democracia sob pressÃo resistÊncia vegetal · do lodo de esgoto, enquadrá-lo como produto...

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unesp ciência outubro de 2018 ano 10 número 101 © Arquivo do projeto DEMOCRACIA SOB PRESSÃO IMPACTO DAS REDES SOCIAIS ALTERA RELAçõES SOCIAIS E INFLUENCIA PROCESSO ELEITORAL RESISTÊNCIA VEGETAL AS PLANTAS ALIMENTíCIAS NãO CONVENCIONAIS (PANCS) SãO OPçãO FRENTE àS MUDANçAS CLIMáTICAS Bom para a cidade, bom para o campo UNESP E SABESP SE UNEM PARA TRANSFORMAR ESGOTO URBANO EM PRODUTO UTILIZáVEL NA AGRICULTURA

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unespciênciaoutubro de 2018 ∞ ano 10 ∞ número 101

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DEMOCRACIA SOB PRESSÃOImpacto das redes socIaIs altera relações socIaIs e InfluencIa processo eleItoral

RESISTÊNCIA VEGETALas plantas alImentícIas não convencIonaIs (pancs) são opção frente às mudanças clImátIcas

Bom para a cidade, bom para o campounesp e saBesp se unem para transformar esgoto urBano em produto utIlIzável na agrIcultura

Produzir conteúdo,Compartilhar conhecimento.Editora Unesp, desde 1987

www.editoraunesp.com.br

A ciência da dor: sobre �bromialgia e outras síndromes dolorosas Pedro Ming Azevedo | 374 páginas

Todos nós sentimos dores, de vez em quando. Mas quando essas dores persistem após o fim de períodos de maior estresse, vêm independentemente deles, ou são desencadeadas por eventos triviais do dia-a-dia, são generalizadas e não localizadas, dá-se o nome de fibromialgia. Segundo o reumatologista Pedro Ming Azevedo, “não há nada de 'imaginário' na fibromialgia”. Na primeira parte deste livro, o autor explica a história das síndromes de sensibilidade, o diagnóstico da dor sistêmica, os subgrupos da fibromialgia e as bases genéticas e psicológicas desse tipo de sofrimento físico. Na segunda parte, apresenta tratamentos, cuidados e atividades preventivas para as doenças da dor. Ao final da obra, o leitor encontrará testes e questionários de avaliação para o paciente fibromiálgico.

Reumatologista expõe quadro detalhado das síndromes

dolorosas persistentes

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setemBro 2018 | unespcIêncIa 3

Editorial

problema e soluçãoQ uantas vezes você já ouviu que “o próprio problema já

indica a solução” ou que “é nas crises (ou desafios) que surgem as oportunidades”?

Para além dos chavões contidos nesses tipos de frase, é esse o caminho indicado por nossa matéria de capa, uma reportagem do jornalista Sérgio Santa Rosa, que acompanha de perto as atividades do câmpus de Botucatu e detalha o histórico da parceria da Unesp com a Sabesp que estudou a transformação do lodo de esgoto urbano em composto orgânico para ser utilizado em atividades agrícolas.

O projeto “Compostagem do logo de esgoto: avaliação do proces-so, do produto gerado e dos custos” envolveu dez pesquisadores e docentes da Faculdade de Ciências Agronômicas, do Instituto de Biociências e da própria Sabesp, foi selecionado pelo Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da Fapesp e, após alguns anos de trabalho sério, deu um norte consis-tente para essa questão ambiental, inclusive com informações para a formulação de um arcabouço legal que pode tornar esta solução uma realidade viável e segura para o homem e para o meio ambiente.

Por falar em realidade, inovação e futuro, a revista traz uma reflexão interessante do professor Milton Lima Neto, docente do Instituto de Biociências do câmpus do Litoral Paulista, sobre as plantas alimentícias não convencionais e como elas poderão nos ajudar a suprir a demanda por alimentos e também um artigo cons-trutivo focado na capacidade de inovar das empresas brasileiras e na necessidade de se fazer a gestão da inovação, escrito pelo professor David Ferreira Lopes Santos, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) do câmpus de Jaboticabal.

Esta edição da unespciência ainda conta com a colaboração especial de Malena Stariolo. Com formação em jornalismo cien-tífico, ela faz um relato sobre o laboratório subterrâneo concebido para pesquisas em um túnel na parte mais ao sul do continente, na região andina entre a Argentina e o Chile, com a finalidade de estudar os mistérios da matéria escura. Malena é bolsista do ICTP-SAIFR, braço do Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamen-tal sediado no Instituto de Física Teórica da Unesp em São Paulo.

Na área de ciências humanas, a revista tem uma preciosa co-laboração da cientista social Heloisa Pait, docente da Unesp que analisa os impactos da vivência das redes sociais em nossas esco-lhas eleitorais, lançando perspectivas que podem ajudar você, ca-ro e democrático leitor, a reconstruir o tecido social que possa ter perdido na polarização nossa do dia a dia dessas novas mídias, que ecoou bastante nas eleições de 2018.

Vale a pena também a leitura da entrevista de Luiz Roncari, es-tudioso de Guimarães Rosa, concedida ao jornalista Diego Moura a respeito de um notável livro lançado recentemente pela Editora Unesp: “Luta e Auroras – Os Avessos de Grande Sertão: Veredas”

Governador Márcio França

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e InovaçãoVinicius de Almeida Camarinha

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAReitorSandro Roberto ValentiniVice-reitorSergio Roberto NobrePró-reitor de Planejamento Estratégico e GestãoLeonardo Theodoro BüllPró-reitora de GraduaçãoGladis Massini-CagliariPró-reitor de Pós-GraduaçãoJoão Lima Sant’Anna NetoPró-reitora de Extensão UniversitáriaCleopatra da Silva PlanetaPró-reitor de PesquisaCarlos Frederico de Oliveira GraeffSecretário-geralArnaldo CortinaChefe de GabineteCarlos Eduardo VerganiAssessor-chefe da Assessoria de Comunicação e ImprensaFábio Mazzitelli de Almeida

Presidente do Conselho CuradorMário Sérgio VasconcelosDiretor-presidenteJézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente administrativo e financeiroWilliam de Souza Agostinho

Projeto Hankô Design & Content (Ricardo Miura)Assistente de arte Andréa CardosoEditores André Louzas e Marcos JorgeColaboradores David Ferreira Lopes Santos, Diego Moura, Heloisa Pait, Malena Stariolo, Milton Lima Neto, Sérgio Santa Rosa (texto)Apoio administrativo Thiago Henrique Lúcio Endereço Rua Quirino de Andrade, 215, 4o andar, CEP 01049-010, São Paulo, SP. Tel. (11) 5627-0327. www.unespciencia.com.br [email protected]

É autorizada a reprodução total ou parcial de textos e imagens desde que citada a fonte. Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da Universidade.

AMBIENTEunesp e sabesp somam

esforços para transformar lodo de esgoto urbano em

composto a ser utilizado em atividades agrícolas

SÉRGIO SANTA ROSA

fíSICAWorkshop realizado no Instituto de física teórica da unesp discute formação de consórcio que vai operar laboratório a quase dois mil metros abaixo da cordilheira dos andesMALENA STARIOLO

CIÊNCIAS SOCIAISImpactos da vivência das redes sociais em nossas escolhas eleitoraisHELOISA PAIT

Sumário

4 unespcIêncIa | outuBro 2018

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Sumário

5outuBro 2018 | unespcIêncIa

14 LITERATuRAluiz roncari joga luz sobre aspectos da obra de guimarães rosa que não receberam atenção da críticaDIEGO MOURA

26ECONOMIAInovação

empresarial no Brasil:

expectativa e realidade

DAVID FERREIRA LOPES SANTOS

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CIÊNCIAS BIOLÓGICASestudos sobre resiliência das plantas alimentícias não convencionais (pancs) pode nos dar pistas de como atender a demanda por alimentos em um cenário de mudanças climáticasMILTON LIMA NETO

fOTO MÊSsoftware

desenvolvido em Bauru

produz arte a partir de

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Vista aérea da Fazenda Experimental de Lageado, em Botucatu.

Ambiente

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Ambiente

F undada em 1973, a Sabesp é responsá-vel pelo fornecimento de água, coleta e

tratamento de esgotos de 368 municípios do Estado de São Paulo. É considerada uma das maiores empresas de saneamento do mundo em população atendida: são 27,9 milhões de pessoas abastecidas com água e 21,6 milhões com coleta de esgotos.

Cada uma de suas 502 estações de trata-mento de esgoto (ETE) em atividade gera, ao final dos processos de tratamento dos efluen-tes domésticos, um resíduo denominado lodo de esgoto. Rico em matéria orgânica e com reconhecido potencial para condicionar solos utilizados em áreas agrícolas ou florestais, o lodo de esgoto ainda é subutilizado no Brasil, em razão das incertezas geradas pela regula-mentação para sua aplicação no solo e pela carência de pesquisas sobre possíveis riscos ambientais e sanitários do seu uso.

A resolução 375/2006 do Conselho Nacio-nal do Meio Ambiente (Conama), órgão con-sultivo e deliberativo do Ministério do Meio Ambiente, estabeleceu limites de tolerância para a ocorrência de indicadores de patogeni-cidade (bactérias, vírus e outros agentes que

podem provocar doenças) para o uso agrícola do lodo de esgoto. A resolução determinou a necessidade de análises sobre a presença de ovos de helmintos (parasitos responsáveis por doenças como ascaridíase, teníase e cisticer-cose), salmonela, vírus e coliformes termoto-lerantes (bactérias que toleram temperaturas acima de 40ºC).

Em razão da falta de pesquisas sobre o te-ma no Brasil, a resolução optou por cercar o uso do lodo de esgoto de todos os cuidados ao invés de arriscar a ocorrência de danos ao ambiente ou à saúde humana. A exigência das análises, por conta de seu alto custo e do número restrito de laboratórios capazes de executá-las, acabaram gerando dificuldades para que as empresas que trabalhavam com lodo pudessem atender aos requisitos da re-solução do Conama. A partir de 2011, prazo final estabelecido pela resolução 375 para que as ETES se adequassem às normas, a própria Sabesp, que destinava o lodo recolhido na ETE de Franca para a cultura do café, com bons resultados, interrompeu essas operações.

Não podendo ser utilizado na agricultura, o lodo de esgoto precisa ser descartado em

UNESP E SABESP SOMAM ESFORçOS PARA TRANSFORMAR LODO DE ESGOTO URBANO EM COMPOSTO A SER UTILIzADO EM ATIVIDADES AGRíCOLAS E AJUDAR NA ELABORAçãO DE UMA LEGISLAçãO PARA USO DESSES EFLUENTES NA AGRICULTURA

de problema a solução ambiental

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Lodo de esgoto passa por processo de medição da temperatura. Durante o processo de compostagem, as temperaturas podem passar de 70ºC.

