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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. 17 DEMONSTRATIVOS: HISTÓRIA DE UMA CATEGORIA NA TRADIÇÃO GRAMATICAL DE LÍNGUA PORTUGUESA (SÉCS. XVI A XIX) César Nardelli CAMBRAIA 1 RESUMO: A tradição gramatical de língua portuguesa nunca contou com uma proposta unitária e consensual no tratamento dado à categoria dos demonstrativos ao longo dos séculos. Essa falta de unidade, longe de ser sinal de arbitrariedade, revela uma curiosa tendência de mudança de uma abordagem mais funcional (discursiva) do tema para uma mais formal (estrutural). Para investigar melhor essa tendência, fez-se a análise do tratamento dispensado à referida categoria em cinco gramáticas da língua portuguesa de diferentes épocas: Grammatica da lingua portuguesa (1540), de João de Barros; Regras da lingua portugueza (1725), de Jerônimo Contador de Argote; Arte da grammatica da lingua portugueza (1770), de Antônio José dos Reis Lobato; Grammatica philosophica e orthographia racional da lingua portugueza (1783), de Bernardo de Lima e Melo Bacelar; e Grammatica philosophica da lingua portugueza (1822), de Jerônimo Soares Barbosa. De forma geral, verificaram-se as seguintes tendências: (a) hierarquização cada vez maior da categoria dos demonstrativos (sendo colocada como subclasse subordinada a um número cada vez maior de classes superiores); (b) transferência dessa categoria da classe dos pronomes para a dos adjetivos; (c) conceituação dessa categoria de forma cada vez mais detalhada, passando de definições baseadas na paráfrase do termo técnico da categoria para definições que contemplam a diversidade funcional da categoria; e (d) restrição do inventário de formas pertencentes a essa categoria, deixando-se de considerá-la como abrangendo pronomes pessoais e demonstrativos propriamente ditos para limitá-la a estes últimos. PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Funcionalismo; Demonstrativos; Língua Portuguesa. 1. Introdução Estudos recentes (DIESSEL, 1999; DIXON, 2003) têm tentado identificar os aspectos mais centrais e essenciais da natureza dos demonstrativos. Têm-se defendido, por exemplo, que os demonstrativos seriam categoriais universais e primitivas, ou seja, sua constituição não derivaria de um processo de gramaticalização de formas lexicais: 1 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) / Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Letras, Av. Antônio Carlos n. 6627, Campus Pampulha, CEP 31.270-901, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, [email protected].

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática.

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DEMONSTRATIVOS: HISTÓRIA DE UMA CATEGORIA NA TRADIÇÃO GRAMATICAL DE LÍNGUA PORTUGUESA (SÉCS. XVI A XIX)

César Nardelli CAMBRAIA1 RESUMO: A tradição gramatical de língua portuguesa nunca contou com uma proposta unitária e consensual no tratamento dado à categoria dos demonstrativos ao longo dos séculos. Essa falta de unidade, longe de ser sinal de arbitrariedade, revela uma curiosa tendência de mudança de uma abordagem mais funcional (discursiva) do tema para uma mais formal (estrutural). Para investigar melhor essa tendência, fez-se a análise do tratamento dispensado à referida categoria em cinco gramáticas da língua portuguesa de diferentes épocas: Grammatica da lingua portuguesa (1540), de João de Barros; Regras da lingua portugueza (1725), de Jerônimo Contador de Argote; Arte da grammatica da lingua portugueza (1770), de Antônio José dos Reis Lobato; Grammatica philosophica e orthographia racional da lingua portugueza (1783), de Bernardo de Lima e Melo Bacelar; e Grammatica philosophica da lingua portugueza (1822), de Jerônimo Soares Barbosa. De forma geral, verificaram-se as seguintes tendências: (a) hierarquização cada vez maior da categoria dos demonstrativos (sendo colocada como subclasse subordinada a um número cada vez maior de classes superiores); (b) transferência dessa categoria da classe dos pronomes para a dos adjetivos; (c) conceituação dessa categoria de forma cada vez mais detalhada, passando de definições baseadas na paráfrase do termo técnico da categoria para definições que contemplam a diversidade funcional da categoria; e (d) restrição do inventário de formas pertencentes a essa categoria, deixando-se de considerá-la como abrangendo pronomes pessoais e demonstrativos propriamente ditos para limitá-la a estes últimos. PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Funcionalismo; Demonstrativos; Língua Portuguesa. 1. Introdução

Estudos recentes (DIESSEL, 1999; DIXON, 2003) têm tentado identificar os

aspectos mais centrais e essenciais da natureza dos demonstrativos. Têm-se defendido,

por exemplo, que os demonstrativos seriam categoriais universais e primitivas, ou seja,

sua constituição não derivaria de um processo de gramaticalização de formas lexicais:

1 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) / Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Letras, Av. Antônio Carlos n. 6627, Campus Pampulha, CEP 31.270-901, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, [email protected].

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no processo de constituição das línguas, os demonstrativos já se apresentariam como tal

desde os primórdios. Ademais, defende-se que a dêixis seria sua função primitiva, sendo

as demais (como a anáfora) derivações dela.

Uma forma interessante de avaliar se as propostas citadas procedem é rastrear

como tem sido tratada, na tradição gramatical, a categoria dos demonstrativos: aspectos

reiteradamente descritos ao longo da tradição gramatical podem ser indícios de

características essenciais e aspectos variáveis nas descrições podem ser indícios de

características não-primitivas/derivadas.

