dobrar os joelhos a ele, a fim de obedecer a Deus; porque o Pai tendo feito que ele se assente à sua mão direita, todo aquele que faz uma concepção de Deus, sem Cristo, tira a metade dele.

A Vida Eterna é Por Ouvir e Crer no Evangelho - Comentário de João 5.24

“Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.” (João 5.24)

“Aquele que ouve a minha palavra”. Aqui descreve-se a forma e modo de honrar a Deus, para que ninguém possa pensar que consiste unicamente em qualquer desempenho exterior, ou em cerimônias frívolas. Porque a doutrina do Evangelho parece como um cetro de Cristo, pelo qual ele governa os crentes a quem o Pai tem feito seus súditos. E esta definição é eminentemente digna de nota. Nada é mais comum do que uma falsa profissão de cristianismo; mesmo porque há muitos que se intitulam líderes religiosos cristãos, que são os inimigos mais inveterados de Cristo, por fazerem uma ostentação presunçosa do seu nome. Mas aqui Cristo não exige de nós nenhuma outra honra que não seja a de obedecer ao seu Evangelho. Por isso segue-se que toda a honra que hipócritas concedem a Cristo é, senão o beijo de Judas, porque ele traiu o seu Senhor. Embora eles

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possam chamá-lo cem vezes de Rei, ainda assim o privam de seu reino e de todo o seu poder, quando não exercem fé no Evangelho.

“Tem a vida eterna”. Por estas palavras, ele elogia igualmente o fruto da obediência, para que possamos estar mais dispostos a lhe obedecer. Porque quem deveria estar tão endurecido como para não se submeter voluntariamente a Cristo, quando a recompensa da vida eterna é oferecida a ele? E, no entanto, vemos quão poucos há que garantem para si mesmos tão grande bondade. Tão grande é a nossa depravação que escolhemos, morrer de vontade própria do que nos rendermos à obediência ao Filho de Deus, para que sejamos salvos pela sua graça. Ambos, portanto, estão aqui incluídos por Cristo - o manto de devoção e adoração sincera que ele requer de nós, e o método pelo qual ele nos restaura a vida. Porque não seria suficiente entender o que ele anteriormente ensinou, que ele veio para ressuscitar os mortos, a não ser que também saibamos a maneira pela qual ele nos restaura a vida. Agora, ele afirma que a vida é obtida pelo ouvir a sua palavra, e por ouvir a palavra ele quer se referir à fé, como ele logo em seguida declara. Mas a fé tem a sua sede não nos ouvidos, mas no coração. De onde deriva a fé tão grande poder, já anteriormente explicado. Devemos sempre considerar o que é que o Evangelho nos oferece; para que não nos surpreendamos que aquele que recebe Cristo com todos os seus méritos é reconciliado com Deus, e absolvido da condenação de morte; e que aquele que recebeu o dom do Espírito Santo está vestido com uma justiça celestial,

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para que possa caminhar em novidade de vida (Romanos 6.6). A frase que é adicionada, “crê naquele que me enviou”, serve para confirmar a autoridade do Evangelho: quando Cristo testifica que esta autoridade do evangelho veio de Deus, e não foi inventada por homens, como ele em outro lugar diz, que o que ele fala não é dele mesmo, mas foi entregue a ele pelo Pai (João 7.16; 14.10).

“E não entrará em condenação”. Há aqui um contraste implícito entre a culpa da qual todos nós somos naturalmente responsáveis, e a absolvição incondicional que obtemos por meio de Cristo; pois se todos não fossem passíveis de condenação, para que propósito serviria livrar dela aqueles que creem em Cristo? Assim, o significado é que estamos além do perigo de morte, porque somos absolvidos pela graça de Cristo; e, portanto, embora Cristo santifique e nos regenere, pelo seu Espírito, em novidade de vida, mas aqui ele menciona especialmente o perdão incondicional dos pecados, no qual somente a felicidade dos homens consiste. Por que, então, um homem começa a viver quando tem sido reconciliado com Deus; e como é que Deus nos amaria, se ele não perdoasse nossos pecados?

“Mas já passou”. Algumas versões latinas têm esse verbo no tempo futuro, vai passar da morte para a vida; mas esta surgiu da ignorância e imprudência de alguma pessoa que, sem entender o significado do Evangelista, deu-se mais liberdade do que deveria ter tomado; porque a palavra grega Metabebeke (já passou) não tem

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qualquer ambiguidade que seja. Não há qualquer impropriedade em dizer que já passamos da morte para a vida; porque a semente incorruptível de vida (1 Pedro 1.23) habita nos filhos de Deus, e eles já se sentaram na glória celestial com Cristo, pela esperança (Colossenses 3. 3), e eles têm o reino de Deus já estabelecido dentro deles (Lucas 17.21). Pois, embora a sua vida esteja escondida, eles deixam, por conta disso, de possuí-la pela fé; e embora a sua fé seja assediada por todos os lados, eles não deixam de estar calmos por esse motivo, porque sabem que estão em perfeita segurança através da proteção de Cristo. No entanto, lembremo-nos de que os crentes estão agora na vida de tal maneira que sempre carregam com eles a causa de morte; mas o Espírito, que habita em nós, é a vida, e ele irá destruir totalmente os resquícios de morte; pois é uma verdadeira palavra de Paulo, que a morte é o último inimigo a ser destruído (1 Coríntios 15.26).

E, de fato, essa passagem não contém nada que diga respeito à completa destruição da morte, ou de toda a manifestação da vida. mas, apesar da vida ser somente começada em nós, Cristo declara que os crentes estão tão certos de obtê-la, que eles não devem temer a morte; e não precisamos nos surpreender com isto, uma vez que estamos unidos a Ele que é a inesgotável fonte da vida.

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Ouvir a Jesus Gera a Vida Eterna - Comentário de João 5.25

“Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão.” (João 5.25)

“Em verdade, em verdade”. Quando o evangelista representa o Filho de Deus como jurando tão frequentemente em referência à nossa salvação, daí percebemos, em primeiro lugar, como ele deseja ansiosamente o nosso bem-estar, e depois, de quão grande importância é que a fé do Evangelho deva ser profundamente fixada e completamente confirmada. A declaração tem de fato alguma aparência de ser incrível, quando nos dizem que este é o efeito da fé, da qual Cristo fala; e, portanto, ele confirma por um juramento de que a voz do seu Evangelho tem tal poder de dar vida que é poderoso para ressuscitar os mortos É de consenso geral que ele fala da morte espiritual; porque aqueles que aplicam esta passagem a Lázaro (João 11.44), e ao filho da viúva de Naim (Lucas 7.15), e a outros casos semelhantes, são refutados pelo que se segue. Primeiro, Cristo mostra que estamos todos mortos antes que ele nos vivifique; e, portanto, é evidente que toda a natureza do homem necessita da salvação.

Cristo declara que estamos totalmente condenados à morte. E, de fato, assim temos estado, desde a rebelião

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do primeiro homem, alienado de Deus pelo pecado, todos os que não reconhecem que eles estão sobrecarregados com a destruição eterna nada mais do que enganam a si mesmos com lisonjas vazias. Eu prontamente reconheço que na alma do homem continua a existir algum resquício de vida; pois o entendimento, o julgamento, e a vontade, e todos os nossos sentidos, são partes da vida; mas como não há nenhuma parte que se eleve para desejar a forma de vida celestial, não precisamos nos surpreender se o homem todo, no que concerne ao reino de Deus, é considerado morto. E essa morte Paulo explica mais detalhadamente quando, ele diz, que estamos alienados da pura e sadia razão do entendimento, que somos inimigos de Deus, e nos opomos à sua justiça, em cada afeto do nosso coração; que vagueamos em escuridão, como cegos, e nos entregamos a paixões más (Efésios 2.1; 4.17). Se uma natureza tão corrompida não tem poder de desejar a justiça, segue-se que a vida de Deus está apagada em nós.

Assim, a graça de Cristo é uma verdadeira ressurreição da morte. Agora, esta graça nos é conferida pelo Evangelho; não que tanta energia seja possuída pela voz externa, a qual em muitos casos atinge os ouvidos sem propósito, mas porque Cristo fala aos nossos corações interiormente pelo seu Espírito, para que possamos receber pela fé a vida que nos é oferecida. Porque ele não fala indiscriminadamente de todos os mortos, mas se refere aos eleitos somente, cujos ouvidos Deus penetra e abre, para que possam receber a voz de seu Filho, que lhes restitui a vida. Esta dupla graça, de fato, Cristo

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expressamente nos garante por suas palavras, quando diz: “os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão.”; pois não é menos contrário à natureza que os mortos devam ouvir, do que eles devam ser trazidos de volta para a vida que eles tinham perdido; e, portanto, ambos procedem do poder secreto de Deus.

“Mas a hora vem, e é agora”. Assim, Cristo fala disto como uma coisa que nunca tinha antes acontecido; e, de fato, a proclamação do Evangelho foi uma nova e repentina ressurreição do mundo. Mas a palavra de Deus não fez sempre isso, a saber, dar vida aos homens? Esta questão pode ser facilmente respondida. A doutrina da Lei e os Profetas foi dirigida ao povo de Deus e, consequentemente, deve ter tido um pouco a intenção de preservar a vida daqueles que eram os filhos de Deus do que para trazê-los de volta à morte. Mas foi o contrário com o Evangelho, pelo qual as nações anteriormente distantes do reino de Deus, separadas de Deus, e privadas de toda a esperança de salvação, foram convidadas a se tornarem participantes da vida.

A Vida Imanente de Jesus é Igual à de Deus Pai - Comentário de João 5.26

“Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo.” (João 5.26)

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“Pois assim como o Pai tem vida em si mesmo”. Jesus mostra de onde a sua voz deriva tal eficácia; ou seja, dAquele que é a fonte da vida, e por sua voz derrama-a sobre os homens; porque a vida não fluiria para nós da sua boca, se ele não tivesse em si a causa e a origem da mesma. De Deus é dito ter a vida em si mesmo, não só porque ele vive somente pelo seu próprio poder inerente, mas porque, contendo em si a plenitude da vida, ele comunica a vida a todas as coisas. E isso, de fato, pertence peculiarmente a Deus, como é dito, em ti está a fonte da vida (Salmo 36,9). Mas, por causa da majestade de Deus, que sendo removida para longe de nós, se assemelharia a uma fonte desconhecida e oculta, por esta razão, a mesma tem se manifestado abertamente em Cristo. Temos, assim, uma fonte aberta colocada diante de nós, da qual podemos tirar. O significado das palavras é o seguinte: "Deus não escolheu ter a vida oculta, e, por assim dizer, enterrada dentro de si mesmo, e, portanto, ele a derramou em seu Filho, para que pudesse fluir para nós." Daí podemos concluir, que esta faculdade de ter também vida em si mesmo, é estritamente aplicada a Cristo, no que concerne a ter se manifestado na carne.

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Jesus é o Juiz de Vivos e de Mortos - Comentário de João 5.27

“E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem.” (João 5.27)

“E lhe deu poder”. Jesus mais uma vez repete que o Pai tem lhe dado domínio, que ele pode ter plenos poderes sobre todas as coisas no céu e na terra. A palavra (exousia) aqui denota autoridade. O julgamento está aqui para colocar domínio e governo, como se ele tivesse dito, que o Pai lhe nomeou para ser Rei, para governar o mundo, e exercer o poder do Pai em si mesmo.

“Porque ele é o Filho do homem”. Esta razão, que é adicionada imediatamente, merece ser observada particularmente, pois significa que ele vem aos homens, adornado com tanta magnificência de poder, para que ele possa lhes transmitir o que ele recebeu do Pai. Alguns pensam que esta passagem contém nada mais do que aquilo que é dito por Paulo, que Cristo, tendo sido achado na forma de Deus se esvaziou, tomando a forma de servo, e humilhou-se até a morte de cruz; e, portanto, Deus o exaltou e lhe deu um nome que é sobre todo nome, para que todo joelho se dobre diante dele. (Filipenses 2.7-10)

Mas de minha parte, considero o significado mais amplo: que Cristo, no que concerne a ser homem, foi nomeado pelo Pai para ser o Autor da vida, para que não seja necessário irmos muito longe para procurá-lo; porque Cristo não recebeu isto para si mesmo, como se ele

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precisasse, mas a fim de nos enriquecer com a sua riqueza. Pode ser resumido assim: "O que tinha sido escondido em Deus nos é revelado em Cristo, como homem, e a vida, que antigamente era inacessível, é agora colocada diante de nossos olhos." Há alguns que separam esse argumento de sua conexão imediata, e o juntam com a frase seguinte; mas esta é uma interpretação forçada, e está em contradição com o significado de Cristo.

A Autoridade Suprema da Doutrina de Jesus - Comentário de João 7.16

(Nota do tradutor: Calvino comentou antes, os versículos precedentes a este, nos quais vemos os judeus contestando a autoridade de Jesus, e a sua doutrina, afirmando que não podia ser de origem divina, por que sabiam que ele era filho de José e de Maria - se bem que não sabiam que ele não filho biológico de José pois tivera seu corpo formado no ventre de Maria, quando virgem, pelo poder do Espírito Santo, sem que José tivesse coabitado com ela até que Ele tivesse nascido – e também se escandalizavam nele e o rejeitavam porque não havia estudado nas escolas rabínicas para que pudesse ser considerado um mestre de religião entre os judeus.)

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“Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou.” (João 7.16)

“A minha doutrina não é minha”. Cristo mostra que essa circunstância, a qual foi uma ofensa para os judeus, era sim uma escada pela qual eles deveriam subir mais alto para perceber a glória de Deus; como se tivesse dito, "Quando você vê um professor não treinado na escola dos homens, você sabe que eu tenho sido ensinado por Deus." Porque a razão pela qual o Pai Celestial determinou que seu filho deveria proceder da oficina de um carpinteiro, em vez das escolas dos escribas, foi para que a origem do Evangelho pudesse ficar mais evidente, para que ninguém pudesse pensar que tinha sido originado na terra, pela imaginação de qualquer ser humano que fosse o seu autor. Assim também Cristo escolheu homens ignorantes e sem instrução para serem seus apóstolos, e lhes permitiu permanecer três anos na ignorância, quando, poderia tê-los instruído em um único instante, fazendo-lhes novos homens, e até mesmo como anjos que tinham acabado de descer do céu.

“Mas daquele que me enviou”. Nesse comenos, Cristo mostra onde devemos derivar a autoridade da doutrina espiritual - somente de Deus. E quando ele afirma que a doutrina de seu Pai não é dele, ele olha para a capacidade dos ouvintes, que não tinham uma elevada opinião dele senão a de que fosse um mero homem. A título de concessão, portanto, ele se permite ser contado diferente de seu Pai, mas, de modo a antecipar nada senão aquilo que o Pai havia ordenado. A suma do que se

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afirma é, que o que ele ensina em nome de seu Pai não é uma doutrina de homens, e não procede de homens, de modo que alguém seja capaz de desprezá-la com impunidade. Vemos por qual método ele atribui autoridade para sua doutrina. É referindo-se a Deus como seu autor. Vemos também, com que base, e por que razão, ele exige que ele deve ser ouvido. É porque o Pai o enviou para ensinar. Ambas as coisas deveriam ser observadas por cada homem que toma sobre si o cargo de professor na Igreja, e que deseja que ele deva ser acreditado.

Conhece-se a Origem Celestial da Doutrina Quando a Vivemos - Comentário de João 7.17

“Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim mesmo.” (João 7.17)

“Se alguém quiser fazer a vontade dele”. Jesus antecipa as objeções que poderiam ser feitas. Porque desde que ele tinha muitos adversários naquele lugar, alguns poderiam facilmente ter murmurado contra ele desta maneira: "Por que te glorias no nome de Deus? Porque nós não conhecemos que tens procedido dele. Por que, então, tu nos pressiona afirmando que não admitimos que nada nos ensina, senão somente aquilo que é pelo mandamento de Deus? "Cristo, portanto, responde que o julgamento flui do temor e da reverência a Deus; de

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modo que, se suas mentes estivessem bem dispostas ao temor de Deus, eles teriam facilmente percebido se o que ele pregava era verdade ou não. Ele de igual modo lhes administrou, por isso, uma repreensão indireta; porque como não conseguiam distinguir entre falsidade e verdade, porque lhes faltava o principal requisito para o bom entendimento, a saber, a piedade e o desejo sincero de obedecer a Deus.

Esta afirmação é altamente digna de observação. Satanás continuamente nos ataca, e espalha suas redes em todas as direções, para que ele possa nos tomar de surpresa por seus enganos. Aqui Cristo nos previne para tomar cuidado para não nos expormos a qualquer uma de suas imposturas, assegurando-nos que, se estamos preparados para obedecer a Deus, ele nunca deixará de nos iluminar, com a luz de seu Espírito, para que sejamos capazes de distinguir entre a verdade e a mentira. Nada mais, portanto, nos impede de julgar corretamente, mas quando somos indisciplinados e obstinados; e cada vez que Satanás nos engana, somos justamente punidos por nossa hipocrisia. De igual forma Moisés avisa que, quando surgirem falsos profetas, nós somos provados por Deus; porque aqueles cujos corações são retos nunca serão enganados (Deuteronômio 13.3). Por isso, é evidente quão perversa e estupidamente muitas pessoas nos dias de hoje, temendo o perigo de cair em erro, por este grande medo fecham a porta contra todos os desejos para aprender; como se o nosso Salvador não tivesse uma boa base para dizer, “Batam, e a porta será aberta para vocês” (Mateus 7.7).

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Pelo contrário, se somos inteiramente dedicados à obediência a Deus, não vamos duvidar que Ele nos dará o espírito de discernimento, para ser nosso contínuo diretor e guia. Se outros optam por vacilar, eles vão por fim, ver quão frágeis são os pretextos para a sua ignorância. E, de fato, vemos que todos os que agora hesitam, e preferem valorizar a sua dúvida, em vez de, por leitura ou audição, da Palavra de Deus, investigar sinceramente onde a verdade de Deus está, têm a audácia de se rebelar contra Deus com base em princípios gerais. Um homem dirá que ele ora pelos mortos, porque, desconfiando de seu próprio julgamento, ele não pode se aventurar a condenar as falsas doutrinas inventadas por homens sobre o purgatório. Outro dirá que ele não possui tanta acuidade para ser capaz de distinguir entre a pura doutrina de Cristo e os artifícios espúrios dos homens, mas ainda assim ele vai ter acuidade suficiente para roubar ou cometer perjúrio. Em suma, todos aqueles que duvidam, que se cobrem com um véu de dúvida em todos os assuntos que são atualmente objeto de controvérsia, exibem um desprezo manifesto de Deus sobre assuntos que não são de todo obscuros.

Não precisamos nos surpreender, portanto, que a doutrina do Evangelho seja recebida por muito poucas pessoas nos dias de hoje, uma vez que há tão pouco temor de Deus no mundo. Além disso, estas palavras de Cristo contêm uma definição da verdadeira religião; isto é, quando estamos preparados de coração para seguir a vontade de Deus, o que ninguém pode fazer, a menos que tenha renunciado a seus próprios pontos de vista.

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“Ou se eu falo por mim mesmo”. Devemos observar de que maneira Cristo deseja que uma decisão seja formada sobre qualquer doutrina que seja. ele deseja que o que é de Deus deve ser recebido sem controvérsia, mas nos permite rejeitar livremente tudo o que é do homem; porque essa é a única distinção que ele estabelece, pela qual devemos distinguir entre doutrinas.

(Nota do tradutor: Ao dizer que todo aquele que quisesse fazer a vontade do Pai poderia conhecer que Jesus não falou por si mesmo, pois conheceria a mesma doutrina que ele ensinava da parte do Pai, isto se aplica de modo muito claro ao fato de que a doutrina de Deus é conhecida pela aplicação do Espírito Santo nos crentes, do mesmo modo como o Espírito também atuava no Senhor Jesus Cristo. Não se trata portanto de mero conhecimento intelectual do seu ensino, mas sobretudo de verificar a sua realidade em nossa própria vida.)

Verdadeira Testemunha da Verdade é Somente Quem Faz Tudo Para a Glória de Deus - Comentário de João 7.18

“Quem fala por si mesmo está procurando a sua própria glória; mas o que procura a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e nele não há injustiça.” (João 7.18)

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“Aquele que fala por si mesmo”. Até agora Jesus mostrou que não é por nenhuma outra razão que os homens são cegos, senão porque eles não são regidos pelo temor de Deus. Ele agora coloca outra marca na própria doutrina, quanto a que pode ser conhecida se é de Deus ou se é do homem. Porque cada coisa que exibe a glória de Deus é santa e divina; mas cada coisa que contribui para a ambição dos homens, e, para exaltá-los, obscurece a glória de Deus, e não somente não tem direito de ser crida, mas deve ser veementemente rejeitada. Quem faz a glória de Deus ser o objeto em todos os seus desejos, nunca irá errar; aquele que provar esta pedra de toque que exalta o nome de Deus jamais será enganado. Também somos lembrados pelo ninguém pode desempenhar fielmente o cargo de professor na Igreja, a menos que seja desprovido de ambição e esteja determinado a fazer ser seu único objetivo promover, ao máximo, a glória de Deus. Quando ele diz que não há injustiça nele, ele quer dizer que não há nada ímpio, nem hipócrita, mas aquilo pode tornar alguém em um reto e sincero ministro de Deus.

(Nota do tradutor: A grande prova da maturidade espiritual se encontra justamente no fato de aprendermos que tudo o que Deus faz é por meio de Jesus Cristo, e pela operação do Espírito Santo. De modo que os crentes não têm do que se gloriar em si mesmos em tudo o que façam no Reino de Deus, uma vez que toda obra genuína do Espírito sempre nos leva a dar toda a glória a Deus, e a não nos gloriarmos o mínimo em nós mesmos. Como toda a plenitude do Espírito Santo

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habitava em Jesus e nele operava, entende-se que, ainda que sendo Deus juntamente com o Pai e o Espírito, tributava toda glória ao Pai em tudo o que o que Ele fazia. Na verdade o Filho sempre glorificou o Pai quer na criação de tudo o que há no céu ou na terra, e sempre há de glorificá-lo, porque é assim que sucede com todo aquele que conhece de fato a Deus, e sabemos que Jesus possui este conhecimento em toda a extensão de sua plenitude, em razão de não ser finito e imperfeito como nós.)

Somente Quem é Pela Verdade Conhece a Deus - Comentário de João 7.28

“Jesus, pois, enquanto ensinava no templo, clamou, dizendo: Vós não somente me conheceis, mas também sabeis donde eu sou; e não vim porque eu, de mim mesmo, o quisesse, mas aquele que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis.” (João 7.28)

“Portanto, Jesus exclamou no templo”. Ele os repreende duramente pela sua temeridade, porque eles arrogantemente gabavam-se num falso parecer, e desta forma se excluíam de um conhecimento da verdade; como se ele tivesse dito: "Vocês sabem todas as coisas, mas vocês nada sabem." E, na verdade, não existe uma forma de praga mais destrutiva do que quando os

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homens estão tão intoxicados pela porção escassa de conhecimento que eles possuem, que ousadamente rejeitam qualquer coisa que seja contrária à sua opinião.

“Vocês me conhecem, e sabem de onde eu sou”. Esta é uma linguagem irônica. Com a falsa opinião que haviam formado a respeito dele, ele contrasta o que é verdadeiro; como se tivesse dito: "Enquanto vocês têm seus olhos fixados na terra, vocês acham que cada parte de mim está diante de seus olhos; e, portanto, me desprezam como vil e desconhecido. Mas Deus testemunha que eu vim do céu; e embora eu possa ser rejeitado por vocês, Deus vai reconhecer que eu sou verdadeiramente seu próprio Filho."

“Mas aquele que me enviou é verdadeiro”. Ele chama a Deus de verdadeiro, no mesmo sentido que Paulo chama de fiel, “Se somos infiéis”, ele diz, “ele permanece fiel, pois não pode negar a si mesmo” (2 Timóteo 2.13).

Pois seu objetivo é provar que o crédito devido ao Evangelho não é no menor grau diminuído pelo maior esforço do mundo para desfazê-lo; que, embora os homens ímpios possam tentar tirar de Cristo o que lhe pertence, ele ainda continua intacto, porque a verdade de Deus é firme e sempre será como Ele mesmo.

Cristo vê que ele é desprezado; mas até agora ele está longe de se render, pelo contrário, ele corajosamente repele a arrogância furiosa daqueles que não o tinham em qualquer estima. Com tal fortaleza inabalável e heroica todos os crentes devem ser dotados; ou melhor,

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jamais, a nossa fé será sólida e duradoura, a menos que tratemos com desprezo à presunção de homens ímpios, quando eles se levantam contra Cristo. Acima de tudo, os professores piedosos, contando com esse apoio, devem perseverar na manutenção da sã doutrina, mesmo que eles tenham que sofrer oposição do mundo todo. Assim Jeremias apela a Deus como seu defensor e guardião, porque ele é condenado como um impostor: “Persuadiste-me, ó Senhor, e persuadido fiquei; mais forte foste do que eu e prevaleceste; sirvo de escárnio todo o dia; cada um deles zomba de mim.” (Jeremias 20.7).

De igual modo Isaías, oprimido por todos os lados por calúnias e injúrias, voa para este refúgio, que Deus irá aprovar a sua causa (Isaías 50.8). E também Paulo, oprimido por julgamentos injustos, recorre contra tudo se firmando no dia da volta do Senhor (1 Coríntios 4.5), reconhecendo que é suficiente ter a Deus somente para nos guardar contra o mundo inteiro, embora este possa se apresentar enfurecido e tempestuoso contra nós.

“Aquele a quem vós não conheceis”. Ele quer dizer que não é surpreendente que ele não seja conhecido pelos judeus, porque eles não conhecem a Deus; porque o início da sabedoria é, contemplar a Deus.

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Jesus é a Única Fonte Que Sacia a Sede Espiritual - Comentário de João 7.37

“No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba.” (João 7.37)

“No último dia”. A primeira coisa que deve ser observada aqui é, que nenhum argumento ou intriga de inimigos aterrorizam a Cristo, de modo a fazer com que desista de seu dever; senão, pelo contrário, a sua coragem aumenta com perigos, de modo que ele perseverou com maior firmeza. Isto é provado pela circunstância do tempo, pelo conjunto da multidão, e pela liberdade que ele usou ao exclamar, enquanto sabia que mãos estavam estendidas por todos os lados para pegá-lo; pois é provável que os oficiais estavam naquele momento prontos para executar sua missão.

Devemos observar a seguir, que nada mais foi do que a proteção de Deus, na qual ele se baseava, que lhe permitiu manter-se firme contra tais esforços violentos daqueles homens, que tinham cada coisa em seu poder. Porque, por qual outra razão pode ser atribuído que Cristo pregou no dia mais público da Festa dos Tabernáculos, no meio do templo, no qual seus inimigos mantinham uma reunião tranquilamente, e depois que eles tinham preparado um grupo de oficiais para prendê-lo, senão porque Deus conteve a raiva deles? No entanto, é muito útil para nós, que o evangelista apresente Cristo

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exclamando em voz alta: “todos os que têm sede venham a Mim”, porque inferimos disto que o convite não foi feito a uma ou duas pessoas apenas, ou como um sussurro baixo e suave, mas que esta doutrina é proclamada a todos, de tal modo que ninguém possa ser ignorante da mesma, senão aqueles que, por vontade própria fechando os seus ouvidos, não perceberão este grito alto e distinto.

“Se alguém tem sede”. Por esta frase ele exorta todos a participarem de suas bênçãos, desde que, a partir de uma convicção da sua própria pobreza, desejem obter assistência. Pois é verdade que somos todos pobres e destituídos de todas as bênçãos, mas está longe de ser verdade que todos são despertados por uma convicção de sua pobreza para buscar socorro. Por isso, sucede que muitas pessoas não mexem um só pé, mas miseravelmente murcham e caem, e ainda há muitos que não são afetados por uma percepção de seu vazio, até que o Espírito de Deus, pelo seu próprio fogo, instiga fome e sede, em seus corações. Pertence ao Espírito, portanto, fazer-nos desejar a sua graça.

Quanto à presente passagem, devemos observar, em primeiro lugar, que ninguém é chamado para obter as riquezas do espírito, senão aqueles que queimam com o desejo delas. Porque sabemos que a dor da sede é mais aguda e atormentadora, para que os homens muito mais fortes, e aqueles que podem suportar qualquer quantidade de labuta, possam ser dominados pela sede. E assim ele convida o sedento e o faminto, a fim de

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prosseguir com a metáfora na qual ele emprega depois a palavra água e a palavra bebida, para que todas as partes do discurso pudessem estar acordes. E eu não tenho dúvida de que ele faz alusão a essa passagem em Isaías, “todos os que têm sede, venham às águas” (Isaías 55.1), porque o que Profeta atribui a Deus deveria ser cumprido plenamente em Cristo, como também o cântico de Maria: “Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos.” (Lucas 1.53).

Ele, portanto, nos exorta para vir direto a si mesmo, como se ele tivesse dito, que é somente ele que pode satisfazer plenamente a sede de todos, e que todos os que buscam mesmo o menor alívio da sua sede espiritual em qualquer outro lugar estão enganados, e trabalhando em vão.

“E beba”. A promessa é adicionada à exortação; pois embora a palavra – e beba - transmita uma exortação, ainda contém em si mesma uma promessa; porque Cristo testifica que ele não é uma cisterna seca e desgastada, mas uma fonte inesgotável, que em grande parte e abundantemente supre a todos os que vêm para beber. Daí segue-se que, se pedirmos a ele o que necessitamos, o nosso desejo não será decepcionado.

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Jesus é Uma Fonte no Coração do Que Nele Crê - Comentário de João 7.38 “Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva.” (João 7.38)

“Aquele que crê em mim”. Jesus aponta agora a maneira de vir a ele, que é, que devemos nos aproximar, não com os pés, mas pela fé; ou em vez disso, vir, nada mais é do que crer, pelo menos, se você definir com precisão a palavra crer; como já disse que nós cremos em Cristo, quando nós o abraçamos como ele é apresentado a nós no Evangelho, cheio de poder, sabedoria, justiça, pureza, vida, e todos os dons do Espírito Santo. Além disso, ele agora confirma mais clara e totalmente a promessa que mencionou antes; pois ele mostra que tem uma grande abundância para nos satisfazer plenamente.

“Do seu interior correrão rios de água viva”. A metáfora parece, sem dúvida, ser um pouco áspera, quando ele diz que rios de água viva correrão do ventre dos crentes; mas não pode haver nenhuma dúvida quanto ao significado, que aqueles que acreditam não sofrerão qualquer falta de bênçãos espirituais. Ele chama isso de água viva, a fonte da qual nunca seca, nem deixa de fluir continuamente. Como a palavra rios se encontra no plural, interpreto-a como denotando a diversidade das graças do Espírito, que são necessárias para a vida espiritual da alma. Em suma, a perpetuidade, assim como a abundância, dos dons e graças do Espírito Santo, são

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aqui prometidas para nós. Alguns entendem que a expressão - as águas fluirão do ventre dos crentes - significa que aquele a quem o Espírito tem sido dado deve fluir para seus irmãos, como devendo haver comunicação mútua entre nós. Mas eu considero que isto seja um significado mais simples, que todo aquele que crer em Cristo terá uma fonte de vida, fluindo em si mesmo, como Cristo disse anteriormente: “Aquele que beber desta água nunca mais terá sede” (João 4.14), porque enquanto a água comum apenas sacia a sede por um curto período de tempo, Cristo diz que pela fé nós bebemos do Espírito, que é uma fonte de água que jorra para a vida eterna

Ainda, ele não diz que, no primeiro dia, os crentes ficarão tão totalmente satisfeitos com Cristo, que jamais terão mais tarde qualquer fome ou sede; mas, ao contrário, o desfrute de Cristo acende um novo desejo dele. Mas o significado é que o Espírito Santo é como um fluir vivo e contínuo nos crentes; como Paulo também declara que ele é a vida em nós (Romanos 8.10), embora nós ainda carreguemos presentemente resquícios de pecado, a causa da morte. E, de fato, como cada um participa dos dons e graças do Espírito Santo, de acordo com a medida de sua fé, não pode possuir uma plenitude perfeita deles na vida presente. Mas os crentes, enquanto fazem progressos na fé, continuamente aspiram a novas adições do Espírito, para que as primícias que provaram os conduzam adiante até a perpetuidade da vida. Mas também são lembrados por ele, quão pequena é a capacidade de nossa fé, uma vez que as graças do Espírito dificilmente entram em nós por gotas, as quais fluem

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como rios, se damos a devida admissão a Cristo; se a fé nos fez capazes de recebê-lo.

“Como diz a Escritura”. Alguns limitam isso à frase anterior, e outros à última; de minha parte, eu o estendo a todo o âmbito do discurso. Além disso, Cristo não aponta aqui, em minha opinião, qualquer passagem particular das Escrituras, mas dá um testemunho extraído da doutrina comum dos Profetas. Pois sempre que o Senhor, prometendo uma abundância de seu Espírito, a compara a águas vivas, ele olha principalmente para o reino de Cristo, ao qual ele direciona as mentes dos crentes. Todas as predições de águas vivas, portanto, têm o seu cumprimento em Cristo, porque somente ele tem aberto e apresentado os tesouros escondidos de Deus. A razão pela qual as graças do Espírito são derramadas sobre ele (Jesus) é para que todos possamos extrair da sua plenitude (João 1.16).

Prova-se Ter a Fé por se Permanecer na Palavra de Cristo - Comentário de João 8.30,31

“30 Ditas estas coisas, muitos creram nele.

31 Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos;”

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(Nota do Tradutor: Nós veremos a partir do verso 31 deste oitavo capitulo do evangelho de João, quão grande debate houve entre Jesus e os judeus em relação à não aceitação deles da afirmação que lhes fizera que eram escravos do pecado, e por conseguinte, de Satanás. Todavia, nunca podemos esquecer que tudo o que Jesus fez e ensinou foi por amor, e com misericórdia de nossa condição, com o propósito de nos salvar da escravidão ao pecado e ao diabo. Este amor, pode ser visto na parte inicial deste oitavo capítulo, na forma pela qual Ele livrou a mulher adúltera da condenação, especialmente por parte de religiosos de Israel. Assim, se nos parece haver alguma forma de aspereza ou rigor nas palavras de Jesus, devemos apagar isto de nossas mentes, porque elas são a mais pura expressão da verdade, de modo que as recebendo e recorrendo a Ele pela fé, possamos ser ajudados e livrados da condenação eterna que paira sobre a cabeça de toda e qualquer pessoa neste mundo.)

30. “Enquanto ele falava essas coisas, muitos creram nele”. Embora os judeus, naquele tempo, quase se assemelhassem a um solo seco e estéril, todavia Deus não permitiu que a semente da sua palavra fosse totalmente perdida. Assim, ao contrário de todas as esperanças, e em meio a muitos obstáculos, aparecem alguns frutos. Mas o evangelista imprecisamente dá o nome de fé para o que era apenas uma espécie de preparação para a fé, porque ele nada afirma além disso a respeito deles do que estavam dispostos a receber a doutrina de Cristo.

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31. “Se vós permanecerdes na minha palavra”. Aqui Cristo lhes adverte, em primeiro lugar, que não é suficiente para qualquer pessoa ter começado bem, se o seu o progresso até o fim não corresponder a este início; e por esta razão ele exorta à perseverança na fé àqueles que provaram sua doutrina. Quando ele diz que os que estão firmemente enraizados na sua palavra, e que por isso continuam nela, são os seus verdadeiros discípulos, ele quer dizer que muitos professam ser discípulos que ainda não são na realidade, e não têm direito de serem contados como tal. Ele distingue seus seguidores hipócritas por esta marca, que aqueles que falsamente se vangloriam numa falsa fé recuam tão breve assim que têm entrado na jornada, ou pelo menos no meio dela; mas os crentes perseveram constantemente até o fim. Se, portanto, desejamos que Cristo deve nos contar como seus discípulos, nós devemos nos esforçar para perseverar.

(Nota do tradutor: temos assim, o alerta da misericórdia do Senhor, para que não nos iludamos pensando que somos seus discípulos e que por conseguinte nos encontramos seguramente salvos, quando nos falta esta evidência da perseverança até o fim na fé e na obediência a Ele e aos seus mandamentos, que caracteriza a todos os que são genuinamente salvos.)

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A Verdade de Jesus Liberta do Pecado, do Diabo e da Morte - Comentário de João 8.32

“e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8.32)

(Nota do tradutor: Este “e”, conjunção de ligação, do início da frase, une o que está sendo dito agora pelo Senhor Jesus, ao que havia afirmado no verso anterior, ou seja, que isto que agora se afirma sucede a todos aqueles que perseveram na fé até o fim, ou seja, eles conhecerão a verdade que os libertará da escravidão ao pecado e ao diabo.)

“E conhecereis a verdade”. Ele diz que os que chegaram a algum conhecimento dele conhecerão a verdadeira Verdade. Aqueles a quem Cristo se dirigiu eram ainda tão ignorantes e mal conheciam os primeiros rudimentos da fé, e, portanto, não precisamos nos surpreender que ele lhes prometa uma mais completa compreensão de sua doutrina. Mas a afirmação é geral. Por isso, qualquer progresso que qualquer um de nós tem feito no Evangelho, que ele saiba que precisa de novas adições. Esta é a recompensa que Cristo confere à sua perseverança, que ele o admite a uma maior familiaridade com ele; embora ele não faça, desta forma, nada além do que adicionar um outro dom ao primeiro, de modo que nenhum homem deve pensar que tem direito a qualquer recompensa. Pois é ele que aplica a sua Palavra em nossos corações, pelo seu Espírito, e é ele que, diariamente, afugenta de nossas mentes as nuvens

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da ignorância que obscurecem o brilho do Evangelho. A fim de que a verdade possa ser plenamente revelada a nós, devemos sincera e ardentemente nos esforçar para alcançá-la. É a mesma verdade invariável que Cristo ensina seus seguidores desde o início até o fim, mas sobre aqueles que foram a princípio iluminados por ele, é como se fosse com pequenas faíscas, ele a expande até que chegue a ser uma luz plena. Assim, os crentes, até que tenham sido totalmente confirmados, são em alguma medida ignorantes do que sabem; e ainda assim não é um conhecimento tão pequeno ou obscuro da fé a ponto de que não seja eficaz para a salvação.

“A verdade vos libertará”. Ele recomenda o conhecimento do Evangelho a partir do fruto que dele deriva, ou - o que é a mesma coisa - a partir de seu efeito, ou seja, que nos restaura à liberdade. Esta é uma bênção inestimável. Daí segue-se que nada é mais excelente ou desejável do que o conhecimento do Evangelho. Todos os homens sentem e reconhecem que a escravidão é um estado muito infeliz; e uma vez que o Evangelho nos livra dela, segue-se que deriva do Evangelho o tesouro de uma vida abençoada.

Temos agora de averiguar que tipo de liberdade é aqui descrito por Cristo, ou seja, que nos liberta da tirania de Satanás, do pecado e da morte espiritual. E se nós o obtivemos por meio do Evangelho, é evidente a partir disso que somos por natureza escravos do pecado. Em seguida, deve ser verificado qual é o método de nossa libertação. Porque até que sejamos governados por

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nossos sentidos e pela nossa disposição natural, estamos em escravidão ao pecado; mas quando o Senhor nos regenera pelo seu Espírito, também ele nos torna livres, de modo que, soltos dos laços de Satanás, de bom grado obedecemos a justiça. Mas a regeneração (novo nascimento que recebemos do Espírito Santo) procede da fé, e, portanto, é evidente que a liberdade procede do Evangelho.

Assim que nos gloriemos somente em Cristo, nosso Libertador, uma vez que somos conscientes da nossa própria escravidão. Para a razão pela qual o Evangelho deve ser reconhecido na nossa libertação é, que nos oferece Cristo para sermos libertados do jugo do pecado. Por fim, devemos observar que a liberdade tem os seus graus de acordo com a medida da fé; e Paulo, portanto, embora claramente feito livre, ainda gemia e ansiava pela perfeita liberdade, conforme ele afirma em relação a si mesmo em Romanos 7.24.

O Orgulho Religioso Mata - Comentário de João 8.33 “Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres?” (João 8.33)

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(Nota do tradutor: No comentário deste versículo nós vemos quão perigoso é para o destino eterno da nossa alma, que estejamos apegados a alguma forma de orgulho religioso, especialmente nos casos em que este foi adquirido por conta de tradição religiosa familiar ou de nossos antepassados, ou ainda da nação ou grupo em que vivemos. A situação do orgulho dos judeus que aqui será vista, pode ser estendida a todos os demais, pois ninguém mais do que eles, poderia abrigar sentimentos de que já eram salvos, por conta da aliança que Deus havia feito com eles através de Moisés, e com nenhuma outra nação da terra, e todavia, nós os encontramos sendo admoestados por Cristo a não colocarem a sua confiança no fato de que por conta disto fossem salvos de fato, uma vez que não é por condição religiosa que somos salvos, mas por uma obra de libertação da graça divina operando em nosso coração, tornando-nos novas criaturas em Cristo Jesus.)

“Somos descendência de Abraão”. É incerto se o evangelista se refere aqui às mesmas pessoas das quais havia falado antes, ou a outros. Minha opinião é que é àqueles responderam a Cristo de forma confusa, como geralmente acontece em uma multidão promíscua; e que esta contenda foi feita sim por desprezadores do que por aqueles que acreditaram. É um modo de expressão muito habitual nas Escrituras, sempre que parte de um povo é mencionada, atribuir em geral, a todos o que pertence apenas àquela parte.

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Daqueles que objetaram que eles eram descendentes de Abraão, e que sempre foram livres, facilmente se infere das palavras de Cristo, qual liberdade foi prometida a eles como para pessoas que eram escravas. Mas eles não podem suportar o que lhes é dito, que sendo um povo santo e eleito, estava reduzido à escravidão Para qual proveito foi a adoção e aliança (Romanos 9.4), pela qual eles foram separados de outras nações, senão para que fossem contados filhos de Deus? Eles acham que, por isso, que eles são insultados, quando a liberdade é exibida para eles como uma bênção que eles ainda não possuem. Mas pode ser pensado estranho que eles devam afirmar que nunca foram escravizados, uma vez que tinham sido tão frequentemente oprimidos por vários tiranos, e naquela época estavam submetidos ao jugo romano, e gemiam sob o jugo mais pesado de escravidão; e, assim, isto pode ser facilmente visto, a saber, quão tola era sua jactância.

Quem é Liberto por Jesus Não é Mais Escravo do Pecado - Comentário de João 8.34

“Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado.” (João 8.34)

“Todo homem que comete pecado é escravo do pecado”. Este é um argumento tirado de coisas opostas. Os judeus se gabavam de que eram livres. Jesus prova que eles são

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escravos do pecado, porque, sendo escravizados pelos desejos da carne, pecavam continuamente. É surpreendente que os homens não sejam convencidos por sua própria experiência, de modo que, deixando de lado seu orgulho, eles possa aprender a ser humildes. E isso é muito frequente ocorrer nos dias de hoje, que, quanto maior a carga de vícios pela qual um homem é puxado para baixo, mais ferozmente ele profere palavras sem sentido exaltando o livre arbítrio.

Cristo parece dizer aqui nada mais do que aquilo que foi dito anteriormente por filósofos, que os que são dedicados às suas paixões estão sujeitos a uma escravidão mais degradante. Mas há um significado mais profundo e oculto, ou seja; pois ele não argui o que os homens maus trazem em si mesmos, mas o que é a condição da natureza humana. Os filósofos pensavam que qualquer homem é escravo por sua própria escolha, e que pela mesma escolha ele retorna à liberdade. Mas aqui Cristo afirma, que todos os que não são livrados por ele estão em um estado de escravidão, e que todos sofreram o contágio do pecado da natureza corrompida, sendo escravos desde seu nascimento. Nós devemos atentar para a comparação entre a graça e a natureza, à qual Cristo aqui se refere; a partir da qual pode ser facilmente visto que os homens estão destituídos de liberdade, a não ser que sejam resgatados desta condição por uma ajuda externa.

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A Libertação do Pecado por Jesus é Para Sempre - Comentário de João 8.35,36 “35 O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre.

36 Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.”

35. “Ora, o escravo não permanece sempre na casa”. Jesus adiciona uma comparação, tirada das leis e do direito político, no sentido de que um escravo, embora ele possa ter poder por um tempo, ainda não é o herdeiro da casa; a partir do que ele infere que não há perfeita e durável liberdade, senão a que é obtida por meio do Filho. Desta forma ele acusa os judeus de vaidade, porque eles detêm, senão uma máscara em vez da realidade; pois, quanto ao fato de serem descendentes de Abraão, eles não eram nada senão uma máscara. Eles tinham um lugar na Igreja de Deus, mas um lugar como Ismael, um escravo, levantando-se contra seu irmão nascido livre, usurpado por um curto espaço de tempo (Gálatas 4.29). A conclusão é que todos os que se vangloriam de serem filhos de Abraão têm nada mais do que uma vazia e enganosa pretensão.

36. “Se, pois, o Filho vos libertar”. Por essas palavras ele quer dizer que o direito à liberdade pertence a si mesmo, e que todos os outros, sendo escravos nascidos, não podem ser libertados, senão pela sua graça. Porque

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aquilo que ele possui em sua própria natureza, ele nos concede por adoção, quando somos enxertados pela fé em seu corpo, e nos tornamos seus membros. Assim, devemos lembrar o que eu disse anteriormente, que o Evangelho é um instrumento pelo qual obtemos a nossa liberdade. Então a nossa liberdade é um benefício concedido por Cristo, mas o obtemos pela fé, em consequência da qual também Cristo nos regenera pelo seu Espírito. Quando ele diz que eles serão verdadeiramente livres, há uma ênfase na palavra verdadeiramente; para que façamos o contraste com a persuasão tola pela qual os judeus estavam cheios de orgulho, do mesmo modo que a maior parte do mundo imagina que possui um reino, enquanto se encontra na mais miserável escravidão ao pecado.

A Escravidão ao Pecado Implica Escravidão a Satanás - Comentário de João 8.44,45 “44 Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da menti

45 Mas, porque eu digo a verdade, não me credes.”

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(Nota do tradutor: Foi somente depois de muito insistir pacientemente com os judeus para que entendessem que necessitavam ser libertados por Ele do domínio do pecado, que nos torna também escravos de Satanás, que nosso Senhor se dirigiu aos judeus com estas palavras não com o intuito de feri-los ou ofendê-los, como eles estavam fazendo com Ele, mas simplesmente de alertá-los, por misericórdia, qual era o verdadeiro estado miserável em que eles se encontravam diante de Deus, e não somente eles, mas toda a humanidade, por causa do pecado.)

44. “Vós tendes por pai o diabo”. O que Jesus tinha dito duas vezes antes, nos versos anteriores, de modo velado, agora ele expressa mais plenamente, que os judeus que contendiam com ele eram filhos do diabo, mas temos que apresentar o contraste, que eles não podiam acalentar tal ódio intenso para com o Filho de Deus, se não fosse pelo fato de que eles tinham por pai o inimigo perpétuo de Deus. Ele os chama de filhos do diabo, não somente porque eles imitam suas obras, mas porque eles são liderados por sua instigação a lutar contra Cristo. Porque, assim como nós somos chamados de filhos de Deus, não só porque nos assemelhamos a ele, mas porque ele nos governa pelo seu Espírito, porque Cristo vive e é poderoso em nós, de modo a nos conformar à imagem de seu Pai; assim, por outro lado, do diabo é dito ser o pai daqueles cujo entendimento ele cega, cujo coração ele move para cometer toda forma de injustiça, e em quem, em suma, atua poderosamente e exerce sua tirania;

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como vemos em 2 Coríntios 4.4; Efésios 2.2, e em outras passagens.

Os maniqueístas tola e inutilmente abusaram desta passagem para provar seus dogmas absurdos. Porque, desde que a Escritura nos chama de filhos de Deus, isso não se refere à transmissão ou origem da substância divina, mas à graça do Espírito, que nos regenera para uma novidade de vida; de modo que esta afirmação de Cristo não se relaciona à transmissão de substância, mas à corrupção da natureza, da qual a rebelião do homem foi a causa e origem. Quando os homens, portanto, nascem filhos do diabo, isto não deve ser imputado à criação, mas à culpa do pecado. Agora Cristo prova isso a partir do efeito, porque eles voluntariamente, e por sua própria vontade, estão dispostos a seguir o diabo.

“Ele foi homicida desde o princípio”. Ele explica o que são aqueles desejos e menciona dois casos, crueldade e falsidade; em que os judeus muito se assemelhavam a Satanás. Quando ele diz que o diabo era um assassino, ele quer dizer que ele planejou a destruição do homem; porque tão logo o homem fora criado, Satanás, impulsionado por um desejo perverso de causar injúria, se esforçou para destruí-lo. Cristo não se refere ao princípio da criação, como se Deus tivesse implantado nele a disposição de fazer dano desde que fora criado; mas ele condena em Satanás a corrupção da natureza, que ele trouxe sobre si mesmo. Isto aparece de forma mais clara a partir da frase, em que ele diz:

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“Ele não permaneceu na verdade”. Pois, ainda que aqueles que imaginam que o diabo era mau por natureza, se esforçando para produzir enganos, todavia estas palavras afirmam claramente que houve uma mudança para pior, e que a razão pela qual Satanás era um mentiroso era, que se revoltou contra a verdade Que ele é um mentiroso, não surge a partir de sua natureza ter sido sempre contrária à verdade, mas porque ele caiu desta por uma queda voluntária. Esta descrição de Satanás é muito útil para nós, para que todas as pessoas possam se esforçar para ter cuidado com suas armadilhas, e, ao mesmo tempo, repelir sua violência e fúria; com que ele ruge como um leão, buscando a quem possa tragar (1 Pedro 5.8), e tem mil estratagemas em seu comando para enganar. Tanto mais deveriam os crentes a ser abastecidos com armas espirituais para lutar, e tanto mais intensamente deveriam manter guarda com vigilância e sobriedade. Agora, se Satanás não pode deixar de lado essa disposição, não devemos ficar alarmados com isso, como se fosse uma nova e incomum ocorrência, quando os erros brotam extremamente numerosos e variados; porque Satanás usa seus seguidores como foles, para enganar o mundo por seus ardis. E nós não precisamos ficar surpresos que Satanás faça tais esforços extenuantes para extinguir a luz da verdade; pois ela é a única vida da alma. Assim, então, a ferida mais importante e mais mortal para matar a alma é a falsidade.

“Porque a verdade não está nele”. Esta declaração, que imediatamente segue a anterior, é uma confirmação, a

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posteriori, ou seja, que é retirada do efeito. Porque Satanás odeia a verdade, e portanto, não pode suportá-la, mas, ao contrário, é inteiramente coberto com falsidades. Daí Cristo infere que ele está totalmente caído da verdade, e totalmente afastado dela. Não vamos nos maravilhar, portanto, se ele exibe diariamente os frutos de sua apostasia.

“Quando ele profere mentira”. Estas palavras geralmente são explicadas como se Cristo tivesse afirmado que a culpa da mentira não pertence a Deus, que é o Autor da natureza, mas, ao contrário, procede de corrupção. Mas eu explico de forma mais simples, que é habitual ao diabo falar mentira, e que ele nada sabe, senão inventar corrupções, fraudes, e enganos. E ainda assim, com justiça inferimos a partir destas palavras, que o diabo tem esse vício de si mesmo, e que, enquanto isto que é peculiar a ele, pode igualmente ser considerado acidental; porque, ao mesmo tempo Cristo ao afirmar ser o diabo o inventor da mentira, ele evidentemente o separa de Deus, e ainda declara que ele é contrário a Deus.

“Porque ele é um mentiroso, e pai da mentira”. A palavra pai tem o mesmo objeto como a declaração anterior; porque a razão pela qual é dito de Satanás ser o pai da mentira é, porque ele está afastado de Deus, em quem somente a verdade habita e de quem flui como a sua única fonte.

45. “Mas porque eu digo a verdade”. Jesus confirma a declaração anterior; porque, uma vez que os judeus não

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têm outra razão para se oporem a ele, senão porque a verdade é odiosa e intolerável para eles, eles mostram claramente que são filhos de Satanás.

