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Dermatite herpetiforme: uma causa de prurido nem sempre lembrada Paulo Ricardo Criado Roberta Fachini Jardim Criado Cidia Vasconcellos Luciana Galvão Nilceo Michalany Valeria Aoki Paciente do sexo feminino, 18 anos, branca, estudante, solteira, natural e procedente de São Paulo, nos procurou na clínica privada com queixa de coceira generalizada há cerca de quatro meses. Relatou que o prurido é distribuído por todo o corpo, exacerbando-se no período noturno. O prurido durante esses meses era diário e sucedido por lesões escoriadas. Negava história familiar de prurido. Havia sido tratada, bem como seus familiares, com permetrina tópica, devido ao diagnóstico clínico de escabiose. Nessa ocasião, em outro serviço médico, foi submetida a testes cutâneos de leitura imediata (prick test) que resultaram em reatividade aos ácaros da poeira domiciliar. Fora medicada com anti-histamínico oral (hidroxizina 25 mg a cada 12 horas), sem obter alívio do prurido. Referia que, por vezes, surgiam pequenas bolhas na pele que rapidamente rompiam-se, dando lugar a áreas escoriadas. Negava febre, perda de peso, outras co-morbidades ou ingestão de outros medicamentos. Referiu rinite alérgica. Ao exame geral a paciente apresentou-se em bom estado, sem linfadenopatias palpáveis, corada, hidratada, anictérica, eupneica e afebril. Não se observou hepato ou esplenomegalia. Ao exame dermatológico observamos a presença de inúmeras lesões eritemato- papulosas, em sua quase totalidade apresentando exulcerações ou crostas hemáticas, as quais individualmente mediam de 0,5 a 1,0 cm de diâmetro, dispostas em todo o dorso, pescoço, área submandibular (Figura 1), axilas, cotovelos (Figura 2), dorso das mãos, abdome, área do sulco interglúteo e nádegas (Figura 3), joelhos e dorso dos pés. O exame dermatológico minucioso revelou a presença de diminutas vesículas agrupadas sobre algumas lesões eritematosas do dorso (Figura 4). Estabeleceu-se o diagnóstico sindrômico de prurigo, com provável etiologia na dermatite herpetiforme. A paciente trouxe-nos extensa investigação laboratorial solicitada em consultas anteriores em outros serviços. Os seguintes exames foram apresentados: sorologias para o vírus da hepatite A, B e C, sorologia para o vírus da imunode ciência humana adquirida (HIV), citomegalovírus, toxoplasmose e VDRL (veneral disease research laboratory) os quais foram não-reagentes. Os seguintes exames tiveram seus valores dentro dos limites da normalidade: aspartato aminotransferase (AST), antigo glutâmico-oxaloacético (TGO), alanina aminotransferase (ALT), antigo transaminase glutâ-mico-pirúvica (TGP), fosfatase alcalina, bilirrubinas totais e frações, gama-glutamil transpeptidase (gama GT), tempo e atividade da protrombina, hemograma completo, função tireoideana e α1-glicoproteína. A dosagem da imunoglobulina E (IgE) foi de 340 UI/dl (normal até 100 UI/dl).

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Dermatite herpetiforme: uma causa de prurido nem sempre lembrada

Paulo Ricardo Criado Roberta Fachini Jardim Criado Cidia Vasconcellos Luciana Galvão Nilceo Michalany Valeria Aoki

Paciente do sexo feminino, 18 anos, branca, estudante, solteira, natural e procedente de São Paulo, nos procurou na clínica privada com queixa de coceira generalizada há cerca de quatro meses. Relatou que o prurido é distribuído por todo o corpo, exacerbando-se no período noturno. O prurido durante esses meses era diário e sucedido por lesões escoriadas. Negava história familiar de prurido. Havia sido tratada, bem como seus familiares, com permetrina tópica, devido ao diagnóstico clínico de escabiose. Nessa ocasião, em outro serviço médico, foi submetida a testes cutâneos de leitura imediata (prick test) que resultaram em reatividade aos ácaros da poeira domiciliar. Fora medicada com anti-histamínico oral (hidroxizina 25 mg a cada 12 horas), sem obter alívio do prurido. Referia que, por vezes, surgiam pequenas bolhas na pele que rapidamente rompiam-se, dando lugar a áreas escoriadas. Negava febre, perda de peso, outras co-morbidades ou ingestão de outros medicamentos. Referiu rinite alérgica.

