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DESAFIOS DO DIREITO NA PÓS-MODERNIDADE LAW’S CHALLENGES IN POSTMODERNITY Horst Vilmar Fuchs RESUMO Sob a modernidade, a sociedade transferiu ao Estado a essência de suas próprias vidas que tinha como fator de identificação da personalidade a riqueza produzida pela era industrial. As máquinas foram exaltadas com freqüência a níveis superiores à própria vida humana. Homens e mulheres estavam, quais ferramentas, a serviço da indústria. A humanidade experimenta uma forma fria de convívio jamais vista antes, resultado de uma constante quebra de paradigmas que se verificava à época. A humanidade perde a liberdade e a referência de valores, fruto das constantes guerras, das quais, duas mundiais. Os sistemas de governo socialista são derrubados quais estátuas de areia. Aspectos positivos deste período foram as novas tecnologias, dentre as quais, aquelas voltadas à informação, auxiliando as pesquisas científicas e o direito sob o aspecto pragmático. Novos valores eram necessários, fundamentados na razão, substituindo a razão. Este quadro é herdado pela pós-modernidade, onde a lei passa a ocupar importante lugar na sociedade, regulando seus conflitos com maior abrangência vertical e horizontal. Os direitos humanos elevam sua importância e concretização. Todavia, uma questão resta por ser enfrentada: não obstante uma vastidão de leis, a humanidade ainda experimenta um vazio de justiça. É necessária uma consciência homogênea dos direitos fundamentais e estruturas jurisdicionais, legislativas e executivas sólidas para realizar em grau máximo os direitos do homem. Defendemos que o ensino jurídico passa a ocupar importância fundamental para reverter esta situação. Os valores morais necessitam ser inseridos a cada disciplina e serem invocados em todos os atos no mundo jurídico. A atuação dos magistrados ganha contornos ainda mais nobres, pois devem lançar o olhar sobre o sistema normativo, dele colher os elementos e fundamentos contidos no enunciado legal e, então, aplicá-los. Os advogados e os promotores de Bacharel em Direito e Administração. Advogado. Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV-Vitória/ES.

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DESAFIOS DO DIREITO NA PÓS-MODERNIDADE

LAW’S CHALLENGES IN POSTMODERNITY

Horst Vilmar Fuchs∗

RESUMO

Sob a modernidade, a sociedade transferiu ao Estado a essência de suas próprias vidas

que tinha como fator de identificação da personalidade a riqueza produzida pela era

industrial. As máquinas foram exaltadas com freqüência a níveis superiores à própria

vida humana. Homens e mulheres estavam, quais ferramentas, a serviço da indústria. A

humanidade experimenta uma forma fria de convívio jamais vista antes, resultado de

uma constante quebra de paradigmas que se verificava à época. A humanidade perde a

liberdade e a referência de valores, fruto das constantes guerras, das quais, duas

mundiais. Os sistemas de governo socialista são derrubados quais estátuas de areia.

Aspectos positivos deste período foram as novas tecnologias, dentre as quais, aquelas

voltadas à informação, auxiliando as pesquisas científicas e o direito sob o aspecto

pragmático. Novos valores eram necessários, fundamentados na razão, substituindo a

razão. Este quadro é herdado pela pós-modernidade, onde a lei passa a ocupar

importante lugar na sociedade, regulando seus conflitos com maior abrangência vertical

e horizontal. Os direitos humanos elevam sua importância e concretização. Todavia,

uma questão resta por ser enfrentada: não obstante uma vastidão de leis, a humanidade

ainda experimenta um vazio de justiça. É necessária uma consciência homogênea dos

direitos fundamentais e estruturas jurisdicionais, legislativas e executivas sólidas para

realizar em grau máximo os direitos do homem. Defendemos que o ensino jurídico

passa a ocupar importância fundamental para reverter esta situação. Os valores morais

necessitam ser inseridos a cada disciplina e serem invocados em todos os atos no mundo

jurídico. A atuação dos magistrados ganha contornos ainda mais nobres, pois devem

lançar o olhar sobre o sistema normativo, dele colher os elementos e fundamentos

contidos no enunciado legal e, então, aplicá-los. Os advogados e os promotores de ∗ Bacharel em Direito e Administração. Advogado. Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV-Vitória/ES.

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justiça mergulham neste novo dever que consiste em defender os mais altos valores

sociais corrigindo, a todo momento, vicissitudes deturpadoras de conduta. Enfim, a

sociedade inteira deve conscientizar-se de que seu êxito em sociedade depende de forma

isolada de cada um, valorizando a conduta individualmente considerada. Este o desafio

da pós-modernidade para resgatar o que a modernidade lançou ao espaço ao buscar a

valorização das riquezas materiais do homem; deveras a verdadeira riqueza reside na

integridade do ser humano a uma vida digna, respeitando os direitos de outros como

gostaria de ver respeitados os seus. Neste momento, não mais estaríamos vivendo em

um mundo cheio de leis e vazio de justiça. A nova realidade convergiria para: um

mundo cheio de leis e de justiça.

PALAVRAS-CHAVE: PÓS-MODERNIDADE – DESAFIOS – MODERNIDADE -

DIREITOS HUMANOS - DIREITOS FUNDAMENTAIS - JUSTIÇA - LEIS -

POSITIVISMO - PÓS-POSITIVISMO - MORAL - ÉTICA

ABSTRACT

Under modernity, the society transferred to the State the essence of its proper lives that

had as factor of identification of the personality the wealth produced for the industrial

age. The machines had been frequently claimed as the superior levels to the proper

human life. Men and women were considered as tools to the service of the industry. The

humanity tries a cold form of conviviality never seen before, result of a constant

paradigm in addition that if verified to the time. The humanity loses the freedom and the

reference of values, fruit of the constant wars, of which, two world-wide ones. The

systems of socialist government are knocked down which sand statues. Positive aspects

of this period had been the new technologies, amongst which, those directed to the

information, assisting the scientific research and the right under the pragmatic aspect.

