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Universidade Federal do Rio de Janeiro TER/HAVER + PARTICÍPIO PASSADO: UM CASO DE MUDANÇA NO PORTUGUÊS ARCAICO Carolina Salgado Lacerda Medeiros 2014

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

TER/HAVER + PARTICÍPIO PASSADO: UM CASO DE

MUDANÇA NO PORTUGUÊS ARCAICO

Carolina Salgado Lacerda Medeiros

2014

Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico

Carolina Salgado Lacerda Medeiros

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós- Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como quesito para obtenção do Título

de Mestre em Letras Vernáculas (Língua

Portuguesa).

Orientadora: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira

Cavalcante

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico

Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas

da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Rio de Janeiro, fevereiro de 2014.

Examinada por:

______________________________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Silvia Regina de Oliveira Cavalcante (UFRJ)

_______________________________________________________________________

Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ)

_______________________________________________________________________

Professor Doutor Leonardo Lennertz Marcotulio (UFRJ)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

Medeiros, Carolina Salgado Lacerda Medeiros.

Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico / Carolina

Salgado Lacerda Medeiros. – Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2014.

vi, 154f.:il.;

Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante

Dissertaçao (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, 2014.

Referências bibliográficas: f. 131 – 138.

1. Verbos auxiliares. 2. Particípio Passado. 3. Tempos Compostos. 4. Gramaticalização.

I. Medeiros, Carolina Salgado Lacerda. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Título:

Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico

RESUMO

O presente trabalho apresenta um estudo diacrônico acerca das estruturas

compostas formadas com ter e haver + particípio passado em Português. O estudo investiga

como e em que contextos tais estruturas passaram de construções transitivas-predicativas a

construções de tempo composto perfectivo, tratando a mudança de ter e haver de verbos

plenos a auxiliares como um caso de gramaticalização, com base no quadro de Roberts &

Roussou (2003).

O interesse pelo estudo se deve ao fato de existir, em Português Arcaico (PA), dois

tipos de construções com particípio: (1) construções transitivas-predicativas formadas por

ter e haver, que funcionam como verbos plenos, mais um PTP que se comporta como um

adjetivo, concordando em gênero e número com o complemento direto de ter/haver, que,

após um processo de mudança, dão origem à (2) construções de tempo composto

perfectivo formadas por ter e haver, que funcionam como auxiliares, mais um PTP verbal.

Com o intuito de investigar a formação deste segundo tipo de construção, neste trabalho

procuramos identificar os contextos que levaram à mudança de ter/haver de verbos plenos

à auxiliares, descrevendo o processo de gramaticalização pelo qual passaram, bem como

descrever os contextos linguísticos que atuaram na passagem do PTP de adjetivo a verbo.

A partir de textos portugueses dos séculos 13 ao 16 e de uma perspectiva teórica

formal sobre o processo de gramaticalização (ROBERTS & ROUSSOU 2003), esta Dissertação

mostra que o processo de mudança que culminou na emergência dos tempos compostos

em Português envolve um processo de simplificação estrutural. Trabalhamos com a

hipótese de que as construções de ter/haver + PTP sofrem a perda de uma operação de

movimento sintático, a partir do que são reanalisadas como construções de tempo

composto. A partir disto, ter e haver são gramaticalizados em auxiliares e o PTP é

reanalisado como um verbo. Os resultados sugerem, com base na análise de elementos

morfossintáticos tais como a presença ou ausência de marcas flexionais de concordância

entre o PTP e o complemento e a fixação da ordem, que tal mudança tenha ocorrido já no

século 13.

ABSTRACT

This paper presents a diachronic study of the composite structures formed with

ter/haver (have) + past participle in Old Portuguese. The study investigates how and in what

contexts such structures went from transitive-predicative constructions to periphrastic

constructions with perfective value. We deal with the change of ter and haver from full

verbs to auxiliary verbos as a case of grammaticalization, based on the framework of

Roberts & Roussou (2003).

The interest in this subject justifies itself in the fact that Old Portuguese presents

two types of participle constructions: (1) transitive-predicative constructions formed by ter

and haver, which are full lexical verbs with semantic value of ownership, plus an participle

that behaves as an adjective, agreeing in gender and number with the direct object of

ter/haver. After a process of change, this construction gives place to (2) a periphrastic

structure formed with ter and haver, which are auxiliary verbs, plus a past participle, which

was reinterpreted as a full verb. In order to investigate the formation of the second type of

construction, this study aims to identify the contexts that led to the change of ter and haver

from full to auxiliary verbs, describing the process of grammaticalization they went through

and the linguistic settings that worked on the passage of the past participle from adjective

to verb.

Using Portuguese texts from the 13th to 16th centuries and a formal theoretical

perspective on the process of grammaticalization (ROBERTS & ROUSSOU 2003), this

dissertation shows that the process of change that culminated in the emergence of

compound tenses in Portuguese involves a process of structural simplification. To do so, we

work with the hypothesis that the constructions with ter/haver + past participle have

suffered the loss of one syntactic movement operation. Due to it, ter and haver were

reanalyzed as auxiliaries, the past participle was reanalyzed as a verb and, as a consequence

of that, such constructions were reinterpreted as constructions of compound perfective

tense. The results suggest, based on the analysis of morphosyntactic elements such as

presence or absence of inflectional marks of agreement between the past participle and the

complement and the fixation of word order in Old Portuguese, that such change has already

occurred in the 13th century.

Esta pesquisa foi parcialmente financiada por uma bolsa CNPq.

“Enquanto eu tiver perguntas e não houver

resposta continuarei a escrever”.

A hora da estrela Clarice Lispector

À família, aos amigos.

Pelo apoio.

Agradecimentos

À Professora Silvia Cavalcante, minha orientadora querida, agradeço por todo o

trabalho e dedicação. Agradeço por ter acreditado em mim, por ter me apoiado e

incentivado desde a graduação, por ter confiança em nossas ideias, que sempre me

pareceram pouco convencionais. Agradeço pelo suporte com a pesquisa, pela constante

atenção e pela amizade.

Ao Professor Leonardo Marcotulio, agradeço pela preocupação, pelas tardes de

sexta-feira dedicadas a resolver os “pepinos” desta Dissertação, pelos comentários e

sugestões valiosas. À Professora Célia Lopes, gostaria de agradecer pelas aulas dentro e fora

da sala de aula, por toda a bibliografia recomendada, pelas ricas discussões sobre

gramaticalização.

A todos os amigos e colegas da F-316 e aos “agregados”, agradeço pela companhia,

pela troca, pelas manhãs e tardes de estudo juntos. Aos novos amigos que fiz na pós-

graduação, agradeço pela companhia em congressos, nos processos seletivos, nos

corredores da faculdade; agradeço por tornarem este Mestrado menos solitário. À Urânia,

gostaria de agradecer por ser sempre tão simpática e presente, e por cuidar de mim e dos

outros alunos.

Aos meus amigos, que sempre acreditaram em mim, agradeço pelo apoio, mesmo

não sabendo exatamente o que eu pesquiso. Agradeço pela força quando eu me

desmotivava. Agradeço por tentarem entender o que é uma small clause ou uma reanálise

quando eu me motivava. Agradeço por vibrarem e partilharem comigo a felicidade de

terminar este trabalho. Agradeço pelo constante companheirismo e carinho.

À minha família, agradeço pelo apoio, sempre. À minha mãe Marcela, meu pai

Edson, meu irmão Gabriel. Agradeço por estarem sempre disponíveis para mim, por

acreditarem em mim, por me apoiarem. Agradeço aos meus pais por me incentivarem a ser

uma pessoa melhor, por me ensinarem a buscar o conhecimento, a buscar o que me faz

feliz. Todo o incentivo foi importante para estar onde estou hoje, para seguir meu caminho

e me dedicar. Obrigada. Gostaria de agradecer, ainda, à Tia Camila, pelo carinho, pelo

interesse e pelo incentivo.

Ao CNPq agradeço pelo apoio financeiro que viabilizou a realização desta pesquisa.

Sumário

Índice de Tabelas ............................................................................................................. iii

Índice de Gráficos ............................................................................................................ iv

Índice de Figuras.............................................................................................................. iv

Lista de Siglas e Abreviaturas ............................................................................................ v

Introdução ....................................................................................................................... 1

Capítulo 1 As construções de ter/haver + particípio passado em Português ....................... 5

1.1 Apresentação do tema ............................................................................................ 5

1.2 As construções em análise do Latim ao Português.................................................... 9

1.3 Resumo ................................................................................................................. 20

Capítulo 2: Base teórico-metodológica ........................................................................... 22

2.1 Quadro teórico ...................................................................................................... 22

2.1.2 A teoria dos Princípios e Parâmetros na versão do Programa Minimalista

(CHOMSKY 1995, 2000) ............................................................................................ 23

2.1.3. O fenômeno da gramaticalização .................................................................... 27

2.1.4. O modelo de gramaticalização de Roberts & Roussou (2003) .......................... 31

2.2. Metodologia ......................................................................................................... 34

2.2.1. O corpus ......................................................................................................... 34

2.2.3. Sobre a periodização do Português: o recorte temporal .................................. 40

2.2.4. Procedimentos metodológicos ....................................................................... 45

3. Capítulo 3: Análise dos dados ..................................................................................... 51

3.1 Apresentação do capítulo ...................................................................................... 51

3.2 Ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares .................................................... 52

3.3. Sobre os particípios passados do Latim ao Português ............................................ 69

ii

3.3.1. O estatuto do particípio passado em Português .............................................. 74

3.3.2. A formação do particípio passado em Português ............................................ 77

3.4. Evidências para a gramaticalização ....................................................................... 86

3.4.1. Ter e haver, por século ................................................................................... 87

3.4.2. Concordância do PTP com o complemento de ter/haver ................................. 90

3.4.3. Ordem dos constituintes na sentença ........................................................... 108

3.4.4. A relação concordância vs. ordem ................................................................ 118

3.5. A gramaticalização de ter e haver e a emergência dos tempos compostos ........... 122

3.6. Síntese ............................................................................................................... 127

Conclusão ..................................................................................................................... 130

Bibliografia ................................................................................................................... 134

iii

Índice de Tabelas

Tabela 1: Tipos semânticos do complemento de ter/haver, segundo Mattos e Silva (1992,

2002) .............................................................................................................................. 10

Tabela 2: Textos utilizados como corpus distribuídos por século ..................................... 38

Tabela 3: Número de palavras do corpus ........................................................................ 39

Tabela 4: Diferentes propostas para a periodização da Língua Portuguesa (MATTOS E

SILVA 2006) .................................................................................................................... 40

Tabela 5: Diferença entre verbos plenos e verbos auxiliares ............................................ 68

Tabela 6: Diferença entre particípios adjetivos e particípios verbais em construções com

ter e haver ...................................................................................................................... 69

Tabela 7: Particípios regulares e irregulares no Português Brasileiro Contemporâneo e no

Português Arcaico .......................................................................................................... 78

Tabela 8: Ter e haver, por século .................................................................................... 87

Tabela 9: Marcação de concordância em construções com ter e com haver ..................... 94

Tabela 10: Marcação da concordância em relação ao gênero e número do complemento 95

Tabela 11: Realização da concordância, por século .......................................................... 96

Tabela 12: Realização da concordância, por século, em relação a ter e haver ................. 106

Tabela 13: Resultados percentuais em relação a ordem dos constituintes (ALMEIDA 2006)

.................................................................................................................................... 109

Tabela 14: Ordem dos constituintes (MATTOS E SILVA 1981, 1992) ............................... 110

Tabela 15: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP ....................... 113

Tabela 16: Ordem dos constituintes nas construções com ter + PTP .............................. 114

Tabela 17: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP, em relação ao

século........................................................................................................................... 115

Tabela 18: Ordem dos constituintes nas construções com ter/haver, por século, em

relação a ter e haver ..................................................................................................... 117

Tabela 19: Cruzamento dos grupos de fatores ordem e concordância ............................ 120

iv

Índice de Gráficos

Gráfico 1: Estruturas formadas por ter e haver, por século .............................................. 88

Gráfico 2: Realização da concordância nas construções de ter e haver + PTP ao longo do

tempo .......................................................................................................................... 103

Gráfico 3: Ordem dos constituintes, por século ............................................................. 116

Índice de Figuras

Figura 1: Modelo de gramática do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000). .......... 24

Figura 2: Modelo de projeção sintagmática ..................................................................... 25

Figura 3: Processo de aquisição da linguagem no quadro da Teoria de Princípios e

Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000). ...................................................................... 31

Figura 4: A gramaticalização no quadro de R&R (2003) (MARCOTULIO 2012:26) .............. 33

Figura 5: Estrutura das construções com ser/ter/haver + PTP em PA (RIBEIRO 1993:357) 57

Figura 6: Estrutura transitiva-predicativa, com movimento de V para I ............................ 66

Figura 7: Estrutura de tempo composto .......................................................................... 67

Figura 8: Processo de aquisição da linguagem segundo o quadro da Teoria de Princípios e

Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000). .................................................................... 122

Figura 9: Representação sintática de construção adjetiva de ter/haver + PTP ................ 125

Figura 10: Representação sintática de construção de tempo composto perfectivo ......... 125

v

Lista de Siglas e Abreviaturas

SG – singular

PL – plural

1P – primeira pessoa

2P – segunda pessoa

3P – terceira pessoa

1 SG – primeira pessoa do singular

2 SG – segunda pessoa do singular

3 SG – terceira pessoa do singular

1 PL – primeira pessoa do plural

2 PL – segunda pessoa do plural

3 PL – terceira pessoa do plural

NP – noun phrase (sintagma nominal)

AP – adjectival phrase (sintagma adjetival)

VP – verbal phrase (sintagma verbal)

PTP – particípio passado

SC – small clause

PA – Português Arcaico

CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval

GU – Gramática Universal (Universal Grammar)

Língua-I – Língua Interna

Língua-E – Língua Externa

FF – Forma Fonética

FL – Forma Lógica

C-I – Sistema Conceptual-Intencional

A-P – Sistema Articulatório-Perceptual

R&R – Roberts & Roussou (2006)

Testamento de Dom Afonso II (século 13) – TL13

vi

Costumes de Santarém (século 13) – CS13

Notícias do Torto (século 13) – NT13

Tempos dos Preitos (século 13) – TP13

Foros de Garvão (século 13) – FG13

Textos Notariais in História do Galego-Português (século 13) – TN13

Chancelaria de D. Afonso III – CA13

Foros Reais de D. Afonso X – FR13

Crónica de D. Afonso X (século 14) – CA14

Foros de Garvão (século 14) – FG14

Textos Notariais in Clíticos da História do Português (século 14) – CHP14

Textos Notariais in Documentos Notariais (século 14) – TN14

Castelo Perigoso (século 15) – CP15

História dos Reis de Portugal (século 15) – HRP15

Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela (século 15) – LBE15

Textos Notariais in História do Galego-Português (século 15) – TN15

Crónica dos Reis de Bisnaga (século 16) – CRB16

Documentos Notariais (século 16) – DN16

Textos Notariais in História do Galego-Português (século 16) – HGP16

Textos Notariais in Clíticos da História do Português (século 16) – CHP16

Introdução

A transformação do sistema verbal latino e suas consequências nas línguas

românicas tem sido um tema constante nos estudos históricos da linguística. Na história do

Português, a emergência dos tempos compostos formados por ter/haver + particípio

passado (PTP), originadas de construções perifrásticas do Latim, vem sendo tratada como

um caso de mudança linguística geralmente associado ao fenômeno da gramaticalização (cf.

RIBEIRO, 1993, VIOTTI 1998, ALMEIDA 2006, MEDEIROS 2013).

O presente trabalho apresenta um estudo diacrônico acerca das perífrases

formadas com ter e haver + PTP em Português, com o intuito de investigar como e em que

contextos se deu a mudança a partir da qual emergem os tempos compostos perfectivos,

tratando a mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares como um caso de

gramaticalização, com base no quadro de Roberts & Roussou (2003). O interesse pelo

estudo se deve ao fato de existir, em Português Arcaico (PA), dois tipos de construções

participiais, exemplificadas, abaixo, em (1) e (2).

(1) a. E dhy partyo logo pera Bizcaya, que tiinha prometida ao iffante do~ Joha~, seu

primo. (CA14-048; Crónica de Afonso X; século 14)

b. "Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua

voontade e e´s metida em tuas çujas forniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te

rreceberei docem[en]t(e)". (CP15-013; Castelo Perigoso; século 15)

(2) a. Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as

posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de

Graada. (CA14-001; Crónica de Afonso X; século 14)

b. E despois d este rey ter acabado ysto, e ter alcamçado tanta vitorya de seus

ymmiguos, vemdo se ja homem de hidade desejamdo de descamsar em sua velhice, e

que hu~u filho que tinha ficasse rey por sua morte, detreminou de ho fazer rey em sua

vida. (CRB16-052; Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

As primeiras construções, exibidas em (1), são estruturas transitivas-predicativas

formadas pelos verbos ter e haver, que funcionam como verbos plenos com conteúdo

semântico de posse e selecionavam como complemento uma small clause (SC), formada por

um NP mais um PTP que se comporta como um adjetivo, concordando em gênero e número

2

com o complemento direto de ter/haver. Após um processo de mudança, estas construções

darão origem àquelas exemplificadas em (2), estruturas de tempo composto perfectivo

formadas por ter e haver, que funcionam como verbos auxiliares, esvaziados de conteúdo

semântico, mais um PTP, de caráter verbal.

Para descrever o processo de gramaticalização que transformou as construções

como as exibidas em (1) em estruturas de tempo composto, foram levantadas, inicialmente,

as seguintes hipóteses: (i) a gramaticalização de ter/haver pode ter ocorrido como

consequência da reinterpretação do PTP como uma forma verbal; (ii) a perda das marcas de

concordância do PTP com o complemento de ter/haver pode ter ocorrido a partir de formas

ambíguas, isto é, com complementos no masculino-singular; (iii) o aumento da frequência

da ordem dos constituintes em [ter/haver PTP], associado à perda das marcas de

concordância do PTP com o complemento, é um indicador da emergência das estruturas de

tempo composto.

Com base nisto, supomos que houve um período em que as formas (1) e (2)

competem em Português, sendo (1) a forma conservadora e (2) a forma inovadora. Após

este período de competição a forma inovadora vem ganhado espaço na gramática do

Português. Uma vez que a reanálise não implica, necessariamente, a exclusão da estrutura

conservadora, a construção (1) permanece em Português, com uma função diferente da de

(2).

Deste modo, teria sido a partir das construções conservadoras, isto é, aquelas em

que ter/haver são verbos plenos e o PTP é de caráter adjetivo, que surgem as construções

em que ter e haver funcionam como verbos auxiliares, sofrendo, com isto, perdas

semânticas e de estrutura temática. Concomitantemente ao processo de gramaticalização

sofrido por ter e haver o PTP, antes com função de modificador, é reinterpretado como

verbo, passando a predicador das estruturas perifrásticas, capaz de selecionar o papel

temático do sujeito da construção. Perdem-se, neste processo, as marcas de concordância

do PTP com o complemento e a ordem dos constituintes frásicos é fixada em [ter/haver

PTP]. Deste modo, os objetivos deste trabalho são os seguintes: (i) descrever as construções

com ter e haver + PTP em PA; (ii) analisar e descrever a mudança que culminou na

emergência dos tempos compostos como um caso de gramaticalização; (iii) localizar

temporalmente o surgimento das construções de tempo composto em Português.

3

Para a realização deste estudo foi utilizado o modelo de gramaticalização de

Roberts & Roussou (2003), baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão

Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000). A gramaticalização é entendida, neste quadro, como

um caso regular de mudança paramétrica por meio da qual novo material funcional é criado

a partir da reanálise de material lexical ou da reanálise de material funcional já existente.

Uma vez que a gramaticalização é um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise se

daria no momento de aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991), sendo

desencadeada pelo gatilho oferecido por evidências linguísticas ambíguas aos falantes no

momento da aquisição de sua gramática. Sendo a redução estrutural um processo

frequente na gramática das línguas naturais (cf. ROBERTS & ROUSSOU 2003), neste trabalho

argumentamos que no PA houve uma mudança a partir da qual as construções com ter e

haver + PTP sofrem um processo de simplificação estrutural. No período anterior à

mudança, assumimos que as construções perifrásticas formadas por estes verbos + PTP, isto

é, as construções conservadoras, envolvem movimento de ter e haver, gerados em V, para I,

onde recebem marcas de flexão. Após o processo de gramaticalização destes verbos, estes

seriam gerados diretamente em I, perdendo-se o movimento de V para I que havia na

estrutura conservadora. Concomitantemente à gramaticalização de ter e haver o PTP é

reanalisado como um verbo, passando a ser o predicador verbal das construções em

questão. Deste modo, interpretamos a mudança de verbos plenos a auxiliares como um

caso de redução estrutural.

O estudo foi feito com uma base empírica de dados de textos medievais dos

séculos 13 ao 16, oriundos da plataforma online Corpus Informatizado do Português

Medieval (CIPM), disponível em http://cipm.fcsh.unl.pt/. Após a delimitação do corpus e

coleta dos dados, os mesmos foram codificados de acordo com os grupos de fatores

controlados e submetidos ao programa estatístico-computacional GoldVarb X (SANKOFF,

TAGLIAMONTE e SMITH 2012) para a obtenção dos valores percentuais das categorias

controladas. Além da análise percentual foi também realizada uma análise qualitativa e

descritiva dos dados levantados.

Esta Dissertação está organizada da seguinte maneira. No capítulo 1, será

brevemente apresentada uma revisão da literatura sobre as construções formadas por

ter/haver + PTP, em que serão discutidas a sua origem desde o Latim e as diferentes

abordagens para sua evolução em Português.

4

No capítulo 2 será abordado o referencial teórico utilizado, a perspectiva formal de

gramaticalização apresentada por Roberts & Roussou (2003), inserida no quadro

minimalista, assim como a metodologia utilizada para a seleção do corpus, a delimitação

temporal utilizada, recolha e tratamento dos dados levantados. Uma vez que a proposta de

Roberts & Roussou (2003) se fundamenta no quadro teórico de Chomsky (1995, 2000),

adotamos neste trabalho a concepção de língua como um objeto interno à mente dos

indivíduos (Língua-I). O conjunto de enunciados produzidos pela Língua-I é denominado

gramática externa, ou Língua-E, e é a partir de sua observação que se pode levantar

elementos que nos permitem observar e sistematizar o funcionamento da gramática.

O capítulo 3 tem por objetivo analisar a mudança linguística abordada neste

trabalho, mostrando as evidências empíricas (Língua-E) que apontam para o processo de

gramaticalização de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares. Deste modo, neste

capítulo serão apresentados os resultados quantitativos e qualitativos da análise feita,

relacionados ao modelo de gramaticalização adotado. A esse capítulo seguem a conclusão e

as referências bibliográficas utilizadas.

5

Capítulo 1

As construções de ter/haver + particípio passado

em Português

Como apresentado na Introdução desta Dissertação, as construções formadas por

ter/haver + PTP têm sido assunto de interesse de diversos estudos no âmbito da linguística

histórica (cf. DIAS 1959; SAID ALI 1964; MATTOS E SILVA 1989, 1992, 2002, 2006; entre

outros). Diversos são os trabalhos que oferecem uma descrição detalhada dessas

construções, principalmente no âmbito da filologia e da linguística histórica clássicas. No

âmbito dos estudos gerativistas, percebemos um interesse não só na descrição dessas

construções, mas também na explicação para a mudança de ter/haver de verbos plenos a

auxiliares como um caso de gramaticalização (cf. RIBEIRO 1993; VIOTTI 1998; MEDEIROS

2013).

Este capítulo tem como objetivo apresentar um panorama geral dos trabalhos que

se dedicaram ao estudo das construções de ter/haver + PTP em Português e, para tanto, se

organiza da seguinte maneira: na seção 1.1, apresentamos o tema desta Dissertação,

descrevendo as construções de ter/haver + PTP; na seção 1.2 apresentamos brevemente a

literatura relevante sobre as construções em questão, procurando descrever as estruturas

de ter/haver + PTP desde o Latim até o Português, além das hipóteses e questões que

guiarão este trabalho; finalmente, a seção 1.3 traz uma síntese do que foi tratado neste

capítulo.

1.1 Apresentação do tema

A transformação do sistema verbal latino e suas consequências nas línguas

românicas tem sido um tema constante nos estudos históricos da linguística. Neste campo,

um assunto que chama à atenção é a emergência dos tempos compostos perfectivos

6

formados por ter/haver + PTP, formas compostas que substituíram, no Português Arcaico

(PA), as formas flexionadas do Latim.

Em PA havia um conjunto de estruturas formadas pelos verbos ter e haver + PTP,

que admitiam duas interpretações. Inicialmente, as perífrases eram formadas por ter e

haver, sendo estes verbos lexicais com conteúdo semântico pleno, com valor de posse; o

PTP que acompanha estas estruturas funciona como um adjetivo, com a função de

modificador do complemento direto de ter/haver. Observem-se, abaixo, exemplos deste

tipo de construção em (1) e (2).

(1) E out(ro)ssi ma~do das dezimas das luctosas e das armas e dout(ra)s dezimas q(eu) eu

tenio apartadas en tesouros per meu reino, q(eu) eles as departia~ assi como uire~

por derecto. (TL13-001; Testamento de D. Afonso; século 13)

(2) E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e| nono

possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou a ffaz(er)

e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001; Foro Real de D. Afonso X;

século 13)

As estruturas formadas por ter/haver + PTP adjetivo, como as observadas acima,

eram, até o século 14 (ALMEIDA 2006; MEDEIROS 2013), construções transitivas em que ter

e haver se comportam como verbos plenos e apresentam conteúdo semântico de posse.

Nestas estruturas, ter e haver funcionavam como os predicadores da sentença,

selecionando semanticamente um sujeito e um complemento. Nas estruturas em questão, o

complemento selecionado por ter/haver é formado, categoricamente, por um NP e um AP,

sendo este um PTP de caráter adjetivo, que funciona como um modificador do NP

complemento.

Antes do processo de mudança pelo qual passam ter e haver e a partir do qual

estas estruturas se tornam construções de tempo composto, o PTP apresenta características

nominais, como a possibilidade de concordar com o complemento direto de ter/haver.

Como é possível observar, no exemplo (1) o PTP apartadas concorda com o complemento

feminino, plural as dizimas, evidenciando seu caráter adjetivo; o mesmo se observa em (3),

em que os PTPs amargada e peada concordam com o complemento, também feminino,

vida. Nos exemplos acima a interpretação que se dá a este tipo de estrutura é a de que [eu]

7

tenho/possuo dízimas e estas dízimas estão/são apartadas (divididas) em tesouros, para (1),

e que [alguém] haja/possua uma vida e que esta vida seja amarga e sofrida, para (2).

Além da questão da concordância entre o PTP e o complemento direto de

ter/haver, outro fator que evidencia o caráter adjetivo destas estruturas é a ordem dos

constituintes da sentença. No PA, ainda que a ordem típica dos elementos frásicos seja do

tipo V2 (cf. RIBEIRO 1995), nas construções com PTP esta ordem não era bem definida. Nas

construções em questão, eram possíveis ordens do tipo V1 NP PTP, NP V PTP ou PTP V NP2.

Nos exemplos (1) e (2) são observadas as ordens NP V PTP, para (1), sendo o complemento

relativizado neste caso, e V NP PTP, para (2). Somente após o processo de gramaticalização

pelo qual passam ter e haver que a ordem dos constituintes irá se fixar em V NP PTP, para as

construções adjetivas, e em V PTP NP, para as construções de tempo composto.

Após o processo de gramaticalização de ter e haver, a partir do qual estes verbos

tornam-se auxiliares, algumas mudanças tomam lugar nas construções com PTP. Como visto

acima, a ordem dos constituintes é fixada; além disso, perdem-se as marcas de

concordância do PTP com o complemento de ter/haver, sendo o PTP não mais um adjetivo,

mas um verbo. Na estrutura gramaticalizada, ter e haver perdem seu conteúdo semântico

de posse e deixam de ser os predicadores da sentença. Este papel é agora exercido pelo

PTP, que seleciona semanticamente os argumentos da perífrase. Observem-se, abaixo, os

exemplos (3) e (4), das construções com ter/haver + PTP, já gramaticalizadas.

(3) (...) partindo se el rey pera seu reyno, por respeyto da nova que lhe hera vymda,

deixamdo o reyno de Bisnaga em poder de Meliquy niby, sabido por toda a terra como

era fora d ella, os que escapara~o pellas montanhas, e outros, que contra suas

vontades com temor lhe tinha~o dado as menage~es das villas e lugares. (CRB16-010;

Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(4) Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as posturas

e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de Graada.

(CA14-001; Crónica de D. Afonso X; século 14)

Os exemplos acima mostram construções dos séculos 16 e 14, respectivamente, em

que ter e haver funcionam como verbos auxiliares, portanto, construções já

1 Ter/haver 2 Estas foram as ordens observadas no corpus utilizado nesta Dissertação.

8

gramaticalizadas. Nas estruturas acima observamos que o PTP não exibe marcas de

concordância com o complemento, evidenciando seu caráter verbal. Como é possível notar,

no exemplo (3) o PTP posto não concorda com o complemento feminino, plural as posturas

e ave~enças; o mesmo se observa em (4), em que o PTP dado não concorda com o

complemento, também no feminino, plural as menage~es das villas e lugares, o que seria

uma evidência para a interpretação destes PTPs como verbos, e não como adjetivos. Além

disso, nota-se a sequência V PTP na ordem dos constituintes frásicos, sequência típica dos

tempos compostos em Português, que exibem a ordem auxiliar-auxiliado. Por fim, o valor

semântico exibido pelas sequências ter/haver + PTP é, após a mudança, o de uma ação

concluída, permitindo a leitura [o rei] lhe deu as homenagens das vilas e lugares, para (3), e

o rei dom Fernando pôs [firmou] posturas e avenças com o rei de Granada, para (4).

As construções inovadoras de tempo composto geradas a partir da

gramaticalização de ter e haver e da reinterpretação do PTP como verbo convivem,

atualmente, com a forma antiga, formada com ter/haver plenos + PTP adjetivo, uma vez que

o processo de reanálise que subjaz a gramaticalização não pressupõe a exclusão da

estrutura conservadora da gramática da língua em questão. Observem-se as estruturas em

(5) e (6), abaixo.

(5) Veja as celebridades que têm usado Givenchy no tapete vermelho.3

(6) Globo já tem novela inteiramente escrita antes da estreia4.

As estruturas exemplificadas em (5) e (6) ilustram construções de tempo composto

e construções adjetivas no Português Brasileiro (PB) contemporâneo. Como se observa, em

(5) temos a sequência têm usado Givenchy (V PTP NP) e a noção de uma ação acabada e

durativa, aspecto que adquiriu em período posterior ao PA. Atualmente, as estruturas de

tempo composto são formadas majoritariamente com ter no PB falado; as construções com

haver são utilizadas mais comumente na escrita. Além disso, como visto, o valor semântico

expresso é, além da ação concluída, o de uma ação continuada. Em (6) observamos a

3 Exemplo do portal O Globo de notícias online, disponível em http://ela.oglobo.globo.com/moda/veja-as-

celebridades-que-tem-usado-givenchy-nos-tapetes-vermelhos-8701149 (acesso em 11/12/2013). 4 Exemplo retirado do portal BOL de notícias online, disponível em http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-

noticias/entretenimento/2013/11/11/globo-ja-tem-novela-inteiramente-escrita-antes-da-estreia.htm (acesso em 11/12/2013).

9

sequência tem novela escrita (V NP PTP), ordem típica das construções adjetivas, além das

marcas de concordância entre o PTP escrita e o NP novela. As construções adjetivas com

PTP são formadas exclusivamente com ter, uma vez que haver não expressa valor de posse

no Português contemporâneo.

Na subseção seguinte apresentaremos um panorama histórico das estruturas

formadas por ter/haver + PTP desde o Latim até o Português, fazendo uma breve revisão

bibliográfica e descrevendo mais detalhadamente o funcionamento das construções em

questão.

1.2 As construções em análise do Latim ao Português

Como visto acima, a estruturas de ter/haver + PTP apresentam dois estatutos em

Português, podendo ser construções adjetivas, formadas por um verbo pleno e um PTP de

caráter adjetivo, ou construções de tempo composto perfectivo, em que ter e haver

funcionam como verbos auxiliares e o PTP exerce a função de verbo principal da estrutura.

O surgimento do segundo tipo de construção teria tido origem a partir de um processo de

gramaticalização, em que ter e haver passam de verbos plenos, com conteúdo semântico de

posse, a verbos auxiliares. Após o processo de mudança surgem as perífrases de tempo

composto em Português, que ainda hoje convivem com a estrutura original.

Em relação à origem das estruturas formadas por ter e haver + PTP em Português,

Ribeiro (1993:343) afirma que estas tiveram origem na forma flexionada do presente

perfectivo de verbos transitivos do Latim, que foi substituída, nas línguas românicas, por

uma perífrase formada pelo verbo latino habere (haver) + PTP. Ao lado das construções de

origem latina com habere + PTP, surge, nas línguas românicas, uma estrutura composta

semelhante formada com o correspondente românico para o verbo tenere (ter). Contudo, as

duas perífrases diferiam quanto ao valor semântico que expressavam.

Em Latim, o verbo prototípico para a expressão da posse é habere. Segundo Gaffiot

(1934, cf. MATTOS E SILVA 1992), seu significado primário é ter em sua posse, guardar, e,

como acepção secundária, ter na mão. Tenere, por outro lado, tem como acepção básica ter

algo na mão, obter, apresentando também outros valores semânticos secundários, como

manter, reter (GAFFIOT 1934, cf. MATTOS E SILVA 1992). Já era presente no Latim, portanto,

10

a interseção semântica entre habere e tenere na expressão da posse de um objeto concreto:

ter na mão. Na história do Português, seus sucessores haver e ter já aparecem em variação

nesse sentido, desde época bastante recuada (cf. MATTOS E SILVA 1992).

O Dicionário Essencial de Latim5 (2001) traz, além dos valores expostos acima, os

significados conter, trazer, conhecer, tratar, experimentar, considerar, avaliar, executar,

habitar, morar, para habere, e reter, segurar, conter, ganhar, adquirir, possuir, conservar,

obrigar, compreender, afirmar, para tenere. Em PA, o verbo haver comportava,

majoritariamente, valores semânticos de posse tais como: ter, possuir, guardar, dever. Ter,

por outro lado, significava obter, ser senhor de, ocupar, guardar. Note-se que, na passagem

do Latim para o Português, alguns valores semânticos foram perdidos, mas, de modo geral,

o verbo haver é utilizado para designar qualquer tipo de posse enquanto ter é usado para

designar posse temporária ou a posse de bens materiais adquiríveis.

De acordo com Mattos e Silva (1992, 2002), a variação na seleção de haver ou de

ter nas construções adjetivas com PTP em Português estava condicionada à natureza

semântica do complemento do verbo, o objeto possuído. A autora define, então, três tipos

semânticos para o complemento destes verbos, relacionados na Tabela 1, a seguir.

Tipo de posse Exemplo

(i) Qualidades/posses inerentes, não

transferíveis.

Características ou estados físicos do

possuidor, isto é, do sujeito da frase. Ex.:

barvas6, ceguidade, cinqüenta anos.

(ii) Qualidades/posses adquiríveis

imateriais

Posses morais, espirituais, intelectuais,

afetivas, sociais. Ex.: fé, graça, poderio,

poder, ira

(iii) Objetos materiais adquiríveis Objetos externos ao possuidor. Ex.: remédio,

mezinhas, carneiros, ovelhas

Tabela 1: Tipos semânticos do complemento de ter/haver, segundo Mattos e Silva (1992, 2002)

Inicialmente, as perífrases de ter/haver + PTP adjetivo em Português eram mais

produtivas com o verbo haver, que foi se revelando um verbo semanticamente mais fraco

que ter, segundo Costa (2010:61), que afirma que “à medida que a debilitação semântica de

habere se acentuava, tenere ia ganhando espaço e maior aceitação entre os falantes”, até se

5 Dicionário Essencial de Latim, Porto Editora, Porto, 2001. 6 Forma arcaica para ‘barbas’.

11

tornar o verbo mais produtivo em construções com PTP. Por outro lado, o verbo haver

adquire no PA outras acepções, como a significação existencial, contexto posteriormente

associado também a ter.

Os dados de Mattos e Silva (1989, 1992, 2002) mostram que no século 14 ocorre

variação entre haver e ter em estruturas do tipo (i) (posses inerentes), sendo haver o verbo

favorito. Em relação a (ii), havia variação entre os dois verbos, com predominância de haver

e, para (iii), também havia variação, mas com predominância de ter. Em relação a ter, no

século 14, sua difusão se inicia nas estruturas de posse do tipo (iii) – materiais adquiríveis –

se estendendo posteriormente para os contextos explicitados em (ii) e em (i),

respectivamente. Finalmente, na segunda metade do século 15, ter sobressai-se em

comparação a haver. Segundo Mattos e Silva (1992), a mudança semântica que se

processava no período arcaico do Português já vinha prefigurada da estrutura latina, em que

já se documentava a interseção semântica entre esses dois verbos, como visto acima.

O surgimento das perífrases perfectivas em Português foi motivado, segundo

Câmara Jr. (1969), por uma questão aspectual. No Latim, o verbo, além de receber flexão de

número e pessoa, apresentava marcas morfológicas que expressavam aspecto, tempo e

modo. Com o tempo, os traços que marcavam aspecto, por serem menos produtivos, foram

se perdendo, resultando em um rearranjo do sistema verbal latino que, posteriormente,

teria dado origem às construções de ter/haver + PTP, que dariam origem aos tempos

compostos em Português. Nas construções perifrásticas de tempo composto, o verbo

auxiliar se combina com uma forma verbal – neste caso, o PTP – não só para expressar

tempo e modo, mas também aspecto; por este motivo Câmara Jr. afirma que a perda da

marca morfológica de aspecto em Latim tenha originado as construções participiais com

valor perfectivo.

Segundo Said Ali (1964: 161-162), as formas de passado composto e simples são

dois aspectos do mesmo verbo. Assim, ver e ter/haver visto são dois aspectos do verbo ver.