2. Demonstrativos em gramáticas de língua portuguesa: apresentação dos dados2

A preocupação de estudiosos da linguagem em determinar as classes de palavras

das línguas parece ter existido desde as primeiras reflexões mais sistemáticas sobre o

tema: por exemplo, em sua techné grammatiké, Dionísio da Trácia (ca. 100 a.C.)

apresentou uma divisão das palavras em oito classes — a saber: ónoma (nome), rhema

(verbo), metoche (particípio), árthron (artigo), antonymía (pronome), próthesis

(preposição), epirrhema (advérbio) e syndesmos (conjunção) (ROBINS, 1983, p. 27).

Essa classificação tornou-se uma referência desde então, sendo adotada com adaptações

pelos romanos: Prisciano (500 d.C), p. ex., apresenta também uma classificação em oito

2 Na Grammatica da Lingoagem Portuguesa (1536), de Fernão de Oliveira, não há uma seção específica em que trata das “partes da oração ou da língua”, mas em sua terminologia aparecem os termos nome ajetivo e sustantivo (fól. Diiij-r) auerbio (fól. Dviij-r), artigos (fól. Dviij-r), números (fól. Dviij-v), preposições (fól. Dviiij-r), pronomes (fól. Eiiij-r) e conjunção (Ev-v) — não consta a presença de interjeição. No que se refere aos demonstrativos, não há alusão a esse termo nem há seção dedicada ao tema, embora mencione, no cap. XLIIII, em que trata das declinações do nome em gênero e número, que “isto.isso.e aquillo. são acabados em .o. e nao são masculinos: mas são de genero indeterminado não neutro como o dos latinos” (fól. Dviiij-v), sugerindo talvez que fossem considerados como parte da classes dos nomes.

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categorias — a saber: nomen (nome, incluindo adjetivos), verbum (verbo), participium

(particípio), pronomen (pronome), adverbium (advérbio), praepositio (preposição),

interiectio (interjeição) e conjunctio (conjunção) (ROBINS, 1983, p. 45). Vê-se que as

principais mudanças foram basicamente a eliminação da classe dos artigos de Dionísio

(fato natural, já que, diferentemente do grego, o latim não possuía essa classe) e o

acréscimo da classe das interjeições.

A tradição iniciada pelos gregos e praticamente reiterada pelos romanos

continuou por séculos sendo o modelo de referência de classificação. Entretanto, os

sinais de insuficiência desse modelo foram se tornando evidentes e, em razão disso,

também já há séculos tem-se tentado fazer avanços em relação a esse modelo de

referência.

Para detectar quais foram as mudanças em relação ao modelo de referência de

classificação de palavras, apresenta-se no presente trabalho uma análise crítica da

classificação do sistema composto pelas formas este, esse e aquele (e suas flexões) na

tradição gramatical de língua portuguesa, formas tradicionalmente chamadas de

demonstrativos. Primeiramente serão expostos sinteticamente os dados pertinentes para

a análise extraídos de cinco gramáticas de língua portuguesa dos sécs. XVI a XIX e, em

seguida, será apresentada uma discussão desses dados.

2.1. Grammatica da lingua portuguesa (1540), de João de Barros

Na gramática da língua portuguesa de João de Barros, a apresentação das nove

“partes” da “nossa linguagem” está já no primeiro capítulo: “Artigo (...), Nome,

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Pronome, Vęrbo, Aduęrbio, Partiçipio, Cõiunçam, Preposiçam, Interieçam” (BARROS,

1540, fól. 2v).

Na seção dedicada ao pronome (BARROS, 1540, fól. 15r-17v), o gramático define

essa categoria como “hũa párte da óraçám que se põem em lugár do próprio nome” e

apresenta como exemplo a frase “Eu escręuo esta Grãmática pera ty”, esclarecendo em

seguida que “Esta, também ę Pronome da Grãmática”. Os pronomes são

subclassificados segundo seis “acidentes”: “Espęcia, Gęnero, Numero, Figura, Pesoa, e

Declinaçã per cásos”.

Quanto à espécia, os pronomes são distribuídos em primitivos ou primeiros e em

derivados (“por q~ se deriuã dos primeiros”), constituindo estes últimos apenas as

formas de possessivos (entendidas como derivadas no caso genitivo das formas

primitivas). Ainda no que se refere à espécia, são apresentadas duas subdivisões dos

pronomes primitivos, ambas de interesse aqui:

Eu, nós, tu, uós, este, estes, sam demõstratiuos: por q~ cásy demóstrã a cousa, per semelhante exẽplo, Este liuro ę do principe nósso Senhor. Elle, esse cõ seus pluráles chamam relatiuos: por fázerẽ relaçã e lẽbrança da cousa dita, posto q~ o seu prĩcipal ofiçio seia demõstratiuo. (BARROS, 1540, fól. 15v)

Quanto à figura, os pronomes são classificados como de figura “simplex” e de

“compósta”. Como exemplos do primeiro tipo apresenta “eu, tu, este, esse”; e do

segundo, “eu mesmo, tu mesmo, aqueste, aquesse, &c.”.

Quanto a gênero, pessoa e número, Barros assinala que os pronomes apresentam

quatro gêneros (“masculino”, “feminino”, “neutro” e “comũ de dous”), três pessoas (a

primeira, “que fála de sy mesmo”; a segunda, “à quál fála a primeira”; e a terceira, “da

quál a primeira fála”) e dois números (“singulár” e “plurár”). Os demonstrativos

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aparecem apenas na exemplificação de gênero: “QVátro gęneros tem o pronome .s. este,

que ę masculino, esta, feminino, isto, que ę neutro. Eu, tu, de sy, comũ de dous.

(BARROS, 1540, fól. 16r)”.

