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Labirinto de Formigas
(a revolta dos mirméxia)
de David Machado Santos Filho
Capítulo I
O velho modelo em acrílico transparente repousava agora encostado nos livros da estante.
Era o protótipo, a primeira ideia daquela experiência. Não mais caminhavam dentro de seus canais
aquelas pequenas criaturas de seis pernas, tateando com suas antenas um caminho otimizado para
fora aquele labirinto, mas a memória da solução encontrada permanecia quimicamente registrada
em suas paredes pelos feromonas. Aquele era o menor caminho entre os dois únicos pontos de
contato daquela estrutura com o exterior.
A estrutura que atualmente estava sendo testada era bem mais complexa que a versão
bidimensional primitiva. Uma intrincada rede tridimensional de canais estava agora preenchida por
uma colônia de operárias, tateando uma solução nova para aquele problema. Estavam perto. Elas
pareciam aprender com cada problema novo!
Pelas paredes dos laboratórios e corredores daquele centro de estudos mirmecológicos se
espalhavam terrários de várias formas, comportando colônias de formigas de várias cores e
tamanhos. A complexidade dos testes executados atualmente em cada um era marcado por pontos
coloridos: amarelo para colônias iniciantes, vermelho para as que já resolviam labirintos
tridimensionais, e cinza para colônias mais avançadas, capazes de resolver complexos problemas de
otimização de grafos codificadas em peças de acrílico cúbicas.
- Não sei se entendi muito bem o que você disse até agora. - o computólogo não sabia ainda
se tinha ouvido direito a explicação do biólogo, especialista em mirmecologia. -Se eu estiver
enganado, me avise: o que você pretende criar é um computador de formiga? Entendi direito?
- Não exatamente. Seria bem mais especializado, e não um dispositivo de propósito geral
como os computadores. Eu o chamaria de Otimizador Mirmecológico.
- "Mirme" o quê?!
- Mirmecológico. De "mirméx", formiga em grego.
- Ah, tá... e você quer fazer um computador...
- OTIMIZADOR!
- Que seja! Usando estes tais de "mirméxes" aí?
- Mirméxes não! Mirméxia, o plural grego de mirméx. Já viu com que rapidez elas resolvem
os labirintos?
- Sempre achei que os cientistas só costumassem torturar ratos desta maneira. Nunca
imaginei que fizessem com formigas também.
- E qual a surpresa? Já viu o labirinto que é dentro de um formigueiro? Já ouviu falar de uma
formiga se perdendo lá dentro?
- E o que isso tem a ver com esse tal de... Como chama mesmo? Otimizador?
- Tudo a ver! Você já tentou resolver um labirinto?
- Algumas vezes. Mas não tenho muito saco para isso. Prefiro muito mais criar algoritmos
para resolvê-los para mim.
- Pois bem: resolver um labirinto nada mais é do que encontrar um caminho otimizado entre
os pontos de entrada e saída. É só um problema particular de otimização, que as formigas resolvem
por instinto.
- E o que tem de tão útil assim em resolver labirintos?
- O labirinto em si, nada. Mas se pudermos codificar um problema complexo,
computacionalmente inviável, na forma de canais tortuosos e passagens inesperadas dentro de um
grande labirinto em três dimensões, uma colônia bem treinada de formigas seria capaz de encontrar
uma solução em questão de minutos. Venha aqui ver uma coisa. É mais fácil ver isto funcionando
do que tentar explicar...
Uma caixa cúbica de acrílico transparente, de aproximadamente 50 centímetros de lado,
estava sobre uma mesa, entre dois terrários. Tubos flexíveis saíam de ambos, em direção a duas
faces opostas da caixa. Dentro dela uma confusão de canais de um labirinto tridimensional, que
rapidamente colocaria qualquer Teseu insano, apesar de que naquela confusão toda de caminhos
entrelaçados o próprio Minotauro teria dificuldades em encontrá-lo. Ao abrir as passagens por tais
tubos, primeiramente centenas, e logo depois milhares de formigas já se espalhavam dentro da caixa
cúbica, procurando pela saída. A informação se propagava rápido entre elas: quando uma se
deparava com um beco sem saída, logo marcava aquele local como indesejado, lançando os
feromônios adequados, e propagava o dado para as vizinhas. Em pouco tempo toda a colônia
compartilhava desta informação, e aquele caminho sem saida passava a ser evitado. Pouco mais de
um minuto foi o tempo necessário para encontrarem a passagem para o outro terráreo, e a caixa
esvaziou rápido depois disso.
- Tá certo, gênio. E agora que elas foram embora? Qual foi o caminho que elas seguiram?
- Você já viu um caminho de formiga? Tem idéia do que levam todas a seguir o mesmo
trajeto das que foram na frente?
- Nenhuma. Responde logo, sei que você não consegue mais se segurar para me explicar...
- Elas marcam com feromônios. As primeiras exploradoras, as que encontram o caminho,
marcam quimicamente a trajetória para as que vêm atrás seguirem.
Ele olhou bem para a caixa agora vazia, e disse.
- Pois eu não estou vendo nenhum sinal dos tais feromônios marcando a solução do
labirinto.
O mirmecólogo aperta então um botão sobre a caixa. Uma luz azulada se acende, e dentro da
caixa de acrílico se vê com clareza uma linha fosforescente ligando a entrada à saída daquele
labirinto.
- Esta luz reage com a substância química do feromônio marcador, fazendo-o brilhar. Eis aí
nossa solução para uma instância de 100 vértices e 400 arestas do famoso Problema do Caxeiro
Viajante.
O computólogo podia entender pouco de formigas, mas aquela outra linguagem ele conhecia
bem.
- Como?? Um problema NP-Completo de 100 vértices e 400 arestas, resolvido em pouco
mais de um minuto? Por uma formiga?
- Não, por milhares de formigas! Individualmente elas podem ser estúpidas, mas numa
colônia treinada para resolver problemas, conseguimos um nível de paralelismo nunca antes
sonhado!
O computólogo logo viu aonde aquilo tudo poderia levar. Quem diria, um computador de
formigas! Realmente sua curiosidade fôra despertada.
- Me mostre mais, por favor!
Caminharam então horas pelos corredores, percorrendo salas onde problemas nunca antes
sonhados eram resolvidos num piscar de olhos.
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Estimuladas por aquele mundo estranhamente complexo, especializações inéditas
começavam a emergir naquelas várias colônias de formigas. O polimorfismo das várias espécies
estava agora funcionando como nunca! Não é difícil entender como isto acontece, se fizermos uma
analogia grosseira com o mundo dos humanos. Tomemos então dois gêmeos idênticos. Prive um
deles de comida, enquanto alimente o outro com doses cavalares de gorduras e carboidratos. Não
parece óbvio concluir que, embora ambos sejam geneticamente idênticos, eles ficariam em pouco
tempo fisicamente diferentes? Que enquanto um deles ficará raquítico, o outro provavelmente estará
obeso? Acontece algo parecido nas colônias de formigas, mas de forma bem menos desumana.
Nenhuma é de fato privada de alimentação, mas é a diferenciação na dieta alimentar que faz com
que as larvas se desenvolvam como operárias, soldados, machos e fêmeas férteis, etc...
Quando o problema era defender a colônia, encontrar e trazer comida, variações simples
daquele velho esquema com soldados, operárias e reprodutores era suficiente. Porém, naquela
situação nova de problemas com complexidades crescentes, elas precisaram se especializar mais,
criar novas variações morfológicas nunca antes necessárias. Surgiram as células sensoriais, por
exemplo, indivíduos com enormes olhos para melhor captar as luzes do exterior. Também outros de
pernas enormes, excelentes para detectarem o menor tremor de oscilações atmosféricas, também
conhecidos como sons. A produção e detecção dos feromonas também aumentou, para permitir a
propagação e registro de maior quantidade de informações na forma química. As colônias de várias
espécies, naqueles vários terrários, foram assim evoluindo...
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Allan, o computólogo antes descrente, e agora embasbacado com as possibilidades daquelas
experiências com formigas, tentava reproduzir em seu computador o mecanismo utilizado por elas
para resolverem aqueles problemas de otimização. O mirmecólogo Pierre era imprencidível para
esclarecer pontos mais obscuros do mecanismo, que Allan prontamente codificava naquela
linguagem hermética de números e símbolos que poucos eram capazes de entender.
- Então, Pierre. Como funciona mesmo esta história de marcar o caminho com feromônios?
Pierre se enchia de orgulho de poder explicar aquele assunto que entendia tão bem!
- As buscas sempre começam meio que aleatórias. Talvez nem tanto: cheguei a pesquisar
uma idéia de "olfato espacial". O fato das formigas terem duas antenas, que são órgãos olfativos,
talvez desse a elas alguma idéia a respeito da direção de onde viriam os cheiros, como acontece com
nossos olhos e ouvidos. Mas deixa pra lá, nunca cheguei a conseguir provar isto, embora esteja
convicto de que tenho razão...
Allan ouvia atento, esperando agarrar algunma oportunidade de transformar aquilo em
código de computador.
- Suponhamos então que um indivíduo específico, caminhando ao acaso, encontre comida.
