depois da rainha victoria, edward vii - andré maurois

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     Após o reinado de mais de seis décadas da Rainha Victoria (1819-1901)

    e da impressionante expansão do Império Britânico impulsionada pelaRevolução Industrial, o Reino Unido recebeu a coroação de Edward VII(1841-1910) com algumas ressalvas. O filho mais velho de Victoria tinhaentão 59 anos e era conhecido por ser mulherengo, glutão e dado aogos de azar. Um de seus casos amorosos causou tal escândalo que

    muitos dizem que matou de desgosto seu pai, o Príncipe Albert(1819-1861), poucas semanas depois. E Victoria nunca perdoou o filhopor isso. Mas a história pode surpreender os mais céticos. Edward VIIacabou sendo conhecido como Edward, o Pacificador, e seu reinado,

    mesmo que curto (apenas nove anos), foi crucial para algumasmovimentações políticas no Reino Unido e na Europa. Lançadooriginalmente em 1933, o livro Depois da Rainha Victoria, Edward VIItraça um perfil elegante, como é costume na bibliografia do escritor André Maurois, de um monarca repleto de contradições em ummomento importante da história mundial, a passagem do século XIXpara o XX – os impérios que dominavam o mundo no século XIXestavam para ruir com a Primeira Guerra Mundial, e um novo atorsurgia com força no cenário político mundial: os Estados Unidos (antesde ser coroado, Edward VII foi o primeiro membro da Casa RealBritânica a visitar oficialmente a antiga colônia). Enquanto o mundo secontorcia em mudanças – o cinema e o carro tinham acabado de serinventados –, Edward VII tentava arrumar a própria casa contendo osânimos de conservadores e liberais que brigavam por uma novaConstituição. Maurois, sempre fascinado pelos meandros da nobreza britânica, disseca esses jogos de poder em um livro indispensável paraquem gosta de história e política.

     

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    Prefácio

    Uma lista das fontes consultadas será a Bibliograia apresentada no imdeste livro. Mas de início eu gostaria de expressar meus agradecimentospela permissão que me foi gentilmente dada de citar algumas cartasdirigidas ao Rei Edward VII – preservadas nos arquivos de Sua MajestadeRei George V da Inglaterra no castelo de Windsor; também pela permissãoa mim concedida pelo H.M. Stationary para transcrever despachos, oícios,

    etc. publicados nos British Documents on the Origin of the War.  Devoagradecer também àqueles a quem ico obrigado, seja pelos documentosinéditos, seja pelos testemunhos pessoais, em especial a Madame Noguès,que se prontiicou a me mostrar passagens de cartas pessoais de seu pai,M. Delcassé; a Mrs Adeane, que estava em Osborne à época da morte daRainha Victoria e ajudou-me a descrever os últimos dias da Rainha; a SirAusten Chamberlain, Mr Lloyd George e MrWalter Runciman; a LordTyrrell e ao Conde Mensdorff; a Jules Cambon, a M. Paléologue, M. Barrère

    e M. de Fleuriau; a M. Maurice Donnay, Mr Harley Granville-Barker, MrMorton Fullerton e Mr Maurice Baring, que me falaram de algumas dassuas próprias recordações desse período; à Condessa Jean de Pange, M.Daniel Halévy, Mr Robert Sencourt e S.F. Markham, aos quais devo diáriosnão publicados; e inalmente meu tradutor inglês, Mr Hamish Miles, cujaerudição sempre é um valioso controle.

    À Societé des Conférences em Paris ico uma vez mais em dívida degratidão por ter-me permitido expor, diante de uma plateia que incluíaalguns dos protagonistas desse drama, uma considerável parte das ideias efatos que posteriormente formariam o material da presente obra.

    Por im, ao leitor, gostaria de assinalar que o objetivo do autor não foijamais o de escrever uma vida do Rei Edward VII, mas de examinar emseus vários aspectos um período recente e notável da história daInglaterra e descrever, tão exatamente quanto permitissem os documentosconhecidos, o mecanismo que faz a guerra e a paz – do qual soberanos,ministros, embaixadores e povos são as rodas de engrenagem, e para oqual ambição, medo, orgulho e coragem fornecem a força propulsora.

    A. M.

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    O Fim da Rainha Victoria

    I. “Limitadamente doméstica e amplamente imperial”  

    Em 18 de dezembro de 1900, a Rainha Victoria deixou o castelo deWindsor pelo de Osborne, na ilha de Wight. Todos os anos ela passava em

    Windsor o dia 14 de dezembro, “esse triste dia tão cheio de terríveislembranças,” data da morte do príncipe Albert; à noite ela anotou, napágina do diário mantido por mais de meio século, a constância de seupesar: “trinta e oito anos desde a horrível catástrofe que despedaçouminha vida e me privou do meu anjo da guarda, o melhor dos maridos e omais nobre dos homens!”

    Também todos os anos, na semana que se seguia a esse aniversário, elaaguardava, antes de partir para uma temporada na Riviera, o inal do ano

    em Osborne. Essa casa era-lhe de grande estima porque havia sidoescolhida e remodelada, cinquenta anos antes, pelo Príncipe. Fora elequem projetara os jardins, plantara os rododendros e as araucárias,construíra um chalé suíço para as crianças e erguera um forte emminiatura a im de ensinar-lhes a arte da guerra. Em Osborne, por todolado, eram visíveis “seu bom gosto e a marca de sua querida mão.”

    Nos vestíbulos, alcovas recobertas de tecido azul-jarreteira, encimadospor conchas de gesso dourado, continham cada uma o busto de um

    ancestral alemão. Em Osborne, como em suas outras residências, a Rainhaacumulara objetos reveladores de seus sentimentos. Era possível ver, emduplicatas e triplicatas, miniaturas pintadas sobre porcelana de seus noveilhos, seus quarenta netos, numerosos bisnetos, sobrinhos, sobrinhas,primos e aliados Estavam todos lá: príncipes ingleses, alemães, russos,Saxe-Coburgs, Mecklemburgs, Romanoffs – retratados em porcelana; e aolado deles, miniaturas dos cães da Rainha. Os melhores retratos elamandara reproduzir em litograia. Formavam uma extensa coleção,

    preservada em grandes baús, e um funcionário recebia um salário especialpara cuidar dessa régia necrópole.

    Para Victoria, nada mais natural que a mistura de fetichismo familiar e

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    dignidade soberana. A seus olhos, os reinos da Europa eram apenasdomínios de sua família. O Kaiser da Alemanha era “Willy,” seu neto; e oczar da Rússia o “querido Nicky,” seu neto pelo casamento, pois desposarasua “querida Alicky,” ilha de Alice de Hesse-Darmstadt. Aparentada comas casas reais de Grécia, Romênia, Suécia, Dinamarca, Noruega e Bélgica,ela pouco distinguia suas ligações pessoais com os monarcas das relaçõesde estado da Inglaterra com as nações. A uma carta do Kaiser Wilhelm IIela respondeu: “Não creio que soberano nenhum tenha jamais se dirigidoem tais termos a outro soberano, principalmente quando esse soberano ésua própria avó...” O Kaiser, que a amava e temia, aceitou a repreensão –“Bem-amada Vovó,” respondeu humildemente – e Lord Salisburyconsiderou que a carta da Rainha fora muito salutar.

    Pois Victoria era ao mesmo tempo rainha da Inglaterra, imperatriz daÍndia, e uma avó simples e meticulosa preocupada com as doenças dosvivos, atenta às datas dos mortos, no duplo papel que não lhe parecia maiscontraditório do que o de Cleópatra, rainha do Egito, e sua tríplice naturezade mulher, soberana e deusa. Personiicação do Império aos olhos de seuspovos, via-se como tal aos próprios olhos. Teria sido a poética eloquênciade Disraeli que a fez aceitar o papel de magia? Quando escrevia, naterceira pessoa, “a Rainha está pasma...” ou “a Rainha deseja...” tinha como

    real a santidade de seu poder. Não se surpreendeu quando um médicomilitar lhe escreveu do Transvaal que as latas de chocolate com quepresenteara os soldados detinham os tiros dos bôeres: “muito comovente.”Quando o Tâmisa inundou Eton sem sua autorização, “aborreceu-se” eexigiu uma rigorosa investigação.

    Para ela, a história do seu tempo era a história de sua vida. A França e aInglaterra pareceram prestes a declarar guerra pelo caso do Sião quandoa Rainha estava em Nice, ela escreveu ao primeiro-ministro: “Espero que

    uma crise possa ser evitada por razões nacionais e também porque paramim, pessoalmente, seria muito incômodo que surgissem complicações comum país onde me encontro e onde sou tratada com marcantes cortesia eatenção.” Aos oitenta anos era ainda antes de tudo feminina: e suas ideiaspolíticas permaneciam ligadas a rancores e afetos. Quando Lord Roseberyveio lhe expor seus planos de aumento das forças navais, ela ointerrompeu: “E o exército?” Ele explicou que o orçamento só permitia umúnico esforço e que a Marinha era mais importante. “Ah! Não posso

    concordar com o senhor. Fui criada, por assim dizer, com um sentimentoespecial de apreço pelo exército... Sim, ilha de soldado e não passandomuito bem ao mar, sempre tive esse sentimento...” Porque não gostava do

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    mar, “apreciaria” algum pequeno sacriício orçamentário em favor dasforças de terra.

    Mas era ao mesmo tempo “estritamente doméstica e amplamenteimperial.” Se sua  legação e seu  ministro estivessem assediados pelosboxers na China, sentia a mesma sincera preocupação de quando algum deseus netos icava doente. Dizia com paixão “meu povo” e de vez em quandoo defendia de seu  governo, indignada quando um ministro da Fazendapretendia taxar mais duramente a cerveja ou o chá de “ seu povo.” Por “seupovo” entendia principalmente a classe média que crescera lado a ladocom ela, pois foi em sua adolescência e depois em seu reinado que aInglaterra industrial conquistara os mercados mundiais. Não sabia muitonem dos operários nem dos agricultores. Outrora, sob a inluência deAlbert, izera expedições cuidadosamente planejadas a casas humildes aoredor de Balmoral, distribuíra roupas quentes para velhinhas queseguravam suas mãos e invocavam Deus para abençoá-la. “Tão tocante.”Porém, dos desafortunados que viviam nos pardieiros de Londres elaformava uma imagem confusa. Surpreendeu-se com a chegada emWestminster dos primeiros deputados trabalhistas, e os convidou aWindsor para que lhe fossem apresentados; fato que, anotou em seudiário, “muito os agradou.”

    Das classes médias ela partilhava as virtudes e os gostos. Como milharesde senhoras idosas de seu reino, no dia em que seria o do aniversário deseu marido, sentia prazer em relembrar, depois de meio século, os temposem que preparava presentes para ele. Suas ideias sobre as belas-arteseram as da burguesia britânica. Gostava que um pintor lhe mostrasse apaisagem que ela própria via ou pensava que via. Achava os quadros deMr Turner fora do comum. “Most extraordinary ,” “fantásticos,” dizia, comuma mescla de surpresa e reprovação em suas palavras. Um retrato

    deveria ser julgado pela semelhança com o modelo, e se o modelo fosse ela,seria extremamente importante que a faixa da Ordem da Jarreteiraestivesse na cor correta. A luz? Não, a luz não poderia mudar as coresporque a tinta usada pelas Ordens Reais era excelente. E ela assim o diriaao artista.