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aterros sanitários. No entanto, somente aterros especialmente preparados e autorizados podem receber esse tipo de material, exigência que também gera custos para as ETEs. “O lodo de esgoto pode chegar a ter 85% de água em sua composição e elevada carga orgânica. Os aterros devem estar preparados para receber, coletar e tratar o chorume, elemento bastan-te problemático do ponto de vista ambiental”, afirma o professor Roberto Lyra Villas-Bôas, do Departamento de Solos e Recursos Am-bientais da Faculdade de Ciências Agronômi-cas (FCA) da Unesp, Câmpus de Botucatu. O destino mais próximo para o resíduo gerado nas ETEs da Sabesp em Botucatu, por exemplo, é um aterro sanitário em Paulínia, a 180 km de distância. As despesas com esse descarte podem chegar a 50% do custo operacional de uma ETE.

SURGE UMA ALTERNATIVAA chance de reverter esse panorama foi encontra-da também na legislação, mais especificamente no Decreto Federal 4.954 de 14/01/2004 e em uma série de Instruções Normativas editadas

pelo Ministério da Agricultura e Abasteci-mento (MAPA). Tais normas oferecem pos-sibilidade legal de, ao realizar a compostagem do lodo de esgoto, enquadrá-lo como Produto Fertilizante Orgânico Composto Classe D. O termo classe D indica o uso do lodo de esgoto na composição do fertilizante.

Assim como na resolução do Conama, os limites de tolerância de patogenicidade se-guem sendo exigidos pelas normas editadas pelo MAPA. Para ser utilizado, o composto à base de lodo de esgoto deve passar por aná-lises de coliformes termotolerantes, ovos de helmintos e salmonela. Como o aumento de temperatura causado pelo próprio processo de compostagem elimina a população de mi-crorganismos patogênicos, tais normas não estabeleceram a exigência de análises de vírus para esse tipo de produto.

Foi com base nessas normas e motivada pelas diversas limitações ambientais, econô-micas, técnicas e de espaço para disposição do lodo de esgoto que Sabesp e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) assinaram um Acordo de Cooperação para Desenvolvimento Tecnológico, em busca de alternativas de tratamento, disposição e a utilização do resíduo.

O projeto “Compostagem do lodo de esgo-to: avaliação do processo, do produto gerado e dos custos”, envolvendo dez pesquisadores e docentes da FCA, do Instituto de Biociên-cias (IB) da Unesp, Câmpus de Botucatu, e da própria Sabesp, foi selecionado pelo Pro-grama de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da Fapesp, que financia estudos desenvolvidos por instituições acadêmicas em cooperação com empresas que cofinanciam os trabalhos.

A aprovação do projeto, sob a coordenação dos professores Lyra, Dirceu Maximino Fer-nandes e Iraê Amaral Guerrini, possibilitou a aquisição de equipamentos, maquinários (trator e compostadora), construção de estufa e a concessão de uma bolsa de pós-doutorado e uma bolsa de doutorado, com duração de 36 meses, e duas bolsas de treinamento técnico

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Maquinário adquirido no projeto “Compostagem do lodo de esgoto: avaliação do processo, do produto gerado e dos custos”.

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com duração de 18 meses. No total, o proje-to reuniu 10 alunos de pós-graduação, dando origem a duas teses de doutorado e seis dis-sertações de mestrado.

A PESQUISAA primeira decisão dos pesquisadores foi a realização dos experimentos em grande esca-la. “Poderíamos fazer o projeto em pequena escala, juntando um metro cúbico de lodo a um metro cúbico do resíduo orgânico e obser-var os resultados. Mas sabemos que o volume influencia no processo, por isso optamos por fazer em larga escala com o objetivo de ob-ter informações sobre o que efetivamente vai ocorrer com o material, no mesmo volume que será trabalhado pela empresa”, explica Lyra.

O processo de compostagem exige a mis-tura de um material mais rico em nitrogênio, no caso o próprio lodo de esgoto, com outro material mais rico em carbono. A primeira questão enfrentada pela pesquisa foi a deter-minação da melhor fonte de carbono, em ter-mos de eficiência e economia, para viabilizar a demanda da Sabesp no Estado de São Paulo.

Três materiais foram testados para deter-minar sua capacidade de fermentar e se mis-turar ao lodo de forma homogênea, formando assim o composto orgânico. A casca de arroz, produzida com mais intensidade no Vale do Paraíba, foi descartada pela sua dificuldade em absorver água, o que impede a formação de uma massa homogênea ao ser misturada

ao lodo de esgoto. Já o bagaço de cana-de-açúcar e a casca de eucalipto, testados porque podem ser obtidos em usinas e plantios em diversas regiões do Estado, apresentaram as características desejadas, com os compostos atingindo e mantendo a temperatura acima dos 55ºC por um período superior a 15 dias.

O aumento da temperatura é um fator fun-

TRêS MATERIAIS FORAM TESTADOS NA SUA CAPACIDADE DE SE MISTURAR AO LODO DE FORMA HOMOGêNEA. A CASCA DE ARROz FOI DESCARTADA. Já O BAGAçO DE CANA E A CASCA DE EUCALIPTO APRESENTARAM CARACTERíSTICAS DESEJADAS.

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Mistura de materiais – bagaço de cana e casca de eucalipto.

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damental do processo de compostagem, pois permite o desenvolvimento dos microrganis-mos (bactérias, fungos e actinomicetos) res-ponsáveis pela conversão microbiológica da matéria orgânica bruta em composto orgâ-nico. Esse aumento de temperatura também é fundamental para higienizar o composto, por eliminar os microrganismos patogênicos. “A eficácia do processo de compostagem e as pesquisas com as fontes de carbono não re-presentariam nenhum avanço se os resultados das análises não indicassem a eliminação dos microrganismos patogênicos durante o proces-so”, ressalta Lyra.

Com o objetivo de comprovar a eliminação dos microrganismos a partir da compostagem, os pesquisadores retiraram amostras do expe-rimento a cada dez graus que a temperatura da pilha de compostos aumentava e também ao final, quando ela voltou para menos de 40ºC. As análises microbiológicas foram realizadas com apoio dos Departamentos de Microbiologia e Parasitologia do IB, como parte da tese de doutorado da engenheira ambiental Marianne Fidalgo de Faria junto ao programa de Pós-

-Graduação em Ciência Florestal da FCA, sob orientação do professor Robert Boyd Harrison, da University of Washington, nos Estados Uni-dos e coorientada pelo professor Iraê Guerrini.

Toda a metodologia utilizada foi baseada naquela utilizada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). “O lodo de esgoto tem a característica de ser composto por muita gordura, o que pode esconder os ovos de helminto”, relata Lyra. “Antes da análise, o material precisa ser dispersado e selecio-nado para que se obtenha um material mais fino. Como a legislação fala em ovos viáveis de helminto, Marianne fez um treinamento para identificá-los e conseguiu fazer uma das pesquisas pioneiras no país nesse sentido.”

Marianne começou a pesquisar sobre o te-ma ainda em seu mestrado, quando estudou a presença desses microrganismos no lodo de esgoto in natura. “Avaliamos o lodo de esgoto por um ano e o tempo de permanência de ovos de áscaris, o tipo mais resistente de ovos de helmintos, foi de sete semanas. Nas pesquisas conduzidas no doutorado comprovamos que 100% dos ovos de áscaris foram inativados

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durante o processo de compostagem. Com o bagaço de cana foram 60 dias de monitora-mento e com a casca de eucalipto 45 dias. Na metade desses períodos já não encontrávamos mais esses ovos. Já a salmonela não foi encon-trada desde o início do experimento”, detalha.

As análises dos coliformes termotolerantes foram responsáveis por preocupações no de-correr do estudo, como conta Marianne. “Eles chegaram a nível zero numa determinada etapa do processo. Mas, na coleta seguinte detecta-mos um grande aumento na sua quantidade. Pesquisando, percebemos que esse fenômeno é normal porque, como eles se reproduzem em temperaturas mais elevadas, as condições foram propícias para sua reprodução. Mas como as temperaturas continuaram a subir e a umidade diminuiu, esses microrganismos também acabaram eliminados”, argumenta.

EM DEBATEQuando o tema do uso agrícola do lodo de esgoto começou a ser debatido no Brasil, não havia estudos nacionais conclusivos. “Hoje, a Resolução 375 está em debate e pode ser revista em razão dos estudos que já temos no país. Os trabalhos que desenvolvemos aqui, junto com pesquisas feitas em outras insti-tuições, estão ajudando nessa discussão”, co-menta Marianne. “Um dos pontos em que se espera mudanças é a retirada da exigência de análise de vírus. Tanto os meus como vários outros estudos comprovam que os vírus, dentre todos os patógenos, são os mais sensíveis ao meio ambiente e duram poucas horas, o que minimiza o risco”.

O debate no seio da comunidade técnico-científica da área inclui outro fator importan-te: a pressão dos órgãos ambientais para que o lodo de esgoto não seja mais disponibilizado em aterros sanitários. “É um resíduo que gera chorume e pode contaminar o lençol freático, além de ser um material muito rico em maté-ria orgânica e nutrientes jogado fora”, explica a pós-doutoranda Caroline Mateus, bolsista do projeto. “É preciso dar um destino correto a esse material, fazendo uma reciclagem de

nutrientes e retornando-o ao solo em áreas de cultivo de florestas, culturas como café e cana-de-açúcar e mesmo na recuperação de áreas degradadas.”

Segundo Caroline, considerando apenas os plantios de eucalipto, a demanda já seria muito maior do que a produção. “Se o país inteiro coletasse e tratasse o esgoto, o lodo resultante não supriria nem a cultura do eu-calipto no país. Assim, o problema dos aterros sanitários poderia estar encerrado. Além dis-so, a compostagem desse lodo pode oferecer um destino ambientalmente adequado para outros resíduos, como por exemplo a poda de árvores que todos os municípios fazem. O futuro é a utilização do lodo de esgoto na agricultura”, assegura.

Caroline lembra que, além da Unesp, ou-tras instituições têm se dedicado à pesquisa sobre o tema. A Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) é responsável pelas pu-blicações mais antigas sobre uso agrícola do lodo de esgoto no Brasil. “O Paraná é um Es-tado pioneiro nessa área, mas eles trabalham com adição de cal ao lodo de esgoto. A cal também elimina os microrganismos e é ade-quada para a correção de alguns dos tipos de solos daquela região. No Estado de São Paulo essa solução é menos interessante, em razão dos custos da adição da cal e dos tipos de so-lo, que demandam outras formas de manejo”, explica Caroline.