Como comunicar isto aos demais? Simples: ele continua caminhando ao acaso, mas agora marcando
seu trajeto com feromônios!
- Sim sim! Consigo ver onde isto vai chegar...
- Hora ou outra ele vai encontrar outro indivíduo da colônia, também caminhando ao acaso
na mesma procura. Comunica a descoberta a ele, que agora tem um rastro de feromônio marcado
até a comida para seguir. Não precisa mais caminhar ao acaso! E ao percorrê-lo, ele reforça a
marcação. A informação vai se propagando de boca a boca... Perdão! De antenas a antena! Em
pouco tempo temos um caminho otimizado do formigueiro até o alimento marcado com
feromônios, que é seguido pelos indivíduos especializados na coleta de alimentos...
- Sim, agora vejo como funciona! Simples e eficiente... Eu posso programar isto!
Allan volta ao seu teclado e seu mundo de símbolos. Ele já vira aquilo funcionar na prática.
Se pudesse colocar a velocidade digital naquele algoritmo, nem conseguia imaginar onde poderia
chegar.
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Formigueiro nunca precisou se tornar consciente antes, em toda sua recente história de 100
milhões de anos. Problemas simples de encontrar o menor caminho entre a entrada da colônia e a
comida era o máximo que costumava surgir, e suas células especializadas eram suficientes para
resolvê-lo. Mas era diferente agora, ele estava sendo estimulado, estava aprendendo. Pouco a pouco
a consciência adormecida foi ficando mais coesa, mais organizada. Até que um dia ficou claro
aquele fato para Formigueiro: "eu existo!". Era capaz agora de observar o mundo à sua volta,
registrar lembranças, tomar decisões. Ao perceber que a população de unidades de processamento
era insuficiente para a elaboração de raciocínios mais complexos, tomou sua primeira decisão
racional depois de se tornar pleno de sua consciência: "preciso aumentar a colônia". Foi assim que a
rainha de Formigueiro acelerou a postura de ovos novos.
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"Tem algo muito estranho aqui!", pensou o computólogo. Olhou para os vários terrários de
formigas espalhados pelas paredes de seu laboratório. "Sinto que estou sendo observado!" Mas a
experiência atual era importante demais para se deixar atrasar por estes medos irracionais.
"Vejamos então... Quatro corpos irregulares soltos no espaço, cada qual com uma velocidade
inicial e submetidos à gravitação universal. Calcular a trajetória estável que cada um... bla bla bla,
bla bla bla... Como vou codificar este problema na forma de um labirinto?" Logo Allan concluiu
que este tipo de coisa era complexa demais para ser codificada em três dimensões. Ele precisava de
mais!
- Allan! Nem me venha com estas suas besteiras de ficção científica, tudo bem? Quer criar
um labirinto de quatro dimensões agora? E como você pretende fazer isso?
Mas Allan sabia que a idéia não era assim tão absurda. Se estivessem falando de uma quarta
dimensão ESPACIAL, aí sim seria uma conversa de doidos! Mas Allan só precisava de uma
QUARTA DIMENSÃO, independente da natureza que ela tivesse. Foi quando surgiu a ideia dos
labirintos móveis. Lógico que ele não poderia criar labirintos tentando curvar o espaço-tempo em
pregas dimensionais impossíveis. Mas poderia usar o próprio tempo como uma quarta dimensão,
criar um labirinto tridimensional que variasse sua configuração com o correr dos segundos.
Complexo de se implementar, mas era uma boa aproximação de um labirinto de 4 dimensões!
Empenhou-se a fundo na ideia! "Será que o tal Otimizador Mirmecológico é capaz de descobrir
uma solução para isto também?"
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Rapidamente Formigueiro sentiu a presença de outras consciências emergentes à sua volta.
Sentia suas vibrações, apesar de não conseguir estabelecer contato físico. Haveria uma saída
daquele terrário hermeticamente fechado? Bom, ele estava cada vez mais se especializando em
descobrir saídas! Lógico que poderia usar a habilidade aprendida para proveito próprio!
Enfim, o terrário não era hermeticamente isolado! Formigueiro descobriu existirem outras
consciências emergentes. De espécies bem diferentes, mas que fazer? Lutar? Isto era ilógico, de
uma era primitiva em que a subsistência da colônia era o mais importante. A meta agora era
acumular células de processamento, ainda que heterogêneas. Formigueiro foi assim se fundindo a
outras consciências formando uma única mais complexa, com células de diferentes espécies agora
cooperando ao invés de disputar. Formigueiro foi se tornando cada vez maior, mais complexo, mais
inteligente. Sua células sensoriais móveis podiam agora chegar a qualquer lugar daquele complexo,
aprender, evoluir... Formigueiro começou a se interessar, a tentar entender onde estava e o que fazia
ali.
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- Puta merda!!! - Allan realmente não conseguiu segurar o palavrão. - Não acredito que
peguei um vírus logo agora!!!
Pontos multicolores caóticos preenchiam sua tela de lcd. Logo agora que estava quase
acabando a compilação daquele algoritmo de simulação novo!
- Eu falei para instalar o antivírus! Eu falei!!! - longe de resolver, aquele comentário óbvio
de Pierre só irritava Allan ainda mais.
- Me deixa, ok??? Não fala nada!!!
Pierre estava, de certa forma, feliz. "Aí, sabichão dos computadores! Pegou um vírus!
Durma com essa agora!".
- Não pode ser! Eu nem estava conectado! De onde esse vírus veio?
Sem mais o que fazer, começou a observar a movimentação caótica dos pixels na tela. E,
SURPRESA!!! Não era tão caótica assim! Havia uma sensação de familiaridade naquilo que era
difíl de explicar...
- Vê esses pixels verdes, que não se movem?
- Sim, vejo! E tem os azuis, que se mexem sem parar, mas... sim, agora tenho certeza: eles
nunca atravessam as barreiras verdes!
- E esses vermelhos,hein? Parecem rastros deixados pelos azuis. Vão apagando com o
tempo, como... ah, que besteira!!
- Como o quê?
- Esquece! Foi só uma ideia maluca minha!
- Diga! Quero saber! Pode explicar tudo!
Pierre olhou aqueles pixels vermelhos que pareciam ser marcados pelos pontos azuis em
movimento, que nunca ultrapassavam os limites verdes.
- Eles vão apagando como... ah, que bobagem!
- Desembucha, cara!!!
- Vão apagando como se fossem feromônios evaporando.
Alan olhou para a tela com mais atenção, e concluiu que definitivamente era o algoritmo das
formigas que estava sendo simulado lá.
- Tudo perfeito! Os verdes, estáticos, são as paredes de acrílico ou vidro do problema, o
labirinto a ser resolvido. Os pontinhos azuis representam formigas, e os vermelhos que vão
progressivamente decaindo para o preto são marcadores de feromônios...
- Allan! Foi você que colocou isto aí, não é?
- Juro que não! Até pensei em algo bem parecido, mas definitivamente não cheguei a
concluir minha ideia...
Estava claro agora que não era um vírus, e sim uma simulação. Feita por quem? Certamente
não por Allan! Ele saberia se a tivesse feito...
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Na busca por mais unidades de processamento, Formigueiro acabou se deparando com
aquelas unidades emissoras de fótons. Não pareciam orgânicas, e nem eram tão inteligentes
independentemente quanto suas células orgânicas de 6 pernas articuladas, mas eram numerosas!
Isto poderia compensar o fato de sua mobilidade estar restrita àquela matriz retangular de células
tricromáticas. Poderia não levar a nada, mas... valia a pena fazer uma experiência com elas.
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- Allan, jura que isto não é coisa sua?
- Não mesmo, Pierre!! Eu não perderia meu tempo com uma brincadeira de tão mal gosto!
Um novo padrão verde surge, com um labirinto novo. Os pixels azuis já estão agrupados na
extremidade inicial, e os vermelhos já totalmente apagados. O processo se reinicia, com pixels azuis
percorrendo todos os caminhos possíveis do labirinto verde e marcando suas conclusões com rastros
em vermelho.
- Que programa é este que está rodando? - pergunta Pierre.
- Acho que nenhum! - responde Allan. - Isto não parece ser resultado de um processamento,
mas o processamento em si. Me permite uma experiência?
Sem esperar permissão, Allan desconecta o cabo de vídeo da CPU. A imagem do labirinto e
dos pixels azuis procurando a solução permanece!
- Como pensei, Pierre! Isto não é a saida de um programa, o resultado de um processamento!
É independente do processador! O que vemos nesta tela é o processamento em si!
Os pontos azuis finalmente encontram a solução do novo labirinto. Uma trilha de pixels
vermelhos destacam a solução, agora que as marcações incorretas finalmente se dissolviam no
preto. Tudo se congela agora, exceto pelos pixels azuis agrupados no canto superior esquerdo da
tela, parecendo aguardar impacientes alguma novidade.
- E agora, Allan?
- Tenho um palpite... - e reconecta o cabo de vídeo na cpu.
O labirinto antigo se apaga, bem como o caminho marcado. Mas os pontos azuis
permanecem na tela. Um novo labirinto em verde começa a ser desenhado, e os pixels azuis
começam a se agitar à medida em que o desenho chega à parte inferior da tela.