    Na mocidade, cantara as baladas de Mendelssohn, e o príncipe Albert lheapresentara o compositor. Até o im de sua vida ela fez vir cantores aWindsor, tanto homens quanto mulheres. Eles se preparavam para o

    espetáculo em aposentos gelados e, ao descer, encontravam Sua Majestadesentada no salão tendo ao lado uma mesinha com um binóculo de teatro,sem dúvida simbólico. Considerava Fausto  de Gounod “celestial,” mas a

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    música “moderna” a desagradava. Certa vez, quando uma peça musical lhefoi apresentada, perguntou o que era. “É uma canção de beber, Madame,de Rubinstein.” “Que tolice!” – disse a Rainha, uma canção de beber?Como? Não se pode beber sequer uma xícara de chá a tal ária!” Tampoucomostrava maior indulgência com os mestres do passado. “Handel mecansa,” disse ela, “e não vou ingir o contrário.” Por muito tempo recusououvir as óperas de Wagner. “Totalmente incompreensíveis,” declarou; equando lhe disseram que aquela era a música do futuro, retorquiu: “Ofuturo me enfada e não quero ouvir falar dele.” No entanto, no im da vida,ela encantou-se com Lohengrin. “Jean de Reszké estava tão belo de branco,com armadura e elmo, e a luz elétrica projetada nele parecia envolvê-lonum halo.” Assistiu a Carmen tantas vezes que sabia letra e música de cor,e tinha seu repertório de árias de Gilbert e Sullivan.

    “Eu não simulo...” Sem qualquer esnobismo estético, era incapaz de ingirprazer que não sentia. Coniante em seu julgamento e em seus direitos,jamais cogitava do efeito produzido. Certa vez, comentava sobre um novoministro que recém lhe fora apresentado, quando alguém mencionou aopinião que esse homem de estado, por seu lado, tinha de Sua Majestade.“Dear me! ”– disse ela. “Nem por um instante pensei nisso... O que importa éo que eu penso dele.” Essa plena certeza conferia-lhe uma naturalidade

    autêntica. Educada como uma princesa do século dezoito, mantivera apeculiar postura à vontade, a aisance daquele período. Porém, embora peloestilo pertencesse à mais pura aristocracia de seu reino, os ensinamentosde Albert haviam-na, desde muito, apartado de quem ela se referia, comcerto desdém, como “the upper classes.” Às vezes, comparava a aristocraciainglesa com a da França em vésperas da Revolução, e achava que o amoraos prazeres a levaria à ruína. Quando chegasse esse dia, a Coroa e o povoseriam aliados. Assim falara Albert, assim falara Lord Beaconsield. Não

    poderia ser errado.Desde o casamento, a Rainha não participava mais da vida brilhante eescandalosa da “sociedade.” Por volta de 1900, uma jovem americana,descrevendo Londres para sua família, escreveu: “A rainha Victoria não fazparte da sociedade.” Pura verdade: a Corte cessara de ser o centro da vidamundana. Depois da morte do príncipe Albert, a Rainha “abandonara acolmeia, e as abelhas continuaram suas vidas.” Essas abelhas juntavam-sena Marlborough House, residência do Príncipe de Gales, e nas casas de

    umas poucas grandes anitriãs. Quando algumas damas piedosas deLondres quiseram estender o manto da moda a um clérigo que pregavatemas morais e religiosos, pediram à Princesa de Gales para assistir aos

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    seus sermões, e não à Rainha – porque esta “não dava o tom elegante.” Defato, quando consultada a respeito, Victoria censurou a ideia. Ir à igreja ouà capela nos domingos de manhã com irme regularidade... assistir aosbatismos, casamentos e funerais da família real cumpria o total daobservância religiosa. “Mas não posso compreender,” dizia, “por queprincesas haveriam de dedicar-se em dias de semana à devoção emLambeth.” Era tudo “deveras extraordinário,” e não podia ser muitoadequado.

     II. A velhice laboriosa de Titânia

     Não, dias de semana eram dias de trabalho. À beira da obsessão pelapontualidade, a rainha gostava que os dias fossem ordenados, calmos,cheios. Toda manhã, às nove e meia, estava pronta. Desde a morte domarido só usava cetim preto, toucas de tule branco (feitas por Mrs Caley) ebotinhas pretas de elástico, de que recebia um par cada quinzena.Pequena e robusta, lembrava um cogumelozinho (dizia o pintor Angeli),mas com notável dignidade. Olhos azuis, um tanto salientes, joviais, e gestosencantadores. A voz era agradável e o riso franco. Mr Balfour observou “ainclinação rápida da cabeça na qual toda a Realeza parecia centrada” e que

    pontuava o im de suas frases deixando-as deinitivas e incontestáveis. Ocontraste entre tanta autoridade e tanta simplicidade causava estima.“Havia algo tocante,” disse o príncipe Bülow, “em seu modo de se conduzir,de comer, de beber. Essa soberana de um Império mundial lembrava umasimples senhora do Hanover.”

    Em Osbone como em Windsor, ela saía de manhã em sua carruagembaixa, aberta, puxada por um pônei, e que ela mesma guiava. Uma dama dehonra caminhava ao lado para lhe contar os acontecimentos da casa; as

    mínimas ocorrências a interessavam tanto quanto os assuntos de Estado.Se alguma das damas de honor estivera em Portsmouth na véspera, erapreciso que a Rainha soubesse se havia voltado e se o mar esteve agitado.Parava frente aos chalés para ter notícias dos doentes, depois voltava aopalácio para começar o trabalho. A pilha de papéis que assinava de própriopunho era assustadora. Tratava de tudo: a promoção do dirigente dabanda, um discurso que queria enviar gravado em fonógrafo para a rainhada Etiópia, um telegrama para Li Hung Chang ou para M. Félix Faure, e a

    diiculdade de dar condecorações numa campanha em que, contra asregras, os soldados morriam de febre e não de ferimentos.

    Graças a esse trabalho diário, evitava ser afogada em papéis de estado.

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    Como sua visão era falha (de manhã, até pingar gotas de beladona nosolhos, ela era quase cega), todos os despachos eram copiados à mão emletras grandes. Insistia que os documentos importantes lhe fossem trazidosimediatamente. O ultimato de presidente Kruger lhe foi entregue quandoestava à mesa, e ela, no mesmo instante, levantou-se para telegrafar a LordSalisbury. Exigia dos secretários uma presença constante e notava a maisleve infração às regras que estabelecera. Sir Arthur Bigge, seu secretárioparticular, tinha de ter autorização especial para ir de Windsor a Londres.Se o emissário não trouxesse Sir Arthur de volta no momento exato em queela chamava, ele acharia uma nota sobre a mesa: “A Rainha deseja saberpor que Sir Arthur não estava em seu escritório?”

    Após almoçar ela saía numa carruagem de parelha, sempre aberta.Acostumada aos ventos e chuvas de seu reino, gostava de sentir a neve. Asdamas de companhia nesses passeios recebiam recomendações especiaisdos médicos. A Rainha, desde os oitenta anos, estava sujeita a surtos desonolência danosos para a saúde. Precisavam conversar com ela semparar. Logo, as damas, intimidadas, não sabiam mais o que dizer. “Ontem,Madame, ouvi um realejo no Parque.” “Um realejo!” – exclamaria a Rainha,despertada. “Um realejo? Não me disseram nada... Nunca me dizem nada...”Estava criada uma bela história. Pois era admissível que, em seu Império,

    um realejo estivesse tocando sem seu conhecimento? Na eventualidade dese deparar com um deles, parava a carruagem e conversava com oitalianinho, inquieta pela saúde do símio que o acompanhava. À noite elacomia um bife, uma maçã, e passava alguns minutos com os ilhos paraentão retornar ao trabalho e, até às onze horas ou meia-noite, lá icavaassinando, assinando... Um estadista mais cínico explicou essa régiaservidão dizendo que poderia sobrevir ao trono da Inglaterra algumsoberano perigoso, e que seria desejável providenciar-lhe

    antecipadamente alguma ocupação inofensiva.Nada quebrava o ritmo de sua vida. Quando a Rainha estava em Cimiez,os telegramas cifrados a acompanhavam. Ela não morava em Londres, nemsequer abria mais as sessões do Parlamento. Por muito tempo esseretraimento foi desaprovado. Ofendia ao povo essa eterna viuvez, o pesarsem im por um príncipe alemão que a Inglaterra não amou. Se não queriareinar, que abdicasse. Depois, a ausência veio a envolvê-la de um prestígiomisterioso. Poetas e soldados louvaram a “Viúva de Windsor.” “Seu

    fantasma tomou proporções divinas; enfeitaram-na dos mais extravagantese incongruentes atributos, e aqueles que tentassem, fosse nos maisrespeitosos e mesmo afetuosos termos, separar a fábula da história e

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    reduzir esse imenso ídolo a proporções humanas, eram tidos como cruéisdifamadores.”

    Era tão idosa e tão poderosa que seres mais jovens não mais esperavamdela sinais humanos. Era de longe a mais velha dos soberanos europeus.Reinava havia onze anos quando Franz Joseph acedeu ao trono da Áustria.Em seu reinado, a França tivera duas dinastias e uma república; aEspanha, três monarcas, e a Itália, quatro reis. Fora instruída em políticapor estadistas de há muito entrados para a história: Lord Melbourne, SirRobert Peel, Disraeli. Ela foi a primeira soberana da Inglaterra a viajar detrem; ao que seu cocheiro, indignado, pediu para ao menos simular acondução da locomotiva e só renunciou a essa prerrogativa após ver suabela libré escarlate escurecer com a poeira do carvão. O cocheiro deCinderela numa locomotiva, o dourado dos galões deslustrados pelafumaça – era um símbolo cabal desse feérico reino de maquinaria eprosperidade. Quando ela estivera em Paris em 1855 para ver oImperador e a Imperatriz, os franceses, admirados com sua pequenaestatura, escreveram que “a própria Rainha Mab os havia visitado.”Também Disraeli, de pé em frente a ela, inclinado para ouvi-la melhor,muitas vezes pensara na pequenina soberana do “Sonho de uma noite deverão.” E mesmo pelo im do século, vendo-a passar em sua carruagem

    baixa de um cavalo, as moças, no parque de Osborne, evocavam a imagemde Titânia.Toda essa adoração por uma senhora idosa, a vasta importância de seus

    movimentos de “viúva retirada” irritavam os espíritos rebeldes, e a reaçãonatural foi o surgimento de uma lenda contrária. Ela não passava, insistiamos detratores, de uma velha comum, “como tantas viúvas herdeiras deposições, de espírito acanhado, sem gosto em arte e literatura, apegada aodinheiro, com certa atividade política mas fácil de adular, convencida de

    sua posição providencial no mundo e sempre disposta a prolongar eaumentar essa posição. Lia apenas o Morning Post , só dava ouvidos aosministros tories  e aos generais, não possuía o menor senso de humor epretendia regular os costumes com um puritanismo ultrapassado.”