Ao exame geral a paciente apresentou-se em bom estado, sem linfadenopatias palpáveis, corada, hidratada, anictérica, eupneica e afebril. Não se observou hepato ou esplenomegalia. Ao exame dermatológico observamos a presença de inúmeras lesões eritemato-papulosas, em sua quase totalidade apresentando exulcerações ou crostas hemáticas, as quais individualmente mediam de 0,5 a 1,0 cm de diâmetro, dispostas em todo o dorso, pescoço, área submandibular (Figura 1), axilas, cotovelos (Figura 2), dorso das mãos, abdome, área do sulco interglúteo e nádegas (Figura 3), joelhos e dorso dos pés. O exame dermatológico minucioso revelou a presença de diminutas vesículas agrupadas sobre algumas lesões eritematosas do dorso (Figura 4). Estabeleceu-se o diagnóstico sindrômico de prurigo, com provável etiologia na dermatite herpetiforme.

A paciente trouxe-nos extensa investigação laboratorial solicitada em consultas anteriores em outros serviços. Os seguintes exames foram apresentados: sorologias para o vírus da hepatite A, B e C, sorologia para o vírus da imunodeficiência humana adquirida (HIV), citomegalovírus, toxoplasmose e VDRL (veneral disease research laboratory) os quais foram não-reagentes. Os seguintes exames tiveram seus valores dentro dos limites da normalidade: aspartato aminotransferase (AST), antigo glutâmico-oxaloacético (TGO), alanina aminotransferase (ALT), antigo transaminase glutâ-mico-pirúvica (TGP), fosfatase alcalina, bilirrubinas totais e frações, gama-glutamil transpeptidase (gama GT), tempo e atividade da protrombina, hemograma completo, função tireoideana e α1-glicoproteína. A dosagem da imunoglobulina E (IgE) foi de 340 UI/dl (normal até 100 UI/dl).

Procedemos, no dia da consulta, à biópsia cutânea por punch de área com aparente vesícula no dorso, para envio a estudo anatomopatológico pela micros-copia óptica de luz (MOC), sendo posteriormente o material processado em bloco de parafina, cortado e submetido à coloração pela técnica da hematoxilina-eosina (HE). Os cortes revelaram fragmento da pele apresentando pequena lesão bolhosa subepidérmica, contendo leucócitos neutrófilos íntegros e fragmentados (Figura 5). Na derme papilar adjacente observaram-se algumas papilas alargadas pela presença de acúmulos de leucócitos neutrófilos formando pequenos micro-abscessos papilares (Figura 6). Notou-se ainda na derme papilar edema intersticial e dilatação dos vasos sangüíneos com discreto infiltrado linfomononuclear perivascular, tendo de permeio leucócitos neutrófilos e raros eosinófilos. O diagnóstico histopatológico foi compatível com a dermatite herpetiforme. A fim de corroborar o diagnóstico anatomopatológico obtido pela técnica de coloração com a HE executou-se uma segunda biópsia cutânea em pele perilesional do dorso,

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enviada para estudo pela imunofluorescência direta (laboratório de Imunopatologia Cutânea do Departamento de Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Sob a microscopia de imunofluorescência, observaram-se depósitos de IgA com fluorescência moderada, padrão granuloso, a nível das papilas dérmicas (Figura 7).

Estabeleceu-se o diagnóstico definitivo de dermatite herpetiforme e instituiu-se terapêutica com dapsona (diaminodifenilsulfona - DDS) via oral, em dose inicial de 25 mg ao dia na primeira semana, e associação de vitamina E, 400 mg ao dia. Orientamos a adoção da dieta livre de glúten. Após uma semana de tratamento, a paciente obteve alívio quase completo do prurido e desaparecimento das lesões dermatológicas. Mantivemos a dapsona na dose de 25 mg/dia até o momento (dois meses de acompanhamento).

DiscussãoA dermatite herpetiforme (DH) constitui uma doença cutânea auto-imune eritemato-pápulo-vesiculosa e pruriginosa, que particularmente acomete as super-fícies extensoras dos cotovelos, joelhos, nádegas, dorso e couro cabeludo,1-3 como observada na nossa paciente. É uma doença vésico-bolhosa subepidérmica, caracte-rizada pelo depósito de IgA em padrão granular nas papilas dérmicas e/ou ao longo da zona de membrana basal, e pela presença de enteropatia glúten-sensível, freqüentemente assintomática, indistingüível da doença celíaca.2,3 A doença acomete os homens em maior proporção (2 homens: 1 mulher), com incidência estimada na literatura de língua inglesa de 10 a 39 casos para cada 100.000 pessoas da população geral, sendo a maioria dos casos iniciada entre a segunda e a quarta décadas da vida.1-5