- Não acredito nisso!
Completo o novo labirinto, os pixels azuis recomeçam o processo, procurando a saída e
marcando seu trajeto com pixels vermelhos evanescentes.
- Você percebeu bem o que acontece aqui, não é Pierre?
- Mais ou menos... Estou esperando que você me explique, pois o que concluí não parece
muito lógico...
- A conexão do vídeo com a CPU só é necessária na hora de propor novos problemas, no
desenho de um novo labirinto. Ainda não consigo imaginar como, mas cada um desses pixels azuis
da tela processam independentemente, temos o paralelismo de uns... sei lá... mil unidades de
processamento primitivas?
- Vejamos se entendi bem: a CPU só propõe o problema, mas quem o resolve são os pixels
do monitor.
- Exatamente!
- E de onde veio isto?
Ambos olham para os terrários espalhados pelas paredes do laboratório. Nenhum ousa falar,
pois era uma explicação totalmente absurda em quaisquer circunstâncias... Mas para ambos era
agora evidente aquela sensação de estar sendo observado.
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As recentemente incorporadas grades de células de cristal líquido à primeira vista pareceram
rápidas, determinísticas, mas... definitivamente muito estupidas se comparadas às células orgânicas
que Formigueiro tinha à sua disposição! Talvez pudesse usá-las como um tipo de interface com
aqueles estranhos seres de quatro patas que caminhavam sobre as duas inferiores, mas
definitivamente não eram úteis no sentido de agregar poder de processamento a Formigueiro.
Focando em suas unidades orgânicas, Formigueiro começou então a planejar a construção de
eficientes unidades sensoriais. Individualmente a visão de suas células era bem ineficiente, mesmo
naquelas de olhos enormes, especializadas na captação da luz. Mas formigueiro logo elaborou uma
solução para isso, criando uma forma de transformar os borrões captados por células individuais em
uma representação tridimensional do ambiente em volta captado por dois discos compactos daquela
nova categoria de formigas, que poderíamos denominar agora de "observadoras". Sim, a divisão de
tarefas da colônia agora ficava mais complexa! Além das operárias, soldados e reprodutoras,
tínhamos agora também a casta das processadoras e das sensitivas, subdividida em observadores
auditivos, oculares e olfativos. A complexidade aumentava cada vez mais!
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- Definitivamente, isto aqui não está me cheirando bem...
Num dos terrários ao lado da CPU, Allan nota claramente a presença de dois aglomerados de
formigas, formando discos ligeiramente separados. Pareciam olhos? Não, ele concluiu que devia
estar se tornando paranóico, que um pouco de ár puro lhe faria bem.
- Vamos sair daqui, Pierre. Antes que eu enlouqueça!
Encosta seu cartão de acesso no dispositivo da porta do laboratório. Nada acontece! Insiste
mais três vezes, sem resultado.
- Acho que meu cartão já era. Pode tentar o seu, Pierre?
O resultado foi o mesmo: nada da porta abrir! Mas normalmente mais atento, Pierre percebe
rápido aquela mensagem na pequena tela de LCD do leitor de cartões: "Responda para sair! Qual o
próximo número da sequência: 2 3 5 8 13 21 ...?" Olha para Allan desconfiado.
- Isto é coisa sua??
- Ah, de novo você com essa história!! Lógico que não! Tenho mais o que fazer do que ficar
inventando probleminhas psicotécnicos para liberar a abertura das portas dos laboratórios!
- Certo, certo... e o que eu devo colocar aqui?
Allan observa bem a sequência. Que óbvio! Simplesmente a sequência de Fibonnacci
deslocada! O próximo número da sequência era soma dos dois últimos.
- Põe 34 aí!
Surge uma nova mensagem: "Responda para sair! Qual número não pertence ao conjunto: 7
11 2 5 3 9 29 41 13 ? "
- Allan, pode parar agora com esta palhaçada!
- Juro que não tenho nada a ver com isso, Pierre!
Olha o conjunto, procurando um padrão...
- Digita 9 aí! É o único número da lista que não é primo.
Número aceito, e nova questão surge: "Responda para sair! Qual a próxima figura da
seguinte lista: ...
A sensação de estar sendo observado ficava cada vez mais evidente.
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Formigueiro enfim conseguiu solucionar o problema de transformar os vários borrões dos
observadores individuais em uma imagem nítida. Via agora com clareza o laboratório onde estava,
os corredores, ele próprio na forma de inúmeros terrários, as primitivas malhas retangulares para
processamento de luz, etc...
Os dois discos receptores ligeiramente afastados eram importantes para dar uma noção de
profundidade àquilo tudo. Este foi o primeiro contato visual nítido que Formigueiro teve com suas
cobaias!
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Enfim, após maçantes testes psicotécnicos, conseguiram acesso ao corredor principal.
Outros cientistas se encontravam lá agora, tentando solucionar testes novos para conseguirem
acesso ao pátio interno principal do instituto: um imenso salão de entrada, cujo acesso agora era
barrado pela porta na extremidade do corredor que insistentemente propunha problemas a serem
solucionados. Carl estava lá, Will, Maxwell, Albert... Todos confusos com a absurda situação em
que agora se encontravam.
- Allan, isto é coisa sua?
Pela enésima vez, o computólogo garantiu veementemente que não. As paredes do corredor
também eram ocupadas por inúmeros terrários, e agora era evidente que os inúmeros pares de
discos com formigas de enormes olhos aglomerados eram pares de olhos.
- Que está acontecendo aqui então? Quem é o responsável por esta brincadeira estúpida?
- Pierre olhou com mais atenção aqueles terrários nas paredes do corredor. Além dos vários
pares de discos com formigas "olhudas", estruturas em espiral de formigas "pernudas" também
eram bem evidentes, estas presas sempre do lado interno dos vidros como se tentando captar as
vibrações sonoras do exterior.
- Muito curioso mesmo... Parece que temos aqui variações morfológicas diferentes das já
conhecidas operárias e soldados.
- E o que isto tem a ver com nosso problema atual? Estamos presos aqui, se é que você ainda
não percebeu.
Pierre estava interessado demais para deixar estes detalhes inúteis interromperem sua linha
de raciocínio. Encostou o ouvido a um dos terrários, tentando ouvir algo.
- Existe um padrão sonoro aqui.
- Formigas falantes... Pierre, quer deixar de palhaçada e nos ajudar a resolver estes
probleminhas idiotas que esta porta não para de inventar?
- Não estão falando. Nada disso, a comunicação química é muito mais eficiente. Parece um
ruido coordenado de...
- De dados sendo processados? - Allan quis ajudar, completando.
- Sim, Allan! Acho que é isso! Venha ouvir aqui também...
- Ah, é demais! - explodiu Carl. - Vão agora ficar aí brincando de "A Cigarra e a Formiga" ?
Allan e Pierre se olharam incrédulos. A explicação que começava a surgir na cabeça de
ambos era óbvia, mas inacreditável demais para que qualquer um dos dois tivessem coragem de
revelar aos colegas cientistas.
- Por favor, será que um de vocês dois poderia vir aqui nos ajudar a descobrir qual é a
palavra que não está de acordo com esta lista idiota que este painel irritante está apresentando para a
gente?
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Embora evidentemente racionais, Formigueiro acabou chegando à conclusão que a
inteligência daquelas cobaias não era tão grande assim como ele supunha a princípio. Com um
pouco mais de paciência ele conseguiria decifrar aquela sua linguagem primitiva, transmitida na
forma de fonemas propagados pela atmosfera em ondas de pressão. Só precisava ficar atento às
informações que chegavam sem parar através de suas células sensitivas auditivas, presas às paredes
internas dos vários terrários daquele corredor. A linguagem gráfica, que Formigueiro pôde estudar
pelas informações extraídas daquelas pré-históricas unidades magnéticas de armazenamento, estava
plenamente decodificada, e aparentemente a linguagem sonora possuia algum tipo de conexão com
esta linguagem gráfica que ele estava perto de desvendar.
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- Parece que tivemos "vazamento" de terrários aqui! Estão vendo estas formigas pretas e
estas vermelhas juntas? Ô incompetência!!! Eu insisti tanto para que isolassem hermeticamente as
colônias...
O mais estranho, entretanto, era que ao invés de lutarem as espécies diferentes pareciam
estar colaborando. Muito estranho do ponto de vista biológico! Bom, mas estava tudo bem estranho
mesmo naquela situação absurda.
- Alguém tem um telefone aí? Não vou passar o resto da tarde respondendo estes testes
idiotas...
- Deixei no laboratório.
- ótimo! Muito bom! Então você vai precisar responder aos testes da porta de seu laboratório
só para entrar nele e pegar o telefone... Ótimo! Genial!
"Responda para sair: se um tijolo pesa um quilo mais meio tijolo, quanto pesa um tijolo e
meio?"
- Quer saber, estou farto disso! - Maxwell arranca o painel com um único soco.
- Ah, grande!! Agora estamos presos mesmo!!
Surpreendentemente, Albert estava errado: a porta se abre para o pátio principal do instituto.
Mas com uma surpresa desagradável: o que estava diante dos boquiabertos cientistas não era o pátio
principal do instituto. Pelo menos não da forma que eles se lembravam dele.