No primeiro caso, a ação é expressa vagamente; no segundo, a ação é definida como

consumada. De acordo com o gramático, no pretérito perfeito, o verbo desta conjugação

composta significava a mesma coisa que na conjugação simples: teve visto e viu eram coisas

idênticas, mas o uso baniu a forma mais longa. Dias (1959:191), por outro lado, afirma que

as construções perifrásticas com ter e haver não apresentam diferença de sentido em

relação às formas de passado simples: “sobretudo em or. temporaes, o port. arch. medio

12

emprega um tempo, composto do pret. definido de ter ou haver e do part. passivo de um

verbo transitivo, para exprimir que em certo momento do passado, a acção estava

consummada. (É o pret. anterior das grammaticas francesas)”. Contudo, como já foi visto, a

interpretação das formas perifrásticas com ter e haver + PTP passivo (adjetivo) não

funcionam como tempo composto perfectivo; antes, funcionam como construções

possessivas atributivas e, após a gramaticalização de ter/haver, surge uma nova forma que

dará origem ao tempo composto propriamente dito. Esta forma inovadora é a que seria, nos

termos de Said Ali, um outro aspecto do passado simples.

Em geral, a literatura tradicional (cf. DIAS 1959; SAID ALI 1964; CÂMARA JR. 1969)

afirma que o chamado tempo composto do PA era exclusivamente formado por ser + o PTP

de uma subclasse dos verbos transitivos (cf. MATTOS E SILVA 2006)7. O tempo composto de

valor perfectivo formado por ter/haver + PTP só ocorre quando deixa de haver a

concordância do PTP de verbos transitivos com o seu complemento direto. Desta forma,

enquanto se documenta a flexão do PTP com o seu complemento direto, essa sequência

ainda não é considerada tempo composto, por ainda não ter ocorrido a fusão semântica e

sintática implícita nas estruturas de tempo composto. Deste modo, os tempos compostos

com haver e ter só se generalizam em Português quando o PTP deixa de ser flexionado.

Enquanto há a concordância entre o PTP e o complemento, há apenas uma construção que

evidencia um estado de posse, expresso por haver e ter, formada com um PTP de caráter

adjetivo, que modifica o complemento direto destes verbos.

Em geral, o critério utilizado para localizar temporalmente a emergência dos

tempos compostos em Português é a presença versus a ausência de marcas de concordância

do PTP com o complemento direto de ter/haver (MATTOS E SILVA 2002, 2006; ALMEIDA

2006; MEDEIROS 2013, entre outros), critério que, geralmente, situa a emergência destas

construções nos séculos 14/15. Deste modo, as perífrases que apresentam concordância do

PTP com seu complemento direto seriam formas antigas ou conservadoras e as que não

apresentavam concordância seriam formas inovadoras, portanto de tempo composto.

Em relação ao período histórico em que estas construções emergem, Mattos e Silva

(1989, 1992) encontra variação na concordância entre o PTP das construções perifrásticas

com ter e haver e o seu complemento direto no século 15, localizando a emergência dos

7 Tal subclasse seria composta pelos verbos ditos inacusativos.

13

tempos compostos perfectivos em Português, portanto, neste século; contudo, em artigo de

2002, a autora recua esta data para o século 13. Naro e Lemle, em artigo de 1977 (cf.

MATTOS E SILVA 2002, 2006), mostram que a difusão deste tipo de construções com PTP de

verbos não transitivos ocorre no século 15, mas propõem que é possível recuar a data do

surgimento dos tempos compostos com ter e haver para o século 14, como constata

também Medeiros (2012), com base na perda da concordância do PTP com o NP

complemento. No entanto, autores como Ribeiro (1993), Mattos e Silva (2002) e Almeida

(2006), observam que outros critérios, além da presença ou não de concordância são

relevantes no estudo da formação dos tempos compostos em Português.

Ribeiro (1993) e Mattos e Silva (2002) consideram que um fator importante no

estudo da formação dos tempos compostos perfectivos em Português é a perda do traço

+transitivo dos PTPs nas construções perifrásticas com ter e haver. Segundo as autoras a

ocorrência de construções perifrásticas com haver + PTP intransitivo são as que dão início à

mudança, isto é, a emergência dos tempos compostos perfectivos em Português se atribui

ao fato de haver passar a constituir construções não só com PTPs transitivos, mas também

com verbos inergativos e inacusativos, contextos antes ocupados apenas pelo verbo auxiliar

ser. Contudo, uma análise como esta pressupõe que, desde o início, os PTPs que formam as

perífrases em questão são de caráter verbal, e não adjetivo.

Outros estudos (cf. MATTOS E SILVA 1992 e ALMEIDA 2006) apontam também para

a fixação da ordem no PA como fator decisivo na formação dos tempos compostos

perfectivos. Como dito na seção anterior, no PA a ordem dos constituintes, ao menos no

que respeita as construções com PTP, não era muito bem fixada. Deste modo, nas

construções com ter e haver + PTP o complemento direto do PTP podia preceder, suceder,

estar entre ter/haver e o PTP, ou, ainda, ser nulo. Por sua vez, ter e haver podiam também

suceder ou preceder o particípio. Os dados de Mattos e Silva (1992) mostram que as ordens

mais comuns são (i) NP (complemento) + ter/haver + PTP, quando o complemento é

relativizado, e (ii) ter/haver + PTP + NP.

Almeida (2006), em análise de base variacionista, trata a passagem de ter e haver

de verbos plenos a verbos auxiliares de tempo composto como um caso de gramaticalização

funcional, observando que é no século 14 que ter passa a ser o verbo favorito destes tipos

de construção. Em sua análise, os contextos em que há presença de elemento anafórico,

retomando o complemento já mencionado, com a ordem [ter/haver + PTP], são os que

14

favorecem a interpretação das construções participiais como tempo composto. Em relação à

ordem e a concordância do PTP com o complemento, Almeida (2006) afirma que “é

categórica a presença de concordância quando o complemento se encontra à esquerda da

construção participial ou quando está localizado entre ter/haver e a forma participial”.

Deste modo, segundo Almeida (2006), à medida que a ordem vai se fixando em [V + PTP +

NP], as marcas de concordância vão também diminuindo, levando à interpretação de

ter/haver como verbos auxiliares e do PTP como um predicador.

O trajeto destes verbos de vocábulos com conteúdo semântico pleno a vocábulos

gramaticais teria sido permitido pela polissemia das formas em questão, que admitiam

diferentes valores semânticos. Inicialmente, verifica-se, no estudo de Almeida (2006), uma

distribuição complementar em que ter ocorre em contextos em que expressa posse

propriamente dita e haver fica restrito aos contextos de posse inalienável, com caráter

[+abstrato]; contudo, foram documentados também casos em que ter ocorre em contextos

de posse inalienável. No segundo caso, verifica-se ambiguidade nas construções, pois não é

possível precisar se ter e haver apresentam valor de posse, predicando a sentença, ou se

estão esvaziados semanticamente, como ocorre com os auxiliares e, ainda, se os particípios

apresentam caráter verbal ou adjetivo. Tais estruturas ambíguas seriam os estágios que

levaram à reanálise destas sentenças, resultando na gramaticalização de ter e haver. Em

resumo, segundo Almeida (2006), a passagem destes verbos a auxiliares ocorre quando

estes deixam de veicular valor semântico de posse, passando por uma fase de ambiguidade

semântica que levou à gramaticalização.

Ao tratar das construções perifrásticas com ter e haver + PTP no PA, Mattos e Silva

(1989, 1992, 2002) destaca que em estruturas do tipo exemplificado abaixo em (6), o PTP é

um modificador do complemento direto de ter e haver. As evidências para a interpretação

do PTP como um adjetivo estão nas marcas de concordância explícitas entre o PTP e o

complemento direto de ter/haver.

(6) a. todos bees mh' á feitos (DSG 4.32.8 cf. Mattos e Silva 1992:92)

b. e, tanto que ele teve quisado todo, foi-se espedir del rei (LRR V. 106-107 cf. Mattos e

Silva 1992:92)

15

Segundo a autora, nesses e em outros exemplos (cf. MATTOS E SILVA 1992:92-93)

da segunda metade do século 14 e da primeira metade do século 15, haver e ter são verbos

plenos com valor semântico de posse, não podendo ser analisados como auxiliares, uma vez

que o adjetivo (PTP) é constituinte do NP complemento direto; o PTP, portanto, não é

constituinte do VP. Contudo, no mesmo corpus utilizado na análise de 1992, Mattos e Silva

encontra também ocorrências de perífrases interpretáveis como tempo composto, como se

observa em (7), abaixo, sugerindo que as duas construções encontravam-se em variação.

(7) a. E a mollier do conde, que já havia sabido e não sabida de sua filha toda sua fazenda

(LRR VIII. 15-16 cf. Mattos e Silva 1992:93).

b. E non sabedes vós quanto afam e trabalho ayades tomado não tomados e quantas

espadadas e seetadas havedes levadas (LRR X. 13-14 cf. Mattos e Silva 1992:93).

Segundo Mattos e Silva (2002), exemplos da variação na concordância do PTP com

seu complemento direto são evidências de que já então conviviam as duas estruturas: a

inovadora, em que ter e haver são reanalisados como verbos auxiliares, constituindo com o

PTP o VP, e a forma antiga, de origem latina, em que haver e ter são verbos principais

transitivos e o PTP é de caráter adjetivo, não verbal, estrutura que ocorre ainda hoje:

(8) a. Eu tinha as cartas escritas quando ele chegou. (cf. Mattos e Silva 1992:93)

b. Eu tinha escrito as cartas quando ele chegou. (idem)

Em relação às construções em questão, Said Ali (1964) chama atenção ao que

denomina verbos nocionais e verbos relacionais. De modo geral o autor chama verbos de

função nocional aqueles que não sofrem a influência de qualquer anexo predicativo e são

utilizados em seu sentido pleno. Verbos de função relacional, por outro lado, são aqueles

cuja acepção é modificada por virem combinados com outro termo – o anexo predicativo –

com o qual dividem o papel de predicado da oração. Segundo o gramático, como anexo

predicativo pode ser usado o particípio do pretérito em vez do adjetivo propriamente dito,

com a diferença de que o particípio, levando em conta sua origem verbal, exprime não uma

qualidade, mas o estado resultante de um ato anterior (SAID ALI 1964:159).

16

Segundo o autor, nas construções com ter e haver o PTP continua a exercer a

função de anexo predicativo referido ao objeto, isto é, exerce a função de adjetivo, até o

século 17, quando perdem-se as marcas de concordância entre o PTP e o complemento.

Seria desta construção de caráter adjetivo que surgem as formas verbais compostas,

formadas por ter e haver, que perdem conteúdo semântico: “passou-se assim da

justaposição de formas verbais simples, independentes e de igual valia, à subordinação de

um elemento ao outro, considerando-se como verbo principal o particípio e ter [e haver]

como simples auxiliar. Esta combinação naturalmente só era possível quando um e outro

ato procediam do mesmo autor, isto é, quando o agente da ação expressa pelo particípio

não diferia do sujeito do verbo ter” (SAID ALI 1964:160).

Ribeiro (1993), com base no quadro de gramaticalização de Roberts (1992),

baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY 1981), analisa o fenômeno em

termos formais. Para a autora, a formação do tempo composto envolve a mudança de uma

categoria lexical para uma funcional, envolvendo perda de valor semântico e de estrutura

temática, tratando a passagem de haver e, posteriormente, de ter de verbo pleno a auxiliar

em termos de uma Reanálise Diacrônica (cf. ROBERTS 1992). Viotti (1998), também com

base no quadro de gramaticalização formal de Roberts (1992), mas se baseando nos

pressupostos do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), sugere que o verbo haver se

transformou em uma categoria funcional, e o verbo ter está também em processo de

reanálise diacrônica, pois a perda de conteúdo semântico que estes verbos sofreram e vêm

sofrendo ao longo de sua história é suficiente para que eles atinjam uma etapa em que

funcionem como uma categoria funcional. Os capítulos 2 e 3 tratarão em mais detalhes das

diferentes propostas para a gramaticalização de ter e haver em verbos auxiliares.

Acerca das perífrases formadas por habere + PTP em Latim, Roberts & Roussou

(2003) sugerem que a presença deste verbo em construções perfectivas com PTP não

implica que habere seja um auxiliar. Nestes contextos, habere é um verbo lexical que

seleciona um complemento participial, interpretado pelos autores como uma small clause.

Observe-se o exemplo (9) abaixo, retirado de Harris & Campbell (1995:182).

(9) in ea provincia pecunias magnas collocatas habent. (Harris & Campbell 1995:182)

In this province capital great invested have-3pl

17

‘They have great capital invested in that province’8

A estrutura acima traz uma construção formada pelo verbo habere + um PTP,

collocatas, que concorda em gênero e número com o complemento pecunias magnas.

Devido justamente às marcas de concordância entre o PTP e o complemento, tal estrutura é

interpretada como uma construção adjetiva, em que habere se comporta como um verbo

pleno, com conteúdo semântico de posse, e o PTP collocatas é interpretado como um

adjetivo, com a função de modificador do complemento direto de habere.

Seguindo a mesma interpretação, Roberts & Roussou (2003), analisam a estrutura

(9) como sendo formada por um verbo principal (habent) que seleciona como complemento

uma SC formada por um NP e um adjetivo que, neste caso, é representado por um PTP.

Deste modo, a leitura que se faz da construção é a seguinte: they have [great capital

invested]. Para os autores, a presença de concordância do particípio com o complemento

em Latim (in ea provincia pecunias magnas collocatas habent) é uma evidência para a

interpretação do PTP como um adjetivo, portanto, do complemento de habere como uma

SC. Para os autores, “in perfect constructions at this early stage does not necessarily imply

that habeo is an auxiliary. Instead, we could assume that it is a lexical verb taking a

participial (small clause) complement” (Roberts & Roussou 2003:57)9.

Para Harris & Campbell (1995), construções como a apresentada acima são

estruturas biclausais nas quais o possuidor [they] é o sujeito da sentença matriz e o

elemento possuído [great capital invested] é o objeto direto do verbo. Dentro da cláusula

subordinada se encontram um sujeito, que pode ser diferente do sujeito da oração

principal, um objeto direto e um verbo, considerado pelas autoras como um particípio

passivo, de caráter adjetivo. A cláusula subordinada formava um constituinte com o objeto

direto da oração principal e a passivização se dava na oração subordinada, pois o objeto

direto da oração matriz funcionava como sujeito na oração subordinada.

Assim como R&R (2003), Harris & Campbell (1995) e também Ribeiro (1998)

propomos que o complemento selecionado por ter e haver nas construções com PTP

adjetivo, portanto as construções não gramaticalizadas, seja uma Small Clause. Deste modo,

8 ‘Eles tem grande capital investido naquela província’ [minha tradução]

9 “Neste estágio inicial habeo não funcionava necessariamente como um auxiliar nas construções perfectivas. Ao invés disso, podemos assumir que funciona como um verbo lexical que seleciona um complemento participial (small clause)” [minha tradução].

18

ter e haver enquanto verbos plenos integram construções transitivas-predicativas em que o

complemento é categoricamente uma Small Clause formada por um objeto e um

predicativo deste objeto, neste caso, o PTP.

Em relação às construções participiais que deram origem às formas de tempo

composto nas línguas românicas, Dombrowski (2010) considera cinco estágios de mudança

dos PTPs desde o Latim, resumidas a seguir: (1) no primeiro estágio os PTPs têm significado

puramente participial, isto é, expressando qualidade ou estado; (2) no segundo estágio

coexistem duas formas: uma em que o PTP expressa conteúdo adjetivo e outro em que o

PTP sofreu esvaziamento semântico e é combinado com um auxiliar em construções

perifrásticas, funcionando como marcador perfectivo; (3) os PTPs são usados primariamente

como marcadores perfectivos, porém sem serem marcadores temporais; há desbotamento

semântico, ainda que o conteúdo adjetival permaneça em nível lexical; (4) os PTPs começam

a se desenvolver como formas verbais finitas, preservando, simultaneamente, funções não-

finitas; (5) no último estágio de mudança os PTPs evoluem completamente como formas

verbais finitas, ainda que certo conteúdo lexical tenha se preservado.

Os primeiros três estágios descritos por Dombrowski (2010) se aplicam à mudança

que ocorreu no Português. No primeiro estágio de mudança os PTPs apresentam o que o

autor chama de significado participial (participial meaning), funcionando como um adjetivo.

No segundo estágio, o PTP coexiste com uma forma participial semanticamente esvaziada e

utilizada em construções com auxiliar, em que exerce funções puramente verbais, não

apresentando, portanto, marcas flexionais de concordância com o complemento. No

terceiro estágio os PTPs são utilizados como marcadores temporais perfectivos não finitos,

na nomenclatura do autor, mas também conservam seu uso adjetivo. Deste modo há, em

uma língua que atingiu esta fase, um PTP de caráter verbal, que compõe construções de

tempo composto com valor perfectivo junto com os auxiliares ter/haver10; ao lado desta

forma ocorre outra constituída por um PTP de caráter adjetivo.

Como pôde ser observado nesta seção, a literatura aponta que as construções com

ter/haver + PTP têm origem em formas perifrásticas flexionadas do Latim. Em relação à

mudança pela qual passaram estas perífrases, em geral os estudos levam em consideração

10 Em línguas que possuem apenas um auxiliar para estes contextos, o mesmo verbo é usado, (cf. avoir, do Francês) apresentando os valores semânticos de ter e de haver, simultaneamente, funcionando em construções perifrásticas perfectivas, construções de posse e existenciais.

19

fatores semânticos e morfossintáticos como a presença ou ausência das marcas de

concordância e a ordem dos constituintes frásicos para localizar a emergência dos tempos

compostos perfectivos. Neste estudo serão também analisados estes aspectos da gramática

do Português, porém, procuraremos analisar e discutir quais seriam as motivações internas

à gramática que levaram os PTPs a serem reinterpretados como verbos e ter e haver a

serem reanalisados como verbos auxiliares.

Por ora assumimos algumas hipóteses, a começar por (i) o PTP das construções

perifrásticas com ter/haver era um adjetivo e é reinterpretado como verbo nas construções

de tempo composto. Tal hipótese se baseia em Dombrowski (2010), segundo o qual o PTP

das línguas românicas descende do particípio passivo perfeito latino. Segundo o autor, ao

passar para as línguas românicas esta forma participial do Latim passou a ser utilizada nas

construções perifrásticas com haver. Devido à sua origem nominal, muitos verbos em Latim

não apresentavam uma forma correspondente no PTP, de modo que aqueles que

sobreviveram nas línguas românicas adquiriram uma forma de PTP verbal à medida que o

PTP adjetivo começa a desempenhar um papel sintático de maior importância nas

construções de valor perfectivo. Deste modo, procuraremos investigar quais seriam as

motivações e como se deu a mudança por meio da qual os PTPs adjetivos são

reinterpretados como verbos em PA.

Relacionada à primeira hipótese, postulamos (ii) que pressupõe que,

simultaneamente à reinterpretação do PTP como verbo, ou mesmo devido à

reinterpretação do PTP como verbo, ter e haver perdem a função de predicadores das

construções perifrásticas, função agora exercida pelo PTP. Uma vez que o PTP passa a

predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito da construção, ter e haver

perdem esta função, além do valor semântico de posse.

Como consequência da reinterpretação do PTP e da gramaticalização de ter e haver

em auxiliares estipulamos a hipótese (iii), segundo a qual a perda das marcas de

concordância do PTP com o complemento direto de ter e haver e a fixação da ordem na

sequência [V PTP] seriam indícios de que o processo de mudança estaria concluído. Segundo

Roberts & Roussou (2003), uma consequência do processo de reanálise é a perda das

marcas de concordância, quando presentes. Deste modo, esperamos que a fixação da

ordem, associada à perda destas marcas, sejam indícios de que o processo esteja em seu

estágio final. Espera-se que, ao longo do processo, a ordem [ter/haver PTP NP] seja fixada,

20

ao mesmo tempo que as ordens em que há interpolação do complemento decaiam. A

fixação da ordem típica dos tempos compostos seria favorável à não concordância.

Por fim, estipulamos a hipótese (iv), que pressupõe que o gatilho que levou à

mudança seriam as construções tidas como ambíguas, cujo complemento está no

masculino, singular, uma vez que, segundo Roberts & Roussou, são os dados obscuros e

ambíguos que levam à reanálise. Consideramos também ambíguas todas as construções em

que não é possível precisar se há ou não marcação de concordância, isto é, aquelas que

apresentam pronome substantivo ou interrogativo sem antecedente, bem como

complemento nulo sem antecedente.

Nos próximos capítulos procuraremos aprofundar estas questões, bem como

respondê-las, utilizando como aporte teórico o quadro de gramaticalização de Roberts &

Roussou (2003), baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa

Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), que será apresentado no capítulo 2, a seguir.

1.3 Resumo

O percurso apresentado pela literatura linguística que aborda a formação dos

tempos compostos em Português pode ser resumido da seguinte forma: em geral, assume-

se que as construções perifrásticas de ter/haver + PTP tiveram origem no presente

perfectivo de verbos transitivos ou nas formas de particípio passivo do Latim. Tais

construções deram origem, nas línguas românicas, a construções formadas primeiramente

por habere e, posteriormente, por tenere + PTP.

Inicialmente as construções perifrásticas de ter/haver + PTP eram construções

transitivas que expressavam valor de posse. Nestes contextos ter e haver selecionavam

como complemento uma SC formada por um NP e um PTP adjetivo, sendo, portanto,

construções transitivas-predicativas. Após um processo de mudança frequentemente

tratado como um caso de gramaticalização (cf. RIBEIRO 1993; VIOTTI 1998; ALMEIDA 2006;

MEDEIROS 2013) ter e haver sofrem um processo de perda de estrutura temática e de

conteúdo semântico, tornando-se verbos auxiliares. Paralelamente o PTP que compõe este

tipo de construção é reinterpretado como um verbo, passando a ser o predicador das

21

estruturas perifrásticas. A estas mudanças associa-se a emergência dos tempos compostos

em Português.

Em geral, a literatura considera a perda das marcas morfológicas de concordância

do PTP com o complemento de ter e haver como um indicador do surgimento dos tempos

compostos perfectivos. Associado a isto a fixação da ordem em [ter/haver PTP] também é

um marcador da emergência deste tempo verbal em Português.

Com base no que se expôs neste capítulo, foram estipuladas algumas questões, que

guiarão a análise que será feita no capítulo 3. Como hipóteses temos que (i) o PTP presente

nas construções perifrásticas com ter/haver era de caráter adjetivo e é reinterpretado como

verbo nas construções de tempo composto; (ii) simultaneamente à reinterpretação do PTP

como verbo, ou mesmo devido à reinterpretação do PTP como verbo, ter e haver perdem a

função de predicadores das construções perifrásticas, função agora exercida pelo PTP. Uma

vez que o PTP passa a predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito da

construção, ter e haver perdem esta função, além de seu conteúdo semântico de posse; (iii)

a perda das marcas de concordância do PTP com o complemento direto de ter e haver,

associada à fixação da ordem na sequência [V PTP] seriam indícios de que o processo de

mudança estaria concluído; (iv) o gatilho que levou à mudança seriam as construções tidas

como ambíguas, cujo complemento está no masculino, singular. Para aprofundar e

responder as questões colocadas, passemos ao próximo capítulo, onde será apresentado o

quadro teórico que permitirá a análise proposta, assim como os procedimentos

metodológicos adotados para o tratamento dos dados.

22

Capítulo 2:

Base teórico-metodológica

2.1 Quadro teórico

O quadro teórico que apoia a análise proposta neste estudo é o modelo de

gramaticalização de Roberts & Roussou (2003), doravante R&R, desenvolvido com base na

teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995,

2000).

A gramaticalização é entendida, neste modelo, como um caso regular de mudança

paramétrica (cf. LIGHTFOOT 1991, 1998) por meio da qual novo material funcional é criado a

partir da reanálise de material lexical ou da reanálise de material funcional já existente. Este

processo resulta em formas mais econômicas e com menos (ou nenhuma) operações de

movimento. A causa da reanálise que subjaz a gramaticalização de verbos plenos a auxiliares

é, justamente, a perda do movimento. Nos termos de Roberts (1992), a gramaticalização

deve ser analisada como a eliminação de uma operação de movimento sintático por meio

da reanálise diacrônica.

Na perspectiva de Roberts & Roussou (2003), para se afirmar que estamos diante

de um caso de gramaticalização, é necessário que se observem duas formas, ainda que

homófonas, que se comportem, sintaticamente, de forma distinta, levando à possibilidade

de duas interpretações diferentes. No caso das construções formadas por ter/haver + PTP,

observamos que a forma exemplificada abaixo em (1), de uma construção com haver + PTP,

apresenta duas possíveis interpretações, (a) e (b), o que lhe garante dois estatutos

categoriais diferentes:

(1) “E se pella uentura o s(er)uo uendudo auya feyto alguu mal ou alguu dano, o que o

(con)parou, se o non sabia, torneo aaquel d(e) que o (con)parou e receba seu preço”.

(FR13-019; século 13)

23

No caso de (1) estamos diante de uma construção que apresenta, superficialmente,

uma única forma, mas que dá margem a duas interpretações distintas. Em (a), temos uma

leitura em que o verbo haver é um verbo pleno e seleciona uma SC [feyto alguu mal ou

alguu dano], composta por um complemento e um PTP de caráter modificador. Nesta

primeira interpretação, a leitura que se tem é a de que o sujeito da construção, [o seruo

uendudo], possui, ou há, algum mal ou dano e que este mal ou dano está feito. Em (b),

interpretamos haver como um verbo auxiliar e o PTP como um verbo, o que nos permite a

seguinte leitura: o servo vendido fez algum mal ou algum dano.

No modelo de mudança proposto por Roberts & Roussou (2003) seriam casos que

dão margem a mais de uma interpretação, como (1), o gatilho para o processo de

gramaticalização. Ao considerar a mudança como um caso comum de mudança

paramétrica, são as evidências ambíguas que irão desencadear o processo de

gramaticalização no período de aquisição da linguagem de uma geração para a outra.

Os objetivos deste capítulo são os que seguem. Primeiramente, será apresentada a

teoria dos Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista e os aspectos

teóricos sobre a gramaticalização. Na seção seguinte, serão descritos os procedimentos

metodológicos utilizados na pesquisa.

2.1.2 A teoria dos Princípios e Parâmetros na versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000)

A Teoria de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY 1981, 1995, 2000), pressupõe

que todo indivíduo é dotado de uma capacidade mental inata, a chamada Faculdade da

Linguagem, na qual está incluída uma Gramática Universal (doravante GU11). No primeiro

modelo proposto por Chomsky (1981), a GU é um mecanismo formado por uma série de

princípios rígidos e invariáveis, comuns a todas as línguas, e opções paramétricas abertas,

relacionadas a esses princípios, cujos valores devem ser fixados em cada língua. Em sua

versão do Programa Minimalista (cf. CHOMSKY 1995, 2000), a Teoria de Princípios e

Parâmetros sofre algumas modificações, a partir do que os parâmetros passam a ser vistos

como propriedades de núcleos gramaticais disponíveis no léxico de cada língua.

11 Em inglês UG, universal grammar.

24

No modelo de Chomsky (1995, 2000), a gramática de uma língua, isto é, a Língua- I,

é constituída de um léxico, um sistema computacional e dois níveis de representação –

Forma Lógica12 (FL) e Forma Fonética13 (FF) – que fazem interface com os sistemas

conceptual-intencional (C-I) e articulatório-perceptual (A-P). A arquitetura da gramática

proposta pelo Programa Minimalista é, portanto, a seguinte:

Figura 1: Modelo de gramática do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000).

O léxico de uma língua é compreendido por um conjunto de traços fonológicos,

sintáticos e semânticos de itens lexicais e funcionais. Os traços que compõem categorias

como nome (N), adjetivo (A), verbo (V) e algumas preposições (P), que são capazes de

selecionar semanticamente (s-seleção) seus argumentos e atribuir-lhes papel temático, são

os elementos entendidos como material lexical. Os elementos que formam o que se

entende como material funcional são os traços de categorias que pertencem a uma classe

fechada de elementos e estabelecem uma relação com seu complemento diferente da

relação estabelecida pelos núcleos lexicais, uma vez que selecionam argumentos tendo em

vista apenas sua categoria (c-seleção). Outra distinção importante no que respeita à

caracterização desses elementos é a presença ou não de conteúdo descritivo. As categorias

funcionais, diferentemente das categorias lexicais, não apresentam conteúdo descritivo,

contendo apenas informações sobre as propriedades gramaticais de seus elementos (como,

por exemplo, número, gênero e caso), não apresentando, necessariamente, conteúdo

fonológico. Como categorias funcionais podem ser citadas, por exemplo, as categorias

Determinante (D), Tempo (T) e Complementizador (C). Do mesmo modo que as categorias

lexicais, os núcleos das categorias funcionais encabeçam os constituintes da estrutura, nos

12 Em inglês LF, logical form. 13 Em inglês PF, phonetic form.

25

moldes da Teoria X-barra14. Assim, da mesma forma que NP, VP, AP e PP são projeções

máximas dos núcleos N°, V°, A° e P°, respectivamente, DP, TP e CP são também as projeções

máximas dos núcleos D°, T° e C° respectivamente, apresentando, na representação

sintagmática, uma posição de complemento e uma de especificador, como se exemplifica

abaixo, na estrutura em que X é um núcleo lexical ou funcional.

Figura 2: Modelo de projeção sintagmática

O processo de derivação sintática tem início por uma operação chamada de

Numeração que prepara, a partir do léxico, os itens linguísticos que serão utilizados. A

segunda etapa é conhecida como sintaxe visível ou explícita (overt), isto é, a construção de

objetos sintáticos, realizada pelo sistema computacional, a partir dos itens do léxico

disponibilizados pela Numeração. A essa etapa segue o Spell-Out, momento em que os

traços fonológicos são enviados à FF para a interpretação fonética. Os traços semânticos,

por sua vez, podem ser encaminhados diretamente, depois de Spell-Out, para FL. Outra

possibilidade é que, após Spell-Out, ainda haja sintaxe, dessa vez não-visível, ou implícita

(covert), antes que o material seja enviado para FL para a interpretação semântica. Para

que a derivação sintática aconteça, atuam, sobre os itens lexicais, operações sintáticas como

Selecionar (select), Concatenar (merge) e AGREE/Mover (AGREE/move), responsáveis por

combinar recursivamente os elementos do léxico, de modo a formar uma estrutura

hierárquica. A operação Selecionar seleciona um item disponibilizado na Numeração que

entrará na derivação e pode ser aplicada quantas vezes forem necessárias de acordo com o

número de elementos disponibilizados pela Numeração. Para combinar os elementos

selecionados, a operação Concatenar entra em ação, concatenando dois elementos lexicais

ou um núcleo a algum objeto sintático já formado. Essas duas operações – Selecionar e

14 O quadro mais recente para as representações sintagmáticas (bare phrase structure, cf. Chomsky 1995, 2000) poderia ser aqui utilizado. No entanto, nesta Dissertação optamos por utilizar o modelo clássico da Teoria X-Barra (CHOMSKY 1981).

26

Concatenar – são necessárias para que a derivação aconteça e não são custosas do ponto de

vista da economia gramatical. Por outro lado, as operações Agree/Mover implicam custos

ao sistema computacional, uma vez que, para que aconteçam, é necessário que antes tenha

operado uma operação de Concatenar, e são utilizadas para que determinados traços,

denominados não-interpretáveis, sejam valorados no decorrer da derivação.

Como se pode observar por meio das operações sintáticas apresentadas acima, a

noção de economia está presente no Programa Minimalista. Os Princípios de Economia são

aplicados tanto às representações quanto às derivações. A mesma noção é importante no

modelo de gramaticalização de R&R, como veremos mais adiante.

Em relação à aplicação dos Princípios de Economia às derivações, a operação

Concatenar é menos custosa que a operação Mover. Assim, existem alguns princípios que

regularam a atuação de operações de movimento mais custosas à gramática, como o menor

esforço (least effort strategy), o movimento mais curto15 e o último recurso (a aplicação da

operação de movimento só ocorre quando não há outra operação menos custosa

disponível). Outro princípio seria a procrastinação, em que o movimento ocorre somente

em FL. Esses princípios pertencem à gramática de qualquer língua natural.

No modelo Minimalista, assim como em versões anteriores da Teoria, a diferença

entre as línguas é explicada com base na noção de parâmetros. No modelo de Chomsky

(1981), em que se adota uma concepção binária ([+] ou [-]) para os parâmetros, estes

podem ser marcados para um ou outro valor, sendo positivamente ou negativamente

marcados. Por exemplo, o Princípio da Projeção Estendida16 se refere ao fato de todas as

sentenças apresentarem um sujeito. A este Princípio está relacionado um Parâmetro que

determina se o sujeito deve ser realizado foneticamente ou não, ao menos no que respeita

as sentenças finitas. Esse Parâmetro, denominado Parâmetro do Sujeito Nulo17, seria

marcado, por exemplo, negativamente para o inglês e positivamente para o italiano.

No quadro do Programa Minimalista, Chomsky propõe que o conceito de

parâmetro seja direcionado para as propriedades dos núcleos funcionais, sendo, por isso,

restrito ao léxico. O tratamento dado às categorias funcionais passa a ser o tratamento dado

15 Operações de movimento simples são preferíveis às complexas. Deste modo, movimentos de menor esforço e mais curtos são preferíveis aos de maior esforço e mais longos. 16 EPP, do inglês Extended Projection Principle 17 Em inglês, pro-drop Parameter

27

aos traços gramaticais presentes nessas categorias. Esses itens estão disponíveis no léxico

assim como os itens lexicais plenos. Neste modelo, os núcleos funcionais estão associados a

traços morfológicos que devem ser checados e apresentam a propriedade de desencadear

movimentos. Considerando novamente o Parâmetro do Sujeito Nulo, nesta nova

abordagem o núcleo funcional AgrS (núcleo do sintagma de Concordância) responsável pela

concordância do sujeito passa a ser parametrizado. Se AgrS é suficientemente rico para

licenciar e identificar sujeitos nulos, têm-se línguas como o italiano; por outro lado, se AgrS

não possui essas propriedades, têm-se línguas como o inglês (cf. ROBERTS e ROUSSOU

2003).

A nova abordagem dos parâmetros permite reduzir a variação entre línguas em

termos das propriedades dos núcleos funcionais. Por exemplo, em relação às línguas que se

diferenciam em termos de morfologia flexional, em uma determinada língua, um núcleo

funcional F apresenta uma forma visível em FF ao passo que em outra língua não. No que

respeita às línguas que se diferenciam em relação a ordem de constituintes, em uma

determinada língua, um núcleo funcional F é capaz de atrair outros materiais e, assim,

desencadear movimentos, ao passo que em outras línguas esse processo não ocorre (cf.

CHOMSKY 1995, 2000).

As subseções seguintes tratarão do fenômeno da gramaticalização primeiramente

em uma perspectiva geral e, em seguida, no modelo de R&R, inserido no quadro da Teoria

de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000).

2.1.3. O fenômeno da gramaticalização

O termo gramaticalização foi introduzido primeiramente por Meillet (1912 cf.

ROBERTS & ROUSSOU 2003) para descrever o desenvolvimento de novo material funcional a

partir de material lexical já existente. Segundo Batllori et al. (2005), o termo se refere aos

processos de mudança categorial e desbotamento semântico pelo qual alguns itens lexicais

passam durante o processo de evolução e mudança linguística. Segundo os autores,

elementos que antes estabeleciam relações temáticas perdem parcialmente esta

característica, transformando-se em elementos funcionais como clíticos ou afixos flexionais.

O fenômeno da gramaticalização tem sido compreendido de maneiras diversas, a

depender da perspectiva de gramática e de língua levada em consideração. Na perspectiva

28

funcionalista, em que a língua é analisada levando em conta o seu uso, a gramaticalização é

considerada um processo motivado por questões semântico-pragmáticas (cf. HOPPER &

TRAUGOTT 1993). A mudança linguística é, pois, tratada como sendo impulsionada por

fatores cognitivos extra-linguísticos, levando-se em conta que as propriedades das

construções linguísticas podem ser influenciadas por fatores de ordem social. Na

perspectiva funcional, o termo gramaticalização pode ser usado tanto para descrever um

modelo que considera como novas formas gramaticais surgem quanto para um modelo que

investigue o processo a partir do qual itens linguísticos se tornam mais gramaticais ao passar

do tempo (cf. HOPPER & TRAUGOTT 1993), associado à fatores externos à linguagem.

Do ponto de vista da gramática gerativa, as propriedades gramaticais das

expressões linguísticas fornecidas pela documentação histórica (Língua-E) servem para

caracterizar o sistema linguístico internalizado pelo falante (Língua-I). A perspectiva que os

estudos gerativos oferecem para esta questão é assumir que os princípios da GU podem ser

expressos a partir de algumas opções limitadas que permitem a variação. A faculdade da

linguagem é então vista como um sistema relativamente autônomo, que pode ser

examinado independentemente de outras capacidades cognitivas. A natureza da capacidade

linguística cognitiva não se apoia em seu uso, apesar de a capacidade de linguagem ser,

naturalmente, o que suporta a comunicação e a expressão dos pensamentos. A maior crítica

do funcionalismo ao modelo formal de gramaticalização é que este só lida com o fenômeno

da reanálise (um aspecto particular da gramaticalização) e não explica a questão da

gradualidade, argumentando que a perspectiva gerativa só captura mudanças abruptas.

Contudo, alguns estudos gerativistas procuraram contrapor esta crítica. Por exemplo, os

trabalho de Whitman (2000 cf. BATLLORI ET AL. 2005) e R&R (2006) propõem uma análise

minimalista de mudança sintática em que a reanálise é tida como apenas um dos

mecanismos envolvidos na gramaticalização. A ênfase destes modelos está em como e por

que as gramáticas podem mudar no processo de aquisição de linguagem. Neste caso a

gramaticalização não é tratada como um fenômeno linguístico relacionado a fatores

extralinguísticos, mas como um caso regular de mudança paramétrica (cf. ROBERTS &

ROUSSOU 2003). No quadro gerativista a questão de a mudança ser gradual ou abrupta vem

sendo resolvido com base nos conceitos de Língua-I, em que a mudança só pode ser

abrupta, e de Língua-E, em que a mudança segue um caminho gradual.