    A verdade é muito mais complexa. A Rainha não foi de forma nenhumaum “espírito acanhado.” No tempo da juventude, à época de LordMelbourne, esteve perto de adotar a vida livre de seus antepassados,dançando noite afora e vendo o sol nascer nos campos de Windsor. Albert 

    mostrara-lhe que aquela vida de prazeres e de autoindulgência eraincompatível com os deveres de uma soberana moderna. A bela aparênciadele e seu talento persuasivo convenceram-na de que ele estava com a

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    razão, e ela impôs regras severas ao entourage. Admissão à sua Corteequivalia a um atestado de pureza moral na vida doméstica. Ela coibia seusministros de fumar e franzia o cenho quando eles não usavam roupaspretas aos domingos em Balmoral. Era impiedosa com os homens públicoscitados, como Dilke, em processos de divórcio. Mas no âmago ela não eranem pudica nem hipócrita. “Suas ideias sobre tais assuntos foramherdadas dos tios hanoverianos, e ela raramente mostrava o falso recatode que seus biógrafos muitas vezes a acusam.” Possuía um vivo senso dehumor. “Os gracejos de que a Rainha mais gostava não eram de qualidademuito sutil.” Acometiam-na acessos de puro riso controlado a custo, e nãoera raro ter um sorriso a adoçar-lhe o semblante.

    Ela nem era puritana, nem exatamente pia. Politicamente, sabia queestava à testa de duas Igrejas Estabelecidas – a Igreja da Inglaterra e aIgreja da Escócia – fato contraditório que em nada a incomodava. Desejavatambém viver em bons termos com seus súditos católicos: “Sou sua Rainhae devo cuidar deles,” dizia. Se a Constituição a obrigasse a ser também acabeça de uma hierarquia muçulmana ou budista, ela cumpriria essedever sem nenhuma hesitação. Pessoalmente, era crente, mas “nãoaprovava nenhum tipo de excesso; desencorajava o ascetismo como umavariedade de arrebatamento; não gostava de cerimônias religiosas

    demoradas e algumas vezes melindraria o celebrante ao indicar, por umlevantar do leque, que o sermão se tornara demasiado extenso.”Desaprovava o proselitismo, o fanatismo, as seitas e as opiniões próprias. Averdade de um protestantismo moderado, solidamente apoiado na Bíblia,lhe parecia evidente, e o agnosticismo, incompreensível. Quando opositivismo francês lhe foi explicado, ela icou igualmente interessada echeia de comiseração. “Como é curioso!” – disse. “E como é uma coisatriste! Que erro eles estão cometendo... Mas me fale mais desse estranho M.

    Comte!”Ela não tinha pretensões à sabedoria, nem mesmo a uma vasta cultura,mas “seu bom senso chegava à genialidade.” Lord Salisbury, que avaliavaseu caráter com isenção, prezava, com alguma reserva, seu julgamento. Osnumerosos aniversários, o fetichismo familial da Rainha, causavam espantoa Lord Salisbury; seus gostos literários e artísticos o divertiam, mas eleadmirava sua irmeza de caráter e seu poder de trabalho. “Dizer sempre averdade à Rainha, ela sabe muito bem do que fala.” Ela possuía uma

    impressionante intuição de como “seu povo” reagiria a alguma medidagovernamental. “Sempre achei,” dizia Lord Salisbury, “que ao saber o que aRainha pensava, eu saberia com bastante certeza como seus súditos

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    reagiriam, em especial os da classe média.” E Lord Clarendon, discutindouma diícil questão com um subsecretário do Foreign Ofice, concluiu:“Bem, vamos pedir a opinião da Rainha... Sempre vale a pena escutar suaopinião, mesmo que não se concorde com ela.”

     III. O Jubileu de Diamante

     Devia ser uma pessoa notável para adquirir tanto prestígio emcircunstâncias tão diíceis. A dinastia de Hanover, família estrangeira vindada Alemanha para governar os ingleses, fora de início mais tolerada querespeitada por eles. A imoralidade dos tios-avós da Rainha desgostaram osprotestantes virtuosos. A ignorância do idioma os afastara dos negóciospúblicos, e o hábito de realizar as reuniões do Gabinete sem a presença doRei arraigou-se sob George I porque ele não sabia falar inglês. Mas o acasoforja às vezes as melhores instituições, e esse costume, nascido de umafalha, na verdade fortaleceu o poder; assegurou a força da Coroa Britânicaao privá-la da responsabilidade direta.

    Duas circunstâncias fortuitas completaram o processo. A primeira foi aacessão de uma mulher, que transformou a lealdade partidária em virtudecavalheiresca. A duquesa de Burgundy certa vez comentou para Louis XIV

    que as rainhas eram superiores aos reis porque quando uma mulher estáno trono, são os homens que governam, ao passo que com um rei, são asmulheres.

    A segunda circunstância foi o casamento da Rainha com um membro dacasa de Coburg. Uma monarquia do século dezenove precisava protegersuas instituições contra os avanços de sentimentos republicanos e adaptar-se à exigente respeitabilidade da burguesia industrial; nem os reis Stuarts,absolutistas, nem os reis Hanovers, dissolutos, poderiam ter conseguido

    preservar suas coroas. Está perfeitamente correto dizer que foram osCoburgs que tornaram a monarquia respeitável. Antes deles, a realezaparecia ser feita para libertinos faustosos ou para tiranos sinistros.Leopoldo da Bélgica e o príncipe consorte Albert da Inglaterraintroduziram nos palácios reais os padrões das classes médias. Forammaridos excelentes, ótimos pais, e mostraram aos burgueses que um reipodia ser chefe de família tão respeitável quanto eles.

    Louis-Philippe foi para a França um desses soberanos burgueses,

    virtuoso e pacifista; mas a França, nem bem recuperada de sua paixão peloImpério, entediou-se, mal sem cura. Na Inglaterra, as virtudes domésticassalvaram a monarquia. As “classes dirigentes” tinham sorrido. Quando o

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    príncipe Albert foi candidato a Chanceler da Universidade de Cambridge,os estudantes colaram cartazes: “vote em albert. cinco ilhos.” Mas asmassas aprovaram. John Bright, com suas sólidas botinas, cuja mentalidadeparecia inevitavelmente republicana, disse: “Se o trono inglês for sempreocupado com tanta dignidade e correção, esperemos que essa monarquiavenerável possa se perpetuar.” Em todos os tempos e lugares, religiões queafetaram a imaginação popular foram as de sentimentos familiares, asrelações entre os deuses lembrando aos iéis suas próprias estimadasemoções. Com a rainha Victoria, a Inglaterra habituou-se à vida de famíliados soberanos como parte da vida pessoal de cada súdito e reduziu agrandeza da soberania ao nível do sentimento de todos.

    Mas seria um grande erro ter considerado a Rainha apenas um símbolo.Supericialmente, seu poder parecia pequeno. O direito de fazer leis erados Lords e dos Comuns; o direito de aplicá-las, aos ministros e juízes. ARainha não tinha nem direito de veto; teria de assinar a própria sentençade morte, dizia-se, caso lhe fosse apresentada após ter sido devidamentevotada por ambas as Casas do Parlamento. É bem verdade que, em teoria,tinha o direito de dissolver o Parlamento, e este, em caso de crise, deescolher o novo primeiro-ministro; na prática, suas decisões eram-lheimpostas pelo uso. Designara Salisbury depois de Rosebery porque a

    opinião pública aprovava. Duas vezes em sua vida, por medo de Peel e porhorror a Gladstone, tentou resistir ao costume; duas vezes foi vencida.Depois de ser constitucional pela razão, tornara-se por hábito.

    No entanto, a soberana retinha “o direito de saber, o direito de encorajar,o direito de advertir,” e usava os três. Direito de saber : sempre exigiu dosministros que a mantivessem informada. Aqueles, como Palmerston, quetentaram ultrapassá-la foram chamados à ordem. Com oitenta anos, aindaprotestava se um batalhão da Guarda fosse transferido para Gibraltar sem

    ela ser consultada. Direito de encorajar   : no início da Guerra dos Bôeres,quando Mr Balfour foi a Windsor tranquilizar Sua Majestade, elarespondeu: “Peço-lhe que compreenda que ninguém nesta casa estádesanimado; as possibilidades de derrota não nos interessam; nãoexistem.” Direito de advertir : no doloroso incidente de Fashoda, foi elaquem recomendou a Lord Salisbury não humilhar a França: “Sinto-meansiosa com esse estado de coisas, e uma guerra a pretexto tão ínimo edesprezível diicilmente eu me convenceria a aprovar... É preciso que nos

    esforcemos por salvar a França da humilhação.” E alguns dias mais tarde:“Creio que seria importante ajudar os franceses, de forma compatível comnossa dignidade, a sair desse horrível impasse.”

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    Num estado onde os ministros mudavam a cada eleição, a Rainharepresentava continuidade. Por vezes, no Conselho Privado, era suamemória que guiava a reunião num assunto mais complicado sobre o qualos registros existentes eram omissos. Em suas ações ela tinha o futurosempre em vista. Detestava ver os ministros livrarem-se de umaescorregadela culpando um subordinado. Não sendo afetada pelaslutuações da opinião pública, como era o Gabinete, ela podia persuadir osestadistas não a desprezarem o sentimento popular, mas a prever suasrápidas e fatais reações.

    Já escreveram com ironia que ela se considerava o pivô em torno do qualgirava a máquina do estado. Seria essa uma imagem tão falsa? De fato, elaera o centro ixo do reino, o eixo do Império, o símbolo de sua unidade. Issoicou manifesto em 1897, quando celebrou o Jubileu de Diamante,sexagésimo aniversário de sua acessão à coroa. Foi desejo seu uma festado Império, e somente do Império. Muitos soberanos estrangeirosdesejaram ser convidados. “Seria de vossos planos ou vosso desejo,”escreveu o imperador Wilhelm II da Alemanha, “nossa ida, ou não, ao vossoJubileu, e gostaríeis ou não que nossos ilhos nos acompanhassem?” APrincesa Herdeira da Grécia escreveu que “morria de vontade decomparecer ao jubileu de Vovó.” A Rainha deixara de lado todos esses

    estrangeiros, e Lord Salisbury, seu primeiro-ministro, aprovara; pois elepermanecia, como ela, iel à doutrina do “esplêndido isolamento.” O jubileuassim “era como um desaio lançado pela Inglaterra às nações. O mundopodia invejá-la, pois ela era um mundo.

    A própria Rainha fez o programa do grande dia. Convidara os primeiros-ministros coloniais e suas famílias a Londres, hóspedes do governo; tropasinglesas e nativas vieram de todas as colônias ou domínios. Nas ruas deLondres desilaram não só regimentos ingleses, escoceses, irlandeses,

    galeses, como também a infantaria montada do Cabo, tropas da Austrália,Canadá e Índia, haussas do Niger, chineses de Hong-Kong, diaks de Bornéue zapties de Chipre. A procissão jubilar foi como um triunfo romano.