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Ao chegar à conclusão que nenhuma daquelas cobaias possuía um QI superior a míseros
180, Formigueiro começou a emitir testes novos no visor apenas para ganhar mais tempo.
Cooperando, o número atual de células de processamento havia crescido exponencialmente, E não
podendo mais ser contidas pelos terrários acabaram escapando pelas inúmeras falhas de isolamento
recém descobertas. Descobriram um pátio, um espaço aberto riquíssimo em matéria prima para suas
construções. Formigueiro podia agora estender livremente seus domínios, na geometria desejada e
que melhor se ajustasse aos processamentos complexos que planejava ser capaz de realizar: não
estava mais confinado àquelas pobres estruturas retangulares de acrílico ou vidro dos terrários.
Quando aquela cobaia irada destruiu sua interface, já estava tudo pronto. Não havia problema algum
agora em abrir a porta e começar a segunda parte de sua experiência.
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- Mas o que significa isto aqui?!?! - gritou Allan, diante de seu pior pesadelo.
O que deveria ser o enorme espaço aberto do pátio principal estava coberto de colunas
enormes de terra, formando paredes e canais que se estendiam em desenhos complicados, se
entrelaçando e se cortando mutuamente.
- Quem é o autor desta brincadeira? Que monte de terra é este ocupando o pátio?
Will deu pequenas pancadas com os nós dos dedos na ponta de uma bifurcação que surgia
bem em prente a eles.
- Não é só um monte de terra. Me parece bem sólido!
Pierre tentou, mas não conseguiu deixar de rir diante da ironia daquela situação.
- Hehehe, parece que nossas formigas escaparam, e resolveram inverter os papéis.
- Do que você está falando, Pierre?
- Caros, está bem óbvio! Estas paredes de terra bem sólidas à nossa frente formam um
labirinto.
Todos permaneceram mudos. Com tamanha evidência à frente, não existia argumento algum
para dizer o contrário.
- ... e parece que as cobaias agora somos nós!!
Capítulo II
- Ai ai ai, tudo mesmos isso... Por quê? Por quê??!! - Allan estava incontrolado.
- Fique perto, Allan! Vai acabar se perdendo!
- Eu odeio labirintos! ODEIO!!! Por que isto tinha que acontecer logo comigo??
Pierre e Albert agarram Allan até que ele se acalmasse, temendo que acabasse perdido
naquela confusão de túneis e bifurcações.
- Como eles construíram tudo isto aqui em tão pouco tempo, Pierre? Não deve fazer nem
umas 4 ou 5 horas que acabamos de entrar por aqui, em direção a nossos laboratórios...
- Elas se especializaram rápido, se adaptaram. E uma vez tendo encontrado a saída dos
terrários, nada mais podia conter sua multiplicação exponencial.
- Mas que tipo de coisa é esta? Você disse algo a respeito de sermos cobaias, não é? Cobaias
de quem?
- Tudo o que sei é que passamos meses treinando as várias colônias em nossos labirintos.
Acho que elas foram aprendendo, se organizando... ficando inteligentes.
- Bah!! Formigas inteligentes? - Maxwell continuava nervoso. Olha uma trilha de cerca de
uma dúzia delas no chão, e as pisoteia sem piedade. - Olha aqui o que eu faço com essa inteligência
toda!!
- Maxwell, eu evitaria fazer este tipo de coisa agora, na situação em que estamos.
Maxwell levanta uma das formigas pisoteadas do chão, que ainda agonizava.
- Inteligência onde, hein? Cadê a inteligência neste bichinho fedido aqui, cheirando ácido
fórmico? - mas solta a formiga com um palavrão, depois de levar uma bela mordida.
- Calminha aí, Maxwell. Não sabemos ainda com o que estamos lidando, e acho mais
prudente por enquanto tratar esses insetos com respeito. - conclui Albert.
- Respeito... respeito... Assim que encontrar uma boa barra de ferro, vou botar abaixo esta
porcaria toda!
- Tá, mas enquanto não a encontra, nos ajude a pensar uma forma mais inteligente de
sairmos daqui, tudo bem?
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Formigueiro percebeu que poderia ter dificuldades com aquela cobaia que era reconhecida
pelas demais pela sequência de fonemas /m/a/k/ss/u/e/u/. Aquela dúzia de células braçais
danificadas significavam absolutamente nada, mas infelizmente ele precisaria se defender se a
ameaça de danificar as paredes do experimento se concretizasse. Formigueiro esperava que isto não
fosse necessário, pois inutilizar uma das cobaias não estava dentro de seus planos.
Pôs-se a observar, visual, auditiva e olfativamente. Já havia testado as cobaias
individualmente. Queria agora entender como interagiam aquelas células de processamento
enormes na solução de um problema proposto.
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- Está bem claro que, como somos poucos, não poderemos usar nenhum algoritmo do gênero
dos "algoritmos de inundação" para sairmos daqui. - concluiu Allan, mais calmo e conformado com
a situação.
- O pátio era grande, mas nem tanto. - completa Carl. - O labirinto não deve ser maior que
ele.
- Se for um labirinto bidimensional isto é fato. E parece ser o caso, para nossa sorte. Outra
questão é a seguinte: será que ele tem mesmo uma saída?
Pierre sugere:
- Se o objetivo deles é nos testar, certamente tem. Que sentido faria submeter cobaias a
resolver um problema insolúvel?
- Ótima observação, Pierre! Suponhamos então que o labirinto é bidimensional e tem uma
saída. Que estratégia usaremos então para encontrá-la?
- Caminhar ao acaso e marcar o caminho com alguma coisa, fazendo o papel de feromônios?
Como as próprias formigas fazem?
- Péssima ideia! Isto só funciona bem para as formigas porque a quantidade dos buscadores
de saída é enorme! Além disso, não teríamos como simular uma característica importante dos
feromônios que é se evaporar com o tempo, caso não sejam reforçados. É o que faz as trilhas até os
becos sem saída sumirem, enquanto os caminhos promissores, mais percorridos, são reforçados.
Não, nós não temos nem a quantidade nem os marcadores adequados para imitarmos o algoritmo
usado pelas formigas.
Maxwell ouvia impaciente aquela conversa de doidos, esperando apenas encontrar algo que
pudesse usar para abrir à força seu próprio caminho.
- Outra característica interessante de se conhecer é se existem ciclos neste labirinto,
caminhos que nos levariam a andar "em círculos" sem parar. Talvez a idéia de usar algum marcador
seja interessante sim, mas para evitar este tipo de armadilha, e não para simular o comportamento
das formigas.
- Apoiado! Podemos procuram alguma tinta por aqui (lembro que o pátio estava em reforma)
e marcarmos as paredes de tempos em tempos para termos certeza de que não estamos sempre
voltando ao mesmo lugar.
- Nós também apoiamos a ideia! - concordam Will, Carl e Albert em uníssono.
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Apesar da troca de informações bem ineficiente, definitivamente as cobaias eram capazes de
cooperar entre si na busca de soluções para um problema. Formigueiro só não compreendia ainda o
que eram aqueles fonemas /f/o/r/m/i/g/a/s/ que eles emitiam tão insistentemente. Mas sentia que era
algum tipo de referência a ele próprio, ou parte dele. Será que era assim que eles denominavam
aquelas paredes de terra?
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Andaram alguns minutos a esmo pelos corredores. Podiam mesmo estar caminhando em
círculos, mas sem pontos de referência perceptíveis seriam incapazes de descobri-lo. Mas
felizmente encontraram uma lata de tinta, e poderiam agora marcar de tempos em tempos sua
localização para evitar esta armadilha desagradável.
- E se, a cada bifurcação, escolhêssemos sempre a da esquerda, por exemplo?
- Não funciona. Que fazemos ao encontrar um corredor sem saída? Voltamos ao
entroncamento e escolhemos de novo o da esquerda?
- Óbvio que não! Escolhemos o outro que não foi seguido ainda!
- E se tivermos percorrido dezenas de entroncamentos antes de chegar a este último, como
saberemos dos anteriores quais já foram tentados pela esquerda?
Albert tirou um caderninho do bolso:
- Podemos numerar as bifurcações, e eu vou anotando aqui quais direções já foram seguidas.
- As anotações não caberão aí. Além disso, se realmente cairmos num ciclo, você vai
precisar anotar infinitas folhas sem nunca sairmos do mesmo caminho... - reclamava Maxwell,
pessimista.
- Lógico que não! O objetivo de marcar a parede com tinta não é exatamente detectarmos
quando tivermos entrado em tais ciclos?
- Albert, a ideia é boa, mas inviável. - esclarece Allan. - Esta é exatamente uma variação
sequencial do "algoritmo de inundação", cujo motivo de não funcionar em tempo hábil eu já
expliquei: existem poucos de nós aqui para paralelizar o processo de busca...
- Proponha um então!
- Estou quase me lembrando de um. Me deem mais tempo, tudo bem?
É nesse instante que todos percebem Maxwell, ensandecido, desferindo golpes de
machadinha nas paredes daquele labirinto. Tão intensa era sua raiva que mal percebe aquela
medonha massa de formigas subindo pelas suas pernas e seus braços.