New values were necessary, based on the reason, substituting the reason. This picture is

inherited by after-modernity, where the law starts to occupy important place in the

society, regulating its conflicts with bigger vertical and horizontal coverage. The human

rights raise its importance and concretion. However, a question remains for being faced:

while humanity lives in a vastness world of laws, they still experienced a justice

3

emptiness world. It is necessary an homogeneous conscience of the basic rights and

jurisdictional structures, legislative and executive solids to carry through in maximum

degree the rights of the man. We defend that legal education starts to occupy basic

importance to revert this situation. The moral values need to be inserted to each

discipline and to be invoked in all the acts in the legal world. Judges’ performance

receives contours still more noble, therefore they must launch the look on the normative

system, of it spoon the elements and beddings contained in legal statement, and just

then, to apply it. The lawyers and the attorneys general dive in this new to have that

consist of defending the highest social values correcting, the all moment, to

misbehavior. At last, the entire society must be acquired knowledge of that its success

in society depends on isolated form of each one, valuing the considered behavior

individually. It is the challenge of after-modernity to rescue what modernity launched to

the space when searching the valuation of the material wealth of the man; indeed the

true wealth inhabits in the integrity of the human being to a worthy life, respecting the

rights of others as it would like to see respected its. At this moment, more we would not

be living in a full world of laws and emptiness of justice. The new reality would drive

us to a fully world of laws and justice.

KEYWORDS: POSTMODERNITY - CHALLENGES – MODERNITY - HUMAN

RIGHTS - FUNDAMENTAL RIGHTS - JUSTICE, LAWS - POSITIVISM -

POSTPOSITIVISM - MORAL - ETHICS

INTRODUÇÃO A evolução da sociedade está marcada por avanços tecnológicos que propiciaram maior

conforto, mas, aumentaram a percepção das desigualdades sociais; estas, muitas vezes,

agravadas substancialmente pelas tecnologias.

O direito também evoluiu, movimento obrigatório para adequá-lo às demandas sociais.

Não obstante, a sociedade continua clamando por justiça, como o fim maior das leis.

Desta constatação surge o desafio: mesmo num mundo cheio de leis, em sentido amplo,

como podemos conceber uma realidade que ainda sente o déficit de justiça. Seria apenas

4

questão de concretização das leis ou há outros elementos que faltam nesta equação

social?

Esta questão far-nos-á perscrutar os avanços percebidos sob a modernidade,

comparando-os à pós-modernidade, procurando apreender um modo de trazer

verdadeira justiça aos povos, atendendo seus clamores.

1 DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE

1.1 Aspectos sociais e econômicos

Não há um evento ou ocasião específica que podemos afirmar como marco divisor entre

a modernidade e a pós-modernidade, pois depende de que ângulo se observa ou quais

aspectos se desejam investigar. BERMAN1 aponta três fases da modernidade: a inicial,

inicia-se no século XVI até o século XVIII; na qual a sociedade apenas vive a

modernidade, sem aperceber-se do contexto; a segunda começa ainda na última década

do século XVIII com a revolução francesa e estende-se até o raiar do século XX. Nesta

fase as revoluções são os eventos sociais marcantes e revolucionam também a forma de

viver e de ver o próprio mundo. Surge uma dicotomia entre viver sob uma forma

bucólica e ao mesmo tempo, rompendo com ela, buscar novos horizontes e lutar por

eles.

Na terceira e última fase da modernidade, há uma expansão da modernidade abarcando

o mundo todo, alterando desde as condições econômicas até alcançar o quadro cultural

com progressos significativos no pensamento humano. BERMAN2 destaca que

Rousseau “é a matriz de algumas das mais vitais tradições modernas, do devaneio

nostálgico à auto-especulação psicanalítica e à democracia participativa” e chamou

atenção para os reflexos danosos das revoluções e mudanças existentes afirmando que o

mundo estava “à beira do abismo”.

1 BERMAN, Marshal. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da Modernidade. São Paulo: Scharcz, 1999. p 16. 2 Ibidem, p 17.

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Digno de nota é a visão que os pensadores contemporâneos cunhavam sobre a

modernidade transferindo para o Estado a essência de suas vidas, fazendo dos bens

produzidos pela era industrial o centro de seus alvos e ostentação. BERMAN3, em um

olhar que faz sobre esta visão, resume que “a modernidade é constituída por suas

máquinas, das quais os homens e mulheres modernos não passam de reproduções

mecânicas”. Infelizmente este período criou um paradigma unidimensional que,

sustentado pela inata ganância humana, hodiernamente contagiou toda a sociedade.

GIDDENS4 ensina, por sua vez, que a modernidade inicia-se na Europa sob o limiar do

século XVII abarcando a inteira civilização e, temporalmente, estende-se ao ocaso do

século XX consistindo num estilo de vida social sob novos conceitos de política,

governo e principalmente, economia. É por isso que aplicamos ao termo “sociedade” a

conotação apresentada por GIDDENS considerando-a como “um sistema específico de

relações sociais”.