Ana Lúcia Silva, gerente da Divisão de Con-trole Sanitário do Médio Tietê da Sabesp, lembra que países da União Europeia, Esta-dos Unidos e Austrália já utilizam sem restri-ção o lodo de esgoto depois de beneficiado, e com as mesmas características de qualidade do fertilizante produzido na ETE Botucatu.

ESTADOS UNIDOS E AUSTRáLIA Já UTILIzAM SEM RESTRIçãO O LODO DE ESGOTO DEPOIS DE BENEFICIADO, E COM AS MESMAS CARACTERíSTICAS DE QUALIDADE DO FERTILIzANTE PRODUzIDO NA ETE DE BOTUCATU

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“Nos Estados Unidos, por exemplo, esses fer-tilizantes podem ser encontrados em qualquer prateleira de supermercado, o que demonstra a segurança e o baixo risco ao meio ambiente e à saúde pública”, assinala.

BENEFíCIOSOutra frente de estudos do projeto foi o le-vantamento dos custos de produção do com-posto, para avaliar a viabilidade econômica do processo. Conduzido pela professora Maura Seiko Esperancini, do Departamento de Eco-nomia, Sociologia e Tecnologia da FCA e sua orientada de mestrado Roseli Visentin, esse trabalho levantou todos os custos de cada etapa do processo, incluindo aquisição de materiais, equipamentos, estrutura, combustível, mão de obra e transporte. “Ao longo do estudo, per-cebemos que a logística para a produção do composto é bastante complexa. Você depende do lodo que está na ETE/Botucatu, mas o ide-al é que os materiais que serão misturados na compostagem também estejam na região para baratear os custos”, comenta Roseli.

A pesquisa atestou a existência de um grande mercado para o produto. “Botucatu tem 96% do esgoto coletado e 100% do esgoto tratado. A ETE Botucatu tem capacidade para produzir cerca de 70 toneladas de composto orgânico por mês, quantidade que atenderia cerca de 5% da área cultivada com milho no municí-pio, aplicando-se 10 toneladas por hectare por ano, ou seja, a demanda é muito maior que a oferta. Mas ainda que esse produto não seja comercializado, o grande benefício econômi-co já ocorre quando se evita os custos com o transporte e a disposição desse lodo no aterro sanitário em Paulínia”, esclarece Roseli.

Além disso, há inegáveis benefícios sócio-ambientais, como coloca Wanderley da Silva Paganini, superintendente de Gestão Ambien-tal da Sabesp. “O grande desafio vivenciado hoje é a transição de uma economia linear, que é aquela na qual se extrai a matéria-pri-ma para a produção dos bens de consumo e se descartam os resíduos gerados após o uso dos produtos, para a chamada economia cir-

cular, que busca a reutilização, a recuperação e a reciclagem dos produtos, com base em um modelo de desenvolvimento sustentável. Não é um caminho fácil, mas é um objetivo inserido em nossa visão de futuro para o saneamento. Sabesp e Unesp estão dando um importante passo nessa direção”.

ALTERNATIVASFoi também pensando no aspecto econômico que os pesquisadores avaliaram a possibilidade do uso do composto orgânico como substrato para a produção de mudas de eucalipto e es-pécies florestais nativas. “A ideia era agregar mais valor ao composto. Foram feitos quatro trabalhos nesse sentido, orientados pelos profes-sores Magali Ribeiro da Silva e Iraê Guerrini, sempre comparando os dados obtidos com os substratos comerciais, e os resultados foram muito bons”, conta o professor Lyra. “Muitas vezes, o substrato comercial precisa receber adubação extra. O lodo de esgoto, por conter nitrogênio e outros nutrientes, já ajuda a pro-mover o crescimento da planta. Trata-se de um campo imenso para pesquisas que busquem

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Da esq. para dir., professor Lyra (FCA), Ana Lúcia Silva (Sabesp) e Maurício Tápia (Sabesp).

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encontrar os padrões ideais para o uso desse material nas diversas espécies”.

Um último enfoque do projeto foi a avalia-ção do enriquecimento do composto elaborado com bagaço de cana com fósforo e a eficiência do seu aproveitamento em áreas de cana-de- -açúcar. O bagaço de cana tem sido compostado e utilizado pelas usinas nas plantações dessa cultura, principalmente em solos arenosos onde as perdas de nutrientes são mais intensas e a falta de água mais expressiva, com resultados importantes em termos de produtividade. No entanto, esse material é pobre em fósforo, ha-vendo a necessidade de complementação de adubo inorgânico nos plantios.

Os pesquisadores resolveram então avaliar o enriquecimento do composto com outras fontes de fósforo e a eficiência do seu apro-veitamento pelas plantas. “Normalmente, são feitas duas operações: aplica-se o composto e, na sequência, aplica-se o adubo. Então por que já não enriquecer o material aplicado, a partir da compostagem? Seria uma forma de levar o fósforo que a planta precisa, com ape-nas uma operação no campo, economizando

o gasto com o trabalho das máquinas”, relata Caio Vilela Cruz, responsável por essa etapa do projeto, sob orientação do professor Dir-ceu Maximino Fernandes. Em fase final, essa vertente do projeto também tem apresentado resultados positivos.

Próxima do seu encerramento, a iniciati-va apresentou respostas diretas e claras para questionamentos pontuais sobre aspectos de interesse da Sabesp. “A proposta objetiva do projeto foi estudar as limitações que impediam o uso do lodo no solo e como essas barreiras poderiam ser superadas”, afirma Lyra. “Acredito que mostramos os caminhos e geramos infor-mações que podem ajudar na formulação da legislação e a tornar o uso do lodo mais amplo e seguro para o homem e para o meio ambiente.”

Para Maurício Tápia, superintendente da Unidade de Negócio Médio Tietê da Sabesp, o grande desafio para o desenvolvimento sus-tentável é agregar valor econômico e ambiental, gerando o mínimo de rejeitos, que deverão ter uma destinação ambientalmente adequada. “Por meio da otimização do processo de trata-mento e da aplicação de novas tecnologias, a Sabesp, através da Unidade de Negócio Médio Tietê, vem obtendo resultados significativos nas estações de tratamento. Em Botucatu, temos o privilégio de contar com a parceria da Unesp. O uso do lodo de esgoto deve ser feito com todo o cuidado porque ele é poluente potencial se mal utilizado, mas apesar do rigor da legislação vigente, já estamos conseguindo usufruir dos benefícios do material com a se-gurança necessária”, diz.

Em novembro, a Sabesp deve receber o re-latório final geral sobre o projeto, em todas as suas vertentes. A ideia é que esse documento auxilie a decisão estratégica da empresa sobre o melhor uso para o lodo de esgoto gerado em suas ETES. “As informações mostram que o produto tem potencial. Desenvolver essa pesquisa é uma forma de retribuir o investi-mento feito pela sociedade, trazendo benefí-cios de várias ordens, economia e uma visão ambiental que a cada dia é mais importante”, analisa Lyra.

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Literatura

A pós mais de 30 anos de estudos em tor-no de Guimarães Rosa, Luiz Roncari,

professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, publica o quarto livro sobre o escritor. Lançado pela Editora Unesp Luta e auroras – os avessos de Grande sertão: veredas… apre-senta uma nova perspectiva de análise do livro do escritor mineiro, trabalhando em aspec-tos ainda não explorados por outros críticos da obra, como a tensão representada por um Brasil dividido entre a cultura da cidade e a tradição violenta do sertão. Nesta entrevista, Roncari descreve sua trajetória estudando a obra de Guimarães Rosa e a analisa à luz dos acontecimentos recentes no país.

unespciência Professor, conte para nós um pouco dos seus estudos sobre a obra de João Guimarães Rosa.luiz roncari Em 1987, antes ainda de defender

LUIz RONCARI JOGA LUz SOBRE ASPECTOS DA OBRA DE GUIMARãES ROSA QUE NãO RECEBERAM ATENçãO DA CRíTICA

“nós não sabemos, hoje, no Brasil, até onde irá o sertão”

o doutorado, prestei concurso na USP para a cadeira de Literatura Brasileira. Para começar a lecionar, era uma exigência da faculdade o ensino, a pesquisa e a extensão, por isso tive que apresentar um projeto de pesquisa. Como já estava interessado na obra de João Guima-rães Rosa, sobretudo no seu primeiro livro, Sagarana, fiz um projeto sobre ele. Até esse momento, tinha me dedicado mais ao estudo de Machado de Assis, sobre quem fiz o meu mestrado. No novo projeto, eu previa escrever quatro livros – veja a pretensão! – sobre um autor difícil, complicado, mas mesmo assim sobre quem muito se publicava, a sua biblio-grafia crítica é enorme. Fiz isso há mais de 30 anos e o livro que publico agora é o quarto, estou pagando o que prometi.

uc O Luta e auroras – os avessos de Gran-de sertão: veredas…roncari Isso. Em 1988, defendi o doutora-

Luiz Roncari é professor de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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DIEGO MOURA

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Literatura

mento e comecei a pensar na livre docência. O resultado dela foi o primeiro livro, O Brasil de Rosa: o amor e o poder, publicado em 2004. Junto ou paralelo a ele, escrevi o Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos, publicado pela Edusp, em 2002, na sua versão definitiva.

uc Esses quatro livros sobre Guimarães Rosa fecham um ciclo então? roncari Sim, eles completam o projeto de 1987. O primeiro livro foi O Brasil de Rosa, como disse acima, publicado em 2004; ele teve uma primeira reimpressão em 2007 e outra agora, em 2018. Nesse meio tempo, eu tinha escrito uma série de ensaios sobre Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e o próprio Guimarães Rosa – um longo ensaio sobre a novela Dão-Lalalão/Lão Dalalão, uma das de Corpo de baile. Então eu os reuni e pu-bliquei com o título de O cão do sertão, também pela Editora Unesp, em 2007. Eu continuei estudando Corpo de baile, achava que tinha que tirá-lo da frente primeiro para poder me concentrar no Grande sertão, e escrevi o livro Buriti do Brasil e da Grécia: patriarcalismo e dionisismo no sertão de Guimarães Rosa, sobre a novela Buriti, a última do livro, e o publiquei pela Editora 34. Já na Introdução ao Brasil de Rosa eu previa um segundo volume, que é este que conclui agora, o Lutas e auroras.

uc Então Lutas e auroras é uma espécie de continuação de O Brasil de Rosa?roncari Sim, mas ao mesmo tempo, é tam-bém um livro autônomo sobre o romance de Guimarães Rosa, todo ele concentrado numa leitura muito própria do Grande sertão: vere-das. Para os que já leram o romance, seria uma ótima oportunidade de repensá-lo, creio que seria como se olhássem uma outra face da Lua, a oculta.