    De manhã, ao levantar-se, a Rainha escreveu no diário: “Como lembrobem esse dia há sessenta anos quando fui tirada da cama por minhaquerida mamãe para receber a notícia de minha acessão!” Depois, seusilhos e netos chegaram para tomar o café da manhã com ela, e apresentearam com um colar de diamantes, cujo fecho era uma coroa com

    as duas datas, 1837–1897. Para essa ocasião solene, a “Viúva de Windsor”abandonou por um dia suas roupas de cetim preto, e usou um traje deseda cinza com aplicações de bordado cor de prata. “Minha touca era

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    enfeitada de lores branco-cremoso, aigrettes brancas e rendas pretas.” Nocolo usou seu “encantador colar novo.” Assistiu ao serviço religioso no qualcantaram o belo Te Deum composto outrora pelo querido Albert. Depois,em 22 de junho, atravessou Londres em meio a imensa multidão. “Diainesquecível. Creio que ninguém jamais recebeu tal ovação... A multidãoera indescritível, o entusiasmo maravilhoso e profundamente tocante. Asaclamações ensurdecedoras, e os rostos plenos de real alegria. Fiqueimuito comovida.”

    Em frente à catedral de St. Paul uma estranha máquina, na época umanovidade, estivera rodando; e alguns dias mais tarde, sobre uma tela,numa imagem enevoada e tremida, os ingleses puderam ver osurpreendente espetáculo de Sua Majestade em seu landau, movendo asombrinha como uma pessoa viva. “Foi cansativo para os olhos; mascontemplar tal maravilha certamente valia uma enxaqueca.”

    Ao retornar ao palácio de Buckingham, as aclamações foram tãocalorosas que ela caiu em lágrimas. “How kind they are to me ,” disse...“Como são gentis comigo!” Antes de sair do palácio, ela apertara um botãoelétrico e com esse gesto enviou a todas as colônias do Império amensagem: “From my heart I thank my beloved people. May God bless them ...De coração agradeço ao meu bem-amado povo. Que Deus os abençoe.” Na

    manhã seguinte, quando uma dama da Corte lia para ela nos jornais anarrativa do dia anterior, novamente as lágrimas aloraram: “Mas que izeu,” perguntou, “para merecer tudo que dizem sobre mim?”

    Esse dia de junho 1897, um dia de diamantes, de ovações e de lágrimasde felicidade, fora o apogeu do reinado e talvez do poderio britânico. Taisenlevos são perigosos igualmente para as nações e para os homens. Omaior dos poetas da jovem Inglaterra publicou nesse dia no Times  versosque surpreenderam pelo tom de gravidade profética. Em meio à festança,

    Rudyard Kipling escreveu na parede um canto bíblico: God of our fathers, known of old –Lord of our far-flung battle-line –Beneath whose awful hand we hold Dominion over palm and pine –Lord God of hosts, be with us yet,Lest we forget – lest we forget! 

     The tumult and the shouting dies –The captains and the kings depart –

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    Still stands Thine ancient sacrifice, An humble and a contrite heart,Lord God of hosts, be with us yet,Lest we forget – lest we forget!  

    IV. A Guerra dos Bôeres 

    Menos de três anos após a gloriosa procissão do Jubileu, o Deus dosexércitos pareceu abandonar a Inglaterra. Longe, na ponta do continenteafricano, duas pequenas repúblicas agrícolas desaiaram o mais poderosoimpério do mundo.

    Quem quis a guerra? As causas vêm do passado remoto. No séculodezessete, holandeses criaram no Cabo da Boa Esperança um posto,simples fazenda para reabastecer de legumes e aves os navios a caminhoda Índia. Depois vieram granjeiros holandeses, franceses huguenotes.Empurrando os nativos, eles avançaram em seus carros de boi para onorte e, julgando-se mal protegidos pela Companhia Holandesa das Índias,declararam a independência.

    Nas guerras napoleônicas a Inglaterra, dona dos mares e inimiga da

    Holanda (aliada de Napoleão), tomou esse território como Colônia do Cabo;mas os fazendeiros, rudes e independentes, habituados a exercer em suasfamílias e escravos negros uma autoridade patriarcal e soberana,questionaram as autoridades britânicas. Após uma longa luta, os maisteimosos, liderados por um velho fazendeiro chamado Kruger, izeram em1836 novo avanço para o norte e, cruzando os rios Orange e Vaal,fundaram dois novos estados – as república de Orange e do Transvaal.

    Por todo o século dezenove essas duas repúblicas brigaram com os

    vizinhos ingleses. Depois de uma temporária anexação por Disraeli, osbôeres repeliram os ingleses em Majuba Hill, e Gladstone teve a fraquezade ceder. Essa fácil vitória causou nos bôeres desprezo pelo poder inglês, eas relações pioraram com a descoberta de campos de diamantes nas duasrepúblicas por volta de 1875 e de minas de ouro em cerca de 1885. O ilhodo velho Kruger de 1836, presidente do Transvaal, entrou em choque comCecil Rhodes, profeta do imperialismo britânico. Este, em sua onipotência,tentou uma vitória particular e estava por trás da incursão repentina pela

    fronteira, o Jameson Raid de 1895-6. Mas o Dr Jameson foi aprisionadopelos bôeres e libertado a duras penas contra pagamento de resgate. OImperador da Alemanha telegrafou a Kruger felicitando-o por ter repelido

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    o ataque, atitude que o deixou impopularíssimo na Inglaterra.Os ingleses então tentaram contornar pedindo ao velho Kruger direito

    civil e de voto aos colonos ingleses exploradores de ouro e diamantes,atraídos ao país na esperança de grandes riquezas. Kruger sabiamenterecusou, pois o plano de seus adversários era soterrar os votos bôeres comeleitorado estrangeiro e fazer as duas repúblicas votarem pela anexação. Onegociador do governo inglês foi Sir Alfred Milner homem insigne mas semlexibilidade. Grande administrador à moda prussiana, erudito edoutrinário, Milner irritava-se com a lerdeza e as artimanhas dos bôeres.Se a Inglaterra tivesse enviado um dos seus grandes aristocratas rudes esilenciosos, apreciador de cavalos e criadores de gado, ele talvez seentendesse com Krüger falando de touros, de aves e fumando cachimbo.Mas Milner mostrou-se rígido e a guerra estourou.

    Em Londres, as multidões  jingo, patrióticas fanáticas, de início zombaramdesse embate desigual. Inventaram canções sobre Kruger e prometeramcear com ele no Natal em Pretória, tal como as multidões de Paris haviamem gritado 1870 “à Berlin!”

     Por favor, Tio Paul, trate de ter suficiente para todosPois cinquenta mil Tommies estão a caminho de sua casaAlguns têm lugar na bagagem e levam uma bandeira

    Para cravar no pudim, no dia de Natal. O Natal chegou, e muitos regimentos de fato jantaram com Tio Paul emPretória – como prisioneiros de guerra.

    Durante todo o ano de 1900 as notícias foram desastrosas, e ninguémsofreu mais que a octogenária Rainha. Ela se mostrou infatigável,escrevendo para generais e para soldados, indo despedir-se dos batalhõesque partiam para o front, visitando feridos nos hospitais, tricotando

    cachecóis para as tropas, fazendo Lord Wolseley prometer que tudo seriafeito para assegurar conforto nos navios para os cavalos, protestandocontra as demoras do Ministério da Guerra, inundando seus ministros comtelegramas. Ninguém quis menos essa guerra do que ela. Mas jornais, naAlemanha e na França, atacavam-na da forma mais grosseira e injusta. Ahostilidade da imprensa nacionalista francesa forçou-a a abandonar suavisita anual à Riviera; em vez disso ela viajou para a Irlanda, com aintenção de consolidar a lealdade dos irlandeses. Apesar de ter sido bem

    recebida, essa temporada a fatigou muito; tantas preocupações econtratempos a esgotaram. Quando desembarcou de seu iate  Alberta  em18 de dezembro, os moradores de Osborne icaram impressionados vendo

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    a que ponto ela havia mudado desde o ano anterior. Ela não era mais apequena e rechonchuda senhora, quase bonita, que atravessara Londrescom aigrettes brancas em sua touca no dia do Jubileu; era uma moribundaquem agora chegava à Ilha de Wight.

     V. A Morte da Rainha: Acessão de Edward VII 

     Mas a vida da Rainha era tão regular, seus dias tão imutáveis, que poralgum tempo mesmo seu círculo mais próximo teve a ilusão de tudo estarbem. Porém seu diário icou lamentoso. Em 1º de janeiro de 1901: “Anonovo; tão fraca e adoentada que o inicio tristemente.” Não dormia à noite e,vencida pela fadiga, cochilava de manhã, fato “irritante,” anotou.Ventaniasvarriam a ilha. Em 10 de janeiro, recebeu Lord Roberts, único general,além de Kitchener, bem-sucedido na África. A multidão o seguiu até ocastelo gritando “Good old Bobs! ” Na bruma, um homenzinho em uniformede gala de general e bicorne com plumas brancas. A Rainha deu-lhe o títulode Conde e a Ordem da Jarreteira. Ele falou sobre as diiculdades doexército, dos mortos conhecidos da Rainha e de um neto dela, “Christie,”morto no Transvaal. Garantiu-lhe não ter dúvida do resultado inal, seicasse claro para o inimigo que pelo tempo que fosse e por mais que

    custasse, iriam até a vitória. Era o que sempre a Rainha dissera a seusministros.Em 13 de janeiro, ela abriu como de hábito o seu diário. As últimas

    palavras que escreveu foram: “Assinei papéis e ditei para Lenchen.” No diaseguinte recebeu Lord Roberts de novo; depois não seria mais vista. Suaúnica doença era a velhice e o extremo cansaço daquele ano triste.Adormeceu de pura exaustão. O Príncipe de Gales foi chamado comurgência. Seu irmão, o duque de Connaught, estava na Alemanha. Ele deu

    ao Kaiser o telegrama anunciando que a rainha estava à morte. Wilhelmchamou seu chanceler, Príncipe von Bülow, e anunciou-lhe com grandenervosismo que sua avó estava gravemente doente e que ia para pertodela. “Eu lhe iz ver,” disse Bülow, “que seria aconselhável esperar paraver que curso tomaria a doença. O Imperador replicou, impaciente, que eraa vida de sua bem-amada avó, e que estava tão determinado a vê-la umavez mais que não levaria em conta ponderação nenhuma.” O duque deConnaught disse a Bülow que a ideia partia de um bom coração, mas era

    constrangedora. As relações entre os países, desde o raid de Jameson e otelegrama do Kaiser a Kruger, não eram de cordialidade. A presença deWilhelm II no leito de morte da Rainha seria constrangedora. A família real

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    não saberia o que fazer dele. Mas enquanto o Duque e o Chancelerconversavam, o Imperador voltou e disse que tudo estava pronto. O Duquese despediu e apertou a mão de Bülow dando de ombros.