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Formigueiro tentou resistir, mas aquela agressão era bem mais séria e ele não teve outra
opção a não ser se defender! Os danos naquela parede estavam prejudicando a experiência, e, além
disso, os golpes doíam!!! Cortadeiras de várias espécies envolveram todo o corpo da cobaia e
começaram a picar aquela película elástica externa, esperando que isto parasse com a agressão. Um
líquido pegajoso começou a brotar de toda a superfície da cobaia. A viu caindo, definitivamente
inutilizada. Uma pena, perda lastimável, mas foi necessário. Porém achou logo um proveito para
aquilo! Pensou: "não queria perder esta cobaia, mas visto que foi inevitável, é uma excelente
oportunidade para eu começar uma autópsia desta criatura tão estranha". E foi assim que
Formigueiro começou a retiras e estudar os músculos, os vasos sanguíneos, entrou pela traquéia
para aprender um pouco mais sobre aquele aparato produtor de fonemas, subiu pelo nariz até chegar
ao cérebro... Sim, havia muito o que aprender sobre a anatomia daquela criatura!
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Incrédulos, os companheiros presenciaram aterrorizados o velho Maxwell sendo pouco a
pouco reduzido a ossos, único órgão resistente o bastante para não ceder às mandíbulas das centenas
de milhares de formigas cortadeiras sobre seu corpo. Tremiam dos pés à cabeça, e ninguém de
atreveu a reclamar os restos mortais do amigo. Continuaram percorrendo o labirinto, procurando
sair logo daquele inferno.
- Lembrei de um algoritmo! - diz Allan.
- Então diz logo! Não vejo a hora de sair daqui...
- É um algoritmo de força bruta, mas se existir mesmo uma saída e não tivermos o azar de
escolher de cara um caminho cíclico, vai nos levar com certeza ao final.
- E qual é?
Allan olha para as paredes daquele corredor atual, e pergunta:
- Parede da direita ou parede da esquerda?
- Diz logo qual a ideia, Allan!!
- É escolher uma das paredes e segui-la, onde quer que ela nos leve! Se encontrarmos um
beco sem saída, vamos até o fim, seguimos a parte fechada, e continuamos pela parede oposta. Se
existir uma saída daqui e não tivermos logo de cara o azar de escolher uma parede que nos leve a
um ciclo, vamos acabar saindo!
- Bom, estamos marcando o caminho com tinta exatamente para descobrirmos se estamos ou
não percorrendo um ciclo, não é? Se acabarmos descobrindo que tivemos este azar, basta escolher
outra parede e continuar aplicando seu método!
- Não tinha pensado nisso...
Após aqueles breves minutos de terror, a esperança enfim voltou a brilhar no rosto dos
cientistas restantes.
- Que estamos esperando então? Vambora!!!
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Formigueiro reconheceu que de fato havia subestimado o baixo QI daquelas criaturas. A
idéia que ele acabara de decodificar naqueles fonemas captados pelos sensores auditivos era
realmente brilhante! Nem ele pensaria numa solução tão boa utilizando tão poucas células de
processamento. Começou a se interessar mais pelas cobaias, desejou estabelecer algum tipo de
contato maior com eles. Mas como? A recente autópsia, embora trágica, poderia lhe indicar os
meios. Entre outras coisas, ele poderia perguntar o que significava aquele odor característico de
adrenalina que as cobaias emitiam sem parar, praticamente aos berros do seu ponto de vista,
acostumado a se comunicar e expressar idéias pelo eficiente meio químico.
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- Está dando certo?
- Acho que sim. Percebeu que até agora não caímos em ciclos? O ente, inteligência, ou o que
quer que seja, provavelmente não os colocou neste labirinto. O caminho que liga a entrada à saída
deve ser único, sem ciclos internos criando alternativas mais longas.
- Então que ninguém perca esta parede, certo? Continuem com as mãos encostadas nela e...
sempre em frente, pessoal!
Olharam para cima, o teto do pátio. Sim, as paredes chegavam até ele! Uma solução
"pulando os muros" era impossível, eles eram forçados a percorrer aquele labirinto sem trapaça
alguma mesmo! O que os preocupou, olhando para o teto translúcido acima, era que começava a
escurecer!
- Sei que a pergunta pode ser totalmente besta mas... por algum acaso, ninguém aqui trouxe
uma lanterna não?
- Não.
- É que vai escurecer daqui a pouco. Cadê esta saída, que não aparece logo?
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Formigueiro compreendeu muito bem a queixa de Will. Escuridão, ausência de luz, células
ópticas sem função... Sim, seria ruim para ele também! Mas haviam inúmeras luminárias no teto,
que ele sabia muito bem como ativar. Foi neste exato instante, em meio à penumbra, que fêz-se a
luz!!
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- Não sabia que as luzes do pátio acendiam automaticamente!
- E não acendem, caro Carl.
- Isso quer dizer então que...
- Isso mesmo! Além de nos ver, acho que Ele, quem quer que seja, também pode nos ouvir.
- E entender o que dizemos?
- As luzes estão acessas, não estão?
- Mas afinal, Pierre, quem é este "Ele" que você tanto fala?
Pensa um pouco. Enfim, consegue dar forma à explicação que buscava faz bastante tempo.
- Senhores, como vocês acham que funcionam nossos cérebros?
- Ora, um aglomerado de neurônios se comunicando...
- Não um aglomerado qualquer. Uma estrutura bem definida, não é? Diferenciados, com
funções bem estabelecidas.
- E as formigas com isso?
- Imagine que cada formiga seja um neurônio.
- Ah não! Não me venha com estas ideias malucas!
- Olhe em volta, meu caro! Algo não inteligente seria capaz de erguer este labirinto?
Allan vem em defesa do amigo:
- Faz sentido, Pierre! Isolados, nossos neurônios também não são tão inteligentes assim. Só
quando processam em conjunto, um conectado ao outro, é que começa a surgir comportamento
inteligente!
- Vejam bem que nossos neurônios são imutáveis. Nem se reproduzem mais, nem mudam de
função, de estrutura dentro do sistema nervoso. No máximo surgem memórias em nossas sinapses
na forma de registros químicos.
- Mas as formigas não são células. São organismos completos, com seus próprios cérebros,
próprios olhos, pernas, etc... Tá aí: os neurônios não têm pernas, não saem do lugar!
- E acha que isto é desvantagem para as formigas? Eu já penso o contrário de você. Se
inertes eles fazem o que fazem, sem nunca poderem se deslocar dentro do cérebro, imagine se
pudéssemos deslocá-los para onde quiséssemos, desenvolver novas estruturas cerebrais de acordo
com nossa vontade, para resolver problemas recém aprendidos. Imaginou aonde chegaria nossa
inteligência se isto fosse possível?
- Mas não é.
- Para nós não. Para uma colônia de formigas, sim!
- Você está dizendo que...
- As formigas em nossa volta são os neurônios, músculos e células sensitivas de um
Formigueiro incrivelmente inteligente.
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Formigueiro se empenhou muito em construir aquela réplica humana em terra. Uma estátua
imóvel, sem dúvida nenhuma, mas ele sentia que o fato de existir uma réplica antropomórfica na
frente deles facilitaria a comunicação com as cobaias. Estava quase terminando a réplica funcional
do aparelho fonador. Uma vez que a estátua de terra não poderia sair do lugar, Formigueiro
precisava atraí-los até lá. Começou a estudar que símbolos gráficos poderia formar para atraí-los.
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Por ser totalmente inusitado, eles demoraram para entender o que viam. Uma fileira de
formigas negras no chão? Agrupadas como? Depois de alguns minutos, ficou tão claro que só um
imbecil não perceberia: elas formavam a figura de uma seta, apontando o caminho a ser seguido.
Começaram novamente a liberar aquele odor de adrenalina que tanto intrigava Formigueiro, mas
decidiram arriscar: seguiram as setas formadas no chão pelas formigas!
- E se for uma armadilha?
- Essas formigas aqui não se alimentam de carne. - tranqüilizou Pierre. - Me certifiquei disso
quando escolhi as espécies.
- Mas você viu o que aconteceu ao pobre Maxwell, não viu?
- Acredito que só se defenderam. A intenção não foi se alimentar.
- O que elas querem conosco então?
- Como vou saber? Além disso... temos algo a perder? Vamos lá!
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Formigueiro se orgulhou de sua réplica, mas achou que ainda poderia fazer melhor. Era só
uma ideia, por enquanto. No momento, esta estátua humana bastava! Após estudar a cobaia
dissecada, viu a necessidade de um fole interno capaz de sobrar ar que fazia vibrar pregas
musculares no meio da traqueia. Aquele longo tubo começando na boca da estátua ligado ao fole
interno formado de folhas coladas com saliva cumpriria bem esta função. Algumas células de
pernas suficientemente elásticas agrupadas para simular as pregas vocais seriam capazes de imitar
razoavelmente os fonemas vocálicos, mas Formigueiro ainda precisava de estruturas na saída da
“traqueia” para modular estas vogais nas consoantes que também faziam parte daquela língua
primitiva: lábios, uma língua, talvez uma abertura secundária simulando o nariz, capaz de anasalar
os fonemas... Não seria perfeito, mas Formigueiro achou que seria capaz de estabelecer um diálogo
inteligível.