29

Kroch (1989, 1994, 2000), em relação à questão da mudança abrupta e gradual,

oferece uma proposta (double-base hypothesis) que dá conta da variação sincrônica e

diacrônica, entre falantes individuais. A hipótese propõe que os falantes podem adquirir

mais de uma gramática, simultaneamente. Estas gramáticas, em competição, podem

resultar em casos de diglossia interna, o que explica a variação dentro de um mesmo

período de tempo e nos mesmos documentos escritos. Seguindo a mesma linha, Lightfoot

(2003) distingue mudança gramatical (gramatical change) de mudança de gramática

(gramar change). A primeira seria a consequência de um conjunto de fatores relativos ao

uso da linguagem, enquanto a segunda estaria diretamente relacionada à base da aquisição

da linguagem. Além disso, as mudanças gramaticais estão relacionadas a Língua-E, enquanto

as mudanças de gramática se relacionam à Língua-I.

Roberts (1992) define a gramaticalização em termos de uma mudança categorial,

isto é, a mudança de uma categoria lexical para uma categoria funcional, acompanhada de

um processo de desbotamento semântico (semantic bleaching). No que respeita aos dois

tipos de categorias, Roberts assume que as categorias funcionais são aquelas que não

assinam papel temático e, dentre as categorias lexicais, há uma distinção entre aquelas que

podem atribuir papel temático e as que não podem. Deste modo, existem verbos plenos,

gerados em V, que atribuem papel temático; verbos auxiliares, também gerados em V, que

não atribuem papel temático; e auxiliares funcionais, que são gerados em I.

Roberts explica a gramaticalização em termos de uma Reanálise Diacrônica,

processo em que uma categoria lexical, como, por exemplo, V, passa a uma categoria

funcional I, implicando uma simplificação estrutural: a estrutura em que antes V se movia

para I é reanalisada como uma estrutura operacionalmente menos custosa que a estrutura

anterior, em que V é concatenado diretamente em I.

O processo de Reanálise Diacrônica está relacionado à aquisição da linguagem, pois

pressupõe uma relação entre as gramáticas de gerações diferentes: numa gramática G, uma

sentença S tem a estrutura E; numa gramática G’, subsequente a G, a mesma sentença S

tem uma estrutura E’, que é diferente de E. Interpretada desta maneira, a gramaticalização

deve ser entendida como a eliminação de um passo da operação de movimento. A

eliminação de um movimento sintático é motivada pelo fato de que estruturas mais simples,

isto é, aquelas com menor número de posições na cadeia, são preferíveis a estruturas mais

complexas. Essa preferência se dá a uma estratégia de aquisição, a Lei do Menor Esforço

30

(Least Effort Strategy), segundo a qual crianças em processo de aquisição de linguagem dão

preferência às representações que contêm cadeias com menores quantidades de elos.

Em proposta alternativa à de Roberts (1992), Viotti (1998), propõe que a

gramaticalização ocorre quando um elemento lexical pleno passa por um processo de

esvaziamento semântico a partir do qual não é mais capaz de estabelecer uma relação

predicativa com seus argumentos; isto é, a relação entre esse elemento e seus argumentos

deixa de ser uma relação temática. Como consequência este elemento sofre uma mudança

de categoria, deixando de integrar uma categoria lexical, semanticamente plena e capaz de

estabelecer relações temáticas, e passando a uma categoria funcional, puramente

gramatical. Para Viotti, o desbotamento semântico é a causa da gramaticalização, e não

apenas um fenômeno que lhe acompanha, como ocorre no quadro de Roberts (1992). Na

proposta de Viotti, portanto, a mudança de categoria verificada nos casos de

gramaticalização é uma consequência direta da perda de conteúdo semântico e da aplicação

de princípios gerais que orientam a gramática para estruturas mais simples.

Em outros termos, Roberts sugere que a Least Effort Strategy é responsável por

desencadear a reanálise que provoca a mudança de uma categoria lexical para uma

categoria funcional. Alternativamente, Viotti propõe que um fenômeno semântico, o

semantic bleaching, esvazia uma categoria lexical de sua capacidade de estabelecer relações

temáticas, e, em consequência disso, essa categoria passa a ser reanalisada como uma

categoria funcional distinta.

No caso particular dos verbos ter e haver, Viotti sugere que o verbo haver se

transformou em uma categoria funcional, e o verbo ter está também em processo de

reanálise diacrônica, pois a perda de conteúdo semântico que esses verbos sofreram e vêm

sofrendo ao longo de sua história é suficiente para que eles atinjam uma etapa em que são

gerados diretamente em I, como uma categoria funcional. Isso ocorreria, pois, à medida que

uma categoria lexical perde a capacidade de atribuir papel temático a seus argumentos, a

necessidade de ela ser projetada na parte mais encaixada da estrutura é desfeita, uma vez

que esta é justamente a parte em que se estabelecem as relações temáticas. Assim sendo,

tais elementos poderão ser projetados diretamente nas posições mais altas da estrutura, e,

assim, satisfazer condições gerais de economia, evitando operações custosas de

movimento.

31

A subseção seguinte seguirá tratando do fenômeno da gramaticalização, mais

especificamente, do modelo de mudança sintática proposto por Roberts & Roussou (2003).

2.1.4. O modelo de gramaticalização de Roberts & Roussou (2003)

Como visto anteriormente, no quadro teórico de Princípios e Parâmetros (cf.

CHOMSKY 1981, 1995, 2000), todo indivíduo é dotado de uma capacidade inata de

aprendizagem de uma língua e de uma UG que contém uma série de princípios fixos. O

processo de aquisição da linguagem é tido como uma consequência da interação entre essa

capacidade mental e o input linguístico disponibilizado no período de aquisição, que se

refere à Língua-E da geração a qual os aprendizes serão expostos. A figura abaixo ilustra

como se dá o processo de aquisição, como base no modelo de Chomsky (1981, 1995, 2000).

Figura 3: Processo de aquisição da linguagem no quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000).

A Figura acima mostra que uma geração N compartilha elementos de uma mesma

Língua-I, capaz de gerar enunciados. As amostras de Língua-E da geração N servem de input

para que a geração seguinte, N+1, adquira sua Língua-I. O contato dos aprendizes com os

dados linguísticos da geração anterior fará com que estes falantes aprendam o léxico e,

consequentemente, fixem os valores dos parâmetros em questão. Deste modo, a mudança

linguística é entendida como uma mudança na fixação do valor de um determinado

parâmetro, e se dá durante o processo de aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979,

1991), ocorrendo quando a natureza dos dados linguísticos que servirão de base para a

“fixação” de um parâmetro se torna ambígua para a nova geração, permitindo mais de uma

interpretação. Neste caso, a seleção em favor de um ou outro parâmetro se se dará em

função das representações mais simples.

32

Neste quadro a mudança tem início quando uma população de falantes adquire

uma gramática (Língua-I) que difere em pelo menos um parâmetro da gramática da geração

anterior. Adotando a conceituação de parâmetros de Chomsky (1995, 2000), o modelo de

R&R (2006) propõe um quadro no qual a mudança linguística é correlacionada a alterações

nas propriedades dos núcleos funcionais, podendo ser definida como uma mudança na

realização de núcleos funcionais ou em suas propriedades de atração. Como os parâmetros

são propriedades dos núcleos funcionais e estes estão no léxico, o processo de remarcação

do parâmetro se dará no período de aquisição da linguagem por meio do aprendizado do

léxico.

Com base no quadro teórico da Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão

minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), R&R (2003) argumentam que a gramaticalização pode

ser capturada em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais, sendo,

portanto, um caso comum de mudança paramétrica e não uma mudança sintática especial.

Como visto, para os autores, a gramaticalização é entendida como um processo diacrônico

que envolve a criação de material funcional decorrente da reanálise de material lexical ou

criação de novo material funcional por meio da reanálise de material funcional já existente.

Por ser um caso comum de mudança paramétrica, a reanálise, que ocupa lugar central neste

quadro de gramaticalização, ocorre no período de aquisição da linguagem. A aprendizagem

de uma língua, segundo R&R (2003), pode ser descrita em termos de um sistema

computacionalmente conservador, uma vez que prefere representações estruturalmente

mais simples (cf. CLARK e ROBERTS 1993). Observem-se, como exemplo, as representações

abaixo, em que se nota que a estrutura (2) é mais simples que (3), uma vez que em (2) não

ocorrem operações de movimento nem de concatenação e em (3) a concatenação de F a G

resulta em uma estrutura mais complexa:

(2) G

(3) Modelo de simplificação estrutural (R&R 2003:16)

Quando o gatilho utilizado na aquisição da linguagem for ambíguo, ou seja, quando

a expressão de certo parâmetro não for necessariamente clara e a estrutura gerada por esse

33

parâmetro der abertura para duas interpretações, o falante optará pela representação mais

simples (2), já que as representações com operações de movimento e concatenação são

mais complexas. Em um caso como este, a estrutura de (3) será reanalisada e, portanto,

reinterpretada no período de aquisição pela nova geração de falantes. Como resultado da

reanálise surge uma construção mais simples em termos estruturais, uma vez que a

operação de movimento é eliminada. Como apontam R&R (2003), a reanálise de (2) em (3)

também pode se dar das seguintes formas: (i) o aprendiz pode reanalisar a categoria movida

F como parte do sistema flexional de G. Esse tipo de reanálise gera uma recategorização de

F como elemento flexional; ou (ii) uma categoria XP pode ser reanalisada como núcleo X.

De modo geral a gramaticalização se dá em função do tipo de núcleo em questão,

que pode ser lexical ou funcional. Observe-se a figura abaixo, que ilustra o processo de

gramaticalização, de acordo com R&R (2003), adaptada de Marcotulio (2012:26).

Figura 4: A gramaticalização no quadro de R&R (2003) (MARCOTULIO 2012:26)

Na figura acima, um item lexical qualquer - Fo - é inicialmente gerado no núcleo

lexical X° cuja projeção máxima XP é complemento de um núcleo funcional F°. Este item

sobe, por meio de uma operação de movimento, do núcleo lexical X° para o núcleo

funcional F°. No processo de gramaticalização, essa estrutura é reanalisada e, como

resultado deste processo, o item em questão passa a ser concatenado diretamente no

núcleo funcional F°, eliminando uma operação de movimento e gerando uma estrutura

sintaticamente mais simples, uma vez que o processo de concatenação é operacionalmente

menos custoso que mover. Nesse sentido, a gramaticalização é um processo que elimina o

movimento sintático através de uma reanálise diacrônica, pois o item em questão passa a

ser gerado em uma posição funcional.

34

Perdas de ordem semântica e fonética são geralmente citadas como consequências

do processo de gramaticalização. Uma vez que, na perspectiva de R&R (2003) o resultado do

processo de gramaticalização é uma categoria funcional, a perda semântica e fonológica

como uma consequência da reanálise sintática, se justifica em função das propriedades dos

núcleos funcionais. Como veremos no capítulo seguinte, o processo de mudança que

envolveu os verbos ter e haver em Português resulta em perdas de ordem semântica,

especialmente, uma vez que estes verbos perdem seu conteúdo semântico pleno e

funcionam como verbos auxiliares.

2.2. Metodologia A apresentação dos procedimentos metodológicos adotados neste trabalho será

feita em três momentos. Inicialmente será descrito o corpus utilizado no estudo, a

justificativa para a sua escolha e o recorte temporal utilizado. Na seção seguinte, 2.2.2, será

discutida a questão da periodização da Língua Portuguesa e definida a proposta de

periodização adotada na pesquisa. Finalmente, a seção 2.2.3 descreve os processos

metodológicos adotados para a recolha, tratamento e análise dos dados.

2.2.1. O corpus

O trabalho com Linguística Histórica demanda um cuidado, por parte do

investigador, com a escolha das fontes utilizadas na pesquisa. Quando trabalhamos com

manuscritos, é necessária a atenção com alguns detalhes como a datação e a autoria dos

textos, o estado de conservação dos documentos, as diferentes versões que se apresentam

para um mesmo documento, sua veracidade em relação ao original etc. Contudo, nem

sempre temos acesso às informações sobre os critérios utilizados para a elaboração da

edição filológica (cf. VAZQUEZ & MARQUES-AGUADO 2012, entre outros).

A alternativa ideal é que o pesquisador trabalhe com manuscritos originais e faça

sua própria edição crítica. Na maioria das vezes, porém, essa alternativa não é viável,

restando ao pesquisador a seleção de edições confiáveis do ponto de vista filológico.

Nesta dissertação optamos por utilizar textos já editados e digitalizados devido à

praticidade de que as ferramentas online dispõem. A vantagem de utilizar um corpus já

editado está na possibilidade de aumentar a gama de documentos para análise e, assim, foi

35

possível obter mais exemplos para respaldar as hipóteses deste estudo. Deste modo,

utilizamos nesta pesquisa o Corpus Informatizado do Português Medieval18(CIPM), um

corpus constituído por pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa. A escolha do corpus

se justifica no período histórico e na variedade de textos literários e documentais que a

plataforma abarca, além da confiabilidade da edição dos documentos.

Os textos utilizados como corpus desta Dissertação constam na tabela abaixo, com

suas respectivas fontes originais19.

Texto Ano

Século 13

Testamento de D. Afonso II (TL13)

Fonte: COSTA, Pe. Avelino Jesus da (1979),

Os mais Antigos Documentos Escritos em

Português, Revista Portuguesa de História,

17, pp. 307-321 (dois manuscritos: Lisboa e

Toledo).

1214

Costumes de Santarém (CS13)

Fonte: RODRIGUES, Maria Celeste Matias

(1992). Dos Costumes de Santarém,

Dissertação de Mestrado, Lisboa, F.L.L., pp.

160-251.

1294

Notícias do Torto (NT13)

Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (1990),

Boletim de Filologia, vol. xxxi, pp. 37-41

(texto crítico).

1214

Tempos dos Preitos (TP13)

Fonte: FERREIRA, José de Azevedo (ed.) in

Roudil, Jean (1986) Summa de los Neuve

Tiempos de los Pleitos. Édition et étude dune

variation sur un thème, Paris, Klincksieck, pp.

151-169.

1280

18 Disponível online em http://cipm.fcsh.unl.pt. Além do CIPM, há um vasto número de corpora digitalizados na internet, entre eles o Corpus Histórico do Português Tycho-Brahe, disponível em http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus; o Corpus Lexicográfico do Português, disponível em http://clp.dlc.ua.pt/inicio.aspx; o Corpus Eletrónico do CELGA – Português do Período Clássico, disponível em http://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc; e o Corpus do Português, disponível em http://www.cdp.ibilce.unesp.br/corpus.php. 19 As referências das fontes originais podem ser consultadas online na página do CIPM (http://cipm.fcsh.unl.pt/gencontent.jsp?id=92)

36

Foros de Garvão (FG13)

Fonte: GARVÃO, Maria Helena (ed.) (1992)

Foros de Garvão. Edição e Estudo Linguístico.

Dissertação de Mestrado, Lisboa, f.l.u.l., pp.

65-99.

1267-1280

Textos Notariais (in História do Galego-

Português) (TN13)

Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)

História do Galego-Português, Coimbra, INIC,

pp. 19-295.

1262-1300

Chancelaria de D. Afonso III (CA13)

Fonte: DUARTE, Luiz Fagundes (1986) Os

Documentos em Português da Chancelaria

de D. Afonso III (Edição), Dissertação de

Mestrado, f.l.u.l., pp. 68-29

1255

Foro Real de D. Afonso X (FR13)

Fonte: FERREIRA, José de Azevedo (ed.)

(1987) Afonso X, Foro Real, Lisboa, i.n.i.c.,

pp. 125-309.

1280

Século 14

Crónica de Afonso X (CA14)

Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (ed.)

(1951) Crónica Geral de Espanha de 1344,

Lisboa, I.N.C.M.

1344

Foros de Garvão (FG14)

Fonte: Garvão, Maria Helena (ed.) (1992)

Foros de Garvão. Edição e Estudo

Linguístico. Dissertação de Mestrado, Lisboa,

f.l.u.l., pp. 65-99.

Data desconhecida

Textos Notariais (in Clíticos da História do

Português) (CHP14)

Fonte: MARTINS,, Ana Maria (ed.) (1994)

Clíticos na História do Português - Apêndice

Documental, vol. 2, Dissertação de

Doutoramento, Lisboa.

1304-1397

Textos Notariais (in Documentos Notariais)

(TN14)

Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (2000)

Documentos Notariais dos Séculos XII a XVI.

Edição digitalizada

1304-1397

37

Século 15

Castelo Perigoso (CP15)

Fonte: NETO, João António Santana (ed.)

(1997), Duas Leituras do Tratado Ascético

Místico Castelo Perigoso, Dissertação de

Doutoramento, São Paulo, Faculdade de

Filosofia, Letras eCiências Humanas, USP.

Edição revista por Irene Nunes.

Data desconhecida

História dos Reis de Portugal (HRP15)

Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (ed.)

(1951) Crónica Geral de Espanha de 1344,

Lisboa, I. N. C. M.

Data desconhecida

Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar

Toda Sela (LBE15)

Fonte: PIEL, Joseph (ed. crit.) (1944) Livro da

Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela.

Lisboa, Bertrand. Edição digitalizada, revista

por João Dionísio.

1437-1438

Textos Notariais (in História do Galego-

Português) (TN15)

Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)

História do Galego-Português, Coimbra, INIC,

pp. 19-295

1401-1500

Século 16

Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB16)

Fonte: LOPES, David (ed.) (1897) Chronica

dos Reis de Bisnaga, Lisboa, Imprensa

Nacional.

Data desconhecida

Textos Notariais (in Documentos Notariais)

(DN16)

Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (2000)

Documentos Notariais dos Séculos XII a XVI.

Edição digitalizada

1504-1548

Textos Notariais (in História do Galego-

Português) (HGP16)

Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)

História do Galego-Português, Coimbra, INIC,

pp. 19-295.

1502-1516

Textos Notariais (in Clíticos da História do

Português) (CHP16)

Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (1994)

1504-1548

38

Clíticos na História do Português - Apêndice

Documental, vol. 2, Dissertação de

Doutoramento, Lisboa

Tabela 2: Textos utilizados como corpus distribuídos por século

A divisão dos textos para cada século foi feita de maneira que para cada século

houvesse um número proporcional de palavras, de modo que a obtenção de dados não

fosse influenciada pelo tamanho do corpus. Desta forma, os textos foram selecionados

levando em consideração o número de palavras, a partir do que obtivemos a seguinte

divisão:

Texto Número de palavras

Século 13

Testamento de D. Afonso II (TL13) 1.412

Costumes de Santarém (CS13) 5.450

Notícias do Torto (NT13) 775

Tempos dos Preitos (TP13) 1.588

Foros de Garvão (FG13) 6.536

Textos Notariais (in História do Galego-

Português) (TN13)

29.093

Chancelaria de D. Afonso III (CA13) 17.629

Foro Real de D. Afonso X (FR13) 49.721

TOTAL 112.204

Século 14

Crónica de Afonso X (CA14) 19.261

Foros de Garvão (FG14) 675

Textos Notariais (in Clíticos da História do

Português) (CHP14)

43.648

Textos Notariais (in Documentos Notariais)

(TN14)

44.799

TOTAL 108.383

Século 15

Castelo Perigoso (CP15) 28.055

História dos Reis de Portugal (HRP15) 4.967

Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar

Toda Sela (LBE15)

38.784

Textos Notariais (in História do Galego-

Português) (TN15)

29.873

39

TOTAL 101.679

Século 16

Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB16) 43.833

Textos Notariais (in Documentos Notariais)

(DN16)

29.136

Textos Notariais (in História do Galego-

Português) (HGP16)

3.078

Textos Notariais (in Clíticos da História do

Português) (CHP16)

29.287

TOTAL 105.334

Tabela 3: Número de palavras do corpus

No corpus montado para este trabalho foram encontradas 326 ocorrências de

construções formadas pelos verbos ter/haver seguidos de PTP. Destas ocorrências, 196

foram de ter + PTP e 130 de haver + PTP. No século 13, foram observadas 62 ocorrências da

construção, sendo 19 de ter e 43 de haver; no século 14, 68 ocorrências, sendo 21 de ter e

47 de haver; no século 15, 88 ocorrências, sendo 50 de ter e 38 de haver, e, finalmente, no

século 16, 108 ocorrências, sendo 106 de ter e 2 de haver.

Em relação ao recorte temporal utilizado para a delimitação do corpus, este se

justifica pelo fenômeno estudado. Os estudos sobre os tempos compostos em Português

levam em conta o período arcaico da língua que, na periodização tradicional, vai do século

13 ao 16. As informações disponíveis na literatura evidenciam que as primeiras construções

perifrásticas com valor perfectivo se encontram no século 13 (cf. MATTOS E SILVA 2002 e o

capítulo seguinte desta Dissertação). A partir de então as evidencias de construções de

tempo composto vão aumentando, até que, nos séculos 14, 15 e 16 suas ocorrências são

mais expressivas (cf. ALMEIDA 2006, MEDEIROS 2013).

A emergência dos tempos compostos em Português marca, ao lado de outros

fenômenos, um importante período de transição na língua. As diferentes propostas de

periodização do Português frequentemente levam em conta esta mudança, mas diferem no

que respeita às perspectivas teóricas utilizadas. De modo a esclarecer a escolha da

periodização utilizada, a seção seguinte trará uma breve discussão das diferentes propostas

de periodização do Português.

40

2.2.3. Sobre a periodização do Português: o recorte temporal

Em relação ao recorte temporal aqui utilizado, como dito anteriormente, serão

utilizados dados dos séculos 13 ao 16. A delimitação temporal se justifica no próprio

fenômeno linguístico estudado, uma vez que a emergência dos tempos compostos é

localizada no período arcaico do Português, na nomenclatura tradicional (cf., entre outros,

ALMEIDA 2006, MATTOS E SILVA 2006).

Entre os estudos tradicionais, com base na língua escrita, a periodização reconhece,

em termos gerais, quatro grandes períodos, contando com o período anterior ao que se

concebe normalmente como Língua Portuguesa: o Português pré-literário, o Português

Arcaico (ou Antigo ou Medieval, a depender do autor), delimitado tradicionalmente desde

os primeiros documentos escritos (que são atribuídos ao século 12 ou 13, cf. MATTOS E

SILVA 2004, 2006) até o século 16; o Português Clássico, uma fase intermediária entre a

língua medieval e a moderna, e o Português Moderno, datado, a depender do autor, do

século 18 ou 19 em diante. Independentemente dos critérios utilizados para tal divisão

(sejam internos ou externos e, dentre estes, de caráter fonológico, morfológico ou sintático)

e das pequenas flutuações na datação da língua decorrentes destes, o século 16 parece ser

a grande fronteira que separa a língua arcaica dos outros períodos. O quadro abaixo,

adaptado de Mattos e Silva (2006), resume as diferentes propostas de periodização para a

história da Língua Portuguesa:

Época Leite

de Vasconcelos

Silva Neto Pilar Vazquez

Cuesta

Lindley Cintra

Até o século 9 (882) Pré-histórico Pré-histórico Pré-literário Pré-literário

Até 1.200 aprox.

(1214-1216)

Proto-histórico Proto-histórico

Até 1385/1420 Português arcaico Trovadoresco Galego-

português

Português

antigo

Até 1536/1550 Português comum Português pré-

clássico

Português

médio

Até século 18 Português modern Português

moderno

Português

clássico

Português

clássico

Até século 19/20 Português

moderno

Português

moderno

Tabela 4: Diferentes propostas para a periodização da Língua Portuguesa (MATTOS E SILVA 2006)

41

O período pré-literário, que precede o Português Arcaico, ou é tratado como um

bloco temporal que vai até o início 1.200 (como o fazem Pilar Vazquez Cuesta e Lindley

Cintra, segundo o quadro acima) ou é subdivido em pré-histórico, quando ainda não se

detectam traços da variante românica do latim vulgar que hoje chamamos Português, e

proto-histórico, situado, em geral, a partir do século 9, quando esses traços já são

detectados nos documentos remanescentes.

O período arcaico é geralmente situado entre os séculos 13 e 16 e, a depender do

autor, dividido em subperíodos. A tabela acima mostra que Silva Neto divide o período

entre Trovadoresco (de aproximadamente 1.200 até 1385/1420) e Português Comum (de

1385/1420 até meados de 1500); Vazquez Cuesta divide o mesmo período entre Galego-

Português e Português Pré-Clássico e Lindley Cintra entre Português Antigo e Português

Médio. Note-se que, com exceção de Leite de Vasconcelos, que trata todo o período entre o

século 13 e o 16 como Português Arcaico, os outros autores fazem um corte entre o período

que vai até o século 14 e início do 15 e do século 15 em diante.

A fronteira inicial do Português Arcaico é estabelecida no século 13 por uma razão

simples: é a este século que são atribuídos os primeiros documentos escritos em Português

(MATTOS E SILVA 2006). No entanto, a procedência histórica dos primeiros textos

portugueses é assunto de constante debate. Em sua Gramática Histórica, Said Ali

(1921[1964:18]) já afirma que os mais antigos documentos escritos em português datam do

século 12. Mattos e Silva (2006) debate a questão em artigo que revisita os limites do

Português Arcaico, mostrando que já há novas contribuições no sentido de atribuir os

primeiros textos ao século 12. Todavia, o debate quanto ao primeiro texto escrito em

português ainda continua e não é possível precisar aqui o momento histórico que inaugura

o período arcaico da língua.

Quanto aos limites finais do Português Arcaico, atribui-se o término ao século 16,

pois é neste século que há, nas palavras de Said Ali (1921[1964:19]) um rompimento da

tradição: “são notáveis, sobretudo os escritores quinhentistas por terem ousado romper

com a velha tradição, pondo a linguagem escrita mais de acordo com o falar corrente, que

nessa época se achava bastante diferenciado do falar de dous ou três séculos atrás”. Na

concepção de Mattos e Silva (2006), por outro lado, o limite final da fase arcaica é ainda

uma questão em aberto. Segundo a autora “um limite final para a fase arcaica da língua,

com base em fatos linguísticos, está à espera”, uma vez que a periodização tradicional faz

42

uso de acontecimentos de caráter extralinguístico para marcar o fim do período arcaico. Em

artigo do mesmo ano, entretanto, a autora cita alguns fatores linguísticos que parecem

contribuir para a delimitação final deste período no século 16, tais como a) o

comportamento dos dêiticos demonstrativos, locativos adverbiais e anafóricos, b)

conjunções típicas do português arcaico, c) verbos ser e estar, haver e ter, d) ausência e

emergência do tempo composto, e) alguns dados sobre a ordem sintática. Sobre o aspecto

b, que nos interessa especialmente, a autora afirma que em documentos dos séculos 14 e

15 sempre ocorria a concordância do particípio passado de verbos transitivos com o objeto

direto. Em relação aos outros aspectos Mattos e Silva afirma que poucas das características

analisadas se estendem até a segunda metade do século 16, outras não vão além da

primeira metade do século 15 e há ainda as que desaparecem no fim do século 14. Outros

dados como a colocação dos clíticos, os anafóricos “ende” e “hi” e o comportamento do

vocábulo “homem” oriundos dos trabalhos de Martins (2002), Machado Filho (2004) e

Lopes (2005) (cf. MATTOS E SILVA 2006:108-111), respectivamente, ocorrem em meados do

século 16, o que leva a autora a concluir que este momento, em termos intralinguísticos, é o

melhor para delinear o fim do período arcaico do Português. Todavia, chamamos atenção ao

fato de que, assim como nas propostas apresentadas na Tabela 1, o período entre os

séculos 14 e 15, na análise de Mattos e Silva, é também um momento de mudanças na

língua.

Os períodos que sucedem o Português Arcaico são, segundo os autores citados, ou

divididos em Português Clássico e Português Moderno (como o faz Cuesta e Lindley Cintra)

ou são agrupados em um único grande período chamado de Português Moderno. O período

clássico seria uma fase intermediária entre a língua medieval e a língua moderna, delimitado

pelos autores que utilizam tal nomenclatura entre o século 18 e o 19. O Português

Moderno caracteriza a língua usada a partir do século 19 em diante.

Em relação às diferentes propostas expostas na Tabela 4, Galves (2010:2) chama a

atenção para a questão da nomenclatura utilizada pelos autores mencionados:

“(...) olhemos agora para o termo escolhido por cada um para definir a segunda parte da primeira fase. Serafim da Silva Neto a chama de “português comum,” Pilar Vasquez‐Cuesta de “português pré‐clássico” e Lindley Cintra de “português médio”. (...) É interessante ressaltar o termo de “português pré‐clássico” proposto por Pilar Vasquez Cuesta. Nele, temos a ideia inovadora de que se trata de um período que, em lugar de

43

terminar um ciclo, prenuncia o seguinte. É uma inversão de perspectiva, que deixa de dar ao séc. 16 o valor de limite forte (...)”. Galves (2010:2)

Tal inversão de perspectiva, mencionada pela autora, lança mão da seguinte

discussão: para os estudos tradicionais, um período histórico da língua termina quando uma

dada mudança linguística é concluída. Galves (2010) chama atenção ao fato de Pilar

Vasquez-Cuesta inverter esta perspectiva, uma vez que trata do período pré-clássico como

um período precursor daquele que está por vir, ou seja, o período Clássico. Isto

possivelmente faz alusão ao fato de, já no período pré-clássico ocorrerem indícios de

mudanças que serão concluídas nos séculos seguintes.

Levando em conta uma abordagem que trata a emergência de um novo período da

língua com base no surgimento de novos fenômenos linguísticos, uma proposta distinta, à

luz da Teoria Gerativa, é sugerida por Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005) e Galves

(2007, 2010), a partir da análise de distintos fenômenos sintáticos como a colocação

pronominal, a interpolação de constituintes na sentença e a ordem sujeito-verbo. Partindo

do conceito de Língua-I e de que um novo período seria aquele que apresenta uma

gramática diferente da do período anterior, ou seja, uma gramática que apresenta valores

diferentes para os parâmetros fixados na gramática da geração anterior (cf. LIGHTFOOT

1991, 1999), as autoras propõem que o Português seja dividido em quatro períodos:

Português Arcaico (dos primeiros documentos até meados do século 14), Português Médio

(até o início do 18), Português Europeu Moderno e Português Brasileiro (que constituem

duas gramáticas distintas a partir do começo do século 18). As evidências sintáticas

consideradas para esta proposta de periodização são resumidas como segue:

a) Português Arcaico: alternância ênclise/próclise, com tendência à ênclise;

possibilidade de não-contiguidade clítico-verbo em afirmativas (interpolação

arcaica); ordem básica VS, apresentando, portanto, sintaxe V2;

b) Português Médio: alternância ênclise/próclise, com tendência à próclise;

possibilidade de não-contiguidade clítico-verbo em afirmativas (interpolação média);

ordem básica VS (sintaxe V2);

c) Português Europeu Moderno: ênclise categórica; obrigatoriedade da contiguidade

clítico-verbo em afirmativas; ordem básica SV.

O critério utilizado por Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005) e Galves (2007,

2010), baseado em dados linguísticos, isto é, em dados de Lingua-E, seria relevante para

44

esta Dissertação, uma vez que utiliza os mesmos pressupostos teóricos aqui adotados. Ao

trabalharem com o conceito de que a mudança linguística se instaura no processo de

aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1991, 1999), a data de nascimento do autor é levada

em consideração em sua proposta de periodização e não, como as abordagens tradicionais,

a data de elaboração do texto. Contudo, ainda que consideremos esta proposta de

periodização, optamos, nesta Dissertação, por utilizar a proposta tradicional, que considera

os séculos 13 ao 16 como o período dito Arcaico do Português.

Tal opção foi feita em função do corpus utilizado, e da datação adotada no mesmo.

Diferente dos documentos utilizados pelas autoras para sua proposta de periodização, que

levam em conta a data de nascimento dos autores dos documentos, os textos utilizados

nesta pesquisa são datados com base no ano em que foram escritos. Galves, Namiuti e

Paixão de Sousa (2005) e Galves (2007, 2010) utilizam como aporte teórico um modelo de

mudança em que esta ocorre no período de aquisição da linguagem pelo falante. A

mudança ocorre, pois, quando o falante de uma dada geração adquire uma Língua-I

diferente da língua da geração anterior à sua, cuja fala lhe serviu de input. Contudo, quando

se trata de mudança linguística, é necessária a observação da Língua-E para chegar à Língua-

I. Para tanto, necessita-se a utilização de corpora.

Uma mudança ocorrida na Língua-I de uma dada população de falantes será visível,

em algum período histórico, nos documentos escritos deixados por esta geração. Deste

modo, quando observamos um certo aspecto linguístico em um documento, que se

comporta de maneira diferente de um documento de data anterior, estamos fazendo uso de

dados da Língua-E – um documento escrito, neste caso – para capturar uma mudança na

Língua-I. Ao utilizar o ano de nascimento dos autores da documentação utilizada como

critério de datação para a periodização do Português, é possível localizar em que época uma

mudança linguística ocorreu. No que concerne esta pesquisa, ainda que que seja possível

sugerir a data de nascimento do autor com base no ano em que o texto foi escrito, optamos

por não fazê-lo, uma vez que alguns documentos não apresentavam o ano exato de sua

escritura. Porém, da mesma maneira que o fazem Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005)

e Galves (2007, 2010), ainda que os objetivos da pesquisa de base gerativista seja

fundamentado em questões que levem à compreensão do funcionamento da Língua-I e de

sua aquisição, nos utilizamos, aqui, também, da Língua-E para alcançar mudanças ocorridas

na Língua-I.

45

2.2.4. Procedimentos metodológicos

A análise realizada neste estudo foi feita com base na observação e descrição dos

dados encontrados, de acordo com o comportamento das construções estudadas, isto é, se

trata-se de uma construção possessiva formada pelos verbos ter/haver seguidos de PTP ou

se trata-se da construção já gramaticalizada, a de tempo composto.

No que respeita os procedimentos metodológicos adotados na análise quantitativa

desta investigação, foi seguida a metodologia descrita abaixo:

(i) Coleta dos dados;

(ii) Codificação dos dados de acordo com os grupos de fatores controlados;

(iii) Tratamento dos dados pelo programa estatístico-computacional GoldVarb X

(SANKOFF, TAGLIAMONTE e SMITH 2012) para a obtenção dos valores

percentuais das categorias controladas;

(iv) Descrição dos dados.

A realização da coleta de dados foi feita de forma manual. Após a seleção dos

textos que seriam utilizados como corpus da pesquisa, os mesmos foram lidos

integralmente a fim de encontrar dados empíricos para o trabalho, isto é, construções

participiais com ter e haver tanto em suas formas plenas quanto na forma já gramaticalizada

como auxiliar. Como as construções podiam ocorrer com diversos tipos de verbos no

particípio, além de haver, frequentemente, variação na grafia destes verbos20, optou-se pela

leitura integral dos textos e busca manual dos dados, ao invés de utilizar qualquer tipo de

mecanismo de busca automática. Para garantir que todas as construções que interessassem

à pesquisa fossem encontradas, todos os textos foram lidos repetidas vezes.

Após a recolha, a codificação dos dados das perífrases formadas por ter/haver +

PTP foi realizada de acordo com os grupos de fatores controlados, descritos a seguir:

Tipo de verbo: se a estrutura é formada com o verbo ter ou haver.

a) Ter

20 Por exemplo, para a forma haver foram encontradas as seguintes grafias: aver, aaver, ouve, ouvera, ouvera~, avia, avja, avya~, hej, ej etc. Para ter, encontraram-se formas como teer, tevessem, te~endo, teve, tiinha, tinham, tiinha~, tem.Alem disso, não se podia prever com certeza com quais formas participais estes verbos podiam ocorrer, portanto, optou-se pela busca manual.