A Obra de Deus é Viver pela Fé em Jesus - Comentário de João 6.29

“Respondeu-lhes Jesus: A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi enviado.” (João 6.29)

“A obra de Deus é esta”. Eles tinham falado de obras. Cristo lhes lembra de uma única obra, isto é, a da fé; pelo que ele se refere que todo compromisso dos homens sem fé é vão e inútil, mas que somente a fé é suficiente, porque é somente isto que Deus requer de nós, que creiamos. Porque há aqui um contraste implícito entre a fé e as obras e os esforços dos homens; como se ele tivesse dito, os homens labutam sem propósito, quando eles se esforçam para agradar a Deus sem fé.

Esta é uma passagem notável, mostrando que, embora os homens se atormentem durante toda sua vida, ainda, eles perdem seus esforços e dores, se eles não têm fé em Cristo como a regra de sua vida. Aqueles que inferem que esta passagem está ensinando que a fé é um dom de Deus estão errados; porque Cristo não mostra agora o que Deus produz em nós, mas o que ele deseja e exige de nós.

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Mas podemos achar estranho que Deus nada aprove, senão somente a fé; porque o amor ao próximo não deveria ser desprezado, e os outros exercícios de religião não deveriam perder seu lugar e honra. Então, embora a fé possa manter a posição mais elevada, ainda outras obras não são supérfluas. A resposta é fácil; porque a fé não exclui nem o amor ao próximo ou qualquer outra boa obra, porque ela os contém a todos dentro de si. A fé é chamada a única obra de Deus, porque, por meio dela possuímos a Cristo, e assim nos tornamos filhos de Deus, para que ele nos governe pelo seu Espírito. Assim, então, porque Cristo não separa a fé de seus frutos, não precisamos nos maravilhar que ele faça com que a fé seja o primeiro e o último.

“Que creiais naquele que ele enviou”. O que é a importância da palavra crer, temos explicado no terceiro capítulo. Deveria sempre ser lembrado que, para se ter uma percepção completa do poder da fé, devemos entender o que Cristo é, em quem cremos, e por que ele nos foi dado pelo Pai. É um sofisma sem valor, sob o pretexto desta passagem, afirmar que somos justificados por obras, se a fé justifica, porque é também chamada de uma obra. Primeiro, está claro o suficiente que Cristo não fala com estrito rigor, quando ele chama a fé de uma obra, assim como Paulo faz uma comparação entre a lei da fé e a lei das obras (Romanos 3.27). Em segundo lugar, quando nós afirmamos que os homens não são justificados pelas obras, entendemos obras do mérito pelo qual os homens podem obter o favor de Deus. Agora, a fé não traz nada a Deus, senão, pelo contrário,

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coloca o homem diante de Deus como vazio e pobre, para que ele possa ser preenchido com Cristo e com a sua graça. Isto é, portanto, se podemos permitir a expressão, uma obra passiva, para a qual nenhuma recompensa possa ser paga, e sem conceder ao homem qualquer outra justiça do que aquela que ele recebe de Cristo.

Jesus é o Alimento da Vida Eterna - Comentário de João 6.35

“Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.” (João 6.35)

“Eu sou o pão da vida”. Primeiro, ele mostra que o pão, que eles pediram com escárnio nos versos anteriores, está diante de seus olhos; e, em seguida, os repreende. Ele começa com doutrina, para fazer mais evidente que eles eram culpados de ingratidão. Existem duas partes da doutrina; pois ele mostra onde devemos buscar a vida, e como podemos apreciá-la. Nós sabemos o que deu ocasião para Cristo usar essas metáforas; era porque o maná e a alimentação diária tinham sido mencionados. Mas, ainda assim esta figura está melhor adaptada para ensinar as pessoas ignorantes do que um estilo simples. Quando comemos o pão para a nutrição do corpo, vemos mais claramente não apenas a nossa própria fraqueza, mas também o poder da graça divina, em que, sem pão, Deus desse ao corpo um poder secreto de nutrir a si

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mesmo. Assim, a analogia que é traçada entre o corpo e a alma, nos permite perceber mais claramente a graça de Cristo. Porque quando aprendemos que Cristo é o pão pelo qual nossas almas devem ser alimentadas, isto penetra mais profundamente em nossos corações do que se Cristo simplesmente dissesse que ele é a nossa vida

Deve ser observado, no entanto, que a palavra pão não expressa o poder vivificante de Cristo tão plenamente como nós o sentimos; porque o pão não faz começar a vida, mas nutre e sustenta a vida que já possuímos. Mas, graças à bondade de Cristo, não somente continuamos a possuir a vida, mas temos o início da vida, e, portanto, a comparação é em parte inadequada; mas não há nenhuma inconsistência nisto, pois Cristo adapta seu estilo às circunstâncias do discurso que anteriormente tinha apresentado. Agora, a questão que tinha sido levantada nos versos anteriores, qual das duas era a alimentação mais eminente entre os homens, a de Moisés (maná) ou a do próprio Cristo? Esta é também a razão pela qual ele chama isto de pão apenas, pois foi somente o maná que eles opuseram a ele, e, portanto, julgou suficiente contrastá-lo com um tipo diferente de pão. A doutrina é simples, “Nossas almas não vivem por um poder intrínseco, por assim dizer, ou seja, por um poder que elas têm, naturalmente, em si mesmas, mas emprestam a vida a partir de Cristo."

“Aquele que vem a mim”. Ele agora define a maneira de tomar esse alimento; é quando recebemos a Cristo pela

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fé. Pois é de nenhum proveito para os incrédulos que Cristo seja o pão da vida, porque permanecem sempre vazios; assim, então, Cristo se torna nosso pão, quando chegamos a ele como pessoas famintas, para que ele possa nos saciar. Vir a Cristo e crer nele, nesta passagem, é a mesma coisa; mas a palavra anterior destina-se a expressar o efeito da fé, ou seja, que é em consequência de sermos impulsionados pelo sentimento de nossa fome que nós corremos a Cristo para buscar vida.

Aqueles que inferem desta passagem que comer Cristo é a fé, e nada mais, raciocinam inconclusivamente. Eu prontamente reconheço que não há nenhuma outra maneira em que nós nos alimentamos de Cristo a não ser por crermos; mas o comer é o efeito e fruto da fé, em vez da própria fé. Porque a fé não olha para Cristo apenas como à distância, mas o abraça, para que ele possa se tornar nosso e habitar em nós. Ela nos faz ser incorporados a ele, ter vida em comum com ele, e, em suma, tornar-nos um com ele (João 17.21). Portanto, é verdade que é por fé que comemos Cristo, desde que também compreendamos de que maneira a fé nos une a ele.

“Nunca mais terá sede”. Isto parece ser adicionados sem qualquer boa razão; porque a função do pão não é a de matar a sede, mas aliviar a fome. Cristo, portanto, atribui ao pão mais do que a sua natureza permite. Eu já disse, que ele emprega a palavra pão sozinha, porque foi exigido pela comparação entre o maná e o poder celestial de Cristo, pelo qual nossas almas são sustentadas em

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vida. Ao mesmo tempo, a palavra pão, significa, em geral, tudo o que nos alimenta, e que era um costume comum de sua nação. Porque os hebreus, pela figura de linguagem chamada sinédoque, usam a palavra pão para o jantar ou ceia; e quando pedimos a Deus o nosso pão de cada dia (Mateus 6.11), nós incluímos bebida e todas as outras partes da vida. O significado, pois, é: "Quem deve valer-se a Cristo, para ter a vida dele, não terá falta de nada, mas terá em abundância tudo o que contribui para sustentar a vida."

A Vontade de Deus Pai é a Mesma de Jesus: Conceder Vida Eterna - Comentário de João 6.38,39

“38 Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou.

39 E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia.”

38. “Porque eu desci do céu”. Esta é uma confirmação da afirmação do versículo anterior, que nós não buscamos a Cristo em vão. Pois a fé é uma obra de Deus, pela qual ele mostra que somos o seu povo, e nomeia o seu Filho para ser o guardião da nossa salvação. Agora o Filho não tem outro propósito do que cumprir as ordens de seu Pai. Por isso, ele nunca irá rejeitar aqueles a quem o Pai lhe tem enviado. Assim, finalmente, segue-se que a fé nunca será

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inútil. Quanto à distinção que Cristo faz entre sua vontade e a vontade do Pai, a este respeito, ele se acomoda aos seus ouvintes, porque, como a mente do homem é propensa à desconfiança, estamos acostumados a inventar alguma diversidade que produz hesitação. Para cortar toda pretensão para aquelas ímpias imaginações, Cristo declara que ele se manifestou ao mundo, a fim de que ele possa realmente ratificar o que o Pai tem decretado a respeito de nossa salvação.

39. “E esta é a vontade do Pai”. Ele agora testemunha, que este é o projeto do Pai, que os crentes possam encontrar a salvação garantida em Cristo; do que mais uma vez se segue que todos aqueles que não se beneficiam da doutrina do Evangelho são reprovados. Portanto, se vemos que ele se volta para a ruína de muitos, não temos nenhuma razão para ficar desapontados, porque aqueles homens voluntariamente fazem mal a si mesmos. Vamos ficar satisfeito com isso, que o Evangelho sempre terá poder para reunir os eleitos para a salvação.

“Que eu não perca nenhum deles”. Ou seja, "que eu não deveria sofrer por eles para que fossem tirados de mim ou perecer;" pelo que ele quer dizer que não é o guardião da nossa salvação por um único dia, ou por alguns dias, mas que irá cuidar dela até o fim, de modo que nos conduzirá, desde o início até o término de nossa jornada; e portanto, ele menciona a última ressurreição. Esta promessa é altamente necessária para nós, que miseravelmente gememos sob tão grande fraqueza da

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carne, da qual cada um de nós está suficientemente consciente; e a cada momento, de fato, a salvação do mundo inteiro pode ser arruinada, mas isto não atingirá os crentes, que apoiados pela mão de Cristo, avançam com ousadia para o dia da ressurreição. Que isto, portanto, seja fixado em nossas mentes, que Cristo, tem estendido a mão para nós, para que ele não possa nos abandonar no meio da jornada, mas que, confiando em sua bondade, possamos corajosamente levantar os olhos para o último dia.

Há também uma outra razão pela qual ele menciona a ressurreição. É porque, desde que a nossa vida está escondida nele (Colossenses 3.3), somos como homens mortos. Pois, o que faz com que os crentes difiram dos ímpios, é que, sendo sobrecarregados com aflições, e como ovelhas destinadas para o abate (Romanos 8.36), eles têm sempre um pé na cova, e, na verdade, não estão longe de serem engolidos continuamente pela morte? Assim não existe outro tipo de apoio para a nossa fé e paciência, senão este, que mantenhamos distância de ver a nossa presente condição de vida, e apliquemos as nossas mentes e os nossos sentidos para o último dia, e passemos pelos obstáculos do mundo, até que o fruto da nossa fé, finalmente apareça.

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Só É Possível Conhecer a Deus Através da Fé em Jesus - Comentário de João 6.43,44

“43 Respondeu-lhes Jesus: Não murmureis entre vós.

44 Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia.”

43. “Não murmureis entre vós”. Jesus repreendeu a murmuração deles, como se tivesse dito: "A minha doutrina não contém nenhum fundamento para ofensa, mas porque vocês são reprovados, ela irrita o veneno que vocês trazem em seus corações, e a razão pela qual vocês não se deleitam com ela é porque têm um paladar viciado."

44. “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer”. Ele não se limita a acusá-los de impiedade, mas também lembra-lhes, que é um dom peculiar de Deus abraçar a doutrina que é exibida por ele; o que ele faz, para que a incredulidade não perturbe mentes fracas. Porque muitos são tão insensatos que, nas coisas de Deus, eles dependem das opiniões dos homens; em consequência do que, eles entretêm suspeitas sobre o Evangelho, assim que veem que não é recebido pelo mundo. Os incrédulos, por outro lado, se lisonjeiam em sua obstinação, e têm a audácia de condenar o Evangelho porque não lhes agrada. Em sentido contrário, portanto, Cristo declara que a doutrina do Evangelho, embora seja pregada a todos sem exceção, não pode ser abraçada por

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todos, pois uma nova compreensão e uma nova percepção são necessárias; e, por conseguinte, a fé não depende da vontade dos homens, porque é Deus quem a dá.

“Se o Pai não o trouxer”. “Vir a Cristo”, que está sendo usado aqui metaforicamente como “crer” - o Evangelista diz que as pessoas que são atraídas são aquelas cujos entendimentos Deus ilumina, e cujos corações ele inclina e transforma para a obediência a Cristo. A declaração equivale a isto: que não devemos perguntar se muitos se recusam a abraçar o Evangelho; porque nenhum homem, de si mesmo, jamais será capaz de vir a Cristo, mas Deus deve primeiro abordá-lo pelo seu Espírito; e, portanto, segue-se que nem todos são inclinados, a menos que Deus conceda esta graça àqueles a quem ele elegeu. É verdade que, de fato, quanto ao tipo de inclinação, esta não é violenta, de modo a obrigar os homens por força externa; mas ainda é um poderoso impulso do Espírito Santo, que leva os homens a desejarem o que anteriormente não estavam dispostos, achando-se relutantes a abraçar. É uma afirmação falsa e profana, portanto, que ninguém é atraído, senão aqueles que estão dispostos a serem atraídos, como se o homem fosse obediente a Deus por seus próprios esforços; porque a vontade com que os homens seguem a Deus é a que eles já têm de si mesmos, por Ele ter inclinado seus corações a obedecê-lo.

(Nota do Tradutor: Por esta afirmação de nosso Senhor Jesus Cristo vemos que é de bom senso, no assunto da

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religião, que não tentemos buscar a salvação ou adorar a Deus de acordo com os meios inventados pela nossa própria imaginação, mas nos esvaziarmos de nossas convicções religiosas e adquirirmos aquelas que Cristo e seus apóstolos nos ensinam na Bíblia, dependendo inteiramente de Deus por nos entregarmos a Cristo, pela fé nele e no que nos tem ensinado, para que o Espírito Santo o aplique aos nossos corações.)

Quem Tem Ouvido e Aprendido de Deus Vem para Jesus - Comentário de João 6.45

“Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim.” (João 6.45)

“Está escrito nos profetas”. Cristo confirma com o testemunho de Isaías o que ele disse, no versículo anterior, que ninguém pode vir a ele, a não ser que seja trazido pelo Pai. Ele usa a palavra profetas no plural, porque todas as suas profecias tinham sido reunidas num único volume, de modo que todos os profetas poderiam ser considerados um único livro. A passagem que é aqui citada encontra-se em Isaías 54.13, onde, falando da restauração da Igreja, ele promete a ela, filhos ensinados pela instrução de Deus. Por isso, pode ser facilmente inferido, que a Igreja não pode ser restaurada de qualquer outra forma que não seja por Deus realizar o ofício de um Instrutor, e trazer os crentes a si mesmo. A

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forma de ensino, da qual o profeta fala, não consiste simplesmente na voz exterior, mas igualmente na operação secreta do Espírito Santo. Em suma, este ensinamento de Deus é a iluminação interior do coração.

“E serão todos ensinados por Deus”. A palavra todos deve ser limitada aos eleitos, os únicos que são os verdadeiros filhos da Igreja. Agora, não é difícil ver de que maneira Cristo aplica esta predição ao presente assunto. Isaías mostra então que a Igreja é somente verdadeiramente edificada, quando ela tem seus filhos ensinados por Deus em Cristo, portanto, conclui que os homens não têm olhos para contemplar a luz da vida, até que Deus lhos abra.

“Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido”. A soma do que é dito é, que todos os que não creem são afirmados por Cristo serem reprovados e condenados à destruição; porque todos os filhos da Igreja e herdeiros da vida são transformados por Deus em seus discípulos obedientes. Daí segue-se que não há um só de todos os eleitos de Deus, que não seja participante da fé em Cristo. (E isto não por qualquer mérito que haja neles, senão exclusivamente por terem sido atraídos por Deus a Cristo e à vida de obediência que eles acolheram voluntariamente – nota do tradutor). Mais uma vez, como Cristo anteriormente afirmou que os homens não são habilitados para crerem, até que tenham sido atraídos, então ele agora declara que a Sua graça, pela qual são atraídos, é eficaz, de modo que necessariamente creem.

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Estas duas cláusulas absolutamente derrubam todo o poder do livre-arbítrio para a salvação, porque se é apenas quando o Pai nos atraiu que começamos a vir a Cristo, não há em nós qualquer início de fé, ou qualquer preparação para isso. Por outro lado, se todo o que vem é porque o Pai lhe ensinou, Ele dá a eles não somente a escolha de crer, mas a própria fé. Quando, portanto, voluntariamente nos rendemos à orientação do Espírito, isto é uma parte, e, por assim dizer, um selo da graça; porque Deus não iria nos chamar, se Ele fosse apenas estender a sua mão, e deixar a nossa vontade, em um estado de suspense. Mas em estrita propriedade de linguagem Ele diz que nos atrai, quando Ele estende o poder do seu Espírito para o efeito pleno da fé. É dito daqueles que ouvem a Deus, que voluntariamente concordam com Deus falando-lhes no seu interior, porque o Espírito Santo reina em seus corações.

“Vem a mim”. Jesus mostra a conexão inseparável que existe entre Ele e o Pai. Porque o significado é, que é impossível que qualquer um que seja discípulo de Deus não obedeça a Cristo, e que aqueles que rejeitam a Cristo se recusam a ser ensinados por Deus; porque a única sabedoria que todos os eleitos aprendem na escola de Deus é, para vir a Cristo; porque o Pai, que o enviou, não pode negar a si mesmo.

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As Palavras que São Espírito e Vida - Comentário de João 6.63

“O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida.” (João 6.63)

“É o Espírito que vivifica”. Por estas palavras Cristo mostra a razão pela qual os judeus não se beneficiaram com a sua doutrina é que, sendo espiritual e vivificante, ela não encontrou ouvidos bem preparados. Mas como esta passagem tem sido variadamente exposta, será importante primeiro determinar o sentido natural das palavras; a partir do que será fácil perceber a intenção de Cristo. Quando ele afirma que a carne para nada aproveita, Crisóstomo indevidamente, na minha opinião, refere-se aos judeus, que eram carnais. Eu prontamente reconheço que em mistérios celestiais todo o poder da mente humana é totalmente inútil; mas as palavras de Cristo não têm esse significado, senão serão violentamente torcidas. Igualmente forçada seria essa opinião, caso aplicada à cláusula pertinente; ou seja, é a iluminação do Espírito que vivifica.

(Todo o comentário deve ser entendido à luz do fato que Jesus estava discursando a pessoas que haviam se escandalizado com o fato dele ter afirmado, nos versículos anteriores, que era necessário comer da Sua carne para que se tivesse a vida eterna. Eles pensavam que deveriam comer literalmente a carne do Seu corpo, e assim, ele demonstra que não era a isto que estava se

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referindo, senão à nossa participação da sua vida espiritual, por nos alimentarmos espiritualmente dele e do seu ensino – nota do tradutor).

Agostinho pensa que devemos aplicar somente uma palavra, ou por si só, como se tivesse sido dito, "A carne somente, e por si só, não aproveita", porque ela deve ser acompanhada pelo Espírito. Este significado concorda bem com o escopo do discurso, pois Cristo refere-se simplesmente ao modo de alimentação. Ele não exclui portanto, todos os tipos de utilidade, como se nada pudesse ser obtido a partir de sua carne; mas ele declara que, se ela for separada do espírito, então será inútil. Porque de onde tem a carne poder para vivificar, senão porque isto é espiritual? Assim, quem quer que confine toda a sua atenção à natureza terrena da carne, vai encontrar nela nada além de que já está morta; mas aqueles que levantarem seus olhos para o poder do Espírito Santo, que é difundido sobre a carne, irão aprender do efeito real e da experiência da fé, que não é sem razão que é chamada de vivificação.

“As palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida”. Esta é uma alusão à declaração anterior, porque ele agora emprega a palavra espírito em um sentido diferente. Mas como tinha falado do poder secreto do Espírito, ele elegantemente aplica isto à sua doutrina, porque ela é espiritual; porque a palavra espírito deve ser explicada como significando espiritual. Ora, a Palavra é chamada espiritual, porque ela nos chama para cima para buscar a Cristo em sua glória celestial, por meio da

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orientação do Espírito, pela fé, não por nossa percepção carnal; pois sabemos que nada de tudo o que foi dito, pode ser compreendido, senão pela fé. E é também digno de observação, que ele conecta a vida com o Espírito. Ele chama sua palavra de vida, a partir do seu efeito, como se ele a tivesse chamado de vivificante; mas mostra que ela não será vivificante para ninguém, senão apenas para aqueles que a recebem espiritualmente, porque outros, por ela, serão tragados pela morte. Para os piedosos, esta recomendação do Evangelho é a mais deleitável, porque eles estão certos que é designada para a sua salvação eterna; mas ao mesmo tempo, eles são lembrados que devem se esforçar para provar que eles são autênticos discípulos de Cristo.

Ninguém Vem a Jesus se Não For Atraído a Ele por Deus Pai - Comentário de João 6.65

“E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido.” (João 6.65)

(Nota do tradutor: Que majestade, honra, poder, domínio e glória teria Deus Pai e Jesus Cristo se tivessem que regatear com os homens acerca da salvação deles, como que lhes implorando o favor de se converterem? Reis terrenos fariam isto com malfeitores? Quanto mais jamais o fará a Majestade santa e perfeitamente justa do Céu. Por isso se diz que somos bem-aventurados se nos

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humilharmos diante do Senhor, se chorarmos por nossos pecados e lhe estendermos nossas mãos implorando que seja misericordioso para conosco, pecadores que somos. Sabendo que se Deus não inclinar o seu cetro para nos perdoar, estamos irremediável e eternamente perdidos.)

65. “ Por isso eu vos disse”. Mais uma vez Jesus afirma que a fé é um dom incomum e notável do Espírito de Deus, de modo que não devemos ficar atônitos com o fato do Evangelho não ser recebido em todos os lugares e por todos. Porque, sendo fracos para virar a nosso favor o curso dos acontecimentos, pensamos da forma mais mesquinha do Evangelho, porque o mundo inteiro não concorda com ele. Surge o pensamento em nossa mente, como é possível que a maior parte dos homens deva recusar deliberadamente a sua salvação? Cristo, portanto, atribui a razão pela qual há tão poucos crentes, ou seja, porque nenhum homem, seja qual for a sua inteligência, pode chegar à fé por sua própria sagacidade; pois todos são cegos, até que sejam iluminados pelo Espírito de Deus, e, portanto, somente deste modo eles podem participar da grande bênção que o Pai designou para que sejamos participantes da mesma. Se esta graça fosse concedida a todos, sem exceção, teria sido inoportuno e inadequado ter mencionado isto nesta passagem; pois devemos entender que era o desígnio de Cristo mostrar que não muitos acreditam no Evangelho, porque a fé procede apenas da secreta revelação do Espírito.

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“Se, pelo Pai, não lhe for concedido”. Ele agora usa a palavra “conceder” no lugar que tinha usado no versículo anterior, “atrair”; pelo que ele diz que não há outra razão pela qual Deus nos atraia, senão por causa da livre graça com a qual ele nos ama; porque o que obtemos pelo dom e graça de Deus, nenhum homem adquire para si mesmo por sua própria operosidade.

Judas, Apóstolo, Irmão do Apóstolo Tiago - Comentário de Judas 1.1,2

Combatendo o Mal nas Fileiras do Próprio Exército

Nosso Senhor Jesus Cristo reprovou e repreendeu severamente os religiosos nos dias de Seu ministério terreno por causa de sua ganância e hipocrisia.

E estes religiosos não eram os de uma nação estrangeira, senão da própria nação israelita que era a guardiã da aliança que Deus fizera com eles, e da Lei divina que lhes fora dada pela mediação de Moisés.

Quem não lembra do trovão retumbante que o Senhor Jesus Cristo disparou sobre os sacerdotes, escribas e fariseus, sob o epíteto “ai de vós escribas e fariseus hipócritas!”? (Mateus 23)

Eles não somente haviam, por causa de sua hipocrisia e ganância, por gerações seguidas, e por séculos, sempre se

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desviado do cumprimento dos mandamentos de Deus, e não somente isto, também haviam adulterado a Lei acrescentando-lhe ordenanças de homens.

Pelo mesmo motivo, vemos os apóstolos do Senhor, em suas epístolas do Novo Testamento condenando a ganância e a hipocrisia dos falsos pastores e mestres.

Nós vemos isto especialmente nas epistolas de Pedro (2ª) e Judas.

E assim como sucedeu ao povo de Israel no período do Velho Testamento estando sob os sacerdotes e demais religiosos que tinham por dever ensinar e guardar os mandamentos de Deus, de igual modo tem sucedido à Igreja ao longo da sua história de cerca de 2.000 anos, com os pastores, profetas e mestres que em vez de pregarem e ensinarem o genuíno evangelho de Cristo, têm em sua grande maioria não somente ocultado a mensagem da cruz, como também têm-na adulterado com suas invenções e artifícios religiosos que não cumprem a ordenança de Jesus Cristo de se pregar e ensinar somente a verdade com vistas à salvação e santificação dos pecadores.

Portanto, farão um grande e eterno bem às suas almas todos aqueles que se guardarem de ouvir e seguir os falsos cristos, pastores, profetas e mestres dos quais nosso Senhor nos alertou para que nos acautelássemos deles e de sua hipocrisia, especialmente nos dias do tempo do fim que têm chegado a nós; pois o intento deles, pela inspiração de Satanás é tão somente o de nos

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manter cativos ao pecado e por conseguinte sujeitos à condenação eterna.

Uma introdução aos comentários das epístolas de Judas e 2ª Pedro, de Calvino, pelo Pr Silvio Dutra.

1. Judas, servo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago, aos chamados, santificados em Deus Pai, e conservados por Jesus Cristo:

2. Misericórdia, e paz, e amor vos sejam multiplicados.

1. “Judas, servo de Jesus Cristo”. Ele se denomina servo de Cristo, não do modo como o nome se aplica a todos os santos, mas com respeito ao seu apostolado; porque eram considerados peculiarmente servos de Cristo aqueles a quem fora confiado algum ofício público. E sabemos por que os apóstolos costumavam

atribuir a si mesmos este nome honorífico - todo aquele que não é chamado arroga-se presunçosamente o direito e a autoridade de ensinar. Nesse caso, o chamado dos apóstolos era uma evidência para eles de que não se lançaram ao seu ofício por vontade própria. Embora, não fosse suficiente serem designados para o seu ofício, se não o desempenhassem fielmente. E, sem dúvida, aquele que se declara servo de Deus inclui estas duas coisas, ou seja, que Cristo é o conferidor do ofício que exerce, e que ele realiza fielmente o que lhe foi confiado. Muitos agem falsamente, e falsamente se gloriam do que estão muito longe de ser;

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devemos sempre examinar se a realidade corresponde à profissão.

E irmão de Tiago. Ele menciona um nome mais celebrado do que o seu, e mais conhecido das igrejas. Embora a fidelidade da doutrina e a autoridade não dependam dos nomes de homens mortais, é uma confirmação para a fé quando a integridade do homem que assume o ofício de um mestre nos é assegurada. Além disso, a autoridade de Tiago não é apresentada aqui como a de uma pessoa particular, e sim porque ele era considerado por toda a Igreja como um dos principais apóstolos de Cristo. Ele era filho de Alfeu, conforme eu disse em outro lugar. Não somente isto, mas esta passagem é para mim prova suficiente contra Eusébio e outros que dizem que este era um discípulo chamado Oblias [Tiago], mencionado por Lucas em At 15:13; 21:18, o qual era mais eminente do que os apóstolos na Igreja. Mas não há dúvida de que Judas menciona aqui seu próprio irmão porque este era eminente entre os apóstolos. Nesse caso, é provável que ele fosse aquele a quem fora concedida a honra principal pelo restante, de acordo com o que relata Lucas.

Aos santificados por Deus Pai, ou, aos chamados, santificados, etc. Por esta

expressão, “chamados”, ele denota todos os fiéis, porque o Senhor os tem separado para si. Mas, como o chamado não é nada mais do que o efeito da eleição eterna, às vezes é empregado em lugar desta. Nesta passagem faz pouca diferença em que sentido é entendido, pois não há dúvida de que ele lhes recomenda a graça de Deus, pela

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qual lhe aprouve escolhê-los como seu tesouro peculiar. E ele sugere que os homens não se antecipam a Deus, e que eles nunca vêm até ele enquanto ele não os atrai.

Do mesmo modo, ele diz que eles eram: santificados em Deus Pai, o que pode

ser traduzido como: “por Deus Pai”. No entanto, retive a forma exata da expressão, para que os leitores exercitem o seu próprio julgamento. Pois talvez

o sentido seja este - de que, sendo em si mesmos profanos, eles tinham a sua

santidade em Deus. Mas a maneira em que Deus santifica é nos regenerando pelo seu Espírito.

Outra leitura, que a Vulgata adotou, é um tanto áspera: “aos amados (egapemenois) em Deus Pai”, em vez de “aos santificados em Deus Pai”. Por isso a considero corrupta e, de fato, encontra-se apenas em algumas cópias.

Ele ainda acrescenta que eles eram conservados em Jesus Cristo. Pois estaríamos sempre em perigo de morte por causa de Satanás, que poderia nos apanhar como presa fácil a qualquer momento se não estivéssemos a salvo sob a proteção de Cristo, a quem o Pai concedeu para ser o nosso guardião, para que não pereça nenhum daqueles que ele recebeu sob o seu cuidado e abrigo.

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Judas então menciona aqui uma tripla benção, ou favor de Deus, com respeito a todos os santos - que pelo seu chamado ele fez deles participantes do evangelho; que ele os regenerou, pelo seu Espírito, para a novidade de vida; e que ele os tem preservado por meio de Cristo, para que não decaiam da salvação.

2. “Misericórdia... vos seja”. Misericórdia claramente significa o mesmo que graça nas saudações de Paulo. Se alguém desejar uma distinção refinada, pode-se dizer

que graça é propriamente o efeito da misericórdia; pois não há outra razão pela qual Deus nos tenha abraçado em amor, senão porque ele se apiedou das nossas misérias. Amor pode-se entender como o de Deus para com os homens, bem como o dos homens uns para com os outros. Se for referido a Deus, o sentido é de que aumentasse para com eles, e que a certeza do amor divino fosse diariamente mais e mais confirmada em seus corações. O outro sentido, porém, de que Deus despertasse e confirmasse neles o amor mútuo, não é inadequado.

Os Opositores Permanentes do Evangelho - Comentário de Judas 1.3,4

“3. Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salvação comum, tive por

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necessidade escrever-vos, e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos.

4. Porque se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus, e negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo.”

3. “Procurando com toda a diligência”. Traduzi as palavras spouden poioumenos por “tomando cuidado”; literalmente, são: “fazendo diligência”. Mas muitos intérpretes explicam a sentença neste sentido, que um forte desejo constrangeu Judas a escrever, tal como dizemos acerca daqueles que estão sob a influência de um forte sentimento, que não podem governar ou conter a si mesmos. Nesse caso, de acordo com esses expositores, Judas estava sob uma espécie de necessidade, porque um desejo de escrever não lhe permitia descansar. Mas prefiro pensar que as duas sentenças são separadas; que, embora estivesse inclinado e solícito a escrever, uma necessidade o compeliu. Ele sugere então que, de fato, estava contente e ansioso por lhes escrever, mas a necessidade o urgiu a fazer isto, a saber, porque eram assaltados (segundo o que se segue) pelos infiéis, e precisavam estar preparados para combatê-los.

Então, em primeiro lugar, Judas testifica que sentiu tanta preocupação com a salvação deles, que ele mesmo quis, e de fato estava ansioso, por escrever-lhes;

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e, em segundo lugar, para despertar a sua atenção, diz que o estado das coisas exigia que ele fizesse isso. Pois a necessidade acrescenta fortes estímulos. Se não tivessem sido avisados com antecedência de quão necessário era a sua exortação, eles poderiam se tornar preguiçosos e negligentes. Mas quando faz este prefácio, de que escreveu por conta da necessidade da situação deles, era o mesmo que se ele tivesse tocado uma trombeta para despertá-los do seu torpor.

“Acerca da salvação comum”. Algumas cópias acrescentam “vossa”, mas sem razão, penso eu, pois ele torna a salvação comum a eles e a si mesmo. E acrescenta não pouco peso à doutrina que é anunciada, quando alguém fala de acordo com os seus próprios sentimentos e experiência. É vão o que dizemos, se falamos da salvação para outros, quando nós mesmos não temos nenhum conhecimento real dela. Nesse caso, Judas confessava ser ele mesmo um mestre por experiência (por assim dizer) quando se associava aos santos na participação da mesma salvação.

“E exortar-vos”. Literalmente: “exortando-vos”. Mas como ele aponta o objetivo do seu conselho, a sentença deveria ser expressa assim. O que traduzi como: “ajudar a fé, batalhando”, significa o mesmo que lutar para reter a fé, e resistir corajosamente aos assaltos contrários de Satanás. Ele lhes faz recordar que, para perseverarem na fé, diversas batalhas devem ser enfrentadas, e mantida uma guerra constante. Ele diz que a fé foi uma vez dada,

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para que soubessem que a obtiveram para este fim, para que nunca fracassem ou caíssem.

4. “Porque se introduziram alguns”. Embora Satanás seja sempre um inimigo dos

santos, e nunca deixe de acossá-los, Judas lembra aqueles a quem estava escrevendo do estado de coisas naquele tempo. Agora Satanás, diz ele, ataca e vos incomoda de uma maneira peculiar. Por isso é necessário pegar em armas para resistir-lhe. Por aqui aprendemos que um pastor bom e fiel deveria considerar sabiamente o que o estado atual da Igreja exige, assim acomodando a sua doutrina às necessidades dela.

A palavra pareisedusan, que ele usa, denota uma insinuação furtiva e indireta, pela qual os ministros de Satanás enganam os incautos. Satanás semeia seu joio de noite, e enquanto os lavradores estão dormindo, a fim de corromper a semente de Deus. Ao mesmo tempo, ele nos ensina que esta é uma guerra interna, pois neste aspecto Satanás também é astuto, na medida em que suscita para causar dano aqueles que são do rebanho, a fim de que possam se introduzir mais facilmente.

“Já antes estavam escritos”. Ele invoca aquele julgamento, ou condenação, ou mente réproba, pela qual estes foram levados a perverter a doutrina da piedade; pois ninguém pode fazer tal coisa senão para a sua própria ruina. Mas a metáfora é aduzida desta circunstância porque o conselho eterno de Deus, pelo qual os fiéis são ordenados para a salvação, é designado

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como um livro. E quando os fiéis ouviram que estes estavam entregues à morte eterna, convinha que cuidassem para que não se envolvessem na mesma destruição. Ao mesmo tempo, o objetivo de Judas era elucidar o perigo, para que a novidade da coisa não perturbasse nem angustiasse nenhum deles. Pois se aqueles já estavam desde há muito ordenados para a condenação eterna, segue-se que a Igreja só é tentada ou testada de acordo com o conselho infalível de Deus.

“A graça de Deus.” Ele expressa agora mais claramente qual era o mal, pois diz que eles abusavam da graça de Deus, assim levando a si mesmos e a outros a tomarem uma liberdade impura e profana no pecado. Mas a graça de Deus se manifestou com um propósito muito diferente - ou seja, que, negando a impiedade e os prazeres mundanos, vivamos sóbria, justa e piamente neste mundo. Saibamos, então, que nada é mais pestilento do que homens desta sorte, que da graça de Cristo tomam uma capa para se indultarem na lascívia.

Porque ensinamos que a salvação é obtida pela misericórdia de Deus somente, os papistas nos acusam desse crime. Mas por que deveríamos usar palavras para refutar a afronta deles, visto que em toda parte urgimos o arrependimento, o temor a Deus e a novidade de vida, e visto que eles mesmos não apenas corrompem todo o mundo com os piores exemplos, mas também pelo seu ensinamento iníquo retiram do mundo a verdadeira santidade e a adoração pura a Deus? Entretanto, prefiro pensar que aqueles de quem Judas fala eram como os

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libertinos de nosso tempo, conforme se tornará mais evidente a partir do que se segue.

“Deus, único Senhor, ou, Deus, que é o único Senhor”. Algumas cópias antigas trazem: “Cristo, que é o único Deus e Senhor”. E, de fato, na Segunda Epístola de Pedro, somente Cristo é mencionado, e ali ele é chamado de Senhor. Mas ele quer dizer que Cristo é negado quando aqueles que foram redimidos por seu sangue tornam-se novamente vassalos do Diabo, e assim invalidam até onde podem esse preço incomparável. Então, para que Cristo nos retenha como seu tesouro peculiar, devemos nos lembrar de que ele morreu e ressuscitou por nós para que pudesse ter domínio sobre a nossa vida e morte.

A Seriedade da Vida Cristã - Comentário de Judas 1.5

“Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram;” (Judas 1.5)

“Mas quero lembrar-vos, ou, recordá-los”. Judas ou modestamente se desculpa, para que não parecesse ensinar, como que a ignorantes, coisas desconhecidas a eles; ou, de fato (com o que estou mais de acordo), declara abertamente, de um modo enfático, que não aduzia nada novo ou inaudito antes, a fim de que aquilo

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que ia dizer pudesse ter mais crédito e autoridade. “Apenas torno a chamar à vossa mente”, diz ele, “aquilo que já aprendestes”. Uma vez que lhes atribui conhecimento, ele diz que precisavam de advertências, para que não pensassem que o trabalho que teve com eles fosse supérfluo. Ele usa a palavra de Deus não apenas para ensinar o que não poderíamos ter conhecido de outro modo, mas também para nos despertar para uma séria meditação das coisas que já entendemos, e para não permitirmos que nos tornemos apáticos num conhecimento frio.

Agora, o sentido é que, após termos sido chamados por Deus, não devemos nos gloriar negligentemente na sua graça, e sim, pelo contrário, andar atentamente no seu temor. Pois, se alguém brinca com Deus assim, o menosprezo pela sua graça não ficará impune. E isto ele prova por três exemplos. Primeiro, ele se refere à vingança que Deus executou sobre aqueles incrédulos que ele havia escolhido como seu povo e libertado pelo seu poder. Praticamente a mesma referência é feita por Paulo em 1 Cor 10.1-13. O significado do que ele diz é que aqueles que Deus havia honrado com as maiores bênçãos, que ele havia exaltado ao mesmo grau de honra de que desfrutamos hoje, puniu depois severamente. Então futilmente se orgulhavam da graça de Deus todos aqueles que não viviam de uma maneira conveniente com o seu chamado.

A palavra povo é empregada por honra em lugar de nação santa e eleita, como se ele tivesse dito que de nada lhes

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serviria que, por um favor singular, tivessem entrado no pacto. Chamando-os de incrédulos, ele denota a fonte de todos os males. Pois todos os pecados deles, mencionados por Moisés, deviam-se a isto, que eles se recusaram a ser governados pela palavra de Deus. Onde existe a sujeição da fé, aí a obediência para com Deus necessariamente se mostra em todos os deveres da vida.

Deus Reservou Anjos para o Juízo e o Fará Também com os Homens Ímpios - Comentário de Judas 1.6

“E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia;” (Judas 1.6)

“E aos anjos”. Este é um argumento do maior para o menor. Pois o estado dos anjos é mais elevado que o nosso, e contudo Deus puniu a sua deserção deles de um modo terrível. Assim sendo, ele não perdoará a nossa perfídia, se nos afastarmos da graça para a qual nos chamou. Este castigo, infligido sobre os habitantes do céu, e sobre ministros de Deus tão superiores, certamente deveria estar constantemente diante de nossos olhos, para que em momento algum sejamos levados a desprezar a graça de Deus, e assim nos precipitarmos abruptamente em destruição.

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A palavra arché nesta passagem pode ser entendida propriamente como princípio, bem como principado ou domínio. Judas sugere que eles sofreram castigo porque haviam desprezado a bondade de Deus e desertado da sua primeira vocação. E aí segue-se imediatamente uma explicação, pois ele diz que eles haviam deixado a sua própria habitação. Como desertores militares, eles deixaram o posto em que haviam sido colocados.

Devemos também notar a atrocidade da punição que o Apóstolo menciona. Eles não são apenas espíritos livres, mas poderes celestiais. Agora estão presos por cadeias perpétuas. Eles não apenas desfrutavam da luz gloriosa de Deus, mas seu resplendor brilhava neles, de modo que a partir deles, como que em raios, ela se espalhava por todas as partes do universo. Agora estão imersos em trevas. Mas não devemos imaginar um certo lugar em que os demônios estejam encerrados, pois o Apóstolo simplesmente pretendia nos ensinar quão miserável é a condição deles, visto que, no momento em que apostataram, eles perderam a sua dignidade. Para onde quer que sigam, eles arrastam consigo as suas cadeias, e permanecem envoltos em trevas. Entrementes, o castigo extremo deles é adiado até que chegue o grande dia.

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O Exemplo de Juízo Dado Através de Sodoma e Gomorra - Comentário de Judas 1.7

“Assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno.” (Judas 1.7)

“Assim como Sodoma e Gomorra.” Este exemplo é mais geral, pois ele testifica que Deus, não excetuando a nenhum homem, castiga sem nenhuma diferença todos os infiéis. Judas também menciona no que segue que o fogo pelo qual as cinco cidades pereceram era um tipo do fogo eterno. Nesse caso, Deus mostrou naquele tempo um exemplo notável, a fim de manter os homens em temor até o fim do mundo. Por isso é tantas vezes mencionado na Escritura. Mais ainda, sempre que os profetas queriam designar algum juízo memorável e terrível de Deus, eles o retratavam sob a imagem do fogo sulfuroso, e aludiam à destruição de Sodoma e Gomorra. Portanto, não é sem razão que Judas atinge todas as gerações com terror, mostrando a mesma visão.

Quando ele diz: as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, não aplico estas palavras aos israelitas e aos anjos, mas a Sodoma e Gomorra. Não constitui objeção o fato de o pronome toutois ser masculino, pois Judas se refere aos habitantes e não aos lugares. Ir após outra carne é o mesmo que entregar-se a desejos monstruosos. Sabemos que os sodomitas, não contentes com a maneira comum de

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cometer fornicação, contaminavam-se do modo mais imundo e detestável. Devemos observar que ele os entrega ao fogo eterno, pois aqui aprendemos que o espetáculo terrível que Moisés descreve foi apenas uma imagem de um castigo bem mais severo.

A Impiedade Provada pela Insubmissão à Verdade - Comentário de Judas 1.8

“E, contudo, também estes, semelhantemente adormecidos, contaminam a sua carne, e rejeitam a dominação, e vituperam as dignidades.” (Judas 1.8)

“E, contudo, também estes”. Esta comparação não deve ser forçada muito rigorosamente, como se ele comparasse em todas as coisas estes que menciona com os sodomitas, ou com os anjos caídos, ou com o povo incrédulo. Ele apenas explica que eles eram vasos da ira designados para a destruição, e que não poderiam escapar da mão de Deus, mas que num momento ou em outro ele faria deles exemplos da sua vingança. O seu propósito era atemorizar os fiéis para os quais estava escrevendo, para que não se associassem com eles.

Mas aqui ele começa a descrever mais claramente esses impostores. E primeiro diz que eles contaminavam sua carne como que por sonhos – por cujas palavras Judas denota o seu estúpido descaramento, como se tivesse dito que eles se entregavam a todos os tipos de

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imundície, que os mais perversos abominariam, a menos que o sono retirasse a vergonha, e também a consciência. Nesse caso, este é um modo metafórico de falar, pelo qual ele sugere que eles eram tão grosseiros e estúpidos que se entregavam sem nenhuma vergonha a todo o tipo de infâmia.

Há um contraste a ser notado, quando ele diz que eles contaminavam, ou poluíam a carne, ou seja, degradavam o que era menos excelente, e que, no entanto, desprezavam como infame o que é considerado particularmente excelente entre os homens.

Pela segunda cláusula parece que eles eram homens sediciosos, que buscavam a anarquia, a fim de que, estando livres do temor das leis, pudessem pecar mais livremente. Mas estas duas coisas estão quase sempre conectadas, que aqueles que se entregam à iniquidade também querem abolir toda a ordem. Embora, de fato, o objetivo principal deles seja livrar-se de todo o jugo, pelas palavras de Judas parece que eles costumavam falar insolente e injuriosamente dos magistrados, assim como os fanáticos de hoje, que não apenas murmuram porque são impedidos pela autoridade dos magistrados, mas clamam furiosamente contra todo o governo, e dizem que o poder da espada é profano e contrário à piedade. Em suma, eles expulsam arrogantemente da Igreja de Deus todos os reis e todos os magistrados. “Dignidades, ou glórias”, são ordens ou postos eminentes em poder ou honra.

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O Mau Fruto dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.9,10

“9. Mas o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele; mas disse: O Senhor te repreenda.

10. Estes, porém, dizem mal do que não sabem; e, naquilo que naturalmente conhecem, como animais irracionais se corrompem.”

9. “Mas o arcanjo Miguel”. Pedro apresenta este argumento de forma mais breve, e declara genericamente que os anjos, muito mais excelentes que os homens, não se atrevem a pronunciar juízo de maldição (2 Pe 2:11).

Mas como se acredita que esta história fosse tirada de um livro apócrifo, por isso tem sido dado menos importância a esta Epístola. Mas, visto que os judeus daquele tempo derivavam muitas coisas das tradições dos pais, não vejo nada de desarrazoado em dizer que Judas se referiu ao que já havia sido transmitido por muitas gerações. Sei que, de fato, muitas puerilidades haviam alcançado o nome de tradição, assim como nos tempos de hoje os papistas relatam como tradições muitos dos desvarios estúpidos dos monges. Mas isto não é motivo para que eles não tivessem alguns fatos históricos não consignados à escrita.

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Está fora de controvérsia que Moisés foi sepultado pelo Senhor, ou seja, que o seu sepulcro foi escondido segundo o propósito oculto de Deus. E a razão para esconder o seu sepulcro é evidente a todos, isto é, para que os judeus não apresentassem seu corpo para promover superstição. Então qual o motivo de surpresa quando, tendo o corpo do profeta sido escondido por Deus, Satanás tentasse manifestá-lo; e que os anjos, que sempre estão prontos para servir a Deus, por outro lado lhe resistissem? E sem dúvida sabemos que Satanás quase em todas as épocas tem se esforçado para transformar os corpos dos santos de Deus em ídolos para os homens insensatos. Portanto, esta Epístola não deveria ser suspeita por conta deste testemunho, ainda que não encontrado na Escritura.

Que Miguel seja apresentado sozinho como disputando contra Satanás não é novidade. Sabemos que miríades de anjos estão sempre prontos a prestar serviço a Deus. Mas ele escolhe este ou aquele para fazer seu negócio conforme lhe agrada. O que Judas relata como tendo sido dito por Miguel, encontra-se também no livro de Zacarias: “O Senhor te repreenda (ou, impeça), Satanás” (Zc 3:2).

E isto é uma comparação, como dizem, entre o maior e o menor. Miguel não se atreveu a falar mais severamente contra Satanás (ainda que um réprobo e condenado) do que entregá-lo a Deus para que fosse refreado. Mas aqueles homens não hesitavam em carregar de censuras

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extremas os poderes que Deus havia adornado com honras peculiares.

10. “Estes, porém, falam mal do que não sabem”. Ele quer dizer que eles não tinham nenhuma inclinação por qualquer coisa que não fosse grosseira, e como que bestial, e por isso não percebiam o que era digno de honra. E, contudo, à loucura acrescentavam audácia, de modo que não temiam condenar coisas acima da sua compreensão. E eles também laboravam sob outro mal, pois, quando eram levados como animais às coisas que gratificavam os sentidos do corpo, não observavam nenhuma moderação, mas se fartavam excessivamente, como porcos que rolam na lama fétida. O advérbio naturalmente está em oposição à razão e ao juízo, pois somente o instinto da natureza controla os animais irracionais, mas a razão deveria governar os homens e refrear os seus apetites.

A Corrupção e Ganância dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.11

“Ai deles! porque entraram pelo caminho de Caim, e foram levados pelo engano do prêmio de Balaão, e pereceram na contradição de Coré.” (Judas 1.11)

“Ai deles!”. É de se questionar por que Judas os censura tão severamente, quando acabara de dizer que não fora permitido a um anjo pronunciar acusação injuriosa

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contra Satanás. Mas não era o seu propósito estabelecer uma regra geral. Ele apenas explicou brevemente, pelo exemplo de Miguel, quão intolerável era a loucura deles quando censuravam insolentemente o que Deus honrou. Sem dúvida era lícito a Miguel fulminar Satanás com a sua maldição final. E sabemos quão veementemente os profetas ameaçavam os ímpios. Mas, quando Miguel absteve-se da severidade extrema (de outro modo legítima), que loucura seria não observar moderação para com aqueles que se sobressaem em glória? Mas quando pronunciou maldição sobre eles, ele não imprecou tanto o mal sobre eles, mas antes lembrou-os o tipo de final que os aguardava. E fez isto para que não levassem outros consigo à perdição.

Ele diz que aqueles eram imitadores de Caim, o qual, sendo ingrato a Deus e pervertendo a sua adoração por um coração ímpio e mau, perdeu o seu direito de primogenitura. Ele diz que estavam enganados pela recompensa como Balaão, porque adulteravam a doutrina da verdadeira religião por lucro imundo. Mas a metáfora que ele usa expressa algo mais, pois diz que eles transbordavam, ou seja, porque o seu excesso era como água transbordante. Ele diz, em terceiro lugar, que eles imitavam a contradição de Coré, porque perturbavam a ordem e tranquilidade da igreja.

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A Carnalidade dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.12

“Estes são manchas em vossas festas de amor, banqueteando-se convosco, e apascentando-se a si mesmos sem temor; são nuvens sem água, levadas pelos ventos de uma para outra parte; são como árvores murchas, infrutíferas, duas vezes mortas, desarraigadas;” (Judas 1.12)

“Estes são manchas em vossas festas de caridade”. Aqueles que leem: “entre vossas caridades”, conforme penso, não explicam suficientemente o verdadeiro significado. Pois ele chama de caridades (agapais) aquelas festas que os crentes tinham entre si para testemunhar sua unidade fraternal. Tais festas, diz ele, eram desonradas por homens impuros, que depois se alimentavam em excesso, pois nelas havia a maior frugalidade e moderação. Então não era correto que fossem admitidos esses devoradores, que depois eram indulgentes consigo mesmos em excessos em quaisquer outros lugares.

Algumas cópias trazem: “Banqueteando-se convosco”—leitura que, se aprovada, tem este significado, de que eles não apenas eram uma desgraça, mas também eram incômodos e dispendiosos, uma vez que se empanturravam sem temor, às custas públicas da igreja. Pedro fala de modo um pouco diferente (2 Pe 2:13), dizendo que eles se deleitavam em erros, e banqueteavam-se com os fiéis, como se tivesse dito que

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agiam inconsideradamente aqueles que alimentavam tão perniciosas serpentes, e que eram extremamente insensatos aqueles que encorajavam o luxo excessivo deles. Hoje em dia eu gostaria que houvesse mais juízo em alguns homens bons que, procurando ser extremamente gentis com homens maus, causam grande dano a toda a igreja. (Nota do Pr Silvio Dutra: Este é um mal bastante comum em nossos dias, quando vemos a grande maioria dos crentes indultando a muitos que fizeram a si mesmos pastores para viverem às expensas da exploração dos membros da Igreja alimentando a vida abastada e desregrada que eles tanto apreciam.)

“São nuvens sem água”. As duas comparações presentes em Pedro são dadas aqui numa só, mas com o mesmo propósito, pois ambas condenam a vã ostentação. Estes homens inescrupulosos, embora prometessem muito, interiormente eram estéreis e vazios, tal como nuvens levadas por ventos tempestuosos, as quais dão esperança de chuva, mas logo se desfazem em nada. Pedro acrescenta a comparação de uma fonte seca e vazia, mas Judas emprega outras metáforas com o mesmo fim, que eles eram árvores murchas, assim como o vigor das árvores desaparece no outono. Ele os chama depois de árvores infrutíferas, desarraigadas, e duas vezes mortas, como se tivesse dito que não havia seiva no interior, mesmo que aparecessem folhas.