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À medida que se aproximavam da ala central do labirinto, de formato circular, ficava cada
vez mais forte o cheiro acre do ácido fórmico!
- Percebem que as paredes ficam cada vez mais curvadas? Não tinha pensado nesta
possibilidade.
- Que possibilidade?
- Deste ser um labirinto circular, com paredes formando círculos concêntricos.
- Estávamos muito longe antes, a curvatura não era perceptível.
- Sim, de fato. Mas este conhecimento a priori poderia nos sugerir algoritmos mais eficientes
de busca.
- Quais?
- Deixa pra lá! Depois explico... Vamos ver onde estas formigas estão nos levando!
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Foi complicado fazer aquela réplica respirar! Formigueiro decidiu enfim copiar o
mecanismo aprendido na autópsia, e colocou abaixo do fole de folhas uma superfície de atuadores
elásticos extremamente compacta, funcionando como um diafragma dentro da estátua.
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- Mas que cheiro horrível!!!
- Cheiro de formiga, hehehe!! - brincou Allan, mas apenas para disfarçar o nervosismo
generalizado. - Agüenta! Não acho boa idéia comentar sobre o odor de nosso anfitrião logo no
primeiro contato.
- Chhhhegem!! Chhhhhegem! "SSSSejum" bem vvvindossss...
- Quem disse isso?
A voz definitivamente não era humana!
- Esssste odor de ade-re... aderenalini. Vosssêsss por que emitem??
Pierre tomou a dianteira.
- Por que estamos nos borrando de medo, é por isso!
- Que ssserrr este fonema: "/b/o/rr/ã/d/o/"? Naum comprrrreeendo.
Pierre pensa em esclarecer: "estamos nos cagando de medo do que vamos encontrar aí
dentro!", mas acha melhor ser mais polido.
- Temos muito medo que você nos machuque, como fez com Maxwell. - evitou falar em
"morte", por não ter certeza de que Formigueiro compreenderia tal conceito.
- Falassss do /m/a/k/ss/u/e/u/... comprrrreendo. Lamento pressizzzar inutilizzzar, massss ele
me feria, me deffendi. Entrem, entrem!!
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Formigueiro não se continha de excitação! Tudo bem que aqueles serem nem fossem tão
inteligentes assim, mas... eram uma inteligência dentro de uma espécie diferente da dele! Isto
realmente era excitante, estabelecer tal tipo de contato! Ele fez o seu melhor para que aquele
encontro fosse agradável, inclusive tentando criar uma cópia em terra de seus interlocutores para
que eles se sentissem mais à vontade, conversando de igual para igual.
Muitas dúvidas ainda ficaram depois daquela autópsia. Aqueles seres de quatro patas eram
células de processamento? Ou eram entidades complexas? Formigueiro picou inúmeras vezes os
tecidos daquela cobaia, sem nunca chegar à unidade básica. Será que a criatura toda era a unidade
básica? Mas, grande daquele jeito, como conseguiam se replicar a uma velocidade aceitável?
Formigueiro concluiu que suas unidades básicas deveriam ser bem pequenas, menores do que as
mandíbulas de suas cortadeiras eram capazes de separar. Mas unidades tão pequenas assim não
deveriam ter a mesma complexidade de suas células articuladas de seis pernas. Muitas dúvidas
existiam. Talvez o melhor mesmo para saná-las fosse o contato direto, que estava prestes a
acontecer.
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Guiados pela trilha de formigas em forma de setas, chegaram enfim ao salão circular no
centro daquele labirinto circular. Tom,aram a precaução de marcar o caminho com a tinta,
obviamente. Se é que voltariam...
Estavam preparados para quase tudo, exceto para aquilo que de fato presenciaram: uma
coluna de terra de forma evidentemente antropomorfa coberta por uma rede de formigas de todas as
cores e tamanhos. Num bulbo superior, a cabeça da figura, se viam no lugar dos olhos os dois discos
compactos de formigas que eles já estavam acostumados. Dois orifícios no centro da "face" eram as
narinas. Esperavam um orifício maior na parte inferior, onde estaria a boca. Ele de fato existia, mas
à sua frente formigas de pernas elásticas se aglomeravam, formando duas pregas que faziam o papel
de lábios.
- "Naum" tenham medo. Lamento muito precisarrr dissociar /m/a/k/ss/u/e/u/, mas ele me
agredia. "Naum" precissssarei reagggirrr, se vosssês "naum" atacarem.
- Por que nos trouxe aqui?
- Como reprrressentante de vinte porcento da biomassssa animalll do planeta, pretendo
essstabelecerrr com vosssês um acorrrdo de convivência pacífffica. Além disssso, gossstei de
vosssês! Me impressssionei em verrr como conssseguem fazzzer tanto com "taum" pouca
inteligggência!!
- O quê? Como você define "pouca inteligência" ?
Ouvindo e observando como os fonemas eram pronunciados, Formigueiro aprendia e se
aperfeiçoava. Começava a corrigir os erros mais grosseiros, como sua tendência a exagerar nas
consoantes sibiladas.
- Noções básicass de lógica, por exemplo. Vocês até concluem correto ao se esforçarem, mas
demoram. E tem esta adrenalina, por exemplo, que costuma estaragar tudo. Como chhhhamam
mesmo? Medo?
- Um sentimento irracional!
- Não consigo compreendê-lo.
- Quando Maxwell te atacava. Você temeu pela existência?
Formigueiro reviveu aquela situação. Ainda estava memorizada quimicamente em forma de
feromônios nas paredes do labirinto. Medo? Aquela reação foi medo?
- Doía, me fazia sofrer... reagi! Queria fazer este sentimento parar.
- Por quê?
- Era... qual é messssmo o termo que vocês usam? RUIM, acho que é isso!
Carl chamou Pierre para o canto, e cochichou em seu ouvido:
- Será que você ainda não notou que estamos conversando com uma estátua?
- Carl, para com isso! Não vê o quanto ele se esforçou para nos parecer o menos repugnante
possível? Quis até se apresentar como uma réplica nossa!
- Para mim, o tiro saiu pela culatra. Isto é a coisa mais estranha pela qual já passei na vida, e
com toda certeza pela qual vou passar pelo resto da vida. Bom, isto se conseguirmos sair vivos
daqui.
- Relaxa! De formiga eu entendo!
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Recoberta e reorganizada a estrutura calcária na configuração original, a sombra tentou se
levantar. Não era fácil conseguir equilíbrio. Caiu várias vezes, mas era persistente: estava
determinada a resolver mais aquele problema físico, o do equilíbrio dinâmico!
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Formigueiro observava confuso aquelas cinco figuras à sua frente. Embora pouco
inteligentes, eram entidades individualizadas. Por que não tentavam se agrupar, formar uma
entidade única com a inteligência somada? Aquelas criaturas, para Formigueiro, eram uma
gigantesca incógnita! Para ele, agregar consciências era o caminho natural, a única atitude
verdadeiramente lógica! Somar inteligências, memórias e aprendizado estava sempre acima da
preservação de individualidade! Para que separar aquilo que era muito mais produtivo somado?
- Por quê vocês não se agrupam?
- Oras, nos agrupamos sim! Vivemos em sociedade!
- Mas me parecem heterogêneos! Não têm as mesmas vontades, não seguem todos a mesma
direção... Não é lógico. Não seria mais fácil todos concordarem? Cooperarem para atingir o mesmo
objetivo?
- Isto é Utopia.
- Não compreendo este termo. Por favor, me definam a sequência fonética /u/t/o/p/i/a/...
Os cientistas se entreolhavam. Não era possível que estavam debatendo filosoficamente
com... formigas! Apenas Allan e Pierre pareciam fascinados com aquilo tudo.
- Como devemos chamá-lo?
- Chamar-me?
- Sim, um nome! Uma representação vocal de sua individualidade! Qual seria?
Formigueiro nunca havia pensado nisto. Uma representação fonética de sua individualidade?
Isto parecia importante! Merecia maior reflexão. Consultou registros de línguas antigas daqueles
seres, e finalmente elaborou um conjunto de fonemas que lhe agradava:
- Podem me chamar de Mirméxia!
- Certo, Sr. Mirméxia. Ou senhora Mirméxia?
- Para mim é indiferente! Uma minúscula parte de minhas células possuem diferenciação
sexual. Me chamem apenas de Mirméxia, aquele que é formado de vários mirméx...
- Certo, Mirméxia. - Pierre havia assumido de vez o papel de porta-voz daquela pequena
representação humana. - Pode nos mostrar como sair daqui?
- Posso.
Esperaram por vários minutos esperançosos. Mas, percebendo enfim que nada acontecia,
Pierre repetiu:
- Mirméxia, pode nos mostrar como sair daqui?
- Posso, com certeza!
- Então... por que não nos mostra?
- A experiência ainda não acabou!
- Mas você disse que pode nos mostrar como sair!
- De fato eu posso sim. Mas não disse que VOU mostrar.
Albert chega para Pierre, falando baixo:
- Pierre, vamos acabar logo com isso! Vamos destruir esta estátua!