uc E como ele se conecta ao primeiro livro?roncari É que o próprio Grande sertão pode ser dividido em duas partes. Uma primeira,

a inicial, é uma narrativa que reúne os epi-sódios que falam da formação do herói. Ela conta o encontro de Riobaldo com o Menino, Diadorim, e a travessia de ambos do Rio São Francisco. Esse episódio foi importante para ele como tomada de consciência do outro e de si, das suas diferenças e desiguldades. Ele se encontra com um menino que em tudo era diferente dele e, ao mesmo tempo, era tudo o que ele gostaria de ser, sem saber que era uma menina travestida de menino. O pai, Jo-ca Ramiro, criou Diadorim, possivelmente, fato só aventado, como alguém que pudesse vingá-lo um dia em caso de sua morte à trai-ção, que era uma das regras do sertão. Então, embora fosse uma menina, ele a criou como um menino valente. Outro episódio é quando

a mãe morre e ele vai para a fazenda do padri-nho, a São Gregório. É aí que ele aprende as primeiras letras, do amor e dos livros, assim como onde vê pela primeira vez Joca Ramiro e o Hermógenes, e ouve também a canção de Siruiz. Enfim, a primeira parte narra uma série de episódios que falam da formação de-le ainda menino, além das batalhas que lhe permitem saber muito de si e dos homens. O que ele aprende por etapas é a necessidade de superar a si mesmo, a sua origem humilde e a falta do pai, o que ensina o poder do mando e da autoridade. O que era (ou é?) norma no Brasil, alguns nascem apenas para mandar e outros só para obedecer. Para isso ele teria que deixar de ser o que era para ser igual aos seus outros, como Zé Bebelo e Diadorim, e negar a si mesmo. Até o tribunal do julgamento de Zé Bebelo ele está sempre procurando um modelo a quem imitar, ele que cresceu sem pai e, por-tanto, sem um modelo paterno. O que parece

UM DEBATE MUITO IMPORTANTE, NO TEMPO EM QUE ROSA ESCREVEU, ENTRE OS HOMENS INTELIGENTES DO PAíS, QUE NESSE TEMPO NãO PENSAVAM EM SE MUDAR PARA MIAMI OU PARIS, ERA SE O BRASIL IRIA DAR SERTãO OU CIVILIzAçãO

15outuBro 2018 | unespcIêncIa

Literatura

encontrar durante o julgamento na figura de Titão Passos, um chefe jagunço aliado de Joca Ramiro, que reunia em si a tradição do sertão com o moderno urbano, ele que já havia sido jurado na cidade da Januária.

uc O senhor faz a distinção entre uma primeira parte branca e outra negra do romance, assim como uma camada mais aparente e outra menos visível, subterrâ-nea, que chamou de “os avessos”. roncari Isso, a parte clara, branca, é a que fala do processo de formação e autoconsciên-cia do herói, que chega até o julgamento de Zé Bebelo, que é quando Joca Ramiro tenta plantar no sertão uma instituição que o negava e era própria da cidade. O sertão é o lugar de homens bravos, da lei do mais forte e astuto, em que se mata à traição e se busca a vingan-ça, enquanto que o julgamento, o tribunal, é uma instituição da cidade, urbana, onde pre-dominam os costumes civis, não agressivos. Lá os problemas são resolvidos não pelas vias de fato, mas sim pela solução civil, em que um juiz é capaz de avaliar uma falta e dar a sentença justa ao crime cometido, nem mais nem menos. Então ele marca o momento alto do livro, quando a busca da justiça no sertão supera a busca da vingança.

uc E a parte negra? roncari Bom, acontece que Joca Ramiro é morto à traição depois do julgamento pelos homens do Hermógenes. É aí que o romance deixa de ser o da busca da justiça, como tinha sido até a instituição do Tribunal, e passa a ser o da procura da vingança. Com isso o sertão volta a ser o que era antes do Tribunal. Então começa a parte negra, porque o que a domina são todas as batalhas atrás da vingança, uma sequência de lutas, mortes e perdas. O sertão volta a ser sertão, todos estão mais ou menos em guerra contra todos, o bando jagunço leal a Joca Ramiro sob o comando de Zé Bebelo contra o bando do Hermógenes e Ricardão, e todos lutando contra os soldados do governo e perseguidos ou aliados a eles. Aí o romance

desanda inteiro, na forma e no conteúdo, por-que substitui a ordem da simultaneidade da primeira parte, pela forma sequencial da épica na segunda, até chegar às lutas de mortes, pu-nição dos traidores, mas também da morte de Diadorim, o amor e demônio interno do herói. A narrativa alterna também, na sequência dos acontecimentos, as reflexões do herói, por isso ele é chamado de um “guerreiro penseroso”, entre uma luta e outra a narrativa é entreme-ada por reflexões elevadas sobre Deus, a vida, o sentido, o mal no mundo e entre os homens.

uc O senhor também faz uma distinção no título aos avessos e auroras. roncari Auroras porque, entre os episódios de lutas, mortes e perdas, há também momentos de iluminação e de transcendência. Já em re-lação aos avessos, como tudo, o romance tem uma parte mais superficial, mais visível e uma parte subterrânea, menos aparente, que inte-ressou também menos à crítica, talvez por ser mais prosaica. Então, em vez de eu falar sobre as partes mais chamativas, procurei as mais ocultas. É o mesmo processo de avaliação de uma roupa: para se comprá-la, não se deve olhar apenas as partes direitas, as frentes, mas também os seus avessos, é por ali que se pode ver a qualidade das costuras e cerzidos.

uc E como se chega a esses avessos? roncari É dando importância àquilo a que a crítica não deu muita atenção. Por exemplo, na Fazenda dos Tucanos, o foco do leitor vai mais para as batalhas, as lutas de mortes, co-mo a matança dos cavalos; mas não se deu tanta importância para o embate dramático entre o herói e Zé Bebelo. E eu me concen-trei nele, porque é nesse entrevero que o herói toma consciência de que ele terá um dia que ser o chefe, e para isso precisará se superar e aprender a mandar. É o que faz a narrativa avançar e se configurar, mais do que os epi-sódios emocionantes.

uc E como se dá essa tomada de cons-ciência?

Lutas e aurorasOs avessos do Grande sertão: veredasLuiz Roncari,Editora Unesp,170 páginas, R$54.

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DIEGO MOURA

unespcIêncIa | outuBro 2018

Literatura

roncari No embate entre um e outro, o herói percebe que depende do chefe, da astúcia de Zé Bebelo para fugirem ao cerco em que ca-íram na Fazenda dos Tucanos. Mas também de que o chefe depende dele, pela boa ponta-ria, pelo que era como jagunço e a sua força. Aí é quando o herói se impõe e faz o chefe sentir que a dependência era mútua, e chega à consciência de que terá que deixar de ser o segundo para ser um dia o primeiro.

uc Em que outros episódios se processa esse subterrâneo da narrativa? roncari Um outro episódio muito estudado do livro é o da busca do pacto com o demônio pelo herói, o que nós nunca ficamos sabendo se houve ou não. Acontece que esse episódio é emoldurado por dois encontros de Riobal-do com seu Abrão/Habão, um grande fazen-deiro. E foi nesses encontros que ele firmou uma aliança com ele, que representa o novo poder no sertão, o do grande proprietário só preocupado com o ganho econômico, espe-cializado nele, e por isso interessado no poder militar do outro para a sua garantia. Ele é um sujeito só voltado para a economia, a acumu-lação. No segundo encontro, depois do pacto que não sabemos se houve ou não, seu Habão presenteia o herói com o seu cavalo, a quem Riobaldo dá o nome de Siruiz. Porém isso o torna num seu devedor, que poderá um dia ser cobrado. Ou seja: Riobaldo já está praticamen-te chefe e vira devedor do poder econômico, ele percebe isso e fica desconfiado, acha que aquele sujeito esperto transformaria a todos em seus escravos, como assalariados. A crítica se deteve muito no estudo do pacto, porque ele chama para o místico, o mágico, o contato com o transcendente e é um tema tradicional da literatura, o pacto com o demônio. Porém, pouco parou para analisar os encontros com um homem só comercial, preocupado com coisas comezinhas, como o dinheiro, o dia a dia prosaico dos homens, mas a base concreta de sua vida. Isso que eu chamo de avessos.

uc Hoje, à luz dos acontecimentos no

país, que lugar ocupa a obra de João Gui-marães Rosa?roncari Uma posição alta e de ponta. A obra dele está no mesmo patamar da dos grandes autores nacionais, como a de Gonçalves Dias, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Carlos Drummond, Clarice Lispector e outras. Pelas suas grandezas, elas têm muito ainda a serem estudadas e exploradas, apesar de já terem uma bibliografia crítica imensa. No caso de Guimarães, como outros grandes autores, ele não é só um importante escritor de literatura, mas também um grande pensador do Brasil. E esse aspecto tem que ser bem levado em conta no seu estudo.

uc E o Grande sertão: veredas é um li-vro difícil, com muita coisa a ser deci-frada, não?roncari Sim. Eu o li ainda novo e entendi muito pouco, porém esse pouco foi o bastante para me despertar a curiosidade e inquietar. Só depois de ter esmiuçado e estudado bem Sagarana e Corpo de baile, o que me revelou muitos dos seus processos criativos, nos vários aspectos, linguísticos, sociológicos, filosóficos, é que passei a entendê-lo melhor. E procurei fazer também uma leitura do que Guimarães Rosa poderia ter lido no seu tempo sobre o Bra-sil e a literatura, porque ele tinha pretensões muito elevadas não só da literatura brasileira, mas da clássica. Ele lia muito os gregos, os la-tinos e os modernos, geralmente no original, nas línguas respectivas, que ele também sabia muitas. Além disso, ele era diplomata, lia e sabia muito sobre o Brasil, e um debate muito importante, no tempo em que escreveu, en-tre os homens inteligentes do país, que nesse tempo não pensavam ainda em se mudar para Miami ou Paris, era se o Brasil iria dar sertão ou civilização. Sertão é o que nós vivemos um pouco hoje: as instituições frágeis, com baixa credibilidade, instáveis e suspeitas. O Brasil é ciclotímico, oscila muito entre o alto e o baixo, parece que estamos agora na baixa. E nós não sabemos até onde aqui tudo poderá virar sertão.

17outuBro 2018 | unespcIêncIa

Física

M esmo com todo o conhecimento que já acumulamos, o Universo ainda abri-

ga muitos mistérios. Na maioria das vezes, olhamos para o céu em busca de explicações ou pistas que nos ajudem a compreender um pouco mais sobre o funcionamento do que está à nossa volta.

