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DELIBERAÇÃO DO CONSELHO DIRECTIVO DA
ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE
Considerando as atribuições da Entidade Reguladora da Saúde (doravante ERS)
conferidas pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;
Considerando os objectivos da actividade reguladora da ERS estabelecidos no artigo 33.º
do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;
Considerando os poderes de supervisão da ERS estabelecidos no artigo 42.º do Decreto-
Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio;
Visto o processo registado sob o n.º ERS/010/08;
I. Do Processo
1. Origem do processo
1. Em 17 de Setembro de 2007, a ERS recebeu uma reclamação apresentada pela
utente A., residente na …, relativa a um exame complementar de diagnóstico
realizado, em 21 de Agosto de 2007, na CLIUNI – Clínica Unida, S.A. (Folha de
Reclamação n.º 7847707), que igualmente gira sobre a designação comercial
“Clínica Unimed – Entrecampos”.
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2. A CLIUNI – Clínica Unida, S.A. (doravante Cliuni), entidade com o NIPC 504 091
689, com sede no Campo Grande, n.º 54-A, R/C, 1700-093 Lisboa, encontra-se
registada no SRER da ERS sob o n.º 15 108.
3. Na sequência dessa exposição, o Conselho Directivo da ERS deliberou, em 28 de
Fevereiro de 2008, a abertura de um processo de inquérito que corre termos sob o
registo n.º ERS/010/08.
2. A exposição da utente
4. A reclamante alega que, embora tenha solicitado a realização de “[…] uma ecografia
obstétrica conforme a requisição n.º … do modelo 330.10”, que lhe havia sido
prescrita pela sua Médica de Família (Dra. M., do Centro de Saúde de Alameda);
5. Constatou a final que lhe havia sido “[…] facturada ecografia morfológica múltipla”.
6. Mais refere que, “[p]osteriormente, contact[ou] a médica de família que confirmou
que a ecografia morfológica só será pedida às 20-22 semanas de gravidez e nunca
antes”.
3. Diligências
7. No âmbito da investigação desenvolvida pela ERS, realizaram-se, entre outras, as
diligências consubstanciadas
i) nos pedidos de elementos à Cliuni, em 24 de Setembro de 2007, 29 de
Maio de 2008 e 12 de Dezembro 2008;
ii) nos pedidos de elementos à reclamante, em 24 de Setembro de 2007 e
12 de Março de 2008;
iii) em parecer técnico elaborado por consultor médico da ERS, em 8 de
Fevereiro de 2008, relativo à necessidade de averiguação fundamentada
da regularidade da realização de ecografia morfológica em vez de
ecografia obstétrica pela Cliuni;
3
iv) em parecer técnico elaborado por consultor médico da ERS, em 12 de
Fevereiro de 2009, relativo à necessidade de averiguação sobre a
importância da informação (e sua conservação) relativa à identificação do
tempo de gestação das utentes para efeitos de realização de ecografias,
sejam elas obstétricas ou morfológicas;
v) em consulta e pesquisa do Sistema de Registo de Estabelecimentos
Regulados (SRER) da ERS.
II. DOS FACTOS
II.1. Das alegações da Cliuni
8. Na resposta da Cliuni à reclamação, datada de 4 de Setembro de 2007, é pela
mesma referido que
“[…]
a) Constitui boa prática médica a realização de estudo da morfologia fetal
numa ecografia obstétrica realizada às 14 semanas+ como é o caso da
queixosa. Nesta altura da gestação é possível detectar múltiplas
malformações fetais, ao nível dos membros, S.N.C., parede abdominal e
outros, assim como analisar os riscos de cromossomopatia.
b) No exame em questão procedeu-se ao estudo da morfologia do craneo,
tubo neural, membros superiores, membros inferiores, parede abdominal,
bexiga, estômago e outros, não tendo sido detectadas anomalias nesta
fase, conforme vem indicado no relatório do exame.
c) Actualmente, é consensual entre os obstetras, que o estudo morfológico
do feto deve ser iniciado no I.º trimestre (11-14 semanas) e não às 20
semanas”.
d) Nestes termos, a não realização do estudo morfológico fetal no caso da
queixosa teria constituído má prática médica.”.
II.2. Das contra-alegações da reclamante
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9. A reclamante, em comunicação de 28 de Setembro de 2007, apresentou a sua
contestação à resposta dada pela Cliuni, onde afirma que:
(i) recorreu aos serviços médicos da Cliuni, em 21 de Agosto de 2007,
com o intuito de realizar uma ecografia obstétrica, tendo-se feito
acompanhar de uma requisição do SNS, emitida pela sua Médica de
Família (Dra. M.) do Centro de Saúde de Alameda-Lisboa;
(ii) o médico que a atendeu na Cliuni, ao contrário do que constava na
prescrição da médica de família, entendeu realizar “[uma ecografia]
morfológica sem pedir a [sua] opinião”;
(iii) como a sua médica de família “[…] não solicitou a ecografia
morfológica […] não estava preparada economicamente para pagar
os 61 euros”;
(iv) posteriormente “[…] contact[ou] a médica de família que […] informou
que a ecografia morfológica não se faz antes das 18 semanas e que
ela [iria] pedir essa ecografia só às 20-22 semanas” ;
(v) contactou novamente a Cliuni, confrontando-a com o referido pela
sua médica de família, tendo-lhe sido dito por uma “[…] assistente
que é prática comum da clínica realizar ecografia morfológica a partir
das 11 semanas”; e
(vi) ao contrário do referido na resposta da Cliuni à sua reclamação, de
que “[…] o médico fez exames ao tubo neural, membros, etc…
conforme o relatório”, constata-se que “[…] no relatório, a parte
respeitante à morfologia está em branco, o que quer dizer que não foi
feita ecografia morfológica mas paguei-a na mesma”
10. Em anexo à referida comunicação, é junto pela reclamante cópia
i) da reclamação inicial e da requisição n.º … da qual consta, como exame
prescrito, “Ecografia obstétrica”; e
ii) do relatório médico do exame da ecografia realizada do qual constava
designadamente, o tempo de gestação da utente (14 semanas e 4 dias),
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que não se apresenta preenchido na parte respeitante ao exame
morfológico – cfr. resposta da exponente em 03/10/07 junto aos autos.