46

(...) e d esta´ tomada na~o contente com a vitoria que ate ly tinha alcançada fez

muita gente prestes de pe e de cavalo. (CRB16-001 – Crónica dos Reis de Bisnaga;

século 16)

b) Haver

Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as

posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de

Graada. (CA14-001 – Crónica de D. Afonso X; século 14)

Flexão de número do complemento com o qual o PTP concorda/concordaria

a) Singular

El rey do~ Enrryque se escusou, dize~do que el rey do~ Pedro avya perdido o reyno

por suas cruezas e maaos feytos, e que ele fora elegido por todollos prelados,

fidalgos e çidada~aos dos reynos de Castella. (CA14-031 – Crónica de Afonso X;

século 14)

b) Plural

E foy feita co~ condiça~ que el rey d' Arago~ lançasse fora de seu reyno o conde do~

Enrryque e do~ Tello e do Sancho, seus irma~aos, e que el rey de Castela entregasse

todollos castellos que tiinha tomados a el rey d' Arago~. (CA14-030 – Crónica de

Afonso X; século 14)

c) Pronome interrogativo ou substantivo sem antecedente; complemento nulo [Ø]

"Eu nom me guabo que aja cobrado o q(ue) desejo, mes vou semp(re) por acallçar o

gualardom". (CP15-029 – Castelo Perigoso; século 15)

(...) e depois de ter ysto feyto, tiramdo aos costumes de seu pay, e llamçamdo se as

molheres, na~o queremdo saber cousa de seu reynno mais que os viços em que se

delleitava, estava muito d asento nesta cidade. (CRB16-015 – Crónica dos Reis d

Bisnaga; século 16)

E dize~ que [Ø] ouvero~ começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os

home~es começava~ de povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos quaaes

el rey no~ curava seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século 14)

47

Gênero do complemento com o qual o PTP concorda/concordaria

a) Feminino

E os pees bem firmes, dobrados, assy que lhe pareça que tem as estrebeiras filhadas

com elles, baixando os calcanhares, teendo porem em todo hu~u~ geito igual como

ja disse, nom sse desemparando assy no seer da sella que afroxe as pernas e leixe de

firmar os pees. (LBE15-005 – Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século

15)

b) Masculino

costume he q(ue) sse algue~ ten o Mayordomo pegnorado por deuida d'algue~ &

ue~ ao Co~çelho o pegnorado & pede a entrega & q(ue)r ffazer dereyto sse for

reygado q(ue) o entregue~ & ffaça dereyto & sse no~ for areygado no~ lha

entregue~ & sse o algue~ areygar entregue~-no & responda & o q(ue) asy areyga~ o

q(ue) o areyga a´ tal dema~da asy co~me o deuidor. (CS13-002 – Dos Costumes de

Santarém; século 13)

c) Sem gênero (para os casos enumerados na letra c acima)

A est(e) estado viiria asinha quem tevesseesc(ri)pta [Ø] em seu coraçom e se

rrecordasseamehu´de da grande homildade e maravilhossasofrença e infiinda

pobreza de Jh(es)u (Christ)o que morreo em na cruz todo nuu por no´s. (CP15-007 –

Castelo Perigoso; século 15)

Concordância: se o complemento direto do particípio concorda ou não.

a) Com concordância

E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e| nono

possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou a

ffaz(er) e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001 – Foro Real de

Afonso X; século 13)

b) Sem concordância

Se alguu d(e)mandar outro en iuyzo e o demandador lhy teu(er) forçado algu~a

cousa, ben se pod(e) deffender de lly no~ responder ata que o entrege daq(ui)llo

48

q(ue) lhy teu(er) forçado e non entre en iuyzo cono forçador ameos de seer

entregado. (FR13-004 – Foro Real de Afonso X; século 13)

c) Concordância não aplicável (para os casos enumerados em 3c)

Ora, avees ouvido [?] como ha´ paz com D(eu)s, que hehu~a das #IIII q(ue)

p(er)teenceant(e) q(ue) homem possa seguramente edeficar seu castello. (CP15-006

– Castelo Perigoso; século 15)

Tipo de concordância

a) Gênero

elrey faz muito gramde honrra ao que daa a beijar os pees, porque as ma~os na~o

daa a beijar a nenhu~a pesoa, e asy quoamdo quer contentar os capita~es, ou

pesoas de quem tem recebidos, ou quer receber serviço, da lhe pachari pera suas

pessoas, que he muita honrra (CRB16-061 – Crónica dos Rei de Bisnaga; século 16)

b) Número

(...) las g(r)andes gerras q(ue) ouuo ent(r)e os señor(e)s com(m)o esso meesmo

pl(ey)tos et letigios entre los abbades q(ue) ouuo em este m(osteyr)o moy longos

t(en)pos por lo q(u)al ouuo reçebidas g(r)andes p(er)das et danos (...) (TN15-014 –

Textos Notariais in HGP; século 15)

c) Gênero e número

"Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua

voontade e e´s metida em tuas çujasforniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te

rrecebereidocem[en]t(e)". (CP15-009 – Castelo Periogoso; século 15)

d) Não aplicável (para os casos em que não há concordância)

Hoovo´s, devotas c(re)aturas que avees cuidado da vossa sau´de, esguardaae a

desposiçom do co(r)po do vosso amigo! (CP15-019 – Castelo Perigoso; século 15)

e) Não identificável (para os casos enumerados em 3c)

49

E, veendo os mouros de Xarez que avyam tempo en que lhe el rey non podia fazer

estorvo pera o que elles tiinham pe~sado, cercaron no alcacer da villa Garçia Gomez

Carrilho co~ os que con el estavom. (CA14-016 – Crónica de Afonso X; século 14)

Realização do complemento - Ordem

a) N V PTP21

Que quem em D(eu)s met(e) seu coraçom, D(eu)s po~e o seu em elle e lhe da´ força

e tal coraçom, que ne~hu~a cousa o agrava, que faça por seu |seu| S(e)n(h)or e

Amigo, que a alma e o corpo e o coraçom ha´ dado polloaver em sua companhia.

(CP15-003 – Castelo Perigoso; século 15)

b) V N PTP

E el rey dom Afonsso outorgoulhe esto e deu aaquel rey mouro terra e que vivesse

en toda sa vida, a qual foy esta: o logar d'Algaba que he acerca de Sevilha, con

todollos dereitos que el rey hy avya e con o dizemo do azeite daly; e deulhe a orta de

Sevilha que chama~ a orta del rey; e rendas certas de maravidiis na judarya de

Sevilha e outras cousas en que este rey Abemafomad ouve ma~tiime~to honrrado

en toda sa vida (CA14-013 – Crónica de Afonso X; século 14)

c) V PTP N

E tem afastado outro mays de sy d esta maneyra [...] (CRB16-071 – Crónica dos Reis

de Bisnaga; século 16)

d) Complemento relativizado, pronome interrogativo ou substantivo, CP, InfP

E deulhe este logar de Telhada e outros que avya guaanhados por termo e partio

daly e veosse a Tolledo. (CA14-002 – Crónica de Afonso X; século 14)

e) N nulo

E o sobred(i)to oliual q(ue) out(ro)ssy A uya~ no sobred(i)to val de Roy ve´egas

co~mo p(ar)tem p(e)las sobred(i)tas dyuysoes de suso declaradas por as sobred(i)tas

21 N corresponde ao complemento; V ao verbo (ter ou haver).

50

vinha (e) oli´ual (e) ca~po (e) mato q(ue) lhys Assy os sobred(i)tos P(ri)or (e)

Raçoeyros e~ nom(e) da d(i)ta Eig(re)i´a de sam B(er)tholam(eu) escambhadas (e)

p(e)la g(ui)sa q(ue) suso d(i)to he (e) declarado e~ escambho dadas (e) outo(r)gadas

Auya~, (TN14-011 – Textos Notariais in DN; século 14)

Período: se século 13, 14, 15 ou 16.

a) Século 13

E por istes tortos que li fecer(u~) tem q(u)a a seu plazo quebra~tado e q(u)a li o

deue~ por sanar. (NT13-002 – Notícias do Torto; século 13)

b) Século 14

E leixou Joha~ Fernandez de Fenastrosa por fronteyro e~ Taraçona e outros

cavaleyros e ge~tes pelas vilas e castelos que em Arago~ tiinha tomados. (CA14-026

– Crónica dos Reis de Bisnaga; século 14)

c) Século 15

Ora tornem(os) a nossa mate´ria, que avemosleixada. (CP15-002 – Castelo Perigoso;

século 15)

d) Século 16

(...) e determinamdo a fazer guerra ao rey de Bisnaga, e metello debaixo do seu

senhorio, passou as terras que novamente tinha ganhadas entramdo per as d el rey

de Bisnaga (CRB16-002 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

Uma vez codificados, os dados foram submetidos ao programa estatístico-

computacional GoldVarb X (SANKOFF, TAGLIAMONTE e SMITH 2012) para a obtenção dos

valores percentuais dos grupos de fatores controlados. Após a rodagem dos dados, seguiu a

descrição dos mesmos.

51

3. Capítulo 3:

Análise dos dados

3.1 Apresentação do capítulo

Como visto nos capítulos anteriores desta Dissertação, as perífrases formadas por

ter/haver + PTP eram, até os séculos 14/15 (RIBEIRO 1993; MATTOS E SILVA 2002; ALMEIDA

2006; MEDEIROS 2012) construções transitivas-predicativas em que ter e haver se

comportavam como verbos plenos com valor semântico de posse e selecionavam como

complemento um NP e um PTP de caráter adjetivo. Após uma mudança considerada,

geralmente, como um caso de gramaticalização (RIBEIRO 1993; VIOTTI 1996; ALMEIDA

2006; MEDEIROS 2012), ter e haver passam de verbos plenos a verbos auxiliares e o PTP que

integra este tipo de construções é reinterpretado como um verbo, sendo este o predicador

das estruturas em questão.

Neste capítulo apresentaremos a análise dos dados obtidos neste estudo. Deste

modo, consideraremos a mudança pela qual passaram as construções de ter/haver + PTP

em Português como um caso de gramaticalização, com base no modelo de Roberts &

Roussou (2003), exposto no capítulo anterior. Para tanto, descreveremos o processo de

gramaticalização pelo qual passaram as construções em questão, tratando (i) da passagem

de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares e (ii) da reinterpretação dos PTPs de

adjetivos a verbos.

O capítulo está organizado como segue. Na seção 3.2, será apresentado o percurso

de ter e haver em direção à auxiliaridade, de acordo com a literatura revista e os dados

obtidos neste estudo; na seção seguinte, 3.3 será feita uma descrição dos PTPs em

Português, desde sua origem até sua integração nos tempos compostos perfectivos do

Português. A seção 3.4 traz evidências quantitativas e qualitativas para a gramaticalização

de ter e haver, discutindo o comportamento destes verbos nas construções em questão, de

acordo com o quadro de gramaticalização adotado, bem como os fatores morfossintáticos

relevantes para a implementação da mudança que resultou na emergência dos tempos

compostos em Português.

52

3.2 Ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares

Os estudos linguísticos frequentemente distinguem três tipos de verbos: (i) verbos

plenos ou principais, (ii) verbos de cópula ou verbos de ligação e (iii) verbos auxiliares.

Duarte (2003) define os três tipos de verbo com base nas relações que estabelecem na

sentença. Segundo a autora, o esquema relacional, isto é, os possíveis padrões de

organização sintática das sentenças de cada frase, depende das propriedades dos verbos

presentes na mesma. Deste modo é possível distinguir três grandes subclasses de verbos,

com base nas propriedades de seleção categorial e semântica de cada item lexical verbal.

Para o presente estudo interessam-nos a descrição dos verbos plenos e a dos verbos

auxiliares dada pela autora.

Os chamados verbos principais ou plenos formam o núcleo semântico de uma

oração. São núcleos lexicais plenos, caracterizados por determinadas propriedades de

seleção semântica (número de argumentos e papeis temáticos correspondentes) e sintática

(categoria de cada argumento e a relação gramatical que assumem dentro da oração). Com

base no número de argumentos que selecionam, os verbos principais podem ser divididos

em transitivos, ditransitivos, transitivos de dois lugares, transitivos de três lugares,

transitivos-predicativos, inergativos, inacusativos e verbos de zero lugares (cf. DUARTE

2003:296-302). Nas construções que interessam à este estudo, ter e haver, antes do

processo de gramaticalização, se comportam como verbos transitivos-predicativos,

selecionando como complemento, categoricamente, uma SC formada por um objeto direto

e um predicativo deste objeto.

Em relação aos verbos auxiliares, Duarte (2003:303) afirma que “as orações em que

ocorrem verbos auxiliares apresentam sequências verbais formadas pelo menos por dois

verbos: o verbo auxiliar e o verbo auxiliado. Uma vez que o português é uma língua núcleo-

inicial22, o verbo auxiliar precede o verbo auxiliado com que se combina”. Devido ao fato de

não possuírem conteúdo lexical, ao contrário dos verbos plenos, os verbos auxiliares não

apresentam propriedades de seleção semântica. Deste modo, o NP que ocorre com a

22 Dois parâmetros da ordem básica de palavras podem ser fixados no período de aquisição da linguagem pelas crianças: o parâmetro do núcleo inicial e o parâmetro do núcleo final. Em uma língua de núcleo inicial o núcleo, i.e., o elemento cujos traços semânticos e formais (como, por exemplo, traços de concordância) são dominantes, ocorre no início do sintagma. Em línguas de núcleo final este ocorre no final do sintagma. O Português é classificado como uma língua núcleo inicial, cuja ordem predominante é a sequência SVO.

53

relação gramatical de sujeito em frases com verbos auxiliares faz parte do predicado

organizado em torno do verbo auxiliado. Em construções com verbos auxiliares, o NP sujeito

é selecionado semanticamente pelo verbo auxiliado. Conclui a autora que esta subclasse

verbal se caracteriza por não possuir grade temática e por subcategorizar um complemento

de natureza verbal, um VP.

Castilho (2012) classifica os verbos em verbos plenos, verbos funcionais e verbos

auxiliares. Os verbos ditos plenos são aqueles que funcionam como núcleos da sentença,

selecionando argumentos e atribuindo-lhes papeis temáticos. Os verbos funcionais

representam a classe dos verbos que transferem o papel temático aos constituintes que se

posicionam à sua direita, “reduzindo-se a portadores de marcas morfológicas e

especializando-se na constituição de sentenças apresentacionais, atributivas e equativas”

(CASTILHO 2012:397). Por fim, os verbos auxiliares são os que desempenham papel

semelhante ao dos verbos funcionais, com a diferença de que à sua direita ocorrem verbos

plenos em sua forma nominal, aos quais os auxiliares atribuem categorias de pessoa e

número, funcionando meramente como indicadores de aspecto, tempo, voz e modo.

Segundo o autor, “o fenômeno mais interessante na gramaticalização é a sua

migração de verbo pleno para verbo funcional e deste para verbo auxiliar” (CASTILHO

2012:397). A passagem de verbos plenos a auxiliares pode ser resumida na seguinte escala:

verbo pleno > verbo funcional > verbo auxiliar23

Em relação à passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, Castilho (2012)

afirma que, enquanto estes funcionam como verbos plenos com conteúdo semântico de

posse, selecionam um sujeito possuidor e um objeto direto. Segundo o autor, em Latim

tenere (ter) significava “ter em suas mãos, possuir”, enquanto habere (haver) significava “ter

em sua posse, ser dono, guardar”. A gramaticalização de ter/haver em auxiliares de tempo

composto perfectivo ocorre a partir dos contextos em que estes verbos selecionam um

objeto direto seguido de um predicativo deste objeto, expresso por um PTP, isto é, uma SC.

Tal sintaxe tem origem no Latim Vulgar e, segundo o autor, foi atestada também no Latim

Medieval. Observem-se os exemplos abaixo em (1):

(1) Formação do pretérito perfeito composto (CASTILHO 2012:405)

Habeo epistolam scriptam.

23 Considere-se que a escala proposta não indica uma sequência obrigatória no processo de gramaticalização.

54

No exemplo em (1), habeo exprime sentido de posse, como um verbo pleno. Neste

exemplo, a sentença tem o sentido de tenho uma carta escrita e não tenho escrito uma

carta, portanto uma perífrase de caráter adjetivo. Do ponto de vista sintático, habeo vem

seguido de dois complementos: o objeto direto epistolam e o PTP scriptam:

(1’) Habeo epistolam scriptam. (CASTILHO 2012:406)

Haver (1PS) carta (acusativo) escrita (acusativo)

Segundo Castilho (2012), no contexto acima, o PTP scriptam é ambíguo do ponto

de vista sintático, uma vez que pode ser interpretado como verbo ou como adjetivo. Na

primeira interpretação, tem o sentido de uma passiva (a carta foi escrita); na segunda,

expressa um estado (a carta está em um estado de ser escrita). A primeira paráfrase indica

que o processo de escrita da carta se dá no momento presente; a segunda explicita o estado

resultante deste processo. Nos exemplos (1), (1’), o verbo habeo rege a SC com núcleo

adjetival. O sujeito do PTP, neste contexto, funciona como o objeto direto de habeo. De

acordo com o autor, como nos exemplos acima o predicativo concorda com o objeto direto,

eram frequentes no PA e no Português Clássico ocorrências como as do Latim.

Em relação à mudança que resultou nos tempos compostos de valor perfectivo em

Português, Castilho (2012) afirma que estas estruturas passaram a mudar no seguinte ritmo:

fase 1: [verbo + objeto direto + predicativo] > fase 2: [verbo + predicativo + objeto direto],

isto é, tenho uma carta escrita > tenho escrito uma carta.

Na fase 1, o PTP concordava com o objeto direto. Na fase 2, o PTP ocorre adjacente

a ter/haver e perde o traço de concordância com o objeto direto, ocorrendo uma reanálise

da fase 1. Nesta segunda fase, perde-se também o valor semântico de posse e a de “um

presente que se referia ao passado, ganhando-se a noção de um passado que se refere ao

presente” (CASTILHO 2012:406). Segundo o autor, a mudança do enfoque temporal pode

ter resultado na gramaticalização de ter/haver e do PTP: “o valor de tempo presente

procede de ter/haver, que passam a auxiliares; o valor de tempo passado procede do PTP,

que passa a ocupar o núcleo do predicado (...). O Português preservou a noção de passado

que se estende ao presente: tenho dito significa ‘disse’ e ‘continuo dizendo’” (CASTILHO

2012:406-407).

Ao tratar da mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, Ribeiro (1993),

com base no modelo de gramaticalização de Roberts (1992) e na tipologia de verbos

locativos de Clark (1976), também propõe que a estrutura básica de ter e haver nas

55

construções perifrásticas com PTP (estendendo sua análise também para as estruturas com

o verbo ser) é constituída por uma SC, formada por um objeto direto e o predicativo deste

objeto.

Em sua análise, Ribeiro (1993) aponta que o particípio latino teve origem em uma

forma puramente adjetival. Vincent (1982 cf. RIBEIRO 1993) destaca que já no Latim Clássico

(e também no Latim Vulgar), habere ocorria em construções participiais em que o PTP

expressava propriedades ou atributos dos nomes e objetos aos quais se associava. Na

concepção de Ribeiro (1993), as construções formadas por habere + PTP, apesar de

envolverem um sentido exclusivamente passivo, não definiam nenhum tipo de relação

temporal com o seu complemento. As perífrases deste tipo serviam para indicar uma

relação aspectual de um evento concluído ou durativo.

Para a autora, nestas construções, habere impunha um traço passivo ao PTP, mas o

agente da passiva estava, geralmente, omisso, o que permitia duas interpretações da

sentença (2), abaixo:

(2) “in ea provincia pecunias magnas collocatas habent” (Cicero – cf. RIBEIRO 1993: 364)

Em (2) o sujeito de habere pode ou não ser o agente da passiva. Segundo a autora,

o fato de o sujeito de habere e o agente da passiva poderem ter referenciais distintos pode

implicar que habere era um atribuidor de papel temático ao NP sujeito, isto é, um possuidor.

Já o NP complemento pode receber papel temático de tema. Tais conclusões levam a autora

a analisar o verbo habere, nestes tipos de construção, como um verbo pleno que seleciona

um complemento IP contendo um PTP passivo. Em exemplos como (2), habere ainda não

teria sido gramaticalizado como verbo auxiliar aspectual nas construções com PTP do Latim.

Ribeiro (1993) trata a passagem de haver de verbo pleno a auxiliar em termos de

uma Reanálise Diacrônica (RD, cf. ROBERTS 1992). Sua análise se baseia em Lyons (1967,

1968 cf. RIBEIRO 1993) e em Clark (1978), que propõem que as construções existenciais,

locativas e possessivas estão relacionadas, por serem todas originalmente locativas. Tais

construções descrevem a localização de um objeto ou de um ser animado em algum espaço

físico ou na posse de alguém. Deste modo, todas estas construções apresentam um objeto

possuído e um possuidor, este último sendo analisado como um sintagma locativo que

contém o traço +animado. Com base nisto, a autora propõe que ser e haver, por um lado, e

56

ter, por outro, apresentam no PA propriedades distintas nas construções com PTP, sendo

ser e haver verbos auxiliares temporais e ter um verbo que seleciona um complemento

passivo/aspectual.

Como visto acima, Clark (1976) propõe que as construções existenciais, locativas e

possessivas estão relacionadas, pois todas têm como origem comum as construções

locativas. Tal relação se justifica no fato de todas essas construções descreverem a

localização de um objeto ou de um ser animado em um dado espaço físico ou na posse de

alguém. Segundo a autora, as construções exemplificadas abaixo possuem superficialmente

os mesmos constituintes:

(3) Construções locativas (cf. CLARK 1976:87)

a. Existencial: There is a book on the table. Il y a un livre sur la table.

b. Locativa: The book is on the table. Le livre est sur la table.

c. Posse1: Tom has a book. Jean a un livre.

d. Posse2: The book is Tom’s. Le livre est à Jean.

Para Clark (1976) tanto a quanto b possuem um sintagma nominal (a book/um livre

e the book/le livre) e um sintagma locativo (on the table/sur la table), mas suas ordens de

palavras são diferentes. Do mesmo modo, tanto c quanto d contêm um sintagma nominal

que se refere ao objeto possuído (a book/um livre e the book/le livre) e um sintagma

locativo na forma de um possuidor (Tom). Cada um destes constituintes é usado para

descrever a localização de um objeto, seja em um espaço físico (a e b), seja na possessão de

um indivíduo (c e d).

A proposta de Clark (1976) se estende aos verbos que compõem as construções

locativas, que atuam também como auxiliares nas construções perifrásticas em geral.

Segundo Guéron (1986) e Kato & Nascimento (1990), ambos citados em Ribeiro (1993:356),

os verbos das construções locativas funcionam como verbos inacusativos que selecionam

uma SC, à qual não designam papel temático. Guéron, que estuda o emprego de avoir

(ter/haver) no Francês nas construções existenciais, possessivas e perifrásticas (de tempo

composto), propõe que estas apresentam a mesma estrutura sintática, em que avoir

seleciona como complemento uma SC, formada por dois NPs. Seguindo as proposta de

57

Guéron e Kato e Nascimento, Ribeiro assume que as construções com ser/ter/haver

apresentam a mesma estrutura, representada simplificadamente na Figura (3), abaixo.

Figura 5: Estrutura das construções com ser/ter/haver + PTP em PA (RIBEIRO 1993:357)

Segundo Ribeiro (1993), nas construções existenciais ser/haver selecionam uma SC

com valor semântico aspectual, denotando um estado. Nestas construções, NP1 é um

quantificador existencial e funciona como um operador locativo que licencia o predicado

estrutural, que é o NP2 indefinido que ocorre nestas estruturas, como se observa no

exemplo abaixo de uma construção existencial com haver, retirado de Ribeiro (1993:357):

(5) E á hi aguas mui frias e mui fremosas

E [á] [hi] [aguas mui frias e mui fremosas]

haver NP1 NP2

Segundo a autora, nas construções existenciais ser e haver podem ser vistos como

auxiliares verbais, por não estarem associados a um papel temático lexical. O traço

LOCATIVO, que é um papel temático secundário, preenchido, no exemplo (5), pelo NP1 hi ou

pelo PTP nas construções possessivas não conta como argumento lexical do verbo.

A diferença essencial entre as construções existenciais e possessivas está no fato de

o operador da estrutura possessiva ser um NP +animado e +afetado. Neste caso o papel

temático pode ser realizado como um clítico dativo, por um complemento preposicional ou

por um NP possuidor da posse. O papel temático BENEFACTIVO (do NP, que porta o traço

+afetado) não é lexicalmente determinado nem obrigatório e, portanto, não conta para o

58

Critério Temático24. Deste modo a atribuição de BENEFACTIVO não altera o estatuto

sintático do verbo nas construções possessivas.

A partir das generalizações de Clark (1976), vistas em (3), acima, Ribeiro (1993)

observa que haver (e também ser) é o verbo das estruturas de posse1 do PA (que seriam as

estruturas de posse com objetos/qualidades imateriais adquiridas vistas em Mattos e Silva

1992, 2002). A ocorrência deste verbo nestas estruturas indica que haver se comporta como

um auxiliar verbal. Neste caso o NP BENEFACTIVO que desempenha o papel de sujeito

nestas construções não é um argumento do verbo, mas um operador que liga o NP2

indefinido. Uma vez que o NP2 não ocupa uma posição temática, ele só pode apresentar

valor referencial se estiver sob domínio de um operador, BENEFACTIVO nas construções

possessivas, e LOCATIVO, nas existenciais.

De acordo com Ribeiro (1993) a única diferença entre ter e haver nas estruturas de

posse1 está no fato de haver ser o verbo prototípico das posses inerentes ou inalienáveis.

Os verbos que ocorrem nas construções de posse1 funcionam como auxiliares funcionais e

não selecionam papeis temáticos primários; deste modo, a autora considera que haver já

funcionava no PA como um auxiliar funcional, ao lado de construções com PTP em que

funcionava como um verbo pleno. Quando ter assume os contextos antes atribuídos à

haver, se gramaticaliza também como auxiliar funcional, passando a operar nos dois tipos

de construção.

Em relação à gramaticalização dos verbos em questão no PA, Ribeiro (1993) afirma

que a reanálise de haver como verbo auxiliar só ocorre quando há a perda da restrição do

traço +transitivo do PTP nas construções perifrásticas perfectivas, isto é, quando haver

passa a ocorrer também com PTP intransitivos e ergativos, o que teria ocorrido no século

15, não sendo a presença ou a ausência de concordância do PTP com o NP complemento um

elemento definidor da emergência dos tempos compostos25. Contudo, diferentemente da

autora, nesta Dissertação consideramos a concordância como um elemento essencial na

24 Resumidamente, o Critério Temático determina que cada NP referencial deve receber um papel temático (cf. CHOMSKY 1981/1982 apud RIBEIRO 1993). 25 Ribeiro (1993) justifica o fato de a presença ou ausência de concordância não ser um elemento definidor da emergência dos tempos compostos usando como exemplo o Francês: “os tempos compostos com être + PtP do francês apresentam até hoje concordância sistemática entre esses dois elementos, assim como algumas das construções com o auxiliar temporal avoir” (RIBEIRO1993:366).

59

reanálise das estruturas adjetivas como estruturas de tempos compostos. Observem-se os

exemplos em (16), abaixo, retirados de Ribeiro (1993:367):

(6) a. jumtarsse em magotes a fallar na morte do Comde e cousas que aviam aconteçido

(CDJI, Cap. XIV)

b. omde o Prior com seus irmaãos aviam estomçe chegado (CDJI, Cap. XXXIX)

c. os trautos que antrelle e os de Portugal avia firmados (CDJI, Cap. LVII)

d. dizendo que vira a carta do Comçelho da obra muito de louvor que todos aviam

feita por serviço de Deos e homrra do rreino e de sua pessoa (CDJI, Cap. XLIV)

e. Acabado esto que avees ouvido (CDJI, Cap. XLII)

f. pollas menagees que lhe aviam feitas segumdo nos trautos era comtheudo (CDJI,

Cap. XXXVI)

g. Oo treedor! Vendido nos as! (CDJI, Cap. CII)

Como os exemplos acima mostram, segundo Ribeiro (1993), a RD de aver como

auxiliar temporal não implica que as estruturas com PTP passivo, i.e., aquelas em que o PTP

concorda com o NP complemento, não possam ocorrer na língua, pois a RD, apesar de levar

a uma simplificação estrutural, não necessariamente exclui as construções reanalisadas da

língua, tornando-as apenas menos frequentes. Desse modo, a autora mostra que as duas

construções podem coocorrer: a, b, e, g são construções com PTPs ativos, enquanto c, d, f

parecem ser passivos (adjetivos) ou são ambíguos, permitindo duas leituras. Por exemplo, a

construção em c pode ou ser interpretada como “(alguém) avia firmado tratos entre ele e os

de Portugal” ou como “(alguém) avia os tratos firmados (= os tratos foram firmados) entre

ele e os de Portugal”.

De acordo com Ribeiro (1993), a gramaticalização de haver como auxiliar no PA deu

origem a uma separação lexical em que este verbo sobrevive apenas nas construções de

posses inerentes26 e nas construções existenciais, as quais passa a integrar posteriormente.

Por outro lado ter sobrevive nas construções de posses materiais relacionadas antes a haver

e amplia seu campo de significados para as construções de posses inerentes, ocupando,

portanto, os contextos antes ocupados por haver também nas construções perifrásticas

26 Ribeiro (1993) utiliza a tipologia de Mattos e Silva (1992, 2002) para qualificar os tipos de posse semanticamente selecionados por ter e haver.

60

perfectivas com PTP. Contudo, como visto acima, existe uma diferença entre as construções

com ter e as com haver + PTP.

Na análise de Ribeiro, ter seleciona um complemento nominal NP e, devido ao fato

de o PTP ser passivo, ter seria capaz de selecionar a voz do particípio. No entanto, nas

construções com ter + PTP, ter não define tempo em relação ao PTP, apesar de definir uma

relação de aspecto, o que a leva a propor que ter, assim como haver, ainda não é auxiliar

nas construções como as em (7), abaixo, retiradas de Ribeiro (1993: 369-170):

(7) a. a hoste dos godos teve cercada aquela meesma cidade de Parusio per sete anos

continuadamente (DSG 3.14.05)

b. E parando el mentes ao manto que tiinha tendudo antr’os braços (DSG 1.19.13)

c. E a mha cabeça já a el ten metuda na sa boca (DSG 4.36.17)

d. e que lhi mostrasse quen era aquel San Beento que aqueles seus bees tiinha

guardados (DSG 2.31.7)

e. huu gram penedo que nascia hi naturalmente e tiinha todo o logar coberto (DSG

1.13.10)

Ribeiro (1993) propõe, então, que, uma vez que em todos os exemplos acima o NP

complemento de ter é +definido, ter é, nestes contextos, um verbo pleno que seleciona um

NP sujeito e atribui um papel temático ao seu complemento. Deste modo, tanto ter quanto

o PTP têm conteúdo lexical e selecionam os papeis temáticos de seus argumentos. Assim, a

autora propõe que ter seleciona como complemento um IP ou um CP, ao qual atribui papel

temático TEMA. O NP complemento deste tipo de construção seria um argumento

selecionado pelo PTP que, por ser passivo, leva esse NP a ser analisado como um argumento

interno do PTP, exercendo a função sintática de sujeito da cláusula passiva.

Do mesmo modo que ocorre com as construções de haver + PTP, a RD de ter como

auxiliar temporal não elimina da língua as construções em que ter é um verbo pleno e seu

PTP é interpretado como uma passiva. Como visto acima, a motivação da RD de ter como

auxiliar está, segundo Ribeiro (1993:373), no fato de este verbo ocorrer também nas

construções de posse inerente: “os verbos que ocorrem nessas construções funcionam

como auxiliares funcionais, possivelmente gerados em I0. (...) mesmo nas posses1 materiais,

61

geralmente indefinidas, o verbo ter seleciona papeis temáticos secundários. Lembramos que

a não-seleção de papeis temáticos primários é uma característica de auxiliaridade”.

O percurso de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares envolveu, como

visto acima, perdas de ordem sintática e semântica. Após o processo de gramaticalização,

ter e haver perdem o conteúdo semântico de posse e deixam de funcionar como núcleos

sentenciais, não mais selecionando argumentos externo e interno, nem atribuindo-lhes

papeis temáticos. Esta função é agora exercida pelos verbos no PTP, que passam a funcionar

como os predicadores das sentenças em questão. Ao se gramaticalizarem, ter e haver

passam a ocorrer na ordem fixa auxiliar-auxiliado, isto é, precedendo o PTP e atribuindo-

lhes categorias de pessoa e número, funcionando apenas como indicadores de aspecto,

tempo e modo.

Em relação à motivação da mudança pela qual passaram os verbos em questão,

assumimos, assim como Castilho (2012), que a gramaticalização de ter/haver em auxiliares

de tempo composto perfectivo ocorreu a partir dos contextos em que estes verbos

selecionam como complemento uma SC. A motivação para a gramaticalização

possivelmente se deu devido à reinterpretação do PTP como verbo. Uma vez que este

elemento é reanalisado como uma categoria verbal e, por conta disso, passa a ser o

predicador das construções perifrásticas em questão, ter e haver perdem esta função,

passando a funcionar apenas como verbos auxiliares de tempo composto.

A observação do corpus permitiu acompanhar a mudança de ter e haver em direção

à auxiliaridade. Em um primeiro estágio, ter/haver funcionam como verbos plenos ou

principais, e são o núcleo semântico da oração. Deste modo, nas construções com PTP,

ter/haver selecionam semanticamente o sujeito da oração, de caráter +animado; como

complemento, selecionam uma SC, formada por um objeto direto e um PTP de caráter

adjetivo. Note-se que foram encontradas também construções participiais em que haver

expressava conteúdo existencial, não selecionando, portanto, um argumento externo, como

veremos mais adiante. Observem-se os exemplos abaixo, de construções com ter e haver

plenos:

(8) E alem de ter esta gente, la tem suas pemsso~is que paga~o a elrey em cada hu~u

anno, tambem elrey tem sua gente hordenada a quem daa soldo, e tem oyto centos

allyfantes de sua pessoa, e quynhemtos cavallos continuadamente na sua estrebarya,e

62

pera estes gastos dos alyfantes e cavallos tem dado as remdas que lhe remde a cidade

de Bisnaga. (CRB16-082; Crónica dos Reis de Bisnaga – século 16)

[el rey] SUJEITO [tem]v [sua gente] OD [hordenada] PREDICATIVO DO OD

(9) Quem assi se humillda sem fingimento e sem buscar o prazer do mundo e que aja em

si esta dobrada homildadeprofundament(e) no coraçomrreiguadae que a mostre aa de

fora p(er) obras, elleha´ as cavas dobradas p(er)a guardar o castello do coraçom.

(CP15-013; Castelo Perigoso – século 15)

[elle] SUJEITO [há]v [as cavas] OD [dobradas] PREDICATIVO DO OD

Em (8) e (9) se observam construções transitivas-predicativas formadas por ter e

haver plenos. Em (8) ter seleciona como complemento a SC [sua gente hordenada], isto é,

um DP [sua gente] e um PTP que modifica este DP, [hordenada]. Neste caso, ter seleciona

um sujeito que deve ser +animado, [el rey], uma vez que, enquanto verbo pleno com

conteúdo semântico de posse, ter necessita de um argumento externo que seja +animado.

A interpretação dada à este tipo de construção é a de que “o rei possui/tem em seu poder

sua gente, e esta gente é/está ordenada”. Em (9) observamos o mesmo padrão. Na

construção elle há as cavas dobradas o verbo haver, com conteúdo semântico de posse,

seleciona como complemento uma SC formada pelo DP [as cavas] e um modificador

[dobradas]. A estrutura predicativa seleciona, por sua vez, um sujeito de caráter +animado,

[elle]. A interpretação que se dá à esta estrutura é “ele possui cavas e estas cavas são/estão

dobradas”.

Note-se que, em ambas as construções a ordem é SUJEITO – VERBO – N (DP) – PTP.

Contudo, diferentemente do que afirma Castilho (2012), a ordem [V NP PTP] não era a única

ordem do primeiro estágio de mudança, ou, na nomenclatura do autor, da fase 1, uma vez

que a ordem dos constituintes da sentença em PA não era muito fixa, ao menos no que

respeita as construções em análise. Eram possíveis ainda, neste estágio, as ordens [N V PTP]

e [V PTP N]. Por hipótese, temos que as ordens que apresentam a sequência [V PTP] teriam

sido aquelas que engatilharam o processo de reanálise, pois, uma vez que o Português é

uma língua núcleo-inicial, o verbo auxiliar deve preceder o verbo auxiliado com que se

combina nas estruturas de tempo composto. Observem-se os exemplos abaixo:

(10) Ordem [N V PTP]

63

a) Quando sse cheguava a ora da sua p(re)ciosa mort(e), veo sua madre, que da

espada da ssua paixom a alma avia t(r)espassada. (CP15-021 – Castelo Perigoso;

século 15)

b) E estava na villa o dicto rey Abenmafomad que a tiinha bem basteçida de muytas

viandas e muy boas gentes. (CA14-009 – Crónica de D. Afonso X, século 14)

(11) Ordem [V PTP N]

a) Isto n(os) he bem figurado no Segundo Liv(r)o dos Rreis, hondehe [e]sc(ri)pto que

Naas Amonites tiinha cerquad(os) os jebes, que erom dos judeus, e rrequererom-lhe

paz.

b) E sse el auia feytas algu~as gaanças, ambos os auoos erde~ ambosd(e) (con)suu

ygalmente as gaaças. (FR13-018 - Foro Real de D. Afonso X, século 13)

No segundo estágio, ou fase, da mudança, há uma construção formada por ter ou

haver, que, por sua vez, funcionam como verbos auxiliares. Nestas construções, os verbos

em questão não mais expressam conteúdo semântico de posse nem funcionam mais como

os predicadores da sentença, papel que passa a ser exercido pelo verbo auxiliado, isto é, o

verbo no PTP. Na construção gramaticalizada, o NP que ocorre com a relação gramatical de

sujeito faz parte do predicado organizado em torno do verbo auxiliado, sendo selecionado

semanticamente pelo PTP. No que respeita à ordem, está é então fixada em [V PTP NP]27;

além disso perdem-se as marcas de concordância do PTP com o complemento. Observem-se

os exemplos abaixo:

(12) E nos Auemos (e) p(ro)metemos a au(er) firme (e) outorgado todalas cousas (e)cada

hu~a ((L014)) delas q(ue) fore~ f(e)ctas pelo d(i)cto nosso p(ro)curador so obligaço~ de

todos nossos be~es (e) do d(i)cto Mon(steiro) (CHP14-005; Textos Notariais in Clíticos

da História de Portugal; século 14)

27 Note-se que, ainda que a ordem prototípica das estruturas de tempo composto perfectivo seja [V PTP], foram encontrados no corpus ocorrências de estruturas em que não havia concordância entre o PTP e o complemento, mas com outra ordem, como, por exemplo, a construção seguinte: Despois de ter elrey feito suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade de Bisnaga con toda a sua gente. (CRB16-032 – Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)

64

[aver]v [firme e outorgado]PTP [todalas cousas]NP

(13) Comuem a saber que porquamto a dita s(enho)ra dona guyomar tem vemdido a Jorge

de sousa q(ue) hora he na India dous moyos (e) meio de trygo da dita fazemda Com

pacto de Retro vemdemdo //(e)// por preço (e) comthia de çemto (e) quaremta (e)

seis mill r(eae)s elle dito s(e)nn(h)or dom amRique ma~dara deposytar em Juizo os

ditos çemto (e) coRemta (e) seis mill r(eae)s pera os aver o dito Jorge de sousa (e)

fficar llyure a dita ffazemda (e) desta maneira os ha ella dita s(enho)ra dona guyomar

por Reçebidos em sy. (DN16-005; Documentos Notariais; século 16)

[tem]v [vendido] PTP [dous moyos e meio de trigo]PTP

Como se pode observar, no exemplo (12), temos o verbo haver seguido de dois

PTPs, sendo um irregular, firme (em oposição a firmado), e um regular, outorgado e um

complemento todas las cousas. Note-se que não é documentada a concordância entre o PTP

e o complemento, evidência de que o PTP não é mais interpretado como um adjetivo, e sim

como um verbo. Como veremos mais adiante, a perda das marcas flexionais de

concordância, quando presentes, é uma consequência do processo de reanálise diacrônica

(cf. Roberts & Roussou 2003). Deste modo, isto, associado à fixação da ordem em [V PTP],

seria uma evidência de que o processo de gramaticalização estivesse já concluído neste

estágio. No exemplo (13) é possível observar o mesmo padrão. Neste caso, o verbo ter vem

seguido do PTP vendido e do complemento masculino, plural dous moyos e meio de trigo.