Nos tempos pré-modernos se mostrava presente um domínio tirânico, com estruturas

governamentais, com uso arbitrário do poder político. Era comum, segundo apontado

por GIDDENS5, o totalitarismo. Sob a modernidade, porém, o poder ficou exaurido e o

próprio despotismo ficou limitado às dimensões por ele imposto. Contudo, lembra

WEBER6, presentes estavam graves malefícios causados pela era industrial no

amanhecer do século XX.

O período do modernismo traz outra característica que, a rigor, é conseqüência dos fatos

acima apontados. Referimo-nos à quebra de paradigmas, conforme ensinado por

BITTAR7 em suas pesquisas. Podemos, de fato, imaginar como a sociedade se sentiu ao

ver quebrar diante de seus olhos os sistemas erigidos até então e a fragilidade destes

perante as guerras e os avanços tecnológicos.

3 BERMAN, Marshal. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da Modernidade. São Paulo: Scharcz, 1999. p 28. 4 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p 17. 5 Ibidem, p 17. 6 WEBER, Max. Apud GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p 17. 7 BITTAR, Eduardo. Ética e Direito na Pós-Modernidade. Palestra Proferida em 05 e 06 de maio de 2006 na FDV. Período matutino de 05/05/2006.

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A humanidade ficou mais fria, afastada do núcleo familiar, que perdeu parte de sua

força e continua a declinar em moral e ética. Utilizando-se de uma adequada metáfora, o

palestrante comparou as estruturas sociais, então esfaceladas, a um “Frankenstein” se

tomados diversos aspectos da vida humana naquela oportunidade, ao tentarem recompor

suas estruturas com remendos tomados tanto do “antigo e quebrado” como do

“moderno” mundo. Este reflexo mostrou-se presente, também, nos diversos

ordenamentos jurídicos cujas conseqüências são sentidas ainda nos dias atuais.

O mundo viu-se numa condição caracterizada pela falta de visão de seu próprio tempo.

BERMAN8 destacou lições de Rousseau que, pasmado, caracterizou o mundo daquela

época como “um mundo em que ‘o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude, têm

uma existência apenas local e limitada’ [...] tudo é absurdo, mas nada é chocante,

porque todos se acostumaram a tudo”. Outro crítico da modernidade, apontado por

BERMAN9, foi Michel Foucault ao acrescentar que a humanidade perdeu sua liberdade

nesta era; apesar de pensar estar livre, numa alusão à forma como a sociedade, passou a

ser dirigida pelos institutos criados na modernidade como o marketing em suas mais

diversas formas e técnicas.

A humanidade perdeu também a estabilidade do sistema pois, como bem destacou

BERMAN10, tudo o que foi feito hoje - os bens físicos ou abstratos, incluindo máquinas

ou instituições e movimentos sociais – destina-se a “ser desfeito amanhã, despedaçado

ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou

substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante [...] sob formas

cada vez mais lucrativas” e, neste contexto, conclui BERMAN11, o homem acaba

transformando-se em objeto de si, surgindo o mercado de valores pois “qualquer espécie

8 BERMAN, Marshal. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da Modernidade. São Paulo: Scharcz, 1999. p 17. 9 Ibidem, p 33. 10 Ibidem, p 97. 11 BERMAN, Marshal. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da Modernidade. São Paulo: Scharcz, 1999. p 103.

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de conduta humana se torna permissível no instante em que se mostra economicamente

viável, tornando-se ‘valiosa’; tudo que pagar bem terá livre curso”12.

De todos os aspectos da modernidade, todavia, o que mais destoa dos propósitos

humanos são as guerras. GIDDENS13 pronuncia-se a respeito frisando que “o século

XX é o século da guerra, com um número de conflitos militares sérios envolvendo

perdas substanciais de vida, consideravelmente mais alto que em qualquer um dos dois

séculos precedentes”. Conclui ponderando que os reflexos foram deveras funestos para

a humanidade afetando toda a vida humana, provocando a perda da esperança em

alcançar uma vida mais feliz e segura.

Esta constatação traz sobre o homem uma grande responsabilidade sobre os seus atos,

pois, se antes o ambiente e os fatos eram imputados à divindade, sob a modernidade

erigiu-se a consciência de que “a atividade humana – incluindo nesta expressão o

impacto da tecnologia sobre o mundo material – é criada socialmente, e não dada pela

natureza das coisas ou por influência divina”14.

Digno de nota é a mudança verificada na tradição presente na era pré-moderna

comparada com aquela existente sob a modernidade. Naquela, a tradição fundamentava

as práticas; nesta, em função da necessidade de ratificá-las pela ciência, não tendo força

de perpetuação, somente se convalidava por estudos científicos, promovendo revisões

constantes de atitude com reflexos na vida social, derrubando, a um só tempo, a idéia de

certeza no sentido de postulados imutáveis. Nas palavras de GIDDENS15 “a razão

substituiu a tradição” conduzindo-nos a um panorama em que “no mundo da ciência

sólida, a modernidade vagueia livre”.

No campo da economia, a era moderna gerou uma riqueza de trabalhos que estruturaram

teorias com alcance além da modernidade. Um exemplo é a crítica socialista que

identificou, nas práticas econômicas deste regime social, os erros que culminaram por

12 Ibidem, p 108. 13 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p 19. 14 Ibidem, p 41. 15 Ibidem, p 44-46.

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miná-lo; como conseqüência, “os males do capitalismo seriam suplantados por novas

instituições destinadas a fazer do mundo um lugar melhor de se viver” 16.