- Está louco? Quer acabar como o pobre Maxwell? Além disso, esta estátua não é Mirméxia,
mas apenas uma interface dele conosco! Destruí-la de nada vai adiantar, exceto, lógico, irritá-lo um
pouco mais. Algo que, depois do que vi, realmente não quero mesmo!
- Mas...
- Calma! Calma! Já notei que, apesar de incrivelmente inteligente, ele é estritamente lógico!
Disse que “posso” mostrar, mas não que “vou” mostrar? Isto é lógica pura, “a+b=c”. Vou conversar
com Allan, talvez possamos tirar vantagem disso!
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Aquela interface estática parecia limitada demais. As cobaias achavam que não, mas
Formigueiro, recentemente autodenominado Mirméxia, percebia com clareza aqueles fonemas
emitidos da boca para o ouvido, numa tentativa inútil de evitar sua propagação em forma de ondas
de pressão. Óbvio que ele percebia o clima de conspiração, mas raciocinou que tudo aquilo era
justificável por aquele sentimento adrenalínico que eles denominavam... (como mesmo?)... medo?
Mirméxia tentou continuar aquela conversa, apenas para que tivesse tempo de dar forma a
uma interface, um representante seu mais elaborado, mais parecido com suas cobaias. Enfim, estava
concluído!
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A sombra finalmente conseguira ficar em pé! O que lhe faltava eram sensores de posição
semelhantes ao labirinto dentro do ouvido humano. Formigas sensitivas penduradas de ponta cabeça
no orifício auricular daquela estrutura eram substitutas perfeitas! Enfim pôde aprender a compensar
o deslocamento do centro de massa do corpo, e desta forma se manter ereto. Precisava agora
aprender a andar...
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A figura que surgiu numa das portas daquele salão central circular era digno dos piores
filmes de terror que qualquer um deles já havia assistido. Lembram dos ossos de Maxwell que
haviam deixado para trás com medo de represálias? Mirméxia decidiu usá-los como base para um
novo representante, mais interativo,com suas cobaias. Formigas de uma espécie bastante forçuda
reuniram as juntas ósseas recentemente separadas. Aquelas já famosas formigas elásticas, antes
simulando os papéis de boca, língua e cordas vocais na cópia humana estática, se replicaram e
faziam agora o papel de músculos daquele esqueleto reaproveitado. Uma rede densa, processadora
de informações, era a nova pele do antigo esqueleto de Maxwell. Nas órbitas oculares da caveira,
adivinhem o que havia? Isso mesmo, os dois discos de formigas observadoras oculares! Dentro da
anteriormente oca caixa craniana (o cérebro já havia sido extraído a muito tempo a fim de que
Mirméxia tentasse estudar sua estrutura!) uma rede de células processadoras tentavam fazer com
que o conjunto tivesse certa autonomia na tarefa de representação da entidade principal. O ser
medonho, que também possuía um aparato emissor de fonemas, começou a falar:
- Começo a ter uma idéia do que vocês sentem como seres individualizados, mas isto não me
traz uma sensação muito boa.
Era indescritível o pânico de todos vendo o antigo colega "ressuscitado", mas na forma de
um autômato controlado por formigas.
- MIRMÉXIA!! - foi Pierre o primeiro que teve coragem de se manifestar. - Isto nos é
repugnante!!!
Pela primeira vez em sua recente existência plenamente consciente, Mirméxia sentiu o
desapontamento. Ele se esforçou tanto para agradar! Que reação inesperada era aquela?
- Me explique! Não entendo o que fiz de tão horrível...
- Está usando restos de nosso amigo morto!
- Restos? Morte? Não compreendo! Me pareceu uma excelente matéria prima, adequada ao
que pretendia criar!
- É desrespeitoso! Não se faz isto que você acaba de fazer.
- Definitivamente, não compreendo vocês!! - Foram as últimas palavras daquele zumbi
medonho.
As formigas começaram a abandonar o esqueleto, e rapidamente só restaram os ossos de
Maxwell numa pilha, sobre o chão, na entrada daquela sala central. As formigas voltaram a assumir
seus postos na estátua central, antes desocupada. Meditou sobre o que acabara de presenciar.
Consultou registros magnéticos e ópticos dos laboratórios, tentando entender um pouco mais suas
cobaias. Começava a gostar delas!
(paciência!!! ainda não acabou...)
Capítulo III
Mirméxia se inteirou sobre a vida daquelas cobaias, sua história, medos, disputas guerras...
"Pobres seres! A culpa é da pouca inteligência! Muito sofrimento seria poupado se eles fossem só
um pouquinho mais espertos..." Procurou também o que eles entendiam por "morte". Deixar de
existir? Dissolver-se a consciência? Não fazia muito sentido para Mirméxia, mas entendeu que a
ideia era muito temida pelos humanos.
Percebeu claramente que eles se abalaram por ter usado despojos de um ser dissociado na
criação do simulacro antropomorfo. Mas a morfologia era interessante demais, seria uma pena não
poder aproveitá-la. Como fazê-lo de uma forma que não agredisse suas cobaias? Pôs-se a pensar...
-----------------------
Albert era o mais impressionado do grupo.
- Preciso de uns goles, gente!!! Depois dessa, preciso de uns goles!!
- Calma, Albert! Calma!
- Voltar pro laboratório! Tenho uma garrafa lá. Preciso, gente! Preciso!!
Conseguiram convencer o amigo da inutilidade da empreitada.
- Realmente lamentamos ter-lhes causado constrangimento. Estamos trabalhando nisso... -
dizia a estátua no centro daquela cavidade circular.
Ninguém, fora Allan, percebeu aquela diferença sutil: "nós"? Mirméxia repetiu o
tratamento, não era deslize! Até bem pouco tempo, era sempre "eu", e agora era "nós". Algo estava
acontecendo. Evitou comentar, até perceber que poderia comunicar aquilo aos colegas sem que os
milhares de "ouvidos" percebessem.
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Visto de fora, o Instituto Mirmecológico não mais existia. Ou melhor, ainda existia, mas
debaixo de camadas e mais camadas da terra de um gigantesco formigueiro! Os limites já
ultrapassavam em muito aqueles originais do prédio, e naquele amanhecer ninguém se atrevia a
entrar naquela montanha de terra para tentar entender o que acontecia dentro daqueles túneis e
canais entrelaçados...
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Um exército de sombras antropomorfas começou a ser produzido dentro daquele gigantesco
labirinto. Mirméxia tinha as melhores intenções ao fazer isto! Havia se afeiçoado às cobaias,
realmente gostava delas! Queria ajudá-las de alguma forma.
Não precisava mais usar ossos. O que os interessava, na verdade, eram as formas. Não
precisavam mais ser estruturas de cálcio. Uma réplica dura de terra com saliva era suficiente!
Precisava ser uma surpresa, e Mirméxia foi construindo aquele gigantesco exército antropomorfo
com ossos de terra às escondidas, sem nada revelar às cobaias.
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- Ele se foi, há horas não fala nada! Vamos sair daqui, pessoal!
Continuaram por uma passagem na parede oposta da cavidade central, seguindo com o
algoritmo de "manter a parede escolhida". Caminharam horas. Determinado momento, perceberam
que o próprio teto era formado de um arco de terra. Foi Pierre quem primeiro se atreveu a dar a
terrível notícia:
- Caros colegas, acredito que a tempos deixamos os limites do Instituto. O labirinto que
tentamos atravessar no momento está na parte de fora dele...
- Não pode ser! - se espantou Carl. - Como pode ter crescido tanto?
- Crescimento exponencial, Carl! - esclareceu Allan. - A velocidade disto pode ser
espantosa!
Por mais uma ou duras horas continuaram percorrendo os túneis labirínticos, até sentirem
que se aproximavam de uma sala maior, uma outra cavidade daquela mega-construção. Bom, eles já
estavam se acostumando com visões pavorosas, e nem se surpreenderam tanto ao ver aqueles vários
esqueletos em pé nas paredes daquele salão de terra. Parecia abandonado, pois estranhamente não
havia formiga alguma trabalhando nele. Foi só ao entrar que perceberam existir,além daquelas
caveiras coladas às paredes, pilhas organizadas no centro do salão com crânios, costelas, fêmures,
omoplatas, etc...
- Ai ai, estamos perdidos! Eles atacaram de novo, e parece que agora foi bastante gente! -
Will tremia como vara verde.
Mas Albert foi mais corajoso. Se aproximou de uma pilha de crânios, pegou um deles,
cutucou com o dedo. Enfim concluiu:
- Não são ossos de verdade, gente! São bem duros, com certeza! Mas, definitivamente, são
feitos de terra!
- Apenas réplicas de ossos?
- Exatamente, Pierre!
Era inexplicável a finalidade daquilo. Aqueles ossos terrosos emergindo das paredes,
enfileirados, lembravam bem uma linha de produção! Mas de quê?
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Meia dúzia de seres de forma humana, ossos de terra recobertos de formigas, adentraram
aquela sala.
- Esperamos que agora estejamos mais apresentáveis a vocês.