Da mesma maneira, não há concordância entre o PTP e o complemento e a ordem é fixada

em [V PTP].

Nos dois exemplos apresentados, o verbo auxiliar funciona apenas como um

marcador de pessoa, número, tempo, modo e aspecto. O papel de predicador é agora

delegado aos verbos no PTP, sendo estes os responsáveis por selecionar semanticamente o

sujeito e complemento das estruturas.

Note-se, ainda, que há, entre os dois estágios dados ambíguos em não era possível

precisar se se tratava da construção original ou da estrutura já gramaticalizada. São as

construções em que o complemento é masculino, singular, portanto não é possível afirmar

se há a concordância entre o objeto direto e o PTP ou não, como se pode observar nos

exemplos abaixo.

65

(14) O iffante do~ Joha~, que se chamava rey de Lya~, veo aa obedie~cia del rey do~

Ferna~do e beyjoulhe a ma~ao dhy a pouco. El reyfoy çercar el rey d' Arago~ na vila de

Murça e teveo çercado seys somanas. (CA14-040 – Crónica de Afonso X, século 14)

(15) E el rey dom Afonsso outorgoulhe esto e deu aaquel rey mouro terra e que vivesse en

toda sa vida, a qual foy esta: o logar d'Algaba que he acerca de Sevilha, con todollos

dereitos que el rey hy avya e con o dizemo do azeite daly; e deulhe a orta de Sevilha

que chama~ a orta del rey; e rendas certas de maravidiis na judarya de Sevilha e

outras cousas en que este rey Abemafomad ouve ma~tiime~to honrrado en toda sa

vida. (CA14-013 – Crónica de Afonso X, século 14)

Nas construções exibidas em (14) e (15) não é possível saber se as estruturas se

comportam como estruturas transitivas-predicativas ou como estruturas de tempo

composto, uma vez que o complemento masculino, singular, não permite confirmar se há

marcação ou não de concordância com o PTP. Por hipótese, temos que as construções

ambíguas como as vistas acima tenham impulsionado a gramaticalização de ter e haver.

Assumimos, com base em Lightfoot (1979, 1990, 1998) e R&R (2006) que se o gatilho

utilizado na aquisição for ambíguo, isto é, se a expressão de um determinado parâmetro

não for clara o suficiente e a estrutura produzida por esse parâmetro permitir duas

interpretações estruturais, o falante irá adquirir a representação mais simples. No caso das

construções de ter/haver + PTP, a representação mais simples é a estrutura de tempo

composto, por não apresentar operações de movimento, em comparação com a estrutura

anterior, que apresenta movimento de ter e haver de V para I.

Em termos formais, R&R (2003) explicam a gramaticalização de verbos plenos a

verbos auxiliares como um processo que envolve perda semântica e estrutural. Deste modo,

a passagem de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares pode ser capturada em dois

passos principais: (1) ter e haver constituíam construções complexas em que se moviam

para I e (2) ter e haver são concatenados diretamente em I, perdendo-se uma operação de

movimento. Observem-se as estruturas abaixo.

66

Figura 6: Estrutura transitiva-predicativa, com movimento de V para I

Na estrutura acima ter e haver são gerados em V e se movem para I para

receberem as marcas flexionais de tempo e modo. O PTP é analisado como um adjetivo que

constitui a SC, modificando o NP. Segundo Roberts (1992) e R&R (2003), a gramaticalização

é um processo que envolve perda de estrutura temática do elemento gramaticalizado com a

consequência de uma possível mudança de categoria de V para I, isto é, uma mudança

categorial de verbo pleno a auxiliar funcional. Nas estruturas como a exemplificada em (16),

ter e haver funcionam como verbos plenos com conteúdo semântico de posse, sendo

gerados, portanto, em V, posição em que são atribuidores de papel temático. Após o

processo de gramaticalização destes verbos, estes são gerados diretamente em I, onde

recebem marcas de flexão. Concomitantemente à gramaticalização de ter e haver o PTP é

reanalisado como um verbo, passando a ser o predicador das construções em questão.

Deste modo, ter e haver sofrem um enfraquecimento de sua grade temática, e passam a ser

gerados diretamente em I, posição dos auxiliares funcionais, como pode ser observado na

estrutura em (8), abaixo.

67

Figura 7: Estrutura de tempo composto

Como dito acima, a reestruturação das construções em questão envolve a perda de

estrutura temática, resultando, nos termos de Roberts (1992), em uma mudança de V para I.

Segundo Roberts (1992:225) a distinção entre auxiliares e verbos principais não pode ser

feita em termos categoriais, ainda que se distingam categorias lexicais de categorias

funcionais, sendo a primeira, geralmente associada aos verbos plenos e a segunda, aos

verbos ditos auxiliares.

Roberts (1992) explica o processo de gramaticalização como sendo a mudança de

um elemento de uma categoria lexical para uma categoria funcional, associada à perda de

conteúdo lexical. Deste modo, diferencia os verbos auxiliares dos verbos plenos em termos

da Teoria Temática, afirmando que a diferença fundamental entre estes verbos está no fato

de os auxiliares não estabelecerem relações temáticas como as de AGENTE, PACIENTE,

BENEFICIÁRIO etc., com seus argumentos, enquanto os verbos plenos o fazem.

Dentro da distinção categorias lexicais e categorias funcionais Roberts (1992) faz,

ainda, uma divisão, segundo a qual dentro da primeira categoria se distinguem verbos

lexicais que atribuem papel temático, por um lado, e verbos que não atribuem papel

temático, por outro. No âmbito das categorias funcionais, há apenas verbos que não

atribuem papel temático. Roberts (1992) faz ainda a distinção entre auxiliares lexicais e

auxiliares funcionais: auxiliares funcionais são membros de I e auxiliares lexicais são

membros de V. Em termos gerais, pode-se afirmar que a diferença entre auxiliares lexicais e

68

funcionais está no fato de auxiliares lexicais se moverem para I (isto é, são gerados em V e

movem-se para I) e os funcionais são gerados diretamente em I. Formalmente a distinção

entre os verbos é como segue:

V[+Ɵ] - verbo lexical

V[- Ɵ] - verbo auxiliar lexical

I - verbo auxiliar funcional/afixo de tempo/agr.

Por hipótese, temos que nas construções com ter e haver + PTP adjetivo, isto é, nas

construções ditas conservadoras, em que o complemento de ter/haver é uma SC, estes

verbos funcionam como verbos plenos, gerados em V, sendo, pois, membros da categoria

de verbos lexicais que assinam papel temático. Quando há a reinterpretação do PTP como

verbo, isto é, quando as perífrases em questão são formadas por ter/haver + PTP de caráter

verbal, ter e haver passam por uma mudança a partir da qual deixam de atribuir papel

temático. Deste modo temos que a reinterpretação do PTP como verbo, associada à fixação

da ordem dos constituintes em Português, tenha sido um elemento importante na

emergência dos tempos compostos perfectivos, uma vez que, ao se tornar predicador da

estrutura, enfraquece a estrutura temática de ter e haver, resultando em sua

gramaticalização como auxiliares funcionais.

Em síntese, é possível resumir a descrição dos verbos ter e haver enquanto verbos

plenos e verbos auxiliares como na Tabela 5 abaixo.

Verbo pleno Verbo auxiliar

- seleciona semanticamente o sujeito da

construção

- é gerado em V e se move para I

- não seleciona semanticamente o sujeito da

construção; o sujeito é selecionado pelo

verbo auxiliado.

- é gerado em I

Tabela 5: Diferença entre verbos plenos e verbos auxiliares

Em síntese, a passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares envolveu uma

série de mudanças na Gramática do Português. Estes verbos, que antes funcionavam

exclusivamente como verbos plenos com conteúdo semântico de posse, possuíam uma

grade temática, sendo, portanto, predicadores das construções das quais faziam parte. Nas

69

construções perifrásticas vinham, inicialmente, acompanhados de um NP e um PTP de

caráter adjetivo que, ao longo do tempo, foi adquirindo traços verbais. Possivelmente, a

reinterpretação do PTP como verbo, que passa, portanto, a ser o predicador destas

construções, resulta na perda de estrutura temática de ter e haver; concomitantemente

estes verbos perdem conteúdo semântico. As subseções seguintes tratarão da origem e do

comportamento dos PTPs em Português, relacionando sua reinterpretação de adjetivo a

verbo à mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares.

3.3. Sobre os particípios passados do Latim ao Português

Como visto acima, os PTPs das construções perifrásticas com ter e haver podiam

funcionar como adjetivos nas construções predicativas e como verbos nas construções de

tempo composto perfectivo. Nas primeiras construções, o PTP funcionava como o

predicador do sujeito da SC selecionada por ter e haver, apresentando marcas de flexão de

gênero e número, concordando com o complemento dos verbos principais da sentença. Nas

construções de tempo composto, o PTP funciona como o predicador de toda a sentença,

selecionando os argumentos externo e interno da estrutura e atribuindo-lhes papeis

temáticos. A Tabela 6 abaixo elenca as principais características dos dois tipos de PTP em

questão.

PTP adjetivo PTP verbo

- funciona como um modificador do

complemento do verbo pleno (ter ou

haver);

- apresenta marcas de flexão de gênero e

número;

- concorda com o complemento do verbo

pleno (ter/haver)

- apresenta mobilidade estrutural, não

tendo ordem fixa na sentença.

- apresenta o resultado de um processo

verbal;

- não apresenta marcas de flexão em pessoa

tempo, número e modo;

- não concorda com o complemento do

verbo pleno (ter/haver);

- não apresenta mobilidade estrutural, tendo

como ordem fixa a sequência [Aux PTP N].

Tabela 6: Diferença entre particípios adjetivos e particípios verbais em construções com ter e haver

Com base nos critérios acima, analisamos o PTP das construções perifrásticas com

ter e haver ora como verbo, ora como adjetivo. Quando analisado como verbo, classificamos

70

a perífrase como sendo de tempo composto perfectivo, ou seja, uma perífrase verbal em

que ter e haver se comportam como verbos auxiliares. Quando o PTP é analisado como

adjetivo, trata-se de uma perífrase em que ter e haver funcionam como verbos plenos,

portanto, não gramaticalizados, selecionando um complemento que é modificado pelo PTP.

Destaque-se que, ainda que ter e haver tenham passado por um processo de mudança por

meio do qual se tornam verbos auxiliares, isto não significa que a estrutura não

gramaticalizada (formada por ter e haver plenos + PTP adjetivo) tenha sido eliminada da

gramática. Esta, mesmo após a gramaticalização, passa a conviver com a estrutura

inovadora, sem, contudo, competir com ela.

A literatura que aborda a origem dos particípios passados desde o Latim até o

Português (assim como as outras línguas românicas)28 destaca que os PTPs em Latim têm

origem em um adjetivo verbal do Indo-Europeu. Segundo Dombrowski (2010), o PTP das

línguas romance descendem do particípio passivo perfeito do Latim, terminado em atus, -a,

-um (amatus, amata, amatum). Segundo o autor, ao passar para as línguas românicas esta

forma de PTP passou a ser usada nas construções de tempo composto perfectivo com

haver, assim como em outras formas verbais perifrásticas.

O PTP representa, geralmente, o resultado de um processo verbal. No entanto,

quando não apresenta categorias verbais de tempo, modo, número e pessoa, e sim as

categorias nominais de gênero e número, o PTP se afasta da classe dos verbos,

aproximando-se dos adjetivos. Devido à sua origem nominal, muitos verbos em Latim não

apresentavam uma forma correspondente no PTP, de modo que “os verbos que

sobreviveram adquiriram um à medida que o particípio passado começou a desempenhar

um papel sintáctico mais importante em construções perfectivas e passivas” (BARREIRO

1998:52).

Segundo Barreiro (1998), os PTPs presentes no Latim Vulgar e os presentes nas

línguas românicas não são os mesmos encontrados no Latim Clássico, a partir do que se

conclui que nem todos os PTPs latinos sobreviveram nas línguas a que deu origem. Nas

línguas românicas, alguns PTPs irregulares desaparecem, ao passo que outros se tornam

mais comuns; concomitantemente, novos PTPs são criados. De acordo com Barreiro

(1998:52) a expansão e a criação de novas formas participiais tem motivos subjacentes:

28 Cf. Barreiro (1998) e Laurent (1995 apud BARREIRO 1998)

71

“(...) os particípios passados acentuados no final de reflexos de -ATUM (sempre), -ITUM (quase sempre) e -UTUM (normalmente) expandiram-se. Excepto na Sardenha e no sul de Itália, os reflexos das formas de -u ITUM como COGNITUM (conhecido) quase que desapareceram. Reflexos de formas em -TUM depois de uma raíz de consoante final, como FACTUM (feito), permaneceram populares em italiano e também um pouco em francês mas sobreviveram apenas em verbos de alta frequência em romeno, catalão, espanhol e português. Em espanhol e português os tipos -UTUM já não terminam particípios passados mas proliferam em adjectivos (muitos deles com sentido pejorativo) como ‘cabeludo, orelhudo, cabeçudo, narigudo, etc’. Em romeno, reflexos de -UTUM são quase restritos à marcação de particípio passado. Reflexos do tipo em (s), como MISSUM (mandado) tornaram-se mais comuns em romeno do que em latim; alguns gozam de grande popularidade também em italiano. Este tipo tornou-se menos comum em francês e desapareceu em espanhol e em português. A principal função do sufixo -IARE do latim oral mais tardio era derivar verbos factivos a partir de adjectivos e de particípios passados”. (BARREIRO 1998:52)

Apesar de ser sabido que os PTPs têm origem no Latim e que sua origem provêm de

formas adjetivas, sua evolução desde o Latim até as línguas românicas não é muito clara.

Algumas formas apresentam uma evolução visível ao longo dos séculos, ao passo que outras

têm sua origem desconhecida. Em relação à mudança que estas formas sofreram, sabe-se

que os PTPs passaram por processos em que novas formas emergem, outras formas

desaparecem e, ainda, determinadas formas são recategorizadas. No caso dos PTPs do PA,

que compõem construções perifrásticas ao lado dos verbos ter e haver, assume-se que,

enquanto ter e haver são verbos plenos, ocorrem em construções com PTPs de caráter

adjetivo. Quando ter e haver passam pelo processo de gramaticalização por meio do qual se

tornam verbos auxiliares dos tempos compostos perfectivos, também o PTP é reanalisado e

recategorizado, passando de adjetivo a verbo.

Dombrowski (2010), levando em conta línguas românicas e eslavas, considera cinco

estágios de mudança dos PTPs desde o Latim: (1) no primeiro estágio os PTPs têm

significado puramente participial, isto é, expressando qualidade ou estado; (2) no segundo

estágio coexistem duas formas: uma em que o PTP expressa conteúdo adjetivo e outro em

que o PTP sofreu esvaziamento semântico e é combinado com um auxiliar em construções

perifrásticas, funcionando como marcador perfectivo; (3) os PTPs são usados primariamente

72

como marcadores perfectivos, porém sem serem marcadores temporais; há desbotamento

semântico, ainda que o conteúdo adjetival permaneça em nível lexical; (4) os PTPs começam

a se desenvolver como formas verbais finitas, preservando, simultaneamente, funções não-

finitas; (5) no último estágio de mudança os PTPs evoluem completamente como formas

verbais finitas, ainda que certo conteúdo lexical tenha se preservado. Os primeiros três

estágios de mudança propostos por Dombrowski (2010) interessam à presente pesquisa; os

dois últimos se aplicam às línguas eslavas também analisadas por ele.

No primeiro estágio os PTPs apresentam, exclusivamente, o que o autor chama de

significado participial (participial meaning), funcionando como um adjetivo. Contudo, como

destaca o autor, isto não significa que construções com o PTP já reanalisado como verbo

não possam ocorrer. Deve-se levar em conta que os PTPs das diferentes conjugações podem

ter tido evoluções em tempos diferentes; note-se que isto ocorre em PA: já no século 13 é

possível documentar construções de PTP verbal que convivem com as construções

conservadoras, formadas por um PTP adjetivo. A justificativa para a análise do PTP como um

adjetivo está principalmente no fato de, no Latim, o PTP concordar com o complemento

direto do verbo, como se observa abaixo, em exemplo retirado de Posner (1996:153, cf.

DOMBROWSKI 2010:28):

(18) habeo litteras scriptas

have-PRES -1SG letter-ACC .PL write-PPP -ACC .PL

‘I have the letters written.’

‘Eu tenho as cartas escritas’

Segundo o autor é essencial para a análise das construções com PTP considerar os

padrões de concordância. Como é possível observar, o PTP scriptas concorda em número e

caso com litteras, o que seria um indicador de que a gramaticalização da forma participial

scriptas ainda não havia acontecido em Latim.

No segundo estágio de mudança, o PTP adjetivo coexiste com uma forma participial

semanticamente esvaziada e utilizada em construções com auxiliar, em que exerce funções

puramente verbais, não apresentando, portanto, marcas flexionais de concordância com o

complemento. Exatamente por este processo passa o PA, em que inicialmente havia uma

construção formada por ter/haver + PTP cujo sentido era puramente adjetivo, herdado do

73

Latim. Posteriormente, surge uma nova forma em que o PTP se comporta como verbo e é

utilizado com ter e haver já gramaticalizados em auxiliares. Segundo Dombrowski (2010:29),

“this is the best description of modern Romance languages such as Italian, French, and

Spanish. In these languages the use of forms derived from the Latin past passive participle as

participles can be contrasted to their use in periphrastic tense forms29”.

No terceiro estágio, no qual, em nossa interpretação, o Português atualmente se

encontra, os PTPs são utilizados como marcadores temporais perfectivos não finitos, na

nomenclatura do autor, mas também conservam seu uso adjetivo. Deste modo há, em uma

língua que atingiu esta fase, um PTP de caráter verbal, que compõe construções de tempo

composto com valor perfectivo junto com os auxiliares ter/haver30; ao lado desta forma

ocorre outra constituída por um PTP de caráter adjetivo. O quarto e quinto estágios de

mudança (cf. DOMBROWSKI 2010) não se aplicam ao Português e serão, por isso, deixados

de fora desta descrição.

Em relação às construções perifrásticas formadas por ter/haver + PTP em

Português, como visto anteriormente, sabe-se que estas têm origem em uma construção

latina. A forma flexionada do presente perfectivo de verbos transitivos do Latim foi

substituída, em Português e nas línguas românicas em geral, por uma estrutura formada

pelo verbo latino habere (haver) + PTP; posteriormente, ao lado desta construção surge em

Português uma construção semelhante formada com o verbo ter. À formação dos tempos

compostos com valor perfectivo se associam a fixação da ordem dos constituintes

sentenciais e a perda das marcas de concordância do PTP com o complemento antes

selecionado por ter e haver. Mas como se deu a perda das marcas de concordância do PTP

com o complemento?

R&R (2003), assim como Dombrowski (2010), afirmam que um fator crucial, no que

respeita a reanálise, é a perda das marcas flexionais de concordância. Neste caso é possível

afirmar que a reinterpretação do PTP como verbo e a consequente perda das marcas de

concordância estão relacionadas à reanálise de ter e haver são reanalisados como auxiliares.

29 “Esta é a melhor descrição de línguas românicas modernas, tais como o Italiano, o Francês e o Espanhol. Nessas línguas o uso de formas derivadas do particípio passado passivo latino como particípios pode ser contrastado ao seu uso em estruturas perifrásticas” [minha tradução] 30 Em línguas que possuem apenas um auxiliar para estes contextos, o mesmo verbo é usado, (cf. avoir, do Francês) apresentando simultaneamente os valores semânticos de ter e de haver e funcionando em construções perifrásticas perfectivas, construções de posse e existenciais.

74

Entende-se, pois, que uma análise que leve em conta o caráter do PTP em Português é

necessária para a compreensão da gramaticalização de ter e haver. A seguir vejamos como

se comportam os PTPs no período arcaico do Português e como sua evolução pode se

relacionar à reanálise dos verbos em questão.

3.3.1. O estatuto do particípio passado em Português

O estatuto dos particípios é assunto recorrente em grande parte das gramáticas do

Português. Os PTPs de caráter adjetivo e os de caráter verbal são morfologicamente

idênticos em Português e a distinção semântica entre eles, ainda hoje, é bastante sutil. A

análise do corpus utilizado para esta Dissertação levantou muitas questões em relação à

natureza dos PTPs presentes em construções com ter e haver, uma vez que,

frequentemente, a similaridade semântica das formas participiais dificultou sua

identificação. Observem-se as construções abaixo, formadas pelo verbo ter + PTP e por

haver + PTP, respectivamente.

(19) Lei 73 - costume e´ q(ue) sse eu tenho meu vinho aberto e chega o Relego & mj~

filha~ as medidas ento~ sarrarey a porta da adega & colerey a rama & des alj adea~te

no'-no uenderey sse me no~ au(e)er con os relegueyros & sse o eu no~ q(u)is(er)

uender como q(ue)r q(ue) mi~a cuba fiq(ue) encetada no~-no uenderej se mj~ no~

q(ui)s(er). (CS13-001, Costumes de Santarém, século 13)

(20) El rey do~ Enrryque se escusou, dize~do que el rey do~ Pedro avya perdido o reyno

por suas cruezas e maaos feytos, e que ele fora elegido por todollos prelados, fidalgos

e çidada~aos dos reynos de Castella. (CA14-031, Crónica de Afonso X, século 14)

Em (19) é possível observar uma construção formada por sujeito + verbo (ter) +

PTP, que permite duas interpretações distintas: (i) eu tenho um vinho e este vinho está

aberto, portanto uma construção na qual o PTP exerce uma função de adjetivo, modificando

o complemento de ter, vinho, e (ii) eu abri meu vinho, portanto, uma interpretação em que

ter é um verbo auxiliar e o PTP aberto é um verbo, se caracterizando, pois, como uma

construção de tempo composto.

75

Em (20), na construção formada com haver + PTP, a mesma ambiguidade é

observada, permitindo duas interpretações. Na primeira acepção, haver é um verbo pleno

que seleciona como complemento uma SC (o rei dom Pedro possuía um reino e este reino

está perdido); na segunda interpretação, haver é um verbo auxiliar, sendo o PTP uma forma

verbal, portanto uma construção de tempo composto (o rei dom Pedro perdeu o reino).

As diferentes interpretações para as mesmas construções, como ocorre em (19) e

(20), são permitidas, pois não há marcas flexionais de concordância no PTP que o permitem

ser identificado, com certeza, como um adjetivo ou como um verbo. Uma vez que o

complemento de ambas as construções está no singular, masculino, não se sabe se há

concordância do PTP com os nomes (vinho, reino¸ respectivamente) ou não. Contudo, como

veremos em detalhes mais adiante, a ordem dos constituintes da sentença pode nos dar

evidências do estatuto das sentenças acima.

Em contrapartida, exemplos como (21) e (22), abaixo, deixam claro o caráter

adjetivo do PTP que acompanha ter e haver nas estruturas perifrásticas:

(21) Isto n(os) he bem figurado no Segundo Liv(r)o dos Rreis, honde he [e]sc(ri)pto que

Naas Amonites tiinha cerquad(os) os jebes, que erom dos judeus, e rrequererom-lhe

paz. (CP15-027, Castelo Perigoso, século 15)

(22) E estava na villa o dicto rey Abenmafomad que a tiinha bem basteçida de muytas

viandas e muy boas gentes. (CA14-037, Crónica de D. Afonso X, século 14).

Diferentemente dos exemplos apresentados em (19) e (20), nos exemplos em (21)

e (22) os PTP cerquados e bastecida apresentam marcas explícitas de concordância com os

complementos diretos de ter e haver. Em (21) a concordância em gênero e número de

cerquados com jebes evidencia o caráter adjetivo do PTP, que modifica o complemento

direto de ter, não permitindo uma leitura em que este PTP seja verbo e ter seja um auxiliar.

A única leitura permitida para (21) é a seguinte: Naas Amonites possuía jebes e estes jebes

foram cercados. A construção exibida em (22) dá margem à mesma interpretação, uma vez

que o particípio basteçida concorda com o complemento a (a villa), evidenciando o caráter

modificador do PTP. Do mesmo modo, a leitura que se faz para (22) é a de que o rei

Abenmafomad possuía uma vila e esta vila estava bem abastecida de carnes e gentes.

76

Finalmente, exemplos como (23) e (24), abaixo, evidenciam o caráter verbal do

PTP, permitindo somente uma interpretação. Nos casos exemplificados abaixo, a ausência

de concordância do PTP com o complemento permite identificar estas estruturas como de

tempo composto, isto é, em que ter/haver são verbos auxiliares e o PTP é de caráter verbal.

(23) E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras d’elrrey,

meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado grandes

famas, estados e boas gaanças por seerem muyto ajudados desta manha. (LBE15-001,

Livro da Ensinanca do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)

(24) (...) e os lutadores va~o se por junto com a escada, que no meyo d aquella casa estaa,

e tem feyto hu~a eyra gramde de terra solta omde luta~o as molheres solteyras e

baylhadores; (...) (CRB16-081, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)

Os exemplos acima evidenciam o caráter verbal do PTP uma vez que este não

apresenta marcas flexionais de concordância com o complemento. Em (23), a ausência de

marcas flexionais de gênero e número no PTP com o complemento no plural grandes famas,

estados e gaanças, é uma forte evidência para a conclusão de que o PTP é um verbo,

afastando-se de suas características nominais, e de que ter é um verbo auxiliar, tratando-se,

portanto, de uma construção de tempo composto, cuja única interpretação possível é a de

uma ação concluída: quantos alcançaram grandes famas, estados e bons ganhos. Em (24) a

mesma interpretação – da sequência haver + PTP como tempo composto – é possível, uma

vez que não há marcas explícitas de concordância entre o PTP e o complemento que

justifiquem a interpretação do PTP como adjetivo. Portanto, neste caso, a única

interpretação possível é a seguinte: os lutadores fizeram uma eira grande de terra solta.

Compreender os diferentes estatutos do PTP e, no que respeita esta pesquisa,

identificar em que contextos o PTP é verbo ou adjetivo, se mostrou necessário para o

estudo da emergência dos tempos compostos em Português. Com base em um critério

morfológico – a presença ou a ausência de marcas flexionais de concordância do PTP com o

complemento direto do verbo – é possível identificar a natureza do PTP, em certos

contextos31; contudo, somente a observação da ausência ou presença de marcas de

31 Em certos contextos, pois há casos ambíguos como quando o complemento está no singular, masculino.

77

concordância não é suficiente para compreender a mudança pela qual passou o Português

quando da emergência dos tempos compostos perfectivos. Outros critérios foram utilizados

na presente análise, a saber, a formação e a fixação das formas participiais em Português e a

ordem dos constituintes na sentença, que serão assunto dos parágrafos seguintes.

3.3.2. A formação do particípio passado em Português

Em geral as gramáticas classificam o PTP como uma forma verbal que pode ser

usada também como um adjetivo. Rocha Lima (1972:122) o define como uma categoria que

tem “valor e forma de adjetivo: modifica substantivos com os quais concorda em gênero e

número, apresenta o feminino em –a e o plural em –s”. Ao tratar o PTP como uma forma

verbal, as gramáticas, em geral, referem-se ao fato de o PTP poder expressar uma ação

(concluída, no PA e concluída e durativa, no Português Brasileiro Contemporâneo); ao trata-

lo como adjetivo, referem-se ao fato de o PTP predicar nomes e pronomes, modificando-os.

Em termos morfológicos, o processo de formação dos PTP pode ser descrito,

simplificadamente, como a extração das terminações do infinitivo: -ar, -er e -ir e o acréscimo

das formas -ado (para os verbos terminados em -ar) e -ido (para os verbos terminados em -

er e -ir), com exceção dos verbos que apresentam um PTP irregular, isto é, formas que

fogem às generalizações acima (aberto, dito, escrito, posto etc).

Alguns verbos apresentam somente a forma regular do PTP, ao passo que outros

apresentam somente a forma irregular; há, ainda, verbos que apresentam duas formas

participiais, uma regular e outra irregular. Em relação aos verbos que apresentam duplo

particípio, chamados também de verbos abundantes (ROCHA LIMA, 1972:169; CUNA &

CINTRAa 1984:441), há, segundo Barreiro (1998:17), “uma certa unanimidade em

reconhecer as formas irregulares como particípios passados adjectivais ou adjectivos

verbais”. Portanto, verbos que possuem duplo particípio, apresentam uma forma regular,

de natureza verbal, e uma forma irregular, de valor adjetivo.

No corpus analisado nesta Dissertação, observou-se que, de modo geral, os PTPs

em PA apresentavam somente uma forma, a regular. Os verbos que hoje apresentam dois

particípios, um verbal e um adjetivo, apresentavam, no PA32, apenas uma forma, a adjetiva,

32 Destaque-se que esta é uma generalização feita com base nos exemplos extraídos do corpus utilizado nesta pesquisa.

78

ao menos no que respeita às construções com ter e haver no corpus utilizado, como se

observa nos exemplos a seguir. A Tabela 7 compara os verbos com duplo PTP no Português

atual e em PA.

Português Brasileiro Contemporâneo Português Arcaico

Entregar Entregado/entregue Entregue (~ entrega)

Matar/Morrer33 Matado/morto

Morrido/morto

Morto

Prender Prendido/preso Preso

Tabela 7: Particípios regulares e irregulares no Português Brasileiro Contemporâneo e no Português Arcaico

Como é possível notar, verbos como entregar, matar, morrer e prender que

apresentam, no Português Contemporâneo, duplo particípio, não o apresentavam em PA,

possuindo, neste período, somente a forma adjetiva, isto é, a do PTP irregular, como se

observam nos exemplos abaixo:

(25) Entregar

E se teendo a carta entrega morrer, e na uida ou na morte no~ mudar nada

ne~desfaz(er) nenhu~a cousa daquello q(ue) e´ scripto ena carta (...). (FR13-024,

Foros de Garvão, século 13)

(26) Matar/morrer

Capitullo do que el rey fez despois de ter el rey de Bisnaga morto, e desbaratado.

(CRB16-007 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(27) Prender

(...) elles todos era~o mamdados por Narsenayque seu vassallo, ho quoall se fazya

muyto forte e gramde no reyno, e o tinha~o preso, (...). (CRB16-021, Crónica dos

Reis de Bisnaga, século 16)

Wlodek (2003), em relação aos PTPs duplos do Português, afirma que existe uma

diferença mais ou menos nítida quanto à distribuição das formas regulares e irregulares.

Segundo o autor, com exceção de alguns poucos verbos que possuem apenas um PTP forte

33 Os exemplos com o PTP morto são de difícil interpretação, pois dão margem à interpretação tanto como morrer quanto como matar. Por este motivo foram agrupados em uma única categoria.

79

(irregular), como aberto, feito, dito, vindo, usados em todos os contextos em que podem

aparecer particípios, seja com a função de adjetivo ou como parte das formas verbais

compostas ativas e passivas, as formas irregulares dos PTP duplos geralmente não podem

fazer parte das formas compostas ativas (não sendo admitidas junto com o verbo ter). Como

consequência disso, as seguintes formas compostas são consideradas agramaticais:

(27) A polícia tinha *preso os assassinos. (WLODEK 2003:52)

(28) O João tinha *roto as calças. (idem)

Em PA, os verbos que apresentam somente a forma de PTP irregular, como os

apresentados na Tabela 7, evidenciam seu caráter adjetivo ao permitirem construções

formadas por ter ou haver mais o PTP destes verbos com marcas explícitas de concordância:

(29) (...) elle tinha destroydo os primcypaes home~es de seus reyno e mortos seus filhos e

tomadas suas fazemdas, tudo por comselho de seus cunhados por quem elle hera

mamdado. (CRB16-059, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)

(30) (...) e depois de os ter presos o pay e filhos, estevera~o tres anos em prisa~o, e fez

regedor hu~u filho Codemerade. (CRB16-054, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16).

Ao aplicar o teste de gramaticalidade como o feito por Wlodek (2003), fica evidente

o caráter adjetivo destes PTPs, uma vez que o uso de sua forma verbal gera sentenças

agramaticais:

(31) (...) elle tinha (...) *morto seus filhos (...)

(32) (...) e depois de os ter *preso o pay e filhos (...)

Com base no que foi visto acima e na afirmativa de Barreiro (1998:53), de que os

verbos que sobreviveram a passagem do Latim ao Português, mas não apresentavam uma

forma de PTP, adquiriram uma à medida que o PTP começou a desempenhar um papel

sintático mais importante em construções perfectivas e passivas, sugerimos que os verbos

que possuíam apenas um PTP irregular passam a apresentar um PTP regular após a

gramaticalização de ter/haver ou simultaneamente a esse processo. Deste modo, os verbos

que já apresentavam uma forma de PTP regular, mas ainda assim eram interpretados como

adjetivos, devido à sua origem, foram reanalisados como verbos, alguns apresentando uma

forma homófona para as duas funções. Já os verbos que apresentam formas de PTP

irregular teriam sofrido duas mudanças: (i) aqueles que hoje apresentam duplo PTP

adquirem uma forma nova (de PTP regular), talvez por analogia aos outros verbos, passando

80

a ser, pois, verbos de duplo PTP e (ii) aqueles que no PA e no Português atual apresentam

somente uma forma de PTP (a saber, o PTP irregular), são reinterpretados, passando a ter

duas funções para uma única forma.

Diferentemente dos verbos apresentados acima na Tabela 6, o único verbo que

hoje apresenta duplo particípio e o apresenta também no PA, é pagar, que possui a forma

regular pagado e a irregular, pago. Observem-se os exemplos abaixo em (33) para as formas

participiais de pagar.

(33) formas participiais de pagar

a) Mes quando homem tem paguado o que deve, entom pode faz(er) e diz(er) o

que q(ui)s(er). (CP15-033 – Castelo Perigoso, século 15)

b) It(em) me deue Afon(so) Yan(e)s, arçip(re)ste de Goyos, d'agora ha tr(e)s an(n)os

q(u)atro ca(r)gas de pan; et deste an(n)o pasado me deue todo o pan do

arçip(re)stado fora ende aq(ue)lo q(ue) mostrar p(er) meus aluaraes q(ue) me ha

pago. (TN15-004 – Textos Notariais, século 15)

c) (...) muytos dos capitae~es d elrey fora~o contar este repouso que elle fez,

[...]aos quoaes respomdeo que muytos hera~o mortos que na~o tinha~o culpa,

que se ho ydallca~olhe tinha feyto allgu~u desprazer que jaa lho tinha pago.

(CRB16-037 – Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16.

As poucas ocorrências de pagar no corpus não permitem muitas conclusões. As três

ocorrências de pagar, sejam de formas irregulares ou regulares, ocorrem com

complementos masculino, singular ou com pronome interrogativo, não dando margem,

portanto, para conclusões a esse respeito. Contudo, a maior frequência do PTP irregular em

relação ao PTP regular, permite sugerir que a primeira forma era preferida à segunda.

Com base no fato de que verbos que possuem duplo particípio possuem uma forma

verbal (PTP regular) e uma forma adjetiva (PTP irregular), é possível postular que os

particípios que possuem apenas uma forma irregular, como é o caso dos verbos abrir, dizer,

escrever, fazer, pôr, ver, funcionavam, no PA, como PTPs adjetivos, e não como PTPs

verbais, sendo reanalisados como verbos somente após ou simultaneamente à

gramaticalização de ter/haver como auxiliares, como dito acima. De fato, verbos como dizer

e fazer eram muito frequentes no PA em construções com ter/haver. O verbo fazer, cujo

particípio feito/feita é o mais abundante do corpus, apresenta, de um total de 49 exemplos,

81

28 com concordância. Das ocorrências restantes, 17 são de formas ambíguas, em que não é

possível documentar a concordância, e apenas 4 são de casos em que não há concordância,

a partir do século 14. Observem-se os exemplos abaixo, de ocorrências de verbos de um

único PTP irregular:

Fazer – feito (a, os, as)

Para o verbo fazer foram encontradas 49 ocorrências do PTP deste verbo em

construções perifrásticas com ter/haver. Dentre os 49 dados, 28 são de estruturas em que o

PTP concorda com o complemento, como em (35.a); 17 dados são de estruturas em que a

concordância não pode ser analisada, como em casos em que o complemento está no

masculino, singular (35.b) ou é um pronome substantivo (35.c); por fim, os 4 dados

restantes são de construções em que não há concordância entre o complemento e o PTP,

como em (35.d).

(35) formas participiais de fazer

a) et no~ nas agoardando, q(ue) o moestei(r)o posa tomar suas casas et cortinas

co~ q(u)antas boas paranças nos y fezeremos et teueremos f(ei)tas et

dema~dar as maas paranças q(ue) y foren f(ei)tas. (TN15-011, Textos Notariais,

século 15)

b) [...] e mete se em hu~u quyntal omde dizem que tem feyto hu~u foguo pequeno

[...] (CRB16-080, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)

c) Depois de Crisnarao ser alevantado por rey, obedecido em todo seu reyno,

semdo seu regedor Salvatine que tambem o fora de sseu yrma~o Busballrrao,

mamdou llogo a seu sobrinho, filho de Busballrrao, seu yrma~o, e tres yrmaos

seus, a hu~a fortalleza que se chama Cha~o degary, e nella esteve atee que

morreo, e depois de ter ysto feyto pera ssua seguramça. (CRB16-024, Crónica

dos Reis de Bisnaga)

d) E dhy se tornou pera el rey seu padre. E no trezeno a~no do reynado del rey

Enrryque, foy feyta paz antre Castella e Navarraco~ estas co~diço~oes: que el

rey de Navarra lançasse fora os capita~aes ingreses que avya~ feito guerra e

danoe~ Castella e que el rey de Navarra posesse em fieldade vi~ite castellos e~

ma~ao dos castella~aos. (CA14-035, Crónica de Afonso X, século 14)

82

A não concordância do PTP com o complemento foi documentada primeiramente,

no que respeita ao verbo fazer, no século 14, podendo-se localizar, neste período,

construções em que haver é verbo auxiliar e o PTP é de caráter adjetivo. A forma em que há

concordância continua a ser bastante frequente no corpus; quando há a gramaticalização de

ter/haver a estrutura antiga (com PTP adjetivo) permanece na gramática, por se tratar de

uma estrutura diferente (com outra função linguística) da inovadora.