Ironicamente, um dos ambientes ideais pa-ra encontrar algumas dessas respostas segue o caminho oposto: ao invés de buscar explicações no espaço, os pesquisadores tem encontrado em laboratórios no fundo da Terra uma ótima oportunidade de explorar o desconhecido. As-sim foram idealizados pelo mundo laboratórios subterrâneos, abrigados em meio às rochas, a cerca de mais de mil metros abaixo da superfície.

o andes underground laBoratoryApesar de ser um campo em franca expan-são com instalações no Japão, Itália, Canadá e EUA, o hemisfério Sul ainda não conta com nenhum laboratório subterrâneo. Essa perspec-tiva, entretanto, pode mudar com a construção do túnel de Água Negra, que planeja conectar

WORkSHOP REALIzADO NO INSTITUTO DE FíSICA TEóRICA DA UNESP DISCUTE FORMAçãO DE CONSóRCIO QUE VAI OPERAR LABORATóRIO A QUASE DOIS MIL METROS ABAIxO DA CORDILHEIRA DOS ANDES

um laboratório subterrâneo para solucionar mistérios da matéria escura

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MALENA STARIOLO

unespcIêncIa | outuBro 2018

Física

a Argentina e o Chile por uma passagem que atravessará o interior dos Andes. A intenção é colaborar para o entendimento científico mun-dial sobre questões referentes à matéria escura e os neutrinos. [veja o box]

A um custo estimado de 40 milhões de dólares, o túnel de Água Negra permitirá uma profunda integração internacional, conectando a Argen-tina, o Brasil e o Chile. Além de uma conexão econômica, essa empreitada poderá, também, promover uma conexão científica desses países com outros Estados Latinos, como o México, através da criação do CLES (Consórcio Latino-Americano de Experimentos Subterrâneos). O inicio da construção está prevista para 2019.

O ponto mais profundo da construção estará à 1750m abaixo da terra e é ali que cientistas, especialmente latino-americanos, estão mirando para a construção do primeiro laboratório sub-terrâneo do hemisfério sul. Essa é uma grande oportunidade porque, com a construção do tú-nel, a possibilidade de montar um laboratório subterrâneo se mostra real. Do contrário, as chances de que esse empreendimento ocorra de alguma outra forma são praticamente nu-las, dadas as dificuldades de construção de um laboratório mergulhado na terra.

“O laboratório vai estar na América Latina então, é claro, nós queremos a conexão entre os países latino-americanos, mas não somente eles. Alemanha, França, Itália, Espanha, EUA, Inglaterra. Todos esses países estão interessados em trabalhar conosco e nós queremos que isso seja internacional. A parte física do laboratório, obviamente, vai pertencer à Argentina e ao Chi-le, porque ele vai estar localizado nesses dois países, mas em relação à pesquisa, nós quere-mos que ele seja parte de um consórcio inter-nacional”, comentou o físico Xavier Bertou em uma de suas palestras de divulgação do projeto.

Xavier Bertou, é um pesquisador argentino que trabalha no Centro Atômico de Bariloche (CNEA/CONICET), seu trabalho se volta pa-ra a pesquisa de raios cósmicos e a busca por matéria escura em laboratórios subterrâneos. A empreitada teve início em 2010, com o co-meço dos planos da construção do túnel de

Água Negra, e segue até hoje. Bertou esteve no Instituto Sul-Americano para Pesquisa Funda-mental (ICTP-SAIFR) localizado no Instituto de Física Teórica da Unesp para workshop de três dias que reuniu diversos pesquisadores latino-americanos para discutir a estrutura do consórcio que vai operar o ANDES Laboratory.

dIvulgando a IdéIaUma ação chave no processo de transformar o ANDES em realidade, tem sido a realiza-ção de workshops ao longo dos anos, cada um focando em uma necessidade específica do projeto naquele momento. Até agora foram realizados seis eventos: em 2011, na Argen-tina e no Brasil; em 2012 no Chile; em 2014 no México; em 2017 na Argentina.

Alguns pesquisadores acompanham esse empreendimento desde sua origem, outros che-garam no meio do caminho, enquanto outros começaram a se envolver só agora, mas todos compartilham o desejo de fazer com que o

ANDES deixe de ser uma utopia e passe a fazer parte da realidade de cada um.

O professor do instituto, e pesquisador per-mante do ICTP-SAIFR, Eduardo Pontón, foi contatado pelo físico argentino para fazer parte da organização do workshop que seria sediado em São Paulo. Eduardo é um físico teórico, apesar de parte de seu trabalho estar um vol-tado para a matéria escura, a construção do laboratório não necessariamente traria uma mudança significativa para sua forma de tra-balhar, uma vez que a atuação no ANDES é voltada principalmente para a área experi-mental da física. Mesmo assim, ele apoiou o workshop, sendo um dos organizadores. “Esta é uma grande oportunidade de produzir ciência de ótima qualidade aqui na América Latina

A UM CUSTO ESTIMADO DE 40 MILHõES DE DóLARES, O TúNEL DE áGUA NEGRA PERMITIRá UMA PROFUNDA INTEGRAçãO INTERNACIONAL, CONECTANDO A ARGENTINA, O BRASIL E O CHILE.

Xavier Bertou (na foto ao centro, com camisa vermelha), juntamente com o professor Eduardo Pontón (quarta pessoa da esq. para dir.) e pesquisadores latino-americanos no workshop realizado no Instituto de Física Teórica da Unesp.

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MALENA STARIOLO

outuBro 2018 | unespcIêncIa

Física

e, com o tempo, construir uma tradição de pesquisa de ponta”, comenta Pontón.

Ao longo dos três dias, pesquisadores tra-balharam na elaboração de um White Paper, um documento para aprofundar as questões da construção do ANDES, falando sobre sua importância, conceitos, problemas e, princi-palmente, soluções, de um ponto de vista po-lítico. O documento continua sendo elaborado e o objetivo é entregar a versão final para os governos do Chile e da Argentina, esperando auxiliar no avanço dos processos necessários.

Xavier Bertou também destacou que outro resultado do workshop foi a possibilidade de entender melhor o tipo de consórcio interna-cional desejado para o ANDES, baseado na organização SESAME (um laboratório inter-nacional de radiação síncroton, localizado na Jordânia), o que auxilia para ter uma perspec-tiva visível de qual sera a evolução do ANDES nos próximos dez anos.

Para o professor Pontón, a construção do ANDES pode ter implicações muito relevantes na forma como a ciência é feita na América Latina e inclusive em como é realizada a for-mação das novas gerações de pesquisadores.

“Ter um empreendimento desse tipo, que envolveria experimentos propostos tanto de grupos locais, como de grupos internacionais, seria uma forma muito relevante de treinar fí-sicos na América Latina. Sempre tem as per-guntas mais profundas, voltadas para neutrinos e matéria escura, mas existem também outras questões onde podem se treinar estudantes e desenvolver novas tecnologias que podem ter algum impacto”.

De um ponto de vista internacional, uma vez que o ANDES faria parte de um grupo de outros laboratórios subterrâneos e, por ser o primeiro no hemisfério Sul, ele serviria co-mo confirmação dos resultados obtidos nos outros locais, diminuindo a chance de um falso positivo. “Em geral, você sempre quer verificar o resultado nas condições mais di-ferentes possíveis, principalmente se for algo tão importante como a descoberta da matéria escura”, completa o pesquisador.

o lado escuro do unIversoTudo o que conhecemos, átomos, estrelas, pedras e nós mesmos, é composto por matéria conhecida. Entretanto, um dos grandes mistérios da cosmologia é que existem pistas de que o universo não é composto apenas por essa matéria, pelo contrário, ela seria equivalente a menos de 5% do nosso universo. Então o que seriam os outros 95%? Cerca de 70% seria energia escura, enquanto os 20% restantes seriam de matéria escura. A dificuldade de trabalhar com esses fenômenos é que ambos são invisíveis e sua detecção é extremamente complicada. O que levanta outra questão: o que é matéria escura? Até hoje não se sabe exatamente do que a matéria escura é composta, acredita-se que é uma forma completamente nova de matéria, diferente de tudo que conhecemos atualmente.

Assim como a matéria escura, os neutrinos são outra incógnita entre pesquisadores. Com algumas características curiosas, eles não possuem carga elétrica e têm massa insignificante, além disso, a quantidade de neutrinos existentes é bem maior do que a quantidade de átomos no universo, o que não torna seu estudo uma tarefa mais fácil. Sua interação com a matéria é extremamente fraca, dificultando sua detecção e análise e exigindo experimentos extremamente sensíveis.

Energia escura

70%

Matéria conhecida

5%

Matéria escura

20%

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Física

por que tão BaIxo?A decisão de mergulhar na crosta terrestre surgiu como solução para fugir da constante chuva de raios cósmicos que atingem a Terra diariamente.

Os raios cósmicos são núcleos atômicos compostos principalmente por prótons e nêu-trons, mas também carregam consigo muitas outras partículas, como elétrons, pósitrons, antiprótons, fótons gama e neutrinos. É nes-sa última partícula que as pesquisas nos la-boratórios subterrâneos estão interessadas.

Podemos chamar os raios cósmicos de via-jantes espaciais, eles atravessam o universo em uma velocidade enorme, próxima da ve-locidade da luz, e atingem a Terra com uma frequência assustadora: um raio cósmico de menor energia atinge nossa superfície a cada segundo. Ao adentrar nossa atmosfera esses viajantes se chocam com núcleos de nitrogê-nio e oxigênio presentes no ar e geram novas partículas que acabam por atingir a Terra. Esse fenômeno é conhecido como “chuveiro atmosférico”.

Ao mesmo tempo que essa chuva de par-tículas é muito interessante, ela também se torna um empecilho quando queremos nos concentrar em algum objeto específico, nesse caso, os neutrinos. A solução foi procurar um guarda-chuva natural para conseguir proteger os experimentos de interferências indeseja-das e, nada melhor do que a crosta terrestre para exercer essa função.

Assim, os laboratórios subterrâneos con-tam com metros e metros de rochas maciças acima deles que servem como peneiras de objetos indesejados. Apenas algumas par-tículas têm energia suficiente para atingir esses experimentos escondidos, o que per-mite aos cientistas estudar, especificamente, aquelas de interação fraca, que conseguem atravessar essa distância sem fazer nenhuma interação (como os Neutrinos ou a Matéria Escura). Atualmente existem 10 laboratórios subterrâneos em funcionamento espalhados nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e no Canadá.

Localização, das futuras instalações, do laboratório subterrâneo. A construção do túnel de Água Negra, planeja conectar a Argentina e o Chile por uma passagem que atravessará o interior dos Andes.