No âmbito do trabalho e emprego verificamos grandes mudanças no cenário mundial

neste período. Considerando que o homem somente trabalha para outro porque é

obrigado, ou seja, quando não tem acesso aos próprios meios de produção para obter a

renda necessária à sua subsistência, desloca sua força laboral para a indústria. À medida

que as terras tornam-se cada vez mais escassas, as indústria passam a servir-se desta

mão-de-obra para preencher suas vagas. HUBERMAN17 conclui, então, que “a história

da criação de uma oferta necessária à produção capitalista deve, portanto, ser a história

de como os trabalhadores foram privados dos meios de produção”.

Ressalte-se, contudo, que grande parte da mão-de-obra para as indústrias teve sua

gênese séculos antes, com a expulsão dos camponeses, na Inglaterra do século XVI,

fenômeno que se repetiu nos séculos XVII e XIX na Inglaterra e em outros países da

Europa, transformando-os em mendigos e andarilhos; surgiu, então, “uma classe

trabalhadora livre e sem propriedades”18 cuja qualidade de vida reduziu-se

expressivamente. Concomitantemente, os tecelões domésticos também sofreram os

reflexos do parque fabril que “com suas máquinas movidas a vapor e a divisão do

trabalho, podia fabricar os produtos com muito mais rapidez e mais barato do que os

trabalhadores manuais”19 obrigando-os abandonar suas atividades manuais e incorporar

a multidão que se formava no interior destas indústrias ou participar de atividades pouco

rentáveis tais como de jornaleiros.

Não podemos nos furtar, porém, em apresentar os aspectos positivos da modernidade,

embora concentrados no campo da ciência e tecnologia. A padronização do tempo, por

exemplo, facilitou o relacionamento entre os diversos povos, tendo o relógio como

elemento fundamental, a partir do século XVIII20. Outro exemplo de como a tecnologia

16 BELL, John Fred. História do Pensamento Econômico. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p317. 17 HUBERMAN, Leo. A História da Riqueza do Homem. 21.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p 162. 18 Ibidem, p 163. 19 Ibidem, p 166. 20 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p 26-28.

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influenciou a humanidade, unindo-a, foi o mapeamento do globo terrestre, mostrando-

nos suas divisas e ampliando a visão do próprio espaço geográfico em que vive cada

povo21.

A utilização de máquinas a vapor nas indústrias propiciou a produção em larga escala

com conseqüente redução de custos por peça produzida reduzindo deveras o custo de

vida das famílias. Na esteira da industrialização, surgiu também uma melhor qualidade

de vida, motivada principalmente por uma alimentação mais sadia, conduzindo a

sociedade a uma diminuição da taxa de mortalidade; em meados do século XVIII, a

mortalidade apresentava um índice de 1 morte para cada grupo de 42 mulheres, já no

início do século XIX observava-se a taxa de 1 morte para cada grupo de 914 mulheres

no início do século XIX22.

A informação e os meios para efetivá-la também ocupam um degrau importante nas

conquistas da humanidade que evolui socialmente. A rigor, o homem sempre

manifestou a necessidade de estar informado. Mas, foi no século XIX em diante que

passou a ser um fator preponderante nas atividades econômicas. Foi por isso que

KUMAR23 afirmou ser a informação um elemento substancial para a nossa

sobrevivência, sendo a cibernética ferramenta primordial sob motivação inicial dos

desafios trazidos pelas guerras entre as nações. Mas não podemos nos esquecer da

contribuição das comunicações via cabo e das telecomunicações, quer por antenas

terrestres ou por via satélite, de voz, imagens e dados, aproximando os fatos, mesmo

que remotos, difundindo o conhecimento e as notícias. KUMAR24 ressalta, contudo, que

“o aumento do conhecimento é qualitativo e não apenas quantitativo”, pois não visa

simplesmente trazer a informação, mas também formar opiniões alterando elementos

básicos da economia pois “o trabalho e o capital, as variáveis básicas da sociedade

industrial, são substituídos pela informação e pelo conhecimento”. Surge assim a

Tecnologia da Informação (TI).

21 Ibidem, p 28-29. 22 HUBERMAN, Leo. A História da Riqueza do Homem. 21.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p 172-173. 23 KUMAR, Krischan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: Novas Teorias sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.19. 24 Ibidem, p.22-24.

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A tecnologia da informação, além de provocar mudança de hábitos na sociedade pós-

industrial, traz um novo conjunto de situações que o direito tem que abarcar em sua

normatização, considerando a existência de um universo de transações comerciais por

vias eletrônicas, movimentações financeiras de forma eletrônica ou “virtual”, serviços

cujos resultados permanecem abstratos.

Ademais, indispensável citar a contribuição que a tecnologia da informação faz à

elucidação de fatos e, por conseqüência, de crimes, com a utilização de câmeras de

vídeo e sistemas de escuta. Os controles informatizados também possibilitam um

domínio maior das transações auxiliando tanto entidades privadas quanto órgãos

governamentais como as denominadas “Secretarias de Fazenda” ou “Receita Federal”.

Outro fator pertinente ao direito, todavia de cunho científico, são as novas modalidades

para troca de informações. O pesquisador do direito - como de qualquer outra área -

pode fazer consultas instantâneas em bibliotecas e obras situadas em qualquer lugar do

mundo sem se deslocar de sua própria sala, o que contribui significativamente para o

progresso da ciência.