    O Kaiser escreveu a Lascelles, embaixador em Berlim: 

    Informei devidamente ao Príncipe de Gales de minha chegada pedindo-lhe que não me vejacomo Imperador, venho como neto respeitoso ... Suponho que as “saias brancas” que isolamminha pobre vovó do mundo – e, receio, de mim – farão uma cena ao saberem de minhachegada; mas não me importo pois faço meu dever, e mais ainda por se tratar dessaincomparável avó, como nenhuma existiu antes ... Viajo com Tio Arthur ... Estou profundamentetriste.”

     Em 22 de janeiro, a multidão de jornalistas que invadiu Osborne viu oKaiser da Alemanha e o Príncipe de Gales juntos pelo parque. Sabia-se não

    haver muito afeto entre tio e sobrinho, porém leitos de morte propiciamreconciliações. Pela primeira vez na vida o Kaiser foi popular na Inglaterra.Ele escreveu à imperatriz contando que o povo de Londres chorou dealegria com a notícia de que ele estava ao lado de sua avó. O Daily Mail ,sentimental, estampou a manchete: “ A friend in need ...”

    A seu chanceler o Kaiser enviou telegramas em tom chistoso sobre o marcoalhado de navios. Osborne trazia suas primeiras recordações. No fortimdo príncipe Albert, ele havia brincado com velhos canhões de ferro. Ali

    recebera sua primeira lição de náutica no pequeno iate da Rainha, olberta. Sua avó fora das poucas pessoas que o amaram sinceramente.

    Para ela, ele sempre foi favorito. Chamava-o “ my dear boy ” e dizia-lhe queseu avô era o melhor homem do mundo. Agora as enfermeiras louvavamsua atitude à cabeceira da moribunda. A aura de respeito que envolvia aRainha era tanta que, mesmo com ela em coma, os ilhos não ousavamentrar em seus aposentos sem ser chamados. O Imperador se mostravamais corajoso e não deixava o quarto. Bem verdade que, com seu excessivo

    desvelo, impacientava o príncipe e a princesa de Gales, que esbarravamnele, como que inadvertidamente, para se aproximar do leito. Mas opúblico ignorava esses detalhes. Falava-se, entre o pequeno grupo dasdamas de companhia, que as últimas palavras inteligíveis da Rainha foi umpedido para que seu cachorro fosse posto na cama dela – mas que elerecusou ficar ali.

    O círculo mais íntimo da casa não podia crer que a Rainha fosse morrer.Documentos e telegramas se acumulavam em sua mesa; ao ver essa pilhade papéis aumentando com rapidez surpreendente, Mr Balfour pensou naindustriosa e modesta paciência com que, por sessenta e três anos, sem um

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    só dia de interrupção, a Rainha cumprira sua parte no governo do Império.As damas de companhia observavam com tristeza o bando de jornalistas àespreita nas grades esperando o último suspiro. Pelo im da tarde, o chefede polícia veio até os portões e disse: “Senhores, sinto comunicar-lhes queSua Majestade expirou às seis horas e trinta.” Um confuso som seavolumou, seguiram-se estrépitos de metais e fez-se uma louca corrida debicicletas em direção ao posto telegráico. O estrépito das rodas, das vozese das campainhas elevou-se no ar da noite e informou que a rainhaVictoria estava morta.

    Em Londres, a comoção foi enorme, o país inteiro entrou em luto. Nasruas, todos vestiam preto. Quem não podia, usava tarja preta no braço. Eraimpossível encontrar em Londres uma única peça de tecido preto. Foipreciso importar da Alemanha toneladas de crepe. Depois soube-se que aRainha expressara desejo bem diferente. “Não é curioso?”– disse LadyCavendish à Princesa Radziwill, “a Rainha, que nunca usara senão pretodepois da morte do Príncipe Albert, quis que não houvesse nada preto emseu ataúde; mandou que a vestissem de roupa branca no caixão, o quartotodo forrado de branco e o trajeto do cortejo decorado de cor púrpura. Nãoqueria em seu enterro sinal nenhum de tristeza porque ao morrer ela iaencontrar seu amado Albert.” Portanto, o rei Edward determinou que no

    funeral os ornatos fúnebres fossem vermelhos; e o vermelho, por sua vez,desapareceu das lojas. O Lloyds pagou seguros contra a morte da Rainha, eas livrarias pediam pelos livros de orações agora desatualizados. Os cabostelegráicos icaram abarrotados. Em Paris, a Câmara dos Deputadossuspendeu a sessão em sinal de luto. Na Birmânia, nativos vestidos debranco prostravam-se ante a estátua da Rainha. Em Calcutá, todas as lojasfecharam, e os ricos, como em dia de luto na família, alimentaram ospobres com arroz, lentilha e doces.

    Em Osborne, a Rainha jazia em seu leito. Até na morte permaneceu iel àsua noção de dever, deixando instruções precisas sobre o cerimonial quedeveriam seguir. Por ordem dela seu rosto foi coberto com o véu que usouno casamento. Juntos, o rei Edward e o Imperador da Alemanha aergueram para depositá-la no féretro. Este, por sua vez, foi posto sobre umalto estrado cerimonial na sala de jantar de Osborne transformada emcâmara- -ardente. Montaram guarda primeiro soldados da Brigada deInfantaria, depois uma Companhia de Guarda. Era estranho ver, nessa

    simples casa de campo, as longas ilas de soldados. Quatro corpulentosgranadeiros escarlates guarneciam de pé os cantos do catafalco, imóveiscomo estátuas, com as cabeças curvadas sobre seus fuzis invertidos. O

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    próprio rei Edward pusera sobre o caixão a coroa com seus diamantescintilando à luz das velas, a faixa da Ordem da Jarreteira e o manto dearminho. Um jornalista, ao passar na longa ila, notou que o arminho estavaamarelecido pelo tempo.

    O trono não podia icar vago. Era preciso proclamar sem tardança o novorei.

    Desde o início da doença da Rainha, os funcionários do Conselho Privadoestavam seriamente ocupados com o assunto da proclamação. Ninguémmais tinha qualquer lembrança de qual era o cerimonial. Era necessáriotambém preparar o discurso que o novo soberano faria ao ConselhoPrivado no momento de sua acessão. O primeiro-ministro, Lord Salisbury,foi consultado e emitiu a curiosa e bem inglesa opinião de que seriasuiciente repetir o discurso feito pela Rainha em 1837. O Duque deDevonshire mostrou-lhe que pelo menos dois terços daquele discurso nãotinham mais signiicado para a presente situação. Mas Lord Salisbury nãodava importância excessiva aos discursos nem à presente situação.

    A proclamação foi feita do palácio Saint James em 25 de janeiro de 1901.O Conde Marechal (que era o duque de Norfolk) apareceu na sacadacentral seguido pelo Rei-de-Armas da Jarreteira, os Arautos e osPassavantes, em seus uniformes bordados com o brasão real; atrás deles,

    quatro trombeteiros em túnicas douradas. Ao mesmo tempo, no pátioentrou grande número de oiciais em uniformes escarlates sob o comandode Lord Roberts. O ensombrado quadrilátero, iluminado por tantas coresbrilhantes, assemelhou-se de repente a um canteiro de lores. Astrombetas soaram e o Rei-de-Armas da Jarreteira, avançando, bradou:“Considerando que agradou a Deus todo-poderoso chamar para Si nossasoberana Senhora Rainha Victoria, de memória gloriosa e bendita... nós,Senhores temporais e espirituais deste reino, assistidos pelos membros do

    Conselho Privado da inada Majestade e por numerosos outros cavalheirosde qualidade, juntamente com o Senhor Prefeito, seus conselheirosmunicipais e cidadãos de Londres, proclamamos em uníssono de voz ecoração que o nobre e grandioso Príncipe Albert Edward tornou-se agoranosso único legítimo e lídimo soberano Lord Edward Sétimo, pela graça deDeus. God save the King!” 

    As últimas palavras foram solenemente repetidas pela multidão. Astrombetas soaram. Depois, os Arautos e os Passavantes seguiram para o

    centro da City; eram obrigados a parar na entrada da Temple Bar, fechadapor uma simbólica corda de seda vermelha estendida de um lado a outroda rua, onde os esperaravam o prefeito de Londres em sua carruagem,

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    conselheiros municipais e funcionários graduados dos condados, ossheriffs. As trombetas soaram três vezes. O Marechal da City, a cavalo,avançou até a barreira e em voz tonitruante bradou: “Quem vem lá?”

    E veio a resposta no mesmo tom: “O Rei de Armas, que roga admissão àCity para proclamar Sua Majestade Real Edward Sétimo.” O cordão de sedavermelha da Barra do Templo foi levantado, e o cortejo entrou ao som dafanfarra das trombetas. A ordem do Conselho Privado foicerimoniosamente entregue ao Lord Prefeito, que respondeu: “Estou cientedo que está escrito neste documento, tendo sido informado ontem dacerimônia decretada para ser feita, e concorro para cumprir meu dever deacordo com os antigos costumes e práticas da City de Londres.” Por suavez, na extremidade da Chancery Lane, dentro dos limites da City, o Arautoproclamou o Rei, e os espectadores novamente repetiram em seguida a ele:“God save the King! ”

    O Rei veio de Osborne para presidir à sua primeira reunião do ConselhoPrivado. Todo mundo estava aturdido. Lord Salisbury vagueava com um aralheado. O Lord Prefeito desejava insistentemente estar presente,argumentando com um privilégio de antanho da City, e o escrivão doConselho Privado, tão indignado quanto o Duc de Saint-Simon icaraoutrora com aquelas pretensões de Parlements, acompanhou-o até a porta,

    reprovando sua conduta.O duque de Norfolk insistia em seus direitos de organizar o enterro dasoberana. O Lord Chamberlain o contestava. O Rei surpreendeu a todos aopôr de lado o discurso preparado para ele e improvisar sem nada escrito.Ninguém anotou suas palavras, e quando os jornalistas pediram o texto dadeclaração, viram-se obrigados a recorrer, para a reconstituir, à espantosamemória de Lord Rosebery. Depois o Rei retornou a Osbone, onde teria depreparar os funerais de sua mãe.

    Foi entre uma dupla coluna de encouraçados e cruzadores ancoradosque passou o pequeno iate Alberta  com os restos mortais da Rainha abordo. O tempo estava primoroso; um céu de janeiro azul e sem nuvens.Nos navios, bandas da marinha tocaram a Marcha Fúnebre de Chopin. Oscanhões troaram. “Esse foi um grande reinado,” discursou Mr Balfour naCâmara dos Comuns, “e permitam-me dizer, no meu modo de ver, teve uminal feliz.” Na verdade, não se poderia imaginá-lo mais belo. Uma cenagloriosa: oito milhas de mar coberto de navios de guerra; os marujos de

    cabeça inclinada sobre suas armas viradas ao reverso; clarões vermelhossaindo da boca dos canhões e, entre as salvas, sequências daquela sublimee melancólica música. À frente da procissão vinha o  Alberta com o pavilhão

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    real a meio-mastro, depois, o Victoria and Albert , com o pavilhão no mastroprincipal. Quando o Rei subira a bordo do iate e deu com a bandeira ameio-pau, perguntou ao comandante o que aquilo signiicava. “A Rainhaestá morta, Sir ,” respondeu o oicial. “Mas o Rei está vivo,” replicaraEdward VII, e fez içar o pavilhão. Os derradeiros raios do sol poenteformavam um cintilante tapete de ouro sobre as ondas. Via-sedistintamente o que se passava a bordo dos iates, mas apenas dois pontosatraiam os olhares: no  Alberta, o ataúde coberto de vermelho, e no Victoriaand Albert , o Rei e o Kaiser da Alemanha.