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O Juízo Eterno Reservado para os Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.13

“Ondas impetuosas do mar, que escumam as suas mesmas abominações; estrelas errantes, para os quais está eternamente reservada a negrura das trevas.” (Judas 1.12)

“Ondas impetuosas do mar”. Por que isto foi acrescentado, podemos saber mais perfeitamente a partir das palavras de Pedro (2 Pe 2:17, 18) era para mostrar que, estando inchados de orgulho, eles exalavam, ou antes expeliam a escuma de superfluidade de palavras em estilo grandiloquente. Ao mesmo tempo não traziam nada de espiritual, seu objetivo sendo, pelo contrário, tornar os homens tão estúpidos como animais irracionais. Tais são, conforme se disse antes, os fanáticos de nosso tempo, que se chamam a si mesmos de libertinos.

Podemos dizer justamente que eles fazem apenas sons retumbantes, pois, desprezando a linguagem comum, formam para si um não sei que idioma exótico. Eles parecem a um momento levar seus discípulos acima do céu, então repentinamente caem em erros bestiais, pois concebem um estado de inocência no qual não há diferença entre a vileza e a honestidade. Eles concebem uma vida espiritual, quando o temor é extinto, e quando todos se indultam negligentemente. Eles imaginam que nos tornamos deuses, porque Deus absorve os espíritos quando deixam seus corpos. Com o máximo cuidado e

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reverência a simplicidade da Escritura deveria ser estudada, para que, raciocinando mais refinadamente do que é justo, ao invés de levarmos os homens para o céu, não sejamos, pelo contrário, envolvidos em múltiplos labirintos. Por isso ele os chama de estrelas errantes, porque deslumbravam os olhos com um tipo de luz evanescente.

A Volta do Senhor para Julgar os Ímpios - Comentário de Judas 1.14,15

“14. E destes profetizou também Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que é vindo o Senhor com milhares de seus santos;

15. Para fazer juízo contra todos e condenar dentre eles todos os ímpios, por todas as suas obras de impiedade, que impiamente cometeram, e por todas as duras palavras que ímpios pecadores disseram contra ele.”

“E também Enoque”. Prefiro pensar que esta profecia não estava escrita, ao invés de ter sido tirada de um livro apócrifo. Ela pode ter sido transmitida de memória pelos antigos à posteridade. Se alguém questionar: Visto que sentenças semelhantes ocorrem em muitas passagens da Escritura, por que ele não citou um testemunho escrito por um dos profetas? A resposta é óbvia: Ele queria repetir desde a mais remota antiguidade o que o Espírito havia pronunciado a respeito deles. E isto é o que as

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palavras sugerem, pois diz expressamente que este era o sétimo depois de Adão, a fim de recomendar a antiguidade da profecia, porque ela existia no mundo antes do dilúvio.

Mas eu disse que esta profecia era conhecida dos judeus por relato. Mas se alguém pensa de outro modo, não contenderei com ele, e, na verdade, nem a respeito da própria epístola, se é de Judas ou de algum outro. Em coisas duvidosas, apenas sigo o que parece provável.

“Eis que vem, ou é vindo, o Senhor”. O tempo passado, segundo o modo dos profetas, é usado em lugar do futuro. Ele diz que o Senhor viria com milhares de seus santos. E por santos ele se refere aos fiéis, bem como aos anjos, pois ambos adornarão o tribunal de Cristo, quando ele descer para julgar o mundo. Ele diz milhares, como também Daniel menciona miríades de anjos (Dn 7.10), a fim de que a multidão dos ímpios não sobrepuje, como um mar bravio, os filhos de Deus, mas para que pensem nisto, que o Senhor um dia reunirá o seu povo, parte do qual está habitando no céu, invisível a nós, e parte está oculta sob uma grande quantidade de pó.

Mas a vingança que está suspensa sobre as cabeças dos ímpios deveria manter os eleitos em temor e vigilância. Ele fala de obras e palavras, porque seus corruptores cometeram muito mal, não somente pela sua vida ímpia, mas também pela sua linguagem falsa e impura. E as suas palavras foram duras, por conta da audácia obstinada, pela qual, sendo orgulhosos, agiram insolentemente.

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A Arrogância e Concupiscências dos Falsos Pastores e Mestres - Comentário de Judas 1.16

“Estes são murmuradores, queixosos da sua sorte, andando segundo as suas concupiscências, e cuja boca diz coisas mui arrogantes, admirando as pessoas por causa do interesse.” (Judas 1.16)

“Estes são murmuradores”. Aqueles que favorecem seus prazeres depravados são difíceis de agradar, e morosos, de modo que nunca estão satisfeitos. Donde sempre murmurarem e se queixarem, por mais gentilmente que os homens bons os tratem. Ele condena a sua linguagem orgulhosa, porque se gabavam altivamente. Mas ao mesmo tempo mostra que eles eram desprezíveis em sua disposição, pois eram servilmente submissos por causa do ganho. E, geralmente, este tipo de inconsistência é visto em homens inescrupulosos desta natureza. Quando não há ninguém para conter a insolência deles, ou quando não há nada que permaneça em seu caminho, o orgulho deles é intolerável, de modo que eles arrogam imperiosamente tudo para si. Mas lisonjeiam abjetamente aqueles a quem temem, e de quem esperam alguma vantagem. Ele emprega pessoas como significando eterna grandeza e poder.

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Os Escarnecedores dos Últimos Dias - Comentário de Judas 1.17-19

“17. Mas vós, amados, lembrai-vos das palavras que vos foram preditas pelos apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo;

18. Os quais vos diziam que nos últimos tempos haveria escarnecedores que andariam segundo as suas ímpias concupiscências.

19. Estes são os que causam divisões, sensuais, que não têm o Espírito.”

17. “Mas vós, amados”. Judas acrescenta agora a uma profecia muito antiga as admoestações dos apóstolos, cuja memória era recente. Quanto ao verbo mnesthete, não faz grande diferença se o lemos como declarativo ou como uma exortação, pois o sentido permanece o mesmo, de que, sendo fortalecidos pela predição que ele cita, eles devem se atemorizar.

Por últimos tempos ele se refere àqueles em que a condição renovada da Igreja recebeu uma forma fixa até o fim do mundo. E isto teve início na primeira vinda de Cristo.

De acordo com o modo usual da Escritura, ele chama de escarnecedores aqueles que, estando inebriados por um perverso e profano desprezo por Deus, precipitam-se impetuosamente num desprezo brutal ao Ser Divino, de

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modo que nenhum temor ou reverência os mantém mais dentro dos limites do dever. Assim como em seus corações não há nenhum temor de um juízo futuro, assim também não há nenhuma esperança de vida eterna. Do mesmo modo o mundo hoje está cheio de epicuristas desprezadores de Deus, os quais, tendo lançado fora todo o temor, escarnecem loucamente de toda a doutrina da verdadeira religião, considerando-a como fabulosa.

19. “Estes são os que causam divisões”. Algumas cópias gregas trazem o particípio sozinho, outras cópias heautous “a si mesmos”. Mas o sentido é praticamente o mesmo. Ele quer dizer que eles se separavam da Igreja porque não queriam suportar o jugo da disciplina, uma vez que aqueles que gratificam a carne têm aversão à vida espiritual. A palavra sensual, ou animal, opõe-se a espiritual, ou à renovação da graça; e aqui ela se refere a viciosos ou corruptos, tais como são os homens quando não regenerados. Nessa natureza degenerada que derivamos de Adão, não há nada além do que é grosseiro e terreno, de modo que nenhuma parte de nós aspira a Deus, enquanto não somos renovados pelo seu Espírito.

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Edificação Espiritual pela Fé e Oração - Comentário de Judas 1.20

“Mas vós, amados, edificando-vos a vós mesmos sobre a vossa santíssima fé, orando no Espírito Santo,” (Judas 1.20)

“Mas vós, amados”. Judas mostra o modo como poderiam vencer todos os artifícios de Satanás, a saber, tendo o amor unido à fé, e ficando em guarda como que em sua torre de vigia, até a vinda de Cristo. Mas como usa muitas vezes e densamente as suas metáforas, ele apresenta aqui um modo de falar peculiar a si, que deve ser brevemente comentado.

Ele lhes manda primeiro se edificarem a si mesmos sobre a fé, significando por isto que o fundamento da fé deveria ser mantido, mas que a primeira instrução não é suficiente, a não ser que aqueles que já foram estabelecidos na verdadeira fé prossigam continuamente em direção à perfeição. Ele chama a fé deles de santíssima, a fim de que repousassem totalmente nela, e para que, apoiando-se da sua firmeza, nunca vacilassem.

Mas, visto que toda a perfeição do homem consiste na fé, pode parecer estranho que lhes mande construir outro edifício, como se a fé fosse apenas um começo para o homem. Esta dificuldade é removida pelo Apóstolo nas palavras que seguem, quando ele acrescenta que os homens edificam sobre a fé quando é acrescentado o amor. Exceto, talvez, que alguém prefira considerar este

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sentido, de que os homens edificam sobre a fé enquanto fazem proficiência nela. E, sem dúvida, o progresso diário da fé é tal que ela mesma se ergue como um edifício. Assim o Apóstolo nos ensina que, para crescermos na fé, precisamos ser constantes em oração e manter o nosso chamado pelo amor.

“Orando no Espírito Santo”. O modo de perseverar é quando somos investidos do poder de Deus. Por isso, sempre que a questão for a respeito da constância da fé, devemos fugir para a oração. E, como geralmente oramos de uma maneira formal, ele acrescenta: “no Espírito”, como se tivesse dito que tal é a nossa indolência, e que tal é a frieza da nossa carne, que ninguém pode orar corretamente a não ser que seja despertado pelo Espírito de Deus; e que também somos tão inclinados à desconfiança e ao estremecimento que ninguém se atreve a chamar Deus de Pai, exceto através do ensino do mesmo Espírito. Pois dele é a solicitude, dele é o fervor e a veemência, dele é a vivacidade, dele é a confiança em obter o que pedimos, em suma, dele são aqueles gemidos inexprimíveis mencionados por Paulo em Romanos 8.26. Sendo assim, não é sem razão que Judas nos ensina que ninguém consegue orar como deveria sem ter o Espírito Santo como seu guia.

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Conservando-se no Amor de Deus - Comentário de Judas 1.21,22

“21. Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo para a vida eterna.

22. E apiedai-vos de alguns, usando de discernimento;”

21. “Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus”. Judas fez do amor como que o guardião e o governante da nossa vida. Não que pudesse colocá-lo em oposição à graça de Deus, mas que é o caminho correto do nosso chamado quando fazemos progresso no amor. Mas, como muitas coisas nos instigam à apostasia, de modo que é difícil nos mantermos fiéis a Deus até o fim, ele chama a atenção dos fiéis para o último dia. Pois somente esta esperança deve nos suster, para que não nos desanimemos em momento algum. De outro modo, necessariamente cairíamos a todo instante.

Mas deve-se notar que ele não quer que esperemos a vida eterna, exceto através da misericórdia de Cristo, pois ele será de tal modo o nosso juíz, que não terá nenhuma outra regra para nos julgar além daquele benefício gratuito da redenção obtida por ele mesmo.

22. “E apiedai-vos de alguns”. Ele acrescenta outra exortação, explicando como os fiéis deveriam agir ao reprovar os irmãos a fim de restaurá-los ao Senhor. Ele lhes lembra de que os tais deveriam ser tratados de

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diferentes maneiras, cada um de acordo com a sua disposição. Com os mansos e ensináveis devemos usar de bondade; mas outros, que são duros e perversos, devem ser admoestados severamente. Este é o discernimento que ele menciona.

O particípio diakrinomenoi não sei por quê, é traduzido num sentido passivo por Erasmo. De fato, pode ser traduzido de ambos os modos, mas o seu sentido ativo é mais adequado para o contexto. O sentido então é de que, se desejamos ter em consideração o bem-estar daqueles que se desviam, devemos considerar o caráter e a disposição de cada um, de modo que aqueles que são mansos e tratáveis sejam restaurados ao caminho reto de um modo gentil, como sendo objetos de piedade. Mas, se alguém for perverso, deve ser corrigido com mais severidade. E, como a aspereza é por pouco detestável, ele a desculpa com base na necessidade, pois, de outro modo, aqueles que não seguem bons conselhos prontamente não podem ser salvos.

Além disso, ele emprega uma metáfora surpreendente. Quando há perigo de fogo, não hesitamos em arrebatar violentamente aqueles que desejamos salvar, pois não seria suficiente apontar com o dedo, ou estender gentilmente a mão. Assim também deveria ser tratada a salvação de alguns, porque eles só virão a Deus se puxados rudemente. Muito diferente é a tradução antiga, cuja leitura, no entanto, é encontrada em muitas cópias gregas. A Vulgata traz: “Repreendei os julgados” (Arguite dijudicatos). Mas o primeiro sentido é mais adequado, e

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penso que está de acordo com a leitura antiga e genuína. A palavra salvar é transferida para os homens, não porque sejam os autores, mas os ministros da salvação.

Agindo em Favor do Bem Espiritual e Salvação do Próximo - Comentário de Judas 1.23-25

“23. E salvai alguns com temor, arrebatando-os do fogo, odiando até a túnica manchada da carne.

24. Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória,

25. Ao único Deus sábio, Salvador nosso, seja glória e majestade, domínio e poder, agora, e para todo o sempre. Amém.”

23. “Odiando até a túnica”. Esta passagem, que de outro modo pareceria obscura, não terá nenhuma dificuldade quando a metáfora for corretamente explicada. Ele queria que os fiéis não apenas se guardassem do contato com os vícios, mas, para que nenhum contágio os alcançasse, ele os lembra de que tudo o que faz limite com os vícios e está próximo deles deve ser evitado; assim como, quando falamos da lascívia, dizemos que todos os incitamentos aos prazeres deveriam ser removidos. A passagem também se tornará mais clara quando toda a sentença é completada; isto é, que

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devemos odiar não apenas a carne, mas também a túnica, que, pelo contato com aquela, é infectada. A partícula kai (e) até serve para dar maior ênfase. Assim sendo, ele não admite que o mal seja nutrido através da indulgência, de modo que manda que todos os preparativos e todos os acessórios, como dizem, sejam cortados.

24. “Ora, àquele que é poderoso para vos guardar”. Ele encerra a Epístola com oração a Deus, com o que mostra que nossas exortações e esforços nada podem fazer exceto através do poder de Deus acompanhando-os.

Algumas cópias trazem “os” ao invés de “vos”. Se recebermos esta leitura, o sentido será: “De fato, é o vosso dever esforçardes por salvá-los; mas somente Deus é quem pode fazer isto”. Contudo, a outra leitura é a que eu prefiro, na qual há uma alusão ao verso precedente. Pois, após ter exortado os fiéis a salvarem o que estava perecendo, para que entendessem que todos os seus esforços seriam vãos a não ser que Deus operasse por meio deles, ele testifica que aqueles não poderiam ser salvos de outro modo senão através do poder de Deus. Nesta última cláusula na verdade existe um verbo diferente, phulaxai que significa guardar. Assim a alusão é a uma cláusula mais remota, quando ele disse: Guardai-vos.

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A Lei de Deus Implantada na Consciência de Todos - Comentário de Romanos 2.14

"Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos." (Romanos 2.14)

“Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei”. Paulo agora repete a prova da primeira parte da sentença, porquanto não se satisfaz em nos condenar por mera afirmação e em pronunciar o justo juízo divino sobre nós, senão que diligencia por convencer-nos dele por meio de argumentos, a fim de despertar-nos um grande desejo e amor por Cristo. Ele mostra que a ignorância é apresentada pelos gentios como fútil justificativa, visto que declaram, por seus próprios feitos, que possuem alguma norma de justiça. Não existe nação tão oposta a tudo quanto é humano que não se mantenha dentro dos limites de algumas leis. Visto, pois, que todas as nações de dispõem a promulgar leis para si próprias, de seu próprio alvitre, e sem serem instruídas para agirem assim, é além de toda e qualquer dúvida que elas conservam certa noção de justiça e retidão, ao que os gregos se referem como prolhyeij, e que é implantado por natureza nos corações humanos. Eles, portanto, possuem uma lei, sem a Lei; porque, embora não possuam a lei escrita por Moisés, não são completamente destituídos de conhecimento da retidão e da justiça. De outra forma, não poderiam distinguir entre vício e virtude - restringem aquele com castigo,

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enquanto que a esta exaltam, mostrando-lhe sua aprovação e honrando-a com recompensas. Paulo contrasta a natureza com a lei escrita, significando que os gentios possuíam a luz natural da justiça, a qual supria o lugar da lei escrita, por meio da qual os judeus são instruídos, de modo a se tornarem lei para si próprios.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Tomemos por assentado, que nesta dispensação da graça, que tem durado desde a morte e ressurreição de Jesus, que a nenhuma pessoa, e a nenhuma instituição tem sido dado por Deus, que em nome da religião, se faça acepção, ou injúria, maldição ou condenação de quem quer que seja, e muito menos que se use de violência seja ela moral ou física em nome de se defender a santidade e justiça de Deus. Ao contrário é ordenado aos que amam e conhecem a Deus em espírito, que amem a todos, inclusive a seus inimigos, e que perdoem e bendigam os que lhes amaldiçoam, injuriam ou perseguem.

Quando encontramos em comentários bíblicos o terrível destino que está reservado àqueles que se opuserem a Deus até o final de suas vidas, como vemos por exemplo não apenas nos comentários de Calvino, mas nos de todos aqueles que são fiéis à pregação e ensino da verdade revelada nas Escrituras, o que se tem em foco não é uma ameaça ou um aborrecimento declarado da parte de homens, senão um alerta misericordioso da parte do próprio Deus, que é quem o afirma, pela boca dos seus ministros o que há de suceder no dia do juízo

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final, de modo que pelo arrependimento, possam se converter e serem livrados da condenação.)

O Testemunho da Nossa Consciência - Comentário de Romanos 2.15

“Rom 2:15 Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se,”

“Nisto eles mostram a obra de lei escrita em seu coração”, ou seja: eles provam que há impressa em seus corações certa discriminação e juízo, por meio dos quais podem distinguir entre justiça e injustiça, honestidade e desonestidade. Paulo não diz que a obra da lei se acha esculpida em sua vontade, de modo a buscarem-na e perseguirem-na diligentemente, mas que se acham tão assenhoreados pelo poder da verdade, que não têm como desaprová-la. Não teriam instituído ritos religiosos, se não estivessem convencidos de que Deus deve ser adorado; nem se envergonhariam de adultério e de latrocínio, se os não considerassem como algo em extremo nocivo.

Não há qualquer base para deduzir-se desta passagem o poder da vontade, como se Paulo dissesse que a observância da lei é algo que se acha em nosso poder, visto que ele não está falando de nosso poder de cumprir

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a lei, e, sim, de nosso conhecimento dela. O termo corações não deve ser considerado como a sede das afeições, mas simplesmente como se referindo ao entendimento, como em Deuteronômio 29.4: "Porém, o Senhor não vos deu coração para entender"; e Lucas 24.25: "Ó néscios e tardos de coração para crer [=entender] tudo o que os profetas disseram!"

Não podemos concluir desta passagem que há no ser humano um pleno conhecimento da lei, mas tão-somente que há algumas sementes de justiça implantadas em sua natureza. Isto é evidenciado por fatos como estes, a saber: que todos os gentios, igualmente, instituem ritos religiosos, promulgam leis para a punição do adultério, do latrocínio e do homicídio, e louvam a boa fé nas transações e contratos comerciais. Assim, eles provam seu conhecimento de que Deus deve ser cultuado, que o adultério, o latrocínio e o homicídio são ações perversas, e que a honestidade deve ser valorizada. Não é o nosso propósito inquirir sobre que tipo de Deus eles o tomam, ou quantos deuses têm eles inventado. É suficiente saber que acreditam que há um Deus, e que honra e culto lhe são devidos. Pouco importa, também, que não permitam que se cobice a mulher do próximo, possessões, ou alguma coisa que tenham como sua, se toleram as faltas sem rancor e ódio, porque tudo aquilo que julgam como sendo ruim sabem também que não deve ser cultivado.

“Sua consciência e seus pensamentos, ora acusando-os, ora defendendo-os”. O testemunho de sua própria

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consciência, que é equivalente a mil testemunhas, era a mais forte pressão que poderá ter causado neles. Os homens são sustentados e confortados por sua consciência e boas ações, porém, interiormente, são molestados e atormentados quando sentem ter praticado o mal - daí, o aforismo pagão de que a boa consciência é um espaçoso teatro, e que a má consciência é um dos piores verdugos, e atormenta os perversos com a mais feroz de todas as fúrias. Há, pois, [no homem], um certo conhecimento da lei, o qual confirma que uma ação é boa e digna de ser seguida, enquanto que outra será evitada com horror.

Notemos como Paulo define a consciência de forma judiciosa. Adotamos, diz ele, certos argumentos com o fim de defender certo curso de ação que assumimos, enquanto que, por outro lado, há outros que nos acusam e nos convencem de nossos maus feitos. Ele se refere a estes argumentos de acusação e defesa no dia do Senhor, não só pelo fato de que somente então é que aparecerão, porquanto são constantemente ativos no cumprimento de sua função nesta vida, mas porque, então, também entrarão em vigor. O propósito do argumento de Paulo, aqui, é impedir que alguém menospreze tais argumentos como sendo de pouca importância ou permanente significação. Como já vimos, ele pôs no dia em vez de até ao dia.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Tomemos por assentado, que nesta dispensação da graça, que tem durado desde a morte e ressurreição de Jesus, que a nenhuma pessoa, e

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a nenhuma instituição tem sido dado por Deus, que em nome da religião, se faça acepção, ou injúria, maldição ou condenação de quem quer que seja, e muito menos que se use de violência seja ela moral ou física em nome de se defender a santidade e justiça de Deus. Ao contrário é ordenado aos que amam e conhecem a Deus em espírito, que amem a todos, inclusive a seus inimigos, e que perdoem e bendigam os que lhes amaldiçoam, injuriam ou perseguem.

Quando encontramos em comentários bíblicos o terrível destino que está reservado àqueles que se opuserem a Deus até o final de suas vidas, como vemos por exemplo não apenas nos comentários de Calvino, mas nos de todos aqueles que são fiéis à pregação e ensino da verdade revelada nas Escrituras, o que se tem em foco não é uma ameaça ou um aborrecimento declarado da parte de homens, senão um alerta misericordioso da parte do próprio Deus, que é quem o afirma, pela boca dos seus ministros o que há de suceder no dia do juízo final, de modo que pelo arrependimento, possam se converter e serem livrados da condenação.)

O Juízo de Condenação Será Segundo a Rejeição do Evangelho - Comentário de Romanos 2.16

“Rom 2:16 no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho.”

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“No dia em que Deus julgará os segredos dos homens”. Esta descrição ampliada do juízo divino é mais apropriada para a presente passagem. Ele informa aos que intencionalmente se ocultam nos refúgios de sua insensibilidade moral, que as intenções mais íntimas, que presentemente se acham inteiramente escondidas no recôndito de seus corações, serão, estão, trazidas à plena luz. Assim, em outra passagem, Paulo procura mostrar aos coríntios de quão pouco mérito é o juízo humano que se deixa fascinar pelas aparências exteriores. Ele os conclama a que aguardem até à vinda do Senhor, "o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações" [1 Co 4.5]. Ao ouvirmos isto, lembremo-nos daquela admoestação, a saber: se aspiramos a real aprovação por parte de nosso Juiz, empenhemo-nos por cultivar a sinceridade de coração.

Ele adiciona a expressão, segundo o meu evangelho, para provar que está oferecendo uma doutrina que corresponde aos juízos inatos do gênero humano, e a chama de meu evangelho em consideração ao seu ministério. Deus verdadeiro é unicamente aquele que possui a autoridade de dar o evangelho aos homens. Os apóstolos só tinham a administração dele. Não carece que fiquemos surpresos de dizer-se ser o evangelho, em parte, tanto mensageiro como a proclamação do juízo futuro. Se o cumprimento e completação de suas promessas são suspensos até à plena revelação do reino celestial, então tal fato precisa necessariamente ser relacionado com o juízo final. Além do mais, Cristo não

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pode ser proclamado sem demonstrar ser Ele, ao mesmo tempo, ressurreição para alguns e destruição para outros. Ambas estas - ressurreição e destruição - se referem ao dia do juízo. Aplico as palavras por meio de Jesus Cristo ao dia do juízo, ainda que haja outras explicações, significando que o Senhor executará Seu juízo por meio de Cristo, o qual foi designado pelo Pai para ser o Juiz tanto dos vivos como dos mortos. Este juízo por meio de Cristo é sempre posto pelos apóstolos entre os principais artigos do evangelho. Se porventura adotarmos esta interpretação, então a sentença, que de outra forma seria inadequada, ganhará em profundidade.

Predestinados por Deus para Ser Semelhantes a Cristo - Comentário de Romanos 8.29

"Rom 8:29 Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.”

“Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou”. Paulo mostra, portanto, pela própria ordem da eleição, que todas as aflições dos crentes são simplesmente os meios pelos quais são identificados com Cristo. Ele previamente declarara a necessidade disto. As aflições, portanto, não devem ser um motivo para nos sentirmos entristecidos, amargurados ou

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sobrecarregados, a menos que também reprovemos a eleição do Senhor, pela qual fomos predestinados para a vida, e vivamos relutantes em levar em nosso ser a imagem do Filho de Deus, por meio da qual somos preparados para a glória celestial. O conhecimento antecipado de Deus, mencionado aqui pelo apóstolo, não significa mera presciência, como alguns neófitos tolamente imaginam, mas significa, sim, a adoção, pela qual o Senhor sempre distingue seus filhos dos réprobos. Neste sentido, Pedro diz que os crentes foram eleitos para a santificação do Espírito segundo a presciência divina [1 Pedro 1:2]. Aqueles, pois, a quem me refiro aqui, tolamente concluem que Deus não elegeu a ninguém senão àqueles a quem previu que seriam dignos de sua graça. Pedro não incensa os crentes como se fossem todos eles eleitos segundos seus méritos pessoais, senão que, ao remetê-los ao eterno conselho de Deus, declara que estão todos inteiramente privados de qualquer dignidade. Nesta passagem, Paulo também reitera, em outras palavras, as afirmações que já havia feito concernentes ao propósito divino. Segue-se disto que este conhecimento depende do beneplácito divino, visto que, ao adotar aqueles a quem ele quis, Deus não teve qualquer conhecimento antecipado das coisas fora de si mesmo, senão que destacou aqueles a quem propôs eleger.

O verbo proorizo, o qual é traduzido por predestinar, aponta para as circunstâncias desta passagem em pauta. O apóstolo quer dizer simplesmente que Deus determinara que todos quantos adotasse levariam a

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imagem de Cristo. Não diz simplesmente que deveriam ser conformados a Cristo, e, sim, à imagem de Cristo, com o fim de ensinar-nos que em Cristo há um vivo e nítido exemplo que é posto diante dos filhos de Deus para que imitem. A súmula da passagem consiste em que a graciosa adoção, na qual nossa salvação consiste, é inseparável deste outro decreto, a saber: que ele nos designou para que levemos a cruz. Ninguém pode ser herdeiro do reino celestial sem que antes seja conformado ao Filho Unigênito de Deus.

A fim de que ele seja [ou, fosse] o primogênito entre muitos irmãos. O infinitivo grego, einai [einai], pode ser traduzido de outra forma, porém preferi esta. Ao chamar Cristo de o primogênito, Paulo quis simplesmente expressar que, se Cristo possui a preeminência entre todos os filhos de Deus, então, com razão, ele nos foi dado como exemplo, de modo que não devemos recusar nada de tudo quando agradou-lhe suportar. Portanto, o Pai celestial, a fim de mostrar, por todos os meios, a autoridade e a excelência que conferiu a seu Filho, ele deseja que todos aqueles a quem adota como herdeiros de seu reino vivam de conformidade com o seu exemplo.

Embora a condição dos santos difira na aparência (assim como há diferença entre os membros do corpo humano), todavia há certa conexão entre cada indivíduo e sua cabeça. Como, pois, o primogênito leva o nome da família, assim Cristo é colocado numa posição de preeminência, não só para que sua honra seja enaltecida

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entre os crentes, mas também para que ele inclua todos os crentes em seu seio sob o selo comum de fraternidade.

Predestinados, Chamados, Justificados e Glorificados - Comentário de Romanos 8.30

“Rom 8:30 E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou."

“E aos que predestinou, a esses também chamou”. Paulo agora emprega um clímax a fim de confirmar, por meio de uma demonstração mais clara, quão verdadeiramente a nossa conformidade com a humildade de Cristo efetua a nossa salvação. Daqui ele nos ensina que a nossa participação na cruz é tão conectada com a nossa vocação, justificação e, finalmente, nossa glória, que não podem ser desmembradas.

A fim de que os leitores possam melhor entender a intenção do apóstolo, é bom que se lembrem de minha afirmação anterior, ou seja: que o verbo predestinar, aqui, não se refere à eleição, mas ao propósito ou decreto divino pelo qual ordenou que seu povo levasse a cruz. Ao ensinar-nos que agora são chamados, o apóstolo tencionava que Deus não oculta mais o que determinara fazer com eles, mas que o revelou a fim de que pudessem levar com equanimidade e paciência a condição a eles imposta. A vocação, aqui, é distinguida da eleição

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secreta, como sendo inferior a ela. Pode-se alegar que ninguém tem conhecimento algum da condição que Deus designou a cada indivíduo. Portanto, para evitar isto, o apóstolo diz que Deus, através de seu chamado, testifica publicamente de seu propósito oculto. Este testemunho, contudo, não consiste só na pregação externa, mas tem também o poder do Espírito conectado a ela, pois Paulo está tratando com os eleitos, a quem Deus não só compele por meio de sua Palavra falada, mas também convence interiormente.

A justificação, aqui, pode muito bem ser entendida como que incluindo a continuidade do favor divino desde o tempo da vocação do crente até sua morte. Mas, visto que Paulo usa esta palavra ao longo da Epístola, no sentido da imerecida imputação da justiça, não há necessidade de nos apartarmos deste significado. O propósito de Paulo é mostrar que a compensação que nos é oferecida é por demais preciosa para permitir-nos enfrentar com ânimo as aflições. O que é mais desejável que ser reconciliado com Deus, de modo que nossas misérias não mais são sinais da maldição divina, nem mais nos conduz à destruição?

O apóstolo acrescenta que aqueles que se veem oprimidos pela cruz serão glorificados pela cruz serão glorificados, de modo que seus sofrimentos e opróbrios não lhes produzem dano algum. Embora a glorificação só foi exibida em nossa Cabeça, todavia, visto que agora percebemos nele a herança da vida eterna, sua glória nos traz uma segurança tal de nossa própria glória, que a

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nossa esperança pode muito bem ser comparada a uma possessão já presente.

Deve-se acrescentar ainda que o apóstolo empregou um hebraísmo e usou o tempo passado dos verbos, em vez do presente. O que ele pretende é, quase certo, um ato contínuo; por exemplo: “Aqueles a quem Deus agora educa sob a cruz, segundo seu conselho, ele chama e justifica, ato contínuo, para a esperança da salvação; de modo que, em sua humilhação, não perdem nada de sua glória. Embora seus sofrimentos atuais a deformem aos olhos do mundo, todavia, diante de Deus e dos anjos, ela está sempre a brilhar em perene perfeição”. O que Paulo, pois, pretende mostrar, por este clímax, é que as aflições dos crentes, as quais são a causa de sua atual humilhação, têm como único propósito fazê-los entender que possuem a glória do reino celestial e que vão alcançar a glória da ressurreição de Cristo, com quem já se acham crucificados.

Agradecer a Deus pela Unidade que Dá ao Corpo de Cristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.1-3

“1. Paulo, e Silvano, e Timóteo, à igreja dos tessalonicenses, em Deus nosso Pai, e no Senhor Jesus Cristo:

2. Graça e paz a vós da parte de Deus nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo.

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3. Sempre devemos, irmãos, dar graças a Deus por vós, como é justo, porque a vossa fé cresce muitíssimo e o amor de cada um de vós aumenta de uns para com os outros,”

1. “À igreja dos tessalonicenses, em Deus”. Quanto à forma de saudação, seria supérfluo comentar. Somente é necessário observar isto – que, por igreja em Deus e Cristo, faz-se referência a uma igreja que não apenas fora reunida sob a bandeira da fé, com o propósito de adorar ao único Deus e Pai, e de confiar em Cristo; mas que é obra e construção tanto do Pai como de Cristo, porque, enquanto Deus nos adota para si, e nos regenera, é dele que começamos a estar em Cristo (1 Co 1.30).

3. “Dar graças a Deus”. Paulo principia com a recomendação, a fim de ter o ensejo de passar à exortação – pois deste modo temos mais sucesso entre aqueles que já começaram a jornada, quando, sem ignorar em silêncio o seu progresso inicial, nós os lembramos de quão distantes ainda estão do alvo, e os encorajamos a fazer progresso. Como, porém, havia recomendado na Epístola anterior a sua fé e amor, ele agora declara o crescimento de ambos. E, sem sombra de dúvida, este curso deve ser seguido por todos os que são piedosos – examinarem-se diariamente, e verem o quanto têm avançado. Portanto, esta é a verdadeira recomendação dos crentes – seu crescimento diário em fé e amor. Quando diz “sempre”, ele quer dizer que ele é constantemente suprido com nova ocasião. Anteriormente, havia dado graças a Deus por causa

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deles. Agora, ele diz que tem ocasião de fazer isto novamente, pelo seu progresso diário. Porém, quando dá graças a Deus por esta causa, ele declara que o aumento, não menos do que o começo, da fé e do amor procedem do Senhor, pois, se procedesse do poder dos homens, a ação de graças seria fingida, ou ao menos inútil. Ademais, ele mostra que o aproveitamento deles não era trivial, ou mesmo ordinário, mas muito abundante. Tanto mais vergonhosa é a nossa lentidão, quando mal avançamos um passo durante um longo período de tempo.

“Como é justo”. Nestas palavras, Paulo mostra que somos obrigados a dar graças a Deus, não apenas quando ele nos faz o bem, mas também quando temos em vista os favores concedidos por ele aos nossos irmãos. Pois, onde quer que a bondade de Deus resplandeça, convém que a exaltemos. Ademais, o bem-estar de nossos irmãos deveria ser tão caro a nós que reconhecêssemos entre os nossos próprios benefícios tudo o que lhes tem sido conferido.

Mais ainda, se consideramos a natureza e sacralidade da unidade do corpo de Cristo, terá lugar entre nós uma comunhão tão mútua que consideraremos os benefícios concedidos a um membro individual como lucro para toda a Igreja. Por isso, ao exaltar os benefícios de Deus, devemos sempre ter em vista todo o corpo da Igreja.

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Paciência e Fé Sob Perseguições e Aflições - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.4

“De maneira que nós mesmos nos gloriamos de vós nas igrejas de Deus por causa da vossa paciência e fé, e em todas as vossas perseguições e aflições que suportais;” (2 Tessalonicenses 1.4)

“De maneira que nós mesmos nos gloriamos de vós”. Paulo não poderia ter-lhes concedido maior recomendação do que dizer que os apresenta diante de outras igrejas como um padrão – pois tal é o sentido destas palavras: nos gloriamos de vós na presença de outras igrejas. Paulo não se orgulhava da fé dos tessalonicenses por um espírito de ambição, e sim porquanto sua recomendação acerca deles poderia ser um incitamento para fazer com que seu esforço fosse imitado. Contudo, ele não diz que se gloria na fé e no amor deles, e sim na sua paciência e fé. Por onde segue-se que a paciência é o fruto e evidência da fé. Estas palavras devem, portanto, ser explicadas da seguinte maneira – “Nos gloriamos na paciência que brota da fé, e damos testemunho de que ela resplandece em vós eminentemente”; do contrário, o contexto não corresponderia.

E, sem sombra de dúvida, não há nada que nos sustente nas tribulações como a fé – o que é manifesto a partir disto, que nos prostramos completamente tão logo as promessas de Deus nos abandonem. Por isso, quanto

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maior aproveitamento alguém faz na fé, tanto mais será dotado de paciência para suportar todas as coisas com firmeza; assim como, por outro lado, a indolência e impaciência sob a adversidade são sinal de incredulidade de nossa parte; mas ainda mais especialmente quando perseguições devem ser suportadas pelo evangelho, a influência da fé nesse caso revela a si mesma.

As Injustiças que Sofremos Provam que Deus Julgará o Mundo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.5

“Prova clara do justo juízo de Deus, para que sejais havidos por dignos do reino de Deus, pelo qual também padeceis;” (2 Tessalonicenses 1.5)

“Prova clara do justo juízo de Deus”. Sem mencionar a exposição dada por outros, sou da opinião de que o verdadeiro sentido é este – que as injúrias e perseguições que pessoas piedosas e inocentes sofrem por parte dos ímpios e dissolutos revelam claramente, como em um espelho, que Deus um dia será o juiz do mundo. E esta declaração está em total contraste com aquela noção profana que estamos acostumados a nutrir, sempre que vai bem com os bons e mal com os ímpios. Pois pensamos que o mundo está sob a ordem do mero acaso, e deixamos Deus sem controle. É por isso que a impiedade e o desprezo tomam posse dos corações dos homens, como fala Salomão (Ec 9:3) – pois aqueles que sofrem algo imerecidamente ou lançam a culpa em Deus, ou não

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pensam que ele se interesse pelos negócios humanos. Ouvimos o que diz Ovídio: “Sou tentado a pensar que não existem deuses”. Mais ainda, Davi confessa (Sl 73.1-12) que, porque via as coisas em um estado tão confuso no mundo, por pouco havia escorregado, como em um terreno escorregadio. Por outro lado, os ímpios tornam-se mais insolentes por ocasião da prosperidade, como se nenhum castigo de seus crimes os aguardasse; assim como Dionísio, ao fazer uma próspera viagem, jactou-se de que os deuses favoreciam os sacrílegos. Por fim, quando vemos que a crueldade dos ímpios contra os inocentes circula com impunidade, o senso carnal conclui que não há juízo de Deus, que não há castigos para os ímpios, que não há recompensa para a justiça.

Mas, por outro lado, Paulo declara que, como Deus assim poupa os ímpios por um tempo, e tolera as injúrias infligidas sobre o seu povo, Seu juízo futuro é revelado a nós como em um espelho. Pois ele tem por certo que isto só pode ser porque Deus, que é um justo Juíz, um dia restaurará a paz aos miseráveis, que agora são injustamente afligidos, e pagará aos opressores dos que são piedosos a recompensa que mereceram. Por isso, se mantemos este princípio de fé, de que Deus é o justo Juíz do mundo, e de que é seu ofício dar a cada um a recompensa de acordo com as suas obras, este segundo princípio seguir-se-á incontestavelmente – que o atual estado desordeiro das coisas (ataxian) é uma demonstração do juízo que ainda não se vê.

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Pois, se Deus é o justo Juiz do mundo, as coisas que agora estão confusas devem, por necessidade, ser restauradas à ordem. Ora, nada está mais desordenado do que o fato de que os ímpios, com impunidade, causam incômodo aos bons, e circulam com irrestrita violência, enquanto os bons são cruelmente afligidos sem nenhuma falta de sua parte. Através disto pode-se inferir prontamente que Deus um dia subirá à tribuna de Juízo, a fim de remediar o estado das coisas no mundo, trazendo-as a uma melhor condição.

Por isso, a declaração que ele acrescenta – de que é justo diante de Deus que dê em paga tribulação, etc, é o fundamento desta doutrina, de que Deus provê sinais de um juízo futuro quando se abstém, no presente, de exercer o ofício de juíz. E, sem sombra de dúvida, se as coisas estivessem agora ordenadas de um modo tolerável, de modo que o juízo de Deus pudesse ser reconhecido como tendo sido plenamente exercido, um ajuste desta natureza nos deteria sobre a terra. Por isso Deus, a fim de nos incitar à esperança de um juízo futuro, julga o mundo no presente apenas até certa medida. É verdade que ele fornece muitos sinais do seu juízo, mas é de tal modo que nos obriga a prolongarmos nossa esperança ainda mais. Esta é uma passagem realmente notável, pois nos ensina de que modo nossas mentes deveriam se elevar acima de todos os impedimentos do mundo, sempre que sofremos alguma adversidade – que o justo juízo de Deus possa se apresentar à nossa mente, o qual nos elevará acima deste mundo. Assim a morte será uma imagem da vida.

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“Para que sejais havidos por dignos”. Não há nenhuma perseguição que possa ser considerada de tal valor que nos faça dignos do reino de Deus, e Paulo também não discute aqui o fundamento da dignidade, mas simplesmente toma a doutrina comum da Escritura – que Deus destrói em nós as coisas que são do mundo, a fim de restaurar em nós uma vida melhor; e ainda, que, por meio das aflições, ele nos mostra o valor da vida eterna. Em suma, ele simplesmente aponta a maneira em que os crentes são preparados e, por assim dizer, refinados sob a bigorna de Deus – porquanto, pelas aflições, são ensinados a renunciar ao mundo e a mirar o reino celestial de Deus. Ademais, eles são confirmados na esperança da vida eterna enquanto lutam por ela. Pois esta é a entrada acerca da qual Cristo discursou aos seus discípulos (Mt 7.13; Lc 13.24).

Os que Atribulam Serão Atribulados no Dia do Juízo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.6

“Se de fato é justo diante de Deus que dê em paga tribulação aos que vos atribulam,” (2 Tessalonicenses 1.6)

“Dê em paga tribulação”. Já temos dito por que Paulo faz menção da vingança de Deus contra os ímpios – para que aprendamos a descansar na esperança de um juízo futuro, porque Deus ainda não tomou vingança dos ímpios, embora seja necessário que sofram o castigo de

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seus crimes. Contudo, os fiéis, ao mesmo tempo, entendem por meio disto que não há razão para invejarem a felicidade momentânea e evanescente dos ímpios, que em breve será trocada por uma terrível destruição. O que ele acrescenta quanto ao descanso dos que são piedosos, está de acordo com a declaração de Pedro (Atos 3.20), em que ele chama o dia do juízo final de dia de refrigério.

Contudo, nesta declaração, quanto aos bons e aos maus, ele pretendia mostrar mais claramente quão injusto e confuso seria o governo do mundo se Deus não deferisse os castigos e recompensas até outro julgamento – pois deste modo o nome de Deus seria algo morto. Por isso, ele é privado do seu ofício e poder por todos os que não estão atentos a essa justiça de que Paulo fala.

Ele acrescenta “conosco” a fim de obter crédito para a sua doutrina a partir da experiência de crer em sua própria mente; pois mostra que não filosofa quanto a coisas desconhecidas, ao colocar-se na mesma condição, e no mesmo nível deles. Por outro lado, sabemos quanto maior autoridade é devida àqueles que têm, por longa prática, sido exercitados nas coisas que ensinam, e não exigem de outros nada além do que eles mesmos não estejam preparados para fazer. Portanto, Paulo não dá instruções aos tessalonicenses quanto a como deveriam lutar sob o calor do sol enquanto ele mesmo está na sombra; mas, lutando valorosamente, exorta-os ao mesmo combate.

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Os que São Atribulados Injustamente Serão Consolados - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.7

“E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder,” (2 Tessalonicenses 1.7)

“Quando se manifestar o Senhor”. Aqui temos uma confirmação da declaração anterior. Porque assim como é um dos artigos de nossa fé, que Cristo virá do céu, e não virá em vão, a fé deve indagar a finalidade da sua vinda. Ora, é para que ele venha como um Redentor para o seu povo; mais ainda, para que possa julgar todo o mundo. A descrição que segue tem em vista isto – que os que são piedosos possam compreender que Deus está tanto mais preocupado com suas aflições proporcionalmente ao terror do juízo que aguarda seus inimigos. Pois a maior ocasião de tristeza e angústia é esta – pensarmos que Deus seja pouco afetado pelas nossas calamidades. Sabemos os lamentos a que Davi de tempos em tempos se entregava, enquanto era consumido pelo orgulho e insolência dos seus inimigos. Assim, Paulo apresentou tudo isto para a consolação dos crentes, enquanto ele apresenta o tribunal de Cristo como cheio de terror, para que eles não se abatessem pela sua presente condição oprimida, enquanto se viam calcados orgulhosa e desdenhosamente pelos ímpios.

Qual deve ser a natureza desse fogo, e de que materiais, deixo para as disputas de pessoas de curiosidade tola. Estou satisfeito em manter o que Paulo tinha em vista

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ensinar – que Cristo será um vingador mui rigoroso das injúrias que os ímpios infligem sobre nós. Contudo, a metáfora labareda de fogo é abundantemente comum na Escritura, quando se trata da ira de Deus.

Por anjos do seu poder, ele se refere àqueles em quem exercerá o seu poder; pois ele trará os anjos consigo com o propósito de demonstrar a glória do seu reino. Por isso, também, eles são em outro lugar chamados de anjos da sua majestade.

Deus Tomará Vingança Contra os que se Opõem ao Evangelho - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.8

“Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo;” (2 Tessalonicenses 1.8)

“Tomando vingança”. A fim de melhor persuadir os crentes que as perseguições que agora sofrem não ficarão impunes, Paulo ensina que isto também envolve os interesses do próprio Deus, porquanto as mesmas pessoas que perseguem os que são piedosos são culpadas de rebelião contra Deus. Por isso, é necessário que Deus inflija vingança sobre eles, não apenas com vistas à nossa salvação, mas também por causa da sua glória. Ademais, esta expressão, tomando vingança, relaciona-se com Cristo, pois Paulo sugere que este ofício lhe é atribuído por Deus Pai. Pode-se questionar, porém,

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se é lícito desejarmos a vingança, pois Paulo a promete como se pudesse ser licitamente desejada. Respondo que não é lícito desejar vingança contra ninguém, porquanto somos ordenados a desejar o bem a todos. Além disso, embora possamos de um modo geral desejar vingança contra os ímpios, ainda assim não devemos discriminá-los, devemos desejar o bem de todos. Ao mesmo tempo, a ruína dos ímpios pode ser licitamente esperada com anseio, desde que reine em nossos corações um puro e devidamente regulado zelo por Deus, e não haja nenhum sentimento de anseio excessivo.

“Que não conhecem”. Ele distingue os incrédulos por estas duas marcas – que eles não conhecem a Deus, e não obedecem ao evangelho de Cristo. Pois, se não é prestada obediência ao evangelho através da fé, como ele ensina no primeiro e último capítulos da Epístola aos Romanos (Rom 1.18; 16.17), a incredulidade serve de ocasião à sua resistência. Ao mesmo tempo ele os acusa de ignorância acerca de Deus, pois um conhecimento vivo de Deus produz por si mesmo reverência para com ele. Por isso, a incredulidade sempre é cega, não como se os incrédulos estivessem totalmente privados de luz e inteligência, mas porque têm o entendimento entenebrecido de tal modo que, vendo, não veem (Mt 13.13). Não é sem um bom motivo que Cristo declara que “esta é a vida eterna, que te conheçam por único Deus verdadeiro, etc.” (João 17.3). Portanto, pela falta deste salutar conhecimento, segue-se o desprezo a Deus, e, por fim, a morte. Sobre este ponto tratei mais diretamente ao comentar o capítulo primeiro de Primeira aos Coríntios.

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Deus Será Glorificado Quando Fizer Justiça no Dia do Juízo - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.9,10

“9. Os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder,

10. Quando vier para ser glorificado nos seus santos, e para se fazer admirável naquele dia em todos os que creem (porquanto o nosso testemunho foi crido entre vós)”

9. “Eterna perdição, ante a face”. Paulo explica, por aposição, qual é a natureza do castigo de que havia feito menção – destruição sem fim, e morte infinita. A perpetuidade da morte é provada a partir da circunstância de que tem a glória de Cristo como o seu contrário. Ora, esta é eterna, e não tem fim. Portanto, a influência dessa morte nunca cessará. A partir daqui também se pode inferir a terrível severidade do castigo, porquanto será grande em proporção à glória e majestade de Cristo.

10. “Quando vier para ser glorificado”. Como até aqui ele discursou a respeito do castigo dos ímpios, agora se volta para os piedosos, e diz que Cristo virá para ser glorificado neles – ou seja, a fim de iluminá-los com a sua glória, e para que eles sejam participantes dela. “Cristo não terá esta glória para si mesmo individualmente; mas ela será comum a todos os santos”. Este é o coroamento e a superior consolação dos que são piedosos – que, quando o Filho de Deus se manifestar na glória do seu reino, ele

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os reunirá na mesma comunhão consigo. Contudo, há um contraste implícito entre a condição presente na qual os crentes gemem e sofrem, e essa restauração final. Pois agora eles estão expostos aos opróbrios do mundo, e são vistos como vís e indignos; mas então eles serão preciosos, e cheios de dignidade, quando Cristo derramar a sua glória sobre eles. O objetivo disto é que os piedosos possam, por assim dizer, de olhos fechados, seguir a breve jornada desta vida terrena, tendo suas mentes sempre atentas à manifestação futura do reino de Cristo. Pois, com que propósito ele faz menção da Sua vinda em poder, senão para que eles possam com esperança saltar para a frente, em direção àquela bendita ressurreição que ainda está oculta?

Também se deve observar que, após ter feito uso do termo santos, ele acrescenta, como explicação, os que creem – sugerindo por meio disto que não há nenhuma santidade nos homens sem a fé, mas que todos são profanos. Por fim, ele repete novamente os termos: naquele dia, pois aquela expressão está relacionada com esta sentença. Ora, ele a repete com vistas a reprimir os desejos dos crentes, para que não se apressassem além dos devidos limites.

“Porquanto foi crido”. O que havia dito de um modo geral quanto aos santos, agora ele aplica aos tessalonicenses, para que não duvidassem de que pertencem a esse número. “Porquanto”, ele diz, “a minha pregação obteve crédito entre vós, Cristo já vos arrolou no número do seu povo, que ele fará participante da sua glória”.

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Ele chama sua doutrina de testemunho, porque os apóstolos são testemunhas de Cristo (Atos 1.8). Aprendamos, portanto, que as promessas de Deus são ratificadas em nós, quando elas obtêm crédito conosco.

O Trabalho Árduo de Deus em Implantar a Sua Justiça nos Crentes - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.11

“Por isso também rogamos sempre por vós, para que o nosso Deus vos faça dignos da sua vocação, e cumpra todo o desejo da sua bondade, e a obra da fé com poder;” (2 Tessalonicenses 1.11)

“Por isso também rogamos sempre por vós”. A fim de que saibam que precisam da ajuda contínua de Deus, Paulo declara que ora em seu favor. Quando diz: “por isso”, ele quer dizer: para que alcançassem esse alvo final da sua jornada, como se mostra a partir do contexto imediato: e cumpra todo o desejo da sua boa vontade, etc. Contudo, parece que o que ele mencionou antes era desnecessário, pois Deus já lhes havia feito dignos do seu chamado. Porém, ele fala quanto ao fim ou consumação, a qual depende da perseverança. Pois, como estamos sujeitos a recuar, nosso chamado mais cedo ou mais tarde infalivelmente se mostraria, até onde nos diz respeito, ser vão, se Deus não o confirmasse. Por isso, é dito que ele nos faz dignos, quando nos conduz até o alvo em que miramos.

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“E cumpra”. Paulo chega a uma maravilhosa eminência ao exaltar a graça de Deus, pois, não se contentando com o termo beneplácito, afirma que o mesmo flui da sua bondade – a não ser que, talvez, alguém prefira considerar a beneficência como se originando deste beneplácito, o que equivale à mesma coisa. Quando, porém, somos instruídos de que o propósito gracioso de Deus é a causa da nossa salvação, e que isto tem o seu fundamento na bondade do mesmo Deus, não somos piores do que loucos, se nos aventuramos a atribuir alguma coisa, por menor que seja, aos nossos méritos? Pois as palavras são não pouco enfáticas. Ele poderia ter dito em uma só palavra: para que a vossa fé se cumpra, mas designa isto em termos de beneplácito. Além disso, expressa a ideia ainda mais distintamente, dizendo que Deus era movido por nada mais do que a sua própria bondade, pois não encontra nada em nós além de miséria.