Dizer – dito (a, os, as)

Os exemplos com dito são os com a segunda maior frequência do corpus, somando

18 ocorrências, ficando atrás somente dos PTP de fazer. Dentre as ocorrências de ter/haver

+ PTP de dizer só houve dados com complementos no singular, masculino, portanto, não há

exemplos de concordância explícita com o complemento direto. Todos os exemplos são com

pronomes interrogativos, substantivos e complementos nulos sem antecedente. No século

16, principalmente nas Crónicas dos Reis de Bisnaga, há muitas ocorrências de ter + dito.

Abaixo, alguns exemplos de ocorrências com o PTP de dizer.

(36) formas participiais de dizer

a) E, por tyrar el rey esta co~tenda, disse, segundo ja seu padre ouvera dito e~

outras cortes: - Os de Toledo fara~ o que lhes eu ma~dar e assy o digo por eles.

(CA14-020, Crónica de D. Afonso X, século 14)

b) Deveis de ssaber que este reyno de Narsymga tem treentos graos, que he de

legoa cada grao de costa, ao lomgo d esta serra que dito tenho (CRB16-063,

Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16.

Pôr – posto (a, os, as)

Em relação ao verbo pôr, foram coletados 3 dados de estruturas de ter/haver + o

PTP deste verbo. Das 3 ocorrências, 1 apresenta concordância do PTP com o complemento

(37.a) e 2 não apresentam (37.b), (37.c), sendo que, dentre os exemplos de não-

concordância, o complemento é masculino, singular, sendo, portanto, ambíguos.

(37) formas participiais de por

a) Ora, avem(os) postos aas po(r)tas do castello port(eir)os e guardas diligent(e)s,

do que hi ha´: tre^s de vertudes cardeaaes, s(cilicet), forteleza, tenperança e

justiça (CP15-024, Castelo Perigoso, século 15)

83

b) E vemdo el rey de Bisnaga a vontade dos d el rey de Delly, que era na~o partir d

ally sem dar fim aos que demtro na fortalleza comsygo tinha, fez hu~a falla a

todos, pomdo lhe diante a destroyça~o que el rey dos de Dely em seus reynos

feito tinha e que na~o contente com isso ho tinha posto em cerco naquella

fortaleza e logo todos fora~o armados (CRB16-004, Crónica dos Reis de Bisnaga,

século 16)

c) Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as

posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto com el

rey de Graada. (CA14-001, Crónica de Afonso X, século 14)

Escrever – escrito (a, os, as)

Os dados encontrados com o PTP de escrever somam 3 dados sem concordância,

porém dados que apresentam como complemento pronome interrogativo (38.a), (38.b) e

(38.c), e 1 dado com concordância explícita (38.d), totalizando 4 ocorrências:

(38) formas participiais de escrever

a) A partiço~ que fezere~ os yrmaos ou os parentes daquel q(ue) h(er)dam, no~

seya depoys desfeyta p(er) nenhua maneyra, p(er)o q(ue) no~ aya y escripto, se

poder seer prouado p(er) testimo~has e esto deue seer dos que son d(e) ydade

(con)prida. (FR13-012, Foros Reais, século 13)

b) E os pees devem seer bem firmes nas strebeiras, segundo meu custume, como

tenho scripto onde falley no desvairado cavalgar que as sellas requeriom

segundo suas feiço~o~es. (LBE15-020, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda

Sela, século 15)

c) Ao terceiro, o assessego e a ssoltura se gaanha per saber da manha e husança

della, como ja tenho scripto. (LBE15-026, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar

Toda Sela, século 15)

d) Esta pobreza de [e]sp(ri)tohamaquell[e]s a que abasta o que lhes he min[i]strado

de ssuarrellegiom, e todo o que lhe dizem e fazem tomam em pacie^ncia por

amo(r) de D(eu)s.A est(e) estado viiria asinha quem tevesse esc(ri)pta em seu

coraçom e se rrecordasseamehu´de da grande homildade e

maravilhossasofrença e infiinda pobreza de Jh(es)u (Christ)o que morreo em na

cruz todo nuu por no´s. (CP15-007, Castelo Perigoso, século 15)

84

Abrir – aberto (a, os, as)

Das construções formadas com o PTP do verbo abrir foi encontrada 1 ocorrência

sem concordância (39.a), no século 13, cujo complemento é masculino, singular, portanto,

ambígua, e 2 com concordância (39.b) (39.c), no século 15.

(39) formas participiais de abrir

(a) Lei 73 - costume e´ q(ue) sse eu tenho meu vinho aberto e chega o Relego &

mj~ filha~ as medidas ento~ sarrarey a porta da adega & colerey a rama & des

alj adea~te no'-no uenderey sse me no~ au(e)er con os relegueyros & sse o eu

no~ q(u)is(er) uender como q(ue)r q(ue) mi~a cuba fiq(ue) encetada no~-no

uenderej se mj~ no~ q(ui)s(er). (CS13-001, Costumes de Santarém, século 13).

b) E outros, ainda que o entendam, assy som forçados de sua condiçom que lhe

nom conssente|m| em aquel ponto que o encontro topa de os teerem abertos.

(LBE15-022, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)

c) E tanto que errar duas ou tres vezes, por buscar tarde, digam-lhe que se avyse

de buscar cedo, por tal que, nom encontrando per boa vista, encontre per esmo,

e se ventuira ouver d’aver algu~a boa squeença, o acrecentamento do prazer e

da voontade lhe dara´ esforço de teer os olhos abertos aos encontros. (LBE15-

023, Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)

Ver – visto (a, os, as)

Em relação ao PTP irregular de ver, visto, houve apenas uma ocorrência, sendo esta

no singular, masculino, portanto, não havendo marcas de concordância explícitas.

(40) formas participiais de ver

a) Estando dom frey Ar(ia)s, abbade do mosteyro de S(an)ta M(ari)a d'Oseyra, et

frey P(edr)o de Lueda, p(r)ior, et o sup(r)ior et çelareyro et esmoleyro et os

out(r)os oficiaas & mo~jes do d(i)to m(osteyr)o, todos juntos en(n)o cap(itu)lo

do d(i)to mosteyro, depoys de avido seu acordo & co~selo et avendo

co~siderado et visto com(m)o este d(i)to mos[t]eyro avia avido moy g(r)andes

p(er)das (...) (TN15-012, Textos Notariais, século 15)

Em relação aos PTP irregulares, estes foram os que ocorreram com maior

frequência entre todos os PTP do corpus, sendo o mais frequente feito e suas flexões,

85

seguido por dito e suas flexões. Em seguida, os que ocorrem com mais frequência são PTP

regulares com terminação em –ado, como ganhado, tomado, cercado e suas flexões.

As formas com e sem concordância dos PTP regulares e irregulares ocorrem em

variação em todo o corpus ao longo dos séculos. Isto se dá, pois a reanálise não pressupõe a

eliminação da forma conservadora da gramática de uma dada língua. Quando tem início a

mudança que gerou os tempos compostos do Português, ter e haver são, inicialmente,

verbos plenos que selecionam como complemento um NP + PTP modificador, sendo esta a

forma conservadora. Após a gramaticalização destes verbos, que passam a auxiliares, e da

reinterpretação dos PTP adjetivos como verbos, surge a forma inovadora, diferente da

anterior. Ao ser reanalisada como outra construção, a primeira, conservadora, não é

eliminada, pois agora consiste em uma estrutura diferente da anterior. A questão da

mudança e da interação das formas inovadoras e conservadoras serão exploradas mais

adiante.

Uma vez diferenciadas as duas formas de PTP, adjetivo e verbal, ficam as questões:

por que o PTP adjetivo é reanalisado como verbo no PA; quais seriam as motivações? Por

que ter/haver são reanalisados como verbos auxiliares?

Por hipótese, assumimos que a mudança por meio da qual surgem os tempos

compostos perfectivos em Português envolvem alguns fatores, a saber, a reinterpretação

dos PTPs como verbos, resultando na perda das marcas flexionais de concordância e na

fixação da ordem dos constituintes. Nas construções em que o PTP funciona como adjetivo

exercendo, portanto, a função de modificador do complemento de ter e de haver, tais

verbos funcionavam como verbos plenos, predicadores e com valor semântico de posse.

Quando o PTP é reinterpretado, nos contextos que darão origem aos tempos compostos,

como verbo, este passa a exercer a função de predicador da sentença, podendo, também

selecionar o papel temático do sujeito da construção. Ao passarem a predicadores da

perífrase verbal, ter e haver perdem esta função, sendo reanalisados como verbos

auxiliares, incapazes de atribuir papel temático ao seu complemento. Tais questões serão

discutidas com mais detalhe na próxima seção.

86

3.4. Evidências para a gramaticalização

Nesta seção procuraremos mostrar evidências em favor da gramaticalização de ter

e haver como auxiliares no PA. Como visto acima, alguns fatores como a reinterpretação do

PTP como verbo, bem como critérios morfossintáticos como a concordância do PTP com o

complemento direto de ter e haver e a ordem dos constituintes na sentença podem ter

favorecido este processo.

A análise do corpus montado para este estudo trouxe resultados interessantes no

que respeita a relação ordem vs concordância. Como será exibido abaixo, certas ordens

favorecem a concordância do PTP com o complemento, ao passo que outras a

desfavorecem. Como foi visto, a ordem dos constituintes da sentença era, no PA,

relativamente livre, no que respeita as construções em questão. Nas construções analisadas,

antes da gramaticalização de ter/haver, o complemento direto do verbo podia preceder,

suceder, estar entre ter/haver e o PTP ou, ainda, ser nulo. Da mesma forma, ter e haver

também podiam suceder ou preceder o particípio.

A ordem mais recorrente no corpus, no que respeita às construções com ter/haver

+ PTP, era, com exceção das construções relativizadas, [V PTP N]. Esta ordem de

constituintes é aquela que irá favorecer a mudança que resultará na emergência dos

tempos compostos, sendo esta a ordem prototípica deste tipo de construção em Português.

Em relação à concordância, esta ordem também se mostrou como aquela que favorece os

contextos em que não há concordância do PTP com o complemento de ter/haver, isto é, tal

ordem de constituintes favorece os contextos de tempo composto perfectivo. Como

veremos em detalhes abaixo, a relação ordem-concordância, concomitante à observação do

estatuto do PTP em Português traz evidências para a formação dos tempos compostos

perfectivos nesta língua.

Esta seção será dividida como segue: primeiramente, descreveremos o

comportamento das construções de ter/haver + PTP em relação ao século; em seguida, será

descrito o comportamento das construções com ter e haver + PTP em relação à ordem, após

o que será descrito seu comportamento em relação à marcação ou não de concordância

entre o PTP e o complemento direto de ter e haver. Posteriormente descreveremos os

resultados relativos ao cruzamento dos dados relativos à concordância e à ordem. Na

subseção seguinte, será descrito o processo de gramaticalização com base em Roberts

87

(1992) e Roberts & Roussou (2003), levando em consideração os pontos exibidos nesta

subseção.

3.4.1. Ter e haver, por século

Os estudos históricos que trataram da emergência e evolução dos tempos

compostos perfectivos em Português em geral afirmam que as construções com ter e haver

+ PTP ocorriam em variação em PA até aproximadamente os séculos 14 e 15. A partir deste

período ter passa a ocorrer com maior frequência que haver, tornando-se, posteriormente,

o verbo prototípico das construções de passado composto em Português.

Ao analisar o percentual de ocorrências de construções perifrásticas com ter e com

haver ao longo dos séculos no corpus montado para este estudo, observamos que os

resultados são semelhantes aos encontrados por Mattos e Silva (1981, 1989, 1992, 2002) no

que respeita à frequência de ter e de haver nas perífrases com PTP ao longo dos séculos.

Assim como nos dados da autora, a análise do corpus desta Dissertação mostrou que as

construções com os dois tipos de verbo ocorrem em variação até o século 14; a partir de

então observa-se uma considerável queda no uso de perífrases com haver e um gradativo

aumento daquelas formadas com ter. Tal resultado corrobora, em parte, a assertiva inicial

de que as construções com haver eram preferidas às com ter, uma vez que, em Latim, o

verbo prototípico para a expressão da posse é habere.

Dos 326 exemplos levantados no corpus, 196 foram de construções com ter + PTP e

130 foram de construções com haver + PTP. Ao observar a mudança cronologicamente,

percebemos observar que as ocorrências com haver decaem ao passo que as com ter

aumentam de forma gradativa, como se observa na Tabela 8 abaixo.

SÉCULO TER HAVER

Ocorrências Percentual Ocorrências Percentual

13 19 30% 43 70%

14 21 31% 47 69%

15 50 57% 38 43%

16 106 98% 2 2%

TOTAL 196 60% 130 40% Tabela 8: Ter e haver, por século

88

No século 13, as ocorrências com ter somavam 30% dos exemplos deste período,

ao passo que 70% destes eram de construções com haver. No século seguinte, os

percentuais são semelhantes, sendo 31% para ter e 69% para haver. No século 15, contudo,

as ocorrências de construções com ter crescem consideravelmente, somando 57% dos

dados para este período, enquanto as construções com haver somam 43%. Finalmente, no

século 16, as ocorrências com ter somam 98% das ocorrências para este século, ao passo

que as estruturas com haver somam apenas 2%. A queda das ocorrências de haver e o

aumento nas construções de ter com PTP podem ser melhor visualizadas no Gráfico 1

abaixo.

Gráfico 1: Estruturas formadas por ter e haver, por século

Como se pode observar, no período entre os séculos 13 e 14 os dados de

construções com ter e com haver ocorrem de forma constante, sendo as com haver em

maior proporção, como mostram as linhas paralelas do gráfico. A partir do século 14 as

construções com haver caem consideravelmente, dando espaço para as formadas por ter.

No século 16 as construções com ter são maioria, ao passo que as com haver são raras no

corpus.

Este trabalho não se propôs a fazer uma análise semântica dos complementos das

construções com ter/haver + PTP no corpus. Contudo, o aumento de construções com ter +

PTP no PA é frequentemente relacionado ao fato de ter se associar aos complementos antes

selecionados por haver (cf. RIBEIRO 1993; MATTOS E SILVA 2002; ALMEIDA 2006; COSTA

30 31

57

98

70 69

43

20

20

40

60

80

100

120

Século 13 Século 14 Século 15 Século 16

Estruturas formadas por ter e haver + PTP, por século

TER HAVER

89

2010). Segundo Costa (2010), as perífrases perfectivas em Português eram, inicialmente,

mais produtivas com o verbo haver, que foi se revelando um verbo semanticamente mais

fraco que ter. A autora afirma que “à medida que a debilitação semântica de habere se

acentuava, tenere ia ganhando espaço e maior aceitação entre os falantes” (COSTA

2010:61), até se tornar o verbo mais produtivo em construções com PTP. Observe-se como

exemplo o trecho abaixo, retirado da Crónica de Afonso X, texto do século 14, em que o

mesmo tipo de complemento menaje~es ocorre primeiramente com ter e, logo após, com

haver, o que sugere que neste período já não havia uma delimitação semântica muito clara

entre os dois verbos.

(41) El rey dom Afonso, conheçidas as maneiras dos alema~aes e desasperado de cobrar

o inperio, tornousse pera Castela desfazer as menaje~es que tiinha~ feitas a seu

neto do~ Afonso e ma~douas fazer ao iffante do~ Sancho, seu filho. A raynha sua

molher, que era filha del rey do~ James d' Arago~, tomou os filhos do iffante do~

Ferna~do, seus netos, do~ Afonso de Laçerda e do~ Fernando e foysse co~ eles pera

Arago~, dize~do que se temia de os matare~. Dhy e~vyou dizer a el rey do~ Afonso

que desse o reyno de Murcia a seu neto do~ Afonso, e que lhe quytarya a menaje~

que lhe avya~ feita. (CA14-017; CA14-018 – Crónica de Afonso X; século 14)

Por outro lado, ainda que haver perca seu espaço semântico para o verbo ter, que

se torna o verbo prototípico dos tempos compostos, adquire, no PA, outras acepções, como

a significação existencial, contexto posteriormente associado também a ter. Observe-se o

exemplo abaixo, também retirado da Crónica de Afonso X, século 14, em que haver ocorre

em uma construção com PTP, que pode ser interpretada ou como estrutura de posse ou

como estrutura existencial.

(42) E, nas villas das estremaduras, avya outros foros apartados. (CA14-039 – Crónica de

Afonso X; século 14)

Em (42) as leituras possíveis são (i) Ø havia outros foros apartados e (ii) X havia

outros foros apartados. No caso de (42) classificamos a estrutura como de posse, baseando-

nos em Avelar & Callou (2007), segundo os quais não há, necessariamente, valor existencial

em sentenças como “tem várias maçãs na geladeira” ou “tem várias calças dentro do

armário” no Português Europeu.

90

As subseções seguintes trarão os resultados obtidos no que respeita a concordância

entre o PTP e o complemento das construções com ter e haver e a ordem dos constituintes

na sentença. Em seguida, descreveremos o processo de gramaticalização de ter e haver com

base nos resultados obtidos e na análise do corpus.

3.4.2. Concordância do PTP com o complemento de ter/haver

As construções formadas com ter/haver + PTP, como visto anteriormente, podiam

exibir ou não marcas de concordância entre o PTP e o complemento direto de ter e haver.

Quando são documentadas marcas flexionais de concordância, interpretamos a perífrase

como uma construção adjetiva, isto é, nestes casos, o PTP é de caráter adjetivo e funciona

como um modificador do complemento de ter e haver. Nestes contextos, ter e haver são

analisados como verbos plenos, com conteúdo semântico de posse, não tendo ainda sofrido

o processo de gramaticalização que os transformam, posteriormente, em verbos auxiliares.

Quando as marcas de concordância não são documentadas, interpretamos a estrutura como

sendo de tempo composto perfectivo, isto é, ter e haver funcionam como verbos auxiliares,

não atribuidores de papel temático, e o PTP é reinterpretado como um verbo, não exibindo

os traços nominais típicos dos adjetivos. Contudo, foram documentados casos considerados

ambíguos, em que o complemento direto de ter e haver é masculino, singular, não sendo

possível, pois, saber se o PTP concorda, de fato, com o complemento dos verbos em

questão.

A análise do corpus, no que respeita à concordância, foi feita da seguinte maneira.

Analisamos os complementos das perífrases com ter/haver + PTP em gênero e número,

podendo este ser masculino, feminino, singular e plural. Deste modo, o complemento podia

concordar em (i) número, (ii) gênero e (iii) gênero e número. Foram controlados ainda os

casos em que a concordância não se aplica, uma vez que o complemento era um pronome

interrogativo ou substantivo ou nulo sem antecedente e, ainda, os casos em que o

complemento estava relativizado. Observem-se abaixo exemplos dos tipos de concordância

analisados no corpus.

91

- Concordância de número

a. Singular

(42) (...) e saymdo do reyno de Cambaya começou a entrar e fazer guerra ao Ballagate,

cujas terras agora sa~o do Idalca~o, tomamdo e destroymdo muitas cidades e

lugares, de maneira que despois de ter feyto muyto dapno, deixamdo aos naturaes

da terra as armas por lhas na~o poderem defemder, lhe entregara~o os corpos e

fazemdas. (CRB16-003 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(43) (...) mas antes jaa d este tempo en todo ho reyno de Bisnaga, na~o avya lugar

tomado, salvo a cidade de Nagumdym. (CRB16-091 – Crónica dos Reis de Bisnaga;

século 16)

b. Plural

(44) E tanto que errar duas ou tres vezes, por buscar tarde, digam-lhe que se avyse de

buscar cedo, por tal que, nom encontrando per boa vista, encontre per esmo, e se

ventuira ouver d’aver algu~a boa squeença, o acrecentamento do prazer e da

voontade lhe dara´ esforço de teer os olhos abertos aos encontros. (LBE15-023 –

Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)

(45) Et eu o d(i)to frey M(arti)no outorgo q(ue) sejan f(ey)ct(a)s de paz aaq(ue)l q(ue) as

teuer p(er) los be~es do d(i)to Afon(so) Yan(e)s Veloso q(ue) p(ar)a elo obligo et

outorgo & co~firmo sobr(e) elo o aluala p(er) q(ue) vos las dant(e) tjña dadas &

outorgadas. (TN15-009 – Textos Notariais; século 15)

- Concordância de gênero

a. Feminino

(46) Outrosy mandamos que se omen sen memoria ou sen syso ou que no~ aya ydade

ou q(ue) aya feyta t(ra)yçon a al rey ou (contra) senhor ou (contra) qualquer

senhorio ou monge ou freyre q(ue) aya feyta promisso~ ouq(ue) esteue p(er) huu

ano en ordi~ en prouo, der algu~a cousa d(e) seu, no~ ualha. (FR13-022 – Foro Real

de D. Afonso X; século 13)

(47) Enquanto el rey dom Afonso teve cercada esta villa, mandou o iffante do~

Henrrique, seu yrma~ao, que fosse cercar a villa d'Arcos e outrossi Librixa, que era

dhu~a moura. (CA14-005 – Crónica de D. Afonso X; século 14)

b. Masculino

92

(48) El reyfoy çercar el rey d' Arago~ na vila de Murça e teveo çercado seys somanas.

(CA14-040 – Crónica de D. Afonso X; século 14)

(49) Ora, avemosbuscado o lugar p(er)a edeficar nosso castello, (...). (CP15-011 –

Castelo Perigoso; século 15)

- Concordância de gênero e número

a. Singular, feminino

(50) E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e|

nono possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou

a ffaz(er) e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001 – Foro Real de D.

Afonso X, século 13)

(51) El rey de Castela teve çercada Lixboa per mar e per terra algu~us dias. (HRP15-003

– História dos Reis de Portugal; século 15)

b. Singular, masculino

(52) E aquella parte da redea que aa ma~a~o deve tornar, tenha seu noo assy acertado

que, ainda que o justador desfaça a volta, que sempre a torne dar certa, ficando a

rredea em tal longura como se requere trazer. (LBE15-027 – Livro da Ensinança do

Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)

(53) E daqueste, que se pode dizer senom que deos por seus pecados o desemparou

specialmente do grande bem que lhe avya outorgado? (LBE15-017 – Livro da

Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)

c. Plural, feminino

(54) Saluo ende q(ue) dessem os sesmeyros ((L041)) q(ue) meteu o co~celho. a cada

hu~u~ daq(ue)les q(ue) ti´j´a~ ((L042)) as p(re)surias filhadas aq(ue)lo q(ue) uissem

por be~ e como ualia ((L043)) eno~ mellor logo q(ue) ouuesse e~na p(re)suria q(ue)

ti´j´a~. (CA13-003 – Chancelaria de D. Afonso III; século 13)

(55) Sabham todos q(ue) em p(re)sença de mj~ Thom(e) affonso pu(blico) Tabelio~ de

Guimara~es (e) das t(estemunha)s adea~te sc(ri)ptas Sobre conte~da (e) dema~da

q(ue) era (e) sp(er)aua a sseer ant(re) don M(ar)tin vila noua Priol (e) o Conue~to

do Moestei´ro de vilari~o do Arçab(is)pado de Braga´a, da hu~a p(ar)te. (e) Joham

rro(drigu)iz fferraz scudei´ro da outra por rrazo~ das herdades q(ue) o d(i)to

Mon(steiro) aui´a gaanhadas na Qui~ta~a da Ramada [...] (TN14-002 – Textos

Notariais; século 14)

93

d. Plural, masculino

(56) Como se alçaron todollos mouros dos logares que el rey dom Afonso avia

guaanhados e se perdeo Exarez e muytos outros logares e do que el rey sobr'elo

fez Antre as cousas que aco~teceron en tempo del rei dom Fernando, seu padre

deste rey dom Afo~so, diz a estoria que, seendo este dom Afonso iffante,

guaanhou: o reyno de Murça, en que regnava naquel tempo Abenhuxel, como quer

que en outros logares se acha scripto que este Abenhuxel non reynava en Murça.

(CA14-014 – Crónica de Afonso X; século 14)

(57) E leixou Joha~ Fernandez de Fenastrosa por fronteyro e~ Taraçona e outros

cavaleyros e ge~tes pelas vilas e castelos que em Arago~ tiinha tomados. (CA14-06

– Crónica de Afonso X; século 14)

Sobre a expressão das marcas de concordância do PTP com o complemento das

construções perifrásticas em questão em Português, Câmara Jr (1973) atribui sua origem ao

Latim. Em Latim, o verbo recebia, além da flexão número-pessoal, marcações morfológicas

para expressar tempo, modo e aspecto. Com o tempo, houve a perda das marcas

morfológicas aspectuais, que seriam expressas pelas marcas de concordância entre o PTP e

o complemento, ao que se associa o surgimento das construções perifrásticas e ao próprio

rearranjo do sistema verbal latino. Segundo o autor, a perda destas marcas aspectuais foi o

que motivou a entrada das conjugações perifrásticas em uso pleno na língua, uma vez que,

nestas construções o verbo auxiliar se combinava a uma forma verbal para expressar não só

tempo e modo, mas também aspecto, isto é, a expressão verbal como um todo subordinava

a si o complemento, fazendo com que se preservassem as marcas de concordância do PTP

com o complemento.

Mattos e Silva (2002), acerca da concordância do PTP com o complemento,

considera que este é um dos fatores para não considerar as construções com ter e haver +

PTP como de tempo composto. Segundo a autora, a presença de marcas flexionais de

concordância indica que ainda não havia ocorrido a fusão semântica e sintática típica do

tempo composto, sendo o PTP, portanto, ainda um adjetivo e ter e haver verbos plenos.

Em relação à concordância entre o PTP e complemento em dados de ter e haver

nas construções participiais do século 17, Eleutério (2003) verificou que, quando o

complemento se encontrava à esquerda do predicador, o PTP apresenta um número maior

de formas com concordância. Para a autora, a difusão da mudança teria ocorrido a partir de

94

formas ambíguas, com complemento no masculino, singular, forma esta considerada menos

evidente, uma vez que é morfologicamente [-marcada].

Assim como Eleutério (2003) e Almeida (2006), neste trabalho consideramos que as

construções com complemento masculino, singular são responsáveis pela difusão da

mudança. Segundo as autoras, isto ocorre, pois nesta forma de complemento, por ser

morfologicamente [-marcado], não é evidente a marcação da concordância.

Para verificar a relaçãoa da aplicação da concordância relativamente ao verbo, isto

é, em que medida a concordância se aplica, relacionada às construções com ter e com

haver, foi feito o seguinte levantamento, que se observa na tabela abaixo.

TER HAVER

+ Concordância 84 – 43% 57 – 44%

- Concordância 15 – 7% 17 – 13%

Casos ambíguos: masculino singular 43 – 22% 33 – 25%

Casos ambíguos: pronome relativo, interrogativo

ou substantivo sem antecedente/nulo sem

antecedente)

54 – 28%

23 – 17%

TOTAL 196 – 100% 130 – 100%

Tabela 9: Marcação de concordância em construções com ter e com haver

Como visto anteriormente, dos 326 dados levantados no corpus, 196 foram de

estruturas formadas por ter + PTP e 130 foram de estruturas formadas por haver + PTP.

Destes dados, foram documentadas 84 construções com marcação de concordância e 15

construções sem marcação de concordância, para ter, contra 57 ocorrências de estruturas

sem marcação de concordância e 17 estruturas sem marcas de concordância para haver.

Percentualmente os dados de ter e de haver com concordância são semelhantes, somando

43% e 44% para cada verbo, respectivamente. Em relação à ausência de concordância, os

pontos percentuais somam 7% para ter e 13% para haver.

Em relação aos casos ditos ambíguos, devido a impossibilidade de precisar se há ou

não marcação de concordância, estes foram divididos em duas categorias: casos em que o

complemento está no masculino, singular, e casos em que houve presença de pronome

relativo, interrogativo ou substantivo sem antecedente ou complemento nulo sem

antecedente. No que concerne o primeiro grupo, estes dados somam percentuais

semelhantes, sendo 22% dentre as construções com haver, e 25% dentre as construções

95

com ter. No que respeita o segundo grupo de dados ambíguos, estes somam 28% para as

estruturas com ter e 17% para as estruturas com haver.

Observem-se exemplos deste tipo de construção abaixo.

(58) "Eu nom me guabo que aja cobrado o q(ue) desejo, mes vou semp(re) por acallçar

o gualardom". (CP15-029 – Castelo Perigoso; século 15)

(59) Mes quando homem tem paguado o que deve, entom pode faz(er) e diz(er) o que

q(ui)s(er). (CP15-033 – Castelo Perigoso; século 15)

O cruzamento dos grupos de fatores gênero, número e concordância corrobora a

hipótese proposta de que os dados com complemento singular, masculino possam ter sido o

gatilho da mudança. Como se observa na tabela abaixo, que mostra o número de

ocorrências dos dados com complemento feminino, plural; feminino, singular; masculino,

plural e masculino, singular, relacionados a concordância entre o PTP e o complemento, o

número de ocorrências de complementos masculino, singular é o maior dentre todas as

combinações possíveis.

Feminino Masculino

Número de ocorrências Número de ocorrências

Plural + concordância 46 38

- concordância 8 9

Singular + concordância 57 76

- concordância 15 -

Tabela 10: Marcação da concordância em relação ao gênero e número do complemento

Como se observa na Tabela 10, acima, as maiores ocorrências no corpus são de

dados masculino, singular, somando 76 em um total de 326 dados levantados. A frequente

ocorrência de estruturas com complementos deste tipo pode ser um indício de que estas

construções foram as que levaram à gramaticalização de ter e haver como verbos auxiliares.

De acordo com o modelo de mudança de R&R (2003), são os dados ambíguos e obscuros

que levam o aprendiz à reanálise das estruturas em questão. Segundo os autores, “(…) if the

trigger is ambiguous, the learner will choose the option that yields the simpler

representation34” (R&R 2003:27). Como visto anteriormente, as construções de tempo

34 “Se o gatilho linguístico é ambíguo o aprendiz irá escolher a opção que apresenta a representação mais simples” [minha tradução]

96

composto são estruturalmente mais simples do que as estruturas adjetivas, uma vez que

não exigem movimento do verbo de V para I. Desta forma, uma vez que o gatilho no

momento da aquisição da linguagem é ambíguo, o falante opta pela construção mais

simples, interpretando as construções de ter/haver + PTP com complemento masculino,

singular, como de tempo composto.

Além disso, a questão da maior frequência deste tipo de construção no corpus

pode ser entendida como uma evidência de que este era o gatilho mais frequente no

período de aquisição da linguagem. Em um modelo em que a mudança é vista em termos de

mudanças paramétricas, isto é, uma mudança na fixação de um dado parâmetro no período

de aquisição da língua, a frequência é uma evidência importante. Isto se dá uma vez que,

quanto maior a frequência de um dado fenômeno, mais este estará servindo de input para

as gerações seguintes de falantes. Sendo as construções com complemento masculino,

singular, estruturas ambíguas e, também, as mais frequentes, sugerimos que no momento

da aquisição da linguagem uma dada população de falantes teve como input mais frequente

este tipo de construção, o que os levou a internalizá-la. Sendo a interpretação das

construções com este tipo de complemento como tempo composto a mais econômica, seria

esta a forma que os falantes da geração seguinte adquiriram.

Em relação ao período histórico, houve dados interessantes no que respeita a

concordância. Observe-se a tabela abaixo, que traz a distribuição dos exemplos com e sem

marcas de concordância do PTP com o complemento, por século.

Século + Concordância – Concordância Ambíguos

(masc. Sing)

Pron. +qu TOTAL

Oco. – % Oco. – % Oco. – % Oco. – %

13 30 – 48% 2 – 3% 21 – 34% 9 – 15% 62

14 38 – 56% 10 – 14% 14 – 21% 6 – 9% 68

15 39 – 44% 7 – 8% 18 – 20% 24 – 27% 88

16 34 – 32% 13 – 12% 23 – 21% 38 – 35% 108

Total 141 – 43% 32 – 10% 76 – 23% 77 – 24% 326

Tabela 11: Realização da concordância, por século

Na tabela acima observa-se que já no século 13 foram documentados dados de

construções sem marcas de concordância do PTP com o complemento. Neste século, dos 62

97

dados levantados 48% foram de construções em que havia marcação de concordância e 3%

foram de construções sem marcas de concordância, como se observa em (60) e (61), abaixo,

sendo uma ocorrência com ter e uma com haver. Os dados restantes foram de dados

ambíguos com complemento masculino, singular, somando 34% das ocorrências, e de dados

ambíguos, formados por construções em que a concordância não se aplica, como ocorre em

construções com pronome interrogativo ou substantivo sem antecedente, ou complemento

nulo sem antecedente, somando um total de 15% Observem-se abaixo os dados de tempo

composto perfectivo encontrados no corpus do século 13.

(60) E plus li a custado uosa aiuda q(u)ali ind(e) ca(e) derdad(e). (NT13-001 – Notícias

do Torto; século 13)

(61) Se alguu d(e)mandar outro en iuyzo e o demandador lhy teu(er) forçado algu~a

cousa, ben se pod(e) deffender de lly no~ responder ata que o entrege daq(ui)llo

q(ue) lhy teu(er) forçado e non entre en iuyzo cono forçador ameos de seer

entregado. (FR13-004 - Foro Real de D. Afonso X; século 13)

Os dados do século 14 mostram que neste período cresce a porcentagem das

construções sem marcas explícitas de concordância, somando 14% dos dados deste período.

Os dados com marcas explícitas de concordância somam 56% do total. Em relação aos

dados ditos ambíguos, os com complemento masculino, singular somam 21% das estruturas

deste século, enquanto as estruturas que apresentam pronome interrogativo ou substantivo

sem antecedente, ou complemento nulo sem antecedente somam 9% do total. Observem-

se abaixo os dados de construções sem concordância levantados no século 14.

(62) Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as

posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de

Graada. (CA14-001 – Crónica de Afonso X; século 14)

(63) Os mouros destes logares, desque souberom que el rey avya cobrado Exarez,

entregaron estes logares ao iffante dom Anrrique, con condiçon que ficassem en

elles en suas herdades35. (CA14-006 – Crónica de Afonso X; século 14)

(64) No quinto a~no do reynado deste rey dom Afonso, depois que ouve feitas as

cousas que a estoria ha contado, pensou maneira como fezesse serviço a Deus por

35 Neste exemplo, consideramos o NP [Exarez] como feminino, uma vez que se trata de “a vila de Exarez”.

98

exalçamento de sua fe e acrece~tamento de seus regnos. (CA14-008 – Crónica de

Afonso X; século 14)

(65) E, depoys que la foy, sabendo como do~ Telo, senhor de Bizcaya, seu irma~ao, era

ferido e requerendo-lhe o iffante Bizcaya36, segundo lhe tiinha prometido e~

Bilbaao, foy morto pelos porteyros per mandado del rey. (CA14-028 – Crónica de

Afonso X; século 14)

(66) E rey do~ Pedro foy logo apoderado de todolos reynos de Castellae, usando de seus

primeyros custumes, no~ pagou ao prinçipe o soldo que era devido a suas gentes,

ne~ lhe manteve as juras e promesas que lhe avya jurado de lhe entregar a Bizcaya

e a Castro d' Ordyales, e de dar a çidade de Sorya a Mosse~ Joha~, co~destabre de

Guyana, das quaes cousas o prinçipe mal co~tento se partyo de Castela. (CA14-032

– Crónica de Afonso X; século 14)

(67) E dhy se tornou pera el rey seu padre. E no trezeno a~no do reynado del rey

Enrryque, foy feyta paz antre Castella e Navarraco~ estas co~diço~oes: que el rey

de Navarra lançasse fora os capita~aes ingreses que avya~ feito guerra e danoe~

Castella e que el rey de Navarra posesse em fieldade vi~ite castellos e~ ma~ao dos

castella~aos. (CA14-035 – Crónica de Afonso X; século 14)

(68) Estas beatryas sam algu~as vilas asy chamadas, por que pode tomar senhor qual

lhe mays bem fezer e partyrsse dele quando quysesse~. E dize~ que ouvero~

começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os home~es começava~ de

povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos quaaes el rey no~ curava

seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século 14)

(69) Ao Senn(or) da t(e)rra saluo en facere~ foro co~ se(us) ueçi~os en p(ro)l do co~çelo

((L017)) e se pela uent(ur)a acaeçe q(ue) eses menjos orfaos mora~ todos en #j

cassa e q(ue) an p(ar)tido ((L018)) ffacam todos #j fforo. e sse an o p(ar)tido e

mora~ todos cada hu´u´ en sa cassa fac[er] cada ((L019)) hu´u´ p(er) ssi en p(ro)l do

conçelho e dos solteyrosq(ue) nos ma~dastes dicer se lis dero~ ((L020))

herdam(en)tos na p(re)soria da t(e)rra façam foro ta~ be~ coma os cassados se

ouuerem ((L021)) na ualia. (FG14-001 – Foros de Garvão; século 14)

36 Neste exemplo, consideramos o NP [Bizcaya] como feminino, uma vez que se trata de “a cidade de Bizcaya”.

99

(70) Ao Senn(or) da t(e)rra saluo en facere~ foro co~ se(us) ueçi~os en p(ro)l do co~çelo

((L017)) e se pela uent(ur)a acaeçe q(ue) eses menjos orfaos mora~ todos en #j

cassa e q(ue) an p(ar)tido ((L018)) ffacam todos #j fforo. e sse an o p(ar)tido e

mora~ todos cada hu´u´ en sa cassa fac[er] cada ((L019)) hu´u´ p(er) ssi en p(ro)l do

conçelho e dos solteyrosq(ue) nos ma~dastes dicer se lis dero~ ((L020))

herdam(en)tos na p(re)soria da t(e)rra façam foro ta~ be~ coma os cassados se

ouuerem ((L021)) na ualia. (FG14-002 – Foros de Garvão; século 14)

(71) E nos Auemos (e) p(ro)metemos a au(er) firme (e) outorgado todalas cousas

(e)cada hu~a ((L014)) delas q(ue) fore~ f(e)ctas pelo d(i)cto nosso p(ro)curador so

obligaço~ de todos nossos be~es (e) do d(i)cto Mon(steiro)q(ue) p(er)a esto

obligamos ((L015)) f(e)cta a p(ro)curaço~ no d(i)cto Mon(steiro) #xij dias de

ffeu(er)ei´ro Era de Mil (e) t(re)ze~tos (e)Nouee~ta (e) quat(ro) Anos. (CHP14-005 –

Textos Notariais in Clíticos da História de Portugal; século 14)

O corpus do século 15 apresenta menos exemplos de dados sem marcas de

concordância, somando 8% do total. Em contrapartida, sobe a proporção de dados em que

não é possível documentar a concordância, sendo, pois, considerados ambíguos. Dentre os

dados ambíguos, os com complemento masculino, singular, somam 20% do total, enquanto

os dados ambíguos representados na tabela por Pron. +qu somam 27%. Possivelmente a

queda do percentual dos dados sem marcas de concordância esteja relacionada ao aumento

dos dados ambíguos. Como visto anteriormente, esperamos que sejam os dados ambíguos,

em que não é possível precisar se há ou não marcação de concordância, o gatilho para a

gramaticalização que levou à emergência dos tempos compostos em Português. Finalmente,

em relação aos dados com concordância, estes somam 44% das ocorrências. Observem-se

abaixo os exemplos sem marcas de concordância encontrados no corpus do século 15. Note-

se que entre estes dados encontram-se ocorrências de complementos preposicionados,

como em (72), (73) e (74), e de PTP Inergativo, como em (75), ao que se associa a não

marcação da concordância.