    Em Londres, manhã fria e cinzenta, vento cortante. Uma multidãoaguardava. O silêncio à passagem do cortejo foi tão profundo que todos sesentiram personagens de um sonho ou de um conto de fadas. Seria crívelque a peça de madeira, tão pequena e curta, contivesse aquela que foratanto tempo a imagem do Império? Atrás do ataúde, a cavalo, vinha o Rei,muito pálido, entre o Kaiser da Alemanha e o Duque de Connaught; o Reide Portugal, o Rei da Grécia e um escalão de príncipes. Só um murmúrio,quase um suspiro, irrompeu simultaneamente das pessoas nas árvores,telhados, balcões: foi quando Lord Roberts passou.

    O serviço fúnebre seria na capela de St. George. Na estação de Windsor,os cavalos de artilharia, assustados pelas bandas militares, nervosos com a

    longa espera sob o vento leste, escoicearam e empinaram de formaperigosa. O ataúde poderia ser quebrado. Por ordem do Kaiser, osmarinheiros da guarda de honra passaram à frente, desatrelaram aparelha e puxaram eles próprios a carreta. Naquela noite, soldados emarujos se soquearam nas ruas de Londres devido a esse episódio, queirritara o Rei Edward. Em parte do trajeto, os alunos da escola de Eton,vizinhos e protegidos de Windsor, montaram guarda. O Kaiser, ao passardiante deles, conversou com um ex-aluno da escola, o duque de Coburg.

    Pouco militarizados, à voz de comando “Armas em funeral!” os estudantesizeram o movimento sem jeito, e seus fuzis rodopiaram como asas demoinho.

    O Kaiser itou-os com o olhar inquieto e fez um gesto brusco com seubraço defeituoso. Os rapazes, com o cano dos fuzis na biqueira das botinas,cabeças inclinadas sobre o peito, olhavam de viés para ver o cortejo eeniavam disfarçadamente pedaços de chocolate na boca quando os oiciaisse descuidavam. O velho duque de Cambridge resmungou para o duque de

    Grafton ao lado dele: “Logo eu mesmo vou também.” Com a resposta deGrafton lembrando-o que tinham a mesma idade, Cambridge, de súbitoalentado com a ideia, disse alegremente: “Sim? Ah, então iremos juntos!”

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    Para galgar os degraus da Capela, o caixão foi carregado nos ombros dosGuardas Granadeiros. Era tão pesado e tão curto que os homens tiveramdiiculdade em segurá-lo e ele por pouco não caiu. Se os Arautos d’Armasnão os ajudassem, um novo acidente poderia ter ocorrido.

    Após o serviço, o Rei-de-Armas da Jarreteira chegou à frente nosdegraus da Capela pela última vez e proclamou “o muito nobre, grandiosoe esplêndido monarca nosso soberano Lord Edward, agora, pela graça deDeus, Rei do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, Defensor da Fé,Imperador da Índia, e Mestre da Nobilíssima Ordem da Jarreteira... DeusSalve o Rei!” Os que ouviram sua poderosa voz nesse dia jamaisesqueceram o som agudo e cortante daquele “God Save the King! ” A cortinase fechava sobre um século de história.

    Funerais sempre terminam com um banquete. Um excelente almoço foiservido em St. Georges’ Hall. Havia alguma dúvida sobre o adorno dotúmulo da Rainha, mas as autoridades de Windsor informaram ao Rei queela havia previsto tudo. No sepultamento do Príncipe Albert, ela derainstruções sobre seu próprio enterro junto a ele, e ela mesma se deitou nochão diante do escultor, na posição de uma jacente em leito de morte. Essaestátua de uma mulher ainda jovem foi instalada sobre a tumba da velhaRainha. Ela também havia escolhido uma inscrição: Vale desideratissime. Hic

    demum conquiescam tecum; tecum in Christo consurgam.O Kaiser icou uns dias após o enterro. Teve várias conversas com LordLandsdowne, ministro de Assuntos Estrangeiros. O inglês, reservado ecortês, anotou os pitorescos e bruscos comentários de seu imperialinterlocutor: “O Imperador da Rússia só serve para viver numa casa decampo e cultivar nabos... O único jeito de se entender com ele é sendo oúltimo a sair da sala... A França está desapontada com a Rússia e com oCzar; não existe amor entre os dois países... Os grão-duques russos gostam

    de Paris e de uma parisiense em cada joelho... Os Estados Unidos odeiam aAlemanha e se alinharão com a Rússia...” Ao retornar, o Kaiser disse a seusministros que havia causado “uma visível impressão em Lord Lansdowne.”Era verdade.

    Quando partiu, no entanto, pelo desvelo e pesar demonstrados, WilhelmII reconquistara os ingleses – uma raça de sentimentalistas. Já os alemães,por seu lado, se enfureceram por ele ter conferido a Ordem da ÁguiaNegra ao Marechal Roberts, vencedor dos Bôeres. O Kaiser ainda

    permaneceria sob o encanto dos seus quinze dias na Inglaterra muitotempo após seu retorno à Alemanha. Aquele fanático por uniformes agorasó aparecia em roupas civis, como os ingleses. Os oiciais de serviço em

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    Postdam icaram surpresos e escandalizados ao ver o Supremo Senhor daGuerra num jaquetão preto e prendedor de gravata com o monograma daRainha Victoria, explicar-lhes a superioridade das maneiras inglesas sobreas alemãs.

    Em Londres, a vida retomou seu curso. A Sociedade de Proteção aosPássaros se reuniu para protestar contra o uso de penas de avestruz nosornatos de cabeça da polícia sul-africana, e o general Baden-Powell teve deprometer que futuramente seriam empregadas penas de galinha. Osastrônomos observaram uma nova estrela que apareceu no céu ao lado daAlgol, tão brilhante quanto Sírius mas sem o brilho de aço azulado dela. OCassel’s Magazine iniciou a publicação de uma nova história, Kim, que muitagente julgou excepcional. Todos esses acontecimentos eram naturais,familiares. O que, então, mudara na Inglaterra? Em 1895, um jovem oicialchamado Winston Churchill, almoçando com um velho estadista, SirWilliam Harcourt, lançou-lhe a pergunta: “Que acontecerá agora?” “Meucaro Winston,” respondeu Sir William, “a experiência de uma longa vidame convenceu de que nada jamais acontece.”

    E realmente, passados sessenta anos, para os ingleses, nada acontecera.A Rainha reinou, assinou, amou, envelheceu. Melbourne, Peel, Disraeli,Gladstone, Rosebery, Salisbury combateram entre si, sucederam-se entre

    si. Suas guerras foram expedições de menor gravidade, quase semprebem-sucedidas. O Império se consolidara. A riqueza da Inglaterra crescera.A população havia dobrado. Então, em poucos meses, tudo se alteraria.Janeiro, 1901: a Rainha estava morta, um novo piloto tomava o leme,fazendeiros africanos desaiavam o Império. Em cada família inglesachegavam cartas de soldados: “Nenhum sinal de paz, longe disso.” Era umpaís inteiro que, surpreso, alito, fazia a pergunta que o jovem WinstonChurchill fizera anos antes: “Que acontecerá agora?”

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    O Príncipe de Gales

    Edward VII era mais um mediador do que um estadista, um conversador mais do que umerudito. Mas era um diplomata no serviço público. Do saber dos negociantes e da sagacidadedas mulheres, ele aprendeu a lidar com os homens.

    shane leslie

     Ninguém obedece tanto quanto um rei.

    alain 

    I. Infância 

    “Decidi tomar o nome Edward, usado por seis de meus ancestrais. Com aescolha não subestimo o nome Albert de meu saudoso, excelente e sábiopai, conhecido, creio eu com justeza, como Albert, o Bom – e desejo que seunome permaneça único.”

    Foi esse o tom do primeiro discurso do Rei Edward VII ao ConselhoPrivado, e seus termos, impregnados de devoção ilial, teriam consternadoa Rainha Victoria. Quando o ilho nasceu, em 9 de novembro de 1841, elalhe deu o nome de Albert Edward, insistindo na prioridade de Albert, edescreveu ao Rei Leopoldo da Bélgica seu prazer com o “querido nome.”“Espero e rogo que ele seja como seu querido papai... Você compreendeminhas fervorosas preces, e as de todos, para que ele seja como o pai emtodos, todos os aspectos, de corpo como de alma.”

    Seria realmente a prece de todos? Em Albert de Saxe-Coburg a jovemrainha encontrara, a seus olhos, o ser “modelo de beleza, de inteligência, detudo.” Mas ingleses não têm muita simpatia pela perfeição, e a elapreferem, de forma perversa, o natural. Eles não gostavam de Albert. Porser estrangeiro, mau cavaleiro, trabalhador incansável, “praticar asvirtudes que pregava,” ser puro e pudico – enim, pelo temperamento deprofessor alemão, e não de gentleman inglês. Na época de seu casamento,acossaram-no com dúvidas sobre seu nascimento, seu protestantismo, sualealdade. Recusaram-lhe precedência sobre os membros da família real, eo Arcebispo de Canterbury “lastimara” não haver nenhum antecedente

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    para permitir orações em seu favor nos serviços religiosos das igrejas.Lentamente, trabalhosamente, a branda tenacidade do Príncipe venceu.

    Ele transformou a frívola mocinha que lhe fora coniada por seu tioLeopold em uma soberana metódica e consciente de seu dever. TornouBuckingham, Osborne, Balmoral, e mesmo Windsor, “totalmentegermânicos e gemütlich,” introduziu na Inglaterra as árvores natalinas davaterland , idealizou as Exposições Internacionais, impôs à Corte artistas eeruditos. Tratando com indiferença a aristocracia, conquistou a simpatiadas classes médias. Ao remodelar assim a Inglaterra, em concordância comos ideais austeros e sentimentais dos Coburgs, julgou como derradeirodever assegurar a perpetuação de sua obra fazendo do ilho um soberanoeducado como ele próprio o fora, com prudência e sábia severidade. “Daboa educação dos príncipes,” dizia ele, “depende, em grande parte, afelicidade do mundo.” Era essencial que esse bebê, sobre cujo berço ele sedebruçava tão ternamente com Victoria ao lado, fosse a felicidade daInglaterra.