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MALENA STARIOLO

outuBro 2018 | unespcIêncIa

Ciências Sociais

um ângulo ainda não muito explorado.A introdução de novos meios de comunica-

ção apresenta desafios e possibilidades, parti-cularmente duras para as estruturas políticas de uma comunidade. A imprensa questiona o poder estatal, ao mesmo tempo que expande seu alcance dentro do território nacional. A invenção do telégrafo redefine a diplomacia. O toca-discos portátil cria ambientes privados para os jovens do pós-guerra, criando uma cul-tura autônoma que desemboca nos protestos dos anos 1960. O telefone permite que uma megalópole posse funcionar de modo orgânico. Sabemos tudo isso, mas como exatamente as redes sociais impactaram nossa sociabilidade, nossa forma de nos relacionarmos uns com os outros cotidianamente? Em outras palavras, por que estamos nos batendo no WhatsApp,

N esse momento de pânico entre os de-mocratas brasileiros, onde as redes

sociais parecem dissolver como um ácido as estruturas mais estáveis da política nacional, nós cientistas sociais devemos buscar no nos-so repertório conceitual chaves que possam nos ajudar a compreender o momento atual. Nesse breve artigo, vou resgatar a idéia de “círculo social”, de Georg Simmel, e de “au-diência”, de Erving Goffman, para iluminar o tipo de relação social que travamos na Internet todos os dias, e que pode estar relacionada a essa catástrofe nacional e também global. Meu objetivo é olhar esse fenômeno comple-xo, de causas múltiplas – a subida ao poder, por meio de eleições, de candidatos contrários não apenas às regras democráticas mas aos valores mais profundos de suas nações – por

IMPACTOS DA VIVêNCIA DAS REDES SOCIAIS EM NOSSAS ESCOLHAS ELEITORAIS

embates sem contexto e democracias sem liderança

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22 unespcIêncIa | outuBro 2018

Ciências Sociais

no Facebook e no Twitter? E quais as con-sequências dessa nova sociabilidade para a política e a vida social?

Simmel definiu a sociedade moderna como aquela onde somos membros de vários círcu-los, alguns por iniciativa nossa. Na sociedade tradicional, essencialmente somos membros de um clã, e as poucas diferenciações sociais dizem respeito a estruturas hierárquicas pouco flexíveis ou a grupos etários e de gênero, mas rígidos ainda. Com a urbanização e a divisão do trabalho abrem-se espaços para associações entre as pessoas as mais variadas. Algumas ainda são relativamente rígidas, como a etnia e o gênero, é verdade. Mas o anonimato e a impessoalidade da cidade moderna permi-tem que ocupemos papéis muito distintos e às vezes até contraditórios na vida cotidiana. Vêm-me à cabeça o filme Belle de jour, de Luis Buñuel, ou a novela O grito, de Jorge Andrade, onde uma mulher e um homem, respectivamente, vivem vidas paralelas em meio ao turbilhão urbano.

Nós, habitantes da cidade, somos membros de uma pluralidade enorme de círculos, ain-da que não tão picantes como Deneuve e de Falco. Somos clientes de um loja, membros da associação de pais e mestres, funcionários de uma empresa, sócios de um clube, frequenta-dores de um parque público, público de um programa de TV, membros de uma família, e assim por diante. Alguns desses círculos são bastante rígidos, em outros entramos e saímos quando queremos. Para Simmel, o conjunto dos círculos a que pertencemos é que nos confere a individualidade, pois nin-guém pertence aos exatos mesmos círculos que outro, numa sociedade moderna. Cada um de vocês, leitores, pertence a um conjunto de círculos distintos, ainda que muitos desses círculos sejam comuns a vocês, pelo fato de serem falantes de português ou de estarem lendo este texto. Isso confere não só indivi-dualidade a vocês, mas também garante a privacidade, pois os membros de cada círculo em que vocês estejam no momento não têm acesso a sua vida no interior dos demais – o

seu mundo pessoal.Reiterando: a vida moderna e essa capa-

cidade de proteger nossa vida pessoal estão indissoluvelmente ligadas. As nossas liberda-des conquistadas, especialmente no caso das mulheres, estão ligadas ao fato de que somos capazes de sair pelas ruas sem dar satisfações, nos relacionando com uma pluralidade de pessoas muito além do nosso círculo familiar restrito. A relação entre essas liberdades e a expansão dos meios de comunicação é direta: as mulheres que leem expandem horizontes culturais, os homens que leem podem se co-nectar a movimentos políticos. Os meios de comunicação, novos e velhos, expandem bru-talmente o número de círculos sociais a que podemos pertencer, e daí nossa individuali-dade e também privacidade.

Goffman parte dessas idéias para exami-nar como, na prática, as pessoas constroem tais círculos, como definem pertencimentos

e como ativamente preservam sua privacida-de na vida social. Sua obra mais conhecida tem o eloquente título “A representação do eu na vida cotidiana”. Para Goffman, estamos o tempo todo atentos às situações sociais nos quais nos encontramos, cautelosamente es-colhendo modos de vestir, de falar e de agir para que caibamos nessa situação, colocando de lado comportamentos que seriam aceitá-veis em outros ambientes. Ou seja, Goffman analisa o esforço do indivíduo em pertencer e não pertencer, sendo sua obra uma espécie de manual prático do indivíduo simmeliano. Usando metáforas teatrais, ele explica a con-fusão que dá quando duas audiências – dois círculos sociais a que pertencemos – subita-mente se encontram, nos obrigando a oferecer uma performance comum. Numa sociedade

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HELOISA PAIT

outruBro 2018 | unespcIêncIa

O MELHOR ALGORITMO É, AINDA, A ESCUTA, O OLHO NO OLHO, O CONFRONTO VERDADEIRO, O ENTENDIMENTO E O DIáLOGO. É A PARTIR DAí QUE SURGIRãO LIDERANçAS QUE PODERãO REERGUER NOSSAS DEMOCRACIAS TORDOADAS

Ciências Sociais

moderna, esse desafio é raro: apenas quan-do encontramos, por exemplo, um grupo de amigos na companhia da família, e ficamos sem saber que linguajar usar. No mais, nossas audiências são estanques, limitadas sobretudo espacialmente.

Se os meios de comunicação modernos abriram possibilidades para a emergência da individualidade, entendida como a singula-ridade pessoal dentro de uma sociedade de massa e anônima, os meios de comunicação digitais minam essa compartimentalização dos círculos sociais da qual dependemos enquan-to indivíduos. Nossos familiares, nas redes sociais, sabem de coisas de nossa vida social que antes apenas nossos amigos sabiam. Nós sabemos de posições políticas desses mesmos familiares, com quem anteriormente apenas trocávamos receitas e histórias de família. Não há mais assuntos definidos para cada grupo social ao qual pertencemos. Nossos alunos

acompanham nossos maus humores e viagens, quando descuidadamente aceitamos um deles no mar das redes sociais. Prestadores de ser-viço, que antes nos viam apenas a cada um ou dois meses, de repente acompanham nossas publicações como se fôssemos celebridades. Em cada encontro físico com um conhecido, ficamos em dúvida: o que essa pessoa sabe de mim, sem eu nunca lhe ter contado?

Não temos mais nossos cantinhos secretos, nossos hobbies que ninguém conhece, nossas arenas estritamente pessoais. Perdemos, por livre e espontânea vontade, aqueles momen-tos do dia em que podíamos nos refazer e nos reafirmar como indivíduos. Perdemos nossa “felicidade clandestina”, como diz Clarice Lis-pector, nosso puro deleite em estarmos a sós, com um livro desejado e desejado. Perdemos a individualidade? Queria, se pudesse, perguntar para Simmel: “Que acontece se fizermos parte de vários grupos, como na modernidade, mas todos totais, como na sociedade tradicional?”

E mais ainda: não sabemos mais como agir em cada grupo. Usamos termos acadêmicos para falar com os familiares, e tratamos amigos com a rispidez com que deveríamos devotar apenas a estranhos. Uma certa quebra de pro-tocolos nos pareceu, no começo da década, positiva, pois os homens públicos estavam lá acessíveis, pela primeira vez, às nossas de-mandas. Mas o resultado geral é que foram embora as dicas que o lugar do encontro e a aparência de nossos interlocutores davam para que nós construíssemos nossas falas, criando toda a sorte de mal entendidos. Como nos re-lacionarmos sem as regras da sociabilidade? Como falar com professores graduados do modo como nos dirigimos ao motorista que nos cortou no trânsito? A Goffman eu gosta-ria de perguntar: “Como interagir quando não temos a menor idéia do setting onde nossa atuação se dá?”

Finalmente, sem ter nosso backstage, com o setting indeterminado, ainda podemos su-mir simplesmente de qualquer situação social. Os conflitos começados pela irritação natu-ral de estarmos sem o respiro da privacidade

24 unespcIêncIa | outuBro 2018

Ciências Sociais

ou pela insegurança quanto aos contextos da interação simplesmente são interrompidos sem mais nem porquê. Numa discussão face a face, há todo um ritual, uma narrativa: os argumentos, o acirramento da discussão, as ofensas, as ponderações, as desculpas, o fim da briga. Ou, na pior das hipóteses, o rom-pimento. Nas redes sociais, não chegamos a brigar: abandonamos aquela discussão antes de um verdadeiro enfrentamento e de bus-car compromissos. Pulamos de um conflito inconsequente a outro, sem de fato buscar resolver nossas diferenças, como o faríamos numa situação com objetivos determinados.

E como isso tudo se manifesta politicamen-te? Vejam as falas dos candidatos que conhe-cemos mais, desta leva antidemocrática, como o atual ocupante da Casa Branca e o recém eleito presidente do Brasil. Elas não se asse-melham ao discurso de um apresentador de TV, buscando falar para multidões, com um discurso compreensível a todos, que abarque o público. São muito distintos dos “painhos” das novelas brasileiras, na casa de quem ca-bia todo mundo, ou das figuras carismáti-cas dos seriados americanos dos anos 1960 e 1970. Ao contrário, essas falas se parecem com nossos comentários aleatórios nas redes sociais, quando respondemos num post com uma ironia dirigida a um outro post. Notem como suas falas entrecortadas, desconexas, inapropriadas e fora de contexto parecem-se com nossos embates fúteis nas redes sociais, jogando uma raiva de uma conversa interrom-pida em outra que mal começou.