(72) "Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua

voontade e e´s metida em tuas çujasforniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te

rrecebereidocem[en]t(e)". (CP15-010 – Castelo Perigoso; século 15)

100

(73) D(eu)s v(os) rrogo e conjuro todas devotas pessoas que avees cuidado de vossa

salvaçom, honrrae e amaae e s(er)vii de coraçom e de boca e de feito esta gloriosa

senhora; (CP15-015 – Castelo Perigoso; século 15)

(74) Hoovo´s, devotas c(re)aturas que avees cuidado da vossa sau´de, esguardaae a

desposiçom do co(r)po do vosso amigo! (CP15-019 – Castelo Perigoso; século 15)

(75) Isto acontece q(ua)ndo a pessoa a que D(eu)s fez tantas g(ra)çasensob(re)vece e

parece-lhe que tem asaz trabalhado e que he bem tenpo de folguar. (CP15-032 –

Castelo Perigoso; século 15)

(76) E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras

d’elrrey, meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado

grandes famas, estados e boas gaanças por seerem muyto ajudados desta manha.

(LBE15-001 – Livro da Bem Ensinança do Cavalgar Toda Sela; século 15)

(77) [...]sabendo bem q(ue) vos, Ares Gonçalues, contador do señor don Pedro, ob(is)po

de Mondoñedo, q(ue) presente estades, auedes tragido & persuydo & tragedes &

persuydes libre & paçificamente ha herdade da Liñeira q(ue) jaz et he sita en

Masma. (TN15-005 – Textos Notariais in Clíticos da História de Portugal; século 15)

(78) Estando dom frey Ar(ia)s, abbade do mosteyro de S(an)ta M(ari)a d'Oseyra, et frey

P(edr)o de Lueda, p(r)ior, et o sup(r)ior et çelareyro et esmoleyro et os out(r)os

oficiaas & mo~jes do d(i)to m(osteyr)o, todos juntos en(n)o cap(itu)lo do d(i)to

mosteyro, depoys de avido seu acordo & co~selo et avendo co~siderado et visto

com(m)o este d(i)to mos[t]eyro avia avido moy g(r)andes p(er)das & rreçebidos

moy g(r)andes danos por las g(r)andes gerras q(ue) ouuo ent(r)e os señor(e)s

com(m)o esso meesmo pl(ey)tos et letigios entre los abbades q(ue) ouuo em este

m(osteyr)o moy longos t(en)pos por lo q(u)al ouuo reçebidas g(r)andes p(er)das et

danos asy en(n)as possiso~os et be~es, gra~jas, coutos, casares et herdad(e)s et

jurdiço~os et senorio q(ue) sobre elo avia o d(i)to mos[t]eyro por p(r)iuilegos, usos

et custumes; o q(u)al por lo q(ue) d(i)to he & por la mj~goa de justiçia real q(ue) en

este Reyno de Galiza foy et he faliçida & cariçida, ouuero~ cabsa os señores

t(en)poraas entrar et tomar a jurdiço~ et senorio dos d(i)tos coutos, g(r)anjas &

lugar(e)s q(ue) ao d(i)to m(osteyr)o p(er)tiçiam. (TN15-013 – Textos Notariais in

Clíticos da História de Portugal; século 15)

No século 16, os dados de construções de tempo composto, isto é, de estruturas

sem marcas de concordância, somam 12% do total contra 32% de construções com marcas

de concordância. Em relação às construções ambíguas, aquelas que apresentam

complemento masculino, singular somam 21% dos dados, ao passo que as com pronome

+qu somam 35%. Observem-se abaixo as ocorrências de estruturas de tempo composto no

século 16.

101

(79) (...) partindo se el rey pera seu reyno, por respeyto da nova que lhe hera vymda,

deixamdo o reyno de Bisnaga em poder de Meliquy niby, sabido por toda a terra

como era fora d ella, os que escapara~o pellas montanhas, e outros, que contra

suas vontades com temor lhe tinha~o dado as menage~es das villas e lugares.

(CRB16-010 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(80) (...) e passados allgu~us dias, cuydamdo Narsenaque na treyça~o em que lhe

fallavao, (...) chamou hu~u dia aquelles capita~es, que lhe per muytas vezes

tinha~o cometido, e preguntou lhe que maneyra terya pera matar elrey, sem ser

sabido que ho mamdava elle matar. (CRB16-020 – Crónica dos Reis de Bisnaga;

século 16).

(81) Despois de chegado Salvatinia, e muyto bem recebido d elrey, despois de ssua

chegada allgu~us dias, lhe disse elrey que elle desejava de comprir em todo ho

testamento d elrey Narsynga, que era tomar lhe Rachol37, que era hu~a cidade

muito forte, e das primcipaes do ydallca~o, que elle tinha tomado aos reys d

antepassados. (CRB16-030 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16).

(82) Despois de ter elrey feito suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade

de Bisnaga con toda a sua gente. (CRB16-032 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século

16)

(83) [...] e os que se quisesem hir que se fosem na boa ora con todo o seu, alevantados

todos as ma~os pera ho ceo se deitara~o no cha~o por averem recebido tamanha

mercê. (CRB16-039 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(84) e per todos os reys con tanta verdade mantida, que na~o sabe por que te

demoveste a lhe fazer tamanha guerra, que sem sospeyta estava, quoamdo lhe

dera~o novas em como tinhas cercado a cidade de Rachol, e a comarca roubada e

destroyda, as quoaes novas fora~o causa de se mover e vir a socorrella, omde por

ty, foy toda sua corte morta, e o seu arayall todo roubado e destruydo, como tu es

boa testemunha do que asyr he feyto, e que te pede que do tal faças emmemda, e

mamdes tornar a sua artelharya e temdas, cavallos e allyfantes, com o mays que

lhe he tomado (CRB16-046 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(85) E despois d este rey ter acabado ysto, e ter alcamçado tanta vitorya de seus

ymmiguos, vemdo se ja homem de hidade desejamdo de descamsar em sua

velhice, e que hu~u filho que tinha ficasse rey por sua morte, detreminou de ho

fazer rey em sua vida. (CRB16-052 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16).

(86) elle tinha destroydo os primcypaes home~es de seu reynoe mortos seus filhos, e

tomadas suas fazemdas, tudo por comselho de seus cunhados por quem elle hera

mamdado; (CRB16-058 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(87) Depois tomamdo as portas da primeira serra, diguo que a entrada da porta omde

vem os que va~o de Goa, que he a mays principal entrada da bamda d aloeste,

37 Neste exemplo consideramos o NP [Rachol] como feminino, singular, uma vez que se trata “da cidade de Rachol”.

102

dentro tem feito este rey hu~a cidade muy forte de muros e torres, e as portas

com hu~as entradas muy fortes com torres nas portas; (CRB16-069 – Crónica dos

Reis de Bisnaga; século 16)

(88) e os lutadores va~o se por junto com a escada, que no meyo d aquella casa estaa, e

tem feyto hu~a eyra gramde de terra solta omde luta~o as molheres solteyras e

baylhadores; (CRB16-081 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)

(89) E alem de ter esta gente, la tem suas pemsso~is que paga~o a elrey em cada hu~u

anno, tambem elrey tem sua gente hordenada a quem daa soldo, e tem oyto

centos allyfantes de sua pessoa, e quynhemtos cavallos continuadamente na sua

estrebarya, e pera estes gastos dos alyfantes e cavallos tem dado as remdas que

lhe remde a cidade de Bisnaga. (CRB16-083 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século

16)

(90) Comuem a saber que porquamto a dita s(enho)ra dona guyomar tem vemdido a

Jorge de sousa q(ue) hora he na India dous moyos (e) meio de trygo da dita

fazemda Com pacto de Retro vemdemdo //(e)// por preço (e) comthia de çemto (e)

quaremta (e) seis mill r(eae)s elle dito s(e)nn(h)or dom amRique ma~dara

deposytar em Juizo os ditos çemto (e) coRemta (e) seis mill r(eae)s pera os aver o

dito Jorge de sousa (e) fficar llyure a dita ffazemda (e) desta maneira os ha ella dita

s(enho)ra dona guyomar por Reçebidos em sy (DN16-005 – Documentos Notariais;

século 16)

(91) E com as comdiço~es em elle comtheudas (e) ella catarjna p(er)iz disse que ella

((L069)) que ella/sic/ o outorga (e) açeitava asy (e) da maneJra q(ue) em elle se

comte~ (e) dava sua ((L070)) outorga ao di(c)to p(ra)zo (e) obrigou a ello seu(s)

be~es (e) se obrigou a elle assy (e) da man(eira) ((L071)) q(ue) ho di(c)to seu

marjdo tem fe(i)to (e) outorgado. (CHP16-003 – Textos Notariais in Clíticos da

História de Portugal; século 16)

De modo geral observamos que, em relação aos séculos, os dados de construções

sem marcas de concordância aumentam desde o século 13. Os dados de estruturas

adjetivas, com marcas explícitas de concordância se mantêm ao longo dos séculos, uma vez

que a reanálise não pressupõe que a estrutura original desapareça da gramática; portanto,

as construções transitivas-predicativas se mantêm até hoje em Português. As estruturas

ambíguas, de maneira geral, aumentam ao longo dos séculos, assim como as sem marcas de

concordância. O gráfico abaixo ilustra mais claramente o comportamento das construções

com ter/haver + PTP com e sem concordância ao longo dos séculos.

103

Gráfico 2: Realização da concordância nas construções de ter e haver + PTP ao longo do tempo

O gráfico 2, acima, traz os percentuais dos dados com marcas de concordância, sem

marcas de concordância e dos dados considerados ambíguos, que foram amalgamados em

uma única categoria, ao longo dos séculos. Como é possível observar, as ocorrências de

estruturas de ter/haver + PTP sem marcação de concordância aumenta ao longo dos

séculos, mas se mantém relativamente estável. No século 13 o percentual das ocorrências

de construções de tempo composto somam 3% do total, valor que aumenta para 14% no

século seguinte. No século 15 há uma pequena queda, passando a 8% das ocorrências.

Finalmente, no século 16, o percentual de estruturas de tempo composto sobre para 12%.

Em relação às construções com marcas explícitas de concordância, nota-se uma

queda percentual a partir do século 15. As construções ambíguas (pronome +qu), por outro

lado, sofrem um aumento a partir deste período. As curvas relativas às estruturas com

concordância e aos dados ambíguos sugerem que no período estudado ocorre uma

competição entre estas duas estruturas, e não entre as primeiras e as sem marcação de

concordância. Dito isto, é possível sugerir que, ao passo que as estruturas de tempo

composto vão ganhando espaço na gramática do Português, as estruturas ambíguas

competem com as estruturas adjetivas. Neste período de competição vencem as estruturas

ambíguas que recebem a interpretação de tempo composto e não aquelas interpretadas

como estruturas adjetivas. Deste modo, é possível afirmar, com base nisto e em outras

48%

56%

44%

32%

3%

14%

8%12%

49%

30%

47%

56%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

13 14 15 16

CONCORDÂNCIA NÃO-CONCORDÂNCIA AMBÍGUOS

104

evidências que serão vistas mais adiante, que as estruturas ambíguas compõem o gatilho da

gramaticalização que levou à emergência dos tempos compostos perfectivos em Português.

Em relação à localização temporal da emergência das estruturas em questão,

observamos o seguinte. Levando em consideração a perda das marcas de concordância, a

concepção de mudança de Lightfoot (1979, 1991, 1998) e o modelo de mudança por

gramaticalização de R&R (2003), é possível afirmar que a mudança que resulta na

emergência dos tempos compostos começa já no século 13, uma vez que neste século são

documentadas estruturas sem marcas de concordância e com a ordem típica dos tempos

compostos, [V PTP N], assunto que será debatido em mais detalhes na subseção seguinte.

Como visto, a mudança diacrônica é interpretada, nos termos de Lightfoot (1998) não como

uma mudança na língua, mas como mudanças nas gramáticas particulares de cada falante.

Sendo assim, a mudança se dá quando há uma mudança no ambiente linguístico no qual a

criança cresce: se o ambiente é minimamente distinto, a criança irá desenvolver uma

gramática diferente da gramática de seus pais. A mudança linguística é, pois, a mudança de

gramáticas individuais se espalhando em uma população.

No que respeita o espraiamento da mudança que levou as construções com

ter/haver + PTP adjetivo a serem reinterpretadas como estruturas de tempo composto

perfectivo em Português, observamos que sua implementação se dá no século 13, mas seu

espraiamento ocorre alguns séculos depois. Isto fica claro com o aumento das construções

sem concordância e das construções ambíguas em relação às construções com concordância

ao longo dos séculos. Como os dados da Tabela 11 mostram, as primeiras ocorrências de

dados sem marcas morfológicas de concordância surgem inicialmente no século 13 e seu

percentual aumenta ao longo dos séculos. Os dados ambíguos com complemento

masculino, singular, somam 34% das construções no século 13, passando a somar em média

20% nos séculos seguintes. O restante dos dados ambíguos segue aumentando ao longo dos

séculos. As construções com marcas de concordância, por outro lado, sofre uma queda

percentual a partir do século 14.

Da mesma forma, R&R (2003) assumem que a mudança linguística é um caso

regular de mudança paramétrica, sendo esta um aspecto do processo de fixação

paramétrica. A mudança tem início quando uma população de aprendizes adquire uma

gramática que difere em pelo menos um parâmetro da gramática dos falantes cujo

comportamento serviu de base para estes aprendizes. À medida que a geração mais nova

105

substitui a geração mais velha, a mudança também é levada adiante. A mudança

paramétrica se dá, então, da seguinte forma:

“(…) if the parameter expression is robust enough, it will lead to the correct parameter setting. If, however, the parameter setting is ambiguous, then there must be some ‘safety mechanism’ in the learning device which leads to the assigment of a value – weak determinism requires this. This value will still be compatible with the input, but – again due to weak determinism – may differ from that of the target grammar, thus yielding a change38” (R&R 2003:15).

Ainda segundo R&R, “(…) if the trigger is ambiguous, the learner will choose the

option that yields the simpler representation39” (R&R 2003:27). Deste modo, de acordo com

R&R (2003), a aquisição da linguagem é vista como um processo de fixação paramétrica,

enquanto a mudança sintática é vista como o resultado da mudança ou resetting dos valores

paramétricos.

Sendo a gramaticalização um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise de

ter e haver como auxiliares de tempo composto se daria no momento de aquisição da

linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991), sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por

evidências linguísticas ambíguas aos aprendizes que adquirem sua gramática (cf. R&R 2003).

Deste modo, com base no que foi exposto acima, assumimos que a reanálise de ter e haver

tenha tido início com base em dois parâmetros: (1) construções com ter e haver + PTP, com

complemento masculino, singular, ou construções do tipo +qu, cuja interpretação é a de

uma perífrase adjetiva e (2) construções com ter e haver + PTP, com complemento

masculino, singular, ou construções do tipo +qu, cuja interpretação é de tempo composto

perfectivo. Como o processo de aquisição da linguagem é orientado para a aquisição de

estruturais mais simples (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991, 1998; R&R 2003), a construção que

recebe a interpretação de tempo composto, que não apresenta movimento de ter e haver

de V para I, é preferível.

38 “(…) se a expressão de um parâmetro é suficientemente robusta, levará a uma fixação paramétrica correta. Se, no entanto, a expressão do parâmetro é ambígua, então é provável que haja um ‘mecanismo de segurança’ no dispositivo de aprendizagem que leva à fixação de um certo valor – o determinismo fraco requer que isto aconteça. Este valor continuará sendo compatível ao do input recebido, mas – novamente devido ao fraco determinismo – poderá ser diferente do valor atribuído à gramática alvo e é isto que causa a mudança” [minha tradução] 39 “(...) se o gatilho linguístico é ambiuo, então o falante optará pela opção que apresenta a representação mais simples” [minha tradução]

106

Deste modo, assumimos que as construções com complemento masculino,

singular, vão sendo reanalisadas como estruturas de tempo composto e esta interpretação

é, posteriormente, estendida às construções com outros tipos de complemento. À medida

que as estruturas com complemento masculino, singular, são reanalisadas como tempo

composto, a ordem vai se fixando em [V PTP N], tornando-se a sequência [V N PTP]

exclusiva das construções adjetivas. A perda das marcas flexionais de concordância

ocorreria como uma consequência do processo de reanálise, de acordo com o que postulam

R&R (2003).

Em relação ao verbo que deu início ao processo de mudança, isto é, se o gatilho

teve início com as estruturas de ter + PTP ou de haver + PTP, em geral, afirma-se que este

ocorreu a partir das construções com o verbo haver (ALMEIDA 2006). Contudo, ainda que as

estruturas com haver sejam mais frequentes nos séculos iniciais do PA, tanto as estruturas

com haver quanto as contruções com ter apresentam casos de não concordância desde o

século 13. As estruturas formadas por ter + PTP sem concordância aumentam somente no

século 16, mas, ainda que em baixa proporção, estas não deixam de existir no corpus.

Observe-se a tabela abaixo, que traz os percentuais de construções de ter e haver + PTP com

e sem concordância no corpus.

Século 13 Século 14 Século 15 Século 16 TOTAL

Oco. – % Oco. – % Oco. – % Oco. – %

+

Concordância

TER 10 – 53% 16 – 76% 24 – 48% 34 – 32% 84

HAVER 20 – 47% 22 – 47% 15 – 39% 0 – 0% 57

Concordância

TER 1 – 5% 1 – 5% 1 – 2% 12 – 11% 15

HAVER 1 – 2% 9 – 19% 6 – 16% 1 – 50% 17

Ambíguos

(m.s.)

TER 6 – 31% 3 – 14% 12 – 24% 22 – 21% 41

HAVER 15 – 35% 11 – 23% 6 – 16% 1 – 50% 33

Ambíguos

(+qu)

TER 2 – 10% 1 – 5% 13 – 36% 38 – 36% 54

HAVER 7 – 16% 5 – 11% 11 – 29% 0 – 0% 23

TOTAL TER 19 – 100% 21 – 100% 50 – 100% 106 –

100%

196

HAVER 43 – 100% 47 – 100% 38 – 100% 2 – 100% 130

Tabela 12: Realização da concordância, por século, em relação a ter e haver

Como é possível observar na Tabela 12, há mais dados como verbo ter do que com

haver, somando as construções com o primeiro verbo 196 ocorrências contra 130

107

ocorrências de estruturas com haver. No que respeita a marcação de concordância

relativamente aos séculos, é possível notar que o número de ocorrências com ter aumenta

consideravelmente do século 13 ao 16, passando de 19 a 106 dados. Em relação a haver

observamos o contrário: há uma considerável queda nas ocorrências de construções com

esse verbo, que somam 43 no século 13 e passam a apenas 2 no século 16.

Em relação ao percentual de ocorrências de estruturas com marcas de concordância, nota-

se que, para as construções com ter há um aumento na proporção das construções em

questão no século 14 e, a partir de então, uma queda, chegando a 32% no século 16. As

construções com haver se mantêm estáveis, no que concerne a marcação de concordância,

ao longo dos séculos 13 e 14, sofrendo uma queda nos séculos seguintes, chegando a 0% no

século 16.

Com relação às construções sem marcas morfológicas de concordância, as

construções com ter ultrapassam o 1% de dados apenas no século 16, chegando a 11% do

total. As construções com haver, por outro lado, aumentam consideravelmente nos séculos

14 e 15. Note-se que, como foi dito anteriormente, ainda que a mudança tenha tido início

no século 13, momento em que já se observam ocorrências de estruturas de tempo

composto perfectivo, o espraiamento da mudança só se dá nos séculos seguintes.

Os dados ambíguos com complemento masculino, singular se comportam de forma

variável ao longo dos séculos. Os dados com ter somam no século 13 31% do total, sofrendo

uma queda para 14% no século seguinte e voltando a aumentar para 24% e 21% nos séculos

15 e 16, respectivamente. Em relação a haver as construções com complemento masculino,

singular somam 35% no século 13, sofrendo uma queda para 23% e 16% nos séculos 14 e

15, respectivamente, aumentando consideravelmente no século 16, quando somam 50%

dos dados. Note-se que no século 16 há apenas duas ocorrências de construções com haver,

sendo que uma delas não apresenta marcas de concordância e a outra é considerada

ambígua.

Finalmente, dentre os dados ambíguos com pronomes interrogativos ou

substantivos ou com complemento nulo sem antecedente, os dados se comportam da

seguinte maneira. As construções com ter somam no século 13 10% dos dados, caindo para

5% no século seguinte. Nos séculos 15 e 16 há um aumento percentual, somando 36% em

ambos os períodos. As construções com haver somam 16% no século 13 e 11% no século 14.

108

No século seguinte há um aumento considerável, somando 29%; no século 16 observou-se

uma queda considerável, baixando para 0%.

A seção seguinte discutirá os resultados obtidos com relação à ordem dos

constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP. A seguir, analisaremos em que medida a

relação da concordância e da ordem dos constituintes influenciou no processo de mudança

em questão.

3.4.3. Ordem dos constituintes na sentença

Estudos que analisam a ordenação de palavras nas sentenças do PA discutem sobre

o fato de esta ser uma língua do tipo V2 ou não. Ribeiro (1995) argumenta que, no caso de

sentenças finitas raízes e encaixadas, o PA seria caracterizado como um sistema V2, isto é,

um sistema em que este tipo de construções se aloja no núcleo funcional C. Seriam, ainda,

características de uma língua V2 a possibilidade de haver uma posição alta para verbos na

estrutura oracional (cf. ANTONELLI 2011), de o sistema não ter a posição pré-verbal

reservada ao sujeito, permitir movimento formal para [Spec, CP] (cf. LIGHT 2012) e, ainda,

ter uma posição alta reservada para o sujeito pós-verbal. Contudo, muitos autores

argumentam que o PA não constitui uma gramática V2 (cf., para uma discussão mais

completa, FIÉIS 2002; RINKE 2009).

Este estudo não se propõe a analisar a gramática do PA em relação à ordenação

dos constituintes na sentença. Contudo, nos propomos a analisar a ordem de palavras no

que respeita as construções com ter/haver + PTP. Independentemente da discussão sobre o

tipo de sintaxe do PA – se V2 ou não – observamos que, nas construções em questão, a

ordem dos constituintes é relativamente livre. Deste modo, nas construções com PTP, antes

da gramaticalização de ter e haver, o complemento direto destes verbos podia preceder (N

V PTP) ou suceder (V PTP N) ter e haver, estar entre estes verbos e o PTP (V N PTP) ou,

ainda, ser nulo. Da mesma forma, ter e haver também podiam suceder (PTP V) ou preceder

o particípio (V PTP).

Almeida (2006), em estudo que trata da gramaticalização de ter e haver em uma

perspectiva variacionista e funcionalista, observa que a ordem é um fator fundamental para

categorizar o PTP como verbo ou adjetivo: à medida que a ordem ter/haver + PTP foi se

109

tornando mais fixa, estes verbos passam a auxiliares e o PTP passa a predicar a sentença,

adquirindo o traço [+verbal]. Segundo a autora, a posição mais resistente à formação do

tempo composto seria aquela em que o complemento está à esquerda do predicador, pois

nesta ordem constatam-se formas mais marcadas com concordância.

Os dados de Almeida (2006) mostram que a ordem destas construções no PA era

extremamente livre, porém, ao longo dos séculos, a ordem ter/haver + PTP vai

gradualmente se fixando. Observem-se abaixo os resultados percentuais obtidos por

Almeida, em relação à ordem dos constituintes na sentença:

Século 13 Século 14 Século 15 Século 16 Século 17

V + PTP + N 11% 12% 6% 21% 46%

V + N + PTP - 25% 8% 1% -

N + V + PTP 22% 50% 38% 27% 37%

N + PTP + V - - - - 8%

PTP + V + N - - 3% - -

V + PTP + Ø 67% 12% 44% 50% 9%

Tabela 13: Resultados percentuais em relação a ordem dos constituintes (ALMEIDA 2006)

Como se pode observar, os resultados de Almeida (2006) sugerem que os seis tipos

de distribuição do complemento do PTP na sentença revelam sua liberdade de estruturação.

No século 13 a distribuição mais frequente é a com particípios intransitivos, isto é, em que

não há complemento, (V + PTP + Ø), seguida da ordem N +V + PTP. No século 14, a ordem

mais comum é V + N + PTP. No século 15 há um significativo aumento das sequências com

particípios intransitivos, somando 44% das ocorrências, ao mesmo tempo que a ordem N +

V + PTP decai de 50% dos dados para 38% destes. No século 16 são igualmente significativas

as ocorrências em que o particípio é intransitivo, somando 50%; há também um aumento

das sequências V + PTP + N, somando 21%, estrutura que possui a configuração típica do

tempo composto. Finalmente, no século 17, são maioria as sequências do tipo V + PTP + N

(46%), o que, segundo Almeida (2006) já é um indicador da cristalização da estrutura. Em

seus dados nota-se também uma gradual diminuição da flexão ao longo dos séculos, o que,

associada à fixação da ordem V + PTP, comprova sua hipótese de que ter e haver não eram

verbos auxiliares no PA.

110

Os dados de Mattos e Silva (1992)40 mostram que a ordem mais comum nas

perífrases com ter e haver é N + ter/haver + PTP, quando o complemento é relativizado, e

ter/haver + PTP + N, quando o complemento não é relativizado. Em sua perspectiva, seus

dados permitem supor que, no que se refere à difusão da mudança nas estruturas

sintagmáticas, a perda da concordância do PTP e, consequentemente, sua análise como PTP

verbal e não como adjetivo, partiu dos contextos em que a concordância não é saliente,

sendo considerados mais salientes os contextos em que o complemento direto do PTP

precede ter/haver e o PTP, com base em Naro e Lemle (1977:266, cf. MATTOS E SILVA

1992). A autora propõe ainda que a difusão da mudança foi favorecida pela estrutura na

distribuição sintagmática, já existente na língua, em que o PTP perde as marcas de

concordância, já que o complemento pode ser masculino e singular (casos ambíguos), bem

como pela estrutura em que o complemento é nulo, recuperável como pronome neutro

como isto, tudo.

Em artigo de 1992, Mattos e Silva atribui a difusão da mudança de ter e haver de

verbos plenos a auxiliares à ordem dos constituintes no Português. Segundo a autora, na

estrutura mais antiga o complemento do verbo não tem posição fixa, podendo preceder,

suceder ou estar entre ter/haver e o PTP, ou, ainda, ser zero, quando o PTP é -transitivo. Ter

e haver também podiam preceder ou suceder o PTP. Nos corpora analisados por Mattos e

Silva (1981:101), ocorrem as distribuições abaixo, com suas respectivas frequências:

ORDEM FREQUÊNCIA

1. V + PTP + Compl. Direto 21%

2. V + Compl. Direto + PTP 15%

3. Compl. Direto + V + PTP 94%

4. PTP + V + Compl. Direto 2%

5. Compl. Direto + PTP + V 4%

6. V + PTP 17% Tabela 14: Ordem dos constituintes (MATTOS E SILVA 1981, 1992)

Nos dados da autora, nota-se que as distribuições com maior frequência são a 3,

em que o complemento direto do verbo é um relativo, sem marcas de gênero e número; a

1, em que o complemento sucede ter/haver e o PTP e a 6, em que o complemento é 0. Naro

e Lemle (1977:266 cf. MATTOS E SILVA 1992) analisam e quantificam as distribuições do tipo

40 O corpus de Mattos e Silva (1981, 1992) é oriundo dos quatro livros dos Diálogos de São Gregório (DSG).

111

1, 2 e 3 do quadro acima e observam que a não-concordância do PTP ocorre mais

frequentemente em 3, seguida por 1; 2 não é afetado pela mudança, já que essa estrutura

se mantém até hoje, com valor adjetivo.

Os resultados da tabela de Mattos e Silva (1992) permitem supor que, no que diz

respeito à difusão da mudança na ordem dos constituintes da sentença, a perda da

concordância do PTP e sua reinterpretação como verbo partiu dos contextos em que a

concordância não é saliente, sendo considerados mais salientes aqueles contextos em que o

complemento do verbo precede ter/haver e o PTP, como também afirma Almeida (2006).

Mattos e Silva (1992), ao combinar seus resultados com os de Naro e Lemle (1977

cf. MATTOS E SILVA 1992), propõe que a difusão da mudança foi favorecida pela ordem, já

existente em Português, em que o PTP não recebe marcas de concordância, já que seu

complemento pode ser masculino e singular, bem como pela estrutura em que o

complemento direto é nulo, recuperável por pronomes como, por exemplo, isto.

Nos contextos em que o PTP pode ser flexionado pela concordância com o

complemento direto do verbo, a autora supõe que a difusão percorria o seguinte curso no

século 15:

“a. Contextos em que CD está preenchido pelo relativo, não marcado em gênero e número: nos dados de Naro e Lemle há 31.6% de casos nessa distribuição sem marca de concordância no séc. XV, mas 0 no XIV. Os meus resultados reforçam a significação desse contexto, que é o mais freqüente; b. contextos em que CD sucede haver/ter, distribuição própria ao tempo composto: os dados de Naro e Lemle indicam, para o século XV, 17.7% de casos em que a perda da concordância está documentada e 0 para o XIV. Nos meus dados essa estrutura é a segunda em frequência” (MATTOS E SILVA 1992:94).

Ao analisar o comportamento da ordem dos constituintes nas estruturas com

ter/haver + PTP no corpus observamos que algumas ordens eram possíveis, como visto

anteriormente. Em relação a este tipo de construção, é possível afirmar que, no PA, a ordem

dos constituintes das construções participiais ainda não estava muito bem fixada. Hoje,

sabe-se que a ordem prototípica dos tempos compostos é V PTP N (eu tenho lido muitos

livros) e a das construções adjetivas se configura em torno da ordem V N PTP (eu tenho os

trabalhos feitos), contudo, no PA, ao menos no que respeita a ordem das construções que

vieram a se tornar estruturas de tempo composto, esta ordem não era bem definida.

112

Observem-se os exemplos abaixo, das possíveis ordenações de constituintes encontradas no

corpus analisado.

V PTP N

(92) Enquanto el rey dom Afonso teve cercada esta villa, mandou o iffante do~

Henrrique, seu yrma~ao, que fosse cercar a villa d'Arcos e outrossi Librixa, que era

dhu~a moura. (CA14-005 – Crónica de D. Afonso X; século 14)

N V PTP

(93) Quando ssecheguava a ora da sua p(re)ciosa mort(e), veo sua madre, que da

espada da ssua paixom a alma avia t(r)espassada. (CP15-021 – Castelo Perigoso;

século 15)

V N PTP

(94) Quem assi se humillda sem fingimento e sem buscar o prazer do mundo e que aja

em si esta dobrada homildadeprofundament(e) no coraçomrreiguadae que a

mostre aa de fora p(er) obras, elleha´ as cavas dobradas p(er)a guardar o castello

do coraçom. (CP15-013 – Castelo Perigoso; século 15)

N nulo

(95) E dize~ que ouvero~ começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os

home~es começava~ de povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos

quaaes el rey no~ curava seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século

14)

Relativizado

(96) Depois que el rey dom Afonso cobrou esta villa de Telhada, foi a outros logares que

os mouros tiinham hy acerca e tomouhos. E foisse pera Sevilha. E deulhe este logar

de Telhada e outros queavya guaanhados por termo e partio daly e veosse a

Tolledo. (CA14-002 – Crónica de Afonso X; século 14)

A análise dos tipos de ordem encontrados no corpus permitem algumas

generalizações. Primeiramente observou-se que a ordem V N PTP é a ordem típica das

construções adjetivas no PA. Como veremos mais adiante, os dados relativos a esta

ordenação de constituintes apresentam marcação de concordância categórica,

evidenciando o caráter adjetivo destas construções. As ordens que apresentam as

sequências V PTP, isto é ter/haver seguido de PTP, dão margem a duas interpretações: a

113

construção pode ser ou adjetiva ou de tempo composto. Contudo, ainda que as duas ordens

que apresentam esta sequência, isto é, V PTP N e N V PTP, permitam a interpretação de

tempo composto, somente a primeira se fixará como a ordem prototípica dos tempos

compostos perfectivos, ao passo que a segunda é gradualmente eliminada da gramática do

Português.

No que refere ao que foi dito anteriormente, a análise dos dados selecionados para

esta Dissertação trouxe resultados semelhantes aos de Mattos e Silva (1992) em relação à

ordem (Tabela 13). Observem-se abaixo os dados na Tabela 14, em que são apresentados os

valores percentuais de acordo com a ordem ocorrida:

ORDEM OCORRÊNCIAS PERCENTUAIS

Relativizado 143 44%

V PTP N 74 23%

N V PTP 51 15%

V N PTP 43 13%

N nulo 15 5%

TOTAL 326 326 Tabela 15: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP

Como nos dados de Mattos e Silva (1992), a ordem favorita nas construções com

perifrásticas com ter e haver é a em que o complemento ocorre relativizado, com 44 pontos

percentuais. Deve-se destacar, contudo, que as estruturas relativizadas não competem, em

termos de ordem, com as outras ordenações levantadas no PA para as construções com

ter/haver + PTP, uma vez que tratam-se de construções estruturalmente distintas. No

entanto, estas construções foram agrupadas como uma ordem à parte de modo que fosse

possível observar em que medida a relativização do complemento influenciava na marcação

da concordância.

Após as estruturas relativas, a ordem [V + PTP + N] é a que mais ocorre, somando

23% dos dados. Diferentemente dos dados de Mattos e Silva (1992), a terceira ordem de

constituintes mais comum no corpus deste trabalho é a [N + V + PTP], seguida de [V + N +

PTP] (13%) e, por fim, quando o complemento é nulo (5%). Note-se que as ordens em que

ter/haver precedem o PTP são as mais comuns.

Ao separar os dados entre as construções com ter, por um lado, e as de haver, por

outro, os resultados mostram algumas diferenças. Observem-se os dados de ter e haver em

relação à ordem na Tabela 16 abaixo.

114

ORDEM TER HAVER

Oco. - % Oco. - %

Relativizado 90 – 46% 53 – 41%

V PTP N 39 – 20% 35 – 27%

V N PTP 31 – 16% 12/130 – 9%

N V PTP 30 – 15% 21/130 – 16%

SN nulo 6 – 3% 9/130 – 7%

TOTAL 196 – 100% 130 – 100% Tabela 16: Ordem dos constituintes nas construções com ter + PTP

Como é possível observar, ao isolar os dados de construções com ter + PTP, nota-se

que a ordem é a com o complemento relativizadosomando quase metade dos dados.

Contudo, se observarmos em termos de estruturas, as relativas somam 46% do total,

percentual mais baixo do que o das estruturas simples (i.e., todas as que não são relativas).

Em seguida, tem-se a ordem [V PTP N], somando 20% dos dados, considerada favorável à

gramaticalização de ter como auxiliar, formando tempos compostos perfectivos, uma vez

que esta é a ordem fixa deste tipo de construção (auxiliar + PTP). Em seguida, a ordem que

mais ocorre é [V N PTP], em que o complemento está entre ter e o PTP, portanto uma

ordem não favorável à gramaticalização. A quarta ordem mais frequente é [N V PTP],

também favorável à gramaticalização, uma vez que ter precede o auxiliar. Por fim, há 6

ocorrências de complemento nulo, somando 3% dos dados com ter.

Ao isolar os dados com haver foram observadas algumas diferenças em relação aos

dados de ter + PTP. Como ocorre com os dados com ter + PTP, os exemplos mais frequentes

são aqueles em que o complemento está relativizado, somando 41% das construções

coletadas. Em seguida, também como ocorre com os dados com ter, a ordem favorita é [V

PTP N], contexto favorável à gramaticalização. A diferença está nos percentuais seguintes:

as próximas ordens mais frequentes são [N V PTP] (16%) e [V N PTP] (9%), que são contextos

favoráveis e não favoráveis à gramaticalização, respectivamente. Por fim, como nos dados

com ter, ocorrem as construções com complemento nulo, somando 7%.

A diferença entre ter e haver no que respeita a ordem está no fato de, nos dados

de haver + PTP serem mais frequentes os contextos que favorecem a fixação da ordem em

[V (haver) + PTP], ordem prototípica dos tempos compostos perfectivos do Português. Tal

resultado sugere que as construções com haver + PTP tenham se gramaticalizado antes das

115

construções com ter + PTP. Contudo, como visto na seção anterior, dados relativos à

concordância sugerem que a mudança já teria ocorrido no século 13, com ambos os verbos.

Para que se observasse em que medida as ordens favoráveis à gramaticalização

ocorriam ao longo dos séculos, foram cruzados os grupos de fatores século e ordem, a partir

do que se obteve a Tabela 17 abaixo:

SÉCULO Relat. V PTP N V N PTP N V PTP N nulo TOTAL

Oco. % Oco. % Oco. % Oco. % Oco

.