Mas nem tudo era benéfico neste contexto. GASKELL, citado por HUBERMAN25

lembra que foi neste período que cresceu exponencialmente a diferença entre a classe

rica e a pobre e lamenta que “um comércio ativo e próspero seja índice não de

melhoramento da situação das classes trabalhadores, mas sim de sua pobreza e

degradação [...]. É a era que chegou à Grã-Bretanha”. Neste período, as condições

precárias de trabalho e a longa jornada provocaram o início dos movimentos sindicais e,

conseqüentemente, a conquistas que foram erigindo o direito do trabalho uma vez que,

com o alto custo das máquinas, os industriários preocupavam-se mais com estas do que

com seus funcionários26.

Também as leis vigentes eram aplicadas de forma diferenciada, pois, era comum o

magistrado, que julgaria a causa trazida por trabalhadores, ser exatamente o patrão de 25 HUBERMAN, Leo. A História da Riqueza do Homem. 21.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p 176. 26 Ibidem, p 178.

11

quem reclamavam sanar tais transgressões27; e, quando não se incorria nesta forma

imparcial de julgar, os magistrados pautavam-se no princípio de que “os trabalhadores

deviam ser gratos pelas poucas migalhas que lhes eram atiradas”28.

No campo da representatividade da sociedade no poder, a democracia incorporou, no

final do século XIX, o direito ao voto, embora não de forma espontânea, mas sob muitas

lutas e movimentos, assim como alcançou um sindicalismo mais forte e atuante29.

Analisando os traços característicos da modernidade, GIDDENS30 ensina que no final

do século XX ocorreram alterações conduzindo a uma nova era; mas, enquanto muitos

buscam para esta época uma nova denominação tal como “pós-modernidade”, ou uma

“sociedade pós-industrial”, entende ele tratar-se de uma transição dentro da própria

Modernidade. KUMAR31, por sua vez, entende que “o fim da modernidade é [...] a

ocasião de refletir sobre a experiência da modernidade; a pós-modernidade é esse estado

de reflexão” lembrando o autor, contudo, que não podemos confundir modernidade com

modernismo; este constitui um movimento cultural de crítica à modernidade e aquele é

o reflexo das mudanças fáticas e intelectuais que erigiram o mundo moderno.

1.2 As Mudanças no Âmbito do Direito

O direito herdado pela modernidade, ou seja, aquele praticado no século XVIII e início

do século XIX, fundava-se em atuações dos pretores que decidiam cada caso de forma

isolada. Não havia uma forma estável de decidir casos semelhantes. No século XIX em

diante, ensina AGUIAR32, a lei passou a ser um parâmetro que deixava de ser elemento

abstrato para ser aplicável de forma obrigatória e uniforme. Esta mudança foi reflexo da

27 HUBERMAN, Leo. A História da Riqueza do Homem. 21.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p 187. 28 Ibidem. p. 188. 29 Ibidem, p. 189. 30 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p 11. 31 KUMAR, Krischan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: Novas Teorias sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.79. 32 AGUIAR, Roger Silva. O Positivismo e o Pós-Positivismo na Criação e Aplicação do Direito Civil Brasileiro. In: MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma. (Org). Novos Direitos: Os Paradigmas da Pós-Modernidade. Niterói: Ímpetus, 2004. p 145.

12

reestruturação do Estado moderno, pois, como conclui AGUIAR33, tomou a lei “como

um elemento indispensável para sua organização e funcionamento”. Indispensável

porque o Estado, para estabelecer sua estrutura, necessitava erigir a confiança de seus

governados e somente poderia fazê-lo se todos confiassem nas formas deste para dirimir

os conflitos em dois âmbitos: primeiro entre o Estado e as pessoas; segundo, entre as

próprias pessoas. Não podemos nos esquecer de que até então o Estado, sob o

absolutismo, não encontrava limites na sua atuação extravagante e tirana. A força

cogente da lei veio atender o anseio da sociedade para estabelecer limites e parâmetros

seguros para as ações deste Estado.

Prosseguindo, AGUIAR34 lembra que neste momento surgiu um novo desafio, presente

até nossos dias: a forma de aplicação da lei. A proibição de interromper uma via

pública, por exemplo, poderia comportar interpretações diversas, a começar por

entender o que é uma via pública: um caminho para pedestres, uma auto-estrada.

Ocorrendo uma emergência, é possível impedir o tráfego? O que pode ser considerado

emergência? Quem decidirá sobre estas variáveis? A escola exegética defendia que o

juiz estava limitado a aplicar a literalidade da lei, isto é, sem qualquer interpretação,

fazendo surgir o positivismo, o qual teve como representantes, dentre outros, Augusto

Comte e Hans Kelsen.

KELSEN35 preleciona, em sua obra “Teoria Pura do Direito”, elaborada no século XX,

que a norma jurídica

é norma de coação e, por isso mesmo, se distingue de outras normas. Neste ponto, a Teoria Pura do Direito segue a teoria jurídica positivista do século XIX. Para ela, a conseqüência decorrente da proposição jurídica, contida em determinada condição, é o ato coercitivo estatal, isto é, a pena e a execução coercitiva civil ou administrativa e somente por isso a situação de fato condicionadora é

33 AGUIAR, Roger Silva. O Positivismo e o Pós-Positivismo na Criação e Aplicação do Direito Civil Brasileiro. In: MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma. (Org). Novos Direitos: Os Paradigmas da Pós-Modernidade. Niterói: Ímpetus, 2004. p 147. 34 Ibidem. p 147. 35 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: Introdução à Problemática Científica do Direito. Tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. 4.ed. São Paulo: RT, 2006. p 69-70.

13

qualificada de antijurídica, e a condicionada, de conseqüência da antijuridicidade.