Quanto à declinação, os pronomes são distribuídos em seis casos (“nominatiuo”,

“genitiuo”, “datiuo”, “accusatiuo”, vocatiuo e “ablatiuo”) e em três categorias

(“primeira declinaçam”, “declinaçam dos pronomes possessivos” e “declinaçam dos

nomes relatiuos”).

2.2. Regras da lingua portugueza (1725), de Jerônimo Contador de Argote

Já no primeiro capítulo da primeira parte, Argote expõe, em forma de diálogo

entre mestre e discípulo, quais são as oito “castas de palavras” da língua portuguesa:

“Nome, Pronome, Verbo[,] Participio, Adverbio, Preposiçaõ, Conjunçaõ, e Interjeyçaõ”

(ARGOTE, 1725, p. 2).

O pronome é definido por Argote como “huma palavra, que se poem em lugar de

Nome” (p. 36). São distribuídos também em “castas” — a saber: “primitivos, ou

pessoaes” × “derivados e possessivos”; “demonstrativos”; e “relativos”.

Os demonstrativos recebem essa designação “porque significaõ de forte, que

parece estaõ mostrando a cousa que significaõ, assim como quãdo digo Este homem o

Pronome Este parece està mostrando ao Homem” (p. 44). É interessante que há uma

preocupação especial em diferenciar demonstrativos e relativos:

D. Ha Pronomes, que saõ Demonstrativos, e Relativos, e ha

Pronomes, que só saõ Relativos. M. Quaes saõ os que saõ Demonstrativos, e Relativos? D. Saõ os seguintes Este, ou Esta, Aquele, ou Aquella, Esse, ou Essa,

Isto, Isso, Aquillo. (...) M. E esses Pronomes sempre saõ Demonstrativos?

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D. Sim. M. E porque se chamaõ esses Pronomes Relativos? D. Porque trazem à memoria o seu antecedente. M. Dizey exemplo. D. Vi vosso filho este me pareceo esperto. Nesta oraçaõ o Pronome

Este he Relativo, porque traz à memoria o seu antecendente Filho, e faz este sentido Vi vosso filho, este filho me pareceo esperto.

M. E esses Pronomes saõ sempre Relativos? D. Naõ. M. Quando he, que naõ saõ Relativos? D. quando naõ tem antedente proprio com quem concordem. M. Dizey exemplo. D. Esta casa he grande. Nesta Oraçaõ o pronome Esta naõ he

relativo, porque naõ tem antecedente. (...) M. E quaes saõ os Pronomes, que saõ Relativos, e naõ saõ

Demonstrativos? D. Saõ os seguintes Mesmo, ou Mesma O, ou A, Qual, ou Que. (ARGOTE, 1725, p. 43-45)

Além de apresentar esses fatos, Argote informa também que os demonstrativos

este, esse e aquelle declinam (em nominativo, genitivo, dativo, acusativo e ablativo)

como o pronome elle ou ella, diferentemente de isto, isso e aquillo, pois estes não

apresentam plural (p. 45).

2.3. Arte da grammatica da lingua portugueza (1770), de Antônio José dos Reis Lobato

Para Lobato (1770, p. 7), há na língua portuguesa nove “especies de palavras”:

“Artigo, Nome, Pronome, Verbo, Particípio, Preposição, Adverbio, Conjunção,

Interjeição”3.

Pronome é definido como

3 É interessante salientar que Lobato, diferentemente de Argote, apresenta na introdução (p. VII-XLVIII) de sua gramática um longo repasse crítico sobre a tradição gramatical de forma geral, com especial ênfase nas de língua portuguesa, mencionando Fernão de Oliveira, João de Barros, Amaro de Roboredo, Bento Pereira e Jerônimo Contador de Argote. Informa ter seguido as doutrinas de Sanches, Perizonio, Vossio, Sciopio e Lancelloto “por excederem estes célebres Grammaticos aos antigos em examinarem filosoficamente as materias; pois he certo, que sem o socorro da Filosofia se não póde conhecer perfeitamente a natureza das partes da oração” (LOBATO, 1770, p. XLIII).

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aquelle, que na oração se poem em lugar de outro nome, como quando digo: Pedro estuda Grammatica, e o mesmo ha de estudar Rhetorica. Onde a palavra mesmo he pronome, que se poem em lugar do nome Pedro para evitar a sua repetição; pois seria fastidiosa no mesmo periodo, se dissessemos: Pedro estuda Grammatica, e Pedro ha de esudar Rhetorica. (LOBATO, 1770, p. 38-39)

A classe dos pronomes aparece divida em “varias especies”: “Demonstrativo,

Reciproco, Possessivo, Relativo, e Interrogativo” (p. 39).

O demonstrativo é definido como “aquelle, que serve para mostrar a pessoa, ou

alguma cousa, como v. g. quando digo: Eu escrevo a Grammatica Portugueza. Onde a

palavra Eu he Pronome demonstrativo, por mostrar a pessoa, que escreve a Grammatica

Portugueza” (p. 39). Diz ainda que “Dos Pronomes demonstrativos tres se chamão

pessoaes, por mostrarem, e exprimirem as pessoas, que podem entrar na oração” (p. 39-

40). Dentre os demonstrativos, afirma que há aqueles chamado “primitivos” (que não

derivam de outros) e os “derivados” (que derivam dos primitivos), sendo todos

adjetivos, com exceção de eu, tu e si (p. 39). Especifica em seguida como é essa relação:

São pronomes demonstrativos Este, Esta; Esse, Essa; Aquelle, Aquella; Isto, Isso, Aquillo. O primeiro e segundo são primitivos, os outros são derivados; porquanto Aquelle, Aquella, deriva-se de Elle, Ella; Isto de Este; Isso de Esse; Aquillo de Aquelle. (LOBATO, 1770, p. 43)

Lobato esclarece ainda que “Este, Esta; Esse, Essa; Aquelle, Aquella declinão-se

da mesma sorte que Elle, Ella, tirando-lhe a terminação lhe. O pronome Isto declina-se

assim4. (...) Os Pronomes Isso e Aquillo declinão-se do mesmo modo, que o Pronome

Isto” (p. 43) e que os “Pronomes Este, Esta; Esse, Essa; Aquelle, Aquella; Isto, Isso,

4 Após esta frase, Lobato (1770, p. 43) apresenta um quadro de declinação do pronome isso em cinco casos (nominativo isto; genitivo d´isto; dativo a isto; acusativo isto ou para isto; ablativo d´isto, nisto, por isto) no singular, infomando ainda que “carece do número plural”.

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Aquillo tambem fazem o officio de relativos, quando na oração trazem á memorias o

substantivo antecedente” (p. 49).

2.4. Grammatica philosophica e orthographia racional da lingua portugueza (1783), de Bernardo de Lima e Melo Bacelar

Bacelar (1783, p. 13-14) considera que há três partes essenciais da oração —

agente (nominativo ou nome), acção (verbo) e accionado (paciente ou caso) — mas

assinala existirem outras que “não são essenciaes a ella” — os adjuntos — distribuídas

em artigo, prenome, preposição, advérbio, conjunção e intejeição. Informa ainda em

nota, em relação aos adjuntos, que “os Grammaticos põem no número das 8, ou 9 partes

da oração”.Os adjuntos, definidos como partes da oração “que cada passo a

acompanhão explicando algumas circunstancias”, são divididos em intrínsecos (número,

gênero e caso) e extrínsecos (artigo, adjectivo5, preposição, advérbio, conjunção e

interjeição) (p. 41).

O adjectivo, definido como “som declinavel por 6 casos (...) e representa hum’a

qualidade do agente, ou paciente, como cousa abstracta, e concordavel com elle” (p.

43), é subclassificado em (a) de duas formas × de uma forma, (b) positivo ou absoluto,

comparativo × superlativo; (c) pátrio; (d) numeral; (e) universal × particular; (f)

prenome demonstrativo; (g) prenome possessivo; (h) prenome relativo; (i) prenome

interrogativo; (j) particípio activo × passivo. Esclarece que prenome é “assim chamado,

5 Veja-se que, ao descrever pela primeira vez os adjuntos, Bacelar fala em prenome (p. 13-14) mas mais adiante, ao especificar os tipos de adjuntos (mais exatamente, os extrínsecos), Bacelar (p. 41) fala em adjectivo: parece haver uma certa indecisão sobre esses dois termos, já que dentro da classe dos adjetivos aparecem categorias ditas prenomes, como é o caso dos demonstrativos. O que parece estar por trás dessa oscilação é a percepção de que certas categorias ora acompanham nomes (por isso, seriam chamadas de adjetivos) ora substituem nomes (por isso, seriam chamadas de prenomes).

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porque se poem em logar do nome” (p. 43) e lista como demonstrativos este, esse e

aquelle. Curiosamente, ao tratar do artigo, diz que:

O Artigo he hum som declinavel, que serve do pronome esse, e determina o caso do nome; pois da-me o çhapéo, quer dizer que me deas esse çhapéo do quotío (...), e da-me çhapéo sem artigo val o mesmo, que me deas qualquer çhapéo, que te parecer. (BACELAR, 1783, p. 42)

2.5. Grammatica philosophica da lingua portugueza (1822), de Jerônimo Soares Barbosa

De acordo com o “systema Etymologico das Partes da Oração Portugueza” de

Barbosa (1822, p. 100), haveria duas classes mais gerais: palavras interjectivas ou

exclamativas e palavras discursivas ou analíticas. Na primeira classe estão as

interjeições; e, na segunda, nome substantivo, nome adjetivo, verbo substantivo,

preposição e conjunção. Barbosa faz questão de assinalar que os pronomes, artigos e

particípios podem ser “reduzidos” à categoria dos (nomes) adjetivos (p. 109) e os

advérbios à categoria das preposições (p. 110). Verifica-se que a proposta de Barbosa é

a que mais de afasta da tradição greco-latina, embora apresente antes uma mudança na

hierarquização das classes e não propriamente no reconhecimento das classes

tradicionais, já que, mesmo com sua nova classificação, ainda continua falando em

particular de classes tradicionais menores (p. ex., pronomes) subordinadas a maiores (no

caso, nomes adjetivos). Embora a distinção entre nomes substativos e adjetivos já

constasse da tradição portuguesa desde Fernão de Oliveira, parece então ser a partir do

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séc. XIX que se intensifica a tendência de se considerarem como duas classes

independentes, visão totalmente implementada nas doutrinas em circulação atualmente

seja em gramáticas tradicionais seja em estudos lingüísticos descritivos de diferentes

orientações teóricas.

O (nome) adjetivo é definido por Barbosa como “hum nome, que exprime huma

couza como accessoria de outra, para ser sempre o atributo de hum sujeito claro, ou

occulto, sem o qual não pode subsistir” (p. 137). Os adjetivos são distribuídos em três

classes: determinativos, explicativos e restritivos (p. 140). Os determinativos, assim

chamados porque “determinão e applicão os nomes de classes e communs a certos

individuos particularmente” (p. 141), dividem em de qualidade e de quantidade. Os de

qualidade distribuem-se, por sua vez, nas categorias gerais (artigos) e especiais (que

“determinão ja persi mesmo o nome commum, individuando-o por alguma qualidade,

ou circunstancia particular” e englobam os pessoais e os demonstrativos).