Nem Paulo também atribui à graça de Deus apenas o princípio da nossa salvação, mas todos os aspectos dela. Assim, é posta de lado aquela perspicácia dos sofistas, de que somos, na verdade, antecipados pela graça de Deus, e que ela é ajudada por méritos subsequentes. Paulo, por outro lado, reconhece em todo o progresso da nossa salvação nada além da pura graça de Deus. Como, porém, o beneplácito de Deus já foi cumprido nele, referindo o termo, empregado na sequência, ao efeito que se revela em nós, ele explica o seu significado, quando diz: e a obra da fé. E a chama de obra, em referência a Deus, que opera

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ou produz a fé em nós – como se tivesse dito: “para que ele complete o edifício da fé que começou”.

Também não é sem um bom motivo que diz “com poder”, pois sugere que o aperfeiçoamento da fé é uma coisa árdua, e uma das maiores dificuldades. Isto também sabemos muito bem pela experiência; e a razão, também, não está longe, se considerarmos quão grande é a nossa fraqueza, quão variados são os obstáculos que nos obstruem de todos os lados, e quão violentos são os assaltos de Satanás. Por isso, a menos que o poder de Deus nos propicie ajuda em grau não ordinário, a fé nunca se elevará até a sua plena estatura. Pois levar a fé até a perfeição em um indivíduo não é tarefa mais fácil do que edificar sobre as águas uma torre que possa pela sua firmeza resistir a todas as tempestades e à fúria dos temporais, e elevar-se acima da altura das nuvens; pois não somos menos fluidos do que a água, e é necessário que a estatura da fé alcance o céu.

Somos Glorificados por Cristo Quando o Glorificamos - Comentário de 2 Tessalonicenses 1.12

“Para que o nome de nosso Senhor Jesus Cristo seja em vós glorificado, e vós nele, segundo a graça de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo.” (2 Tessalonicenses 1.12)

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“Para que o nome de nosso Senhor Jesus Cristo seja glorificado”. Paulo nos chama de volta para o objetivo principal de toda a nossa vida – que promovamos a glória do Senhor. O que ele acrescenta, porém, é mais especialmente digno de nota – que aqueles que têm feito avançar a glória de Cristo, por sua vez, também serão glorificados nele. Pois nisto, antes de tudo, resplandece a bondade maravilhosa de Deus – que ele quer que a sua glória seja conspícua em nós, que estamos cobertos de ignomínia. Porém, este é um duplo milagre, que depois ele nos ilumine com a sua glória, como se quisesse fazer a nós o mesmo em troca. Por esta causa ele acrescenta: segundo a graça de Deus e de Cristo. Pois não há nada aqui que seja nosso, quer na ação em si, ou no efeito, ou fruto; pois é exclusivamente pela orientação do Espírito Santo que nossa vida contribui para a glória de Deus. E a circunstância de que nasça tanto fruto disto deve ser atribuída à grande misericórdia de Deus. Ao mesmo tempo, se não somos piores do que estúpidos, devemos visar com todo a nossas força ao avanço da glória de Cristo, a qual está relacionada com a nossa. Considero desnecessário explicar agora em que sentido ele representa a glória como pertencendo em comum a Deus e a Cristo, uma vez que já expliquei isto em outro lugar.

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Um Viver Sério e Consagrado para a Volta do Senhor - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.1

“Ora, irmãos, rogamo-vos, pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, e pela nossa reunião com ele,” (2 Tessalonicenses 2.1)

1. “Ora, rogamo-vos, pela vinda”. Isto pode na verdade ser lido como: concernente à vinda, mas é mais conveniente considerá-lo como um pedido sério, a partir do assunto em questão, como em 1 Co 15:31, quando, discursando a respeito da esperança de uma ressurreição, ele faz uso de um juramento por aquela glória que deve ser esperada pelos crentes. E isto tem muito maior eficácia, quando conjura os crentes, pela vinda de Cristo, a que não imaginem temerariamente que o seu dia esteja próximo, pois ao mesmo tempo ele nos admoesta a não pensarmos nisto senão com reverência e sobriedade. Pois é costumeiro conjurar pelas coisas que são consideradas por nós com reverência. Portanto, o sentido é: “Assim como atribuís grande valor à vinda de Cristo, quando ele nos reunirá consigo, e realmente aperfeiçoará aquela unidade do corpo que até agora nutrimos apenas em parte, através da fé; do mesmo modo rogo-vos seriamente pela sua vinda a que não sejais demasiadamente crédulos, caso alguém afirme, sob qualquer pretexto, que o seu dia está próximo”.

Como, na sua Epístola anterior, ele havia se referido, até certo ponto, à ressurreição, é possível que, a partir disto, alguns fanáticos e inconstantes tomassem ocasião para

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determinar um dia próximo e fixo. Pois não é provável que este erro não tivesse se originado entre os tessalonicenses antes. Pois Timóteo, ao voltar de lá, havia informado a Paulo toda a sua condição, e, como homem prudente e experimentado, não havia omitido nada que fosse de importância. Ora, se Paulo tivesse recebido notícia acerca disto, ele não teria se silenciado quanto a uma questão de tão graves consequências. Assim, sou da opinião que, quando fora lida a primeira Epístola de Paulo, a qual continha uma vívida descrição da ressurreição, alguns que estavam dispostos a favorecer a curiosidade filosofaram inoportunamente quanto ao seu tempo. Contudo, esta era uma fantasia absolutamente destrutiva, assim como eram também outras coisas da mesma natureza, que depois se disseminaram, não sem artifício por parte de Satanás. Pois, quando se diz que algum dia está próximo, se não chegar rapidamente, sendo a humanidade por natureza impaciente com maiores dilações, seus espíritos começam a definhar, e logo depois essa languidez é seguida pelo desespero.

Portanto, isto era uma sutileza de Satanás; como ele não podia subverter abertamente a esperança de uma ressurreição, com vistas a solapá-la secretamente, como que por meio de buracos subterrâneos, ele prometera que o seu dia estaria próximo, e logo chegaria. Em seguida, também, ele não cessara de inventar várias coisas com vistas a ofuscar das mentes dos homens, pouco a pouco, a crença de uma ressurreição – uma vez que não podia erradicá-la abertamente. De fato, é algo

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plausível dizer que o dia da nossa redenção está definitivamente fixado, e por esta causa isto é recebido com o aplauso por parte da multidão, tal como sabemos que os devaneios de Lactâncio e dos quiliastas antigamente causaram grande deleite; e contudo eles não tiveram outra tendência senão a de subverter a esperança de uma ressurreição. Este não era o propósito de Lactâncio, mas Satanás, conforme a sua sutileza, perverteu a sua curiosidade, e a dos seus semelhantes, não deixando nada definido ou fixo na religião, e até os dias atuais ele não deixa de empregar os mesmos meios. Agora vemos quão necessária era a admoestação de Paulo, uma vez que, não fosse por isso, toda a religião teria sido subvertida entre os tessalonicenses sob um pretexto plausível.

A Volta do Senhor Será Antecedida pela Apostasia e Manifestação do Anticristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.2

“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto.” (2 Tessalonicenses 2.2)

“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento”. Ele emprega o termo “entendimento” para denotar a fé estabelecida que se apoia na sã doutrina. Ora, através daquela fantasia que ele rejeita,

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eles teriam sido levados como que ao êxtase. Ele também observa três tipos de embuste, contra os quais deveriam estar de guarda – espírito, palavra e epístola espúria. Pelo termo espírito, ele se refere a pretensas profecias, e parece que este modo de falar era comum entre os piedosos, de modo que aplicavam o termo espírito a profetas, com vistas a lhes dar honra. Pois, para que as profecias tenham a devida autoridade, devemos olhar antes para o Espírito de Deus do que para os homens. Mas, como o diabo costuma transformar-se em anjo de luz (2 Cor 11.14), os impostores roubaram este título, a fim de se imporem sobre os simples. Mas, embora Paulo pudesse tê-los privado desta máscara, ele preferiu falar desta maneira, por concessão, como se tivesse dito: “Por mais que possam pretender ter o espírito de revelação, não creiais neles”. João, de modo semelhante, diz: “Provai os espíritos, se são de Deus” (1 Jo 4.1).

“Palavra”, em minha opinião, inclui todo o tipo de doutrina, enquanto os falsos mestres insistam em matéria de razões ou conjecturas, ou de outros pretextos. O que ele acrescenta quanto a epístola é uma evidência de que esta impudência é antiga – a de falsificar os nomes dos outros. Tanto mais maravilhosa é a misericórdia de Deus para conosco, pelo fato de que, embora o nome de Paulo fosse usado falsamente em escritos espúrios, seus escritos, não obstante, foram preservados intactos até os nossos tempos. Isto, sem sombra de dúvida, não poderia ter ocorrido acidentalmente, ou como efeito da mera atividade humana, se o próprio Deus, pelo seu poder, não tivesse restringido Satanás e todos os seus ministros.

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“Como se o dia de Cristo estivesse já perto”. Isto pode parecer estar em desacordo com muitas passagens da Escritura, nas quais o Espírito declara que aquele dia está próximo. Mas a solução é fácil, pois está perto em relação a Deus, para quem um dia é como mil anos (2 Pe 3.8). Ao mesmo tempo, o Senhor queria que o aguardássemos constantemente, de tal modo a não limitá-lo a certo período de tempo. “Vigiai”, diz ele, “pois não sabeis o dia, nem a hora” (Mt 24.36). Por outro lado, aqueles falsos profetas que Paulo desmascara, embora devessem ter mantido as mentes dos homens em expectativa, mandavam que estivessem certos do seu rápido advento, para que não se cansassem com o aborrecimento da demora.

A Apostaria e o Homem do Pecado e Filho da Perdição - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.3

“Ninguém de maneira alguma vos engane; porque não será assim sem que antes venha a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição,” (2 Tessalonicenses 2.3)

“Ninguém vos engane”. A fim de que não prometessem a si mesmos infundadamente a vinda do alegre dia da redenção em tão curto espaço de tempo, Paulo lhes apresenta uma melancólica descrição quanto à futura dispersão da Igreja. Este discurso corresponde plenamente ao que Cristo fez em presença dos seus

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discípulos, quando estes lhe perguntaram a respeito do fim do mundo. Pois ele os exorta a se prepararem para suportar duros combates (Mt 24.6); e, depois de discursar acerca da mais terrível, prévia e inaudita das calamidades, pela qual a terra seria reduzida praticamente a um deserto, ele acrescenta que o fim ainda não está próximo, mas que estas coisas são os princípios das dores. Do mesmo modo, Paulo declara que os crentes devem exercer guerra por um longo período, antes de alcançarem um triunfo.

Contudo, aqui temos uma passagem notável, e que é, no mais alto grau, digna de observação. Esta era uma terrível e perigosa tentação, que poderia abalar até os mais confirmados, e fazê-los escorregar – ver a Igreja, que tivera, por meio de tantos trabalhos, se levantado gradualmente e com dificuldade até certa posição considerável, abater-se repentinamente, como se afundada por uma tempestade. Portanto, Paulo fortalece de antemão as mentes, não apenas dos tessalonicenses, mas de todos os que são piedosos, para que, quando a Igreja viesse a estar em uma condição dispersa, eles não ficassem alarmados, como se isto fosse algo novo e inesperado.

Como, porém, os intérpretes têm distorcido esta passagem de várias maneiras, devemos antes de tudo nos esforçar por determinar o verdadeiro sentido de Paulo. Ele afirma que o dia de Cristo não virá, enquanto o mundo não tiver caído em apostasia, e o reinado do Anticristo ser estabelecido na Igreja; pois, quanto à

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exposição que alguns têm dado a respeito desta passagem, como se referindo à queda do Império Romano, é simplória demais para exigir uma refutação extensa. Também fico surpreso de que tantos escritores, em outros aspectos instruídos e perspicazes, tenham incorrido em erro em um assunto que é tão fácil – não fosse que, quando alguém comete um erro, outros o sigam em bandos sem consideração. Portanto, Paulo emprega o termo apostasia no sentido de um abandono traiçoeiro de Deus, e isto não por parte de um ou alguns indivíduos, e sim como algo que se estenderia em toda a parte entre uma grande multidão de pessoas. Pois, quando apostasia é mencionada sem qualquer complemento, não pode ser restringida a poucos. Ora, ninguém pode ser denominado apóstata, senão aqueles que anteriormente fizeram uma confissão acerca de Cristo e do evangelho. Portanto, Paulo prediz certa revolta geral da Igreja visível. “A Igreja deve ser reduzida a um assustador e horrível estado de ruína, antes que sua plena restauração seja efetuada.”

A partir disto podemos prontamente deduzir quão útil é esta predição de Paulo , pois poderia parecer que não pudesse ser um edifício de Deus, aquilo que fosse subitamente subvertido, e permanecesse por tanto tempo em ruínas, se Paulo não tivesse muito antes sugerido que isto seria assim. Mais ainda, muitos nos dias atuais, quando consideram consigo mesmos a dispersão de longo tempo da Igreja, começam a vacilar, como se isto não tivesse sido determinado pelo propósito de Deus. Os romanistas também, com vistas a justificar a

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tirania do seu ídolo, fazem uso deste pretexto – que não era possível que Cristo desamparasse a sua esposa. Contudo, os fracos têm algo aqui em que se apoiar, quando aprendem que o estado inconveniente das coisas que contemplam na igreja foi há muito predito; enquanto, por outro lado, a impudência dos romanistas é abertamente desmascarada, porquanto Paulo declara que ocorrerá uma revolta, quando o mundo for trazido sob a autoridade de Cristo. Ora, veremos em breve por que o Senhor permitiu que a Igreja, ou ao menos o que parecia ser tal, decaísse de maneira tão vergonhosa.

“Se manifeste o homem do pecado”. Não era melhor do que uma fábula de velhas o que se concebeu a respeito de Nero; que ele fora arrebatado do mundo, destinado a voltar novamente para afligir a Igreja através da sua tirania; e, contudo, as mentes dos antigos estavam tão enfeitiçadas, que eles imaginavam que Nero seria o Anticristo. Contudo, Paulo não fala só de um indivíduo, mas de um reino, que seria apoderado por Satanás, para que ele estabelecesse um trono de abominação em meio ao templo de Deus, o que vemos cumprido no papado. É verdade que a rebelião se espalhou mais extensamente, pois Maomé, como era um apóstata, desviou de Cristo os turcos, seus seguidores. Todos os hereges têm quebrado a unidade da Igreja pelas suas seitas, e assim tem havido correspondente número de rebeliões contra Cristo.

Paulo, contudo, ao dar o alerta de que haveria tal dispersão, que a maior parte se revoltaria contra, acrescenta algo mais sério – que haveria tal confusão,

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que o vigário de Satanás manteria o poder supremo na Igreja, e a presidiria ali no lugar de Deus. Ora, ele descreve esse reinado de abominação sob o nome de uma única pessoa porque é apenas um reinado, embora um suceda ao outro. Meus leitores agora entendem que todas as seitas pelas quais a Igreja tem sido reduzida desde o princípio têm sido tantas correntes de rebelião que começaram a drenar a água do curso original; mas que a seita de Maomé foi como que um jorro impetuoso de água, que removeu quase a metade da Igreja pela sua violênca. Restava, ainda, que o Anticristo infectasse a parte restante com o seu veneno. Assim, vemos com os nossos próprios olhos que esta predição memorável de Paulo tem se confirmado pelo evento.

Na exposição que apresento, não há nada de forçado. Os crentes naquele tempo sonhavam que seriam transportados para o céu, após terem sofrido dificuldades durante um breve período de tempo. No entanto, pelo contrário, Paulo prediz que, depois de terem inimigos estranhos molestando-os por algum tempo, eles teriam de suportar mais males dos inimigos em casa, porquanto muitos daqueles que fizeram uma confissão de dedicação a Cristo seriam levados a abjeta traição, e porquanto o próprio templo de Deus seria contaminado por sacrílega tirania, de modo que o maior inimigo de Cristo exerceria o seu domínio ali. O termo manifestação é tomado aqui para denotar manifesta posse da tirania – como se Paulo tivesse dito que o dia de Cristo não viria enquanto esse tirano não tivesse se

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manifestado abertamente, e tivesse, por assim dizer, propositalmente subvertido toda a ordem da Igreja.

O Anticristo Agirá como se Fosse de Deus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.4

“O qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus.” (2 Tessalonicenses 2.4)

“O qual se opõe, e se levanta”. Os dois epítetos – homem do pecado e filho da perdição – sugerem, em primeiro lugar, quão terrível seria a confusão, a fim de que a sua indecência não desencorajasse as mentes fracas; e ainda, eles tendem a incitar os que são piedosos a um sentimento de abominação, para que não se degenerem com os demais. Contudo, Paulo traça agora, como em um quadro, um surpreendente retrato do Anticristo; pois pode-se facilmente deduzir a partir destas palavras qual é a natureza do seu reino, e de que coisas consiste. Pois, quando o chama de adversário, quando diz que ele reivindicará para si as coisas que pertencem a Deus, de modo que é adorado no templo como Deus; ele põe o seu reino em oposição direta ao reino de Cristo. Por isso, assim como o reino de Cristo é espiritual, do mesmo modo deve haver essa tirania sobre as almas, a fim de rivalizar o reino de Cristo. Também o encontraremos depois atribuindo-lhe o poder de enganar, por meio de

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doutrinas ímpias e pretensos milagres. Se, portanto, quereis conhecer o Anticristo, deveis vê-lo como diametralmente oposto a Cristo.

Onde traduzi: “tudo o que é chamado Deus”, a leitura mais comumente recebida entre os gregos é: “todo o que é chamado”. Contudo, pode-se conjecturar, tanto a partir da tradução antiga, como de alguns comentários gregos, que as palavras de Paulo foram corrompidas. O equívoco, também, de uma única letra prontamente se introduziu, especialmente quando o formato da letra era muito semelhante; pois, onde estava escrito pan to (tudo), algum copista, ou leitor muito atrevido, transformou em “panta” (todos). Esta diferença, porém, não é de tanta importância para o sentido, pois Paulo, sem sombra de duvida, quer dizer que o Anticristo tomaria para si as coisas que pertencem a Deus somente, de modo que se exaltaria acima de toda reivindicação divina, para que toda a religião e todo o culto a Deus estivessem aos seus pés. Neste caso, a expressão: tudo o que se chama Deus, é equivalente a tudo o que se reconhece como Divindade, e sebasma, ou seja, aquilo em que consiste a veneração devida a Deus.

Aqui, porém, o assunto tratado não é propriamente o nome de Deus, e sim a sua majestade e adoração; e, em geral, tudo o que ele reivindica para si. “A verdadeira religião é aquela pela qual o verdadeiro Deus é exclusivamente adorado; isto, o filho da perdição transferirá para si”. Ora, todo aquele que aprendeu pela Escritura quais são as coisas que pertencem mais

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especialmente a Deus, e, por outro lado, observar o que o papa reivindica para si – ainda que fosse um menino de dez anos de idade – não terá grande dificuldade em reconhecer o Anticristo. A Escritura declara que Deus é o único Legislador (Tg 4.12) que pode salvar e destruir; o único Rei, cujo ofício é governar as almas pela sua palavra. Ela o apresenta como o autor de todos os ritos sagrados; ela ensina que a justiça e a salvação devem ser buscadas de Cristo somente; e designa, ao mesmo tempo, o meio e o modo. Não existe nenhuma destas coisas que o papa não afirme estar sob sua autoridade. Ele se orgulha de que cabe a ele impor às consciências as leis que lhe pareçam boas, e sujeitá-las ao castigo eterno. Quanto aos sacramentos, ou ele institui novos, de acordo com a sua própria inclinação, ou corrompe e deforma aqueles que foram instituídos por Cristo – sim, descarta-os completamente, para por em lugar deles os sacrilégios que inventou. Ele inventa meios de alcançar a salvação que estão completamente em desacordo com a doutrina do Evangelho; e, por fim, não hesita em mudar toda a religião de acordo com a sua vontade. Dizei-me, o que é exaltar-se acima de tudo o que se chama Deus, se o papa não faz isto? Quando deste modo priva a Deus de sua honra, ele não lhe deixa nada além de um título vazio de Divindade, enquanto transfere para si todo o seu poder. E é isto o que Paulo acrescenta logo depois, que o filho da perdição quererá parecer Deus. Pois, conforme foi dito, ele não insiste no simples termo Deus, mas sugere que o orgulho do Anticristo seria tal que, levantando-se acima do número e posição dos servos, e subindo na tribuna de Deus, reinaria, não com autoridade humana,

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mas divina. Pois sabemos que tudo o que é levantado em lugar de Deus é um ídolo, ainda que não traga o nome de Deus.

“No templo de Deus”. Apenas por este termo há uma refutação suficiente do erro; mais ainda, da estupidez daqueles que consideram que o papa seja o Vigário (o que está no lugar de alguém) de Cristo, pelo fato de ter o seu trono na Igreja, seja de que maneira possa se conduzir; pois Paulo não põe o Anticristo em nenhum outro lugar senão no próprio santuário de Deus. Pois este não é um inimigo estranho, mas doméstico, que se opõe a Cristo sob o próprio nome de Cristo. Mas, questiona-se, como pode a Igreja ser apresentada como covil de tantas superstições, ao passo que foi destinada para ser a coluna da verdade (1 Tm 3:15)? Respondo que ela é assim representada, não pelo fato de reter todas as qualidades da Igreja, e sim porque tem algo dela remanescente. Portanto, admito que esse é o templo de Deus em que o papa tem domínio, mas ao mesmo tempo profanado por inúmeros sacrilégios.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino se refere ao papa como sendo o Anticristo nem tanto pela terrível perseguição que a Igreja Romana da época realizou contra ele e todos os reformadores, que tinham em vista trazer o evangelho à sua pureza original na vida dos crentes; mas certamente assim o identificou porque por séculos a citada igreja constituía o poder soberano político e religioso em todo o mundo, de modo que até mesmo o registro de pessoas, quer de nascimentos, casamentos e óbitos não era

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realizado pelo estado, mas pela igreja. Além disso, tantos foram os acréscimos sem respaldo na doutrina bíblica que foram acrescentados na prática devocional da citada igreja, que o evangelho ficou grandemente transfigurado, a ponto de se chegar ao extremo de se colocar a confiança da salvação muito mais nas obras de homens do que na mera fé em Jesus Cristo. Chegou-se mesmo a ensinar que a salvação poderia ser comprada por meio de indulgências dadas pelo papa àqueles que as comprassem com certa quantia em dinheiro ou propriedades. Todavia, por estarmos vivendo quinhentos anos depois de Calvino, muitas luzes têm si derramadas sobre estas profecias relativas ao fim dos tempos, e sabemos agora que Satanás tem se valido de muitos poderes seculares, aparte do religioso, para destruir o modo de vida judaico-cristão, e tudo leva a crer que o Anticristo será um governante mundial, apoiado por uma igreja ecumênica também mundial, cujo líder é identificado como sendo o Falso Profeta no livro de Apocalipse; e nesta gigante igreja mundial serão achados também protestantes e todo tipo de confissões cristãs que se aliarão ao erro e se afastarão da sã doutrina bíblica. Na verdade isto já está acontecendo a passos largos em nossos dias, e muitos têm sido enganados por não darem ouvido às Escrituras, senão a ensinos de homens e de demônios.)

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Paulo Ensinava Sobre a Volta de Jesus com Constância - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.5

“Não vos lembrais de que estas coisas vos dizia quando ainda estava convosco?” (2 Tessalonicenses 2.5

“Não vos lembrais? Isto acrescentou não pouco peso à doutrina – que anteriormente eles tinham ouvido pela boca de Paulo – para que não pensassem que havia sido inventado por ele no momento. E, como ele lhes havia dado um aviso inicial quanto ao reino do Anticristo, e a devastação que sobreviria à Igreja, quando nenhuma questão ainda havia sido levantada quanto a tais coisas, ele considerou fora de dúvida que era especialmente útil conhecer a doutrina. E, sem sombra de dúvida, isto é realmente assim. Aqueles a quem se dirigira estavam destinados a ver muitas coisas que os afligiria; e, quando a posteridade visse uma grande proporção daqueles que haviam feito confissão da fé de Cristo se rebelarem contra a piedade, enlouquecidos como que por uma mosca, ou antes por uma fúria, o que poderiam fazer, senão vacilar? Porém, esta era uma muralha de fogo – que as coisas foram assim designadas por Deus porque a ingratidão dos homens era digna de tal vingança. Aqui podemos ver como os homens são esquecidos em questões que afetam a sua salvação eterna. Também devemos notar a mansidão de Paulo; pois, embora pudesse ter veementemente se aborrecido, ele apenas os repreende mansamente; pois é um modo paternal de censurá-los dizer que haviam consentido que o

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esquecimento de uma questão tão importante e tão útil entrasse furtivamente em suas mentes.

A Manifestação do Mal no Mundo é Controlada por Deus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.6

“E agora vós sabeis o que o detém, para que a seu próprio tempo seja manifestado.” (2 Tessalonicenses 2.6)

“E agora o que o detém. Katechon significa aqui propriamente um impedimento ou ocasião de demora. Crisóstomo, que pensa que isto só se pode entender em referência ao Espírito, ou ao Império Romano, prefere apoiar esta última opinião. Ele aponta uma razão plausível – porque Paulo não teria falado do Espírito em termos enigmáticos, mas, ao falar do Império Romano, queria evitar despertar um sentimento desagradável. Ele explica também a razão pela qual o estado do Império Romano retarda a revelação do Anticristo – porque, assim como a monarquia da Babilônia foi subvertida pelos persas e medos, e os macedônios, tendo conquistado os persas, novamente tomaram posse da monarquia, e os macedônios foram finalmente subjugados pelos romanos; do mesmo modo o Anticristo tomaria para si a supremacia vacante do Império Romano. Não há nenhuma destas coisas que não tenha sido confirmada depois pelos acontecimentos reais. Portanto, Crisóstomo fala com verdade até onde diz respeito à história. Contudo, sou da opinião de que a

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intenção de Paulo era diferente disto – que a doutrina do evangelho precisava se espalhar aqui e ali, até que praticamente todo o mundo estivesse convencido de obstinação e malícia deliberada. Pois não pode haver dúvida de que os tessalonicenses haviam ouvido da boca de Paulo quanto a este impedimento, seja de que natureza fosse, pois ele evoca à recordação deles o que havia anteriormente ensinado em sua presença.

Que os meus leitores considerem agora qual dos dois é mais provável – ou que Paulo declarou que a luz do evangelho deve ser difundida por todas as partes da terra antes que Deus assim dê rédeas soltas a Satanás; ou que o poder do Império Romano permaneceu no caminho da ascensão do Anticristo, porquanto ele só poderia abrir caminho para um domínio vacante. Ao menos tenho a impressão de ouvir Paulo discursando quanto ao chamado universal dos gentios – que a graça de Deus deve ser oferecida a todos; de que Cristo deve iluminar a todo o mundo pelo seu evangelho, a fim de que a impiedade dos homens fosse mais plenamente atestada e demonstrada. Portanto, esta foi a demora, até que a carreira do evangelho fosse completada – porque um convite gracioso à salvação era o primeiro na ordem. Por isso acrescenta: a seu tempo, porque a vingança estaria madura depois que a graça tivesse sido rejeitada.

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A Vinda do Anticristo Está Sendo Preparada Pelo Diabo Desde Há Muito - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.7

“Porque já o mistério da injustiça opera; somente há um que agora resiste até que do meio seja tirado;” (2 Tessalonicenses 2.7)

“O mistério da iniquidade”. Isto é oposto a revelação; pois, como Satanás ainda não havia reunido tanta força, para que o Anticristo pudesse oprimir abertamente a Igreja, ele diz que ele está realizando secreta e clandestinamente o que faria abertamente em seu devido tempo. Portanto, naquele tempo ele estava lançando secretamente os fundamentos sobre os quais posteriormente levantaria o edifício, tal como realmente aconteceu. E isto tende a confirmar mais plenamente o que eu já disse – que não é um indivíduo que é representado sob o termo Anticristo, e sim um reino, que se estende por muitas eras. No mesmo sentido, João afirma que o Anticristo virá, mas que já havia muitos em seu tempo (1 Jo 2.18). Pois ele admoesta aqueles que viviam naquela ocasião a estarem de guarda contra essa pestilência mortal, que então estava crescendo de diversas formas. Pois estavam nascendo seitas que eram, por assim dizer, as sementes daquela erva desgraçada que quase sufocou e destruiu toda a lavoura de Deus. Mas, embora Paulo transmita a ideia de uma forma secreta de operação, ele fez uso do termo mistério ao invés de qualquer outro, aludindo ao mistério da

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salvação, do qual fala em outro lugar (Col 1.26); pois ele insiste atentamente na luta de repugnância entre o Filho de Deus e esse filho da perdição.

“Somente há um que agora resiste”. Embora faça ambas as declarações em referência a uma só pessoa – que ela manterá a supremacia por um período de tempo, e que logo será tirada do caminho – não tenho dúvida de que ele se refere ao Anticristo; e o particípio resistindo deve ser explicado no tempo futuro. Pois, em minha opinião, ele acrescentou isto para a consolação dos crentes – que o reinado do Anticristo será temporário, seus limites tendo sido designados por Deus; pois os crentes poderiam objetar: “De que vale que o evangelho seja pregado, se Satanás agora está incubando uma tirania que ele exercerá para sempre?” Portanto, ele exorta à paciência, porque Deus aflige sua Igreja apenas por um tempo, para que possa um dia dar-lhe o livramento; e, por outro lado, a perpetuidade do reinado de Cristo deve ser considerada, a fim de que os crentes possam repousar nisto.

O Anticristo Será Destruído Quando da Volta de Jesus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.8

“E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca, e aniquilará pelo esplendor da sua vinda;” (2 Tessalonicenses 2.8)

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“E então será revelado”, ou seja, quando aquele impedimento (katechon) for removido; pois ele não assinala o tempo da revelação como sendo quando aquele que agora tem a supremacia for tirado do caminho, mas tem em vista o que havia dito antes. Pois ele dissera que havia certo impedimento no caminho do Anticristo para que este chegasse à posse declarada do reino. Em seguida, acrescentou que ele estava incubando uma obra secreta de impiedade. Em terceiro lugar, intercalou uma consolação, com base em que esta tirania chegaria a um fim. Ele agora repete novamente que aquele que ainda estava oculto seria revelado neste tempo; e a repetição tem este objetivo – que os crentes, estando equipados com a armadura espiritual, possam, não obstante, lutar valorosamente sob Cristo, e não se permitirem vencer, ainda que a avalanche de impiedade seja tão difusa.

“A quem o Senhor”. Ele havia prenunciado a destruição do reinado do Anticristo; agora, assinala o modo da sua destruição – que ele será reduzido a nada pela palavra do Senhor. Contudo, é incerto se ele fala da aparição final de Cristo, quando ele será manifestado desde o céu como o Juíz. As palavras, de fato, parecem ter este sentido, mas Paulo não quer dizer que Cristo realizaria isto em um só momento. Por onde devemos entendê-lo no sentido de que o Anticristo seria totalmente e em cada aspecto destruído, quando aquele dia final da restauração de todas as coisas chegasse. Contudo, Paulo sugere, ao mesmo tempo, que Cristo colocará em fuga, através dos raios que emitirá antes do seu advento, a escuridão em

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que o Anticristo reinará; assim como o sol, antes de ser visto por nós, afugenta as trevas da noite pela emanação dos seus raios.

Portanto, esta vitória da Palavra se revelará neste mundo, pois o espírito da sua boca simplesmente se refere à Palavra, assim como também em Is 11.4; passagem à qual Paulo parece aludir. Pois ali o Profeta toma no mesmo sentido o cetro da sua boca, e o sopro dos seus lábios, e também provê Cristo destas mesmas armas, a fim de que ele aniquile seus inimigos. Esta é uma notável recomendação da verdadeira e sã doutrina – que ela seja apresentada como suficiente para pôr um fim a toda a impiedade; e como destinada a ser invariavelmente vitoriosa, em oposição a todas as maquinações de Satanás; como também quando, pouco depois, a sua proclamação é expressa como a vinda de Cristo a nós.

Quando Paulo acrescenta: “esplendor da sua vinda”, ele sugere que a luz da presença de Cristo será tal que tragará as trevas do Anticristo. Ao mesmo tempo, ele sugere indiretamente que o Anticristo terá permissão para reinar por um tempo, quando Cristo, de certa forma, se tem retirado, como geralmente acontece quando, ao se apresentar, voltamos nossas costas para ele. E, sem sombra de dúvida, este é um triste afastamento de Cristo, quando ele retira sua luz dos homens, a qual foi imprópria e indignamente recebida, de acordo com o que se segue. Ao mesmo tempo, Paulo ensina que, apenas pela sua presença, todos os eleitos de Deus estarão

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abundantemente seguros, em oposição a todas as sutilezas de Satanás.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Quão temerário é que coloquemos a confiança e segurança da nossa salvação nas mãos de determnadas instituições religiosas, sejam elas quais forem, porque poderemos afinal estar apoiando simplesmente homens e projetos humanos, que podem ser inclusive contrários aos propóstios de Deus. Somos portanto advertidos constantemente nas Escrituras a colocar tão somente a nossa confiança em Jesus Cristo e em nada e ninguém mais, quando o que está em foco é a segurança eterna da nossa alma. Ademais, o ensino doutrinário que nos convém é aquele que é afirmado na Bíblia – faremos bem portanto, em rechaçar tudo o que não esteja conformado à sã doutrina bíblica).

O Anticristo Atuará pelo Poder e Mentiras de Satanás - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.9

“A esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira,” (2 Tessalonicenses 2.9)

“Cuja vinda”. Ele confirma o que disse através de um argumento a partir de opostos. Pois, como o Anticristo não pode permanecer de outro modo senão através dos embustes de Satanás, ele deve necessariamente

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desaparecer tão logo Cristo resplandeça. Por fim, como é apenas nas trevas que ele reina, a aurora do dia põe em fuga e extingue as densas trevas do seu reinado. Agora estamos de posse do propósito de Paulo, pois ele queria dizer que Cristo não teria dificuldade em destruir a tirania do Anticristo, o qual não era apoiado por outros recursos senão os de Satanás. Ao mesmo tempo, porém, ele indica as marcas pelas quais aquele ímpio pode ser distinguido. Pois, após ter falado acerca da operação ou eficácia de Satanás, ele a assinala particularmente, quando diz: com sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano. E, certamente, para que possa ser oposto ao reino de Cristo, isto deve consistir parcialmente de falsa doutrina e erros, e parcialmente de pretensos milagres. Pois o reino de Cristo consiste da doutrina da verdade, e do poder do Espírito. Portanto, Satanás, tendo em vista se opor a Cristo na pessoa do seu Vigário, veste a máscara de Cristo, enquanto, ao mesmo tempo, escolhe uma armadura com que possa se opor diretamente a Cristo. Cristo, pela doutrina do seu evangelho, ilumina nossas mentes na vida eterna; o Anticristo, treinado sob a instrução de Satanás, por meio de perversa doutrina, envolve os ímpios em ruína; Cristo apresenta o poder do seu Espírito para salvação, e sela o seu evangelho por meio de milagres; o adversário, pela eficácia de Satanás, nos aliena do Espírito Santo, e pelos seus encantamentos confirma os homens miseráveis no erro.

Ele dá o nome de prodígios de mentira, não apenas àqueles que são falsa e enganosamente concebidos por homens astutos, com vistas a se impor sobre os simples

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– um tipo de engano com que abunda todo o papado, pois eles fazem parte do seu poder, do qual anteriormente tratou; mas toma a mentira como consistindo disto, que Satanás leva a um fim contrário obras que de outro modo são realmente obras de Deus, e abusa dos milagres para obscurecer a glória de Deus. Ao mesmo tempo, porém, não pode haver dúvida de que ele engana através de encantamentos – dos quais temos um exemplo nos magos do Faraó (Êx 7.11).

O Anticristo Atuará pelo Poder e Mentiras de Satanás - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.9

“A esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira,” (2 Tessalonicenses 2.9)

“Cuja vinda”. Ele confirma o que disse através de um argumento a partir de opostos. Pois, como o Anticristo não pode permanecer de outro modo senão através dos embustes de Satanás, ele deve necessariamente desaparecer tão logo Cristo resplandeça. Por fim, como é apenas nas trevas que ele reina, a aurora do dia põe em fuga e extingue as densas trevas do seu reinado. Agora estamos de posse do propósito de Paulo, pois ele queria dizer que Cristo não teria dificuldade em destruir a tirania do Anticristo, o qual não era apoiado por outros recursos senão os de Satanás. Ao mesmo tempo, porém, ele indica as marcas pelas quais aquele ímpio pode ser distinguido.

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Pois, após ter falado acerca da operação ou eficácia de Satanás, ele a assinala particularmente, quando diz: com sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano. E, certamente, para que possa ser oposto ao reino de Cristo, isto deve consistir parcialmente de falsa doutrina e erros, e parcialmente de pretensos milagres. Pois o reino de Cristo consiste da doutrina da verdade, e do poder do Espírito. Portanto, Satanás, tendo em vista se opor a Cristo na pessoa do seu Vigário, veste a máscara de Cristo, enquanto, ao mesmo tempo, escolhe uma armadura com que possa se opor diretamente a Cristo. Cristo, pela doutrina do seu evangelho, ilumina nossas mentes na vida eterna; o Anticristo, treinado sob a instrução de Satanás, por meio de perversa doutrina, envolve os ímpios em ruína; Cristo apresenta o poder do seu Espírito para salvação, e sela o seu evangelho por meio de milagres; o adversário, pela eficácia de Satanás, nos aliena do Espírito Santo, e pelos seus encantamentos confirma os homens miseráveis no erro.

Ele dá o nome de prodígios de mentira, não apenas àqueles que são falsa e enganosamente concebidos por homens astutos, com vistas a se impor sobre os simples – um tipo de engano com que abunda todo o papado, pois eles fazem parte do seu poder, do qual anteriormente tratou; mas toma a mentira como consistindo disto, que Satanás leva a um fim contrário obras que de outro modo são realmente obras de Deus, e abusa dos milagres para obscurecer a glória de Deus. Ao mesmo tempo, porém, não pode haver dúvida de que ele

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engana através de encantamentos – dos quais temos um exemplo nos magos do Faraó (Êx 7.11).

O Anticristo é um Juízo de Deus Para os que Amam a Mentira - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.10

“E com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem.” (2 Tessalonicenses 2.10)

“Para os que perecem”. Ele limita o poder de Satanás, como não sendo capaz de prejudicar os eleitos de Deus, assim como Cristo também os isenta deste perigo (Mt 24.24). A partir disto se mostra que o Anticristo não tem um poder tão grande, senão pela sua permissão. Ora, esta consolação era necessária. Pois todos os que são piedosos, se não fosse por isto, necessariamente seriam dominados pelo temor, se vissem um abismo escancarado pervadindo todo o caminho pelo qual devem passar. Por isso Paulo, por mais que deseje que eles estejam em um estado de ansiedade, a fim de que estejam de guarda para que não voltem atrás devido a uma negligência excessiva, sim, até mesmo se lancem em ruína; não obstante, os manda nutrir boa esperança, porquanto o poder de Satanás está restringido, a fim de que ele não envolva em ruína ninguém senão os ímpios.

“Porque não receberam o amor”. Para que os ímpios não se queixem de que perecem inocentemente, e de que

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foram destinados à morte mais por crueldade da parte de Deus, do que por qualquer erro da parte deles, Paulo explica com que bons motivos virá sobre eles tão severa vingança da parte de Deus –porque não receberam na moderação de espírito que deveriam, a verdade que lhes fora apresentada; mais ainda, rejeitaram a salvação por sua própria vontade. E a partir disto se mostra mais claramente o que já tenho explicado – que o evangelho precisava ser pregado ao mundo antes que Deus desse a Satanás tanta permissão; pois ele nunca teria permitido que seu templo fosse tão abjetamente profanado, se não tivesse sido provocado pela extrema ingratidão por parte dos homens. Em suma, Paulo declara que o Anticristo será o ministro da justa vingança de Deus contra aqueles que, sendo chamados à salvação, rejeitaram o evangelho, e preferiram aplicar sua mente à impiedade e ao engano. Por isso, agora não há razão para os papistas objetarem que está em desacordo com a clemência de Cristo deixar cair a sua Igreja desta maneira. Pois, embora o domínio do Anticristo tenha sido cruel, ninguém pereceu, senão aqueles que foram merecedores disto; mais ainda, por sua própria vontade escolheram a morte (Pv 8.36). E, sem sombra de dúvida, ainda que a voz do Filho de Deus tenha soado por toda a parte, ela acha os ouvidos dos homens moucos, sim, obstinados; e, embora uma confissão do Cristianismo seja comum, existem, não obstante, poucos que verdadeiramente e de coração têm se entregado a Cristo. Por isso, não é de se surpreender, se semelhante vingança rapidamente suceder a um desprezo tão criminoso.

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Questiona-se se o castigo da cegueira não cai senão sobre aqueles que deliberadamente se rebelaram contra o evangelho. Eu respondo que este juízo especial pelo qual Deus tem vingado uma clara obstinação não o impede de abater com severidade, tantas vezes quanto lhe pareça bom, aqueles que nunca ouviram uma única palavra a respeito de Cristo; pois Paulo não discursa de um modo geral quanto às razões pelas quais Deus permitiu desde o princípio que Satanás siga à vontade com as suas mentiras, e sim quanto a que vingança horrível paira sobre os desprezadores grosseiros da nova e anteriormente incomum graça.

Ele usa a expressão: recebendo o amor da verdade, no sentido de aplicar a mente ao seu amor. Por onde aprendemos que a fé sempre está associada a uma doce e voluntária reverência a Deus – porque não cremos devidamente na palavra de Deus, a menos que ela seja amável e agradável a nós.

Deus Permite a Manifestação do Mal Para Provar os Corações - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.11

“E por isso Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira;” (2 Tessalonicenses 2.11)

“A operação do erro”. Ele quer dizer que o engano não apenas terá um lugar, mas os ímpios serão cegados, de modo que se precipitarão à ruína sem consideração. Pois,

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assim como Deus nos ilumina interiormente pelo seu Espírito, para que a sua doutrina seja eficaz em nós, e abre os nossos olhos e corações, para que ela faça o seu caminho, do mesmo modo, por um justo juízo, ele entrega a uma mente réproba (Rom 1:28) aqueles que destinou à destruição, para que, com olhos fechados e uma mente insensata, eles possam, como se estivessem enfeitiçados, se entregar a Satanás e seus ministros para serem enganados. E, certamente, temos uma amostra notável disto no papado. Nenhuma palavra pode expressar que antro monstruoso de erros existe ali, que absurdo grosseiro e vergonhoso de superstições existe ali, e que ilusões em desacordo com o senso comum. Ninguém que possua até mesmo um senso moderado da sã doutrina pode pensar em coisas tão monstruosas sem o maior terror. Então, como o mundo todo poderia se perder de espanto com eles, se não fosse porque os homens têm sido feridos de cegueira pelo Senhor, e convertidos, por assim dizer, em tocos de madeira?

(Nota do Pr Silvio Dutra: Já apresentamos anteriormente algumas das razões que levaram Calvino a focar mais na Igreja Romana do que em quaisquer outras instituições religiosas ou pessoas que alegam estar a serviço de Cristo. Sabemos que a existência do erro doutrinário e das operações enganadoras de Satanás são muito mais extensas do que possamos imaginar, inclusive nas próprias fileiras da Igreja Protestante, especialmente a de nossos dias, que possui vários segmentos que não sustentam a doutrina de Cristo do modo pelo qual importa ser sustentada. Todavia, o vigor das advertências

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bíblicas quanto ao juízo terrível de condenação divina que paira sobre todos os que não se arrependem dos seus pecados é claramente apresentado por uma grande misericórdia de Deus, para que sejamos despertados do sono e do engano, de modo a buscarmos a salvação e a graça que se encontram somente na pessoa de Jesus Cristo.)

Quem Tem Prazer na Iniquidade Será Julgado por Deus - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.12

“Para que sejam julgados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer na iniquidade.” (2 Tessalonicenses 2.12)

“Para que sejam julgados todos”. Ou seja, para que recebam o castigo devido à sua impiedade. Assim, aqueles que perecem não têm nenhum motivo justo para discutir com Deus, porquanto alcançaram o que buscavam. Pois devemos ter em vista o que é dito em Dt 13:3, que os corações dos homens são sujeitos a prova, quando surgem falsas doutrinas, porquanto elas não têm poder, exceto entre aqueles que não amam a Deus com um coração sincero. Então, que aqueles que têm prazer na injustiça colham o seu fruto. Quando ele diz todos, significa que o desprezo a Deus não acha escusa no grande número e multidão daqueles que se recusam a obedecer o evangelho; pois Deus é o Juiz do mundo todo,

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de modo que infligirá castigo a cem mil não menos do que a um único indivíduo.

O particípio grego eudokesantes (tido prazer) significa, por assim dizer, uma inclinação voluntária para o mal, pois deste modo é removida toda a desculpa dos ingratos, quando têm tanto prazer na injustiça que preferem-na à justiça de Deus. Pois, através de que violência dirão ter sido impelidos a se alienarem por uma louca rebelião contra Deus, em direção a quem eles eram conduzidos pela orientação da natureza? Ao menos fica manifesto que eles, voluntária e conscientemente, deram ouvidos a mentiras.

(Pr Silvio Dutra: É vão atacar a religião ou denominações religiosas para justificarmos a nossa falta de amor à santidade de Deus. De fato, as coisas especialmente em nossos dias estão tão complicadas quanto à possibilidade de encontramos instituições que sigam estrita e corretamente a norma bíblica, fazendo uma exposição adequada da doutrina, e disciplinando os seus membros segundo a mesma doutrina, com toda a longanimidade, que não me aventuro a dizer quando alguém se converte que procure esta ou aquela igreja mais próxima de sua residência, para nela congregar. Entretanto, não seremos dados como escusados por Deus caso não tenhamos tido o devido cuidado com a salvação e santificação de nossas vidas. Assim, devemos nos dedicar à oração, à vigilância e ao estudo e aplicação da verdade da Sua Palavra, para que tenhamos a direção que nos virá do Alto, para que possamos viver do modo que seja agradável ao Senhor,

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na comunhão com outros, que com um coração puro o invocam.)

Eleitos para Salvação em Santificação do Espírito e Fé na Palavra - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.13

“Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade;” (2 Tessalonicenses 2.13)

“Mas devemos sempre dar graças”. Agora Paulo separa mais abertamente os tessalonicenses dos réprobos, a fim de que a fé deles não vacilasse pelo temor da rebelião que deveria acontecer. Ao mesmo tempo, ele tinha em vista considerar não apenas o bem-estar deles, mas também o da posteridade. E ele não apenas os confirma para que não caiam no mesmo precipício com o mundo, mas através desta comparação, exalta ainda mais a graça de Deus para com eles, pelo fato de que, embora vejam praticamente todo o mundo compelido ao mesmo tempo para a morte, como que por uma violenta tempestade; eles são, pela mão de Deus, mantidos em uma condição de vida tranquila e segura. Assim, devemos contemplar os juízos de Deus sobre os réprobos de tal modo que possam ser para nós como que espelhos, para considerarmos a sua misericórdia para conosco. Pois devemos deduzir esta conclusão – de que é

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exclusivamente devido à graça singular de Deus que não perecemos miseravelmente com eles.

Ele os chama de amados do Senhor por esta razão – para que melhor considerem que a única razão pela qual estão isentos da ruína quase que universal do mundo é porque Deus exerceu para com eles amor imerecido. Assim Moisés admoestou os judeus: “Deus não vos exaltou tão magnificamente porque fosseis mais fortes do que outros, ou fosseis numerosos, mas porque amou a vossos pais” (Dt 7:7-8). Pois, quando ouvimos o termo amor, aquela declaração de João deve imediatamente ocorrer à nossa mente – não que o amamos primeiro (1 Jo 4:19). Em suma, aqui Paulo faz duas coisas; pois ele confirma a fé, para que os que são piedosos não se deixem vencer pelo temor, e os exorta à gratidão, para que valorizem tanto mais a misericórdia de Deus para com eles.

“Por vos ter Deus elegido”. Ele declara a razão pela qual nem todos são envolvidos e tragados na mesma ruína – porque Satanás não tem poder algum sobre aqueles que Deus escolheu, de modo a impedi-los de serem salvos, ainda que o céu e a terra sejam confundidos. Esta passagem é lida de diversas maneiras.

O intérprete antigo traduziu-a como primeiros frutos, como estando no grego aparchen ; mas como quase todos os manuscritos gregos trazem aparchos segui de preferência esta leitura. Se alguém preferir primeiros frutos, o sentido será que os crentes foram, por assim dizer, postos de lado para uma oferta sagrada, por uma metáfora tirada do costume antigo da lei. Contudo,

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mantenhamos o que é mais geralmente aceito, que ele afirma que os tessalonicenses foram escolhidos desde o princípio.

Alguns entendem que o sentido é que eles foram chamados entre os primeiros; mas isto é estranho ao sentido de Paulo, e não está de acordo com o contexto da passagem. Pois ele não isenta do temor apenas alguns indivíduos, que haviam sido levados a Cristo logo no princípio do evangelho, mas esta consolação pertence a todos os eleitos de Deus, sem exceção. Portanto, quando diz: desde o princípio, ele quer dizer que não há perigo de que a salvação deles, que está fundamentada na eleição eterna de Deus, seja subvertida, sejam quais forem as mudanças tumultuosas que possam ocorrer. “Por mais que Satanás possa misturar e confundir todas as coisas no mundo, vossa salvação, apesar disso, foi colocada em uma posição de segurança, antes da criação do mundo”. Portanto, aqui está o verdadeiro porto de segurança, que Deus, que nos escolheu desde a antiguidade, nos livrará de todos os males que nos ameaçam. Pois somos eleitos para a salvação; portanto, estaremos seguros da destruição. Mas, como não cabe a nós penetrar no conselho secreto de Deus, para encontrar aí a certeza da nossa salvação, ele especifica sinais e indícios de eleição, que deveriam nos bastar para a certeza acerca dela.

Em santificação do espírito, diz ele, e fé da verdade. Isto pode ser explicado de duas maneiras; com santificação, ou por santificação. Não é de muita importância qual dos dois você escolha, pois é certo que Paulo pretendia

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simplesmente apresentar, em conexão com a eleição, aqueles sinais mais imediatos que manifestam a nós o que em sua própria natureza é incompreensível, e estão associados a ela por um elo indissolúvel. Por isso, a fim de que saibamos que somos eleitos por Deus, não há razão para inquirirmos quanto ao que ele decretou antes da criação do mundo; mas encontramos em nós mesmos uma prova satisfatória de que ele nos tem santificado pelo seu Espírito – se ele nos tem iluminado na fé do seu evangelho. Pois o evangelho é para nós uma evidência da nossa adoção; e o Espírito o sela; e aqueles que são guiados pelo Espírito estes são filhos de Deus (Rom 8.14); e aquele que pela fé possui a Cristo tem a vida eterna (1 Jo 5.12). Estas coisas devem ser atentamente observadas para que, desprezando a revelação da vontade de Deus, com a qual ele nos manda permanecermos santificados, não mergulhemos em um labirinto profundo por um desejo de extraí-la a partir do seu conselho secreto, de cuja investigação ele nos afasta. Por isso, convém que fiquemos satisfeitos com a fé do evangelho, e com aquela graça do Espírito pela qual temos sido regenerados. E, deste modo, é refutada a impiedade daqueles que fazem da eleição de Deus um pretexto para todo o tipo de iniquidade, ao passo que Paulo a relaciona com a fé e a regeneração de tal modo que ele não queria que a julgássemos sobre qualquer outro fundamento.

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Chamados pelo Evangelho para Alcançar a Glória Eterna - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.14

“Para o que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo”.