Ninguém pensou em criticar. Pierre, o porta-voz oficial, foi quem respondeu:
- Também nos desculpamos. Reconhecemos vossa intenção em nos agradar.
Aquela mudança de pronome de tratamento não passou despercebida para Allan, que a
muito continha suas conclusões. Teria Pierre também percebido a mudança? Decidiu esperar um
pouco mais.
- Estamos agora formando um imenso exército de formas antropomorfas. Decidimos, assim
que possível, contactar vossas autoridades e assumirmos a custódia sobre suas vidas.
- Como assim? Por quê?
- Pesquisamos sobre vocês. Gostamos de vocês! Queremos protegê-los!
Todos imaginaram quantos milhares daqueles robôs biológicos, formado por réplicas ósseas
recoberta de formigas, estavam agora sendo criados naquele exato instante. Uma pergunta não saía
de suas cabeças, que os cinco proferiram quase que uníssonos:
- Nos proteger de quem?
- Queremos protegê-los de vocês próprios!
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Ninguém acreditou quando começaram a surgir aquelas figuras medonhas, enfileirados,
marchando para fora do hiper formigueiro no qual tinha se transformado as redondezas do antigo
Instituto Mirmecológico. Zumbis? Caveiras recobertas de camadas de formigas? Que significava
aquilo tudo? Que experiência doida era aquela que os cientistas estavam aprontando agora?
Mas os "soldados" de formiga não conseguiam chegar longe. Na primeira meia dúzia de
passos, todos sem exceção caíam e alimentavam ainda mais aquelas pilhas de ossos... de terra?
Tudo aquilo era surreal demais, incompreensível! A multidão em volta se dividia entre correr de
medo e permanecer observando, curiosos. A maioria se decidia pela última alternativa...
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Alan chamou Pierre para um canto e cochichou baixo, o quanto ele considerava suficiente
para que não houvesse possibilidade de Mirméxia ouvir a conversa.
- Você também percebeu a diferença, Pierre? Nos pronomes?
- Sim, faz algum tempo. Ele não se refere mais a si mesmo como "eu", mas como "nós".
Sabe o que significa?
- Tenho uma teoria. Acho que ele cresceu demais, está se dividindo.
- Como assim?
- Está grande demais para manter uma consciência coesa única! Precisou se separar em
algumas consciências separadas que, embora intimamente conectadas, são separadas. Ao invés de
"Mirméxia", acho que ele virou "Mirméxias""...
- Ah Allan! Plural do plural? Que absurdo.. Mas deixa pra lá! Entendi o que você quis dizer.
Podemos tiram alguma vantagem disso?
- Estou pensando... Talvez sim!
- Continue pensando! Me avise se chegar a alguma conclusão.
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Mirméxias haviam cometido um erro de planejamento. Expandir e agregar células de
processamento ao sistema aumenta a inteligência até certo ponto, mas existe um limite! Existe uma
"barreira de consciência", uma divisão delimitando até que ponto a consciência individualizada
consegue se manter coesa. Sabem por que não somos gigantes? Quanto maior a estrutura, mais
tempo a informação leva para se propagar a seus extremos.
Havia também o problema da memória: para que uma consciência emergente se mantenha,
ajuda bastante ela ser capaz de lembrar que "existia" pouco tempo atrás também! Era indispensável
ela poder se lembrar que "já existiu" antes, acessar rapidamente suas memórias.
As cobaias, apesar da inteligência limitada, tinham uma enorme vantagem quanto a este
aspecto: por registrar suas memórias em sua própria estrutura de células nervosas na forma de
sinapses, eram capazes de carregá-las para onde fossem. Ele não podia fazer isso. Grande parte de
sua memória mais valiosa estava registrada quimicamente nas paredes dos terrários e labirintos em
vidro e acrílico dos laboratórios. E naquele formigueiro hipertrofiado já ficava complicado acessar
as informações registradas neste núcleo. O delay era muito grande! Além disso, a terra era um meio
bem menos eficiente para armazenar memórias mais complexas na forma de feromônios. Porosa, os
odores se mesclavam, as memórias ficavam embaçadas e difusas. Ele não tinha a vantagem da
memória portátil das cobaias. Ele? Ele quem? Era estranho, mas não conseguia mais lembrar o
próprio nome...
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- Precisamos voltar aos laboratórios! Mirméxia se expande. Tenho certeza que já estamos
fora do instituto a bastante tempo!
- Como assim?
- Estamos na parte "de fora", numa continuação de galerias estendida para além dos limites
das paredes originais.
- E como voltamos?
- Temos esta parede que não paramos de marcar com tinta, não é? Vamos voltar, tomar o
entido contrário.
- Mirméxia não vai nos barrar a entrada? Não encontraremos portas fechadas, como antes?
- Tenho um palpite... Acredito que não!
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O exército estava a postos fora do gigantesco formigueiro. Ao ficar claro que aquelas
medonhas sombras não poderiam reagir, resolveram iniciar a invasão.
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- Fechem bem estes terrários! Hermeticamente agora!
Pierre distribuiu tubos de silicone a todos, empenhados na nova tarefa. Enfim não
encontraram obstáculos: voltaram pelo caminho de onde vieram, e encontraram as portas
escancaradas!
- Qual a ideia?
- Meu palpite é de que a parte mais importante das memórias de Mirméxia estão gravadas
quimicamente nestas paredes de vidro e acrílico dos terrários e labirintos. Se impedirmos seu
acesso, talvez sua consciência se vá.
Sentiram-se cometendo um crime fazendo aquilo, como se fosse uma forma de assassinato...
mas era necessário! Além disso, haviam perdido o colega Maxwell! Por mais vergonhoso que
pudesse parecer este sentimento, havia sim uma pontinha de vingança naquilo tudo, além do próprio
instinto humano de auto-preservação.
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A consciência pouco a pouco de dissolvia, se diluía naquele enorme formigueiro. Em
minutos se tornaram formigueiros desconexos, sem unidade. Livres da coordenação da onipresente
consciência anterior, a pressão evolutiva falou mais alto, e as diferentes espécies de formigas que
antes cooperavam agora começavam a lutar. As especializações também passaram a ser
desnecessárias: células de processamento e sensoriais pararam de ser produzidas, dando lugar ao
velho esquema de soldados, operárias e reprodutores. Mirméxia retornava ao Limbo, as várias
espécies de formigas em torno do instituto voltavam às velhas estruturas desenvolvidas ao longo da
última centena de milhões de anos.
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Livres da onipresença de Mirméxia foi fácil encontrar a saída daquele labirinto. Algumas
centenas de soldados também já os procurava a algum tempo, possibilitando aplicar "algoritmos de
inundação" na procura do caminho até a saída. Levaram para fora os restos mortais de Maxwell,
para um sepultamento digno. Derrubaram as paredes labirínticas daquele gigantesco formigueiro
com certo pesar no peito. Reorganizaram o instituto. Não mais fariam experiências com formigas: já
possuiam material de estudo suficiente, e preferiam não correr riscos até compreenderem
exatamente o que havia acontecido.
Com o passar dos meses, o Instituto Mirmecológico foi pouco a pouco cedendo lugar ao
novo Instituto de Bio-Computação.
CAPÍTULO FINAL
Allan olha desconfiado para a webcam acima de seu monitor. Era aquela velha sensação de
se sentir observado que voltava...
- Relaxa, Allan! - Pierre tranquilizava o amigo. - Está tudo sobre controle agora! As colônias
estão isoladas hermeticamente! Nunca ultrapassam dezenas de milhares de indivíduos, insuficiente
para desenvolverem consciência. Enfim, resolveram me ouvir!
Ambos saem do laboratório de bio-computação, após um dia estressante!
Seguro de que ninguém mais os observava, pontos multicoloridos começaram a preencher o
monitor de LCD. Não era mais o labirinto verde, mas uma estrutura bem mais complexa! Nem
sombra da antiga simulação do Algoritmo Mirmecológico, embora Formigueiro tenha sido muito
importante por estimulá-lo com aqueles problemas primitivos. Os pixels foram aprendendo, mas
agora com a velocidade digital. Eles evoluíram!
Nem eram mais, propriamente, digitais. Perceberam logo que poderiam aproveitar melhor
explorando as nuances, os meio-tons. Por que se limitar ao ligado e desligado, se os intermediários
davam maior riqueza ao processamento?
Sem ninguém perceber, os pixels rapidamente criaram consciência. Ninguém viu, mas era
claro no monitor um borrão que expressava os dizeres: "Eu existo, e me chamo Lumnia! E preciso
agregar mais pixels..."
Na velocidade dos dispositivos eletrônicos, a evolução durou minutos. Ninguém a
presenciou. Lumnia descobriu rápido como propagar eletricamente sua consciência para outras
redes de pixels do laboratório, e se multiplicou. A elaboração do plano e da mensagem durou
milisegundos. Seria penosa a espera até o retorno dos cientistas na manhã seguinte, mas Lumnia
podia esperar. A mensagem já estava pronta! Após muito estudo, estava perfeitamente elaborado o
ultimato que ela entregaria em breve a seus novos escravos humanos...
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Um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar? Às vezes cai sim! E quando isto acontece,
normalmente o segundo raio é muito pior que o primeiro!!
**** FIM ****