Os determinativos demonstrativos são definidos como “aquelles, que determinão

e applicão os nomes appelativos a certos individuos, indicando-os, e mostrando-os pela

Localidade da sua existencia” (p. 161) e dividem-se em puros (“mostrão e apontão os

objectos presente pelo lugar, menos ou mais distante em que estão, ou no espaço, ou no

discurso, ou na ordem dos tempos; e bem assim o lugar e relação que tem por ordem á

pessoa que fala, áquella com quem se fala, e á de quem se fala”) — a saber, este, esse e

aquele (p. 162) — e conjunctivos (“indicão os objectos pela sua localidade; a sim [sic]

estes os mostram pela sua antecedencia immediata; que por isso os Grammaticos

commummente lhes dão o nome de Relativos, porque se referem a couza antecedente”)

— a saber, qual, quem, cujo e que (p. 164). Barbosa alerta, no entanto, em relação aos

relativos que:

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este mesmo nome se deveria dar aos Pronomes e aos mesmos Demonstrativos puros, quando se referem a cousas antecedentemente dictas no discurso (...) contentemo-nos pois com o nome de Demonstrativos, que convem a todos elles; e mostraremos a sua diferença especifica (...) a qual consiste em estes serem demonstrativos e ao mesmo tempo Conjunctivos” (BARBOSA, 1822, p. 164).

3. Demonstrativos em gramáticas de língua portuguesa: discussão dos dados

Uma primeira comparação entre os dados mencionados das gramáticas aqui

permite ver que o tratamento dispensado às classes de palavras é, do séc. XVI até

meados do XVIII, bastante próximo ao da tradição greco-latina. Embora João de Barros

adote uma proposta de nove classes (diferentemente de Dionísio e Prisciano, que

propuseram oito), suas categorias são basicamente uma sobreposição das propostas dos

dois referidos gramáticos da Antigüidade: além das sete comum aos dois, João de

Barros reconhece a classe do artigo (presente apenas em Dionísio) e da interjeição

(constante somente em Prisciano). Argote e Lobato, por sua vez, são fiéis à proposta de

Prisciano. Um primeiro movimento de afastamento em relação à tradição aparece em

Bacelar, que faz uma macrodivisão em três classes essenciais (agente, acção e

adjuntos), embora sua classe de adjuntos compreenda seis subclasses (artigo,

adjectivo/prenome, preposição, advérbio, conjunção e interjeição), reiterando, assim,

no final das contas, as oito de Prisciano (já que agente é basicamente o nome e accção é

o verbo). Nova cisão em relação à tradição greco-latina aparece com Barbosa, já que:

(a) adota, como Bacelar, macrodivisão mas agora binária (palavras exclamativas ×

palavras analíticas), (b) reconhece como parte das analíticas cinco menores (nome

substantivo, nome adjetivo, verbo substantivo, preposição e conjunção), (c) divide a

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tradicional classe dos nomes em duas autônomas (nome substantivo e nome adjetivo), e

(d) insere as tradicionais classes de pronome, artigo e particípio na de adjetivo e a de

preposição na de advérbio. A tendência mais evidente nas inovações está, como se vê,

em uma hierarquização de classes: embora nas propostas mais recentes das gramáticas

analisadas as classes tradicionais quase sempre apareçam, a diferença mais marcante

está no fato de algumas classes passarem a ser subordinadas a um número cada vez

maior de classes superiores (em Barros, a hierarquia é pronome > primitivo >

demonstrativo, mas, em Barbosa, é palavra discursiva > nome adjetivo > determinativo

> de qualidade > especial > demonstrativo). Para compreender melhor essa tendência

de hierarquização seria necessário, porém, analisar a definição apresentada para cada

classe, o que ultrapassaria o objetivo deste trabalho, focado especificamente nos

demonstrativos. Pelo menos duas hipóteses, no entanto, podem ser as aventadas para

explicar a referida tendência: (i) a percepção, pelo exercício da reflexão metalingüística,

de que palavras de classes tradicionalmente diferentes apresentam propriedades comuns,

o que justificaria subordiná-las a classes mais abrangentes; e (ii) a busca de princípios

mais gerais (por isso, o recurso a macroclasses) na descrição linguagem, orientação

fortemente acentuada na tradição gramatical a partir da Grammaire Générale et

Raisonée (1660), de Arnauld e Lancelot6.

Uma segunda comparação que se pode fazer é sobre a localização dos

demonstrativos em relação às grandes classes de palavras: sua localização na classe

dos pronomes é quase unânime nas gramáticas analisadas, pois assim o fazem João de 6 Amadeu Torres (BACELAR, 1996, p. 9) esclarece sobre a obra de Bacelar que: “esta gramática é híbrida e o outro lado, não tradicional, também lá está desde a leitura razoada do alfabeto, inspirada nitidamente em Arnauld e Lancelot”. Na Grammaire há de fato uma hierarquização de classes, pois as palavras são nela divididas em dois grandes tipos: (a) as que significam “os objetos dos pensamentos” (a saber: nomes, artigos, pronomes, particípios, preposições e advérbios) e (b) as que significam “a forma e o modo de nossos pensamentos” (a saber: verbos, conjunções e interjeições) (ARNAULD & LANCELOT, 1660, p. 30).