Esses novos desafios de convivência pode-riam ser tratados por arquitetos digitais, por educadores e pela prática cívica, criando toda uma nova etiqueta comunicativa. Mas como agir conjuntamente em torno desse objetivo se estamos virando do avesso o próprio espaço de discussão, tratando de questões públicas, que exigem razão, no espaço vulnerável da intimidade? Hannah Arendt apresentou es-se argumento meio século atrás e hoje pare-ce dolorosamente apropriado. E Jack Snyder apontou, mais recentemente, para os riscos

da informação monopolista em promover o totalitarismo, examinando o papel dos jornais afiliados a publicações nazistas no interior da Alemanha e do rádio incitador no genocí-dio de Ruanda. Para ambos, de modo muito simplificado, é preciso que as idéias circulem numa esfera pública – ou num mercado de idéias – onde elas possam ser contrastadas umas com as outras diante de todos. A defesa da liberdade de expressão numa arena pública deve ser ampla, pois aí as idéias se contraba-lançam, isolando os extremos. Mas a ruptura dos espaços privados enquanto tais – do ba-ckstage de Goffman e da esfera privada para Arendt – nos torna vulneráveis na intimidade e impotentes na esfera pública.

Claro que as situações políticas, sociais, culturais têm enorme impacto nas escolhas que fizemos aqui no Brasil e lá nos Estados Unidos. Além disso, as questões comunica-tivas em si têm também sua importância, como as fake news e as bolhas de opinião. Nesse texto, entretanto, tratei de um outro fenômeno, que é a modalidade comunicati-va que a sociabilidade digital nos propõe, e o modo como ela se expressa na escolha de nossos líderes. Espelhamo-nos em alguém que late, pois nós também estamos latindo uns para os outros, sem nunca chegar a um conflito, pois conflitos podem ter solução, mas meros latidos, não. Reconhecemo-nos nesses indivíduos no mais desqualificados e, de modo surpreendente, estamos dando a eles carta branca para determinar nossos destinos. Que fazer, então? De minha parte, decidi oferecer um curso este ano sobre a con-versa, que pode ser acessado em minha página <www.marilia.unesp.br/helopait>. Precisamos retomar a conversa, mesmo no interior das re-des sociais. Enquanto estivermos nos sentindo isolados, vamos continuar delegando a falsos bravos nossa vontade de brigar. O melhor al-goritmo até hoje é, ainda, a escuta, o olho no olho, o confronto verdadeiro, o entendimento e o diálogo. É a partir daí que surgirão lide-ranças que poderão resistir aos novos tempos e reerguer nossas democracias atordoadas.

Heloisa Pait é professora de Sociologia na faculdade de filosofia e Ciências (ffC), Câmpus da unesp de Marília.

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HELOISA PAIT

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Economia

ção (tecnológica, mercadológica, administrati-va, financeira, ambiental, social, entre outras) são incorporadas e ampliam a importância e o alcance da inovação em todos os estratos sociais e segmentos empresariais, tornando-os mais competitivos e dinâmicos.

A percepção representada em expressões conhecidas como as “mudanças são mais fre-quentes”, “o passado não é como era antes” ou “o futuro é cada vez mais incerto” pode ser ve-rificada, por exemplo, na quantidade histórica de patentes depositadas no mundo.

O Gráfico 1 traz o quantitativo acumulado de patentes, desde 1884, considerando os dez principais escritórios responsáveis pelo regis-tro no mundo.

Sabe-se que o processo de inovação não está associado, tão somente, à solicitação e/ou de-pósito de patentes, porém em razão da melhor

A s transformações econômicas e sociais contemporâneas foram condicionadas,

entre outros motivos, pelo desenvolvimento institucional e tecnológico dos países, com reflexos nas diferentes formas de inovação. As alterações provocadas pelas inovações na sociedade têm como característica atual um ritmo mais acelerado do que no passado, por isso a “mudança é cada vez mais constante”.

No meio empresarial, o acompanhamen-to e a adequação às transformações é uma prerrogativa à sustentabilidade das empresas e das cadeias produtivas, tendo em vista que as mudanças científicas e tecnológicas alte-ram as estruturas de oferta com novos e/ou melhores produtos e processos e as culturais e sociais redimensionam o perfil e as carac-terísticas do mercado consumidor.

Assim, novas qualificações ao termo inova-

INOVAR NãO É UMA AçãO TRIVIAL E NãO OCORRE APENAS PELO DISCURSO

a inovação empresarial no Brasil: a expectativa e a realidade

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qualidade dos registros históricos, torna-se um indicador ilustrativo e proxy do aumento das inovações na sociedade.

Observa-se que o crescimento marginal do acumulado de patentes, a partir da década de 1980, é superior ao dos 100 anos anteriores. Nos últimos 10 anos da série a taxa de cres-cimento médio dos depósitos de patentes foi próxima a 4,46% a.a. (WIPO, 2014). Nessa taxa, o estoque de patentes mundiais dobra a cada 17 anos; por outro modo, pode-se inferir que em menos de 20 anos praticamente tudo o que se conhece em produtos é substituído ou modificado!

Na dimensão econômica, Schumpeter (1927) foi o autor que melhor compreendeu, inicial-mente, a importância da inovação no sistema capitalista e trouxe para o interior das empre-sas o ambiente mais propício para o seu fo-

mento, especialmente pelo importante papel do empreendedor, contrapondo-se ao pensa-mento ortodoxo.

Países e empresas tornaram o crescimento científico, tecnológico e inovador um vetor de suas estratégias com vistas ao seu desenvolvi-mento. No entanto, fazer ciência, tecnologia e inovação não são ações “simples”, tampouco céleres ou previsíveis; e ainda, quase sempre, exige dispêndios elevados de recursos financeiros.

A literatura especializada reconhece que ciência, tecnologia e inovação são elos da mes-ma corrente, cujo processo é recursivo e di-nâmico entre eles, de modo que dificilmente seria suportado pela atuação isolada dos agen-tes econômicos (GRUPP, 1998). Portanto, as empresas que reconhecem a importância da inovação para os seus negócios devem ter uma estrutura interna (formal ou informal) alinha-

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Fonte: Elaboração própria a partir de dados do compilados da PINTEC/IBGE.

Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados do WIPO (2014).

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gráfIco 1

Evolução estratificada dos investimentos na capacidade de inovar da indústria brasileira entre 1998 e 2014.

Evolução do acumulado de patentes nos principais países do mundo entre 1884-2010.Escritórios de registro: EUA, China, Coreia do Sul, Japão, União Europeia, Inglaterra, Austrália, Singapura, México e Rússia.

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da à sua estratégia e com processos gerenciais orientados a resultados.

De outro modo, as empresas precisam em-preender dentro da sua estrutura uma capa-cidade inovadora, por meio de um sistema de gestão de recursos internos e externos que se estendam desde a concepção técnico-científica de novos produtos ou processos à introdução destes no mercado ou à gestão de mudanças no seu interior, enquanto inovações de pro-cessos ou inovações organizacionais.

Gerenciar a capacidade de inovar de uma empresa é um desafio, pois os recursos de inovação são conhecidos na literatura pela sua complexidade e característica evolucionária, isto é, o processo que envolve pesquisa, de-senvolvimento e inovação percorre caminhos que combinam seleção, acumulação de expe-riência e aperfeiçoamento de conhecimento.

Nesse sentido, o tempo também é uma variável importante para que a gestão da ca-pacidade de inovar expresse ou, ao menos, comece a demonstrar o seu potencial, com o desenvolvimento de novos produtos e processos,

e para que estes contribuam para a competi-tividade das empresas. Portanto, o tempo e a gestão são duas das principais variáveis para potencializar os resultados dos investimentos em inovação.

O caso da indústria brasileira ilustra essa realidade, pois, apesar de os investimentos em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P&D,I) crescerem mais de 130% neste século (2000-2014), a competitividade da indústria nacional, sob diferentes rankings, mantém-se estagnada e distante do potencial econômico do país. O Gráfico 2 apresenta a evolução estratificada dos principais investimentos em inovação na indústria brasileira.

Nota-se no Gráfico 2 que há uma tendência de crescimento dos investimentos em inovação dos setores industriais brasileiros, bem como uma alteração no perfil desses investimentos, pois no início da série praticamente 50% dos desembolsos em inovação, em verdade, re-presentavam gastos com a aquisição de novas máquinas e equipamentos, sendo que esse tipo de investimento está mais associado à moder-

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Economia

nização ou à atualização dos recursos internos, ainda que possam representar, também, ativos fixos destinados às inovações. Com o curso do tempo, os gastos mais relacionados à inova-ção (P&D interno, P&D externo e aquisição de conhecimentos externos) assumem maior preponderância.

Ressalte-se que os declínios observados nos triênios de 2006/2008 e 2012/2014 tendem a refletir os efeitos das crises econômicas exter-nas e internas do país que reduziram linhas de financiamento e comprimiram a capaci-dade de geração de caixa das empresas e seu potencial de investimento.

Tem-se a expectativa de aumento da com-

petitividade da indústria nacional no médio e longo prazo com o crescimento dos investimentos em inovação e uma maior representatividade dos dispêndios em P&D nos gastos dedicados à capacidade de inovar. Todavia, a realização de investimentos em P&D pressupõe a expan-são em quantidade e qualidade de recursos humanos capazes de (intra)empreender novos produtos e processos. O Gráfico 3 apresenta a participação de pós-graduados (mestres e doutores) dedicados ao P&D nas empresas.

Verifica-se que a participação de profissio-nais com formação em pesquisa atuando em atividades de P&D nas empresas industriais brasileiras é pouco expressiva. Segundo a úl-tima Pesquisa de Inovação Tecnológica para o Brasil (Pintec) realizada pelo IBGE entre 2012/2014, para cada 1.000 trabalhadores na indústria brasileira, pouco mais de 1 profis-sional possui pós-graduação com atuação em P&D. Esses resultados concordam com outros indicativos que demonstram a baixa inserção dos egressos da pós-graduação brasileira no mercado de trabalho não acadêmico, como

É PRECISO COMPREENDER A IMPORTâNCIA DOS INVESTIMENTOS EM INOVAçãO ASSOCIADA à ESTRUTURA DAS EMPRESAS CAPAz DE INTEGRAR DIFERENTES FONTES E INOVAçãO E CAPITAL HUMANO ATRAVÉS DA GESTãO DA INOVAçãO

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Fonte: Elaboração própria a partir de dados do compilados da PINTEC/IBGE.

o levantamento demográfico realizado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inova-ção, em que menos de 1% dos formados na pós-graduação do Brasil atuam com vínculo empregatício em empresas no país.

A fraca inserção no mercado empresarial de profissionais com formação em pesquisa tem sido alvo de discussão acadêmica, empresarial e de políticas públicas sob diferentes perspec-tivas. De modo restrito às empresas, observa-se que a inovação ainda não está inserida nas estratégias e na própria estrutura produtiva do setor industrial brasileiro, haja vista que, na última pesquisa da Pintec/IBGE, entre as 128.699 empresas pesquisadas, apenas 7.447 reportaram investimentos realizados em P&D interno, ou seja, menos 6% da indústria bra-sileira possui atividade formal de pesquisa e desenvolvimento.