    Albert consultou seu antigo tutor e conidente, Barão Stockmar, médicode proissão e preceptor de príncipes por vocação, amigo e fazedor de reis– o Mazzarino, não de um reino, mas de uma família – doutrinador dagrandeza dos Coburgs e da unidade alemã. “Não sejais demasiado zelosa

    com o ensino,” escreveu à Rainha o cético Melbourne. “A educação podevaler muito, mas não tanto quanto se crê; ela pode ordenar o caráter, masraramente modiicá-lo. Porém como poderia Stockmar, que tivera na bancade experiências Albert, o Bom, produto cem por cento puro de seulaboratório moral, duvidar da possibilidade de criar um segundo Albert?Tratava-se apenas de uma questão de planejamento, de programas, deprudência e visão. Mas uma infância era curta para modelar um soberano!Todos os minutos deviam ser usados, e o menor dos incidentes servir de

    ensinamento moral; companhias da mesma idade do menino era algo aevitar, só deixá-lo em contato com pessoas “boas, inteligentes, beminformadas.” Na atmosfera esterilizada, como penetrariam germes nocivosnessa alma?

    Ah, se Stockmar tivesse olhado melhor seu Telêmaco! Se reconhecesse osolhos azuis e um pouco proeminentes dos hanoverianos e detectado, nofundo desses olhos, a avidez por prazeres que Victoria possuíra e quesomente o amor conseguira disciplinar, talvez em sua tentativa de formar

    esse caráter levasse mais em consideração os sentimentos e desejos deuma criança. Mas em vão os primeiros professores do Príncipedescreveram ao pai e a Stockmar a aversão do aluno aos livros, o gosto

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    dele por brincar, e a possibilidade de instruí-lo mais pela conversação, porviagens que por meio da palavra escrita, que só o entediava. Anotações,tanto doutas quanto ridículas, caíram aos montes sobre aqueles olhos. Anatureza tinha de ceder. Para a felicidade da Europa era preciso um rei deacordo com o plano.

    Não tardou muito para o príncipe Albert poder comparar com tristeza alentidão do progresso de seu ilho Bertie e a rapidez do avanço da ilhamais velha, a princesa real. Vicky assemelhava-se muito ao “queridopapai.” Aos três anos ela falava francês e inglês. Aos seis, atravessandouma campina montada em seu pônei, disse à governanta, em francês: “Tel est le tableau que se déroule à mes pieds.” Aos dez, era companheira do pai egostava de conversar com ele sobre política, arte e música. O próprioStockmar a julgava dotada a ponto de parecer gênio. Por outro lado, asredações de Bertie aligiam o Príncipe pela gramática ruim e a canhestrabrevidade. O menino parecia sofrer. Amava e respeitava os pais, ederramava “torrentes de lágrimas” ao ler suas cartas com conselhos; masao pai, ele mais temia do que compreendia.

    A lembrança mais feliz dessa infância de tirania foi uma viagem à França.Em 1855 a Rainha e o Príncipe retribuíram uma visita ao ImperadorNapoleão III. O ilho, que levaram, caiu no gosto dos franceses. O kilt 

    escocês, o ar vivo e curioso, encantou os franceses. Ele disse ao Imperador:“You have a nice country, I would like to be your son  .” Na hora da partidados visitantes, uma francesa, a Condessa d’Armaillé, que assistira passar ocortejo Imperial e Real pela nova Gare de Strasbourg, escreveu em seudiário: “O Imperador Napoleão III escoltava a Rainha Victoria, que,pequena, rechonchuda, singelamente vestida, nada tinha de majestoso. Opríncipe Albert seguia junto modestamente, ele tem cabelos ralos para suaidade e parecia muito cansado... Seu jovem ilho, pelo contrário, olhava

    para tudo, como se não quisesse perder nada daqueles últimos momentosem Paris.” Conta-se que ele pediu à Imperatriz para tê-lo ainda por maisalguns dias, e ela respondeu que a Rainha Victoria não gostaria deseparar-se dele.”Não acredite nisso,” disse, “somos oito em casa, e nenhumde nós faz falta.”

    Mas ele tinha de retornar aos livros, aos preceptores, ao plano deStockmar e às “notas” paternas. Quando completou dezessete anos elerecebeu, juntamente com a patente de Coronel e a Ordem da Jarreteira,

    uma carta da Rainha e do Príncipe sobre a “nova etapa da vida que seabria diante dele” porque: “é assunto de estudo, e o mais difícil de sua vida,como se tornar um bom homem e um gentleman.” Um memorando

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    conidencial foi entregue a cada um dos oiciais de serviço vinculados a SuaAlteza Real: “O Príncipe de Gales não deve apenas ser um gentleman, massua categoria e posição o destinam a ser o principal... As qualidades quedistinguem um gentleman no mundo são: em primeiro lugar, a aparência, apostura, principalmente no jeito de andar e mover-se e o vestuário. Emsegundo, o cunho de suas relações com os demais e a maneira de tratá-los.Em terceiro, seu desejo e capacidade de tomar parte de modo adequado naconversação ou em qualquer outra ocupação da sociedade que elefrequente.”

    Cada um desses três tópicos foi então desdobrado. O memorandoensinava que “um cavalheiro não se refestela nos sofás, não põe as mãosnos bolsos; e na escolha de seus trajes evita tanto a frivolidade do janotacomo a negligência de um guarda-caça.” Um príncipe deve corresponderaos sinais de respeito, não apenas oferecendo imediata resposta comexatidão mas pondo nela certa cordialidade. “Um cumprimento respondidocom ar de tédio é mais uma afronta que uma cortesia. Um príncipe jamaisdeve dirigir palavra áspera a alguém, nem empregar palavras ouexpressões sarcásticas que possam diminuir a pessoa a que são dirigidas.No momento em que a conversa de um príncipe deixar seu interlocutordesconfortável, é porque o príncipe não teve boa educação.” A

    pontualidade era outro dever; fosse um atraso inevitável, desculpas devemser sempre apresentadas. Ele deve mostrar destreza mental naconversação. “Com meros jogos de cartas e bilhar e tagarelices, ele nuncavai adquiri-la; e é algo muito necessário para um príncipe, o qual, comopraxe, tem de tomar a iniciativa da conversa, habituar-se a encontraroutros assuntos afora o tempo ou a saúde do interlocutor.” Além disso, eraessencial que, à força de exemplo e perseverante paciência, osacompanhantes do príncipe o persuadissem a devotar pequena parte de

    seu tempo à música, à poesia e, como Goethe queria, à contemplação deportfólios de gravuras que ao enriquecer o espírito tornam mais “mais fácila conversação.”

    Mas os preceptores do príncipe deploravam a total falta de entusiasmo eimaginação do pupilo, e a ausência ou, no mínimo, o torpor do elementopoético nele. Quando, quarenta e cinco anos mais tarde, o Rei leu emantigas cartas essa descrição de si na idade de dezoito anos, comentougravemente que a avaliação era justa. No entanto, nem todos os

    testemunhos sobre sua adolescência foram assim tão severos. Enquantoseus pais o vigiavam com ansiedade crítica, imaginando-o errado por serdiferente deles, uma das damas da Corte notava “a simplicidade e o frescor

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    juvenis que davam tanto charme às suas maneiras.” 

    II. Casamentos e viagens 

    A Princesa Real, aos quinze anos, foi pedida em casamento pelo PríncipeFrederick Wilhelm da Prússia, ilho único do herdeiro do trono. Dois anosmais tarde seu pai, com orgulho e tristeza, a viu partir para Berlim. “Penseique deixar meu querido papai me mataria,” disse ela. Mas comoverdadeira ilha de Albert, ela se dispos ao trabalho desde a chegada e sepreparou para sua posição de rainha, estudando a questão daresponsabilidade ministerial na Prússia e a de uma concordata com o Papa.O partido militar, então em ascensão na corte da Prússia, observava comalguma ansiedade a Princesa liberal, discípula de Gladstone e Stockmar.

    A Rainha Victoria decidiu que o príncipe de Gales deveria visitar a irmãem Berlim e, depois, prosseguir fazendo seu Grand Tour na Europa.Entretanto, a viagem não deveria interromper o plano de estudos. EmBerlim, a irmã mais velha recebeu recomendações: convinha que Bertiefosse tratado como menino, e não como príncipe; era preciso fazê-lo ler emvoz alta livros em alemão. Em Roma, selecionaram eruditos para guiá-lo navisita aos monumentos. Todas as manhãs ele deveria aprender um texto de

    cor antes do breakfast , estudar italiano das dez às onze, e traduzir francêsdas onze ao meio-dia. Com seu respeito pelos especialistas, Albert mandaraperguntar a Ruskin qual o melhor meio de inculcar no Príncipe o gostopelas artes – depois exigiu que o ilho tivesse um diário arqueológico. Essediário pareceu-lhe parco e pobre. Uma vez mais se manifestava, a“insensibilidade poética.” O Príncipe viu os monumentos de Roma comceticismo: “Você olha para duas pedras gastas e ouve lhe dizerem que é otemplo não sei de quê.” Levaram-no ao cemitério protestante para ver os

    túmulos de Keats e Shelley, mas icou mais interessado quando seuajudante de ordens, capitão Grey, lá encontrou o túmulo de um dos seustios.

    De volta à Inglaterra, ele teria gostado de seguir a carreira militar. Masseu pai o enviou a uma série de universidades, primeiro para Edimburgh,depois para Oxford, e inalmente para Cambridge. A revista Punch, irônica,especulou num poema intitulado “Um Príncipe sob Pressão,” a quais outrasfontes de saber o Príncipe seria despachado. Essa educação do tipo “o

    estudante de Fausto” começava a irritar o público britânico. Em Oxford, oPríncipe Consorte, receoso da vida nobremente ociosa das Universidadesinglesas para um futuro rei que não podia permitir-se “perder a cada

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    semana dias inteiros de diversão,” sugeriu que o Príncipe Herdeiro nãofosse para um college  mas trabalhasse separadamente com seusprofessores. No entanto, o reitor da Christ Church, com respeitosa irmeza,deixou claro que a Universidade não aceitaria um estudante se este tivessede levar uma vida contrária às tradições, mesmo sendo ele o Príncipe deGales. Foi então em Oxford que o Príncipe pela primeira vez viveu entreoutros jovens da sua idade; e aprendeu o que seu pobre papai nuncaaprendera – a apreciar caçadas e charutos.

    Em 1860 ocorreu o grande evento de sua adolescência: uma viagem aoCanadá e aos Estados Unidos. Era a primeira vez desde a Guerra daIndependência que um herdeiro do trono da Inglaterra visitava os EstadosUnidos. A acolhida foi fantástica: Chicago, em plena onda de progresso, e St.Louis, onde visitou a Grande Feira. Em Washington, ele foi hóspede dopresidente Buchanan e achou a sobrinha de seu anitrião, Miss Lane,“particularmente encantadora e muito bonita.”

    O Presidente levou-o ao Monte Vernon, e o bisneto de George III plantouuma simbólica castanheira ao lado da sepultura de Washington. Os povosamam essas reconciliações tardias. O gesto sensibilizou os americanos. Asimplicidade e a franqueza do “jovem visitante” haviam “conquistado todosos corações.” De Filadélia, que ele considerou a mais bela cidade dos

    Estados Unidos, chegou a Nova York, onde icou atônito com a enormemultidão – meio milhão de homens e mulheres em frenesi – a ovacioná-logritando, urrando, agitando bandeiras, excitados à loucura.