A DH compreende, na verdade, parte de um espectro das doenças glúten-sensíveis que incluem a doença celíaca (DC) e possivelmente algumas formas de nefropatia por IgA e ataxia glúten-sensível.1 Representa uma conseqüência indireta da enteropatia glúten-indu-zida.1 Amplas diferenças entre a DH e DC podem ser enumeradas, contudo o fator de identidade entre ambas é a sensibilidade intestinal ao glúten, com a erupção cutânea da DH representando um marcador externo da sensibilidade intestinal subjacente, provavelmente como resultado do mimetismo molecular entre o auto-antígeno tecidual transglutaminase residente no intestino com a transglutaminase epidérmica derivada da pele.2 Ambas demonstram o mesmo padrão de histocompatibilidade, com uma forte associação com os alelos HLA classe II DQA1*0501 and DQB1*0201, do cromossomo 6.1,2

Embora os pacientes com DH raramente apre-sentem sintomas gastrintestinais ou características de má absorção intestinal, a quase totalidade desses indi-víduos demonstra pequenas alterações histopatológicas, desde o clássico aspecto atrófico com completa atrofia dos vilos intestinais ou mais comumente o subtipo de padrão infiltrativo com atrofia vilosa parcial ou sem atrofia vilosa.2 Embora a biópsia do intestino delgado geralmente não seja necessária nos pacientes com DH, a fim de documentar essas alterações intestinais, como prova da natureza glúten-sensível da doença cutâ-nea, seria importante considerar sua

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execução como instrumento de diagnóstico se características de má absorção são evidentes.2 Na presença de uma situação de suspeita do diagnóstico de DH com achados da biópsia cutânea não definidos e evidência sorológica positiva de DC, a biópsia cutânea deve ser repetida e o paciente ser encaminhado a um gastroenterologista para considerar uma biópsia do intestino delgado.2

Uma resposta imune mediada pelas células T ao glúten tem sido sugerida como causa das anorma-lidades intestinais,3 embora pareça improvável que os linfócitos T das lesões da DH, os quais são encontrados ativados e em maior número na pele lesionada do que na pele não lesionada, poderiam ser específicos ao glúten.3 Entretanto, o infiltrado celular perivascular, composto principalmente por linfócitos CD4+, junto com um número variado de neutrófilos e eosinófilos, parece ser importante na patogênese da formação da bolha subepidérmica.3 O evento inicial da resposta imune induzida pelo glúten é desconhecido, mas parece uma interação entre certos peptídeos do trigo, com uma enzima intestinal denominada transglutaminase tecidual (TGT) e o sistema imune intestinal, a qual resulta na ativação das células T responsivas ao glúten na mucosa do intestino.1 Esses eventos determinam a produção de citocinas, ativação de metaloproteinases, o que culmina com a destruição da arquitetura normal da mucosa e ativação do sistema imune humoral.1 Esta resposta imune humoral resulta na produção de grandes quantidades de imunoglobulina A (IgA) e imunoglu-bulina M (IgM) direcionadas contra a gliadina e outros peptídeos derivados do trigo, além de auto-antígenos como a TGT.1 Admite-se que estes auto-anticorpos circulam, particularmente a IgA, e ligam-se a auto-antígenos da junção dermo-epidérmica, ao nível da lâmina lúcida, onde posteriormente ocorre a clivagem dermo-epidérmica.1,4 Parece haver um mimetismo molecular entre a glutamina, um polímero peptídico de alto peso molecular, derivado da proteína do trigo, com um auto-antígeno da elastina da derme.1