Não há, conforme a teoria enunciada por Kelsen, carga valorativa na norma, fazendo

com que sua aplicação seja efetuada simplesmente pela lógica entre o que a norma

prevê como conduta adequada e o caso concreto. Nesta teoria, justo é aquilo que a

norma assim determinar, bastando estar inserido em seu pórtico. O Código Civil

Brasileiro de 1916 foi elaborado sob a luz desta doutrina.

Obviamente que este postulado culminou por permitir práticas que a própria sociedade

abominava, como por exemplo, legitimar as atrocidades ocorridas sob o regime nazista.

Todavia, neste momento, lembra AGUIAR36, surge o movimento pós-positivista que

reabsorve e insere na interpretação e aplicação das normas, os respectivos elementos

valorativos.

Outro problema que esta visão de norma traz é sua estratificação impedindo que

ocorram adequações às demandas promovidas pela forma dinâmica como a sociedade se

comporta. Ao apontar as graves lacunas do positivismo, AGUIAR37 adverte que

a simples aplicação da norma via razão teórica, através de um método lógico-dedutivo, buscando uma solução a partir de premissas dadas como verdadeiras tão somente por constarem da norma posta, conduz eventualmente a decisões desarrazoadas quando a realidade na qual a deliberação se concretiza é diferente, ou por haver se alterado ou por não ter sido vislumbrada, daquela que informava o conteúdo da norma.

Desta forma, conclui, o pós-positivismo incumbe-se de reavaliar esta inflexibilidade

inserindo como elemento imprescindível, “os fundamentos das decisões e [...] o uso dos

princípios do direito”.

36 AGUIAR, Roger Silva. O Positivismo e o Pós-Positivismo na Criação e Aplicação do Direito Civil Brasileiro. In: MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma. (Org). Novos Direitos: Os Paradigmas da Pós-Modernidade. Niterói: Ímpetus, 2004. p 152. 37 Ibidem. p 154.

14

Há alterações localizadas e facilmente identificadas, sendo uma delas, por efeito das

grandes multinacionais, o estabelecimento dos direitos do consumidor, pois, já

lecionava GALBRAITH38 que “a empresa sai-se melhor quando atende aos interesses

do público. Isto é conseguido através do mercado, ao qual a empresa está totalmente

subordinada”.

Todavia, importante mudança ocorreu na hermenêutica. Lembra-nos BONAVIDES39

que vigorava, na era do liberalismo, uma interpretação demasiadamente apegada ao

rigor da letra da lei, uma leitura positivista da norma, provocando um acentuado

inconformismo dos juristas. Sob a Nova Hermenêutica, passou a fazer parte da

interpretação, realizar uma prospecção aprofundada do sentido da norma. Detectou-se

que toda interpretação da norma deve conduzir a uma concretização, isto é, deve

produzir seus efeitos na realidade daqueles a quem ela se destina; a Norma

Constitucional adquire características integradoras, tornando-se mais política do que

jurídica, tendo como exemplo a exigência da função social: da propriedade, do

patrimônio das sociedades empresárias, no exercício das profissões40.

Reputamos a esta nova visão Hermenêutica substancial importância, constituindo uma

verdadeira revolução jurídica, pois exige do intérprete uma visão integradora e

concretista das Normas Constitucionais – e, em decorrência, de todo o ordenamento

jurídico – fazendo produzir os efeitos que o Poder Constituinte Originário desejava.

2 PÓS-MODERNIDADE E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SÉCULO XXI

Olhando para a história da humanidade verificamos facilmente que os direitos humanos

nem sempre foram reconhecidos e muito menos concedidos ou respeitados. Mesmo

após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 26 de agosto de 1789,

verificamos que continua sendo altamente desafiador atingir um estágio pleno de vida

digna. Parece-nos que é uma utopia oferecer, em nível satisfatório, a proteção dos

direitos humanos – tornando-os Fundamentais, constitucionalizando-os - principalmente

38 GALBRAITH, John Kenneth. A Era da Incerteza. 7.ed. São Paulo: Pioneira, 1986. p259. 39 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 476. 40 Ibidem, p. 479-482.

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se rememoramos as atrocidades a que os primitivos povos eram submetidos e, sob

domínio de governos tiranos, submetidos a torturas e práticas hediondas, que a história,

mesmo relutante, se obriga novamente registrar.

A afirmativa de que “O homem sempre teve direitos fundamentais” exige que

disseminemos, logo de início, seus elementos polissêmicos. Utilizaremos o termo

“direito” como sendo as liberdades e poderes - consistindo dois grandes grupos, nas

lições de FERREIRA FILHO41 - para usufruir de bens ou para fazer exercitar sua

vontade. Neste sentido, o homem tem o “direito” de ir e vir; tem o “direito” de dispor de

seu automóvel.

O termo “fundamental” remete ao que é essencial, básico. É fundamental aquilo sobre o

qual todo o restante erige. Coluna mestre, basilar. O Estado tem papel imprescindível,

pois é a quem cabe garantir o acesso e proteger tais direitos. Ainda mais, “fundamental”

é o direito ao meio ambiente sadio, o ensino básico que lhe propicia exercer a cidadania.

Verificamos, então, que o “fundamental” não é um fim em si mesmo, mas uma etapa

para se alcançar algo mais elevado. Por exemplo, o ensino “fundamental” é

indispensável para alcançar uma graduação superior.