“Para o que vos chamou”. Paulo repete a mesma coisa, embora em termos um tanto diferentes. Pois os filhos de Deus não são chamados à crença da verdade de outro modo. Contudo, Paulo pretendia mostrar aqui quão competente testemunha ele é para confirmar aquilo de que era ministro. Portanto, ele se apresenta como uma garantia, a fim de que os tessalonicenses não duvidem de que o evangelho, no qual haviam sido instruídos por ele, é a reconfortante voz de Deus, pela qual são despertados da morte, e salvos da tirania de Satanás. Ele o chama de seu evangelho, não como se tivesse se originado com ele, e sim porque a pregação dele lhe havia sido confiada.

O que ele acrescenta, para a aquisição ou possessão da glória de Cristo, pode ser entendido quer em um sentido ativo ou passivo – ou como significando que eles são chamados para que um dia possuam uma glória em comum com Cristo, ou que Cristo os adquiriu tendo em vista a sua glória. E assim será um segundo meio de confirmação o fato de que ele os defenderá, como sendo nada menos do que sua própria herança; e, ao manter a salvação deles, se apresentará em defesa da sua própria glória; este último sentido, em minha opinião, soa melhor.

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Firmes por Reter a Doutrina de Cristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.15

“15. Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa.

16. E o próprio nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Deus e Pai, que nos amou, e em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança,

17. console os vossos corações, e vos confirme em toda a boa palavra e obra.”

Paulo deduz esta exortação, com bons motivos, a partir do que vem antes; porquanto nossa firmeza e poder de perseverança não se apoiam em nada mais do que na certeza da graça divina. Quando, porém, Deus nos chama para a salvação, como que estendendo a nós sua mão; quando Cristo, pela doutrina do evangelho, se apresenta a nós para ser desfrutado; quando o Espírito nos é dado como um selo e penhor da vida eterna; ainda que o céu caia, não podemos ficar abatidos. Portanto, Paulo queria que os tessalonicenses permanecessem de pé, não apenas quando outros continuam de pé, mas com uma estabilidade ainda mais segura; de modo que, ao ver quase todos se desviando da fé, e todas as coisas cheias de confusão, eles retenham o seu lugar. E, certamente, o chamado de Deus deveria nos fortalecer contra todas as ocasiões de escândalo, de tal modo que nem mesmo a

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ruína de todo o mundo abalasse, muito menos subvertesse, a nossa estabilidade.

15. “Retende as tradições”. Alguns restringem isto a preceitos de conduta exterior; mas isto não me contenta, pois ele aponta para o modo de permanecer firme. Ora, estar equipado com força invencível é muito mais do que disciplina exterior. Por isso, em minha opinião, ele inclui toda a doutrina sob este termo, como se tivesse dito que eles têm um fundamento sobre o qual podem permanecer firme, desde que perseverem na sã doutrina, conforme o que haviam sido instruídos por ele. Não nego que o termo paradoseis seja adequadamente aplicado às ordenanças que são estabelecidas pelas igrejas, com vistas à promoção da paz e à manutenção da ordem; e admito que é empregado neste sentido quando se tratam de tradições humanas (Mt 15.6). Contudo, Paulo será encontrado no próximo capítulo fazendo uso do termo tradição, no sentido da regra que havia formulado, e a própria significação do termo é genérica. O contexto, porém, conforme eu disse, exige que ela seja entendida aqui no sentido da totalidade daquela doutrina na qual eles haviam sido instruídos. Pois o assunto tratado é o mais importante de todos – que a fé deles permanecesse segura em meio a uma terrível agitação da Igreja.

Os papistas, porém, fazem um uso indevido desta passagem ao deduzirem a partir disto que suas tradições deveriam ser observadas. Na verdade, eles raciocinam da seguinte maneira – que, se era permissível para Paulo prescrever tradições, também era permissível para

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outros mestres; e que, se era algo piedoso observar as primeiras, as últimas também não deveriam ser menos observadas. Contudo, concedendo-lhes que Paulo fala de preceitos pertencentes ao governo exterior da Igreja, digo que, não obstante, eles não foram inventados por ele, mas comunicados divinamente. Pois ele declara em outro lugar (1 Co 7:35) que não era sua intenção prender as consciências, pois isto não era lícito, nem para si, nem para todos os apóstolos juntos. Eles fazem um uso ainda pior, ao fazer do seu objetivo passar, sob isto, o escoadouro abominável de suas próprias superstições, como se fossem as tradições de Paulo. Mas, “adeus” para essas ninharias, quando estamos na posse do verdadeiro sentido de Paulo. E podemos julgar, em parte através desta Epístola, que tradições ele recomenda aqui, pois diz: quer por palavra, ou seja, discurso, ou por epístola. Ora, o que estas Epístolas contêm senão a pura doutrina, que subverte o próprio fundamento de todo o papado, e toda a invenção que esteja em desacordo com a simplicidade do Evangelho?

Confirmação em Toda Boa Palavra e Obra - Comentário de 2 Tessalonicenses 2.16,17

“16. E o próprio nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Deus e Pai, que nos amou, e em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança,

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17. Console os vossos corações, e vos confirme em toda a boa palavra e obra.”

“E o próprio Senhor”. Quando Paulo atribui a Cristo uma obra totalmente divina, e o apresenta em comum com o Pai, como o Autor das mais excelentes bênçãos; assim como temos nisto uma prova clara da divindade de Cristo, do mesmo modo somos admoestados de que não podemos obter nada de Deus a menos que o busquemos no próprio Cristo; e, quando pede que Deus lhes dê aquelas coisas que havia prescrito, ele mostra mui claramente quão pouca influência têm as exortações, a menos que Deus mova ou afete interiormente os nossos corações. Sem sombra de dúvida, haverá apenas um som oco atingindo os ouvidos, se a doutrina não receber a eficácia do Espírito.

O que ele acrescenta em seguida, que nos amou, e nos deu uma consolação, etc, relaciona-se com a confiança ao pedir; pois ele queria que os tessalonicenses se sentissem persuadidos de que Deus fará aquilo pelo que ele ora. E através do que prova isto? Em razão de que outrora revelou que eles lhe eram caros, ao mesmo tempo em que já lhes conferira distintos favores, e assim se comprometera com eles pelo tempo futuro. É isto o que ele quer dizer com eterna consolação. O termo esperança, ademais, tem o mesmo objeto em vista – para que eles esperassem confiantemente uma continuidade nunca deficiente de dons. Mas o que ele pede? Que Deus possa sustentar os seus corações pela sua consolação; pois este é o seu ofício – guardá-los de ceder à ansiedade

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ou desconfiança; e ainda, para que lhes dê perseverança, tanto em um curso santo e piedoso de vida, como na sã doutrina; pois sou da opinião de que é mais disto que ele fala do que do discurso comum, de modo que isto concorda com o que vem antes.

Glorificação da Palavra de Deus em Nossas Vidas - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.1

“No demais, irmãos, rogai por nós, para que a palavra do Senhor tenha livre curso e seja glorificada, como também o é entre vós;” (2 Tessalonicenses 3.1)

“Rogai por nós”. Embora o Senhor o ajudasse poderosamente, e embora ultrapassasse todos os outros em ardor de oração, Paulo não despreza as orações dos crentes, pelas quais o Senhor quer que sejamos auxiliados. Convém-nos, segundo o seu exemplo, desejar avidamente esta ajuda, e encorajar nossos irmãos a orarem por nós.

Quando, porém, acrescenta: para que a palavra de Deus tenha livre curso, ele mostra que não tem tanta preocupação e consideração pessoalmente por si, como por toda a Igreja. Pois, por que ele deseja ser recomendado às orações dos tessalonicenses? Para que a doutrina do evangelho possa ter livre curso. Portanto, ele não deseja tanto que lhe fosse dada consideração a si mesmo quanto à glória de Deus e ao bem comum da

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Igreja. Curso significa aqui disseminação; glória significa algo mais – que a sua pregação possa ter o poder e a eficácia para renovar os homens conforme à imagem de Deus. Por isso, a santidade de vida e a justiça por parte dos cristãos é a glória do evangelho; assim como, por outro lado, difamam o evangelho aqueles que o confessam com a boca, mas ao mesmo tempo vivem em impiedade e torpeza. Ele diz: como entre vós, porque seria um estímulo para os que são piedosos verem todos os outros semelhantes como eles. Por isso, aqueles que já entraram no reino de Deus são exortados a orarem diariamente para que ele venha (Mt 6:10).

A Fé Não é de Todos - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.2

“E para que sejamos livres de homens dissolutos e maus; porque a fé não é de todos.” (2 Tessalonicenses 3.2)

“Para que sejamos livres”. O intérprete antigo traduziu isto, não inadequadamente, em minha opinião, por irracionais. Ora, por este termo, assim também como por aquele que vem em seguida (poneron - maus), Paulo se refere a homens ímpios e traiçoeiros, que espreitavam na Igreja, sob o nome de cristãos; ou, ao menos, a judeus que, com um zelo insano pela lei, perseguiam furiosamente o evangelho. Ele sabia, porém, quanto perigo pairava sobre ambas estas classes. Crisóstomo, no entanto, pensa que são referidos apenas aqueles que se

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opunham maliciosamente ao evangelho por meio de falsas doutrinas – não por armas de violência, como por exemplo Alexandre, Himeneu, e outros como eles; mas, de minha parte, estendo isto genericamente a todos os tipos de perigos e inimigos. Naquela ocasião ele estava a caminho de Jerusalém, e escrevia durante as suas jornadas. Ora, ele já havia sido divinamente prevenido de que lhe aguardavam prisões e perseguições lá (Atos 20:23). Contudo, ele se refere ao livramento, para que possa sair vitorioso, quer pela vida ou pela morte.

“A fé não é de todos”. Isto poderia ser explicado no sentido de que “a fé não está em todos”. Contudo, esta expressão seria tanto ambígua como mais obscura. Portanto, retenhamos as palavras de Paulo, pelas quais sugere que a fé é um dom de Deus que é mui raro para ser encontrado em todos. Portanto, Deus chama a muitos que não vêm a ele pela fé. Muitos pretendem vir a ele, tendo seu coração à maior distância dele. Além disso, ele não fala de todos indiscriminadamente, mas apenas censura aqueles que pertencem à Igreja – pois os tessalonicenses sabiam que muitíssimos tinham aversão à fé; mais ainda, eles sabiam quão pequeno era o número dos crentes. Por isso, teria sido desnecessário dizer isto quanto aos estranhos; mas Paulo simplesmente afirma que todos quantos fazem confissão de fé não são tais na realidade. Se considerásseis todos os judeus, eles pareceriam ter uma proximidade com Cristo, pois deveriam tê-lo reconhecido por meio da lei e dos profetas. Não pode haver dúvida que Paulo assinala especialmente aqueles com quem teria de se ver. Ora, é

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provável que fossem aqueles que, embora tivessem aparência e título honroso de piedade, estavam muito distantes da realidade. Disto veio o combate.

Portanto, com vistas a mostrar que não era sem fundamento, ou sem um bom motivo, que antecipava com receio as lutas com homens ímpios e perversos, ele afirma que a fé não é comum a todos, porque os ímpios e réprobos sempre estão misturados com os bons, assim como o joio com o bom trigo (Mt 13.25). E isto deveria ser recordado por nós sempre que temos aborrecimentos causados por pessoas ímpias, as quais, não obstante, desejam ser consideradas como pertencentes à sociedade dos cristãos – que nem todos os homens têm fé. Mais ainda, quando ouvimos em algumas situações que a Igreja é afligida por aviltantes facções, que seja este um escudo para nós contra escândalos desta natureza; pois não apenas cometeremos injustiça aos mestres piedosos, se tivermos dúvidas quanto à sua fidelidade, sempre que inimigos domésticos lhes causem dano, mas a nossa fé vacilará de quando em quando, a menos que tenhamos em mente que, entre aqueles que se gloriam do nome de cristãos, existem muitos que são traiçoeiros.

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Confirmados por Deus e Guardados do Maligno - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.3

“Mas fiel é o Senhor, que vos confirmará, e guardará do maligno.” (2 Tessalonicenses 3.3)

“Mas fiel é o Senhor.” Como era possível que as mentes deles, influenciadas por relatos desfavoráveis, viessem a entreter algumas dúvidas quanto ao ministério de Paulo; tendo lhes ensinado que a fé nem sempre se encontra nos homens, ele agora os chama de volta para Deus, e diz que ele é fiel, assim confirmando-os contra todas as invenções dos homens, pelas quais se esforçariam para abalá-los. “De fato, eles são traiçoeiros, mas em Deus há apoio abundantemente seguro, assim impedindo que recueis”. Ele chama o Senhor de fiel, porquanto ele adere ao seu propósito preservar até o fim a salvação do seu povo, oportunamente o ajudando, e nunca o desamparando em perigos, como em 1 Co 10:13, “Deus é fiel para não permitir que sejais tentados acima do que podeis suportar”.

Estas palavras, no entanto, mostram por si mesmas que Paulo estava mais aflito quanto a outros do que quanto a si mesmo. Homens maliciosos dirigiam contra ele os aguilhões da sua malignidade; toda a violência disto caía sobre ele. Ao mesmo tempo, ele dirige todas as suas preocupações aos tessalonicenses, para que esta tentação não lhes causasse nenhum dano.

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O termo maligno pode se referir tanto à coisa – isto é, à malícia – como às pessoas dos ímpios. Contudo, prefiro interpretar isto com respeito a Satanás, o cabeça de todos os ímpios. Pois seria algo pequeno ser livrado da astúcia ou violência dos homens, se o Senhor não nos protegesse de todo dano espiritual.

Deus Guia o Coração no Amor e na Paciência de Cristo - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.4,5

“4. E confiamos quanto a vós no Senhor, que não só fazeis como fareis o que vos mandamos.

5. Ora o Senhor encaminhe os vossos corações no amor de Deus, e na paciência de Cristo.”

4. “Confiamos”. Através deste prefácio ele prepara o caminho para prosseguir dando a instrução, a qual o encontraremos acrescentando logo em seguida. Pois a confiança que ele diz possuir com respeito a eles os tornara muito mais prontos para obedecer do que se tivesse exigido obediência deles de um modo duvidoso ou desconfiado. Contudo, ele diz que esta esperança que nutria em relação a eles estava fundamentada no Senhor, porquanto cabe a ele constranger seus corações à obediência, e conservá-los nela; ou, por esta expressão (como me parece mais provável), ele pretendia testificar que não é sua intenção prescrever coisa alguma senão por mandamento do Senhor. Aqui, portanto, ele

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estabelece limites para si mesmo quanto a prescrever, e para eles quanto a obedecer – de que isto deveria ser apenas no Senhor. Portanto, todos os que não observam esta limitação recorrem sem propósito ao exemplo de Paulo, com o fim de constranger a Igreja e sujeitá-la às suas leis. Talvez ele tivesse isto em vista, que o respeito devido ao seu apostolado permanecesse intacto entre os tessalonicenses, por mais que os ímpios tentassem privá-lo da honra que lhe pertencia; pois a oração que ele acrescenta em seguida tende a este objetivo. Pois, contanto que os corações dos homens continuem a estar direcionados para o amor a Deus, e em paciente espera de Cristo, as demais coisas estarão em um estado desejável,– e Paulo declara não desejar nada mais. A partir disto fica manifesto quão distante ele está de buscar domínio propriamente para si. Pois está satisfeito, desde que eles perseverem no amor a Deus, e na esperança da vinda de Cristo. Ao acompanhar com oração a sua expressão de confiança, ele nos admoesta de que não devemos relaxar no ardor da oração pelo fato de nutrirmos boa esperança.

Contudo, como ele declara aqui de forma sumária as coisas que sabia eram extremamente necessárias para os cristãos, que todos façam do seu esforço ter aproveitamento nestas duas coisas, tanto quanto desejem fazer progresso em direção à perfeição. E, sem sombra de dúvida, o amor de Deus não pode reinar em nós a menos que o amor fraternal também seja exercido. Aguardar a Cristo, por outro lado, nos ensina a exercitar o desprezo pelo mundo, a mortificação da carne, e a

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resignação da cruz. Ao mesmo tempo, a expressão poderia ser explicada no sentido de paciência de Cristo – aquela que a doutrina de Cristo produz em nós; mas prefiro entender isto em referência à esperança da redenção final. Pois esta é a única coisa que nos sustenta na batalha da vida presente, que aguardemos o Redentor; e, ademais, esta espera exige resignação paciente em meio aos exercícios contínuos da cruz.

Não Ter Comunhão com os Que Andam Desordenadamente - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.6-8

“6. Mandamo-vos, porém, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que anda desordenadamente, e não segundo a tradição que de nós recebeu.

7. Porque vós mesmos sabeis como convém imitar-nos, pois que não nos houvemos desordenadamente entre vós,

8. Nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós.”

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Agora Paulo passa à correção de um erro particular. Como havia algumas pessoas indolentes, e ao mesmo tempo curiosas e palradoras que, a fim de acumularem uma subsistência às custas de outros, andavam de casa em casa, ele proíbe que a indolência deles fosse encorajada pela indulgência, e ensina que vivem piamente aqueles que obtêm para si as coisas necessárias da vida através de trabalho útil e honroso. E, antes de tudo, ele aplica o apelativo de pessoas desordeiras, não àqueles que são de vida dissoluta, ou àqueles cujo caráter está manchado por crimes flagrantes, e sim a pessoas indolentes e indignas que não se empregam em nenhuma ocupação honrosa e útil. Pois isto na verdade é ataxia )desordem) – não considerar com que propósito fomos criados, e regular nossa vida com vistas a esse fim, ao passo que é somente quando vivemos de acordo com a regra prescrita a nós por Deus que esta vida está devidamente regulada. Seja esta ordem posta de lado, e não há nada além de confusão na vida humana. Isto, também, é digno de ser observado, para que ninguém tenha prazer em se exercitar sem um legítimo chamado da parte de Deus; pois Deus distinguiu de tal modo a vida dos homens, a fim de que cada um possa se dispor em proveito dos outros. Portanto, aquele que vive somente para si, assim não sendo útil de modo algum à raça humana, e mais ainda, sendo um fardo para outros, não prestando auxílio a ninguém, é, com bom fundamento que deve ser considerado ataktos (desordeiro). Por isso Paulo declara que tais pessoas devem ser separadas da sociedade dos crentes, para que não tragam desonra à Igreja.

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6. “Mandamo-vos, porém, em nome”. Erasmo traduz isto como: “pelo nome”, como se isto fosse uma súplica. Embora não rejeite totalmente esta tradução, ao mesmo tempo, sou mais da opinião de que a partícula em é redundante, assim como em muitas outras passagens; e isto de acordo com o idiomatismo hebraico. Assim, o significado seria que este mandamento deveria ser recebido com reverência, não como da parte de um homem mortal, e sim como da parte do próprio Cristo; e Crisóstomo explica-o assim. Este afastamento, seja de quem ele fale, relaciona-se não com a excomunhão pública, e sim com o relacionamento particular. Pois ele simplesmente proíbe que os crentes tenham qualquer relacionamento familiar com ociosos desta sorte, que não têm nenhum meio honroso de vida no qual possam se exercitar. Contudo, ele diz expressamente: de todo o irmão, porque, se confessam ser cristãos, eles são mais intoleráveis do que todos os outros, porquanto são, de certo modo, as manchas da religião.

“Não segundo a tradição”, a saber, a que o encontramos acrescentando pouco depois – que não se deveria dar alimento ao homem que se recusa a trabalhar. Antes de passar a isto, porém, ele declara que exemplo lhes dera em sua própria pessoa. Pois a doutrina adquire muito mais crédito e autoridade quando não impomos a outros outro fardo senão o que tomamos sobre nós mesmos. Ora, ele menciona que ele mesmo estivera ocupado trabalhando com suas próprias mãos de dia e de noite, para não sobrecarregar a ninguém com despesas. Ele também havia tratado um pouco desta questão na

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Epístola anterior – à qual meus leitores devem recorrer para uma explicação mais completa deste ponto.

Quanto ao seu dito de que não havia comido de graça o pão de homem algum, certamente ele não teria feito isto, ainda que não tivesse trabalhado com suas próprias mãos. Pois o que é devido no caminho da justiça não é algo gratuito, e a recompensa do trabalho que os mestres dispõem em favor da Igreja é bem maior do que o alimento que recebem dela. Mas Paulo tinha em vista aqui pessoas inconsideradas, pois nem todos têm tanta equidade e discernimento para considerar que remuneração é devida aos ministros da palavra. Mais ainda, tal é a mesquinhez de alguns que, embora não contribuam com nada de si mesmos, eles invejam a subsistência destes, como se fossem homens ociosos. Ele também declara logo em seguida que abrira mão de seus direitos, quando se absteve de tomar qualquer remuneração – sugerindo assim que deve ser muito menos suportado que aqueles que nada fazem vivam do que pertence a outros. Quando diz que sabem como devem imitar, ele não quer dizer apenas que o seu exemplo deveria ser considerado por eles como uma lei, mas o sentido é de que sabiam o que haviam visto nele que era digno de imitação, mais ainda, que a própria coisa de que está falando no momento fora apresentada diante deles para imitação.

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A Necessidade de Trabalhar - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.9,10

“9. Não porque não tivéssemos autoridade, mas para vos dar em nós mesmos exemplo, para nos imitardes.

10. Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também.”

9. “Não porque não tivéssemos”. Assim como Paulo queria estabelecer um exemplo através do seu trabalho, para que as pessoas ociosas, como parasitas, não comessem o pão de outros, do mesmo modo ele não desejava que isto prejudicasse os ministros da palavra, de modo que as igrejas os defraudassem da sua devida subsistência. Nisto podemos ver a sua singular moderação e humanidade, e quão distante ele estava da ambição daqueles que abusam de seus poderes, infringindo os direitos de seus irmãos. Havia o perigo de que os tessalonicenses, tendo recebido desde o princípio a pregação do evangelho pela boca de Paulo gratuitamente, estabelecessem isto como uma lei para o futuro quanto aos demais ministros; a disposição da humanidade sendo tão mesquinha. Portanto, Paulo previne este perigo, e ensina que ele tinha direito a mais do que havia feito uso, para que outros mantivessem sua liberdade intacta. Ele tinha a intenção de infligir, por este meio, conforme já notei antes, a maior desgraça àqueles que não fazem nada, pois é um argumento do maior para o menor.

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10. “Se alguém não quiser trabalhar”. Por estar escrito no Salmo 128.2, “Feliz serás, comendo do trabalho das tuas mãos”, e também em Pv 10:4, “A benção do Senhor está sobre as mãos do que trabalha”, é certo que a indolência e ociosidade são amaldiçoadas por Deus. Ademais, sabemos que o homem foi criado com vistas a que fizesse algo. Não apenas a Escritura nos testifica isto, mas a própria natureza ensinou-o aos pagãos. Por isso é razoável que aqueles que querem se isentar da lei comum sejam também privados de alimento – a recompensa do trabalho. Quando, porém, o Apóstolo mandou que tais pessoas não comessem, ele não quer dizer que dera mandamento a essas pessoas, mas proibira que os tessalonicenses encorajassem a indolência delas fornecendo-lhes comida.

Também se deve observar que existem diferentes formas de trabalho. Pois todo aquele que auxilia a sociedade dos homens através da sua atividade, quer governando sua família, ou administrando negócios públicos ou privados, ou aconselhando, ou ensinando, ou de qualquer outro modo, não deve ser contado entre os ociosos. Pois Paulo censura aqueles vadios preguiçosos que viviam do suor de outros, enquanto não contribuíam com nenhum serviço comum em auxílio à raça humana. Desta sorte são os nossos monges e sacerdotes que são em grande parte mimados, não fazendo nada, exceto cantando nos templos para frustrar o enfado. Isto sim é, como diz Plautus, “viver musicalmente”.

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Quem Não Trabalha se Entrega ao que é Vão - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.11

“Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas vãs.” (2 Tessalonicenses 3.11)

“Ouvimos que alguns entre vós”. É provável que esta espécie de vadios fossem, por assim dizer, a semente do ocioso monacato. Pois, desde o começo, havia alguns que, a pretexto de religião, ou exploravam as mesas dos outros, ou sugavam astuciosamente para si a subsistência dos simples. Eles também haviam chegado, no tempo de Agostinho, a prevalecer tanto, que ele fora constrangido a escrever um livro expressamente contra os monges ociosos, onde se queixa com toda a razão do seu orgulho, porque, desprezando a admoestação do Apóstolo, eles não apenas se escusavam por motivo de fraqueza, mas queriam parecer mais santos do que todos os outros pelo fato de estarem isentos de trabalhos. Ele censura, com toda a razão, esta indecência, de que, enquanto os senadores são laboriosos, o operário, ou pessoa de vida humilde, não vive apenas em ociosidade, mas ficaria contente em que sua indolência se passasse por santidade. Tais são suas ideias. Ao mesmo tempo, porém, o mal tem crescido a tal ponto que os ventres ociosos ocupam praticamente a décima parte do mundo, tendo por única religião estar bem cheios, e isentos de todo o incômodo do trabalho. E este modo de vida eles dignificam, às vezes com o nome de Ordem, outras com o de Regra, deste ou daquele personagem.

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Mas, por outro lado, o que o Espírito diz pela boca de Paulo? Ele os declara a todos como sendo irregulares e desordeiros, seja por que nome distintivo possam ser dignificados. Não é necessário relatar aqui o quanto a vida ociosa dos monges tem invariavelmente desagrado às pessoas de um juízo mais são. É um dito memorável de um monge antigo, que é registrado por Sócrates no Livro Oitavo da História Tríplice – de que aquele que não trabalha com suas mãos é semelhante a um saqueador. Não cito outros casos, nem é necessário. Que nos baste esta declaração do Apóstolo, em que ele afirma que eles são dissolutos, e de certo modo ilegais.

“Não trabalhando”. Nos particípios gregos há um elegante (prosonomasia) jogo de palavras, que tentei imitar de algum modo, traduzindo-o no sentido de que eles nada fazem, mas têm bastante que fazer no sentido da curiosidade. Contudo, ele censura uma falta de que as pessoas ociosas são, na sua maioria, culpáveis, que, alvoroçando-se inoportunamente, elas causam aborrecimentos a si mesmas e a outros. Pois sabemos que aqueles que nada têm a fazer ficam muito mais fatigados não fazendo nada, do que se estivessem ocupados em alguma obra muito importante; eles correm de lá para cá; por onde vão têm a aparência de grande fadiga; reúnem todos os tipos de informações, e as põem em circulação de maneira confusa. Poderíeis dizer que eles trazem o peso de um reino em seus ombros. Poderia haver exemplo mais notável disto do que nos monges? Pois que classe de homens tem menos repouso? Onde a curiosidade reina mais extensamente?

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Ora, como esta doença possui um efeito destrutivo para o povo, Paulo admoesta que isto não deveria ser encorajado pela ociosidade.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Convém ter sempre em mente que Calvino estava se referindo mormente às condições prevalecentes na religião em seus dias.)

Não Viver às Custas de Terceiros - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.12

“A esses tais, porém, mandamos, e exortamos por nosso Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o seu próprio pão.” (2 Tessalonicenses 3.12)

“A esses tais, porém, mandamos”. Paulo corrige os dois erros aos quais havia feito menção – uma inquietação tempestuosa, e o afastamento da ocupação útil. Portanto, ele os exorta, antes de tudo, a cultivarem a tranquilidade – ou seja, a se manterem tranquilamente dentro dos limites do seu chamado; ou, como normalmente dizemos, “sans faire bruit” (sem fazer barulho). Pois esta é a verdade: são os mais pacíficos de todos aqueles que se exercitam em ocupações legítimas; enquanto aqueles que nada têm a fazer causam aborrecimentos a si mesmos e a outros. Ademais, ele acrescenta outro preceito – que eles deveriam trabalhar, ou seja, que deveriam estar atentos ao seu chamado, e devotarem-se a ocupações honrosas e legítimas, sem o

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que a vida do homem é de natureza errante. Por onde, também, segue-se esta terceira injunção – que eles deveriam comer o seu próprio pão; querendo dizer com isto que eles deveriam estar satisfeitos com o que lhes pertence, para que não fossem opressivos ou desmedidos com outros. “Bebe a água”, diz Salomão, “da tua cisterna, e que as correntes fluam para os vizinhos” (Pv 5:15). Esta é a primeira lei da equidade – que ninguém faça uso do que pertence a outro, mas use apenas o que pode propriamente chamar de seu. A segunda é que ninguém trague, como um abismo, o que pertence a si, mas que seja beneficente para os seus vizinhos, e que possa aliviar a indigência deles através da sua abundância. Do mesmo modo, o Apóstolo exorta aqueles que anteriormente haviam sido ociosos a trabalharem, não apenas para que possam ter para si um meio de vida, mas para que também possam ser úteis às necessidades dos seus irmãos – assim como também ensina em outro lugar (Ef 4:28).

Ser Incansável em Fazer o Bem - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.13

“E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem.” (2 Tessalonicenses 3.13)

“E vós, irmãos”. Ambrósio é de opinião que isto é acrescentado para que os ricos, com um espírito mesquinho, não se recusassem a prestar ajuda aos

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pobres; porque ele os havia exortado a que cada um comesse o seu próprio pão. E, sem sombra de dúvida, sabemos como quantos são indecorosamente engenhosos em esforçar-se por apanhar um pretexto para a desumanidade. Crisóstomo explica isto assim – que as pessoas indolentes, por mais justamente que possam ser condenadas, não obstante devem ser assistidas quando em necessidade. Sou simplesmente da opinião de que Paulo tinha em vista prevenir algum pretexto de escândalo, que poderia surgir pela indolência de alguns. Pois geralmente ocorre que aqueles que, de outro modo, estão particularmente prontos e precavidos para a beneficência, tornam-se frios ao ver que desperdiçaram seus favores orientando-os erroneamente. Por isso Paulo nos admoesta a que, embora possa haver muitos que sejam imerecedores, ao passo que outros abusam da nossa liberalidade, não devemos por esta causa deixar de ajudar àqueles que precisam da nossa assistência. Aqui temos uma declaração digna de ser observada – que, por mais que a ingratidão, a melancolia, o orgulho, a arrogância, e outras disposições inconvenientes por parte dos pobres, possam ter a tendência de nos aborrecer, ou de nos desanimar, por um sentimento de fadiga, devemos nos esforçar, não obstante, para nunca deixarmos de visar em fazer o bem.

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Não Aprovar o Mau Comportamento Com Vistas ao Arrependimento - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.14

“Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com ele, para que se envergonhe.” (2 Tessalonicenses 3.14)

“Se alguém não obedecer”. Ele já dissera antes que não manda nada senão da parte do Senhor. Por isso, o homem que não quisesse obedecer, não seria contumaz contra um mero homem, mas seria rebelde contra o próprio Deus; e, portanto, ele ensina que tais pessoas devem ser severamente punidas. E, antes de tudo, deseja que elas lhe sejam notificadas, para que as repreenda pela sua autoridade; e, em segundo lugar, ordena que sejam excluídas da comunhão da Igreja, para que, sendo tocadas de vergonha, possam se arrepender. A partir disto inferimos que não devemos poupar a reputação daqueles que não podem ser detidos de outro modo senão por ter os seus erros expostos; mas devemos ter o cuidado de tornar conhecidas as suas enfermidades ao médico, para que ele possa curá-las pelo seu trabalho.

“Não vos mistureis”. Não tenho dúvida de que ele se refere à excomunhão; pois, além do fato de que a desordem (ataxia) a que havia se referido merecia um castigo severo, a contumácia é um vício intolerável. Ele havia dito antes: Apartai-vos deles, pois vivem de modo desordeiro (2 Ts 3.6). E agora diz: Não vos mistureis, pois

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rejeitam a minha admoestação. Portanto, ele expressa algo mais por esta segunda forma de expressão do que pela primeira; pois uma coisa é afastar-se da familiaridade íntima com um indivíduo, e outra bem diferente manter-se completamente longe da associação com ele. Em suma, aqueles que não obedecem, após serem admoestados, ele exclui da sociedade comum dos crentes. Através disto somos ensinados que devemos empregar a disciplina da excomunhão contra todas as pessoas obstinadas que, de outro modo, não aceitariam ser trazidas à sujeição; e devem ser estigmatizadas com desgraça, até que, tendo sido dominadas e subjugadas, elas aprendam a obedecer.

“Para que se envergonhe”. Há, é verdade outras finalidades às quais a excomunhão é útil – para que o contágio não se espalhe mais, para que a impiedade pessoal de um indivíduo não sirva à desgraça comum da Igreja, e para que o exemplo de severidade leve os outros ao temor (1 Tim 5.20); mas Paulo trata apenas desta – para que aqueles que pecaram possam ser constrangidos ao arrependimento através da vergonha. Pois aqueles que se deleitam em seus vícios tornam-se cada vez mais obstinados; assim o pecado é alimentado pela indulgência e dissimulação. Portanto, este é o melhor remédio – quando um sentimento de vergonha é despertado na mente do ofensor, de modo que começa a ficar descontente consigo mesmo. De fato, pequeno seria o lucro em fazer os indivíduos se envergonharem; mas Paulo tinha em vista um progresso adicional – quando o ofensor, confundido pela descoberta da sua própria

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infâmia, é assim levado a uma plena correção; pois a vergonha, assim como a tristeza, é uma preparação útil para o aborrecimento do pecado. Por isso, todos os que se tornam devassos devem, conforme eu disse, ser refreados por esta rédea, para que sua audácia não aumente em consequência da sua impunidade.

Repreender como amigo e Irmão - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.15

“Todavia não o tenhais como inimigo, mas admoestai-o como irmão.”

“Não o tenhais como inimigo”. Imediatamente Paulo acrescenta um abrandamento ao seu rigor; pois, como ordena em outro lugar, devemos ter o cuidado de que o ofensor não seja devorado pela tristeza (2 Co 2.7) – o que aconteceria se a severidade fosse excessiva. Por isso vemos que o uso da disciplina deveria ser de tal modo que contribuísse para o bem-estar daqueles em quem a Igreja inflige castigo. Ora, a severidade apenas machucará, quando for além dos devidos limites. Por isso, se queremos beneficiar, são necessárias a bondade e brandura, para que aqueles que são repreendidos saibam que, não obstante, são amados. Em suma, a excomunhão não serve para afastar os homens do rebanho do Senhor, e sim antes para trazê-los de volta quando estão errantes e extraviados.

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Contudo, devemos observar por meio de que sinal ele queria que o amor fraternal fosse demonstrado – não através de engodos ou bajulação, e sim por meio de admoestações; pois assim acontecerá que todos aqueles que não forem incuráveis sentirão que há uma preocupação pelo seu bem-estar. Ao mesmo tempo, a excomunhão é distinguida do anátema; pois, quanto àqueles que a Igreja assinala pela severidade da sua censura, Paulo admoesta que não deveriam ser definitivamente lançados fora, como se estivessem privados de toda a esperança de salvação; mas devem ser envidados esforços para que sejam trazidos de volta a uma mente sã.

Paz em Todas as Circunstâncias - Comentário de 2 Tessalonicenses 3.16-18

“16. Ora, o mesmo Senhor da paz vos dê sempre paz de toda a maneira. O Senhor seja com todos vós.

17. Saudação da minha própria mão, de mim, Paulo, que é o sinal em todas as epístolas; assim escrevo.

18. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém.”

16. “Ora, o Senhor da paz”. Esta oração parece estar relacionada com a sentença anterior, com vistas a recomendar os esforços pela concórdia e mansidão.

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Paulo lhes havia proibido tratarem até mesmo os contumazes como inimigos; mas, antes, com vistas a que fossem trazidos de volta a uma mente sã através de admoestações fraternais. Ele poderia apropriadamente, depois disto, acrescentar uma injunção quanto ao cultivo da paz; mas, como na verdade esta é uma obra divina, ele passa à oração, o que, não obstante, também tem a força de um preceito. Ao mesmo tempo, também, ele pode ter outra coisa em vista – que Deus possa refrear as pessoas desregradas, para que não perturbem a paz da Igreja.

17. “Saudação da minha própria mão”. Aqui ele previne novamente o perigo ao qual havia anteriormente feito menção – que epístolas falsamente atribuídas a ele viessem a abrir caminho nas igrejas. Pois este era um artifício antigo de Satanás – apresentar escritos espúrios, a fim de que pudesse depreciar o crédito dos que são genuínos; e ainda, sob pretensas designações de apóstolos, disseminar erros perversos com vistas a corromper a sã doutrina. Através de uma bondade singular da parte de Deus, aconteceu que, sendo baldadas as suas fraudes, a doutrina de Cristo chegou até nós sã e íntegra através do ministério de Paulo e de outros. A oração conclusiva explica de que modo Deus ajuda seu povo fiel – através da presença da graça de Cristo.

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Uma Igreja Não Fundada e Conhecida por Paulo - Comentário de Colossenses 1.1-3

“1 Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo,

2 aos santos e fiéis irmãos em Cristo que se encontram em Colossos, graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai.

3 Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quando oramos por vós,”

“Paulo, apóstolo”. Já expliquei, em repetidas ocasiões, o propósito de tais dedicatórias. Como, contudo, os colossenses nunca tinham lhe visto, e por essa causa sua autoridade não estava ainda tão firmemente estabelecida entre eles a ponto de fazer seu nome por si mesmo suficiente, ele afirma que é um apóstolo de Cristo separado pela vontade de Deus. Disso seguia-se que ele não agia imprudentemente ao escrever a pessoas que não o conheciam, considerando que estava desempenhando a função de embaixador que Deus tinha lhe confiado. Pois ele não estava ligado a uma Igreja meramente, mas seu apostolado se estendia a todas. O termo santos que aplica a eles é muito honroso, mas ao chamá-los de irmãos fiéis, ele os encoraja ainda mais a ouvi-lo desejosamente. Quanto às outras coisas, explicações podem ser encontradas nas Epístolas precedentes.

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3. “Damos graças a Deus”. Ele louva a fé e o amor dos colossenses, para que isso possa encorajá-los à maior diligência e constância da perseverança. E mais, ao demonstrar que tem uma persuasão desse tipo com respeito a eles, ele procura a consideração amigável deles, para que possam ser mais favoravelmente inclinados e ensináveis para receber a sua doutrina. Devemos sempre observar que ele faz uso de ação de graças no lugar de congratulação, pelo que nos ensina, que em todas as nossas alegrias devemos prontamente chamar à lembrança a bondade de Deus, visto que tudo o que é agradável e prazeroso para nós, é uma benignidade conferida por ele. Além disso, ele nos admoesta, por seu exemplo, a reconhecer com gratidão não meramente aquelas coisas que o Senhor nos confere, mas também as que ele confere aos outros.

Mas por quais coisas ele dá graças ao Senhor? Pela fé e amor dos colossenses. Ele reconhece, portanto, que ambas são conferidas por Deus: de outra forma a gratidão seria fingida. E o que temos que não seja por meio de sua liberalidade? Se, contudo, mesmo os menores favores chegam até nós dessa fonte, quanto mais esse mesmo reconhecimento deve ser feito com referência a esses dois dons, nos quais consiste a soma inteira da nossa excelência?

“Ao Deus e Pai”. Entenda a expressão assim – A Deus, que é o Pai de Cristo. Pois não é lícito para nós reconhecer qualquer outro Deus, que não aquele que se manifestou a nós em seu Filho. E essa é a única chave para abrir a

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porta para nós, se estivermos desejosos de ter acesso ao Deus verdadeiro. Por esse motivo, também, ele é um Pai para nós, pois nos aceitou em seu Filho unigênito, e nele também apresenta seu favor paternal para a nossa contemplação.

“Sempre por vós”. Alguns explicam isso assim – Nós damos graças a Deus sempre por vós, isto é, continuamente. Outros explicam que significa – Orando sempre por vós. A frase pode ser interpretada dessa forma também: “Sempre que oramos por vós, ao mesmo tempo damos graças a Deus”; e esse é o significado simples: “Damos graças a Deus, e ao mesmo tempo oramos”. Com isso ele indica que a condição dos crentes nunca é perfeita neste mundo, de forma a não ter, invariavelmente, algo em falta. Pois mesmo o homem que começou admiravelmente bem, pode ficar aquém em centenas de ocasiões todo o dia; e devemos estar sempre fazendo progresso, enquanto ainda estamos no caminho. Tenhamos, portanto, em mente que devemos nos regozijar nos favores que já recebemos, e dar graças a Deus por eles de tal maneira, que ao mesmo tempo buscamos dele perseverança e progresso.

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Saudação Inicial de Paulo aos Efésios - Comentário de Efésios 1.1,2

“Efs 1:1 Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus, aos santos que vivem em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus,

Efs 1:2 graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.”

“Paulo, apóstolo”. Uma vez que a mesma forma de saudação, ou, ao menos, com bem pouca diferença, é usada em todas as epístolas, seria supérfluo repetir aqui o que já ficou expresso em outras partes. Ele se intitula apóstolo de Jesus Cristo; pois a todos quantos foi concedido o ministério da reconciliação, sua função é a de embaixador de Cristo. A palavra “apóstolo” é, deveras, mais especializada; pois não é todo ministro do evangelho (como veremos mais adiante, em 4:11) que de fato é apóstolo. Este tema, porém, eu já o abordei mais amplamente em Gálatas.

O apóstolo adiciona: “pela vontade de Deus”. Porquanto nenhum homem deve tomar essa honra para si próprio, mas deve esperar pela vocação divina, pois Deus é o único que pode legitimar os ministros. Ele assim confronta os escárnios dos homens ímpios com a autoridade de Deus, e remove toda e qualquer ocasião de disputa irrefletida.

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Ele os denomina santos, a quem em seguida chama de fiéis em Cristo. Portanto, nenhuma pessoa crente deixa de ser igualmente santa; em contrapartida, nenhuma pessoa santa deixa de ser igualmente crente. A maioria das cópias gregas omite o termo todos; fiquei, todavia, relutante em eliminá-lo, visto que, ao menos, ele deve ser compreendido.

Abençoados com Toda Sorte de Bênçãos Espirituais - Comentário de Efésios 1.3

“Efs 1:3 Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo,”

“Bendito seja Deus”. O apóstolo enaltece sublimemente a graça de Deus para com os efésios, buscando incitar seus corações à gratidão com o fim de deixá-los todos inflamados, e assim invadi-los e enchê-los com essa ideia. Aqueles que reconhecem em si mesmos uma efusão tal da bondade de Deus, tão plena e absolutamente perfeita, e que se exercitam nela com fervorosa meditação, jamais abraçarão novas doutrinas, as quais obscurecem a própria graça que sentem tão poderosamente em seu interior. O propósito do apóstolo, portanto, ao afirmar a imensurabilidade da graça divina para com os efésios, era prepará-los a fim de que não permitissem que sua fé fosse abalada pelos falsos apóstolos, como se seu chamamento fosse algo duvidoso, ou como se sua

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salvação devesse ser vista por outro prisma. Ele lhes assegura, ao mesmo tempo, que a plena certeza da salvação consiste no fato de que, através do evangelho, Deus revela, em Cristo, seu amor para conosco. A fim de confirmar, porém, a questão mais plenamente, ele chama sua atenção para a causa primeira, para a fonte, ou seja, a eterna eleição divina, por meio da qual, antes que houvéssemos nascido, fomos adotados como filhos. E isso para que soubessem eles [e nós!] que já estavam salvos, não por meio de qualquer ocorrência fortuita ou prevista, mas por meio do eterno e imutável decreto de Deus.

O verbo abençoar é aqui usado em mais de um sentido, tanto em se referindo a Deus como em se referindo aos homens. Encontro na Escritura uma quádrupla significação para ele. Bendizemos a Deus quando O louvamos, declarando Sua bondade. Diz-se, porém, que Deus nos abençoa, quando Ele torna nossas atividades bem sucedidas, e em Sua benevolência nos concede felicidade e prosperidade; e a razão é que somos abençoados unicamente em Seu beneplácito. Notemos como ele expressa o grande poder que habita em toda a Palavra de Deus para a Igreja e para cada crente individualmente. Os homens abençoam uns aos outros através da oração. A bênção sacerdotal é mais do que uma oração, visto ser ela um testemunho e garantia da bênção divina; porquanto os sacerdotes receberam a incumbência de abençoar no Nome do Senhor. Portanto, Paulo, aqui, bendiz a Deus com uma confissão de louvor,

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porque Deus nos abençoou, ou seja, nos enriqueceu com toda sorte de bênção ou graça.

Não faço objeção alguma contra a observação de Crisóstomo, quando ele diz que a palavra “espirituais” traça um contraste implícito entre a bênção de Moisés e a de Cristo. A lei continha suas bênçãos, mas é só em Cristo que a perfeição é encontrada, porquanto é Ele a perfeita revelação do reino de Deus, que nos conduz diretamente ao céu. Quando a própria substância é revelada, as figuras não são mais necessárias.

Quando ele diz celestiais, pouco importa se antepomos “lugares” ou “benefícios”. Ele simplesmente desejava expressar a superioridade daquela graça que nos é concedida através de Cristo; que sua felicidade não está neste mundo, e, sim, no céu e na vida eterna. A religião cristã, sem dúvida, como ensinamos alhures [1 Timóteo 4:8], contém promessas não só referentes à vida futura, mas também com referência à vida presente; seu alvo, porém, é a felicidade espiritual, quanto mais sendo o reino de Cristo espiritual. O apóstolo contrasta Cristo com todos os símbolos judaicos, nos quais está contida a bênção sob o regime da lei. Porque, onde Cristo se faz presente, todas aquelas coisas se fazem supérfluas.

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Paulo, Constituído Apóstolo pelo Mandato de Deus - Comentário de 1 Timóteo 1.1 "Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, pelo mandato de Deus, nosso Salvador, e de Cristo Jesus, nossa esperança,” (1 Timóteo 1.1)

“Paulo, apóstolo”. Se porventura tivesse ele escrito tão-somente a Timóteo, não haveria necessidade alguma de anunciar seus títulos e reafirmar suas reivindicações ao apostolado, como o faz aqui, pois certamente Timóteo ficaria suficientemente satisfeito com o mero nome. Ele sabia que Paulo era apóstolo de Cristo, e não havia necessidade de comprovação alguma para convencê-lo, pois ele estava perfeitamente disposto a reconhecê-lo, e há muito que nutria tal sentimento. Portanto Paulo está aqui visando a outros que não estavam tão dispostos a dar-lhe ouvidos ou tão prontos a aceitar o que ele dizia. É por causa desses “outros” que ele declara seu apostolado, a fim de não pudessem tratar com leviandade o que ele escreve, ele afirma que ele é "um apóstolo de Cristo."

De acordo com a nomeação de Deus, nosso Salvador, e do Senhor Jesus Cristo, Ele confirma o seu apostolado com a nomeação ou comando de Deus; porque ninguém pode fazer-se um apóstolo, senão aquele que Deus tem nomeado como sendo um verdadeiro apóstolo, e digno de honra. Nem ele apenas diz que ele deve seu apostolado a Deus Pai, mas o atribui a Cristo também; e,

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de fato, no governo da Igreja, o Pai não faz nada, senão através do Filho, e, portanto, eles atuam em em conjunto.

Ele denomina a Deus de o Salvador, título este mais comumente destinado ao Filho. E no entanto é um título perfeitamente apropriado ao próprio Pai, pois foi ele quem nos deu seu Filho, de modo que é justo destinar-lhe a glória de nossa salvação. Pois somos salvos unicamente porque o Pai nos amou de tal maneira, que foi de sua vontade redimir-nos e salvar-nos através do Filho. A Cristo ele denomina de esperança nossa, título este que pertence especificamente a ele, pois é somente quando olhamos para ele que começamos a desfrutar de boa esperança, porquanto é tão somente nele que se encontra toda a nossa salvação.

Saudação Inicial de Paulo a Timóteo - Comentário de 1 Timóteo 1.2

“a Timóteo, verdadeiro filho na fé, graça, misericórdia e paz, da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor. (1 Timóteo 1.2)

“A Timóteo, meu verdadeiro filho”. Esta qualificação comunica grande honra a Timóteo, pois Paulo o reconhece como seu filho legítimo, não menos digno que seu pai, e deseja que outros o reconheçam como tal. De fato, ele enaltece a Timóteo como se ele fosse outro

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Paulo. Todavia, como seria isso consistente com o mandamento de Cristo: “A ninguém sobre a terra chameis vosso pai” [Mateus 23:9], e com a própria afirmação do apóstolo: “Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muito pais”; “não haveríeis de estar em muito maior submissão ao Pai dos espíritos” (1 Coríntios 4:15; Hebreus 12:9)? Minha resposta é que a alegação de Paulo de ser pai de forma alguma anula ou diminui a honra devida a Deus. Diz-se com frequência que, se uma coisa é subordinada a outra, não haverá conflito entre elas. Isso procede no tocante à reivindicação de Paulo ao título pai em relação a Deus. Deus é o único Pai de todos no âmbito da fé, porquanto regenera a todos os crentes pela instrumentalidade de sua Palavra e pelo poder de seu Espírito, e é exclusivamente ele que confere a fé. Aqueles a quem graciosamente lhe apraz empregar como seus ministros, ao fazer isso ele admite que participem de sua honra, todavia sem resignar nada de si próprio. Assim, Deus, e somente Deus, era, estritamente falando, o Pai espiritual de Timóteo; mas Paulo, que foi o ministro de Deus no novo nascimento de Timóteo, reivindica para si direito a este título, porém em segundo plano.

“Graça, misericórdia e paz”. Ao introduzir aqui a palavra misericórdia em segundo plano, ele se afasta de seu método usual, provavelmente em função de seu amor especial por Timóteo. Ele, porém, não está observando a ordem exata das palavras, porque ele coloca primeiro o que deveria ser colocado por último, designando a graça que emana da misericórdia. É em razão de ser

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misericordioso que Deus primeiro nos recebe em sua graça, e então prossegue nos amando. Mas é perfeitamente normal mencionar a causa e em seguida o efeito, à guisa de explicação. Já discorri sobre a graça e a paz em outras ocasiões.

Não Deve Ser Ensinada Doutrina Diferente da de Cristo e dos Apóstolos à Igreja - Comentário de 1 Timóteo 1.3

“Quando eu estava de viagem, rumo da Macedônia, te roguei permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas, a fim de que não ensinem outra doutrina,” (1 Timóteo 1.3)

“Como te exortei”. Ou a afirmação é deixada incompleta, ou a partícula grega iná (para que) é redundante; e em ambos os casos o significado será óbvio. Primeiramente, ele lembra a Timóteo por que lhe pedira que ficasse em Éfeso. Foi com grande relutância, e por causa de uma dura necessidade, que Paulo se separou de um companheiro tão amado e fiel como Timóteo, para que pudesse llaboriosamente cumprir os deveres que demandavam a responsabilidade que nenhum outro homem poderia ter sido competente para cumprir; e, portanto Timóteo deve ter sido poderosamente incentivado por esta consideração, não sometne a não somente desperdiçar seu tempo, como também a se conduzir de uma maneira excelente e distinta.

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“Para admoestares a certas pessoas”. Daqui se infere que Paulo exortou Timóteo a se opor aos falsos mestres que estavam adulterando a pureza da doutrina. Neste apelo dado a Timóteo para cumprir seu dever em Éfeso, devemos observar a santa ansiedade do apóstolo; porque, enquanto se esforçava por estabelecer muitas novas igrejas, ele não deixava as anteriores destituídas de um pastor. Indubitavelmente, como diz o escritor antigo, “Para guardar o que já tem sido ganho é necessária não uma menor virtude do que a que fez a nova aquisição.” A palavra admoestar (ordenar) denota autoridade, pois era o propósito de Paulo revestir a Timóteo com autoridade para que pudesse refrear a outros.

“A não ensinarem uma doutrina diferente”. O termo grego, (heterodidaskalein), que Paulo utiliza, é composto, e embora possa ser traduzido num sentido ou de “ensinar de modo diferente”, ou seguindo um um novo método, ou “ensinar uma doutrina diferente”. A tradução de Erasmo, “seguir”, não me satisfaz, porque isto pode ser entendido ocmo aplicar-se aos ouvintes. Agora, Paulo se refere àqueles que, por causa de ambição, ensinavam uma nova dou trina.