% Oco.

13 28 45% 12 19% 10 16% 12 19% 0 0% 62

14 25 37% 13 19% 5 7% 18 26% 7 10% 68

15 29 43% 22 25% 18 21% 13 15% 6 6% 88

16 61 57% 27 25% 10 9% 8 7% 2 2% 108

Tabela 17: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP, em relação ao século

No corpus do século 13, dentre as ordens controladas, ocorrem em maior

percentagem as construções relativizadas, somando 45% dos dados deste período. Em

relação às outras possíveis ordens, estas ocorriam em variação livre, sem haver clara

preferência por uma ou por outra. No corpus analisado observou-se que neste período as

ordens [V N PTP] (19%) e [N V PTP] (19%) ocorriam em igual proporção, sendo estas as com

maiores ocorrências, e a ordem [V PTP N] ocorre em 16% dos dados deste século. No século

13 não há nenhuma ocorrência de construções com complemento nulo.

No século 14, com exceção das construções relativizadas, que somam 37% dos

dados, são favoritas as ordens [N V PTP], que soma 26% das estruturas, e [V PTP N], que

soma 19% dos dados controlados. Neste período caem as estruturas com a ordem [V N

PTP], que somam 7%, e sobem as ocorrências de construções com complemento nulo, que

somam 10% das ocorrências.

No século 15 as construções com complemento nulo sofrem uma queda, somando

6% dos dados. As construções relativizadas aumentam em relação ao século anterior,

passando a 43%, não sofrendo, portanto, grandes alterações na frequência desde o século

13. As construções com a ordem [V PTP N] aumentam desde o século 13, passando a 25%,

assim como as com a ordem [V N PTP], que passam a 21% das estruturas. Finalmente, a

frequência da ordem [N V PTP] cai para 15% dos dados.

No século 16 a proporção de construções relativizadas sobe para 57%. As

construções com a ordem [V PTP N] mantêm o mesmo percentual que o século anterior,

116

somando 25% dos dados. Em contrapartida, as ordens [V N PTP] e [N V PTP] caem para 9% e

7%, respectivamente. O mesmo ocorre com as construções com complemento nulo, que

passam a 2% das ocorrências.

Os dados expostos na tabela acima podem ser melhor visualizados no gráfico

abaixo.

Gráfico 3: Ordem dos constituintes, por século

O Gráfico 3 permite observar de forma mais clara as curvas dos percentuais

relativos à ordem ao longo dos séculos. Primeiramente, chama a atenção o considerável

aumento das estruturas relativizadas, que chegam a 56% dos dados no século 16. De modo

geral, é interessante observar que a ordem [V PTP N] aumenta ao longo dos séculos, como

era esperado, uma vez que esta é a sequência que se fixa nas construções de tempo

composto. A ordem [N V PTP] favorece a interpretação do PTP como verbo, uma vez que

apresenta a sequência [V PTP], mas cai ao longo dos séculos, sendo gradualmente extinta da

gramática do Português. Já a ordem [V N PTP], típica das construções adjetivas, segue em

variação ao longo dos séculos.

No que respeita a ordem foram analisadas ainda as sequências levantadas, em

relação a ter e haver. Deste modo, isolamos somente os dados com haver para que os

percentuais fossem fornecidos separadamente pelo programa de análise computacional

GoldVarbX. A partir disso foi montada a Tabela 18, a seguir, em que se observam os

percentuais de ocorrências das ordens controladas.

45%

37%33%

56%

19% 19%

25% 25%

16%

7%

20%

9%

19%

26%

15%

7%

0%

10%7%

2%0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

Século 13 Século 14 Século 15 Século 16

Relativizado V PTP N V N PTP N V PTP N nulo

117

Século Relat. V PTP N V N PTP N V PTP N nulo TOTAL

13 Ter 7 37% 3 16% 6 32% 3 16% 0 0% 19

Haver 21 49% 9 21% 4 9% 9 21% 0 0% 43

Total 28 45% 12 19% 10 16% 12 19% 0 0% 62

14 Ter 7 33% 3 14% 3 14% 8 38% 0 0% 21

Haver 18 38% 10 21% 2 4% 10 21% 7 15% 47

Total 25 37% 13 19% 5 7% 18 26% 7 10% 68

15 Ter 15 30% 7 14% 13 26% 11 22% 4 8% 50

Haver 14 37% 15 39% 5 13% 2 5% 2 5% 38

Total 29 33% 22 25% 18 20% 13 15% 6 7% 88

16 Ter 61 58% 26 25% 9 8% 8 8% 2 2% 106

Haver 0 0% 1 50% 1 50% 0 0 0 0% 2

Total 61 56% 27 25% 10 9% 8 7% 2 2% 108

TOTAL Ter 90 46% 39 20% 31 16% 30 15% 6 3% 196

Haver 53 41% 35 27% 12 9% 21 16% 9 7% 130

Total 143 44% 74 23% 43 13% 51 16% 15 5% 326

Tabela 18: Ordem dos constituintes nas construções com ter/haver, por século, em relação a ter e haver

Com base nos resultados obtidos, observou-se que a ordem [V N PTP] ocorria mais

com o verbo ter do que com haver, a partir do que se pode sugerir que este era o verbo

preferido das construções adjetivas, em todos os séculos, principalmente nos séculos 13, 14

e 15. Em relação às ordens que impulsionaram a mudança, isto é, aquelas que apresentam a

sequência [V PTP], observou-se o seguinte. A ordem [V PTP N] é mais utilizada com haver

em todos os séculos, enquanto a sequência [N V PTP] é preferida com este verbo apenas no

século 13, sendo ter o mais utilizado com esta ordem nos séculos 14, 15 e 16. Em relação às

construções relativas, estas são mais produtivas com haver até o século 15; no século 16

todas as construções relativizadas são utilizadas com ter. As construções com complemento

nulo apresentam comportamento pouco estável, não havendo ocorrências no século 13,

ocorrendo categoricamente com haver no século 14, apresentando variação em favor de ter

no século 15 e ocorrendo categoricamente com ter no século 16. Por fim, todas as ordens

ocorrem mais frequentemente com ter no século 16, uma vez que a maioria dos dados

deste século é de construções com este ter + PTP.

A subseção seguinte tratará do cruzamento dos grupos de fatores ordem e

concordância. Discutiremos como os dois fatores estão interligados e como sua análise

contribui para o estudo da gramaticalização de ter e haver e, consequentemente, da

emergência dos tempos compostos perfectivos em Português.

118

3.4.4. A relação concordância vs. ordem

Como foi visto nas seções anteriores, fatores como a marcação da concordância

entre o PTP e o complemento e a ordenação dos constituintes nas estruturas de ter e haver

+ PTP trazem evidências para a gramaticalização destes verbos como auxiliares. A mudança

sintática, isto é, a fixação de um novo parâmetro a partir de um gatilho ambíguo – que,

neste caso, julgamos serem as construções cujo complemento está no masculino, singular –

fica visível quando perdem-se as marcas de concordância em questão e quando a ordem da

construção estudada é fixada em [V PTP N].

Com base no modelo de mudança linguística e no modelo de gramática utilizado,

supomos que a gramaticalização de ter e haver tenha resultado, superficialmente, na

fixação da ordem e na perda das marcas de concordância. Deste modo, a mudança no

parâmetro do movimento do núcleo, isto é, a perda do movimento V para I, causou tais

rearranjos na gramática do PA, no que respeita às construções de ter/haver + PTP. Tal

suposição se baseia em Lightfoot (1998:95), que afirma “because parameters are abstract

and structural, changing one parameter setting may entail a range of new surface

phenomena”41. Do mesmo modo, Lightfoot (1998:105) argumenta, ainda, que “not only is a

new gramatical property typically manifested by a cluster of new phenomena; it also

sometimes sets off a chain reaction (...) such chain reactions can be understood through the

acquisition process”42.

Desta forma, a mudança de ter e haver pode ser vista como uma mudança em

cadeia, ou chain reaction: a partir de um gatilho ambíguo – construções de ter/haver + PTP

com complemento masculino, singular – o aprendiz adquire a estrutura com interpretação

de tempo composto, por esta ser a menos custosa, uma vez que, nesta estrutura, não há

movimento de ter/haver de V para I; estes verbos são concatenados diretamente em I.

Como consequência deste processo de reanálise, o PTP é reinterpretado como verbo, uma

41 “Devido ao fato de os parâmetros serem abstratos e estruturais, a mudança na fixação de um único parâmetro pode desencadear uma série de novos fenômenos superficiais” [minha tradução]. 42 “Novas propriedades gramaticais são não só manifestadas por uma série de novos fenômenos como também podem desencadear uma reação em cadeia (...) tais reações em cadeia podem ser compreendidas por meio do processo de aquisição” [minha tradução].

119

vez que ter e haver, ao serem concatenados diretamente em I, perdem estrutura temática;

o PTP passa, então, a ser o predicador da sentença. Outra consequência da concatenação de

ter/haver diretamente em I é a fixação da ordem, que se cristaliza em V PTP N. Por fim

perdem-se as marcas flexionais de concordância do PTP com o complemento. A observação

do comportamento das estruturas em questão relacionado à ordem e à concordância é,

pois, necessária, uma vez que estes são os únicos passos da gramaticalização

superficialmente visíveis.

No que respeita a relação entre ordem dos constituintes e concordância, Almeida

(2006:91), afirma que “é categórica a presença de concordância quando o complemento se

encontra à esquerda da construção participial ou quando está localizado entre ter/haver e a

forma participial no corpus”.

Ao analisar o comportamento da ordem relativamente à concordância ao longo dos

séculos, Almeida (2006:93) observa que “ainda no século XIV, quando o complemento está

localizado entre ter/haver e a forma participial, há uma maior probabilidade de a forma

participial estar indicando um estado do SN, impondo uma interpretação passiva ao

complemento dos verbos ter e haver. Contudo, nos casos em que o complemento se

encontra à esquerda do particípio, recuperado por um anafórico, há uma tendência de

interpretar o PTP como [+verbo]”.

No século 15, a autora nota que nos contextos em que há dois ou mais elementos

entre ter e haver e o PTP a marcação da concordância é também categórica. Sua hipótese é

a de que a intercalação de elementos na construção participial evidencie que a estrutura

não configura ainda uma forma composta. Contudo, ela percebe que neste período,

estruturas em que, mesmo havendo a intercalação de apenas um elemento entre ter/haver

e a forma participial, não há a flexão entre o PTP e o complemento.

Finalmente, nos séculos 16 e 17 Almeida (2006) observa que a flexão do particípio

com o complemento cai consideravelmente. Conclui a autora que até o século 15, a

concordância se dava prioritariamente quando o complemento se localizava mais à

esquerda; contudo, no século 16, esse aspecto passa a não ser mais definidor. Seus dados

confirmam que, quando o complemento sucede o PTP, a concordância entre o PTP e o

complemento é ainda mais restrita. Mesmo nos contextos em que o complemento precede

a construção, há, neste século, o predomínio de estruturas sem marcação de concordância.

120

De modo a observar a relação ordem-concordância no corpus utilizado nesta

Dissertação, cruzamos estes grupos de fatores, a partir do que foram obtidos os seguintes

percetuais, expostos na Tabela 19, a seguir.

Relativizado V PTP N V N PTP N V PTP N nulo

Oco. - % Oco. - % Oco. - % Oco. - % Oco. - %

+ concordância 67 - 89% 49 - 71% 44 - 100% 48 - 96% 9 - 82%

- concordância 8 - 11% 20 - 29% 0 – 0% 2 - 4% 11 - 18%

Total 75 – 100% 69 – 100% 44 – 100% 50 – 100% 20 – 100%

Tabela 19: Cruzamento dos grupos de fatores ordem e concordância

Como se observa na Tabela 19, a ordem [V N PTP] é categórica quanto à marcação

de concordância, o que nos leva a concluir que esta era a ordem típica das construções

adjetivas desde o PA, perpetuando-se até o Português atual. (ex. eu tenho os trabalhos

feitos; eu tenho os livros rasgados etc). Nestas estruturas o verbo (ter ou haver) recebe

sempre a interpretação de verbo pleno, com conteúdo semântico de posse, e o PTP é de

caráter exclusivamente adjetivo, funcionando como um modificador do complemento

direto de ter/haver.

A ordem [V PTP N] foi a que apresentou os maiores índices de não concordância do

PTP com o complemento, somando 29%. Ainda que este percentual seja baixo em relação

ao de marcação de concordância (71%), este foi o mais alto dentre todas as ordens

encontradas no corpus. Com base no que viemos argumentando ao longo deste trabalho e

nos resultados obtidos, supomos que a formação dos tempos compostos se deve à fixação

desta ordem, uma vez que esta é a ordem prototípica do passado composto do Português

atual (ex. eu tenho feito os trabalhos; eu tenho rasgado livros etc).

A ordem [N V PTP], que apresenta 96% de marcação de concordância e 4% de não

marcação de concordância, apresenta a sequência [V PTP]. Supomos que por este motivo,

esta ordenação, junto com a ordem [V PTP N] teria favorecido também a interpretação das

construções como de tempo composto. Contudo, tal ordem apresenta níveis altos de

marcação de concordância, permitindo a interpretação da estrutura como sendo adjetiva.

Finalmente, os dados relativos às estruturas cujo complemento é nulo, mas

recuperável pelo antecedente, mostraram que 82% das estruturas apresentam marcas de

concordância e 18% não apresentam tais marcas.

121

Com base nos resultados é possível argumentar que no PA havia três ordens para

as construções de ter/haver + PTP: [V N PTP], [N V PTP] e [V PTP N], sendo a porcentagem

de suas ocorrências variável ao longo dos séculos. As ordens [V PTP N] e [V N PTP] irão se

perpetuar até o Português atual, sendo a primeira a ordem de construções de tempo

composto e a segunda, a ordem de construções adjetivas. As construções que têm a

sequência [V PTP] teriam sido aquelas que engatilharam a mudança em direção à formação

dos tempos compostos. A ordem [V PTP N], com complemento posposto, é a que se

concretiza como a ordem prototípica dos tempos compostos; a ordem [N V PTP], com

complemento anteposto, permitia mais frequentemente dupla interpretação, podendo ser

considerada como uma estrutura adjetiva ou uma perífrase perfectiva. Após a

gramaticalização de ter e haver tal ordem é gradualmente excluída da gramática da língua.

Com base no que vimos ao longo deste capítulo e nos resultados da Tabela 19e nos

Gráficos 2 e 3 podemos fazer algumas observações. Primeiramente o que se observa é que

os séculos 14 e 15 marcam um importante período de transição. A partir do século 14

aumentam os percentuais de estruturas sem marcas de concordância. Neste século crescem

os números das ordens [N V PTP] e N nulo. No século 15 crescem os números das ordens [V

N PTP] e [V PTP N], ordem que segue aumentando até o século 16, ao passo que as outras

ordens diminuem.

O considerável aumento das construções com complemento nulo no século 14,

período em que também aumentam consideravelmente os níveis de não aplicação da

concordância, pode ser interpretado como uma estratégia das gramáticas particulares de

cada falante para evitar a marcação ou não de concordância. De modo geral, todas as

estruturas com complemento nulo aumentam neste período, sejam elas com concordância

observável ou não. Desta forma, interpretamos que as gramáticas dos falantes optam pelas

construções com N nulo neste período de transição, evitando a escolha de uma estrutura

com marcas claras de concordância ou não.

O aumento das ordens [V N PTP] e [V PTP N] no século 15 nos leva a interpretar

que neste século houve um período de variação no que respeita estas estruturas. Como

veremos na seção seguinte, analisamos esta variação em termos de gramáticas em

competição, nos moldes de Kroch (1989). Deste modo, os séculos 14 e, mais

expressivamente, 15, são vistos como um período em que competem duas gramáticas, G1 e

G2. G1 seria uma gramática em que só há a construção de ter/haver + PTP com valor

122

adjetivo e G2, uma gramática em que se observam duas estruturas: a construção de

ter/haver + PTP adjetivo e a construção de ter/haver + PTP interpretada como tempo

composto.

Na seção seguinte veremos o caminho da mudança pela qual passaram ter e haver

ao longo dos séculos no PA. Procuraremos descrever a gramaticalização destes verbos com

base em de R&R (2003) e explicar como esta mudança resultou na formação dos tempos

compostos em Português.

3.5. A gramaticalização de ter e haver e a emergência dos tempos compostos

No quadro teórico de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY 1995, 2000), cada

indivíduo é dotado de uma capacidade inata de aprendizagem de uma língua e de uma GU

que contém uma série de princípios fixos. O processo de aquisição da linguagem é visto

neste quadro como uma consequência da interação entre esta capacidade mental inata e o

input linguístico disponível como amostra para a aquisição, isto é, a Língua-E da geração a

qual os aprendizes serão expostos. Este processo será responsável para que os aprendizes

fixem os valores dos parâmetros positiva ou negativamente (entendendo-se por parâmetros

as propriedades dos núcleos funcionais, como no modelo de 1995, 2000). Observe-se a

Figura 6 abaixo, que ilustra o processo de aquisição paramétrica, de acordo com o modelo

de Chomsky (1995, 2000):

Figura 8: Processo de aquisição da linguagem segundo o quadro da Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY 1981, 1995, 2000).

A Figura 9 mostra que uma geração N compartilha elementos de uma mesma

Língua-I, capaz de gerar enunciados. As amostras de Língua-E da geração N servem de input

123

para que a geração seguinte, N+1, adquira sua Língua-I. O contato dos aprendizes com os

dados linguísticos da geração anterior fará com que estes falantes aprendam o léxico e,

consequentemente, fixem os valores dos parâmetros em questão. Deste modo, como vimos

no capítulo anterior, a mudança linguística é entendida como uma mudança na fixação do

valor de um determinado parâmetro, e se dá durante o processo de aquisição da linguagem

(cf. LIGHTFOOT 1979, 1991).

Neste processo, a mudança linguística ocorre quando a natureza dos dados

linguísticos que servirão de input para a fixação de um parâmetro é obscura ou ambígua

para a nova geração, permitindo interpretações distintas. Neste caso, a seleção se dá em

função das representações mais simples. Como visto anteriormente, na modelo de

gramaticalização de R&R (2003), são justamente os dados linguísticos ambíguos que irão

impulsionar o processo de gramaticalização. Para os autores, o processo de

gramaticalização só ocorre quando se observam duas formas, ainda que homófonas, que se

comportam, sintaticamente, de forma distinta, levando à possibilidade de duas

interpretações distintas. No caso das construções formadas por ter/haver + PTP, assumimos

que o gatilho para a renálise que levará à gramaticalização sejam, como vimos, as

construções com complemento masculino, singular, uma vez que, nestes casos, são

possíveis duas interpretações: (i) a de uma construção adjetiva e (2) a de uma construção já

gramaticalizada, de tempo composto.

Nestes moldes, a mudança se inicia quando uma população de aprendizes converge

em um sistema gramatical – Língua-I – que difere em pelo menos um valor paramétrico do

sistema internalizado por falantes cujas produções linguísticas serviram de input para os

aprendizes. Adotando o conceito de parâmetros de Chomsky (1995, 2000), a mudança

linguística passa a ser relacionada a alterações nas propriedades dos núcleos funcionais.

Como os parâmetros são propriedades dos núcleos funcionais e estes estão no léxico, o

processo de remarcação do parâmetro se dará no período de aquisição da linguagem por

meio do aprendizado do léxico. A gramaticalização é capturada, pois, como um caso de

mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais, sendo, portanto, um caso regular de

mudança paramétrica.

Sendo a gramaticalização um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise de

ter e haver como auxiliares de tempo composto se daria no momento de aquisição da

linguagem, sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por evidências linguísticas ambíguas

124

aos aprendizes que adquirem sua gramática. Deste modo, assumimos que a reanálise de ter

e haver tenha tido início com base em dois parâmetros: (1) construções com ter e haver +

PTP, com complemento masculino, singular, e com pronome qu-, cuja interpretação é a de

uma perífrase adjetiva e (2) construções com ter e haver + PTP, com complemento

masculino, singular, e com pronome qu-, cuja interpretação é a de tempo composto

perfectivo. Como o processo de aquisição da linguagem é orientado para a aquisição de

estruturas mais simples (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991, 1998; ROBERTS & ROUSSOU 2003), a

construção que recebe a interpretação de tempo composto é preferível.

Tal preferência se deve ao fato de as construções com interpretação de tempo

composto serem sintaticamente mais simples, ou menos custosas, no que respeita às

propriedades de movimento de núcleo. Como vimos anteriormente, a gramaticalização

envolve a criação de novo material funcional, seja a partir da reanálise de material lexical ou

da reanálise de material funcional já existente. No caso das construções de ter e haver +

PTP, ocorre a reanálise da categoria lexical V, isto é, ter e haver, enquanto verbos plenos,

que é reinterpretada como uma categoria funcional I (ou, na nomenclatura de R&R 2003, T,

tense) nas construções de tempo composto perfectivo. A reanálise de verbo pleno como

verbo auxiliar resulta na perda de uma operação de movimento: enquanto categorias

lexicais, ter e haver eram concatenados em V e se moviam para I para receber marcas

flexionais e, após a mudança, são concatenados diretamente em I, não sendo mais

necessária a operação de movimento de V para I. Como consequência, surge uma

construção monoclausal formada pela sequência auxiliar-auxiliado. Neste sentido, nos

moldes de R&R, a perda da operação de movimento leva à gramaticalização: ter/haver são

reanalisados de V para I e a gramaticalização resulta na reanálise da estrutura biclausal V

(pleno) + PTP para uma estrutura perifrástica V (auxiliar) + PTP.

Deste modo, assumimos que as estruturas com interpretação adjetiva apresentam

movimento de ter/haver de V para I, ao passo que as estruturas com interpretação de

tempo composto não o fazem, sendo ter/haver concatenados diretamente em I. Observem-

se as Figura 9 e Figura 10 abaixo.

125

Figura 9: Representação sintática de construção adjetiva de ter/haver + PTP

Figura 10: Representação sintática de construção de tempo composto perfectivo

Como é possível observar a Figura 10 ilustra uma estrutura adjetiva formada por

ter/haver + PTP, em que as setas indicam as operações de movimento ocorridas (V para I e

movimento do sujeito de [spec, VP] para [spec, IP]). Nesta configuração, ter e haver

funcionam como verbos plenos e são concatenados na posição de V, após o que se movem

para a posição de núcleo de IP, onde recebem marcas flexionais. Nesta construção, a

posição de complemento de V é preenchida por uma SC formada por um NP e um PTP de

caráter adjetivo. A segunda estrutura, apresentada na Figura 11, representa a configuração

126

genérica de uma estrutura de tempo composto perfectivo, formada por ter/haver + PTP.

Nesta construção, observamos uma perífrase em que ter/haver são concatenados

diretamente no núcleo de IP, posição prototípica dos verbos auxiliares. O PTP,

reinterepretado como verbo, é concatenado em núcleo de V e a posição de complemento

de V pode ser preenchida por um NP complemento ou estar vazia.

Em suma, o processo de mudança de ter e haver que resultou na emergência dos

tempos compostos pode ser capturado nos seguintes termos. O input ambíguo – estruturas

de ter/haver com complemento masculino, singular – é adquirido pelo falante com duas

possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há operação de movimento

de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto, estrutura mais simples em que

não há operação de movimento de V para I.

Em relação aos dois tipos e construção e a aquisição de uma ou de outra,

assumimos a existência de duas gramáticas no PA: G1, uma gramática conservadora na qual

existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva, e G2, uma gramática inovadora, na qual

existem as duas construções: (i) e (ii). A depender do input que o aprendiz terá no período

de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou outra gramática. À medida que os dados

linguísticos das construções do tipo (ii) vão aumentando no corpus, isto é, a medida que a

presença de G2 é visível na Língua-E, é possível afirmar que a mudança está se

implementando. Assumimos, portanto, que, após um período de competição entre as duas

gramáticas (cf. KROCH 1989), vence G2, e ambas as estruturas passam a ser produtivas em

Português, cada uma exercendo sua função na língua.

O processo de mudança em questão é visto, ainda, como uma reação em cadeia,

uma vez que a mudança em um único parâmetro pode desencadear uma gama de novos

fenômenos visíveis superficialmente (LIGHTFOOT 1998). Deste modo, assumimos que, a

partir dos dados ambíguos que servem de input no período de aquisição da linguagem, o

aprendiz adquire a estrutura mais simples, isto é, a que recebe a interpretação de tempo

composto. Contudo, a aquisição deste novo parâmetro gera uma série de outras mudança

visíveis na Língua-E, tais como a fixação da ordem e a perda das marcas de concordância do

PTP com o complemento.

127

3.6. Síntese

O presente capítulo teve como objetivo descrever e trazer evidências empíricas

para a análise da gramaticalização de ter e haver em auxiliares, mudança que culminou na

formação dos tempos compostos perfectivos em Português.

Primeiramente analisamos o comportamento de ter e de haver enquanto verbos

plenos e enquanto verbos auxiliares nas construções com PTP; simultaneamente foi feita

uma revisão da literatura relevante sobre o assunto. Observamos que, enquanto verbos

lexicais, funcionam como predicadores da estrutura participial, sendo o PTP, neste caso,

interpretado como um adjetivo. Enquanto verbos auxiliares, ter e haver sofrem perda de

estrutura argumental e temática, bem como o conteúdo semântico de posse. Neste caso, o

PTP atua como o predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito da

construção.

Em relação a reinterpretação do PTP, assumimos que até a emergência dos tempos

compostos, este funcionava apenas como um adjetivo. Após a mudança, passa a exercer

dupla função, podendo funcionar como adjetivo nas construções transitivas-predicativas e

como verbo nas estruturas de tempo composto.

Acerca das evidências empíricas obtidas a partir da análise do corpus observamos,

primeiramente, que as construções com haver eram mais produtivas no corpus até o século

14, a partir do que crescem as construções com ter. No que respeita à concordância,

observamos que as estruturas que apresentam concordância do PTP com o complemento

ocorrem de maneira constante ao longo dos séculos, sofrendo uma pequena queda a partir

do século 14. As estruturas sem marcas de concordância se mantêm igualmente estáveis,

mas apresentam crescimento a partir do século 14. Os dados ambíguos se mostraram

relevantes para o processo de gramaticalização das construções em questão. Primeiramente

observou-se que estas competem não com as estruturas sem marcas de concordância, mas

com as estruturas transitivas-predicativas. Deste modo, os dados ambíguos ocorrem em

competição com as estruturas adjetivas até que estas diminuem consideravelmente ao

passo que as estruturas ambíguas aumentam. Além disso, observamos que os dados com

complemento masculino, singular são os mais frequentes no corpus. Como visto, a maior

frequência deste tipo de construção pode ser entendida como uma evidência de que este

era o gatilho mais frequente no período de aquisição da linguagem. Em um modelo em que

128

a mudança é vista em termos de mudanças paramétricas, isto é, uma mudança na fixação

de um dado parâmetro no período de aquisição da língua, a frequência é uma evidência

importante. Isto se dá uma vez que, quanto maior a frequência de um dado fenômeno, mais

este estará servindo de input para as gerações seguintes de falantes.

Em relação à ordem, observamos que certas ordens favorecem a concordância do

PTP com o complemento, ao passo que outras a desfavorecem. A ordem prototípica das

construções adjetivas, [V N PTP] apresentam concordância categórica. As ordens que irão

servir de gatilho junto com as construções em que o complemento é masculino, singular,

que apresentam a sequência [V PTP] apresentam variação na marcação da concordância. A

ordem [N V PTP] diminui gradativamente da gramática do Português, dando espaço à ordem

que irá se fixar nas construções de tempo composto, [V PTP N].

Finalmente, na última seção descrevemos o processo de gramaticalização de ter e

haver, analisando os passos da mudança de acordo com o quadro de R&R (2003). Com base

neste quadro interpretamos a mudança da seguinte maneira. O input ambíguo é adquirido

pelo falante com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há

operação de movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto,

estrutura mais simples em que não há operação de movimento de V para I. Neste quadro a

mudança sintática é vista como um caso regular de mudança paramétrica.

Em relação aos dois tipos e construção e a aquisição de uma ou de outra,

assumimos, ainda, a existência de duas gramáticas no PA: G1, uma gramática conservadora

na qual existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva, e G2, uma gramática inovadora, na

qual existem as duas construções: (i) e (ii). A depender do input que o aprendiz terá no

período de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou outra gramática. Após um período

de competição entre as duas gramáticas (cf. KROCH 1989), vence G2, e ambas as estruturas

passam a ser produtivas em Português, cada uma exercendo sua função na gramática da

língua.

O processo de mudança em questão foi interpretado, com base em Lightfoot

(1998) como uma reação em cadeia, uma vez que a mudança em um único parâmetro pode

desencadear uma gama de novos fenômenos visíveis superficialmente. Deste modo,

assumimos que, a partir dos dados ambíguos – construções de ter/haver + PTP com

complemento masculino, singular – que servem de input no período de aquisição da

linguagem, o aprendiz adquire a estrutura mais simples, isto é, a que recebe a interpretação

129

de tempo composto. Contudo, a aquisição deste novo parâmetro gera uma série de outras

mudança visíveis na Língua-E, tais como a fixação da ordem e a perda das marcas de

concordância do PTP com o complemento.

Como foi visto, do ponto de vista da gramática gerativa, as propriedades

gramaticais das expressões linguísticas fornecidas pela documentação histórica (Língua-E)

servem para caracterizar o sistema linguístico internalizado pelo falante (Língua-I). No que

respeita ao objeto de estudo desta Dissertação, evidências de construções com ter e haver +

PTP já gramaticalizados no corpus do século 13 (portanto, evidências da Língua-I expressas

pela Língua-E) permitem concluir que a mudança havia ocorrido já neste período, ainda que

com um número restrito de falantes.

130

Conclusão

Os estudos que tratam da emergência dos tempos compostos perfectivos em

Português frequentemente analisam o surgimento destas construções como uma

consequência do processo de mudança por meio do qual ter e haver passam de verbos

plenos, com conteúdo semântico de posse, a verbos auxiliares (MATTOS E SILVA 1989, 1992,

1996, 2002; RIBEIRO 1993; VIOTTI 1998; ALMEIDA 2006, MEDEIROS 2013). Construções

antes formadas por ter/haver + um PTP adjetivo que apresenta marcas de concordância

com o complemento de ter ou de haver passam a estruturas perifrásticas formadas por um

verbo auxiliar + um PTP verbal. As gramáticas tradicionais (DIAS 1959; SAID ALI 1964;

CÂMARA JR. 1969) afirmam que enquanto se computam as marcas flexionais de

concordância do PTP com o complemento direto selecionado por ter e por haver, não é

possível afirmar que estamos diante de estruturas de tempo composto.

Por uma abordagem que considera uma concepção de língua como uma gramática

interna (cf. CHOMSKY 1995) e uma concepção de mudança linguística como mudanças nas

gramáticas particulares de uma população de falantes, procuramos descrever nesta

Dissertação a passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, o que culminou na

emergência dos tempos compostos perfectivos em Português, como um caso de

gramaticalização (R&R 2003). Com base no quadro utilizado, a gramaticalização é capturada

em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais e considerada como um

caso regular de mudança paramétrica. Deste modo, interpretamos a mudança como sendo

um caso de simplificação estrutural, no qual há a perda de uma operação de movimento

sintático. No caso das construções de ter/haver + PTP, a estrutura original, com valor

adjetivo, é reanalisada como uma estrutura de tempo composto, sintaticamente mais

simples que a anterior.

A análise qualitativa dos dados mostrou que as estruturas analisadas podem ser

interpretadas de duas maneiras distintas: quando ter e haver expressam valor de posse

estamos diante de construções transitivas em que estes verbos selecionam um

complemento direto composto por um NP e um PTP adjetivo, que o modifica. O

complemento selecionado por ter ou haver é interpretado como uma SC, a partir do que

analisamos estas construções como sendo estruturas transitivas-predicativas. Quando ter e

131

haver deixam de expressar qualquer valor semântico e integram estruturas com um PTP de

caráter verbal com valor perfectivo, as interpretamos como sendo de tempo composto. Nas

perífrases perfectivas não são documentadas marcas de concordância entre o PTP e o

complemento.

A partir da análise do comportamento de ter e de haver enquanto verbos plenos e

enquanto verbos auxiliares nas construções com PTP foi possível observar que, enquanto

verbos lexicais, funcionam como predicadores da estrutura participial, sendo o PTP, como

visto, interpretado como um adjetivo. Enquanto verbos auxiliares, ter e haver sofrem perda

de estrutura argumental e temática, bem como o conteúdo semântico de posse. Neste caso,

o PTP passa a atuar como o predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito

da construção. Em relação a mudança a partir da qual o PTP é reinterpretado como um

verbo, assumimos que até a emergência dos tempos compostos, este funcionava apenas

como um adjetivo. Após a mudança, passa a exercer dupla função, podendo funcionar como

adjetivo nas construções transitivas-predicativas e como verbo nas estruturas de tempo

composto.

A análise quantitativa dos dados trouxe resultados que permitiram algumas

conclusões acerca da descrição do fenômeno estudado e corroboram as hipóteses

formuladas no início desta Dissertação. Primeiramente, observamos que as construções

com haver eram mais produtivas no corpus até o século 14. A partir deste século aumentam

as construções com ter, até que estas se tornam maioria no corpus. Com base nisto foi

possível afirmar que as construções com ter vão gradualmente aumentando ao longo dos

séculos, paralelamente à diminuição das estruturas com haver. Atualmente sabe-se que as

estruturas de tempo composto perfectivo em PB são predominantemente com o verbo ter.

No que respeita à concordância, em geral, a literatura considera a perda destas

marcas morfológicas do PTP com o complemento de ter e haver como um indicador do

surgimento dos tempos compostos perfectivos. Associado a isto a fixação da ordem em

[ter/haver PTP] também é um marcador da emergência deste tempo verbal em Português.

Os dados obtidos com a análise do corpus permitiram observar que é a partir do século 13

que surgem as primeiras estruturas sem marcas de concordância, tanto com ter quanto com

haver. Isto sugere que a implementação da mudança se dá já neste século; contudo, seu

espraiamento ocorre ao longo dos séculos seguintes, quando aumentam as ocorrências

deste tipo de estrutura no corpus.

132

Em relação à concordância observou-se também que as estruturas consideradas

ambíguas exerceram importante papel na gramaticalização das construções em questão.

Primeiramente observou-se que estas competem não com as estruturas sem marcas de

concordância, mas com as estruturas transitivas-predicativas. Deste modo, os dados

ambíguos ocorrem em competição com as estruturas adjetivas até que estas diminuem

consideravelmente ao passo que as estruturas ambíguas aumentam. Além disso,

observamos que os dados com complemento masculino, singular são os mais frequentes no

corpus. Como visto, a maior frequência deste tipo de construção pode ser entendida como

uma evidência de que este era o gatilho mais frequente no período de aquisição da

linguagem. Em um modelo em que a mudança é vista em termos de mudanças

paramétricas, isto é, uma mudança na fixação de um dado parâmetro no período de

aquisição da língua, a frequência é uma evidência importante, uma vez que, quanto maior a

frequência de um dado fenômeno, mais este estará servindo de input para as gerações

seguintes de falantes.

Em relação à ordem, observamos que certas sequências favorecem a concordância

do PTP com o complemento, ao passo que outras a desfavorecem. A ordem prototípica das

construções adjetivas, [V N PTP] apresentam concordância categórica. As ordens que irão

servir de gatilho junto com as construções em que o complemento é masculino, singular,

que apresentam a sequência [V PTP], apresentam variação na marcação da concordância. A

ordem [N V PTP] diminui gradativamente na gramática do Português, dando espaço à ordem

que irá se fixar nas construções de tempo composto, [V PTP N].

Com base nos resultados obtidos para a ordem e a concordância assumimos que a

fixação da ordem em [V PTP N] e, posteriormente, a perda das marcas da concordância são

consequências da gramaticalização de ter e haver, emergindo, assim, os tempos compostos

perfectivos em Português. Com base nestes fatores, localizamos temporalmente o

surgimento destas estruturas no século 13, quando já aparecem construções com ter e com

haver com a ordem [V PTP N] e sem marcas de concordância entre o PTP e o complemento,

ainda que o espraiamento da mudança ocorra em um período posterior.

Com base nas análises qualitativa e quantitativa descrevemos o processo de

gramaticalização de ter e haver, analisando os passos da mudança de acordo com o quadro

de R&R (2003), como sendo um caso regular de mudança paramétrica. Tal mudança teve

como consequência a perda de uma operação de movimento sintático da construção

133

original, resultando em uma estrutura inovadora, estruturalmente mais simples. Com base

nisto, assumimos que o input ambíguo – estruturas de ter/haver com complemento

masculino, singular e estruturas com pronomes interrogativos ou substantivos sem

antecedente e, ainda, com complementos nulos sem antecedente – é adquirido pelo falante

com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há operação de

movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto, estrutura mais

simples em que não há operação de movimento de V para I. Em relação aos dois tipos e

construção – a construção original, adjetiva, e a construção inovadora, de tempo composto

– e a aquisição de uma ou de outra, assumimos, ainda, a existência de duas gramáticas no

PA: G1, uma gramática conservadora na qual existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva,

e G2, uma gramática inovadora, na qual existem as duas construções: (i) e (ii). A depender

do input que o aprendiz terá no período de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou

outra gramática. Após um período de competição entre as duas gramáticas (cf. KROCH

1989), vence G2, e ambas as estruturas passam a ser produtivas em Português, cada uma

exercendo sua função na gramática da língua. Ambas as estruturas convivem, ainda hoje, na

gramática do Português Brasileiro.

Em suma, o processo de mudança de ter e haver que resultou na emergência dos

tempos compostos pode ser capturado nos seguintes termos. O input ambíguo é adquirido

pelo falante com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há

operação de movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto,

estrutura mais simples em que ter e haver são concatenados diretamente em I. Uma vez

que a gramaticalização é vista em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos

funcionais, assumimos que a primeira interpretação é marcada negativamente para o

parâmetro do movimento do núcleo e a segunda, marcada positivamente para este

parâmetro.

134

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