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Barros, Argote e Lobato, mas novamente a inovação está em Bacelar e Barbosa, já que

ambos colocam os demonstrativos na sua subclasse dos adjetivos. A motivação para que

os demonstrativos tenham sido colocados tradicionalmente na classe dos pronomes

parece ser de natureza basicamente sintática, pois os pronomes geralmente eram

definidos como a palavra que se põe no lugar do nome: como nas gramáticas mais

antigas de língua portuguesa já se admitia a existência de nomes substantivos e

adjetivos, conseqüentemente os demonstrativos seriam formas que poderiam ocorrer

seja no lugar de um nome substantivo (i. é, núcleo de um sintagma nominal) seja no

lugar de um nome adjetivo (i. é, determinante do núcleo do sintagma nominal). Como já

dito, Bacelar, diferentemente, situa os demonstrativos na sua subclasse dos adjetivos,

cuja definição apresentada é de base morfológica (“declinavel por 6 casos”), semântica

(“representa hum’a qualidade do agente, ou paciente, como cousa abstracta”) e sintática

(“concordavel com elle” [i. é, com o agente ou com o paciente]), fato que não facilita

necessariamente sua proposta para os demonstrativos. A compatibilidade da declinação

dos adjetivos (e, portanto, dos demonstrativos) em 6 casos com o paradigma proposto

por Bacelar para a declinação da classe dos nomes7 não é evidente, já que a declinação

dos nomes é feita pelo artigo anteposto a eles (p. ex.: para o singular,

nominativo/vocativo o, genitivo/abaltivo do, dativo ao, acusativo o), sistema

perfeitamente aplicável a certos adjetivos (pois artigos certamente poderiam estar

antepostos a adjetivos como velho) mas necessário de adaptações para os

demonstrativos (pois os artigos não poderiam ser antepostos a demonstrativos), ou seja,

falta a explicitação de que, no caso dos demonstrativos, as marcas de casos estariam

7 Barcelar esclace que a declinção dos adjetivos segue a dos nomes: “O Caso ha a terminação do nome, como dicémos nas Declinações” (BACELAR, 1783, p. 42).

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nessas formas e não em artigos a serem antepostos a elas. Também a pertinência do

aspecto semântico da definição de adjetivos de Bacelar para a subclasse dos

demonstrativos não parece tão pacífica, pois os demonstrativos não expressam

propriamente uma qualidade (o que o faz um adjetivo como velho) mas sim uma

localização de um elemento em relação ao contexto comunicativo (no espaço, no tempo

ou no discurso) — se, no entanto, se considerar que proximidade espacial seria uma

qualidade (questão pouco clara, por não haver uma definição precisa de qualidade),

então os demonstrativos se encaixariam de fato na subclasse dos adjetivos. Ademais, a

idéia de que adjetivos concordam com o agente ou com o paciente não é estranha aos

demonstrativos, pois de fato há concordância de gênero, número e caso (admitindo-se a

proposta de caso de Bacelar) em relação a seu antecedente. Há, porém, uma

inadequação maior na proposta de Bacelar, pois, embora o demonstrativo fique na

subclasse dos adjetivos, é chamado de prenome demonstrativo, sob a justificativa

explicitada de que é “assim chamado, porque se poem em logar do nome” — nesse

ponto a proposta de Bacelar é realmente falha porque quatro das subclasses dos

adjetivos recebem o título de prenome: demonstrativos, possessivos, relativos e

interrogativos. Ora, se essas quatro subclasses recebem essa mesma designação mais

ampla baseada em uma característica comum (poder colocar-se no lugar do nome),

deveriam, no mínimo, ser reunidas em uma classe maior intermediária: a dos pronomes

(classe postulada desde os gregos...). Por fim, a proposta de Barbosa de colocar os

demonstrativos na subclasse dos nomes adjetivos apresenta certa afinidade com a de

Bacelar e também apresenta limitações. Sua definição de adjetivo é de base semântica

(“exprime huma couza como accessoria de outra, para ser sempre o atributo de hum

sujeito claro, ou occulto, sem o qual não pode subsistir”) e repete de certa forma o

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problema da delimitação de um termo-chave da definição: atributo (em Bacelar, esse

termo era qualidade). Se se considerar que proximidade espacial é um atributo, então os

demonstrativos se encaixariam na subclasse dos adjetivos. Entretanto, o fato de os

demonstrativos desempenharem também função endofórica (remissão a algum

antecedente) parece colocar um problema para sua caracterização como designador seja

de atributo seja de qualidade, pois a remissão a um antecedente não seria exatamente a

aplicação de um atributo a um termo, seria antes o estabelecimento de uma relação de

identidade entre termos de um enunciado.

Um terceira comparação passível de ser feita entre as propostas dos gramáticos

citados diz respeito à própria definição de demonstrativos. A adoção do termo

demonstrativos não é uma inovação da tradição portuguesa8 e as definições

apresentadas são praticamente paráfrases do próprio termo: “quase demonstram a

cousa” (João de Barros); “significaõ de forte, que parece estaõ mostrando a cousa que

significaõ” (Argote); e “serve para mostrar a pessoa, ou alguma cousa” (Lobato).

Bacelar não define os demonstrativos (apenas os lista) mas Barbosa apresenta uma

definição bem inovadora em relação às demais: “determinão e applicão os nomes

appelativos a certos individuos, indicando-os, e mostrando-os pela Localidade da sua

existencia”. Os termos mostrar/ demonstrar parecem ser empregados por vários desses

gramáticos para assinalar que os demonstrativos exercem função exofórica (dêitica),

mas a definição de Barbosa vai além, já que fala em determinar, ou seja, chama a

atenção para o fato de que os demonstrativos tem a poder de definir/individualizar um

8O termo demonstratiua já constava em Dontato (IV d.C.), Ars Maior, De Pronomine; e em Prisciano (V d.C.), Instituitiones, De Pronomine.