Se lermos: “ensinar de uma forma diferente”, o significado será mais amplo, porque por esta expressão ele estaria proibindo Timóteo de permitir a introdução de novos métodos de ensino que não concordassem com a verdadeira e pura doutrina que ele tinha ensinado. Assim, na segunda epístola, ele recomenda hupotuposis,

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isto é, um padrão vivo de sua doutrina. Porque, como a verdade de Deus é única, assim há senão um só método de ensiná-la, o qual é livre de falsos ornamentos e que compartilha mais a majestade do Espírito do que as demonstrações de eloquência humana. Se alguém se aparta disso, ele desfigura e corrompe a própria doutrina; e assim, “ensinar de maneira diferente”, aponta para a forma.

Se lermos: “ensinar algo diferente”, isto se relacionará à substância do ensino. Ainda é digno de nota que, ele dá o nome d eoutra doutrina, não só ao que está abertamente em desacordo com a pura doutrina do evangelho, mas também tudo o que, ou corrompe a pureza do evangelho por meio de invenções novas, ou que o obscurece por meio de especulações irreverentes. Porque todas as manipulações humanas são muito corruptoras do evangelho, e aqueles que fazem mau uso das Escrituras, como costumam fazer as pessoas ímpias, fazendo do Cristianismo um ato de exibição, obscurecem o evangelho. Sua maneira de ensinar portanto, é completamente oposta à Palavra de Deus e àquela pureza de doutrina que Paulo ordena aos efésios a permanecerem firmes nela.

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Focando o Que é Essencial na Doutrina para o Ensino dos Crentes - Comentário de 1 Timóteo 1.4

“nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que, antes, promovem discussões do que o serviço de Deus, na fé." (1 Timóteo 1.4)

“Nem se ocupem com fábulas”. Em minha opinião, o apóstolo quer dizer, por fábulas, não tanto as falsidades artificiais, senão aquelas coisas sem importância ou tolas que não têm em si nada de sólido; porque é possível que algo que não seja falso possa ainda ser fabuloso. É nesse sentido que Suetônio falou de “história fabulosa”, e Livy usa o verbo fabular, “inventar fábulas”, como denotando falta de uso ou palavrório tolo. E, não há dúvida de que a palavra muthos (que Paulo usa aqui), é equivalente à palavra phluaria, isto é, “bagatelas”. Ainda mais, por se referir a uma classe para servir de exemplo, e quando ele menciona um tipo de fábula como exemplo do que tem em mente, toda dúvida se esvai. Ele inclui entre fábulas as controvérsias sobre genealogias, não porque tudo o que se pode dizer sobre elas seja fictício, mas porque isto é sem utilidade e perda de tempo.

Esta passagem, portanto, pode ser assim explicada: “Que eles não se deem a fábulas daquele caráter e descrição ao qual as genealogias pertencem” E realmente é isso precisamente o que Suetônio quis dizer por história fabulosa, a qual, mesmo entre os homens das letras, tem sido com justa razão criticada pelas pessoas de bom senso; porque era impossível não considerar como

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ridícula essa curiosidade que, negligenciando o conhecimento útil, gastou toda a vida examinando a genealogia de Aquiles e Ajax, e despendeu suas energias em reconhecer os filhos de Príamo. Se tal coisa é intolerável no aprendizado em salas de aulas, onde há espaço para agradável passatempo, quanto mais intolerável será a mesma para o nosso conhecimento de Deus. Ele fala de genealogias intermináveis, porque a fútil curiosidade não tem limites, mas continuamente passa de um labirinto a outro.

“Que mais produzem questionamentos”. Ele julga a doutrina por seu fruto; porque cada coisa que não edifica deve ser rejeitada, ainda que não tenha nenhum outro defeito; e tudo o que só serve para suscitar controvérsia deve ser duplamente condenado. Tais são as questões sutis nas quais os homens ambiciosos praticam suas habilidades. É mister que nos lembremos de que todas as doutrinas devem ser comprovadas mediante esta regra: aquelas que contribuem para a edificação devem ser aprovadas, mas aquelas que ocasionam motivos para controvérsias infrutíferas devem ser rejeitadas como indignas da Igreja de Deus.

Se este teste tivesse sido aplicado durante muitos séculos, então, ainda que a religião viesse a se corromper por muitos erros, ao menos a arte diabólica das controvérsias ferinas, a qual recebeu a aprovação da teologia escolástica, não haveria prevalecido em grau tão elevado. Pois tal teologia outra coisa não é senão contendas e vãs especulações sem qualquer conteúdo de

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real valor. Por mais versado que um homem seja nela; mais miserável o devemos considerar. Estou cônscio dos argumentos plausíveis com que isto é defendido, mas jamais descobrirão que Paulo haja falado em vão ao condenar aqui tudo quanto é da mesma natureza.

“Promovem discussões do que o serviço de Deus”. Sutilezas desse gênero edificam os homens na soberba e na vaidade, mas não em Deus. Paulo chama isto “a edificação de Deus”, ou porque Deus o aprova, ou porque isto é concorde com a natureza de Deus.

“Que consiste na fé”. Em seguida Paulo mostra que esta edificação consiste em fé; a por este termo ele não exclui o amor ao nosso próximo, ou o temor a Deus, ou o arrependimento, porque o que são todos estes senão frutos da “fé” que sempre produz o temor de Deus? Sabendo tudo aquilo em que a adoração a Deus é fundada somente na fé, ele reconhece portanto isto como sendo suficiente para mencionar “fé” da qual tudo o mais depende.

O Logos Divino - Comentário de João 1.1

“No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus.” (João 1.1)

“No princípio era o Logos”. Nesta introdução João afirma a eterna divindade de Cristo, de maneira a nos informar que ele é o Deus eterno, que foi manifestado na carne (1

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Timóteo 3:16). O propósito é o de mostrar que isto foi necessário para que a restauração da humanidade pudesse ser realizada pelo Filho de Deus, uma vez que com o seu poder todas as coisas foram criadas, e que somente ele sopra em todas as criaturas vida e energia, de forma que elas permanecem no seu estado; e no próprio homem ele tem dado uma notável exibição tanto de seu poder quanto da sua graça, e mesmo posteriormente à queda do homem não deixou de mostrar libertação e bondade para com a sua posteridade. E esta doutrina é altamente necessária de ser conhecida; porque desde que fora de Deus não devemos procurar a vida e a salvação, como poderia a nossa fé descansar em Cristo, se não soubéssemos com certeza o que é ensinado aqui? Com estas palavras, portanto, o evangelista nos assegura que não somos afastados do único e eterno Deus, quando cremos em Cristo, e da mesma forma que a vida agora é restaurada para os mortos pela bondade daquele que foi a fonte e a causa da vida, quando a natureza do homem era ainda incorrupta.

Como o evangelista chama o Filho de Deus, o Logos, a simples razão parece-me ser, em primeiro lugar, porque ele é a Sabedoria eterna e a Vontade de Deus; e, em segundo lugar, porque ele é a imagem viva de Seu propósito; pois, assim como da faculdade da fala pode ser dito ser entre os homens a imagem da mente, por isso não é inapropriado aplicar isso a Deus, e dizer que Ele se revela a nós pelo seu Logos. As outras significações da palavra grega logos não se aplicam tão bem. Ela significa,

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sem dúvida, definição, razão e cálculo; mas estou indisposto a atender ao hermetismo da filosofia além da medida da minha fé. E nós percebemos que o Espírito de Deus está muito longe de aprovar tais sutilezas que, balbuciando conosco, por seu próprio silêncio, ele clama em voz alta com que sobriedade devemos lidar com esses mistérios sublimes.

Agora, como Deus, ao criar o mundo, revelou-se por esse Logos, por isso, ele anteriormente estava escondido com ele mesmo, de modo que há uma dupla relação; a primeira para com Deus, e a última para com os homens. Serveto, um arrogante pertencente à nação espanhola, inventa a declaração, que este eterno Logos começou a existir naquele momento, quando ele foi exibido na criação do mundo, como se ele não existisse antes de seu poder ter sido dado a conhecer pela operação externa. Muito diferente é o que o Evangelista ensina nesta passagem; pois ele não atribui ao Logos um início de tempo, mas diz que ele era desde o princípio, e, assim, ultrapassa todas as eras. Uma objeção a isto foi levantada anteriormente pelos arianos, ou seja, que no princípio Deus criou o céu e a terra (Gênesis 1.1), que, no entanto, não era o Logos eterno, porque a palavra refere-se a início e a ordem, em vez de denotar a eternidade. Mas o evangelista responde a essa calúnia, quando diz: “E o Logos estava com Deus.” Se o Logos começou a existir em algum momento, eles devem descobrir alguma sucessão de tempo em Deus; e, sem dúvida, por esta cláusula João visa a distingui-lo de todas as coisas criadas. Porque muitas perguntas poderiam surgir, onde estava esse

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Logos? Como é que ele exerce seu poder? Qual era a sua natureza? Como é que ele pode ser conhecido? O evangelista, portanto, declara que não devemos limitar nossa visão ao mundo e às coisas criadas; pois ele esteve sempre unido a Deus, antes que o mundo existisse. Agora, quando os homens datam o início da origem do céu e da terra, eles não reduzem Cristo à ordem comum do mundo, da qual ele é excluído em termos expressivos por esta passagem? Por este procedimento eles apresentam um insulto flagrante não só para o Filho de Deus, mas, para seu eterno Pai, que eles privaram de sua sabedoria. Se não temos a liberdade de conceber Deus sem a sua sabedoria, isto deve ser reconhecido, que não devemos procurar a origem do Logos em algum lugar a não ser na Sabedoria Eterna de Deus.

Serveto objeta que o Logos não pode ser admitido como tendo existido antes de Moisés ter falado de Deus como um orador. Como se ele não subsistisse em Deus, porque ele não foi feito publicamente conhecido, ou seja, como se ele não existisse, até que começou a aparecer externamente. Mas cada pretexto para fantasias escandalosamente absurdas desta descrição é cortado pelo evangelista, quando afirma, sem reservas, que o Logos estava com Deus; porque ele expressamente nos retira de cada momento de tempo.

Aqueles que inferem a partir do pretérito imperfeito do Logos, que é aqui usado, que denota existência continuada, têm pouca força de argumento para apoiá-los. “Foi”, eles dizem, é uma palavra mais apropriada

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para expressar a ideia de sucessão ininterrupta, do que se João tivesse dito, “tem sido”. Mas em questões tão pesadas devemos empregar argumentos mais sólidos; e, na verdade, o argumento que eu trouxe deve ser contado por nós como suficiente; ou seja, que o evangelista nos envia aos segredos eternos de Deus, para que possamos aprender que o Logos era, como estava escondido, antes de se revelar na estrutura exterior do mundo. Justamente, por isso, Agostinho faz a observação, que este princípio, que agora é mencionado, não tem começo; pois, embora, na ordem da natureza, o Pai veio antes de sua Sabedoria, e aqueles que concebem qualquer ponto do tempo, quando ele veio antes de sua Sabedoria, privam-no de sua glória. E esta é a geração eterna, a qual, durante um período de extensão infinita antes da fundação do mundo, estava escondida em Deus, por assim dizer - a qual, por uma longa sucessão de anos, estava obscurecida pela sombra para os patriarcas sob a Lei, e por fim foi mais plenamente manifestada em carne.

Eu me pergunto o que induziu os latinos a traduzirem “ho logos” por “Verbum” (a Palavra); porque isto teria sido mais a tradução de “to rhema”. Mas concedendo que eles tinham alguma razão plausível, ainda não pode ser negado que Sermo (o discurso) teria sido muito mais apropriado. Por isso é evidente, que a tirania bárbara foi exercida pelos teólogos da Sorbonne, que brincaram e saíram a Erasmo, de tal maneira, porque ele tinha mudado uma simples palavra para melhor.

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“E o Logos estava com Deus”. Já dissemos que o Filho de Deus é, assim, colocado acima do mundo e, acima de todas as criaturas, e é declarado ter existido antes de todas as eras. Mas, ao mesmo tempo, esse modo de expressão atribui a ele uma personalidade distinta da do Pai; pois teria sido um absurdo o Evangelista dizer que o Logos estava sempre com Deus, se ele não tivesse algum tipo de subsistência peculiar a si mesmo em Deus. Esta passagem serve, portanto, para refutar o erro de Sabélio; pois mostra que o Filho é distinto do Pai. Eu já observei que devemos ser sóbrios em pensamento, e modestos ao falar, sobre tais mistérios elevados. E ainda os antigos escritores da Igreja foram desculpáveis, quando, achando que eles não podiam de qualquer outra forma manter a sã doutrina pura em oposição à fraseologia perplexa e ambígua dos hereges, que eram compelidos a inventar algumas palavras, que afinal não tinham nenhum outro significado do que aquilo que é ensinado nas Escrituras. Eles disseram que há três Hipóstases, ou subsistências, ou pessoas, na única e simples essência de Deus. A palavra; hupostasis (hipóstase) ocorre neste sentido em Hebreus 1:3, à qual corresponde a palavra latina Substaatia, (substância) como ela é empregada por Hilary. As pessoas (ta Prosopa) foram chamadas por eles de propriedades distintas em Deus, que se apresentam para o ponto de vista de nossas mentes; como diz Gregório Nazianzeno: "Eu não consigo pensar no Único (Deus) sem ter as Três (pessoas) brilhando ao meu redor.”

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“E o Logos era Deus”. Para que não houvesse qualquer dúvida remanescente sobre a essência divina de Cristo, o evangelista claramente afirma que ele é Deus. Agora, já que há um só Deus, segue-se que Cristo é da mesma essência com o Pai, e ainda que, em alguns aspectos, ele é distinto do Pai. Mas da segunda cláusula já temos falado. Quanto à unidade da essência divina, Arius mostrou prodigiosa maldade, quando, para evitar ser forçado a reconhecer a eterna Divindade de Cristo, ele tagarelou sobre não sei qual divindade imaginária; mas da nossa parte, quando somos informados de que o Logos era Deus, que direito temos de colocar por mais tempo em questão a sua essência eterna?

Libertados dos Mandamentos Cerimoniais da Lei - Comentário de Colossenses 2.16

“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados,” (Colossenses 2.16) “Ninguém, pois, vos julgue”. O que ele havia dito anteriormente sobre a circuncisão, ele agora estende à diferença de alimentos e dias. Porque a circuncisão foi o primeiro contato com a observância da lei, e outras coisas se seguiram depois. Julgar significa aqui, considerar alguém culpado de um crime, ou impor um escrúpulo de consciência, de modo que não sejamos mais livres. Ele diz, portanto, que não está no poder dos homens nos

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fazer sujeitos à observância dos ritos que Cristo tem abolido pela sua morte, e nos isenta do seu jugo, para que não permitamos que sejamos restringidos pelas leis que eles impuseram. Ele tacitamente, no entanto, coloca Cristo em contraste com toda a humanidade, para que ninguém devesse se exaltar tão ousadamente assim como tentar tirar o que ele tem dado. Em relação ao dia de festa. Alguns entendem τὸ μέρος significando participação. Crisóstomo, concordando com isso, pensa que Paulo usou o termo festa, porque eles não observaram as festas, estritamente, nem os dias de descanso, de acordo com a designação da lei. Isto, contudo, é apenas uma má interpretação. Considere se isto não pode ser entendido como separação, porque aqueles que fazem uma distinção de dias, separam, como isto sucedeu, um do outro. Tal modo de separação era adequado para os judeus, para que pudessem celebrar religiosamente os dias que foram apontados pela Lei, separando-os dos outros. Entre os cristãos, no entanto, tal divisão tem cessado.

Mas alguém dirá: "Nós ainda mantemos alguma observância de dias." Eu respondo que não temos, por qualquer meio, que observar dias, como se houvesse qualquer sacralidade em feriados, ou como se não fosse lícito trabalhar neles , senão que o respeito é pago ao governo e à ordem – não a dias. E é isso que ele imediatamente acrescenta.

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A Lei Cerimonial Era uma Figura e Sombra de Cristo - Comentário de Colossenses 2.17

“porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” (Colossenses 2.17) “Que são sombras das coisas futuras”. A razão pela qual ele liberta os cristãos da observância dos dias festivos da Lei, é que eles eram sombras numa época em que Cristo ainda não havia se manifestado. Porque ele contrasta sombras com revelação e ausência com manifestação. Aqueles, portanto, que ainda aderem a essas sombras, agem como aquele que deve julgar a aparência de um homem pela sua sombra, enquanto nesse meio tempo ele o tinha pessoalmente diante de seus olhos. Porque Cristo é agora manifestado a nós, e por isso, vamos desfrutá-lo como presente. O corpo, diz ele, é de Cristo, isto é, EM Cristo. Porque a substância das coisas que as cerimônias antigamente prefiguravam agora é apresentada diante de nossos olhos em Cristo, na medida em que ele contém em si tudo o que eles aguardavam para o futuro. Assim, o homem que retorna às cerimônias do VT, ou enterra a manifestação de Cristo, ou furta Cristo de sua excelência, e o torna dessa maneira, vão. Assim, se qualquer um dos mortais assumir para si mesmo neste assunto o cargo de juiz, não vamos nos submeter a ele, na medida em que Cristo, o único juiz competente, nos liberta. Pois, quando ele diz: Ninguém vos julgue, ele não aborda os falsos apóstolos, mas proíbe os Colossenses de ceder seu pescoço a exigências

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descabidas. Abster-se, é verdade, de carne de porco, é em si inofensivo, mas a ligação de fazê-lo com o fim de se salvar ou se santificar, é perniciosa, porque torna nula a graça de Cristo.

Se qualquer um perguntar: "Que ponto de vista, então, é para ser tomado de nossos sacramentos (ceia e batismo)? Será que eles não representam também Cristo a nós como ausente?" Eu respondo que eles são muito diferentes das antigas cerimônias. Porque, assim como os pintores não fazem no primeiro projeto uma imagem em cores vivas, e (εἰκονικῶς) expressivamente, mas em primeira instância, desenham linhas rudes e obscuras com carvão, então a representação de Cristo sob a lei não era polida, e era, como se fosse, um primeiro esboço, mas nos sacramentos isto é visto retirado da vida. Paulo, no entanto, tinha algo mais em vista, pois ele contrasta o aspecto nu da sombra com a solidez do corpo, e lhes adverte, que é próprio de um louco tomar posse de sombras vazias, quando está em seu poder lidar com a substância sólida. Ainda, enquanto os nossos sacramentos representam o testemunho que ele foi uma vez manifestado, e agora eles também o apresentam a nós para ser desfrutado. Eles não são, portanto, sombras nuas, mas ao contrário, símbolos da presença de Cristo, porque eles contêm o Sim e o Amém de todas as promessas de Deus (2 Coríntios 1.20), que foi uma vez manifestado a nós em Cristo.

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Mortos para os Rudimentos do Mundo - Comentário de Colossenses 2.20

“Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças:” (Colossenses 2.20)

“Se estais mortos”. Ele havia dito anteriormente, que as ordenanças estavam ligadas à cruz de Cristo (Col 2.14). Agora, ele emprega uma outra figura de linguagem - que estamos mortos para elas, como ele nos ensina em outro lugar, que estamos mortos para a lei, e a lei, por outro lado, para nós (Gál 2.19). O termo morte significa revogação, mas isto é mais expressivo e mais enfático, (καὶ ἐμφατικώτερον). Ele diz, portanto, que os Colossenses, nada têm a ver com as ordenanças cerimoniais da Lei. Por quê? Porque eles morreram com Cristo para aquelas ordenanças; isto é, depois que morreram com Cristo através da regeneração (novo nascimento do Espírito), eles foram, por Sua graça, libertos das ordenanças, para que elas não lhes pertençam mais. Por isso, ele conclui que eles não estavam vinculados de qualquer forma às ordenanças que os falsos apóstolos se esforçaram para impor-lhes.

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A Inutilidade do Ascetismo - Comentário de Colossenses 2.21

“não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro,” (Colossenses 2.21)

“Não coma, não proves”. Até agora isto tinha sido processado – Não pegues, mas como outra palavra imediatamente se segue, a qual significa a mesma coisa, cada um vê quão fria e absurda foi tal repetição. Ainda mais, o verbo ἅπτεσθαι é empregado pelos gregos, entre suas outras significações, no sentido de comer, de acordo com o que tenho apresentado. Plutarco faz uso dele na vida de César, quando ele relata que seus soldados, destituídos de todas as coisas, comeram animais que eles não estavam acostumados anteriormente a usar como alimento. E este arranjo é em outros aspectos ainda mais natural e está mais conforme com a conexão da passagem; porque Paulo aponta, (μιμητικῶς,) por meio de imitação, para mostrar a que extensão de obstinação aqueles que amarram consciências por suas leis costumam proceder. Desde o início eles são excessivamente rigorosos; daí partem com a sua proibição - e não apenas contra o comer, mas mesmo contra ligeiramente participar. Depois de terem obtido o que eles desejam eles vão além daquele comando, para que depois declarem como sendo ilegal provar aquilo que eles não desejam que devesse ser comido. Por fim, eles consideram um crime até mesmo o tocar no que foi proibido. Em suma, quando as pessoas têm decidido uma vez tiranizar as almas dos homens, não há fim para novas

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leis que estarão sendo diariamente adicionadas aos antigos e novos decretos que eles formulam. Daí Paulo age admiravelmente bem em nos advertir que as tradições humanas são um labirinto, em que as consciências são cada vez mais enredadas; as quais desde o princípio ficam presas a tal maneira que no decorrer do tempo se estrangulam no final.

A Alma Não se Alimenta do que e Material - Comentário de Colossenses 2.22

“segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem.” (Colossenses 2.22) “Todas estas coisas tendem à corrupção”. Ele deixa de lado, por um argumento duplo, os atos aos quais ele fez menção - porque eles fazem a religião consistir em coisas externas e frágeis, que não têm ligação com o reino espiritual de Deus; e em segundo lugar, porque são de homens, não de Deus. Ele combate o primeiro argumento, também, em Romanos 14.17, quando ele diz: “O reino de Deus não consiste em comida e bebida;”. Da mesma forma, em 1 Coríntios. 6.13:

“O alimento é para o estômago e o estômago para os alimentos: Deus destruirá a ambos.”

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Cristo também diz:

“O que quer que entra pela boca não contamina o homem, porque desce para o ventre, e é lançado fora.” (Mateus 15.11)

A suma é esta - que o culto a Deus, a verdadeira piedade e a santidade dos cristãos, não consistem em bebida e comida, e roupas, que são coisas que são transitórias e passíveis de corrupção, e perecem por abuso. Porque o abuso é propriamente aplicável a essas coisas que são corrompidas pelo uso das mesmas. Daí, decretos não têm nenhum valor em referência a essas coisas que tendem a excitar escrúpulos de consciência.

A segunda refutação é adicionada - que elas se originaram com os homens, e não têm a Deus como seu autor; e por este trovão Paulo prostra e engole todas as tradições dos homens. Por que? Este é o raciocínio de Paulo: "Aqueles que trazem consciências em cativeiro injuriam a Cristo, e tornam sem efeito a sua morte. Porque tudo o que é da invenção humana não se liga à consciência."

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Não se Purifica a Alma com Ascetismo e Cerimônias Religiosas - Comentário de Colossenses 2.23

“Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.” (Colossenses 2.23)

“O que tem de fato uma aparência”. Aqui temos a expectativa de uma objeção, em que, enquanto ele reconhece nos seus adversários o que eles alegam, ele ao mesmo tempo reconhece isto como sendo totalmente inútil. Pois é como se ele tivesse dito, que ele não considera terem uma demonstração de sabedoria. Mas a aparência é colocada em contraste com a realidade, pois é uma aparência, como eles geralmente falam, que engana por semelhança.

Observe-se, porém, de que cores esta aparência é composta, de acordo com Paulo. Ele faz menção a três - o culto de adoração autoinventado, humildade e disciplina do corpo. A superstição entre os gregos recebe o nome deἐθελοβρησκεία - o termo que Paulo faz uso aqui. Ele tem, no entanto, em vista, a etimologia do termo, porqueἐθελοβρησκεία literalmente denota um serviço voluntário, que os homens escolhem para si mesmos, à sua escolha, sem a autoridade de Deus. As tradições humanas, portanto, são agradáveis para nós por causa disso, porque elas estão de acordo com o nosso entendimento, porque qualquer um encontrará em seu

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próprio cérebro os primeiros esboços das mesmas. Este é o primeiro pretexto.

O segundo é a humildade, na medida em que a obediência a Deus e aos homens é almejada, assim, os homens não recusam até mesmo encargos excessivos. E, na maior parte as tradições deste tipo são de tal natureza que parecem ser exercícios admiráveis de humildade. Elas seduzem, também, por meio de um terceiro pretexto, na medida em que parecem ser de grande proveito para a mortificação da carne, enquanto não há nenhuma moderação no uso do corpo. Paulo, no entanto, reprova esses disfarces, porque aquilo que está em alta estima entre os homens muitas vezes é uma abominação aos olhos de Deus (Lucas 16.15).

Ainda, isto é uma obediência traiçoeira, e uma humildade perversa e sacrílega, que transfere para os homens a autoridade de Deus; e a negligência do corpo não é de tão grande importância, a ponto de ser digno de ser exposto à admiração assim como ao culto de Deus. Alguém, no entanto, se sentirá surpreso, que Paulo não tenha mais dores em retirar essas máscaras. Respondo que ele em bons fundamentos, repousa satisfeito com a simples exibição do termo. Porque os princípios que tomara em oposição a isso são incontestáveis - de que o corpo está em Cristo, e que, consequentemente, aqueles nada fazem, senão se impor sobre os homens infelizes, colocando diante deles sombras. Em segundo lugar, o reino espiritual de Cristo não é de nenhuma forma tomado de elementos frágeis e corruptíveis. Em terceiro

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lugar, pela morte de Cristo tais observâncias foram extintas, para que não tenhamos qualquer conexão com elas; e, em quarto lugar, Deus é o nosso único Legislador (Isaías 33.22).

Ainda, ele reconheceu ser suficiente admoestar os Colossenses, para não serem enganados por serem colocados diante de coisas vazias. Não houve necessidade de maior repreensão. Porque isso deve ser um ponto resolvido entre todos os piedosos, que o culto a Deus não deve ser medido de acordo com os nossos pontos de vista; e que, portanto, qualquer tipo de serviço não é lícito, simplesmente pelo fato de que seja agradável para nós. Isso, também, deveria ser um ponto comumente recebido - que devemos a Deus, tal humildade assim como nos submetermos simplesmente aos seus mandamentos, que não devemos nos dirigir, agindo e pensando conforme a nossa própria compreensão (Provérbios 3.5) - e que o limite de humildade para com os homens é este - que cada um se submeta aos outros em amor. Agora, quando eles afirmam que a lascívia da carne é reprimida por abstinência de alimentos, a resposta é fácil - que não devemos, portanto, abster-nos de qualquer alimento específico como sendo imundo, mas devemos comer com moderação, para que possamos sóbria e moderadamente fazer uso dos dons de Deus, e para que não venhamos, impedidos por muita comida e bebida, a esquecer as coisas que são de Deus.

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Tudo Foi Criado por Meio de Jesus e para Jesus - Comentário de João 1.2,3

“1:2 Ele estava no princípio com Deus.

1:3 Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.”

2. “Ele estava no princípio”. A fim de impressionar mais profundamente em nossa mente o que já foi dito, o Evangelista condensa as duas frases anteriores em um breve resumo, que o verbo sempre foi, e que ele estava com Deus; de modo que pode ser entendido que o princípio foi antes de todos os tempos.

3. “Todas as coisas foram feitas por ele”. Depois de ter afirmado que o Logos é Deus, e de ter afirmado a sua essência eterna, ele agora prova a sua Divindade a partir de suas obras. E este é o conhecimento prático, ao qual devemos estar principalmente acostumados; porque o mero nome de Deus atribuído a Cristo nos afetará pouco, se a nossa fé não sentir isto como por experiência. Em referência ao Filho de Deus, ele faz uma afirmação que estrita e corretamente se aplica à sua pessoa. Às vezes, de fato, Paulo simplesmente declara que todas as coisas são de Deus (Romanos 11.36), mas sempre que o Filho é comparado com o Pai, ele é normalmente identificado por esta marca. Por conseguinte, o modo normal de expressão é aqui empregado, que o Pai fez todas as coisas por meio do Filho, e que todas as coisas são por Deus através do Filho. Agora, o propósito do evangelista é,

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como eu já disse, mostrar que assim que o mundo foi criado, que o verbo de Deus veio em operação externa; porque tendo sido anteriormente incompreensível em sua essência, ele se tornou então publicamente conhecido pelo efeito de seu poder. Há alguns, de fato, mesmo entre os filósofos, que fazem de Deus o arquiteto do mundo de tal modo a atribuir-lhe a inteligência na elaboração deste trabalho. Até aqui, eles estão corretos, pois concordam com as Escrituras; mas como eles imediatamente voam para especulações frívolas, não há razão pela qual devemos ansiosamente desejar ter seus testemunhos; mas, pelo contrário, devemos ficar satisfeitos com esta declaração inspirada, bem sabendo que ela transmite muito mais do que a nossa mente é capaz de compreender.

“E, sem ele, nada do que foi feito se fez”. Embora exista uma variedade de interpretações desta passagem, de minha parte, não tenho hesitado em entendê-la continuamente assim: nem qualquer coisa que foi feita foi feita sem ele; e nisto quase todos os manuscritos gregos, ou pelo menos aqueles dentre eles que são mais aprovados, encontram-se de acordo; além disso, o senso exige isto. Aqueles que separam as palavras, o que foi feito, a partir da frase precedente, de modo a ligá-la com a seguinte, apresentam um senso forçado: o que foi feito era nele vida; isto é, viveu, ou manteve-se em vida. Mas eles nunca vão mostrar que este modo de expressão é, em qualquer instância, aplicado a criaturas. Agostinho, que é excessivamente viciado na filosofia de Platão, é levado junto, segundo o costume, à doutrina das ideias;

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que antes de Deus ter criado o mundo, ele tinha a forma de todo o edifício concebida na sua mente; e assim a vida daquelas coisas que ainda não existiam estava em Cristo, porque a criação do mundo foi designada nele. Mas quão amplamente isso é diferente da intenção do evangelista veremos imediatamente.

Volto agora ao primeiro período. Esta não é uma redundância defeituosa (perittologia), assim como isto parece ser; porque como Satanás se esforça, por todos os método possíveis, para tirar qualquer coisa de Cristo, o evangelista declara expressamente que, das coisas que tinham sido criadas lá não há uma única exceção que seja.

A Vida Que Recebemos do Logos Eterno - Comentário de João 1.4

“A vida estava nele e a vida era a luz dos homens.” (João 1.4)

“Nele estava a vida”. Até agora, João nos ensinou, que todas as coisas foram criadas pelo Logos de Deus. Ele agora atribui a ele, da mesma forma, a preservação das coisas que tinham sido criadas, como se ele tivesse dito, que na criação do mundo não foi apenas exibido um exercício repentino de seu poder, que logo faleceu, mas que se manifestou na forma constante e regular da natureza, como dele é dito que mantém todas as coisas

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pela palavra ou a vontade de seu poder (Hebreus 1.3). Esta vida pode ser estendida ainda às criaturas inanimadas (que vivem segundo a sua própria maneira, embora elas sejam desprovidas de sentimentos) ou pode ser explicado em referência às criaturas vivas exclusivamente. É de pouca consequência que você escolha; porque o significado simples é, que o Logos de Deus não era apenas a fonte de vida para todas as criaturas, de modo que aqueles que não existiam começaram a ser, senão que a sua doação de poder vivificante faz com que eles permaneçam em sua condição; porque se não fosse a sua contínua inspiração dando vigor ao mundo, tudo o que vive decairia imediatamente, ou seria reduzido a nada. Em uma palavra, o que Paulo atribui a Deus, que nele existimos, nos movemos, e vivemos (Atos 17:28), João declara ser realizado pela agência graciosa do Logos; de modo que é Deus quem nos dá a vida, mas isto é pelo Logos eterno .

“A vida era a luz dos homens”. Eu deixo de lado as outras interpretações que não são feitas de acordo com o significado do evangelista. Na minha opinião, ele fala aqui daquela parte da vida em que os homens se diferenciam dos outros animais; e informa-nos que a vida que foi conferida aos homens não era de uma descrição comum, mas estava unida à luz da compreensão. Ele separa o homem da posição de outras criaturas; porque percebemos mais facilmente o poder de Deus, sentindo-o em nós, do que por contemplá-lo à distância. Assim, Paulo nos exorta a não procurar Deus à distância, porque ele se faz sentir dentro de nós (Atos 17.27.) Depois de ter

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apresentado uma exposição geral da bondade de Cristo, a fim de induzir os homens a ter uma visão mais próxima da mesma, ele aponta o que foi concedido peculiarmente em si mesmos; ou seja, que eles não foram criados como os animais, mas tendo sido dotados de razão, tinham obtido uma classificação mais elevada. Como não é em vão que Deus dá sua luz à sua mente, segue-se que a finalidade para a qual eles foram criados era, que eles pudessem reconhecer Aquele que é o Autor de tão excelente bênção. E uma vez que esta luz, da qual o Logos foi a fonte, foi transportada dele para nós, isto deveria servir como um espelho, em que podemos contemplar claramente o poder divino do Logos.

A Luz de Jesus Prevalece Contra as Trevas Espirituais - Comentário de João 1.5

“A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.” (João 1.5)

“E a luz resplandece nas trevas”. Pode ser objetado que as passagens da Escritura em que os homens são chamados de cegos são tão numerosas e que a cegueira pela qual eles são condenados, é muito bem conhecida. Pois em todas as suas faculdades de raciocínio eles miseravelmente falham. Como com isto há tantos labirintos de erros do mundo, senão porque os homens, por sua própria orientação, são levados apenas a vaidade e mentiras? Mas se nenhuma luz aparece nos homens,

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aquele testemunho da divindade de Cristo, que o Evangelista recentemente mencionou, é destruído; pois este é o terceiro passo, como já disse, que na vida dos homens, há algo mais excelente do que movimento e respiração. O evangelista antecipa essa pergunta, e em primeiro lugar, estabelece essa cautela, que a luz que foi originalmente concedida a homens não deve ser estimada pela sua presente condição; porque nesta corrompida e degenerada natureza a luz tem sido transformada em trevas. E, no entanto, ele afirma que a luz da compreensão não é inteiramente extinta; porque, em meio à espessa escuridão da mente humana, algumas faíscas restantes da luz ainda brilham.

Meus leitores agora entendem que esta frase contém duas cláusulas; pois ele diz que os homens estão agora amplamente distantes daquela natureza perfeitamente santa com que foram dotados originalmente; porque a sua compreensão, que deveria ter lançado luz em todas as direções, está mergulhada em escuridão, e está miseravelmente cega; e que, portanto, da glória de Cristo pode ser dito estar obscurecida em meio a essa corrupção da natureza. Mas, por outro lado, o evangelista afirma que, no meio da escuridão ainda existem alguns restos de luz, que mostram, em algum grau o poder divino de Cristo. O evangelista admite, portanto, que a mente do homem está cegada; de modo que pode ser justamente coberta com a escuridão. Pois ele pode ter usado um termo mais ameno, e poderia ter dito que a luz é escura ou turva; mas ele preferiu afirmar mais claramente como a nossa condição

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miserável tornou-se desde a queda do primeiro homem. A afirmação de que a luz resplandece nas trevas não é em tudo destinada para recomendar a natureza depravada, mas sim para tirar toda desculpa para a ignorância.

“E as trevas não a compreenderam”. Embora essa pequena medida de luz, ainda permaneça em nós, o Filho de Deus tem sempre convidado os homens a si mesmo, mas ainda o evangelista diz que isto não apresentou qualquer vantagem, porque vendo, eles não enxergam (Mateus 13.13). Pois desde que o homem perdeu o favor de Deus, sua mente está tão completamente dominada pela escravidão da ignorância, que qualquer parte da luz que permanece nele é misturada e inútil. Isto é provado pela experiência diária; porque todos que não são regenerados pelo Espírito de Deus possuem alguma razão, e esta é uma prova inegável de que o homem foi feito não somente para respirar, mas para ter entendimento. Mas por aquela orientação de sua razão eles não vieram a Deus, e nem sequer se aproximaram dele; de modo que todo o seu entendimento é nada mais do que mera vaidade. Daí segue-se que não há esperança de salvação dos homens, a não ser que Deus conceda novos auxílios; porque embora o Filho de Deus derrame sua luz sobre eles, eles estão tão cegos que não entendem de onde essa luz provém, mas são levados por imaginações tolas e iníquas à loucura absoluta.

A luz que ainda habita na natureza corrompida consiste principalmente de duas partes; porque, em primeiro lugar, todos os homens possuem naturalmente uma

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parte da semente da religião; e, em segundo lugar, a distinção entre o bem e o mal está gravada em suas consciências. Mas quais são os frutos que, em última instância brotam, exceto que a religião degenera em mil monstros de superstição, e a consciência perverte cada decisão, de modo a confundir vício com virtude? Em suma, a razão natural nunca vai dirigir os homens a Cristo; e assim, serem dotados com prudência para regular suas vidas, ou nascidos para cultivar as artes liberais e ciências, tudo isso perece sem oferecer qualquer vantagem.

Deve ser entendido que o evangelista fala de dons naturais apenas, e não se refere ainda a qualquer coisa sobre a graça da regeneração. Pois há dois poderes distintos que pertencem ao Filho de Deus: o primeiro, o que se manifesta na estrutura do mundo e a ordem da natureza; e o segundo, pelo qual ele renova e restaura a natureza caída. Como ele é o Logos eterno de Deus, por ele o mundo foi feito; pelo seu poder todas as coisas continuam a possuir a vida que, uma vez foi recebida; o homem foi especialmente dotado de um dom extraordinário de entendimento; e que por sua rebelião, ele perdeu a luz da compreensão, mas ele ainda vê e compreende, de modo que o que possui naturalmente a partir da graça do Filho de Deus não é totalmente destruído. Mas desde que por sua insensatez e perversidade ele escurece a luz que ainda habita nele, isto permanece que um novo ofício é realizado pelo Filho de Deus, o ofício de Mediador, para renovar, pelo Espírito de regeneração, o homem que tinha sido arruinado.

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Portanto, raciocinam absurda e inconclusivamente, aquelas pessoas que se referem a esta luz, que o evangelista menciona, como sendo o evangelho e a doutrina da salvação.

João Batista Foi Enviado por Deus - Comentário de João 1.6

“Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.” (João 1.6)

“Houve um homem”. O evangelista agora começa a discorrer sobre a maneira pela qual o Filho de Deus se manifestou em carne; e para que ninguém possa duvidar que Cristo é o Filho eterno de Deus, ele relata que Cristo foi anunciado por João Batista, como seu arauto. Para não somente para Cristo ser exibido para ser visto pelos homens, mas ele escolheu também ser feito conhecido pelo testemunho e doutrina de João; ou melhor, Deus, o Pai enviou este testemunho diante do seu Cristo, para que pudessem receber a salvação oferecida por ele mais voluntariamente.

Mas pode parecer ridículo à primeira vista que Cristo deveria receber testemunho de outro, como se ele precisasse disso; enquanto, ao contrário, ele declara que ele não procura testemunho de homem (Jo 5.34). A resposta é fácil e óbvia, que este testemunho foi nomeado, não por causa de Cristo, mas por nossa causa.

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Se se objetar que o testemunho do homem é muito fraco para provar que Cristo é o Filho de Deus, é igualmente fácil de responder, que o Batista não é apresentado como uma testemunha particular, mas como alguém que, tendo recebido autoridade de Deus, sustentou o caráter mais de um anjo do que de um homem. Assim, ele recebe comenda não por suas próprias virtudes, mas para esta única circunstância, que ele era o embaixador de Deus. Nem isso está em desacordo com o fato de que a pregação do evangelho foi cometida a Cristo, para que pudesse ser uma testemunha de si mesmo; porque o desígnio contemplado pela pregação de João foi o de que os homens pudessem atender à doutrina e milagres de Cristo.

“Enviado por Deus”. Ele não diz isso com a finalidade de confirmar o batismo de João, mas somente mencioná-lo de passagem. Esta circunstância não é suficiente para produzir certeza, uma vez que muitos se gabam de que Deus lhes enviou; mas o evangelista, pretendendo falar mais detalhadamente depois sobre esse testemunho, relata o suficiente, para o momento, por dizer em uma única palavra, que João não veio, senão que foi enviado pelo mandamento de Deus. Vamos depois ver como ele mesmo afirma que Deus é o autor de seu ministério. Temos agora de lembrar - o que eu anteriormente assinalei - que o que é afirmado sobre João é aplicável a todos os mestres da Igreja, que eles são chamados por Deus; de modo que a autoridade de ensino não pode ser fundada em qualquer outro do que em Deus somente.

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“Cujo nome era João”. Ele indica o nome, não apenas para o propósito de apontar o homem, mas porque isto foi dado a ele de acordo com o que ele realmente era. Não há espaço para duvidar que o Senhor tinha referência ao cargo para o qual ele nomeou João, quando ele ordenou pelo anjo que ele deveria ser chamado assim, para que por meio de tudo isso pudessem reconhecê-lo como sendo o arauto da graça divina. Porque o nome yhvchnn (Jehohannan) pode ser entendido numa significação passiva, e pode, assim, ser referido à pessoa, como denotando que João era agradável a Deus; ainda de minha parte, eu de bom grado estendo isto ao benefício que outros deveriam receber a partir dele.

João Veio Dar Testemunho da Luz de Jesus - Comentário de João 1.7,8

“1:7 Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele.

1:8 Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz,”

7. “Este veio como testemunha”. O fim da vocação de João Batista é brevemente notado; que era, para que pudesse preparar uma Igreja para Cristo, como, convidando todos a Cristo, ele mostra claramente o

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suficiente para que ele não tivesse vindo por sua própria conta.

8. “Ele não era a luz”. Agora João Batista necessitou desta advertência que foi apresentada pelo evangelista, para que seu brilho excessivo não pudesse obscurecer a glória de Cristo. Pois havia alguns que o olharam assim tão avidamente que negligenciaram a Cristo; como se uma pessoa, extasiada por contemplar o amanhecer do dia, não se atrevesse a voltar seus olhos para o sol. Em que sentido o evangelista emprega a palavra luz veremos imediatamente. Todos os piedosos, de fato, são luz no Senhor (Efésios 5.8), porque, em consequência da sua iluminação pelo Espírito, eles não somente veem por si mesmos, mas da mesma forma direcionam a outros pelo seu exemplo para o caminho da salvação. Os apóstolos da mesma forma são peculiarmente chamados de luz (Mateus 5.14), porque eles vão na vanguarda, elevando a tocha do Evangelho, para dissipar a escuridão do mundo. Mas aqui o evangelista fala daquele que é a única e eterna fonte de iluminação, como ele logo após mostra mais claramente.

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A Verdadeira Luz do Mundo - Comentário de João 1.9

“a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem.” (João 1.9)

“Pois a verdadeira luz”. O evangelista não tinha a intenção de contrastar a luz verdadeira com a falsa, mas distinguir Cristo de todas as demais, para que ninguém pudesse imaginar que o que é chamado de luz pertence a ele em comum com os anjos ou homens. A distinção é, que tudo o que é luminoso no céu e na terra toma emprestado o seu esplendor a partir de algum outro objeto; mas Cristo é a luz, brilhando em si e por si mesmo, e iluminando todo o mundo por seu brilho; de modo que nenhuma outra fonte ou causa de esplendor é para ser achada em qualquer lugar. Ele deu o nome de verdadeira luz, por conseguinte, Àquele que tem por natureza o poder de dar luz.

“Que ilumina a todo homem”. O evangelista insiste principalmente sobre este ponto, a fim de mostrar, a partir do efeito que cada um de nós percebe nele, que Cristo é a luz. Ele poderia ter fundamentado mais engenhosamente, que Cristo, como a luz eterna, tem um esplendor que é natural e não o trouxe de qualquer outra parte; mas em vez de fazer assim, ele nos remete à experiência que todos nós possuímos. Porque, assim como Cristo faz de nós todos participantes do seu brilho, deve ser reconhecido que somente a ele pertence estritamente esta honra de ser chamado de luz.

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Esta passagem é geralmente explicada de duas maneiras. Alguns restringem a frase, a cada homem, àqueles que, tendo sido renovados pelo Espírito de Deus, se tornam participantes da luz que dá vida. Agostinho emprega a comparação de um mestre que, se acontecer de você ser a única pessoa que tem uma escola na cidade, será chamado de o mestre de todos, embora haja muitas pessoas que não vão à sua escola. Eles, portanto, entendem a frase em sentido comparativo, que todos são iluminados por Cristo, porque nenhum homem pode se orgulhar de ter obtido a luz da vida em qualquer outra forma que não seja pela sua graça. Mas desde que o evangelista emprega a frase geral, “todo homem que vem a este mundo”, eu estou mais inclinado a adotar outro significado, que é, que a partir desta luz os raios são difundidos sobre toda a humanidade, como já tenho dito. Porque sabemos que os homens têm esta excelência peculiar que lhes eleva acima de outros animais, porque são dotados de razão e inteligência, e carregam a distinção entre o certo e o errado gravada na sua consciência. Não há nenhum homem, portanto, a quem alguma percepção da luz eterna não chegue.

Mas como há fanáticos que imprudentemente forçam e torcem esta passagem, de modo a inferir a partir dela que a graça de iluminação é igualmente oferecida a todos, lembremo-nos de que o único assunto tratado aqui é a luz comum da natureza, que é muito inferior à fé; porque nunca será qualquer homem, por toda a agudeza e sagacidade de sua própria mente, que entrará no reino de Deus. É o Espírito de Deus somente quem abre a porta

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dos céus para os eleitos. Então, vamos lembrar que a luz da razão que Deus implantou nos homens tem sido tão obscurecida pelo pecado, que no meio da grande escuridão e da ignorância, e do golfo de erros, há apenas algumas faíscas brilhantes que não são totalmente extintas.

O Logos Divino Rejeitado pela Nação de Israel - Comentário de João 1.10,11

“1:10 O Logos estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu.

1:11 Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.”

10. “Ele estava no mundo”. Ele acusa os homens de ingratidão, por causa de seu comum acordo, por assim dizer, eles estavam tão cegos, que a causa da luz que eles apreciavam era desconhecida para eles. Isso se estende a todas as épocas do mundo; porque antes de Cristo ter se manifestado na carne, seu poder foi exibido em todos os lugares; e, portanto, esses efeitos diários deveriam corrigir a insensatez dos homens. O que pode ser mais irrazoável do que tirar água de um riacho, e nunca pensar na fonte a partir da qual esse fluxo flui? Segue-se que nenhuma desculpa adequada pode ser encontrada para a ignorância do mundo em não conhecer a Cristo, antes que ele se manifestasse na carne; porque isso surgiu a partir da indolência e da insensatez daqueles que tiveram

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a oportunidade de vê-lo sempre presente pelo seu poder. O conjunto pode ser resumido dizendo, que nunca Cristo estivera, de tal forma ausente do mundo, mas que os homens, despertados por seus raios, deveriam ter levantado os olhos para ele. Por isso segue-se que a culpa deve ser imputada a eles mesmos.

11. “Veio para o que era seu”. Aqui é exibida a absolutamente desesperada iniquidade e malícia dos homens; aqui é apresentada a sua execrável impiedade, que, quando o Filho de Deus se manifestou em carne aos judeus, a quem Deus tinha separado para si mesmo a partir de outras nações para ser a sua particular herança, ele não foi reconhecido ou recebido. Esta passagem tem também recebido várias explicações. Porque alguns pensam que o evangelista fala de todo o mundo de forma indiscriminada; e, certamente, não existe nenhuma parte do mundo que o Filho de Deus não pudesse legitimamente reivindicar como sua própria propriedade. De acordo com eles, o significado é: "Quando Cristo veio para baixo para o mundo, ele não chegou a entrar em territórios de outras pessoas, porque toda a raça humana era sua herança." Mas eu aprovo muito mais a opinião daqueles que a submetem apenas aos judeus; porque há uma comparação implícita, pela qual o Evangelista representa a ingratidão atroz dos homens. O Filho de Deus havia solicitado uma morada para ele em uma nação; quando ele apareceu lá, foi rejeitado; e isso mostra claramente a cegueira terrivelmente perversa dos homens. Ao fazer esta declaração, o único objetivo do evangelista deve ter sido

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remover a ofensa que muitos estariam aptos a tomar em consequência da incredulidade dos judeus. Pois, quando ele foi desprezado e rejeitado pelos da nação para a qual havia sido especialmente prometido, quem iria considerá-lo como sendo o Redentor do mundo inteiro? Vemos as dores extraordinárias que o apóstolo Paulo teve em lidar com este assunto.

Aqui, tanto o verbo quanto o pronome são altamente enfáticos. “Ele veio”. O Evangelista diz que o Filho de Deus veio a este lugar onde ele antigamente estivera; e por esta expressão ele quer significar um novo e extraordinário tipo de presença, pela qual o Filho de Deus se manifestou, para que os homens possam ter uma visão mais próxima dele.

“O que era seu”. Por esta frase o Evangelista compara os judeus com outras nações; porque por um privilégio extraordinário eles haviam sido adotados na família de Deus. Cristo, portanto, foi primeiro oferecido a eles como à sua própria família, e como pertencente a seu império por um direito peculiar. Para a mesma finalidade é a acusação de Deus por Isaías: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono, mas Israel não me conhece (Isaías 1.3); porque se ele tem domínio sobre o mundo inteiro, ainda ele apresenta a si mesmo, de maneira peculiar, como o Senhor de Israel, a quem ele tinha escolhido, por assim dizer, de uma forma sagrada.

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A Filiação a Deus é Obtida Somente pela Fé em Jesus - Comentário de João 1.12

“Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome;” (João 1.12)

“Mas, a todos quantos o receberam”. Para que ninguém seja detido por esta pedra de tropeço, Cristo, a quem os judeus desprezaram e rejeitaram, o Evangelista exalta acima do céu os piedosos que acreditam nele; porque ele diz que pela fé eles obtêm essa glória de serem contados como filhos de Deus. O termo universal contém um contraste implícito; porque os Judeus foram levados por sua vangloriosa cegueira, a pensar que Deus havia se ligado exclusivamente a eles. O evangelista declara que a sua condição é mudada, porque os judeus foram rejeitados, e seu lugar, que havia sido deixado vazio, é ocupado pelos gentios; pois isso é como se ele tivesse transferido o direito de adoção para estrangeiros. Isto é o que Paulo diz, que a destruição de uma nação resultou em vida para o mundo inteiro (Romanos 11.12;) porque do Evangelho, pode ser dito que foi banido deles, e começou a ser espalhado por todas as partes do mundo. Eles foram, assim, privados do privilégio que desfrutavam acima dos outros. Mas sua impiedade não foi uma obstrução para Cristo; porque ele erigiu em outro lugar o trono do seu reino, e chamou indiscriminadamente para a esperança da salvação todas as nações que anteriormente pareciam ter sido rejeitadas por Deus.

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“Ele lhes deu o poder”. A palavra exousia (poder) aqui, me parece significar um direito, ou título; e seria melhor traduzi-la assim, a fim de refutar as falsas opiniões; que pervertem perversamente essa passagem por entender que ela signifique, que seja nada mais do que uma escolha que nos é permitida, se nos achamos aptos para avaliarmos a nós mesmos para tirar proveito desse privilégio. Desta forma o livre arbítrio (de termos o poder de escolher ou rejeitar a Cristo) é retirado a partir desta frase; e além disso eles podem extrair o fogo a partir da água. Há alguma plausibilidade nisso à primeira vista; porque o evangelista não diz que Cristo lhes fez filhos de Deus, mas que ele lhes dá o poder de se tornarem tais. Assim eles inferem que é somente esta graça que nos é oferecida, e que a liberdade de desfrutá-la ou rejeitá-la é colocado à nossa disposição. mas esse esforço fútil que se baseia em uma única palavra é posto de lado pelo que se segue imediatamente; porque o evangelista acrescenta, que eles se tornam filhos de Deus, não pela vontade que pertence à carne, mas quando eles são nascidos de Deus. Mas se a fé nos regenera, de modo que nós somos filhos de Deus, e se Deus sopra a fé em nós do céu, se torna evidente que não é pela possibilidade apenas, mas realmente - como se diz - é a graça de adoção que nos é oferecida por Cristo. E, de fato, a palavra grega, exousia é por vezes substituída por axiosis (dignidade), um significado que cai admiravelmente com esta passagem, pois teríamos “deu-lhes a dignidade de serem feitos filhos de Deus”.