    Apenas os irlandeses da milícia de Nova York recusaram participar daparada, declarando que “não era dever de soldados cidadãos exibirem-sediante do rebento de uma casa real a qual eles nada deviam senão ódioeterno.”

    O Príncipe instalou-se no Fifth Avenue Hotel e insistira em pagar sua

    conta, o que causara grande impressão. O baile oferecido pela AcademiaNacional de Música foi o grande evento da visita. Sob milhares de bicos degás reuniram-se as senhoras mais elegantes da “nobreza americana”muitíssimo preocupadas, segundo o New York Evening Post  , em mostrar aoPríncipe e sua comitiva que foram especialmente designadas pelaProvidência para assegurar-lhes uma noite agradável. Os moradores deNova York sentiam-se felizes com o pensamento de que o Império Britânicointeiro não podia oferecer tão grande reunião de beldades e roupas

    elegantes. Finalmente, os ilustres convidados chegaram. Formou-se umaila de casais que, “como os bichos entrando na Arca,” começaram adesfilar enquanto Mr Hamilton Fish os apresentava a Sua Alteza Real.

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    Cinquenta casais já haviam passado quando subitamente, com terríveisestrondos, duzentos outros pares desapareceram “da cintura para baixo”no assoalho preparado para a pista de dança que entreabriu, caindo sobreas poltronas de teatro existente sob ele. A multidão portou-se de formaadmirável; não se ouviu um grito, embora várias senhoras tivessem seferido. Ondas de policiais e carpinteiros ocultaram aqueles belos rostos Otrabalho durou mais de uma hora. No momento em que o piso pareciaenim consertado, percebeu-se que um dos trabalhadores fora esquecidodebaixo dele, e foi preciso reabrir a emenda para tirá-lo. Finalmente,irmes as tábuas da pista, o Príncipe abriu o baile com Mrs Morgan, esposado Governador. Ele dançou depois com seis senhoras e seis senhoritas, eretirou-se por volta das duas horas da madrugada expressando grandesatisfação; porém “mais de um coração americano icou frustrado peloacidente que arruinou a ocasião. “Apesar desse desastre,” escreveu oPríncipe à mãe, “devo dizer que foi deslumbrante.” Assediado por belasmoças, ele provara a agradável sensação de tornar-se o objeto românticodos sonhos de milhares de donzelas. Ele manteria por toda a vida especialpendor pelas americanas, e contribuiu mais tarde para que as portas dasociedade inglesa se abrissem para elas.

    O embaixador francês, M. Mercier, em carta ao seu governo explicou, não

    sem um toque de humor, quiçá inconsciente, o calor da acolhida: Tão espontânea e unânime homenagem a um personagem real, sem outro título além de sua

    posição, da parte do povo mais democrático da Terra, pode surpreender; mas é explicável:1. A conhecida inclinação dos americanos a aproveitar qualquer chance de sair de seus hábitos

    ativos, porém monótonos, e entregar-se a ruidosas demonstrações que se parecem comentusiasmo. Tem havido frequentes exemplos disso; entre outros, quando da visita de artistasfamosos como Fanny Essler ou Jenny Lind, de personagens ilustres como Kossuth ou Dickens e,mais recentemente, dos embaixadores japoneses... Por mais que esses acessos de excitaçãotenham sido espantosos para um europeu, eles nem se aproximaram do que acabou deacontecer em honra ao Príncipe de Gales.

    2. O prestígio da posição social. Nos Estados Unidos esse prestígio é imenso. Pode-se ter umaboa ideia pelo zelo com que os jornais de todos os matizes preencheram suas colunas com osmais minuciosos e muitas vezes os mais pueris detalhes pessoais do Príncipe e de sua comitiva...Para satisfazer a curiosidade dos leitores foi preciso não só prestar contas dos mínimos fatos egestos do futuro Rei da Inglaterra, mas também informá-los sobre a igura, as maneiras de seusacompanhantes e até sobre a impressão de cada um deles do belo sexo. Em vista desse fascínio,muita gente foi levada a achar os americanos muito mais propensos à monarquia do queimaginavam; mas essa não é senão uma apreciação de momento e totalmente artiicial. Nuncahouve povo menos inclinado a instituições monárquicas ou mais destituído de seus fundamentos.Mas os americanos são talvez um povo, mais suscetível que outros aos privilégios do nascimento,

    mais ainda por serem inacessíveis a eles, e por raramente poderem contemplar quem os possui.A esse respeito Lord Lyons me disse divertido: “Dois lords em sequência que enviemos comoembaixadores aos Estados Unidos já é muito. Um a mais, e a dignidade do pariato se perde...”

    3. Grande reserva de simpatia pela Inglaterra. Ainda que, por lembranças da Revolução e da

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    rivalidade, esse sentimento possa às vezes dar lugar à irritação, o lastro é real sobretudo nosestados do norte, mais favorecido pelo imenso orgulho racial dos americanos, não diminuído pelocombate travado pelos ingleses contra a escravatura.

    Juntamente com um grande respeito pela Rainha Victoria, essas foram as circunstâncias daacolhida que o Príncipe de Gales teve nos Estados Unidos. Houve, além disso, a boa sorte de umaexcelente impressão pessoal. Seu exterior em nada desperta imaginações menos favoráveis,antes por suas encantadoras maneiras, afabilidade, juventude, vivacidade, ele ganhou aaprovação de quem teve a honra de dele se aproximar.

     Seria exagero conferir signiicado político à viagem de um rapazote, porémmesmo um pequeno evento pode cristalizar sentimentos. Quando oPríncipe deixou a América alguém da multidão gritou-lhe: “Volte daqui aquatro anos e concorra a presidente!” Bela maneira de recuperar colôniasperdidas. Pela primeira vez o Príncipe se viu com a responsabilidade deresponder por algo, e desobrigou-se com distinção. Mas teve a companhiae a supervisão de um mentor, o general Bruce. Na volta, sem mentor, elesentiu o gosto da verdadeira liberdade na Irlanda, em Curragh, numacampamento de granadeiros – e como todo moço educado com muitaseveridade, abusou dessa liberdade.

    A Rainha e o príncipe Albert, apreensivos, embora ele só tivessedezenove anos, acharam chegada a hora de pensar em seu casamento. ARainha escreveu-lhe sobre o assunto e se queixou de ele ter dado apenas

    uma resposta vaga. Mas o rei Leopold da Bélgica estava atento aosinteresses dos Coburgs. Desde 1858 izera uma lista de sete princesas. Amais atraente era Alexandra da Dinamarca – mas, não seria perigoso casaro futuro Rei da Inglaterra com uma dinamarquesa? A Dinamarca e aAlemanha estavam às turras pelo Schleswig-Holstein. O Príncipe Consorte,desejoso do bom entendimento entre seu país de nascimento e o deadoção, não queria uma aliança dinamarquesa.

    Mas princesas eram raras, e o Príncipe de Gales tinha ideias precisas

    sobre a beleza das mulheres. “Ele vira a Princesa de Meiningen e a ilha doPríncipe Albrecht da Prússia quando esteve em Berlin, e não o agradaram.Vicky esforçou-se também para nos ajudar a encontrar alguém, mas emvão. A ilha do Príncipe Friedrich dos Países Baixos é muito feia.Positivamente não há outras princesas.” Um de seus tios teve aimprudência de falar de Alexandra para o Príncipe de Gales. Ele ouviraexaltarem o charme da jovem princesa dinamarquesa; e viu retratos delana casa da duquesa de Cambridge, que, como nos contos de fadas,

    conirmaram os elogios que entoavam sobre ela. Sua irmã, a Princesa Real,havia visto Alexandra e lhe escreveu descrevendo-a como a maisfascinante criatura do mundo. O próprio Príncipe Consorte estava inclinado

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    a escolhê-la, a despeito do perigo alemão: “Se quisermos um futuro felizpara Bertie, não temos outra escolha.”

    Escreveu essas palavras em julho de 1861. Cinco meses depois, contra asexpectativas, faleceu. Tinha apenas quarenta e quatro anos, mas seextenuara numa vida de de trabalho árduo e esmeros virtuosos. A dor daRainha foi dramática. Nos primeiros momentos de estupor que seseguiram ao choque, ela pareceu se apoiar no ilho mais velho, mas, ao lhevoltar a energia, jurou permanecer iel às ideias de seu marido amado e deser sua única intérprete: “Nenhum poder humano me fará desviar do queele  decidiu e desejou. Em especial quanto a seus ilhos (Bertie, etc.) cujofuturo ele projetou com tanto cuidado.” O Príncipe de Gales, tratado por suamãe como criança, não tomou parte na condução dos negócios.

    No ano seguinte ele desposou a princesa Alexandra. O enlace foi acolhidona Inglaterra com entusiasmo. Ingleses e dinamarqueses, gente do mar,eram ligados por tradições históricas e poéticas. Na Câmara dos Comuns,vozes ansiosas perguntaram a Lord Palmerston se a Princesa eraprotestante. Ele respondeu: “Quando o Governo de Sua Majestadeconsiderou um dever escolher uma esposa para Sua Alteza Real, houvecondições indispensáveis. Ela deveria ser jovem (Hear! Hear! ), bela( Aplausos), bem-educada (Hear! Hear! ) e, enfim, deveria ser protestante.”

    O próprio Príncipe estava enamorado. Escreveu sentir novo interesse emtudo e que tinha agora alguém por quem viver. Sua noiva não só era bonitacomo encantadora e espontânea. Criada numa Dinamarca feérica na épocamesmo de Hans Andersen, teve uma vida rural, sem pompa, no reluzentepalácio branco de Bernstorff. Ela própria tricotava suas meias e servia oshóspedes de seus pais: “Alexandra, traga a manteiga!” – diria a PrincesaLouise, sua mãe. Ela ainda conservava um ar infantil – e também o dom deobservação que as crianças possuem, e uma malícia doce e pueril. Disraeli,

    que assistiu ao casamento celebrado na capela de St. Georges em Windsor,achou-a bem feita de corpo, rosto de traços inos e delicados, a bocagraciosa, e elogiou-a por não precisar sorrir para parecer afável;naturalmente, ele gostou do cerimonial, dos vestidos brilhantes e daRainha num balcão gótico em roupas de luto, a quem todos saudavam nummisto de devoção, deferência e compaixão.

    Alguns dias mais tarde, ele foi apresentado à Princesa de Gales. Ela sabiainglês, mas não muito bem, e Disraeli teve a impressão que ela não

    compreendia tudo o que lhe diziam. Houve um comentário sobre rouxinóis– seria talvez devido a Jenny Lind, então no auge de sua fama? – e Dizzyperguntou à Princesa se ela sabia de que os rouxinóis se alimentavam. Ela

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    deu este solene conselho de despedida: “Atente para não usar o colarinhomuito alto.” Numa recepção ou num jantar, de repente seu olhar podiaestar ixo e preocupado com o uniforme ou a casaca de um convidado, eobservava à meia-voz compungida: “Francis se eng