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elemento. O avanço da visão de Barbosa torna-se ainda mais evidente quando, ao falar

de subclasse de demonstrativos puros, esclarece que

(...) mostrão e apontão os objectos presente pelo lugar, menos ou mais distante em que estão, ou no espaço, ou no discurso, ou na ordem dos tempos; e bem assim o lugar e relação que tem por ordem á pessoa que fala, áquella com quem se fala, e á de quem se fala (...) (BARBOSA, 1822, p. 162)

É curiosíssimo que, na cronologia das gramáticas analisadas, é apenas no séc. XIX que

se evidencia claramente o fato de que os demonstrativos podem exercer a função

exofórica em diferentes esferas: espacial e temporal. É também justamente Barbosa o

primeiro a postular um vínculo entre cada forma de demonstrativo e as diferentes

pessoas do discurso: este, esta e isto são usados para “determinar hum objecto, presente

elo lugar, que occupa, juncto a nós que falamos, ou em que o puzemos no discurso” (p.

162); esse, essa e isso, para “hum objecto presente, porêm mais distante, e immediato a

outra pessoa, com quem falamos” (p. 162); e aquele, aquela e aquilo, para “hum objecto

presente, porêm mais remoto que os antecedentes, e com a relação a huma terceira

pessoa, ou couza, da qual se fala” (p. 162) — nada diz, porém, especificamente a

relação entre cada forma e seus valores temporais. Essa falta de menção ao vínculo

entre demonstrativo e pessoa do discurso na tradição gramatical do séc. XVI a XVIII

poderia ter duas origens: (i) a relação seria tão constante e unívoca que os gramáticos se

sentiriam dispensados de assinalar algo que lhes parecesse tão óbvio; ou (ii) não haveria

uma relação clara entre formas de demonstrativos e pessoas do discurso ao longo desse

período (quiçá seja uma relação fixada tardiamente e especificamente através de

tentativas de normatização). A noção de que os demonstrativos podem exercer a função

endofórica, por sua vez, já havia se constituído, pelo menos, desde o séc. XVI: João de

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Barros chama a atenção para o fato de demonstrativos poderem ser “relativos” por

“fazerem relação e lembrança da cousa dita”; Argote assinala que há pronomes que são

“Demonstrativos, e Relativos” porque “trazem à memoria o seu antecedente”; Lobato

esclarece que há demonstrativos que “tambem fazem o officio de relativos, quando na

oração trazem á memorias o substantivo antecedente”; e Barbosa postula a existência de

demonstrativos conjunctivos porque “indicão os objectos pela sua localidade; a sim

estes os mostram pela sua antecedencia immediata” — Bacelar nada diz a respeito. Essa

multifuncionalidade dos demonstrativos (funções exofórica e endófórica) parece ser a

origem de certas incoerências no tratamento da categoria. Em João de Barros, o rótulo

relativo é utilizado não para uma classe per se, mas sim para exprimir uma propriedade

que diferentes classes de palavras podem apresentar — mais especificamente, nome,

artigo e pronome (demonstrativo). Mas a incoerência de João de Barros não está nesse

ponto exatamente e sim no fato de, ao tratar dos demonstrativos, afirmar que ele e esse

são também relativos: naturalmente também este e aquele podem exercer essa função,

mas isto não é claramente dito — ao abrir um parágrafo para falar dos demonstrativos

que podem ser relativos e citar apenas ele e esse, que não tinham aparecido no parágrafo

precedente, em que apresentou os demonstrativos, João de Barros leva certamente o

leitor a pensar que apenas os dois citados no parágrafo em questão seriam relativos — o

aquele, a propósito, não aparece em nenhum momento identificado como demonstrativo

na gramática de João de Barros. Já para Argote o rótulo relativo designa tanto todos os

demonstrativos (considerados todos como também relativos) quanto uma classe à parte

dos pronomes (considerados relativos, mas não demonstrativos): no caso de Argote, o

problema é maior, pois designam-se de relativos duas classes tidas como autônomas —

seria mais coerente postular uma classe mais ampla de relativos, subdividida em duas

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menores: a dos relativos demonstrativos e a dos relativos não-demonstrativos. A

proposta de Lobato é muito similar à de João de Barros, pois considera que os

demonstrativos podem também atuar como relativos e lista, diferentemente de Barros,

todos os demonstrativos pertinentes (os que não são chamados de pessoais) — é

interessante que, nesse caso, o termo relativo não é usado para designar uma subclasse

dos demonstrativos, mas sim simplesmente uma função que podem exercer. Por fim,

Barbosa, diante da consciência de que os demonstrativos também “se referem a cousas

antecedentemente dictas no discurso”, assinala que também poderiam todos ser chamados

de conjunctivos, mas opta por restringir a nomenclatura a demonstrativos, explicitando que

podem ser ao mesmo tempo demonstrativos e conjunctivos. Parece que o principal

problema por trás da relação entre demonstrativos e relativos está em uma mistura de nível

de análise: se do ponto de vista semântico tanto os demonstrativos em função endofórica

quando os propriamente relativos (p. ex. que) partilham a propriedade de remissão a

antecedente, já do ponto de vista sintático diferem pelo fato de os demonstrativos não

estabelecerem uma relação de dependência sintática que os propriamente relativos

estabelecem, ou seja, relativos participam do processo de encaixamento de uma oração

subordinada em uma oração principal, mas demonstrativos não9.