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A prolixidade que o evangelista tem empregado tende mais para ampliar a excelência da graça, do que se ele tivesse dito uma única palavra, que todos os que creem em Cristo são feitos por ele filhos de Deus. Porque ele fala aqui do impuro e do profano, que, tendo sido condenado à ignomínia perpétua, estava na escuridão da morte. Cristo exibiu um exemplo surpreendente de sua graça em conferir esta honra a tais pessoas, de modo que eles começaram, instantaneamente, a serem filhos de Deus; e a grandeza deste privilégio é justamente exaltada pelo evangelista, como também por Paulo, quando ele o atribui a Deus, que é rico em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou (Efésios 2.4).

Mas se qualquer pessoa preferir tomar a palavra poder palavra em sua aceitação comum, ainda, o evangelista não lhe empresta o significado de ser isto qualquer faculdade intermediária, ou algo que não inclui o efeito total e completo; mas, pelo contrário, significa que Cristo deu ao impuro e ao incircunciso o que parecia ser impossível; porque uma mudança incrível ocorreu quando das pedras Cristo ressuscitou filhos a Deus (Mateus 3.9). O poder, portanto, é aquela aptidão (hikanotes) que Paulo menciona, quando ele dá graças a Deus, que nos fez idôneos para participar da herança dos santos (Colossenses 1.12).

“Que creem no seu nome”. Ele expressa sucintamente o modo de receber a Cristo, isto é, acreditar nele. Tendo sido enxertados em Cristo pela fé, obtemos o direito de adoção, de modo a sermos filhos de Deus. E, de fato,

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como ele é o Filho unigênito de Deus, isto sucede conosco somente por sermos membros dAquele por quem afinal esta honra nos pertence. O evangelista declara que este poder é dado àqueles que já creem. Agora é certo que tais pessoas são, na realidade, os filhos de Deus.

O Evangelista diz que aqueles que creem já nasceram de Deus. Não é, portanto, uma mera liberdade de escolha que é oferecida. Embora a palavra hebraica, sm (Nome) é por vezes utilizada para designar poder, ainda, denota aqui uma relação com a doutrina do Evangelho; porque quando Cristo é pregado a nós, então é que nós cremos nele. Falo do método comum pelo qual o Senhor nos leva à fé; e isso deve ser cuidadosamente observado, pois há muitos que tolamente se esforçam para uma fé confusa, sem qualquer compreensão da doutrina, sem qualquer conhecimento de Cristo, por não ouvir o Evangelho. Cristo, portanto, oferece-se a nós pelo Evangelho, e nós o recebemos pela fé.

Os Crentes São Gerados pela Vontade Exclusiva de Deus - Comentário de João 1.13

“os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” (João 1.13)

“Os quais não nasceram do sangue”. Alguns pensam que uma referência indireta é feita aqui à disparatada

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confiança dos judeus, e eu de bom grado adoto essa opinião. Eles tinham continuamente em sua boca a nobreza de sua linhagem, como se, porque eles eram descendentes de uma casta santa, eram naturalmente santos. E eles poderiam ter justamente se vangloriado de sua descendência de Abraão, se fossem filhos legítimos, e não bastardos; mas o brilho da fé nada atribui a qualquer geração carnal, mas reconhece a sua obrigação para com a graça de Deus somente por tudo o que é bom. João, então, diz que aqueles entre os gentios que eram anteriormente impuros, que creem em Cristo, não nascem como filhos de Deus desde o ventre materno, mas são renovados por Deus, para que possam começar a ser seus filhos. A razão pela qual ele usa a palavra sangue no plural, no original grego, parece ter sido, para que pudesse expressar mais plenamente uma longa sucessão de linhagem; porque isto era uma parte da jactância entre os Judeus, que poderiam traçar a sua genealogia, por uma linha ininterrupta, até os patriarcas.

“Nem da vontade da carne, nem da vontade do homem”. Parece-me significar a mesma coisa, pois não vejo nenhuma razão para que por carne deva ser suposto significar mulher, como Agostinho e muitos outros o explicam. Pelo contrário o Evangelista repete a mesma coisa em uma variedade de palavras, a fim de explicá-la mais plenamente, e imprimi-la mais profundamente nas mentes dos homens. Embora ele se refira diretamente aos judeus, que glorificavam a carne, contudo nesta passagem uma doutrina geral pode ser obtida: a de que o sermos contados como filhos de Deus

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não pertence à nossa natureza, e não procede de nós, mas porque Deus nos gerou de bom grado (Tiago 1.18), que é, por amor imerecido. Daí segue-se, em primeiro lugar, que a fé não procede de nós mesmos, mas é fruto da regeneração espiritual; porque o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a menos que ele seja gerado de Deus, e, portanto, a fé é uma dom. A isto segue, em segundo lugar, que a fé não é um nu e frio conhecimento, já que nenhum homem pode crer caso não tenha sido renovado pelo Espírito de Deus.

Pode-se pensar que o evangelista inverte a ordem natural por fazer a regeneração preceder a fé, ao passo que, pelo contrário, é um efeito da fé, e, portanto, deve ser colocada depois. Eu respondo, que ambas as afirmações concordam perfeitamente; porque pela fé recebemos a semente incorruptível (1 Pedro 1.23), pela qual nascemos de novo para uma nova vida divina. E ainda a própria fé é uma obra do Espírito Santo, que habita em ninguém a não ser nos filhos de Deus. Então, em vários aspectos, a fé é uma parte da nossa regeneração, e uma entrada para o reino de Deus, para que ele possa nos contar entre os seus filhos. A iluminação das nossas mentes pelo Espírito Santo pertence à nossa renovação e, assim, a fé flui da regeneração a partir de sua fonte; mas desde que é pela mesma fé que recebemos a Cristo, o qual nos santifica por seu Espírito, de modo que é dito que isto é o início de nossa adoção.

Outra solução, ainda mais simples e fácil, pode ser oferecida; porque quando Senhor sopra a fé em nós, ele

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nos regenera por um método que é oculto e desconhecido para nós; mas depois de termos recebido a fé, nós percebemos, por um sentimento vivo de consciência, não somente a graça de adoção, mas também a novidade de vida e os outros dons do Espírito. Porque desde que a fé, como já dissemos, recebe a Cristo, ela nos coloca na posse, por assim dizer, de todas as suas bênçãos. Assim, tanto quanto respeite ao nosso senso, é somente depois de ter crido - que começamos a ser filhos de Deus. Mas, se a herança da vida eterna é o fruto da adoção, vemos como o Evangelista atribui toda a nossa salvação à graça de Cristo somente; e, de fato, quanto mais os homens se examinarem a si mesmos, eles nada vão encontrar que lhes faça dignos de serem filhos de Deus, a não ser o que Cristo derramou sobre eles.

A Superioridade e Excelência Eterna de Jesus - Comentário de João 1.15

“João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem eu disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia antes de mim.” (João 1.15)

“João dá testemunho”. Ele agora relata o que foi a pregação de João Batista. Por usar o verbo o testemunhar (marturei) no tempo presente, ele denota um ato continuado, e, certamente, essa doutrina deve ser continuamente vigorosa, como se a voz de João estivesse

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ressoando continuamente nos ouvidos dos homens. Do mesmo modo que ele usa depois a palavra “clamar”, para insinuar que a doutrina de João não se encontrava em nenhum grau obscura ou ambígua, e que ele não murmurava entre alguns homens, mas abertamente, e com grande voz, pregava a Cristo. A primeira frase se destina a transmitir a declaração, que ele foi enviado por causa de Cristo, e que, portanto, teria sido razoável que ele deveria ser exaltado, enquanto Cristo não entrasse em cena.

“Este é aquele de quem eu falava”. Por essas palavras ele quer dizer que a sua intenção foi, desde o início, que Cristo fosse conhecido, e que esta era a razão de seus discursos públicos; como, de fato, não havia outra maneira para que ele pudesse cumprir o seu dever como embaixador do que conduzir seus discípulos a Cristo.

“Já existia antes de mim”. Apesar de que João Batista fosse mais velho do que Cristo por alguns meses, todavia ele não fala agora de idade; mas como ele tinha cumprido o ofício de profeta por um curto período antes de Cristo aparecer em público, então ele faz a si mesmo o predecessor em relação ao tempo. No que diz respeito, por conseguinte, à manifestação pública, Cristo veio depois de João Batista. As palavras que se seguem podem ser literalmente declaradas, “ele veio depois de mim, tem contudo a primazia porque já existia antes de mim”; mas o significado é, que Cristo foi justamente preferido a João, porque ele era mais excelente. Ele, portanto, rendeu seu ofício a Cristo e – assim como diz o provérbio

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“passou-lhe o bastão", ou deu a ele lugar como seu sucessor. Mas, como Cristo surgiu mais tarde na ordem do tempo, João lembra seus ouvintes que isso não é razão para que ele não devesse ser preferido a ele mesmo, como sua posição merecida. Assim, todos os que são superiores aos outros, quer nos dons de Deus ou em qualquer grau de honra, devem permanecer na sua própria posição, de modo a ser colocada abaixo de Cristo.

Recebendo da Plenitude de Jesus Graça Sobre Graça - Comentário de João 1.16

“Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça sobre graça.” (João 1.16)

“E da sua plenitude”. João começa agora a pregar sobre o ofício de Cristo, que contém em si uma abundância de todas as bênçãos, para que nenhuma parte da salvação devesse ser procurada em qualquer outro lugar. É verdade, de fato, a fonte da vida, a justiça, virtude e sabedoria, estão com Deus, mas para nós é uma fonte oculta e inacessível. Mas uma abundância dessas coisas é exibida a nós em Cristo, para que nos seja permitido recorrer a ele; porque ele está pronto para fazê-las fluir para nós, desde que abramos um canal pela fé. Ele declara, em geral, que fora de Cristo não devemos buscar qualquer coisa boa, embora esta sentença consista de várias cláusulas. Primeiro, ele mostra que estamos todos totalmente destituídos e vazios de bênçãos espirituais;

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porque a abundância que existe em Cristo se destina a suprir nossa carência, para aliviar nossa pobreza, para saciar a nossa fome e sede. Em segundo lugar, ele nos adverte que, assim que nos temos afastado de Cristo, é vão para nós buscarmos uma única gota de felicidade, porque Deus determinou que tudo o que é bom deve residir somente nele. Assim, encontraremos anjos e os homens a secar, o céu vazio, a terra improdutiva, e, em suma, tudo não terá qualquer valor, se quisermos participar dos dons de Deus de qualquer outra forma que não através de Cristo. Em terceiro lugar, ele nos assegura que não haverá qualquer razão para temer qualquer coisa que seja, desde que possamos tirar da plenitude de Cristo, que é em todos os aspectos; tão completo, que vamos experimentar ser uma fonte inesgotável verdadeiramente; e João inclui a si mesmo nisto com os demais, não por uma questão de modéstia, mas para tornar mais evidente que nenhum homem é exceção quanto a isto.

Na verdade, é incerto se ele fala em geral de toda a raça humana, ou se ele se refere apenas àqueles que, posteriormente à manifestação de Cristo na carne, foram feitos mais plenamente participantes das suas bênçãos. Todos os piedosos, sem dúvida, que viveram sob a Lei, tiraram da mesma plenitude; mas, como João imediatamente depois distingue entre diferentes períodos, é mais provável que aqui ele especialmente recomende quão rica abundância de bênçãos Cristo exibiu na sua vinda. Porque sabemos que, nos termos da Lei os dons de Deus foram mais moderadamente

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provados, mas que, quando Cristo se manifestou em carne, eles foram vertidos, por assim dizer, com uma mão cheia, até à saciedade. Não que qualquer um de nós tenha obtido uma maior abundância da graça do Espírito do que Abraão, mas eu falo da dispensação comum de Deus, e da maneira e forma de distribuição. João Batista, que pode convidar mais livremente seus discípulos para virem a Cristo, declara que nele é depositada para todos uma abundância das bênçãos das quais eles são destituídos. E, no entanto, se alguém optar por estender o significado mais além, não haverá absurdo ao fazê-lo; ou melhor, ele concordará melhor com o tom do discurso, que todos os pais, desde o começo do mundo, retiraram de Cristo todos os dons que possuíram; porque a Lei foi dada por Moisés, mas eles não puderam obter a graça por ela. Mas eu já disse o que me parece ser o ponto de vista preferível; ou seja, que João aqui nos compara com os patriarcas, de modo a aumentar, por meios de comparação, o que nos tem sido dado.

“E, graça sobre graça”. De que maneira Agostinho explica essa passagem é bem conhecido - que todas as bênçãos que Deus nos concede de tempos em tempos, e para a extensão da vida eterna, não são concedidas como recompensa devido aos nossos méritos, mas que procede de pura liberalidade com que Deus assim recompensa primeiro com a graça, e nos coroa com os seus dons. Isto é piedosa e criteriosamente dito, mas nada tem a ver com a presente passagem. O significado seria mais simples se você tivesse que tomar a palavra “porque” do início do versículo, comparativamente,

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como significando, que sejam quais forem as graças que Deus nos concede, procede igualmente da mesma fonte (Cristo). Isto pode ser também tomado como apontando a causa final, pela qual agora recebemos a graça, para que Deus possa um dia completar a obra da nossa salvação, que será o cumprimento da graça. De minha parte, concordo com a opinião daqueles que dizem que são regados com as graças derramadas a partir de Cristo; porque o que recebemos de Cristo ele não derrama sobre nós como sendo Deus, mas o Pai, comunicou a Ele o que deveria fluir para nós como através de um canal. Esta é a unção com o qual ele foi ungido, para que pudesse nos ungir com a mesma. Por isso, também, que é chamado Cristo (o Ungido), e nós somos chamados cristãos.

A Graça e a Verdade que Vieram por Jesus Cristo - Comentário de João 1.17

“Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.” (João 1.17)

“Porque a lei foi dada por Moisés”. Esta é uma antecipação, pela qual João encontra uma objeção que era provável que surgiria porque em tão alta conta Moisés era estimado pelos judeus que dificilmente poderiam receber qualquer coisa que diferisse dele. Por isso, o evangelista mostra quão longe estava de ser inferior ao ministério de Moisés o poder de Cristo. Ao mesmo tempo, esta comparação não traz pequeno brilho

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ao poder de Cristo; porque enquanto a maior deferência possível era proferida a Moisés pelos judeus, o Evangelista lembra-lhes que o que ele trouxe era extremamente pequeno, quando comparado com a graça de Cristo. Isto teria sido, caso contrário, um grande obstáculo, que eles esperavam receber através da Lei o que podemos obter somente através de Cristo.

Mas é preciso atentar para a antítese, quando contrapõe a lei com graça e a verdade; porque seu significado é que a lei carecia de ambos. A palavra Verdade denota, na minha opinião, um estado fixo e permanente das coisas. Pela palavra Graça eu entendo o cumprimento espiritual dessas coisas, a letra nua que estava contida na Lei. E destas duas palavras pode ser suposto que se referem à mesma coisa, por uma figura bem conhecida de expressão, (hypallage;) como se ele tivesse dito, que a graça, na qual a verdade da lei consiste, foi longamente exibida em Cristo. Mas, como o significado será, em nenhum grau afetado, é de nenhuma importância se você os vê como unidos ou como distintos. Isto pelo menos, é certo, que o evangelista quer dizer que a Lei não era nada mais do que uma imagem sombria de bênçãos espirituais, senão que elas são realmente encontradas em Cristo; de onde se segue que, se você separar a Lei de Cristo, continua a nada haver nela, mas figuras vazias (especialmente as tipologias relativas a Cristo e que se cumpriram nele). Por esta razão, Paulo diz que as sombras estavam na lei, mas o corpo está em Cristo (Colossenses 2.17).

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E, ainda, não se deve supor que nada foi exibido pela Lei de forma a enganar; pois Cristo é a alma que dá vida ao que teria estado morto sob a lei. Mas aqui uma questão totalmente diferente nos encontra, ou seja, o que a lei poderia fazer por si mesma e sem Cristo; e o Evangelista afirma que nada permanentemente valioso é encontrado na mesma até que cheguemos a Cristo. Esta verdade consiste em nossa obtenção por meio de Cristo daquela graça que a lei não poderia em qualquer sentido outorgar; e, portanto, tomo a palavra graça no sentido geral, como denotando tanto o perdão incondicional dos pecados, e a renovação do coração. Por enquanto, o evangelista aponta brevemente a distinção entre o Antigo e o Novo Testamento, (o que é mais detalhadamente descrito em Jeremias 31.31), ele inclui nesta palavra tudo o que se relaciona com a justiça espiritual. Agora a justiça consiste em duas partes; em primeiro lugar, que Deus está reconciliado conosco pela graça livre, não nos imputando os nossos pecados; e, por outro, que ele tem gravado sua lei nos nossos corações, e, pelo seu Espírito, renovado os homens na obediência interior a ele; a partir do que torna-se evidente que a Lei é incorreta e falsamente exposta, se há alguém cuja atenção está fixada exclusivamente na Lei, ou quem por ela é impedido de vir a Cristo.

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Deus Só pode Ser Conhecido em Jesus Cristo - Comentário de João 1.18

“Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.” (João 1.18)

“Nenhum homem jamais viu a Deus”. Isto é adicionado apropriadamente para confirmar a afirmação anterior; porque o conhecimento de Deus é a porta pela qual entramos no gozo de todas as bênçãos; e uma vez que é por Cristo que Deus se dá a conhecer a nós, portanto, também se segue que devemos buscar todas as coisas a partir de Cristo. Esta doutrina deveria ser cuidadosamente observada. Nenhuma afirmação parece ser mais comum do que esta, que cada um de nós recebe, de acordo com a medida da sua fé, o que Deus nos oferece; mas são poucos os que pensam que devemos trazer o vaso da fé e do conhecimento de Deus com o qual somos enchidos.

Quando ele diz que nenhum homem jamais viu a Deus, não devemos entender que ele se refere à percepção externa do olho corporal; porque ele se refere ao fato de que como Deus habita em luz inacessível (1 Timóteo 6.16), ele não pode ser conhecido, senão em Cristo, que é a sua imagem viva. Esta passagem é geralmente assim explicada que, como a majestade de Deus está escondida dentro de si mesmo, ele nunca poderia ser compreendido, exceto na medida em que ele se revelou em Cristo; e, portanto, que era somente em Cristo que Deus foi conhecido anteriormente aos pais. Mas eu

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prefiro pensar que o Evangelista segue aqui a comparação já citada, ou seja, quão muito melhor é a nossa condição do que a dos pais, porque Deus, que antigamente era escondido em sua glória secreta, agora pode-se dizer que se tornara visível; pois certamente quando Cristo é chamado de imagem viva de Deus (Hebreus 1.3), isto se refere ao peculiar privilégio do Novo Testamento. Da mesma forma, o evangelista descreve, nesta passagem, algo novo e incomum, quando ele diz: que o Filho unigênito, que estava no seio do Pai, tem feito conhecido a nós o que antigamente era escondido. Ele, portanto, amplia a manifestação de Deus, que foi trazida a nós pelo evangelho, em que nos distinguimos dos pais, e mostra que somos superiores a eles; como também Paulo explica mais detalhadamente no terceiro e quarto capítulos da Segunda Epístola aos Coríntios. Porque ele sustenta que não há mais nenhum véu agora, como existia sob a Lei, mas que Deus é abertamente contemplado na face de Cristo.

Se se pensar que é irrazoável que os pais são privados do conhecimento de Deus, o qual os profetas tinham diariamente apresentado diante deles, eu respondo, que o que é atribuído a nós não é simplesmente ou absolutamente negado a eles, mas que é feita uma comparação entre o menor e o maior, como se diz; porque eles não tinham nada mais do que pequenas faíscas da verdadeira luz, do brilho total, que agora brilha diariamente em torno de nós. Se se objetar, que, naquela época, também Deus foi visto face a face (Gênesis 32.30; Deuteronômio 34.10), eu mantenho que essa visão não é

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de todo para ser comparada com a nossa; senão como Deus estava acostumado naquele tempo a se exibir obscuramente, e, por assim dizer, à distância, aqueles a quem ele tinha mais claramente se revelado dizem que o viram face a face. Eles dizem assim com referência à sua própria época; mas eles não viram Deus em qualquer outra forma do que envolvido em muitas figuras e cerimônias. Aquela visão que Moisés obteve na montanha foi notável e mais excelente do que quase todo o resto; e Deus ainda declara expressamente, “não poderás ver a minha face, somente verás as minhas costas (Êxodo 33.23), por qual metáfora ele mostra que o tempo para uma completa e clara revelação ainda não havia chegado. Também deve ser observado que, quando os pais desejavam ver a Deus, eles sempre voltaram seus olhos para Cristo. Eu não somente quero dizer que eles contemplaram a Deus em seu Logos eterno, mas também que eles participaram, com toda a sua mente e com toda o seu coração, para a manifestação prometida de Cristo. Por esta razão, acharemos o que Cristo disse depois, “Abraão viu o meu dia” (João 8.56) e o que é subordinado não é contraditório. Isto é portanto, um princípio fixo, que Deus, que antes era invisível, tem agora se feito visível em Cristo.

Quando ele diz que o Filho estava no seio do Pai, a metáfora é emprestada de homens, dos quais se diz receberem no seu seio aqueles aos quais eles comunicam todos os seus segredos. O seio é o assento do conselho. Ele, portanto, mostra que o Filho estava familiarizado com os segredos mais escondidos de seu Pai, a fim de nos

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informar que temos o seio de Deus, por assim dizer, colocado aberto para nós no Evangelho.

Orar Para Obter Conhecimento e Crescimento Espiritual - Comentário de Colossenses 1.9

“Por esta razão, também nós, desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós e de pedir que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento espiritual;” (Colossenses 1.9) “Por esta razão, nós também”. Como ele já havia mostrado antes seu afeto por eles em suas ações de graças, por isso ele agora o mostra ainda mais na sinceridade de suas orações em favor deles. E, seguramente, quanto mais que a graça de Deus é visível em alguém, devemos na mesma proporção especialmente amá-lo e estimá-lo, e estarmos interessados, pelo seu bem estar. Mas pelo que ele ora em favor dos colossenses? Para que eles possam conhecer a Deus mais plenamente; porque ele indiretamente lhes afirma, que algo ainda está faltando neles, para que ele possa preparar o caminho para lhes transmitir instruções, e se assegurar da sua atenção para uma declaração mais completa da doutrina. Porque aqueles que pensam que já alcançaram tudo o que é digno de ser conhecido, desprezam e desdenham de tudo o mais que lhes é apresentado. Por isso, ele remove dos

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colossenses uma impressão desta natureza, para que isso não fosse um empecilho no caminho do seu progresso, e fazendo provisão para que o que havia sido iniciado neles recebesse um acabamento adicional. Mas qual é o conhecimento que ele deseja para eles? O conhecimento da vontade divina, pelo qual ele deixa de lado todas as invenções dos homens, e todas as especulações que estão em desacordo com a palavra de Deus. Porque sua vontade não deve ser procurada em qualquer outro lugar, senão em sua palavra.

Ele acrescenta – “em toda a sabedoria”; pela qual ele dá a entender que a vontade de Deus, da qual ele havia feito menção, era a única regra de conhecimento correto. Porque, se alguém está desejoso simplesmente de saber as coisas que aprouve a Deus revelar, este é o homem que sabe com precisão o que é ser verdadeiramente sábio. Se desejamos algo além disso, isto será nada mais do que ser insensato, por não se manter dentro dos devidos limites. Pela palavra συνέσεως – que tenhamos prudência, eu entendo – aquele discernimento que procede da inteligência. Ambos são chamados de espirituais por Paulo, a saber, a sabedoria e a inteligência (ou prudência) porque não são atingidos de qualquer outra forma, senão apenas pela orientação do Espírito Santo. “Porque o homem natural não percebe as coisas que são de Deus.” (1 Coríntios 2.14).

Enquanto os homens são dirigidos por suas próprias percepções carnais, eles também têm a sua própria

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sabedoria, mas é de tal natureza que é mera vaidade, por mais que possam se deleitar nisto. Vamos, no entanto, ter em mente, que a única sabedoria que é louvada por Paulo está compreendida na vontade de Deus.

O Viver Digno de Deus - Comentário de Colossenses 1.10

“a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus;” (Colossenses 1.10)

“A fim de viverdes de modo digno de Deus”. Em primeiro lugar, ele ensina, qual é a finalidade do entendimento espiritual, e com que propósito devemos fazer proficiência na escola de Deus - para que possamos caminhar de modo digno de Deus, isto é, que possa se manifestar em nossa vida, que nós não temos sido ensinados em vão por Deus. Quem quer que seja que não direcione seus esforços para esse objetivo, pode, eventualmente, trabalhar e se esforçar muito, mas nada fará melhor do que vagar em voltas intermináveis, sem fazer qualquer progresso. Mais adiante, ele nos adverte que, se quisermos andar de maneira digna de Deus, devemos acima de tudo tomar cuidado para que regulemos todo o nosso curso de vida de acordo com a vontade de Deus, renunciando à nossa própria

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compreensão, e despedindo-nos de todas as inclinações da nossa carne.

Isso também se confirma mais uma vez ao dizer – “para toda a obediência”, ou, como geralmente dizem, “para o seu inteiro agrado”. Por isso, se for perguntado, que tipo de vida é digna de Deus, vamos sempre ter em vista essa definição de Paulo - que isto é uma vida como, deixando as opiniões dos homens, e deixando, em suma, toda inclinação carnal, estarmos em sujeição a Deus. A isto seguem as boas obras, que são os frutos que Deus exige de nós. “Crescendo no pleno conhecimento de Deus”. Ele mais uma vez repete, que eles não têm chegado a tal perfeição, que não lhes seja necessário um maior crescimento, e assim por sua admoestação os prepara, e com isto os conduz pela mão, para uma aspiração por proficiência, para que possam se mostrar prontos para ouvir, e aptos para aprender. O que é dito aqui aos colossenses, que todos os crentes considerem como sendo dito a si mesmos, e tirem disso uma exortação comum que sempre devemos fazer progressos na doutrina da piedade até a morte.

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Fortalecidos com Poder Espiritual - Comentário de Colossenses 1.11

“sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua glória, em toda a perseverança e longanimidade; com alegria,” (Col 1.11)

“Sendo fortalecidos com todo o poder”. Como ele já havia orado antes para que eles pudessem ter tanto um bom entendimento espiritual, quanto o uso correto do mesmo, assim também agora ele ora para que tenham coragem e constância. Desta forma, coloca em suas mentes a convicção de sua fraqueza, pois ele diz, que eles não serão fortes, exceto com a ajuda do Senhor; e não somente isso, mas com a visão de ampliar o exercício da graça, acrescenta, “de acordo com o poder da sua glória”. Assim como está tão longe que alguém seja capaz de ficar de pé, através da dependência de sua própria força, o poder do próprio Deus mostra-se distintamente em ajudar a nossa fraqueza. Finalmente, ele mostra em que é que a força dos crentes deve ser exibida - em toda a paciência e longanimidade. Pois eles são constantemente, enquanto neste mundo, exercitados com a cruz, e milhares de tentações se apresentam diariamente, de modo a pressioná-los para baixo, e eles nada veem de tudo o que Deus tem prometido. Devem, portanto, armar-se com uma paciência admirável, da qual Isaías diz que deve ser obtida “na esperança e na confiança, estará a vossa força” (Isaías 30.15). É preferível conectar com esta frase a cláusula, “com alegria”. Pois, embora a outra leitura seja mais

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comumente encontrada nas versões latinas, isso está mais de acordo com os manuscritos gregos, e, sem dúvida, a paciência não é sustentada, exceto em vivacidade de espírito, e nunca será mantida com firmeza por qualquer um que não esteja satisfeito com sua condição.

O Que Resta das Aflições de Cristo? - Comentário de Colossenses 1.24

“Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja;” (Colossenses 1.24)

“Agora me regozijo”. Ele tinha previamente reivindicado para si mesmo autoridade em razão da sua vocação. Agora, porém, ele defende a honra de seu apostolado de ser prejudicada pelas detrações e perseguições que ele sofreu por causa do evangelho. Porque Satanás, também, perversamente transforma essas coisas em ocasiões para representar publicamente os servos de Deus, da forma mais desprezível. Mais adiante, ele os encoraja com o seu exemplo para não ficarem intimidados por perseguições, e expõe a eles a visão do seu zelo. Mais ainda, ele dá provas de sua afeição para com eles por nenhuma obrigação formal, quando ele declara que carregava de bom grado por causa deles as aflições que suportava. "Mas de onde", alguém vai perguntar: "surge esta

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alegria?" De ver os frutos que dela brotavam. "A aflição que eu suportei por vocês é agradável para mim, porque eu não sofri em vão." Da mesma forma, em sua Primeira Epístola aos Tessalonicenses, ele diz, que se alegrou em todas as necessidades e aflições, com base no que tinha ouvido falar a respeito de sua fé (1 Tessalonicenses 3. 6,7).

“E preencher o que resta das aflições de Cristo”. A conjunção “e”, eu entendo a razão pela qual ele atribui estar alegre em seus sofrimentos, porque ela reside em ser um parceiro de Cristo, e nada mais feliz pode ser desejado do que esta parceria. Ele também traz uma consolação comum a todos os piedosos, que em todas as tribulações, especialmente na medida em que eles sofrem qualquer coisa pela causa do evangelho, eles são participantes da cruz de Cristo, para que possam desfrutar de comunhão com ele em uma ressurreição abençoada.

Mais ainda, ele declara que tem preenchido o que está faltando nas aflições de Cristo. Porque, como ele fala em Romanos 8.29: “Aos que Deus elegeu, ele também predestinou para serem conformes à imagem de Cristo, para que ele seja o primogênito entre os irmãos.”

Ainda, sabemos que há uma tão grande unidade entre Cristo e seus membros, que o nome de Cristo, por vezes, inclui todo o corpo, como em 1 Coríntios. 12.12, porque enquanto discursava em relação à Igreja, ele chega à conclusão de que, em Cristo, sucede o mesmo que num corpo humano. Como, portanto, Cristo sofreu uma vez

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em sua própria pessoa, ele sofre ainda diariamente nos seus membros, e desta forma são preenchidos esses sofrimentos que o Pai designou para seu corpo por seu decreto. Aqui temos uma segunda consideração, para guardar as nossas mentes e confortá-las nas aflições, que estão, assim, fixadas e determinadas pela providência de Deus, que devemos estar conformados com Cristo na perseverança da cruz, e que a comunhão que temos com ele estende-se a isso também.

Ele acrescenta, ainda, uma terceira razão - que seus sofrimentos são vantajosos, e não apenas para alguns, mas para toda a Igreja. Ele havia dito anteriormente que ele sofreu em favor dos Colossenses, e declara agora ainda mais, que o benefício se estende a toda a Igreja. Esta vantagem foi mencionada em Filipenses 1.12. O que poderia ser mais claro, menos forçado, ou mais simples, do que esta exposição, que Paulo está alegre na perseguição, porque ele considera, de acordo com o que ele escreve em outro lugar, que devemos carregar conosco em nosso corpo a mortificação de Cristo, para que a sua vida se manifeste em nós? (2 Coríntios 4.10).

Ele diz também em Timóteo: “Se sofrermos com Ele, também reinaremos com ele: se morrermos com ele, também viveremos com ele (2 Timóteo 2.11,12), e, portanto, a questão será abençoada e gloriosa. Ainda, ele considera que não se deve recusar a condição que Deus determinou para a sua Igreja, a saber, que os membros de Cristo possam ter uma correspondência adequada com a cabeça; e, em terceiro lugar, que as aflições devem

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ser alegremente suportadas, na medida em que são proveitosas para todos os piedosos, e promovem o bem-estar de toda a Igreja, por adornar a doutrina do evangelho.

Traduzido, reduzido e adaptado por Silvio Dutra.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino vai expor adiante no comentário desta passagem de Colossenses, que os sofrimentos dos crentes não têm qualquer efeito expiatório do pecado, ou contribuem para a justificação dos pecadores, porque isto é devido somente ao sacrifício, sofrimentos e mérito de Jesus Cristo).

Consequência de Não Ouvir e Obedecer a Deus - Comentário de Levítico 26.14

“Mas, se me não ouvirdes e não cumprirdes todos estes mandamentos;” (Lev 26.14) (Nota do Pr Silvio Dutra: Na leitura de todos os comentários de Calvino que traduzimos do texto de Levítico 26.14-46, que trata das maldições previstas na Lei de Moisés para o povo de Israel em caso de desobediência à Aliança que Deus fizera com eles, deve ser levado em consideração que os juízos descritos apesar de serem inerentes àquela Antiga Aliança, descrevem de maneira muito vívida qual é o caráter de Deus e da Sua justiça, e o modo como Ele tratou com o

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Seu próprio povo de Israel para lhes conduzir na obediência à Aliança, de modo que pudesse ser a nação por meio da qual o Messias se manifestaria ao mundo na plenitude do tempo.)

Até agora um convite amável foi exposto perante o povo em forma de promessas, em Lev 26.1-13, onde são descritas as bênçãos decorrentes da obediência à Lei, a fim de que a observância da Lei pudesse ser realizada de modo agradável; uma vez que, como já vimos, a nossa obediência é, então, apenas aprovada por Deus quando obedecemos voluntariamente. Mas, na medida em que a lentidão da nossa carne tem necessidade de ser estimulada, ameaças também são adicionadas para inspirar temor, e de qualquer forma para remover o que deveria ter sido realizado de forma espontânea. Pode parecer, de fato, que isto pode ser portanto inferido, que as ameaças são absurdamente equivocadas quando aplicadas para produzir a obediência à Lei, a qual deveria ser voluntária; pois aquele que é compelido pelo medo nunca vai amar a Deus; e este é o ponto principal na Lei. Mas o que eu já mostrei, vai em alguma medida servir para resolver esta dificuldade, a saber, que a Lei é mortal para os transgressores, porque os mantém sob aquela condenação da qual gostariam de ser libertados por presunções vãs; enquanto as ameaças também são úteis para os filhos de Deus para um propósito diferente, para que eles possam estar preparados para temer a Deus de todo coração, antes de serem regenerados, e também para que, após a sua regeneração, seus afetos corruptos possam ser diariamente subjugados. Porque embora

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desejem sinceramente dedicar-se completamente a Deus, eles ainda têm de lidar continuamente com os pecados que remanescem na carne. Assim, pois, embora o objeto direto das ameaças seja para alarmar os reprovados, ainda que igualmente se aplique aos crentes, com a finalidade de acelerar a sua lentidão, considerando como eles não são ainda completamente regenerados, senão que ainda se acham sobrecarregados com os resquícios do pecado.

Consequências da Rejeição dos Mandamentos de Deus - Comentário de Levítico 26.15-17

Lev 26:15 se rejeitardes os meus estatutos, e a vossa alma se aborrecer dos meus juízos, a ponto de não cumprir todos os meus mandamentos, e violardes a minha aliança, Lev 26:16 então, eu vos farei isto: porei sobre vós terror, a tísica e a febre ardente, que fazem desaparecer o lustre dos olhos e definhar a vida; e semeareis debalde a vossa semente, porque os vossos inimigos a comerão. Lev 26:17 Voltar-me-ei contra vós outros, e sereis feridos diante de vossos inimigos; os que vos aborrecerem assenhorear-se-ão de vós e fugireis, sem ninguém vos perseguir. “E se desprezardes os meus estatutos”. Isso parece se aplicar apenas aos apóstatas ímpios e depravados, que deliberadamente se rebelassem contra o serviço e

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adoração a Deus, porque se uma pessoa cai em fraqueza, e ofende com leviandade e falta de consideração, ela não dirá que rejeitou a lei de Deus, ou que invalidou a Sua aliança. E, certamente, é provável que Deus intencionalmente falou de rebelião grosseira, que não poderia ser atenuada com o pretexto de erro. Ainda assim, deve-se ter em mente que todos os transgressores, independentemente de terem violado a lei, no todo ou em parte, são colocados sob a maldição. Mas Deus deveria lembrar o seu povo em boa hora a que ponto procederiam finalmente aqueles que assumem a liberdade de pecar; e também de que fonte surgem todas as transgressões. Porque, apesar de todo aquele que se desvia do caminho reto, para o pecado, não repudiar completamente ou abominar a Lei, mas ainda assim todos os pecados carregam o desprezo da Lei, e tendem a quebrar o pacto de Deus. Ele com justiça, portanto, os denuncia como violadores do pacto, e desprezadores orgulhosos, a menos que obedeçam os Seus mandamentos, e, em primeiro lugar, Ele ameaça que lhes destruirá com "terror e tísica”, e outras doenças; e em seguida, adiciona calamidades externas, tais como a escassez de trigo, invasões violentas de inimigos, e o saque de seus bens; do que será mais conveniente falar mais detalhadamente ao expor a passagem paralela em Deuteronômio.

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A Desobediência nos Sujeita aos Juízos de Deus - Comentário de Levítico 26.18-20

Lev 26:18 Se ainda assim com isto não me ouvirdes, tornarei a castigar-vos sete vezes mais por causa dos vossos pecados. Lev 26:19 Quebrantarei a soberba da vossa força e vos farei que os céus sejam como ferro e a vossa terra, como bronze. Lev 26:20 Debalde se gastará a vossa força; a vossa terra não dará a sua messe, e as árvores da terra não darão o seu fruto. “Se ainda assim com isto não me ouvirdes”. A gradação das penas, que é aqui mencionada, mostra que elas são tão temperadas pela bondade de Deus, que Ele apenas castiga levemente aqueles cuja insensatez ou dureza de coração Ele não tem ainda provado; mas quando a obstinação no pecado é acrescentada, a severidade das penas são igualmente aumentadas; e justamente porque aqueles que, sendo admoestados, não têm o cuidado para se arrependerem, encomendam uma guerra aberta contra Deus. Por isso, quanto mais moderadamente Ele lida conosco, mais atentos devemos ser às suas correções, a fim de que mesmo os golpes mais suaves, com os quais Ele, em Sua bondade amacia e tempera, possam ser o suficiente. Paulo diz que os hipócritas amontoarão para si um tesouro de maior vingança, se eles se aproveitarem do momento de Sua paciência para continuarem impassíveis (Romanos 2.4,5); porque aqueles que não se arrependem, quando admoestados

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por castigos leves, são menos desculpáveis. Por isso vamos dar atenção a essa exortação de Davi: "Não sejais como o cavalo ou a mula, sem entendimento, os quais com freios e cabrestos são dominados; de outra sorte não te obedecem. Muito sofrimento terá de curtir o ímpio, mas o que confia no Senhor, a misericórdia o assistirá." (Salmo 32.9,10). Em suma, tão logo Deus tenha começado a estender a mão para nos afligir, há um remédio pelo qual ele pode ser apaziguado, isto é, a nossa docilidade. Seria mais prudente no anteciparmos a Ele, e voltarmos a Ele de nossa própria vontade, embora Ele mantenha a punição; mas quando somos afligidos, sem proveito, isto é um pecado de maldade obstinada. Ele ameaça, portanto, que a menos que se arrependam quando castigados com a palmatória, ele usará a vara para corrigi-los. Quando Ele diz: "Eu vou castigar-vos sete vezes mais," Ele não pretende definir o número exato, mas, de acordo com a frase comum das Escrituras, usa o número sete, para significar amplificação. No versículo seguinte, Ele mostra que há uma justa causa para a Sua ação ser mais severa, porque eles não podem ser subjugados, exceto por meios violentos; pois, embora a palavra גאון, geon, nem sempre é usada num mau sentido, ainda, nesta passagem, significa que eles são desobedientes, inchados de orgulho pelo seu poder; pois, como Moisés diz em outro lugar, Israel "engordou e deu coices" contra Deus, assim como cavalos ficam impacientes por serem superalimentados. Ele, portanto, se refere à sua obstinação, que lhes tornou mais endurecidos, embora Deus lhes tivesse poupado. "Quebrantarei a soberba da sua força". Porque a

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prosperidade gera segurança, na qual os homens teimosos aplicam a sua força contra os flagelos de Deus.

As Más Consequências da Falta de Arrependimento - Comentário de Levítico 26.21-24

Lev 26:21 E, se andardes contrariamente para comigo e não me quiserdes ouvir, trarei sobre vós pragas sete vezes mais, segundo os vossos pecados. Lev 26:22 Porque enviarei para o meio de vós as feras do campo, as quais vos desfilharão, e acabarão com o vosso gado, e vos reduzirão a poucos; e os vossos caminhos se tornarão desertos. Lev 26:23 Se ainda com isto não vos corrigirdes para volverdes a mim, porém andardes contrariamente comigo, Lev 26:24 eu também serei contrário a vós outros e eu mesmo vos ferirei sete vezes mais por causa dos vossos pecados. “E, se andardes contrariamente para comigo”. Tradutores dão várias acepções à palavra קרי, Keri – “contrariamente”. O Caldeu a traduz como dureza, como se fosse o seu propósito lutar contra Deus. Jerônimo a toma como “ex adverso mihi” (em oposição a mim), mas, desde que a palavra significa uma ocorrência acidental, ou contingência, esse sentido, pareceu-me muito mais adequado. "Andar em aventuras" (fortuito) com Deus, portanto, é equivalente a passar por seus juízos, com os

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olhos fechados; e ainda assim atribuir insensatamente as suas adversidades ao destino, e, portanto, não se humilhar sob Sua poderosa mão; porque daí surge obstinação invencível, quando o pecador imagina que tudo o que ele sofre acontece por acaso. Portanto Jeremias protesta contra os judeus em uma repreensão severa, porque eles pensavam que o mal e o bem não procedem da ordenança e do decreto de Deus (Lamentações 3.38) porque daí se origina uma loucura brutal, para que os homens ímpios corram com todo seu poder para a sua própria destruição. Disto decorre então, que, se os homens não dão a devida atenção aos juízos de Deus, senão que se lançam adiante como animais furiosos, Seu encontro com eles será, por assim dizer, fortuito, quando ele lhes afligir indiscriminadamente, da direita para a esquerda, ou do alto para baixo. Isto, portanto, o pecador longamente obtém por sua obstinação insensata, que, dominado por suas aflições múltiplas, ele não vê fim para seus problemas. Enquanto isso, não há dúvida de que Moisés repreende a obstinação férrea do povo, como declara Davi, “para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro, também íntegro.” (Salmo 18.25,26). Ele finalmente aponta a fonte de obstinação, quando o pecador é intoxicado por sua estupidez em desprezar a Deus, enquanto ele afasta de si mesmo, tanto quanto possível, o sentido da Sua ira. Vamos aprender, então, a retirar os nossos pensamentos de especulações vagas para a consideração da mão de Deus em todas as punições que ele inflige; porque daí surgirá o reconhecimento da nossa culpa, o qual pode levar ao arrependimento. Outra coisa que ocorrerá a qual

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Isaías parece ter tomado a partir desta passagem, é que a ira de Deus nunca será afastada; senão que, quando pensarmos que fomos absolvidos, Sua mão ainda estará estendida (Isaías 9.12).

Razão das Derrotas de Israel nas Guerras - Comentário de Levítico 26.25

“Trarei sobre vós a espada vingadora da minha aliança; e, então, quando vos ajuntardes nas vossas cidades, enviarei a peste para o meio de vós, e sereis entregues na mão do inimigo.” (Levítico 26.25)

“E trarei a espada sobre vós”. Não há dúvida de que Ele está se referindo às espadas hostis de todas as nações, pelas quais os israelitas seriam afligidos; e ensina que todo aquele que trouxesse tribulações e perplexidades sobre eles eram apenas os agentes executores de Sua vingança; assim como Ele constantemente declara pelos profetas que Ele era o líder dos inimigos do povo, e que tanto os assírios e caldeus lutaram contra Israel sob o Seu comando. Ele chama a Assíria de o machado, e a vara da Sua ira que Ele empunha em Sua mão (Isaías 10.15) e Nabucodonosor Seu soldado contratado. Ele diz que iria chamar os egípcios com um silvo, e que iria despertar os caldeus, pelo som de Sua trombeta (Isaías 7.20,18). Mas uma vez que este ponto fosse suficientemente conhecido, não haveria ocasião para novas provas. A suma é, que todas estas guerras são provocadas por Seu

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comando, e que os soldados estão armados conforme a Sua vontade, e são fortes em Sua força. Daí segue-se que Ele tem inúmeras forças por cuja mão pode executar Sua vingança quando e como Lhe agrada. Depois, portanto, quando os israelitas foram perseguidos, e até mesmo cruelmente oprimidos por seus inimigos, a verdade de Deus se manifestou em todas aquelas derrotas contínuas; ao passo que, a partir de Sua grande severidade, podemos concluir quão grosseira foi a perversidade da conduta dos israelitas.

O Caráter Gradativo das Ameaças e Maldições da Lei de Moisés - Comentário de Levítico 26.26-28

Lev 26:26 Quando eu vos tirar o sustento do pão, dez mulheres cozerão o vosso pão num só forno e vo-lo entregarão por peso; comereis, porém não vos fartareis. Lev 26:27 Se ainda com isto me não ouvirdes e andardes contrariamente comigo,

Lev 26:28 eu também, com furor, serei contrário a vós outros e vos castigarei sete vezes mais por causa dos vossos pecados.

“E quando eu vos tirar o sustento do pão”. Com estas palavras Deus afirma que, embora Ele não deveria puni-los com esterilidade da terra, ainda assim Ele estava preparado com outros meios para destruí-los pela fome. Vamos ver daqui em diante, de fato, que, quando Deus

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se indignou muito, a terra de certa maneira fechou suas entranhas, de modo a não produzir mantimento; e o céu também se fechou para não fertilizá-la com o orvalho ou chuva. Em uma palavra, todas intempéries e infertilidade do solo são um sinal da maldição de Deus; mas agora ele vai mais longe, porque, embora não haja escassez de alimentos, ainda devem sofrer com a fome, quando Ele tirasse as qualidades nutritivas do seu pão. Esta maldição confirma a instrução que temos visto em outros lugares, que o homem não vive somente de pão, mas por toda ordem de Deus, como se a eficácia contida no pão saísse da Sua boca (Deuteronômio 8.3). E certamente uma coisa inanimada não poderia dar vigor aos nossos sentidos, exceto pela ordem secreta de Deus. Ele emprega uma comparação muito apropriada, chamando o sustento de pão, em que a força do homem é revigorada - "o cajado" como vemos apoiando o homem velho e fraco, quando de outra forma teria cambaleado e caído. Deus diz, então, que está em Seu poder quebrar esse cajado, porque o pão somente encheria seus estômagos sem revigorar a sua força.

Ezequiel emprestou de Moisés esta figura, da qual ele faz uso em vários lugares, (Ezequiel 4.16; 5.16 e 14.13), embora ele não alerte para os dois tipos de punição, como um outro profeta, quando diz "Tendes semeado muito e recolhido pouco; comeis, mas não chega para fartar-vos; bebeis, mas não dá para saciar-vos; vestis-vos, mas ninguém se aquece; e o que recebe salário, recebe-o para pô-lo num saquitel furado.", e ainda, "Esperastes o muito, e eis que veio a ser pouco, e esse pouco, quando

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o trouxestes para casa, eu com um assopro o dissipei;" (Ageu 1.6, 9) porque ele aponta a escassez de alimentos como um dos flagelos de Deus, e a incapacidade para ter proveito da sua abundância; e com isto Miqueias também está de acordo, pois disse: "Tu comerás, mas não ficarás satisfeito", e ele acrescenta, " Semearás; contudo, não segarás; pisarás a azeitona, porém não te ungirás com azeite; pisarás a vindima; no entanto, não lhe beberás o vinho." (Miqueias 6.14,15).

Moisés, porém, a fim de que a maldição possa ser mais aparente, diz que haverá abundância de pão; e também que não haverá falha no trabalho de amassar e assar; porque dez mulheres viriam a um forno juntas, para que pudessem manter o trabalho do preparo de pães em dia. Ele afirma, portanto, que haveria abundância em suas mãos e, no entanto, quando eles estivessem cheios, eles não seriam saciados.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Isto é muito comum e acontece com pessoas que não andam de modo fiel com Deus, pois apesar da muita abundância de bens, todavia suas almas são definhadas por Ele, de modo que não encontram satisfação no que possuem.)

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Ameaças e Maldições da Lei de Moisés - Comentário de Levítico 26.29-33

Lev 26:29 Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas. Lev 26:30 Destruirei os vossos altos, e desfarei as vossas imagens do sol, e lançarei o vosso cadáver sobre o cadáver dos vossos deuses; a minha alma se aborrecerá de vós. Lev 26:31 Reduzirei as vossas cidades a deserto, e assolarei os vossos santuários, e não aspirarei o vosso aroma agradável. Lev 26:32 Assolarei a terra, e se espantarão disso os vossos inimigos que nela morarem. Lev 26:33 Espalhar-vos-ei por entre as nações e desembainharei a espada atrás de vós; a vossa terra será assolada, e as vossas cidades serão desertas. “E comereis a carne de vossos filhos”. Este flagelo é ainda mais grave e terrível (do que os outros) e no entanto, sabemos que os israelitas foram feridos com ele mais de uma vez. Este ato selvagem seria incrível; mas aprendemos disto quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo, quando os homens, por adicionarem crime a crime, não deixam de provocar a Sua ira. Jeremias menciona este caso monstruoso entre outros: “As mãos das mulheres outrora compassivas cozeram seus próprios filhos; estes lhes serviram de alimento na destruição da filha do meu povo.” (Lamentações 4.10) e, portanto, não sem motivo, ele lamenta que isto não tinha sido feito em outro lugar, que as mulheres devessem devorar os filhos

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que elas próprias haviam gerado (Lamentações 2.20). E no último cerco de Jerusalém, que na plenitude dos seus crimes foi, por assim dizer, o ato final da vingança de Deus, as pessoas ímpíasque estavam desesperadas para se manterem vivas, comumente partilharam deste alimento profano. Quando Ele voltou a declarar que Ele "lançaria o cadáver deles sobre o cadáver dos seus ídolos" Ele revela pela própria natureza do castigo que a impiedade deles seria manifesta; porque os apóstatas têm um prazer maravilhoso em suas superstições, até que Deus apareça abertamente como o vingador de Seu culto. Mas que os seus ídolos deveriam ser lançados em uma pilha comum com os ossos dos mortos, foi como se o dedo de Deus indicasse a Sua abominação daquela falsa adoração. E então, porque o seu último recurso estava em sacrifícios, Ele declara que eles não seriam de qualquer proveito para a expiação; porque, na expressão "e não aspirarei o vosso aroma agradável", Ele engloba todos os ritos expiatórios, pela confiança deles nestas coisas em que eram mais obstinados. Depois Ele ameaça com o banimento, bem como com a desolação da terra; por qual punição Ele deixou claro que eles estavam totalmente extraviados, como iremos ver novamente um pouco mais adiante. (Todos estes flagelos que haviam sido profetizados pelo Senhor através de Moisés viriam a se cumprir posteriormente na vida da nação de Israel, inclusive muitos séculos depois destas profecias relativas às ameaças e maldições da Lei, para o caso de

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descumprimento da aliança que Deus havia feito com Israel - nota do tradutor).

A Razão de Ser do Dia do Descanso - Comentário de Levítico 26.34-38

Lev 26:34 Então, a terra folgará nos seus sábados, todos os dias da sua assolação, e vós estareis na terra dos vossos inimigos; nesse tempo, a terra descansará e folgará nos seus sábados. Lev 26:35 Todos os dias da assolação descansará, porque não descansou nos vossos sábados, quando habitáveis nela. Lev 26:36 Quanto aos que de vós ficarem, eu lhes meterei no coração tal ansiedade, nas terras dos seus inimigos, que o ruído de uma folha movida os perseguirá; fugirão como quem foge da espada; e cairão sem ninguém os perseguir. Lev 26:37 Cairão uns sobre os outros como diante da espada, sem ninguém os perseguir; não podereis levantar-vos diante dos vossos inimigos. Lev 26:38 Perecereis entre as nações, e a terra dos vossos inimigos vos consumirá.