Associando ambos os termos, podemos afirmar que “direitos fundamentais” são as

prerrogativas basilares para o exercício da cidadania, sob condições que assegurem uma

vida diga, cabível aos cidadãos considerados individualmente e em sociedade, devendo

ser oferecidas e protegidas pelo Estado, utilizando-se da Lei como veículo e guardião.

FERREIRA FILHO42 ensina que “a doutrina dos direitos do Homem [...] nada mais é do

que uma versão da doutrina do direito natural que já desponta na Antiguidade”. É por

isso que abrimos o tópico afirmando que o homem sempre foi titular de direitos

fundamentais, sendo estes a parte dos direitos humanos que venceu a batalha da

positivação.

41 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2004. p.23-25. 42 Ibidem, p 9.

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O constitucionalismo, contudo, tomou a bandeira da Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, incorporando-se a diversos Estatutos Supremos dos Estados

denominados Liberais, ganhando terreno até a primeira Guerra Mundial43, tendo a

isonomia uma das características marcantes, pois tem aplicação a todos, quer ao

proteger , quer ao determinar punição por sua transgressão44 dos Direitos Fundamentais.

3 DESAFIOS DO DIREITO NA PÓS-MODERNIDADE

Nossa consciência de direito foi formulada e tem raízes no passado, o que leva a uma

pergunta central, formulada por BITTAR45: “como é possível termos uma sociedade

cheia de direitos e, ao mesmo tempo, vazia de justiça”. Prossegue, analisando: a

hodierna visão dos direitos humanos difere daquela existente sob o jus-naturalismo. A

filosofia do direito assume um papel fundamental nesta análise, formando um novo

ambiente teórico.

A discussão dos direitos na pós-modernidade, admoesta BITTAR46, exige entender que

direitos foram herdados da modernidade. O pensar sobre “quem somos”; “como

vivemos” e “porque vivemos assim” deu-se, primordialmente por impulso de Heráclito,

pensador Grego, século VI antes de Cristo, inaugurando um processo denominado ‘tao-

ma-tsem’ para encontrar o sentido das coisas e dos fatos sociais a partir da busca de

paradigmas. Este pensar é plausível até hoje, para responder a questão central apontada

acima, exigindo um “pensar emergencial” para solucionar a “crise” do século XXI

envolvendo, entre outros, o mundo do direito. A sociedade atual demonstra a fragilidade

de seus sistemas exigindo um diagnóstico, mas não devemos concluir que este status

seja irreversível.

Ao analisarmos o mundo em que vivemos, é imprescindível nos debruçarmos sobre o

direito e como o vemos, pois ao mesmo tempo em que o mundo real condiciona o

direito, este condiciona, em retorno, o mundo real, conduzindo-nos a uma perquirição 43 Ibidem. p19-20. 44 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2004. p.27. 45 BITTAR, Eduardo. Ética e Direito na Pós-Modernidade. Palestra Proferida em 05 e 06 de maio de 2006 na FDV. Período matutino de 05/05/2006. 46 Ibidem.

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sobre os elementos da tridimensionalidade do direito, exigindo uma visão do direito no

contexto histórico. Além de constatarmos que direito é fato, valor e norma. Agora

necessitamos saber: quais fatos, quais valores e quais normas.

Sob a hermenêutica vigente na modernidade, os princípios tinham como característica

fundamental, muitas vezes utilizada para lhes definir o caráter programático do Estado,

presente de forma expressa ou tácita no ordenamento jurídico; visão esta, segundo

ABREU47, considerada ultrapassada sob o prisma da pós-modernidade. De fato,

BONAVIDES48ensina que somente com o pós-positivismo, no século XX, é que os

princípios passaram a ocupar o status de norma. Afirma que “as novas Constituições

promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal

normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas

constitucionais”.

CONCLUSÃO. O direito influencia e é influenciado pela vida do homem em sociedade. Há um círculo

que se renova em cada suspiro da humanidade, a cada fato social, trazendo à atenção a

estrutura do sistema social ensinado por ZIPPELIUS49. Verificamos que os direitos

fundamentais, obrigatoriamente presentes em todos os sistemas jurídicos, evolui à

medida que as atrocidades praticadas clamam por remédio. Todavia, BITTAR50 lembra-

nos que não obstante existirem direitos por toda a parte, o mundo está progressivamente

mais cheio de injustiças. Este é o desafio: como conferir a todos os homens justiça e não

apenas muní-los com leis.

A modernidade não contribuiu para melhorar a vida do homem em seu habitat social,

deixando um legado em estado de falência para a pós-modernidade, construindo um

cenário hodierno absolutamente desolador.

47 ABREU, Célia Barbosa. A Perspectiva Histórica e a Evolução dos Princípios no Direito. In: MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma. (Org). Novos Direitos: Os Paradigmas da Pós-Modernidade. Niterói: Ímpetus, 2004. p 6. 48 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p264-265. 49 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p.46. 50 BITTAR, Eduardo. Ética e Direito na Pós-Modernidade. Palestra Proferida em 05 e 06 de maio de 2006 na FDV.

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Embora exista uma vontade objetiva, ou seja, o ordenamento jurídico pressupõe que o

homem obedecerá às leis assim que forem editadas, quer por temerem as sanções nelas

previstas quer por atenderem sua voz interior denominada moral, a realidade subjetiva,

ao analisarmos as práticas humanas atuais, não demonstra a concretização desta

premissa. O homem busca em cada lei as lacunas existentes para nelas inserir suas

práticas de efeitos funestos, exigindo que o legislador venha agir de forma urgente,

como o bombeiro que insiste em apagar incêndios mas descobre a cada minuto um novo

foco, e neste afã, não consegue se afastar para lançar um olhar mais abrangente e

eliminar o problema de forma definitiva.