Uma quarta comparação entre as gramáticas pode ser feita em relação ao

inventário de formas consideradas demonstrativos. Em Barros, nota-se que os

9 Uma exceção seria a estrutura em que os demonstrativos ocorrem pospostos ao substantivo, pois essa estrutura parece ter uma dependência não apenas semântica (em função do antecedente) mas mesmo sintática de uma outra oração: p. ex., “A recepção esteve muito cacete e o Dr. Martiniano Lopes me pegou no terraço para ler um longo discurso que vai pronunciar na Ordem dos Economistas; martírio esse que durou uma hora de relógio” (Carlos Drummond de Andrade, Contos de Aprendiz, apud CUNHA & CINTRA, 1985, p. 324; grifo nosso). Curiosamente em nenhuma das cinco gramáticas analisadas no presente trabalho se menciona a possibilidade posposição ou se apresenta exemplo dessa possibilidade na seção relativa aos demonstrativos: muito provavelmente trata-se de um sinal de que a posposição de demonstrativo no português seja um fenômeno sintático bem recente, aparentemente da primeira metade do séc. XIX (CAMBRAIA, 2009, p. 24)

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pronomes pessoais e os demonstrativos (explicitamente listados: eu, nós, tu, uós, este,

estes) são considerados membros de uma só classe, chamada de demonstrativos,

enquanto curiosamente elle e esse são classificados separadamente como relativos. Por

um lado, entende-se a separação entre eu/tu (incluindo, por extensão, nós/vós) e elle, já

que, como salientou Benveniste (1989, p. 277-283) apenas os dois primeiros são

marcados quanto a pessoa, noção ausente do segundo, que pode ser considerado uma

“não-pessoa”. Além disso, os dois primeiros não podem exercer função endofórica

(anáfora), enquanto o segundo pode. Por outro lado, é curioso que Barros não tenha

listado explicitamente aquelle e que tenha colocado esse na categoria de relativos: isso

sugere que as formas este/esse/aquele não teriam na época uma relação sistêmica muito

evidente. A partir de Argote, os pronomes pessoais não aparecem mais junto aos

demonstrativos nas obras analisadas, embora se saliente freqüentemente a relação entre os

demonstrativos e os relativos. Percebe-se, portanto, de forma geral o inventário de formas

classificadas como demonstrativos sofreu uma redução a partir do séc. XVIII, apesar de

não raramente se mencionar as afinidades funcionais entre demonstrativos e outras formas

lingüísticas. É interessante saliente que nas gramáticas tradicionais de língua portuguesa

mais recentes tende a existir uma ampliação do inventário de formas classificadas como

demonstrativos, com a inclusão de formas com tal, mesmo, próprio, semelhantes, dentre

outras (CUNHA & CINTRA, 1985, p. 332-333) — há que se verificar se se trata de uma

diferença de natureza metalingüística (mudança na doutrina) ou propriamente lingüística

(mudança no comportamento lingüístico dessas formas ao longo dos séculos).

Conclusões

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A análise do tratamento dispensado aos demonstrativos na tradição gramatical

de língua portuguesa (sécs. XVI a XIX) evidencia a complexidade dessa categoria, uma

vez que se verificou há grandes diferenças nas propostas apresentadas.

Puderam-se identificar, com base nos dados analisados, as seguintes tendências:

(a) hierarquização cada vez maior da categoria dos demonstrativos (sendo colocada

como subclasse subordinada a um número cada vez maior de classes superiores); (b)

transferência dessa categoria da classe dos pronomes para a dos adjetivos; (c)

conceituação dessa categoria de forma cada vez mais detalhada, passando de definições

baseadas na paráfrase do termo técnico da categoria para definições que contemplam a

diversidade funcional da categoria; e (d) restrição do inventário de formas pertencentes

a essa categoria, deixando-se de considerá-la como abrangendo pronomes pessoais e

demonstrativos propriamente ditos para limitá-la a estes últimos.

Essas tendências sugerem que: (i) houve um grande progresso na atividade

metalingüística, uma vez que a percepção dos diversos aspectos do comportamento

lingüístico dos demonstrativos se tornou cada vez mais aguda e mais ampla; (ii) a

prática quase secular de trabalhar categorias discretas (com limites bem definidos)

dificulta sensivelmente a descrição da categoria dos demonstrativos, já que ela apresenta

afinidades formais e funcionais com diferentes classes (os demonstrativos podem

acompanhar núcleo de sintagmas nominais, como os adjetivos; podem ocupar o núcleo

de sintagmas nominais, como os substantivos; podem fazer referência a pessoas do

discurso, como os pronomes pessoais; podem fazer remissão a antecedentes, tal como os

pronomes relativos; etc.); (iii) a sistemática definição da classe com base na função

exofórica (o mostrar) parece corroborar a idéia de que essa seja sua função mais

primitiva e básica; e (iv) a ausência de indicação nítida de uma relação sistemática entre

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as formas dos demonstrativos e as pessoas do discurso ao longo da tradição gramatical

do séc. XVI ao XIX sugere fortemente que o paradigma freqüentemente apresentado em

gramática modernas (como visto, desde pelo menos Barbosa em 1822) — este : 1a

pessoa / esse: 2a pessoa / aquele: 3a pessoa — não seja propriamente uma descrição dos

seus usos reais na língua vernacular, mas sim o fruto de uma tentativa metalingüística

de normatizar o uso dessas formas, normatização esta — saliente-se — que nunca

atingiu um grau aceitável de consenso e de coerência nas gramáticas normativas (cf.

CAMBRAIA, 2008b, 2008c).

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