As lesões mais recentemente estabelecidas da DH demonstram na histopatologia um infiltrado linfomononuclear perivascular, bem como coleções de neutrófilos e eosinófilos no topo das papilas dér-micas, como observado na biópsia da nossa paciente, enquanto as lesões com maior tempo de instalação revelam vesículas subepidérmicas, microabscessos neutrofílicos e, freqüentemente, poeira nuclear.3 A marca cutânea histopatológica nos pacientes com DH é a presença de um infiltrado inflamatório composto quase exclusivamente por neutrófilos, os quais estão localizados em íntima proximidade aos depósitos de IgA no topo das papilas dérmicas e não em padrão perivascular ou em padrão dérmico difuso, como visto respectivamente nas vasculites cutâneas e nas dermatoses neutrofílicas.6 Embora os depósitos granulosos da IgA (predominantemente IgA1, contendo tanto cadeias leves kappa e lambda) sejam característica constante e diagnóstica da doença, a maneira exata pela qual eles se depositam na pele, as estruturas às quais se ligam e sua origem ainda não são totalmente conhecidas.7 Recentemente, Sárdy e cols.8 demonstraram que a transglutaminase epidérmica (TG3) é o principal auto-antígeno reconhecido nas lesões cutâneas da DH. Dessa forma, postula-se que auto-anticorpos direcionados à TGT intestinal apresentam reação cruzada contra a TG3 na pele.8 Com a exposição contínua à gliadina, surgiriam anticorpos específicos com alta afinidade à TG3 e baixa afinidade à TGT entre os pacientes que irão desenvolver a clínica da DH.1,8

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Os linfócitos CD4+ (Th) podem ser classificados em tipos diferentes, de acordo com o seu perfil de síntese de citocinas.3 O tipo 1 (Th1) produz interferon γ (IFNγ) e interleucina 2 (IL-2), e o tipo 2 (Th2) secreta IL-4, IL-5 e o fator estimulador de colônias de macrófagos e granulócitos (GM-CSF).3 A IL-4 e a IL-5 promovem um ótimo auxílio às respostas humorais e para o cres-cimento e diferenciação dos eosinófilos e mastócitos.3 A IL-4 atua no recrutamento de eosinófilos aos tecidos por promover a transmigração dessas células pelo endotélio vascular:3 também estimula a expressão de moléculas de adesão importantes ao tropismo dos eosinófilos, tais como a molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1) e molécula de adesão celular vascular-1 (VCAM-1).3 Tais citocinas têm sido implicadas em doenças em que há eosinofilia proeminente, como na asma, na dermatite atópica e no penfigóide bolhoso.3 A IL-5 induz apoptose dos eosinófilos e liberação dos grânulos dessas células.3 Recentemente demonstrou-se que certas citocinas como o GM-CSF e a IL-8 podem também estar envolvidas no desenvolvimento das lesões cutâneas da DH.3 Segundo Caproni e cols.,3 o infiltrado de células T observado na pele urticada lesional e vesiculosa na DH é constituído por células T imunologicamente estimuladas, cofenótipo IL2R+, HLA-DR+ e CD30+. As células T CD30+ estão associadas à produção de citocinas de padrão Th2, fato este comprovado pela expressão elevada da IL4 e IL5 na derme superior da pele lesionada e perilesional na DH, bem como pela expressão significante da proteína catiônica eosinofílica (EG1, EG2), uma marcadora da ativação de eosinófilos.3

Reunala,9 em 1996, publicou estudo epide-miológico com uma série de 999 pacientes com DH e demonstrou ter a doença caráter familiar; 4,4% dos pacientes com DH tinham parentes de primeiro grau com a doença e 6,1% apresentavam outros parentes com DH. Pais, irmãos e crianças foram quase igual-mente acometidos.9 A ocorrência freqüente de DC entre os parentes de primeiro grau dos doentes com DH alinha-se com a hipótese de que a enteropatia glúten-sensível geneticamente determinada, isto é, a DC, é um pré-requisito ao desenvolvimento da erupção cutânea com depósito de IgA, à qual denominamos de DH.8 A nossa paciente não apresentou história familiar de DC ou DH.

O quadro clínico da dermatite herpetiforme é constituído por lesões cutâneas primárias do tipo pápulas eritematosas ou vesículas.1 Por vezes as vesí-culas agrupam-se em um arranjo que lembra o herpes (herpetiforme),1 o que originou o nome da doença, apesar de inexistir relação com a infecção viral pelo herpesvírus humano. Para desafio ao diagnóstico clínico, freqüentemente o doente apresenta-se ao seu médico apenas com erosões cutâneas múltiplas secundárias ao ato de se coçar, uma vez que a doença é característica e intrinsecamente pruriginosa,1 tal como foi observado na primeira consulta da nossa paciente na nossa clínica privada. A erupção é geralmente simétrica, acometendo especialmente a superfície extensora dos membros, em particular os cotovelos e joelhos, ombros, região sacral, nádegas e nuca posterior, sendo em menor freqüência observadas lesões no couro cabeludo, na face e nas virilhas.1-3 Ao regredirem, não costumam deixar seqüelas, exceto em caso de intensa escoriação ou infecção bacteriana secundária, sendo, contudo, a hipercromia pós-inflamatória de ocorrência comum.1 O envolvimento mucoso é raro na DH, porém pode ocorrer com lesões orais constituídas por áreas enantematosas, pseudovesiculosas, purpúricas e/ou erosivas .1