Esse contexto retrata a necessidade de com-preender a importância dos investimentos em inovação associada a uma estrutura interna das empresas capaz de integrar as diferentes

fontes de inovação e o capital humano através de um sistema de gestão da inovação.

Os gastos com recursos dedicados à ino-vação são expressivos para aquelas empresas que investem, por isso deve-se ter um sistema de gestão da inovação integrado ao modelo de negócio da empresa, orientado ao uso eficiente dos recursos e resultados, tendo como premis-sa o processo acumulativo da capacidade de inovar das empresas.

Não há dúvidas quanto à importância da inovação para o desenvolvimento econômico de países e regiões e para a competitividade empresarial; porém, resultados de inovação não são alcançados simplesmente com dispêndio de recursos, ações isoladas e não continuadas e com a ausência de um modelo de longo prazo.

Por isso, inovar não é uma ação trivial e não ocorre pelo discurso; deve-se ter orçamento estável para inovação como forma de garan-tir os investimentos necessários à evolução da capacidade de inovar estruturada sob um sistema de gestão da inovação que congregue de forma sinérgica o capital humano.

David ferreira Lopes Santos é professor assistente doutor da faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (fCAV), Câmpus da unesp de Jaboticabal.

gráfIco 3

Participação de profissionais com título de mestrado ou doutorado dedicados a P&D nas empresas brasileiras em relação ao total de funcionários.

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DAVID FERREIRA LOPES SANTOS

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Ciências Biológicas

A tualmente, vivemos um cenário de-veras preocupante. Dados do World

Resources Institute, estimam que no ano de 2050 o planeta abrigará 9,6 bilhões de pessoas, com projeções de 10 bilhões de pes-soas no ano de 2100. Dessa forma, precisa-mos urgentemente preencher uma lacuna de aproximadamente 70% entre a quantidade de comida disponível atualmente e o que será requerido em 2050 para alimentar toda a população. Com esse crescimento popula-cional, que se dará principalmente em países em desenvolvimento, ocorrerá um aumento do consumo e da demanda por água potável, fontes de energia sustentáveis e alimentos.

Todo essa problemática se torna ainda mais preocupante quando levamos em conside-ração o atual cenário de mudanças climáti-cas. Estudos independentes, realizados por

ESTUDOS SOBRE RESILIêNCIA DAS PLANTAS ALIMENTíCIAS NãO CONVENCIONAIS (PANCS) PODE NOS DAR PISTAS DE COMO ATENDER A DEMANDA POR ALIMENTOS EM UM CENáRIO DE MUDANçAS CLIMáTICAS

como alimentar 9,6 bilhões de pessoas em 2050?

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Ciências Biológicas

diversas instituições de pesquisa do mundo, mostram que a temperatura global tem au-mentado desde a revolução industrial. To-mando a África do Sul como exemplo, um estudo desenvolvido pelo German Federal Ministry for the Environment, Nature Con-servation and Nuclear Safety, estima um aquecimento de 5 a 8oC até 2050 no inte-rior do País. Com esse cenário, os oceanos se tornam mais quentes, o que acarretará em uma maior frequência de tempestades e alagamentos, bem como períodos de seca mais longos e intensos. Áreas hoje semiá-ridas sofrerão processos de desertificação, tornando esses ambientes inviáveis para o cultivo de plantas.

Neste contexto, é interessante levarmos em consideração que atualmente 2/3 das ca-lorias ingeridas no mundo veem apenas de

ESSAS PLANTAS SãO CULTIVADAS EM ESCALA DOMÉSTICA E SãO ALTERNATIVA PARA USO ALIMENTíCIO EM DIVERSAS COMUNIDADES PELO MUNDO. NO ENTANTO, POUCOS ESTUDOS FORAM REALIzADOS COM ESSAS ESPÉCIES.

três culturas: arroz, trigo e milho. Em um estudo desenvolvido pela professora Alice Bows-Larkin, da University of Manchester, no Reino Unido, foi demonstrado que um aumento de 4oC na temperatura do planeta levará a uma queda de 40% na produtividade de trigo e milho e de 30% na produtividade de arroz. Dessa forma, como conseguiremos aumentar a produtividade em 70% para su-prir a demanda de 9,6 bilhões de pessoas em 2050, se com atual cenário de aquecimento global são estimadas quedas preocupantes em nossa produção agrícola? Esse problema mundial já faz parte da agenda de desen-volvimento em diversos países e diversas frentes de estudo estão buscando respostas.

Na Unesp, um grupo de estudo que com-põe o Laboratório de Metabolismo de Plantas do Instituto de Biociências do Campus do Litoral Paulista tem como objetivo principal

o estudo da fotossíntese e dos mecanismos fotoprotetores em plantas, frente a diversos fatores abióticos como altas temperaturas, seca e salinidade.

Coordenado pelo professor Milton Lima Neto, o grupo busca entender como plan-tas “rústicas” conseguem produzir e crescer em ambientes onde outras espécies não têm sucesso. Quais mecanismos fisiológicos são empregados por essas espécies para lidar e continuar produzindo em ambientes com esses fatores estressantes ocorrendo mutu-almente? E como esses mecanismos podem ser aproveitados em nossas culturas de maior interesse econômico?

Atualmente, o grupo do Laboratório de Metabolismo de Plantas está realizando um projeto em parceria com a universidade de Kwazulu-Natal, sediada em Durban na Áfri-

Milton Lima Neto, professor do Instituto de Biociências do câmpus do Litoral Paulista.

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MILTON LIMA NETO

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Ciências Biológicas

ca do Sul, onde busca-se entender como diferentes espécies de plantas alimentícias não convencionais (PANCs) contornam o problema da alta temperatura e continuam produzindo.

As PANCs, são espécies rústicas, tole-rantes à diversas condições de estresse, que crescem e se espalham em áreas livres sem a necessidade de manejo ou cultivo. Essas plantas costumam ser cultivadas em escala doméstica e são uma alternativa para uso alimentício em diversas comunidades es-palhadas pelo mundo. No entanto, poucos estudos foram realizados com essas espé-cies, o que compromete sua utilização e o incentivo de seu aproveitamento.

Nesse trabalho em colaboração, nós uti-lizamos como modelo de estudo algumas espécies que são utilizadas como PANCs na África do Sul, como a Amaranthus dubius, conhecida popularmente como caruru ou bredo, e a Galinsoga parviflora, conhecida como picão branco ou botão de ouro. A pes-quisa conta com auxílios da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Unesp e do The National Research Foun-dation (NFR), agência federal sul-africana de fomento à pesquisa.

O objetivo é entender como essas plantas conseguem se manter produtivas em ambien-tes que possuem, durante grande parte do ano, condições de alta irradiância solar, seca e altas temperaturas. Quais mecanismos são empregados por essas espécies? Como elas se protegem dessas condições ambientais tão hostis? A partir desse entendimento, nós poderemos aumentar a produtividade de nossas espécies cultiváveis, sem a neces-sidade do aumento da área plantada. Além disso, é importante buscarmos alternativas alimentares. Com o incentivo e conhecimen-to sobre a fisiologia e biologia das PANCs, essas espécies podem ocupar uma lacuna importante na produção de alimentos que tanto nos preocupa no atual cenário de mu-danças climáticas globais.

galInsoga parvIflora, (picão branco / botão de ouro)

Na Colômbia esta erva é usada como especiaria na sopa ajiaco. Também pode ser utilizado como um ingrediente em saladas. Na áfrica do Sul, há cidades onde as famílias secam e conservam as folhas para cozimento e comercialização em tempos de escassez.O sabor lembra o do espinafre.

amaranthus duBIus (caruru / bredo)

As folhas e flores podem ser consumidas em refogados, farofas ou pães. Deve ser submetida ao cozimento, pois algumas espécies podem possuir substâncias tóxicas quando cruas. As sementes podem ser tostadas e usadas como complemento.

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funções da arteNão se sabe bem a idade do artista responsável por essa obras, mas sabe-se que ele acompanha o homem desde a contagem dos tempos. Seu nome é Matemática.

As duas imagens são parte da mostra de divulgação científica Matemática, Arte e Tecnologia organizada durante a Escola Latino-Americana de Matemática (ELAM), na Universidade Federal do ABC (UFABC), e produzida pelos professores Emília de Mendonça Rosa Marques e Aguinaldo Robinson de Souza, ambos da Faculdade de Ciências da Unesp de Bauru.

Os quadros são produzidos a partir de funções complexas utilizando-se o software F(C): Funções Complexas, desenvolvido em 2003 por um ex-aluno da Licenciatura em Matemática de Bauru, durante seu mestrado na Pós-Graduação da FC. As obras utilizam o método dos Domínios Coloridos. O software possui gratuidade de uso, está disponível no site do projeto de extensão dos organizadores: < w w w 2 . f c . u n e s p . b r /matematicaearte/>.

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Foto do Mês

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Produzir conteúdo,Compartilhar conhecimento.Editora Unesp, desde 1987

www.editoraunesp.com.br

Pela primeira vez publicado em língua portuguesa, o intelectual alemão Günter Frankenberg apresenta uma análise das técnicas das quais o Estado se vale para exercer e preservar seu poder – especialmente em tempos de Guerra ao Terror, quando governos transcendem o Estado de direito e pervertem as técnicas de segurança nacional. No percurso de sua análise, o autor não apenas joga luzes sobre algumas ambivalências do Estado de direito, mas também defende a legalidade democrática contra tendências que pretendem naturalizar o estado de exceção.

As perspectivas sobre o Estado de direito e do estado de exceção

Técnicas de Estado: perspectivas sobre o Estado de direito e o estado de exceçãoGünter Frankenberg | 377 páginas

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Produzir conteúdo,Compartilhar conhecimento.Editora Unesp, desde 1987

www.editoraunesp.com.br

Pilar da ciência moderna, a obra seminal do filósofo e matemático francês René Descartes chega agora ao leitor brasileiro numa ousada edição comentada: Discurso do método & Ensaios. Diferentemente das traduções já existentes em todo o mundo, que se atêm apenas ao Discurso do método, esta edição conta também com os três ensaios que originalmente o acompanhavam em 1637. Além do discurso introdutório em seis partes, que constitui o ensaio sobre o método, traz também os dez discursos que compõem o ensaio A dióptrica, sobre lentes e instrumentos ópticos; os dez discursos do ensaio Os meteoros, sobre meteorologia, o qual contém a explicação cartesiana do arco-íris; e pelos três livros que compõem o ensaio A geometria, sobre a resolução de equações e a produção das curvas correspondentes.

Obra seminal de René Descartes ganha edição comentada e

acréscimo de ensaios

Discurso do método & EnsaiosRené Descartes | Organização de Pablo Rubén Mariconda | 525 páginas

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