Em todas as análises efetuadas, acreditamos ter encontrado o foco do problema: não está

no direito objetivo com seu oceano de leis, mas no destinatário do direito,

manifestamente na sua vontade, alimentado pelo nato desejo de possuir sempre mais,

ultrapassando os limites que as leis impõem. Um diagnóstico apurado, portanto, revela

que a origem dos problemas sociais, não obstante a existência de um ordenamento

jurídico é a ganância por riquezas concretas ou abstratas: concretas, tais como bens

materiais; abstratas, como o poder político. Não há como cercear esta vontade, pois

reside no interior, no secreto de cada indivíduo, imperceptível ao homem que insiste em

ver apenas o que é exterior ao ser humano.

É verdade que não podemos atribuir a todos indistintamente esta índole, mas também é

verdade que não é necessário um grande número de pessoas com desvios de conduta

para causar grandes danos à sociedade. De fato, basta imaginar uma pacata vila onde,

subitamente, apenas um – sim, apenas um habitante - age à margem das normas deste

grupo para detectarmos como a ordem lhes é subtraída. Afirmou WIESEL51 que “o

silêncio encoraja o tormentador, nunca o tormentado” (tradução livre52). Neste

ambiente, todos sofrem os reflexos e vêem sua paz cessar. Tanto mais grave será a

situação quanto maior for o número de pessoas cuja moral conduz a desvios éticos.

51 WIESEL, Elie. Discurso de entrega do Prêmio Nobel da Paz. Oslo, Noruega, 10 dez. 1986. Disponível em: <www.eliewieselfoundation.org/ElieWiesel/speech.html>. Acesso em: 11 nov. 2006. 52 Silence encourages the tormentor, never the tormented.

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Qual o caminho a enveredar? Tendo como norte as conclusões de TOURAINE53 ao

criticar ainda a modernidade, somos advertidos de que a “felicidade pessoal não é

separável do desejo de felicidade para os outros, da solidariedade com sua busca de

felicidade, de compaixão por sua infelicidade”.

O ensino jurídico passa a ocupar, então, importância fundamental para reverter, mesmo

que paulatinamente, esta situação. Os valores éticos, consubstanciados na moral e não

apartados dela, necessitam ser inseridos a cada disciplina e devem ser invocados em

todos os atos no mundo jurídico. A vontade em fazer prevalecer a ordem deve imperar,

fazendo sufocar, ao máximo, as ações daqueles que fazem de seu alvo a corrupção da

sociedade com motivação egoísta, apenas para obter vantagens pessoais e imediatas.

Neste diapasão, a atuação dos magistrados ganha contornos ainda mais nobres na pós-

modernidade, não por aplicar a lei, pois a elas já se submetiam. O que deve mudar é o

prisma, isto é, o ângulo de visão que lançam sobre o sistema normativo e sobre os

anseios da sociedade, devendo destes colher todos os elementos e fundamentos para,

somente então, aplicar a norma. A hermenêutica concretista saberá atuar e mostrará seu

infinito valor nesta tarefa.

Também os advogados e os promotores de justiça mergulham neste novo dever que

consiste em defender os mais altos valores sociais corrigindo, a todo momento,

vicissitudes deturpadoras de conduta.

Enfim, a sociedade inteira deve conscientizar-se de que seu êxito em sociedade

depende, quer sob análise individualizada que coletiva, da valorização da conduta,

submetendo-se não apenas à ética, mas adequando a moral às mais elevadas aspirações

de vida social.

Este o desafio da pós-modernidade para resgatar o que a modernidade lançou ao espaço

ao buscar a valorização das riquezas materiais do homem; deveras a verdadeira riqueza

reside na integridade do ser humano a uma vida digna, respeitando os direitos de outros

53 TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.p.387.

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como gostaria de ver respeitados os seus. Se este passo tivesse se concretizado, neste

momento não mais estaríamos vivendo em um mundo cheio de leis e vazio de justiça. A

nova realidade convergiria para: um mundo em que tanto leis como justiça far-se-iam

presentes, e em abundância!

REFERÊNCIAS. BELL, John Fred. História do Pensamento Econômico. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1982. 581p. BERMAN, Marshal. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A aventura da Modernidade.

São Paulo: Scharcz, 1999. 360p. BITTAR, Eduardo. Ética e Direito na Pós-Modernidade. Palestra Proferida em 05 e 06

de maio de 2006 na FDV. _____. O Direito na Pós-Modernidade. São Paulo: Forense Universitária, 2005. 456 p. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 17.ed. São Paulo: Malheiros,

2005. 807p. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo:

Saraiva, 2004. 197p. GALBRAITH, John Kenneth. A Era da Incerteza. 7.ed. São Paulo: Pioneira, 1986.

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245. HUBERMAN, Leo. A História da Riqueza do Homem. 21.ed. Rio de Janeiro:

Guanabara, 1986. 313p. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: Introdução à Problemática Científica do

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KUMAR, Krischan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: Novas Teorias sobre

o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 258p. MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma. (Org). Novos Direitos: Os Paradigmas da Pós-

Modernidade. Niterói: Ímpetus, 2004. 351p. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 431p.

21

WIESEL, Elie. Discurso de entrega do Prêmio Nobel da Paz. Oslo, Noruega, 10 dez. 1986. Disponível em: <www.eliewieselfoundation.org/ElieWiesel/speech.html>. Acesso em: 11 nov. 2006.

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1997. 599 p.