O diagnóstico diferencial da DH inclui um am-plo espectro de doenças cutâneas, quer primariamente originadas na pele, ou até mesmo sistêmicas, expressas na pele como lesões de prurigo (pápulas prurigino-sas).10,11 Entre os diagnósticos clínicos diferenciais mais relevantes incluem-se outras doenças auto-imunes bolhosas, dermatose acantolítica transitória (doença de Grover), urticária, eczema e escabiose (diagnóstico anterior dado à paciente). Raramente a DH pode produzir verdadeiras pápulas e nódulos infiltrados, mimetizando o prurigo nodular de Hyde.12

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O diagnóstico da DH é geralmente baseado na suspeita clínica, devido a sua apresentação cutâ-nea clássica; contudo, a confirmação diagnóstica é obtida com o uso da técnica da imunofluorescência direta (IFD), particularmente em fragmento de pele obtido por biópsia da pele perilesional.1 Geralmente obtêm-se duas biópsias cutâneas por punch de 4 mm de diâmetro: uma da pele envolvida por lesão para exame anatomopatológico por rotina (microscopia óptica de luz, técnica de coloração pela hematoxilina-eosina) e outra de pele perilesional (a cerca de 1 cm da lesão) para estudo pela IFD.1 Por vezes múltiplos recortes ou mesmo coleta de novas biópsias para IFD são ocasionalmente necessárias nos casos em que os depósitos de IgA são escassos.1,13

Os pacientes que têm um grau grave de enteropatia glúten-sensível (EGS) geral-mente demonstram anticorpos no soro dirigidos contra a gliadina, endomísio e/ou à TGT.1 Esses anticorpos são encontrados mais freqüentemente nos pacientes com atrofia vilosa intestinal total e menos comumente naqueles com atrofia vilosa parcial, sendo esta úl-tima situação mais comum entre os pacientes com DH.1 Dessa forma, a pesquisa desses anticorpos de forma isolada não possui força preditiva diagnóstica da DH.1 Entretanto, a presença de anticorpos an-tiendomísio (AAEM) no soro de um paciente com lesões cutâneas de DH sugere um forte auxílio ao diagnóstico.1 Os AAEM são detectados pela técnica da imunofluorescência indireta (IFI), utilizando-se substrato de esôfago de macaco, em 75% a 90% dos pacientes com DH, sob dieta normal com glúten, e apresentam uma correlação com a atividade clínica da doença.1 Dessa forma, em pacientes com lesões cutâneas típicas de DH, com achados iniciais ne-gativos na IFD, um teste positivo no soro para os AAEM sugere o diagnóstico de DH e deve orientar o médico a repetir a biópsia cutânea para novo estudo pela IFD.1 Os auto-anticorpos circulantes contra a TGT, pesquisados pela técnica do ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay), demonstram 92,3% de especificidade e 94,4% de sensibilidade ao diagnóstico da DH, de forma que um teste negativo para anti-TGT não exclui o diagnóstico, porém, se positivo, auxilia o diagnóstico.14 Sob a visão do custo/benefício, recomenda-se em pacientes com diagnóstico inicial de DH o uso do teste no soro dos anticorpos anti-TGT, seguido pelo teste aos AAEM no caso de negatividade do exame anterior.1

Beutner e cols.15 postulam que os achados que podem confirmar o diagnóstico da DH são: (I) manifestações clínicas consistentes com a DH; (II) detecção pela IFD de depósitos de IgA típicos na junção dermo-epidérmica; (III) testes séricos positivos para AAEM e/ou anti-TGT. Até o momento, dois dos três achados acima podem ser consistentes com o estabelecimento do diagnóstico definitivo de derma-tite herpetiforme.15 A nossa paciente apresentou dois desses critérios (I e II).

Há vários relatos da associação entre DH e lin-foma, sendo a maioria deles classificados como linfomas não-Hodgkin.1 Lewis e cols.16 observaram, em estudo retros-pectivo, oito casos de linfoma em 487 doentes com DH, sendo que todos ocorreram entre os pacientes que não adotaram a dieta livre de glúten (DLG), ou entre aqueles que estavam sob DLG há menos que cinco anos.