“Então a terra folgará nos seus sábados”. Para que a observância do sábado fosse mais honrada, Deus de certa maneira associou a terra nisto juntamente com o homem; para que a terra tivesse descanso a cada sete anos desde a sementeira e colheita, e todo o cultivo. Ele

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assim o designou para estimular os homens mais efetivamente a uma maior reverência para com o sábado. Deus agora amargamente repreende os israelitas porque eles não somente violaram o sábado, como também não permitiram que a terra desfrutasse de seu descanso prescrito; porque este repouso do sétimo ano não impediu a terra de gemer continuamente sob uma carga pesada enquanto alimentava tais habitantes ímpios. Ele diz, portanto, que a terra foi perturbada pela inquietude incessante, e, assim, foi privada de seus sábados legais, uma vez que trazia em seus ombros, por assim dizer, e não sem grande angústia, esses desprezadores ímpios de Deus. Além disso, porque toda a adoração a Deus às vezes é incluída por sinédoque na palavra Sabbath (Jeremias 17.21, Ezequiel 20.12), Ele administra indiretamente uma repreensão severa para o Seu povo, porque Ele não somente é defraudado do seu direito pela impiedade deles, senão que Ele não pode ser devidamente honrado na Terra Santa, a menos que Ele os expulse todos de lá; como se ele tivesse dito, que este era o único meio que sobraria para a afirmação da honra devida ao Seu nome, a saber, que a terra deveria ser limpa de seus habitantes, e reduzida à desolação.

(Deus criou a Terra para que fosse habitada em santidade. Por isso nosso Senhor Jesus Cristo diz que aqueles que são submissos a Deus (mansos) terão a Terra por Sua herança depois da sua segunda vinda. A Terra não foi criada para ser habitado em impiedade e por conseguinte, não para ser um caos, mas para ser o lar dos que amam a justiça, a verdade e paz - nota do tradutor).

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Aprendendo dos Juízos de Deus no Passado - Comentário de Levítico 26.39

“Aqueles que dentre vós ficarem serão consumidos pela sua iniquidade nas terras dos vossos inimigos e pela iniquidade de seus pais com eles serão consumidos.” (Levítico 26.39)

“Aqueles que dentre vós ficarem”. Esta é uma outra forma de vingança, que, embora eles pudessem sobreviver por um tempo, eles ainda deveriam ser gradualmente expulsos; e isso pode ser aplicado tanto àqueles que iriam para o cativeiro, e àqueles que permaneceriam na terra. Ele havia ameaçado antes que eles deveriam ser destruídos ou pela fome ou pela espada; mas agora para que eles não se vangloriassem de que haviam escapado, se não tivessem perecido por uma morte violenta, Ele pronuncia que eles também devem morrer por uma morte lenta; e Ele também declara a maneira dela, ou seja, que Ele vai encher seus corações com tremor, de modo que eles deveriam fugir quando ninguém os perseguisse (como Salomão também diz: em Provérbios 28.1), e o medo que teriam ao ouvir o som de uma caindo. Assim, Ele quer dizer que o ímpio não poderia estar melhor, embora livre de problemas externos, porque eles estariam aflitos internamente por tormentos ocultos; porque, embora a sua audácia possa prosseguir até à loucura, isto ainda não pode ser, senão que a sua má consciência deveria afligi-los continuamente. Seu esquecimento de Deus pode, por vezes brutalizá-los; ou melhor, eles podem buscar sacudir

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todo o sentimento; mas, depois de Deus lhes ter suportado estando eles assim brutalizados, Ele presentemente interrompe a sua letargia, e lhes apressa de modo que eles sejam os seus próprios carrascos. Esta passagem nos mostra que, quanto mais estreitos de coração os ímpios ficam no seu desprezo a Deus, mais fracos se tornam, assim como a tremer por sua própria sombra; e esta condição é muito mais infeliz do que ser cortado de um só golpe.

(O apóstolo Paulo nos ensina que tudo o que sucedeu a Israel no passado quanto aos juízos de Deus sobre o pecado, foi registrado nas páginas do Velho Testamento para nos servir de advertência e exemplo quanto ao fato de que Ele é perfeito Juiz e demanda uma satisfação plena pelo pecado. Bem faremos portanto em buscar a salvação que há em Cristo Jesus, confessarmos os nossos pecados, e nos empenharmos em viver em verdadeira santidade perante Deus e os homens - nota do tradutor).

A Importância da Confissão a Deus - Comentário de Levítico 26.40-42

Lev 26:40 Mas, se confessarem a sua iniquidade e a iniquidade de seus pais, na infidelidade que cometeram contra mim, como também confessarem que andaram contrariamente para comigo,

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Lev 26:41 pelo que também fui contrário a eles e os fiz entrar na terra dos seus inimigos; se o seu coração incircunciso se humilhar, e tomarem eles por bem o castigo da sua iniquidade,

Lev 26:42 então, me lembrarei da minha aliança com Jacó, e também da minha aliança com Isaque, e também da minha aliança com Abraão, e da terra me lembrarei. “Mas, se confessarem a sua iniquidade”. Embora Moisés estivesse discorrendo sobre punições muito severas e cruéis, ainda que ele declara que, mesmo em meio a esta terrível severidade Deus seria aplacado se o povo se arrependesse, apesar de que eles poderiam ter se despojado de toda a esperança de perdão por seus longos e contínuos pecados. Porque ele não aborda os pecadores em geral, senão aqueles que pela sua obstinação e impetuosidade brutal vêm cada vez mais perto para a vingança de Deus; e mesmo estes são incentivados por ele a uma boa esperança, se eles se converterem de coração. Tenhamos então certeza, que a misericórdia de Deus é oferecida para o pior dos homens, que esteve mergulhado por sua culpa nas profundezas do desespero, como se tivesse chegado até o próprio inferno. Daí, também, segue-se que todas as punições são como esporões para despertar o inerte e hesitante em arrependimento, enquanto as dolorosas pragas são destinadas a quebrar seus corações endurecidos. No entanto, ao mesmo tempo, deve-se observar que este favor é concedido por privilégio especial para a Igreja de Deus; porque Moisés atribui logo depois expressamente

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a sua causa, isto é, que Deus se lembrará do pacto. Daí é evidente que Deus, por consideração à sua adoção gratuita, será gracioso para com o indigno a quem Ele tem elegido; de onde também se conclui que isto vem a ocorrer, que, desde que não feche a porta da esperança contra nós mesmos, Deus ainda virá voluntariamente e se adiantará para nos reconciliar com Ele, se tão somente lançarmos mão do pacto do qual caímos por nossa própria culpa, como os marinheiros de um navio naufragado usam um barco salva vidas para levá-los em segurança ao porto. Mas será bom para nós examinarmos sinceramente os frutos do arrependimento que Moisés aqui enumera. Em primeiro lugar está a confissão, não como é exigida sob o papado, que os homens ímpios devem se aliviar ao ouvido de um sacerdote (sacrifício), como se secretamente despejassem seus pecados, pelos quais se reconhecem culpados diante de Deus. Esta confissão contrasta tanto com as queixas ruidosas, quanto com os subterfúgios e evasivas dos ímpios. Um exemplo memorável disto ocorre no caso de Davi, que, quando esmagado pela repreensão do profeta Natã, confessa que tinha pecado contra Deus (2 Samuel 12.13). Pela palavra "iniquidade de seus pais" Ele amplia a grandeza de seus pecados, porque por um longo espaço de tempo eles não tinham deixado de acrescentar pecado a pecado, como se os pais tivessem conspirado com os seus filhos, e os filhos com seus próprios descendentes; e, uma vez que Deus é um vingador até a terceira e quarta geração, não é sem razão que à posteridade é comandado orar humildemente para que Deus perdoe a culpa contraída

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há muito tempo. Por isso, também é claramente visto quão pouco a imitação de seus pais servirá para atenuar as faltas dos filhos, uma vez que percebemos que os torna menos desculpáveis, longe está Deus de admitir este fundamento tolo. É ainda acrescentado que sua confissão deveria corresponder à grandeza de suas transgressões, e que não deveria ser banal e superficial; pois, embora os hipócritas, quando convencidos, não negam que eles têm pecado, ainda que confessem para atenuar a sua culpa, como se fossem apenas culpados de ofensas veniais. Deus, portanto, teria as circunstâncias de seus pecados levadas em consideração, e isso também Ele prescreve em relação à sua obstinação, para que não imaginem que as punições não foram merecidamente redobradas, pois eles haviam caminhado contrariamente com Deus.

Finalmente, a fim de provar a realidade de sua conversão, toda dissimulação é excluída pela humilhação de seus corações; pois isto é como se Deus fosse rejeitar suas orações, até que em humildade sincera e sentida no coração procurassem o perdão. Esta humilhação é contrastada com segurança, bem como com contumácia e orgulho; e também é comparada com a circuncisão, onde o coração é chamado circuncidado antes de ser subjugado e reduzido à obediência. Pois, enquanto a circuncisão era uma marca de distinção entre o povo de Deus e as nações pagãs, é necessário que tenha sido também um sinal de regeneração. Mas como os judeus negligenciaram a verdade, e tola e impropriamente glorificavam apenas o símbolo exterior, Moisés,

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reprovando a incircuncisão de seus corações, refuta que estivessem vazios de orgulho. Assim, como Paulo testifica, a menos que a lei seja cumprida, a circuncisão literal é inútil, e é feita em incircuncisão (Romanos 2.25). Então Moisés acusa os israelitas de infidelidade, porque eles professam ser o povo santo de Deus, ao mesmo tempo que amam a imundícia e a impureza no seu coração. Os profetas também muitas vezes os acusa de serem incircuncisos de coração ou de ouvidos; e nisto Estevão os seguiu (Jeremias 6.10; Ezequiel 44.7; Atos 7.51). Outros extraem um significado muito diferente das palavras que traduzimos, "deixá-los expiar (propitient) a sua iniquidade." – “tomarem eles por bem o castigo da sua iniquidade”. O substantivo usado é עון, gnevon, o que significa tanto iniquidade e punição; e o verbo רצה, ratzah, que é expiar, ou estimar de modo grato, ou apaziguar. Alguns, portanto, explicam isto como sendo, levarão o seu castigo pacientemente, e o tomarão por agradável; mas parece-me que Moisés se conecta com o arrependimento do desejo de satisfazer a Deus, sem o qual os homens nunca estão realmente insatisfeitos consigo mesmos, ou renunciar a seus pecados; e sua alusão é aos sacrifícios e abluções legais, pelos quais se reconciliavam com Deus. A suma é que, quando eles se esforçarem seriamente para voltar ao favor de Deus, Ele será propício em relação a eles por causa de sua aliança.

(Nota do Pr Silvio Dutra: Ao estarmos chegando à conclusão do comentário de Calvino sobre o texto de

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Levítico 26.14-46, consideramos oportuno reafirmar o que ele diz acerca do favor que recebemos da parte de Deus, exclusivamente por causa da aliança que fez conosco através da morte e ressurreição de Jesus Cristo, o qual se ofereceu em nosso lugar para que pudéssemos ser reconciliados com Deus e adotados como seus filhos. Isto porque é evidente que somos pecadores por natureza, e nos acharíamos numa situação miserável e sem qualquer esperança, caso Deus não fizesse uma aliança conosco baseada na sua graça e misericórdia, pelas quais nossos pecados e transgressões são perdoados e esquecidos, ou seja, não são levados em conta para condenação, caso nos encontremos em Cristo. Todavia, cabe ressaltar que temos aprendido pela santa e perfeita Lei de Deus quanto ao modo como Ele vê e abomina qualquer pecado, de forma que somos agradáveis a Ele somente quando confessamos sinceramente as nossas faltas e procuramos andar de modo digno na Sua presença por buscarmos a aplicação de Sua vontade e Palavra em nossas vidas pela operação do Espírito Santo em nossas mentes e corações. Assim, a aliança da graça manifestará os seus benefícios de paz, reconciliação e comunhão com Deus, a todos aqueles que buscarem andar de modo santo e ordenado na presença do Senhor, e caso contrário, seremos corrigidos por Ele, não mais com base nos castigos de destruição previstos na Lei de Moisés, conforme vemos nas maldições de Levítico 26.14-39, porque estamos nesta nova dispensação inaugurada há cerca de 2.000 anos atrás, debaixo da graça de Cristo, mas certamente,

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seremos corrigidos com a severidade que for necessária para nos curar da prática do mal.)

A Terra é Herdada pelos que Obedecem a Deus - Comentário de Levítico 26.43-46

Lev 26:43 Mas a terra na sua assolação, deixada por eles, folgará nos seus sábados; e tomarão eles por bem o castigo da sua iniquidade, visto que rejeitaram os meus juízos e a sua alma se aborreceu dos meus estatutos. Lev 26:44 Mesmo assim, estando eles na terra dos seus inimigos, não os rejeitarei, nem me aborrecerei deles, para consumi-los e invalidar a minha aliança com eles, porque eu sou o Senhor, seu Deus. Lev 26:45 Antes, por amor deles, me lembrarei da aliança com os seus antepassados, que tirei da terra do Egito à vista das nações, para lhes ser por Deus. Eu sou o Senhor. Lev 26:46 São estes os estatutos, juízos e leis que deu o Senhor entre si e os filhos de Israel, no monte Sinai, pela mão de Moisés.

Ele mais uma vez se refere à punição de banimento, o que equivale a serem deserdados; e, ao mesmo tempo, repete que a adoração a Deus não poderia ser restaurada na Terra Santa, até que ele lhes tivesse purificado das suas corrupções; contudo, imediatamente depois ele modera esta severidade, na medida em que, quando parecia lidar com eles mais rigorosamente, ele ainda não lhes havia totalmente rejeitado. Os verbos que Ele usa

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estão no passado, apesar de se referirem ao futuro; tanto quanto para dizer, que "eles devem sentir que não são rejeitados." Ele, portanto, estende a mão para eles, por assim dizer, na sua miserável condição, para elevá-los à confiança, e ordena-lhes, embora afligidos com uma tribulação extrema, no entanto, a colocarem a sua confiança em seu Pacto. Aqui Sua bondade maravilhosa e inestimável é exibida, em manter como Seus aqueles que estão alienados dele: assim, se diz em Oseias 2.23: "Tu és o meu povo! Ele dirá: Tu és o meu Deus!" Quando Ele promete que vai se lembrar do seu Pacto "por causa deles", Ele não quer dizer pelo seu mérito, ou porque adquiriram tal favor para si; mas para o seu benefício ou para a sua salvação, em que a lembrança do Pacto será estendida a eles. Sua libertação (do Egito) também é adicionada na confirmação da aliança, como se Ele tivesse dito que estaria mais disposto a perdoá-los, não somente porque Ele sempre persevera em sua fidelidade às suas promessas, mas porque iria manter sua bondade para com eles, e conduzi-los até o fim. Assim, vemos que Ele atribui a causa da Sua misericórdia apenas a Si mesmo.

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Alegria Espiritual Constante - Comentário de Filipenses 4.4

“Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos.” (Filipenses 4.4)

Regozijai-vos no Senhor é uma exortação adequada; pois, como a condição dos santos era extremamente turbulenta e perigos ameaçavam de todos os lados, era possível que eles pudessem ficar desanimados, vencidos pela tristeza ou impaciência. Daí ele lhes prescreve isto, para que, em meio a circunstâncias de hostilidade e perturbação, nunca deixassem de se alegrar no Senhor, assim como seguramente esses consolos espirituais, por meio dos quais o Senhor nos refrigera e alegra, deveriam então mais do que tudo mostrar sua eficácia quando o mundo inteiro nos tenta ao desespero. Vamos, no entanto, em relação às circunstâncias da época, considerar a eficácia desta palavra proferida pela boca de Paulo, que poderia ter tido ocasião especial de tristeza. Porque, se eles estão consternados com perseguições ou prisões ou o exílio ou morte, aqui está o apóstolo colocando a si mesmo como exemplo, que, em meio a prisões, mesmo no calor da perseguição e, em suma, em meio a temores de morte, não apenas se alegrava, mas ainda desperta outros à alegria. A súmula então, é esta - aconteça o que acontecer, os crentes, tendo o Senhor em pé ao seu lado, têm um fundamento amplamente suficiente de alegria.

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A repetição da exortação serve para dar mais força a ela: Que esta seja a sua força e estabilidade, alegrar-se no Senhor, e que, também, não por um momento apenas, mas para que a sua alegria nele possa ser perpetuada. Porque inquestionavelmente difere da alegria do mundo a este respeito - que sabemos por experiência que a alegria do mundo é enganadora, frágil, e falha, e Cristo mesmo pronuncia isto como sendo um anátema (Lucas 6.25). Por isso, que somente a alegria em Deus que é constante e que é a única que nunca é tirada de nós.

Espírito de Moderação - Comentário de Filipenses 4.5

“Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor.” (Filipenses 4.5)

“Sua moderação”. Isto pode ser explicado de duas maneiras. Podemos entender como se Paulo lhes estivesse propondo que seria melhor renunciarem a seus direitos, do que reclamá-los com aspereza e severidade. "Deixe que todos os que têm que lidar com você tenham a experiência de sua equidade e humanidade." Desta forma, “ser conhecida” significa “experimentar”. Ou podemos entendê-lo como lhes exortando a perseverarem em todas as coisas com equanimidade. Eu prefiro este último significado; porque é um termo que é usado pelos próprios gregos para denotar moderação de espírito - quando não somos facilmente movidos por injúrias que recebemos, quando

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não ficamos facilmente irritados com a adversidade, mas mantemos a equanimidade de temperamento. De acordo com isto, Cícero faz uso da seguinte expressão: "Minha mente está tranquila, que toma tudo pela parte boa." Tal equanimidade - que é como se fosse a mãe da paciência - ele requer aqui da parte dos Filipenses, e, de fato, como se manifesta a todos, segundo a ocasião exige, por produzir seus efeitos apropriados. O termo modéstia não parece apropriado aqui, porque Paulo não está nesta passagem lhes advertindo contra a insolência arrogante, mas os direciona a se conduzirem pacificamente em tudo, e a exercerem controle sobre si, mesmo na resistência a injúrias ou inconvenientes.

“O Senhor está perto”. Aqui temos uma antecipação, pela qual ele elimina uma objeção que poderia ser apresentada. Porque o senso carnal se levanta em oposição à afirmação anterior. Porque, como a ira dos ímpios é mais inflamada em proporção à nossa brandura, e quanto mais eles nos veem preparados para perseverar, são mais encorajados a infligir injúrias, somos em meio às dificuldades induzidos a possuir as nossas almas com paciência (Lucas 21.19). Daí esses provérbios: "Devemos uivar quando entre lobos". "Aqueles que agem como ovelhas serão rapidamente devorados por lobos". Daí se pode concluir erroneamente, que a ira dos ímpios deve ser reprimida pela violência correspondente, para que eles não possam nos insultar impunemente. A tais considerações Paulo aqui opõe a confiança na Divina Providência.

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Ele replica, eu digo, que o Senhor está perto, cujo poder pode superar a sua audácia, e cuja bondade pode conquistar sua malícia. Ele promete que ele vai nos ajudar, desde que obedeçamos o seu mandamento. Agora, quem não preferiria ser protegido somente pela mão de Deus, que tem todos os recursos do mundo sob seu comando?

Aqui temos um sentimento mais belo, a partir do qual podemos aprender, em primeiro lugar, que a ignorância da providência de Deus é a causa de toda impaciência, e que esta é a razão pela qual somos tão rapidamente, e em assuntos triviais, lançados na confusão, e, muitas vezes, também, nos tornamos desanimado porque nós não reconhecemos o fato de que o Senhor cuida de nós. Por outro lado, aprendemos que este é o único remédio para tranquilizar nossas mentes - quando repousam sem reservas em seu cuidado providencial, como sabendo que não estamos expostos ou à imprudência de fortuna, ou ao capricho dos ímpios, senão que estamos sob a regulação do cuidado paternal de Deus. Em suma, o homem que está na posse desta verdade, que Deus está presente com ele, tem o que pode lhe dar descanso com segurança. Há, porém, duas maneiras pelas quais é dito que o Senhor está perto - seja porque seu julgamento está próximo, ou porque ele está preparado para dar uma ajuda para o seu povo, sentido este que é usado aqui; e também no Salmo 145.18: “O Senhor está perto de todos os que o invocam.” Assim, o significado é - "Miserável seria a condição do piedoso, se o Senhor estivesse longe dele". Mas, como

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ele os recebeu sob sua proteção e tutela, e os defende por sua mão, que está presente em toda parte, deixe-os descansar sobre esta consideração, que não podem ser intimidados pela ira dos ímpios. Isto é bem conhecido, e questão de ocorrência comum, que o termo solicitude (cuidado) é empregado para indicar a ansiedade que procede da desconfiança do poder ou ajuda divinos.

Como Vencer a Ansiedade - Comentário de Filipenses 4.6

“Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças.” (Filipenses 4.6)

“De coisa alguma”. Isto está no número singular conforme usado por Paulo, mas é o gênero neutro; a expressão, portanto, é equivalente a negotio omni (em cada matéria) pela (oração) e (súplica) são substantivos femininos. Com estas palavras, ele exorta os filipenses, como Davi faz a todos os piedosos no Salmo 55.22, e Pedro também em 1 Pedro 5.7, para lançar todos os seus cuidados sobre o Senhor. Porque não somos feitos de ferro, de modo a não sermos abalados pelas tentações. Mas este é o nosso consolo - depositar, ou (para falar com maior propriedade) lançar nossos fardos sobre o seio de Deus, lançar tudo o que nos assedia. A confiança, é verdade, traz tranquilidade às nossas mentes, mas isto é

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o caso somente quando nos exercitamos em orações. Sempre que, por isso, se somos assaltados por qualquer tentação, devemos nos recolher imediatamente à oração, como a um asilo sagrado.

O termo “petição” é empregado aqui para denotar desejos. Ele quer que os tornemos conhecidos diante de Deus pela oração e súplica, como se os crentes derramassem seu coração diante de Deus, quando eles consagram tudo o que são e o que têm, a ele. Aqueles, na verdade, que olham para cá e para lá os confortos vãos do mundo, podem parecer estar em algum grau aliviados; mas há somente um refúgio seguro – lançar-se sobre o Senhor. “Com ação de graças”. Como muitas vezes oramos a Deus de modo errado, cheios de queixas ou de murmúrios, como se tivéssemos fundamento para acusá-lo, enquanto outros não podem tolerar demoras, se ele não satisfizer imediatamente seus desejos, Paulo nesta conta conjuga ação de graças com orações. É como se ele tivesse dito, que as coisas que são necessárias para nós devem ser desejadas por nós para serem recebidas do Senhor de tal maneira, que nós, no entanto, submetemos nossos afetos à sua boa vontade, e damos graças ao apresentar petições. E, sem dúvida, a gratidão terá esse efeito sobre nós - que a vontade de Deus será a grande essência de nossos desejos.

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O Caminho para Alcançar a Paz Divina - Comentário de Filipenses 4.7

“E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus.” (Filipenses 4.7)

“E a paz de Deus”. Alguns, mudando o tempo futuro para o modo optativo, convertem esta declaração em uma oração, mas isto não possui um fundamento adequado. Pois é uma promessa na qual ele aponta a vantagem de uma firme confiança em Deus, e invocação dele. "Se vocês fizerem isso", diz ele, "a paz de Deus vai manter suas mentes e corações." A Escritura está acostumada a dividir a alma do homem, quanto às suas fragilidades, em duas partes - a mente e o coração. A mente significa o entendimento, enquanto o coração denota todas as disposições ou inclinações. Estes dois termos, portanto, incluem, nesse sentido, a alma inteira - "A paz de Deus irá protegê-lo, de modo a impedi-lo de se afastar de Deus por pensamentos ou desejos maus". É de um bom e firme fundamento que ele chama a paz de Deus, na medida em que não depende do aspecto atual das coisas, e não se dobra às várias mudanças do mundo, mas se baseia na firme e imutável palavra de Deus. É com bons motivos, também, que ele fala dela como superando todo o entendimento ou percepção, pois nada é mais estranho para o entendimento humano, do que experimentar, no entanto, na profundidade do desespero, um sentimento de esperança, na profundidade de pobreza ver opulência, e na

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profundidade de fraqueza não ceder, e, enfim, prometer a nós mesmos que nada faltará para nós quando ficarmos destituídos de todas as coisas; e tudo isso na graça de Deus somente, porque isto não é conhecido de outra forma do que através da palavra e da operação interior do Espírito.

Ocupando o Pensamento com o Que é Aprovado por Deus - Comentário de Filipenses 4.8

“Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento.” (Filipenses 4.8)

“Finalmente”. O que se segue consiste em exortações gerais que dizem respeito a toda a vida. Em primeiro lugar, ele recomenda a verdade, que nada mais é do que a integridade de uma boa consciência, com os seus frutos; em segundo lugar, o que é respeitável, ou santidade, porque τὸ σεμνόν denota uma excelência que consiste no fato de andarmos de modo digno da nossa vocação (Efésios 4.1) mantendo uma distância de tudo o que é profano: em terceiro lugar, a justiça, que tem a ver com a relação mútua da humanidade - que não injuriemos ou defraudemos a qualquer um; e, em quarto lugar, a pureza, que denota a castidade em todas as esferas da vida. Paulo, no entanto, não reconhece todas

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essas coisas como suficientes, se não fizermos, ao mesmo tempo, esforço para nos tornarmos agradáveis a todos, na medida em que podemos fazê-lo legalmente no Senhor, e ter em conta também o nosso bom nome. Pois é dessa forma que eu entendo as palavras - “Se há algum louvor”, ou seja, algo louvável, pois em meio a tal corrupção dos costumes há tão grande perversidade nos julgamentos dos homens que o elogio é muitas vezes dado ao que é censurável, e não é permitido para os cristãos sequer desejar o verdadeiro louvor entre os homens, na medida em que eles são em outro lugar proibidos a se gloriarem, a não ser somente em Deus (1 Coríntios 1.31). Paulo, portanto, não lhes recomenda tentarem ganhar aplausos ou elogios por ações virtuosas, nem mesmo a regularem suas vidas de acordo com os julgamentos das pessoas, mas simplesmente significa que eles deveriam se dedicar à realização de boas obras, as quais merecem elogios, que os ímpios, e aqueles que são inimigos do evangelho, enquanto ridicularizam os cristãos e lançam opróbrio sobre eles, sejam, no entanto, constrangidos a elogiar sua conduta.

A Verdade Divina é Para Ser Vivida - Comentário de Filipenses 4.9

“O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus da paz será convosco.” (Filipenses 4.9)

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“O que tendes aprendido, e recebido, e ouvido”. Por esse acúmulo de termos ele dá a entender, que ele era assíduo em inculcar essas coisas. "Esta foi a minha doutrina - a minha instrução - meu discurso no meio de vós". Os hipócritas, por outro lado, em nada insistem, senão em cerimônias. Agora, era uma coisa desonrosa abandonar a instrução santa, que tinham totalmente absorvido, e com a qual tinham sido minuciosamente imbuídos. “Vistes em mim”. Agora, a principal coisa num orador público deveria ser, que ele possa falar, não com a boca apenas, mas por sua vida, e adquirir autoridade para sua doutrina pela retidão de vida. Paulo, portanto, adquire autoridade para sua exortação por este motivo, que ele tinha, por sua vida nada menos do que por sua boca, sido um líder e mestre de virtudes.

“E o Deus da paz”. Ele tinha falado da paz de Deus; e agora, mais particularmente, confirma o que havia dito, com a promessa de que o próprio Deus, o autor da paz, estará com eles. Porque a presença de Deus nos traz todo tipo de bênção: como se ele tivesse dito, que eles sentiriam que Deus estava presente com eles para fazer todas as coisas saírem bem e prosperamente, desde que aplicassem a si mesmos as ações piedosas e santas.

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Cristo é Ganho e o Resto é Perda - Comentário de Filipenses 3.8

“Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo.” (Filipenses 3.8) “Sim, deveras considero tudo como perda”. Ele quer dizer, que ele continua a ser da mesma opinião, porque muitas vezes acontece, que, transportados com prazer em coisas novas, vamos esquecer tudo o mais, e depois a gente se arrepende. Daí Paulo, tendo dito que ele renunciou a todos os impedimentos, para que pudesse ganhar a Cristo, agora acrescenta, que ele continua a ser da mesma mente.

“Por causa da excelência do conhecimento”. Ele exalta o evangelho em oposição a todas as noções que tendem a nos seduzir. Porque há muitas coisas que têm uma aparência de excelência, mas o conhecimento de Cristo supera a um tal grau tudo o mais por sua sublimidade, que, em comparação com ele, não há nada que não seja desprezível. Vamos, portanto, aprender com isso, qual o valor que devemos dar ao conhecimento de Cristo. Quanto a chamá-lo de “meu Senhor”, ele faz isso para expressar a intensidade de seu sentimento. “Por quem sofri a perda de todas as coisas”. Ele expressa mais do que ele havia feito anteriormente; pelo menos ele se expressa com maior clareza. É uma comparação

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tirada de marinheiros, que, quando instigados por perigo de naufrágio, jogam tudo ao mar, para que, ficando o navio menos pesado, eles possam chegar ao porto em segurança. Paulo, então, estava preparado para perder tudo o que tinha, ao invés de ser privado de Cristo. Mas pergunta-se, se isto é necessário para nós, renunciar a riquezas e honras, e nobreza de descendência, e até mesmo à justiça externa, para que nos tornemos participantes de Cristo (Hebreus 3.14), porque todas estas coisas são dons de Deus, os quais, em si mesmos, não devem ser desprezados? Respondo que o Apóstolo não fala aqui tanto das coisas em si mesmas, tanto quanto da qualidade das mesmas. Isto é de fato verdade, que o reino dos céus é semelhante a uma pérola preciosa, para a compra da qual ninguém deve hesitar em vender tudo o que tem (Mateus 13.46). Há, porém, uma diferença entre a substância das coisas e a qualidade. Paulo não achou ser necessário repudiar a conexão com sua própria tribo e com a raça de Abraão, e tornar-se um estrangeiro, para que pudesse se tornar um cristão, mas renunciar à dependência de sua descendência. Não convinha, que sendo casto ele devesse se tornar impuro; que sendo sóbrio, devesse se tornar imoderado; e que sendo honrado e respeitado, se tornasse dissoluto; senão que ele deveria se despojar de uma falsa estimativa de sua própria justiça, e tratá-la com desprezo. Nós, também, ao tratar da justiça da fé, não discutimos a substância das obras, mas contra a qualidade que os sofistas lhe atribuem, na medida em que afirmam que os homens são justificados por elas. Paulo, portanto, se despojou - não das obras, mas daquela confiança

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equivocada em obras, com a qual ele havia sido inchado. Quanto a riqueza e honras, quando temos nos despojado do apego a elas, estaremos preparados, também, a renunciar às próprias coisas, sempre que o Senhor exigir isso de nós, e assim deve ser. Não é expressamente necessário que você seja um homem pobre, a fim de que possa ser cristão; mas se for do agrado do Senhor que deve ser assim, você deve estar preparado para suportar a pobreza. Em suma, não é lícito que os cristãos nada tenham além de Cristo. Eu considero como separado de Cristo tudo o que é um empecilho no caminho de Cristo ser o nosso único motivo de nos gloriarmos, e de ter uma completa influência sobre nós.

“E eu considero como refugo”. Aqui ele não apenas por palavras, mas também em realidade, amplia enormemente o que havia antes declarado. Porque aqueles que lançam suas mercadorias e outras coisas ao mar, para que possam escapar em segurança, não o fazem, portanto, por desprezarem as riquezas, mas agem como pessoas preparadas, porque é melhor de viver na miséria e necessidade, do que ser afogado junto com suas riquezas . Eles se separam delas, de fato, mas é com pesar e com um suspiro; e quando eles escapam, eles lamentam a perda delas. Paulo, no entanto, declara, por outro lado, que ele tinha não apenas abandonado tudo o que anteriormente considerava precioso, mas que lhe era como esterco, ofensivo para ele, ou perderam a sua estima como coisas que são jogadas fora com desprezo. Crisóstomo usa a palavra - palha. Os gramáticos, porém, são de opinião, que σκύβαλον é empregado como se

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fosse κυσίβαλον - o que é jogado para cães. E, certamente, há uma boa razão por que tudo o que se opõe a Cristo deva ser ofensivo para nós, na medida em que é uma abominação, aos olhos de Deus (Lucas 16.15). Há uma boa razão por que deve ser ofensivo para nós também, em razão de ser uma imaginação sem fundamento. “Para que eu possa ganhar a Cristo”. Por esta expressão dá a entender que não podemos ganhar a Cristo, exceto por perder tudo o que temos. Porque ele nos queria ricos pela sua graça somente: ele sozinho teria que ser nossa completa bem-aventurança. Agora, de que maneira devemos sofrer a perda de todas as coisas, já foi dito - de tal maneira que nada vai nos desviar da confiança em Cristo. Mas se Paulo, com tal inocência e integridade de vida, não hesitou em contar sua própria justiça como perda e esterco, o que significam aqueles fariseus dos dias de hoje, que, embora cobertos com todos os tipos de maldade, no entanto, não sentem vergonha em exaltar seus próprios méritos em oposição a Cristo?

Comentário de Filipenses 3.9

“e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé;” (Filipenses 3.9) “E ser achado nele”. O verbo está na voz passiva, e,

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portanto, outros o traduzem como “eu possa ser encontrado”. Eles passam sobre o contexto, embora, de uma maneira muito indiferente, como se ele não tivesse nenhuma força peculiar. Se você lê-lo na voz passiva, uma antítese será entendida – que Paulo estava perdido antes de ser encontrado em Cristo, como um rico comerciante é como um perdido, enquanto ele tem seu navio carregado de riquezas; mas quando elas foram lançadas ao mar, como ele é encontrado? O que ele quer dizer aqui nos conduz admiravelmente ao ponto - "Eu estaria perdido, se eu não tivesse sido perdido." Mas como o verbo εὐρίσκομαι, enquanto ele tem uma terminação passiva, tem uma significação ativa, e os meios - para recuperar aquilo que você voluntariamente renunciou (como Budaeus mostra por vários exemplos). Eu não hesito em ser diferente da opinião dos outros. Pois, desta forma, o significado será mais completo, e a doutrina mais ampla - que Paulo renunciou a tudo o que tinha, para que ele pudesse recuperá-lo em Cristo; o que corresponde melhor à palavra ganho, pois isso significa que isto não era um ganho trivial ou comum, na medida em que Cristo contém tudo em si mesmo. E, sem dúvida, não perdemos nada quando chegamos a Cristo nus e vazios de tudo, porque aquelas coisas que nós previamente imaginávamos, por motivos falsos, que possuíamos, começamos então realmente a adquirir. Ele, portanto, mostra mais plenamente, quão grandes são as riquezas de Cristo, porque obtemos e encontramos todas as coisas nele.

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“Não tendo justiça própria”. Aqui temos uma passagem notável, se alguém está desejoso de ter uma descrição específica da justiça da fé, e compreender a sua verdadeira natureza. Porque Paulo faz aqui uma comparação entre dois tipos de justiça. A que ele fala de como pertencendo ao homem, enquanto ele a chama, ao mesmo tempo, de a justiça da Lei; e a outra, que ele nos diz, ser de Deus, que é obtida por meio da fé, e repousa sobre a fé em Cristo. Ele as representa como tão diretamente opostas uma à outra, que não podem ficar juntas. Portanto, há duas coisas que devem ser observadas aqui. Em primeiro lugar, que a justiça da Lei deve ser abandonada e renunciada, que você pode ser justo por meio da fé; e em segundo lugar, que a justiça da fé procede da parte de Deus, e não pertence ao indivíduo. Quanto a esses dois tipos de justiça é que temos nos dias de hoje uma grande controvérsia com os papistas; porque, por um lado, eles não admitem que a justiça da fé é totalmente de Deus, mas atribuem isso em parte ao homem; e, por outro lado, eles as misturam em conjunto, como se uma não destruísse a outra. Por isso, devemos examinar cuidadosamente as diversas palavras das quais Paulo fez uso, pois não há uma só que não seja muito enfática. Ele diz que os crentes não têm justiça própria. Agora, não se pode negar que, se houvesse alguma justiça de obras, poderia ser dito com propriedade que seria nossa. Por isso, ele não deixa qualquer espaço que seja para a justiça de obras. Por que ele a chama de justiça da lei, ele mostra em Romanos 10.5; porque esta é a sentença da lei, aquele que faz estas coisas viverá por elas. A lei, portanto,

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pronuncia o homem justo por meio de obras. Também não há qualquer fundamento para o sofisma de papistas, que tudo isso deve ser restrito às cerimônias. Porque em primeiro lugar, é uma frivolidade desprezível afirmar que Paulo era justo apenas através de cerimônias; e em segundo lugar, ele traça desta forma um contraste entre esses dois tipos de justiça - uma do homem, e outra, de Deus. Ele sugere, portanto, que uma é a recompensa de obras, enquanto a outra é um dom gratuito de Deus. Ele, assim, de um modo geral, coloca o mérito do homem em oposição à graça de Cristo; porque enquanto a lei traz obras, a fé apresenta o homem diante de Deus como nu, para que possa ser vestido com a justiça de Cristo. Quando, portanto, ele declara que a justiça da fé é de Deus, não é simplesmente porque a fé é um dom de Deus, mas porque Deus nos justifica por sua bondade, ou porque recebemos pela fé a justiça que ele nos tem conferido.

Comentário de Filipenses 3.10,11

“para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte;

para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos.” (Filipenses 3.10,11)

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“Para que eu possa conhecê-lo”. Ele ressalta a eficácia e a natureza da fé - que é o conhecimento de Cristo, e que, também, não de forma despida ou indistinta, senão de tal forma que o poder da sua ressurreição é sentido. Ele se refere à ressurreição com o sentido de conclusão da redenção, assim que isto engloba ao mesmo tempo a ideia da morte. Mas como não é o suficiente conhecer a Cristo como crucificado e ressuscitado dentre os mortos, a menos que você experimente, também, o fruto disto, ele fala expressamente de eficácia. Cristo, portanto, é justamente conhecido, quando sentimos quão poderosa é a sua morte e ressurreição, e como são eficazes em nós. Agora todas as coisas são fornecidas a nós - expiação e destruição do pecado, a liberdade da condenação, a satisfação da justiça de Deus, a vitória sobre a morte, a realização da justiça e da esperança de uma bendita imortalidade. “E a comunhão dos seus sofrimentos”. Tendo falado da justiça que é livremente conferida, que foi adquirida por nós através da ressurreição de Cristo, e é obtida por nós através da fé, ele passa a tratar dos exercícios dos piedosos, e para que não parecesse como se ele tivesse apresentado uma fé inativa, que não produz efeitos na vida. Ele também sugere, indiretamente, que estes são os exercícios em que o Senhor deseja que seu povo se empenhe; enquanto os falsos apóstolos apresentavam os elementos inúteis de cerimônias. Que cada um, portanto, que se tornou, pela fé, participante de todos os benefícios de Cristo, reconheça que uma condição deve ser apresentada a ele - que toda a sua vida seja conformada com a sua morte.

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Há, no entanto, uma dupla participação e comunhão na morte de Cristo. A primeira é interior - que a Escritura costuma chamar de mortificação da carne, ou a crucificação do velho homem, do qual Paulo trata no sexto capítulo de Romanos; a outra é exterior - que é chamada de mortificação do homem exterior. É a perseverança da Cruz, da qual ele trata, no oitavo capítulo da mesma epístola, e aqui também, se eu não me engano. Porque depois de introduzir junto com esta o poder da sua ressurreição, Cristo crucificado é colocado diante de nós, para que possamos segui-lo através de tribulações e angústias; e, portanto, é feita expressamente menção à ressurreição dos mortos, para que saibamos que temos de morrer antes de viver. Este é um assunto contínuo de meditação para os crentes, enquanto estiverem peregrinando neste mundo. Isso, no entanto, é uma consolação especial, que em todas as nossas misérias somos participantes da Cruz de Cristo, se nós somos seus membros; assim que, através de aflições o caminho está aberto para nós à bem-aventurança eterna, como lemos em outros lugares, “Se morrermos com ele, também viveremos com ele; se sofremos com Ele, também reinaremos com ele.” (2 Timóteo 2.11).

Todos nós devemos, portanto, estar preparados para isso - de que toda a nossa vida deve representar nada mais do que a imagem da morte, até produzir a própria morte, como a vida de Cristo não é nada mais do que um prelúdio da morte. Nós desfrutamos, no entanto, nesse meio tempo, desta consolação - que o fim é a eterna bem-

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aventurança. Porque a morte de Cristo está ligada com a ressurreição. Por isso Paulo diz que ele está conformado com sua morte, para que ele possa alcançar a glória da ressurreição. A frase, “se, por qualquer meio”, não indica dúvida, mas expressa a dificuldade, com vista a estimular o nosso esforço sincero, na medida em que devemos lutar contra tantos e tão sérios impedimentos.

Conquistando Mais e Mais de Cristo - Comentário de Filipenses 3.12

“Não que eu o tenha já recebido ou tenha já obtido a perfeição; mas prossigo para conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus.” (Filipenses 3.12) “Não que eu o tenha já recebido”. Paulo insiste sobre isto, para que ele possa convencer aos filipenses que ele não pensava em nada além de Cristo - nada mais conhecia - não desejava nada mais – não estava ocupado com nenhum outro objeto de meditação. Em conexão com isso, há muito peso no que ele acrescenta agora - que ele próprio, enquanto tinha desistido de todos os tropeços, no entanto, não tinha alcançado o objetivo final, e que, por esse motivo, ele sempre visou e aspirava ansiosamente por algo mais. Quanto mais isto competia aos Filipenses, que ainda estavam muito atrás dele? É perguntado, no entanto, o que é que Paulo diz que ele ainda não alcançou? Porque inquestionavelmente, tão

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logo que somos enxertados pela fé no corpo de Cristo, já temos entrado no reino de Deus, e, como se afirma em Efésios 2.6, já estamos, na esperança, assentados nos lugares celestiais. Eu respondo, que a nossa salvação, nesse meio tempo, é na esperança, porque a herança de fato é segura; mas temos algumas coisas em cuja posse ainda não nos encontramos. Ao mesmo tempo, Paulo aqui olha para outra coisa - o avanço da fé, e aquela mortificação à qual tinha feito menção antes. Ele havia dito que ele visava ansiosamente e aspirava à ressurreição dos mortos pela participação na Cruz de Cristo. Ele acrescenta, que ele ainda não chegou a isso. Em quê? Na consecução de ter comunhão inteira nos sofrimentos de Cristo, tendo um desfrutar completo do poder da sua ressurreição, e conhecê-lo perfeitamente. Ele ensina, portanto, pelo seu próprio exemplo, que devemos fazer progressos, e que o conhecimento de Cristo é uma realização de tal dificuldade, que mesmo aqueles que se aplicam exclusivamente a isso, no entanto, não alcançam a perfeição nisto, enquanto aqui viverem. Isso, no entanto, não diminui em qualquer grau a autoridade da doutrina de Paulo, na medida em que ele tinha adquirido, o tanto quanto era suficiente para cumprir o ofício que lhe foi designado. Nesse meio tempo, era necessário que ele fizesse progressos, para que o instrutor divinamente equipado com tudo possa ser treinado para a humildade.

“Para o que também fui conquistado por Cristo”. Esta cláusula ele inseriu a título de correção, para que pudesse atribuir todos os seus esforços à graça de Deus. Não é de

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muita importância a forma como você leia, porque em ambos os casos o significado é o mesmo - que Paulo foi conquistado por Cristo, para que pudesse conquistar a Cristo; isto é, que ele não fez nada, exceto sob influência e orientação de Cristo.

Sempre Prosseguindo para o Alvo da Perfeição - Comentário de Filipenses 3.13,14

Flp 3:13 Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão,

Flp 3:14 prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.

“Eu não julgo havê-lo alcançado”. Ele não coloca em causa aqui a certeza da sua salvação, como se ele ainda estivesse em suspense, mas repete o que havia dito antes - que ele ainda visava a um progresso maior, porque ele ainda não tinha atingido o fim da sua vocação. Ele mostra isso imediatamente depois, dizendo que ele estava intentando apenas uma coisa, deixando de fora tudo o mais. Agora, ele compara a nossa vida a uma pista de corridas, e os limites que Deus traçou para nós, para percorrê-la. Porque, assim como nada aproveitaria ao corredor ter deixado o ponto de partida, a menos que ele fosse para a frente para o alvo, por isso devemos também

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prosseguir o curso da nossa vocação até a morte, e não devemos parar até que tenhamos obtido o que buscamos. Mais ainda, como o caminho está marcado para o corredor, para que ele não venha a se cansar sem qualquer propósito vagando nesta ou naquela direção, então há também um objetivo diante de nós, para o qual devemos dirigir o nosso curso sem desvios; e Deus não nos permite vagar descuidadamente. Em terceiro lugar, como se requer do corredor que esteja livre de impedimentos, e não parar o seu curso por conta de qualquer obstáculo, assim devemos tomar cuidado para que não apliquemos a nossa mente ou coração a tudo o que possa desviar a atenção, senão que devemos, pelo contrário, empenhar o nosso esforço, livres de qualquer distração, de modo que possamos aplicar toda a inclinação da nossa mente exclusivamente ao chamado de Deus. Estas três coisas Paulo apresenta, numa só similitude. Quando ele diz que ele faz uma coisa, e esquece todas as coisas que estão para trás, dá a entender a sua assiduidade, e exclui tudo que possa distrair. Quando ele diz que ele se apressa para o alvo, ele dá a entender que ele não está se desviando do caminho. “Esquecendo-me das coisas que para trás ficam”. Ele alude aos corredores, que não voltam seus olhares para o lado em qualquer direção, para que não afrouxem a velocidade do seu curso, e, mais especialmente, não olham para trás para ver quanto terreno já avançaram, mas se apressam à frente incessantemente em direção à meta, Assim, Paulo nos ensina, que ele não pensava no que ele foi, ou no que ele fez, senão simplesmente corria

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para a frente em direção ao objetivo determinado, e que, também, com tal ardor, que ele corria para a frente, por assim dizer, com os braços estendidos. Porque uma metáfora dessa natureza está implícita no particípio que ele emprega.

Caso houvesse qualquer observação, por meio de oposição, que a lembrança de nossa vida passada é de uso para nos mover, tanto porque os favores que já nos foram conferidos nos dão o incentivo para entreter a esperança, e porque somos admoestados pelos nossos pecados a alterar o nosso curso de vida, eu respondo, que os pensamentos dessa natureza não desviam a nossa visão do que está diante de nós para o que está atrás, mas sim ajudam a nossa visão, para que possamos discernir mais claramente o objetivo. Paulo, no entanto, condena aqui como olhar para trás, aquilo quer destrói ou danifica o entusiasmo. Assim, por exemplo, qualquer um deveria persuadir a si mesmo que ele tem feito suficiente progresso, reconhecendo que tem feito o bastante, ele se tornará indolente, e se sentirá inclinado a entregar o bastão para os outros; ou, se alguém olhar para trás com um sentimento de pesar pela situação que ele tem abandonado, ele pode não se aplicar com toda a inclinação de sua mente àquilo em que está envolvido. Tal seria a natureza dos pensamentos da mente de Paulo para que ele voltasse atrás, se ele não seguisse com seriedade a vocação de Cristo. Como, no entanto, não foi feito menção aqui de esforço e perseverança, para que ninguém imagine que a salvação consiste nessas coisas, ou mesmo atribuída à industriosidade humana que vem

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de outra parte, com a visão de apontar a causa de todas essas coisas, ele acrescenta - em Cristo Jesus.

Crescimento Rumo à Maturidade Espiritual - Comentário de Filipenses 3.15

“Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se, porventura, pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá.” (Filipenses 3.15) “Todos, pois, que somos perfeitos”. Para que ninguém viesse a entender isso como se referindo à humanidade em geral, como se estivesse explicando os elementos simples para aqueles que são meras crianças em Cristo, ele declara que isto é uma regra que todos os que são perfeitos deveriam seguir. Agora, a regra é esta - que devemos renunciar à confiança em todas as coisas, para que possamos nos gloriar somente na justiça de Cristo, e preferindo-a a tudo o mais, aspirar por uma participação em seus sofrimentos, que pode ser o meio de conduzir-nos a uma abençoada ressurreição.

(Perfeição espiritual neste mundo é equivalente ao grau de maturidade espiritual que é atingido por meio da fé em Cristo que habilita a entender e a viver o evangelho tal como ele é de fato - nota do tradutor)“E, se, porventura, pensais doutro modo”. Pelos mesmos meios ele tanto os humilha, e os inspira com boa esperança, porque os adverte para não se exaltarem em sua

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ignorância e, ao mesmo tempo, ele lhes ordena que tenham bom ânimo, quando diz que devemos aguardar a revelação de Deus. Porque sabemos quão grande obstáculo à verdade é a obstinação. Este, “porventura”, é a melhor preparação para a docilidade - quando não temos prazer no erro. Paulo, portanto, ensina indiretamente, que devemos abrir caminho para a revelação de Deus, se nós ainda não alcançamos aquilo que buscamos. Mais adiante, quando ele ensina que devemos avançar por graus, ele lhes incentiva para não recuarem no meio da jornada. Ao mesmo tempo, ele mantém para além de toda controvérsia o que já havia ensinado previamente, quando ele ensina que outros que discordam dele terão uma revelação dada a eles do que ainda não sabem. Porque isto é como se tivesse dito: "O Senhor, um dia, vos dirá que a própria palavra que tenho afirmado é uma regra perfeita de conhecimento verdadeiro e do viver justo." Ninguém poderia falar desta maneira, se não estivesse totalmente assegurado da razoabilidade e precisão de sua doutrina. Vamos nesse meio tempo aprender também a partir desta passagem, que devemos topar por um tempo com a ignorância em nossos irmãos fracos, e perdoá-los, se não lhes é dado imediatamente serem de uma mente conosco. Paulo se sentia seguro da sua doutrina, e ele ainda acolhe àqueles que ainda não puderam chegar à hora de fazer progressos, e não deixa por conta disso de considerá-los como irmãos; somente os adverte contra ficarem inchados em si mesmos, em sua ignorância.

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Paulo, um Modelo para os Cristãos - Comentário de Filipenses 3.16,17

Flp 3:16 Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos. Flp 3:17 Irmãos, sede imitadores meus e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós. v. 16 – “Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos”. Mesmo os manuscritos gregos divergem quanto à divisão dos períodos, pois em alguns deles há duas frases completas. Se alguém, no entanto, prefere dividir o verso, o significado será como Erasmo o tomou. Da minha parte, eu preferiria uma leitura diferente, o que implica que Paulo exorta os Filipenses a imitá-lo, para que possam finalmente alcançar o mesmo objetivo, de modo a pensar a mesma coisa, e caminhar pela mesma regra. Porque onde o afeto sincero existe, assim como reinou em Paulo, o caminho é fácil para uma concórdia santa e piedosa, como, portanto, ainda não tinham aprendido o que a perfeição verdadeira era, a fim de que pudessem alcançar isso ele deseja que eles sejam seus imitadores; ou seja, buscarem a Deus com uma consciência pura (2 Timóteo 1.3), para nada arrogarem para si, e com calma submeter seu entendimento a Cristo. Porque na imitação de Paulo todas estas excelências estão incluídas - zelo puro, temor do Senhor, modéstia, autorenúncia, docilidade, amor e desejo de concórdia. Ele lhes ordena, no entanto, a serem um e ao mesmo tempo imitadores dele; isto é, todos com o mesmo espírito, e com uma só mente.

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Observe, que a meta da perfeição para a qual ele convida os Filipenses, pelo seu exemplo, é que eles pensem a mesma coisa, e caminhem pela mesma regra que ele tem, embora, tenha atribuído o primeiro lugar à doutrina em que eles deveriam se harmonizar, e à regra à qual deveriam se conformar.

v. 17 – “Observai os que”. Por essa expressão ele quer dizer, que isto é tudo o que as pessoas devem fazer individualmente para si mesmas, para a imitação, conformando-se com a pureza da qual ele era um modelo. Por este meio toda suspeita de ambição é removida, porque o homem que se dedica a seus próprios interesses não deseja ter qualquer rival. Ao mesmo tempo, ele lhes avisa que todos não devem ser imitados de forma indiscriminada, como ele explica mais detalhadamente depois.