Uma vez que o diagnóstico é conformado pelos critérios acima expostos, o paciente deve ser orientado sobre as alternativas terapêuticas e participar ativamente da decisão, uma vez que isso é fundamental para a adesão terapêutica.5 O paciente deve compreender que a doença é de evolução crônica, que a gravidade das manifestações flutuará no decorrer do tempo e que a remissão espontânea ocorre em apenas cerca de 10% a 20% dos casos.5 As alternativas terapêuticas são:5

"A dermatite herpetiforme constitui uma doença cutânea auto-imune eritemato-pápulo-vesiculosa e pruriginosa, que particularmente acomete as superfícies extensoras dos cotovelos, joelhos, nádegas, dorso e couro cabeludo"

(1) Manejo com dieta livre de glúten (DLG): a supressão inicial dos sintomas com a dapsona é fre-qüentemente necessária se esta alternativa é escolhida. No nosso meio existe a Associação

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dos Celíacos do Brasil, em cujo site na Internet pode-se obter impor-tantes orientações dietéticas;17

(2) Manejo com dapsona: a dapsona serve apenas para suprimir a atividade da doença, uma vez que a recorrência das manifestações ocorre após 24 a 72 horas da sua suspensão. O medicamento não tem atividade sobre a enteropatia glúten-sensível nem sobre a deposição da IgA na pele. A terapia é iniciada com 25 a 50 mg via oral ao dia em adultos e 0,5 mg/kg/dia nas crianças. Os níveis séricos encontram equilíbrio após o uso diário por sete dias. As doses são ajustadas em bases semanais até o controle adequado dos sintomas. A dose média de manutenção é de 100 mg/dia para os adultos. Uma ou outra nova lesão é esperada na dose ideal, não havendo a necessidade de elevá-la.

Há necessidade de dosar a enzima glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PG) antes do início do tratamento, uma vez que sua deficiência pode acarretar grave anemia hemolítica e contra-indica o seu uso. No primeiro mês devem ser feitos controles semanais do hemograma, e depois mensalmente nos próximos cinco meses seguintes. Cerca de 90% dos doentes toleram bem o medicamento por anos de tratamento. A maioria dos doentes demonstra sinais de leve hemólise induzida pela dapsona, contudo ocorre compensação da anemia hemolítica. Redução da hemoglobina em 2 a 3 g/dl é comum e compensação parcial subseqüente pela reticulocitose é geralmente observada. A metahemoglobinemia é raramente observada, particularmente vista em regimes com doses altas (200 mg/dia). A metahemo-globinemia pode ser revertida com azul de metileno, mas isso raramente é necessário a não ser nos casos de acidentes de ingestão com superdosagem. A agranulocitose pode ocorrer entre a segunda semana e o terceiro mês de tratamento, por mecanismo de hipersensibilidade, devendo a droga ser suspensa imediatamente.

(3) Sem tratamento dermatológico: pode ser uma alternativa aos doentes com doença cutânea mínima. Há de se lembrar que a não adoção de dieta livre de glúten pode conferir um maior risco ao desenvolvimento do linfoma.

Os pacientes com dermatite herpetiforme apresentam maior incidência de outras doenças auto-imunes, incluindo doença tireoideana, diabete melito tipo 1, lúpus eritematoso sistêmico, vitiligo e síndrome de Sjögren.4

Dessa forma, ao atendermos a um paciente com queixa de prurigo (pápulas pruriginosas), o exame dermatológico minucioso é imperativo, a fim de avaliar a possibilidade do diagnóstico oculto de dermatite herpetiforme, frente à ampla diagnose diferencial a ser elaborada.

Paulo Ricardo Criado. Mestre em Clínica Médica pelo Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, Serviço de Derma-tologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (HSPE-SP) e Complexo Hospitalar Padre Bento de Guarulhos.Roberta Fachini Jardim Criado. Mestre em Clínica Médica pelo Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, Ser-viço de Alergia e Imunologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo e Hospital Estadual Mario Covas da Faculdade de Medicina do ABC.Cidia Vasconcellos. Pós-Doutorada em Medicina, Laboratório de Investigação Médica do Departamento de Dermatologia (LIM 53), Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Uni-versidade de São Paulo (FMUSP) e Serviço de Dermatologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.Luciana Galvão. Serviço de Moléstias Infecciosas do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.Nilceo Michalany. Mestre em Patologia Geral, Departamento de Anatomia Patológica da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (Unifesp-EPM).Valeria Aoki. Doutora em Dermatologia, Laboratório de Imunopatologia Cutânea, Departamento de Dermatologia, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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