11. De sublinhar que na referida requisição n.º 894001 foi posteriormente aposto, pela
médica de família da reclamante, Dra. M. do Centro de Saúde de Almada, a
clarificação de que “não é a ecografia morfológica que será pedida [somente] às 20-
22 semanas […]”, constando ademais a assinatura da referida médica e respectivo
carimbo com data de 31/8/07;
12. Ou seja, em momento posterior às dúvidas apresentadas pela utente em face do
ocorrido aquando da realização do exame na Cliuni, a reclamante foi novamente
junto da sua médica de família no sentido de esclarecer qual o exame que havia sido
prescrito para aferir da correcção do acto realizado pela Cliuni;
13. E obteve de tal médica de família – e in casu médica prescritora do exame – a
reiteração de que havia sido prescrita uma ecografia obstétrica e não uma ecografia
morfológica.
II.3. Do parecer técnico de 8 de Fevereiro de 2008
14. Em face das alegações da Cliuni e das contra-alegações da reclamante, foi
solicitado parecer técnico relativamente à necessidade de averiguação
fundamentada da regularidade da realização de ecografia morfológica em vez de
ecografia obstétrica pela Cliuni.
15. Segundo o parecer técnico elaborado em 8 de Fevereiro de 2008,
“[…] segundo as recomendações do colégio de Obstetrícia, uma ecografia
morfológica só deve ser realizada entre as 18-22 semanas. Neste caso
concreto, a reclamante estava com uma gestação de 14 semanas e 4 dias,
e nesta situação, não é possível fazer perfil biofísico nem medir
translucência da nuca. Face ao exposto, podemos concluir, que houve má
prática clínica ao induzir a procura” – Cfr. Parecer junto aos autos.
II.4. Pedido de Informação à reclamante em 12 de Março de 2008
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16. Conforme já referido supra, na sequência da recepção da reclamação da utente e no
seguimento das alegações e contra-alegações apresentadas pela Cliuni e pela utente,
acima melhor descritas, o Conselho Directivo da ERS, por despacho de 28 de
Fevereiro de 2008, ordenou a abertura de inquérito registado sob o n.º ERS/010/08;
17. Sendo que, num primeiro momento se revelava necessário solicitar à reclamante
elementos adicionais;
18. Tendo a mesma, em resposta a tal solicitação (de 2 de Maio de 2008), vindo alegar
que
“a) Deslo[cou-se] à Clínica Unimed para a realização de ecografia
obstétrica uma vez que […] conseguiu vaga para a realização da ecografia;
b) Solicit[ou] uma ecografia obstétrica e não morfológica;
c) efectu[ou] o exame no dia 31 de Agosto de 20071, no final da tarde.
d) não [sabe] o nome do médico;
e) Não f[oi] informada antecipadamente pelo médico do exame que estava
a realizar.
f) Escolh[eu] a clínica porque a era única que tinha vaga para ecografia
obstétrica como se tratava do mês de ferias.
g) Deslo[cou-se] à clínica com beneficiária de seguro de saúde Victoria
[tendo-lhe sido] pedida o original da credencial que a médica [de família
passou]
Tendo entreg[ue] a credencial antes da realização do exame […] [e
apenas foi informada], […] na hora de pagamento que o médico entendeu
realizar ecografia morfológica porque era prática comum na clínica a sua
1 Trata-se seguramente de mero lapso de escrita, uma vez que o exame foi realizado no dia 21 de
Agosto de 2007, e não do dia 31, como melhor resulta quer da resposta da reclamante de
03/10/07, quer do próprio recibo emitido pela Cliuni relativo ao exame, ambos juntos aos autos.
7
realização a partir das 11.ª semana de gestação.[…]”- cfr. resposta da
exponente de 02.05.2008, junta aos autos.
II.5. Pedidos de Informação à Cliuni em 29 de Maio de 2009 e 12 de Dezembro de 2008
19. Na sequência da reclamação da utente, da resposta da Cliuni à reclamação, e dos
esclarecimentos adicionais prestados pela primeira, verificou-se a necessidade de
solicitar informação adicional a um tal prestador de cuidados de saúde.
20. Assim, foi solicitado à Cliuni que identificasse o médico que efectuou o exame em
causa, com indicação da sua especialidade, bem como o fornecimento o fornecimento
da cópia da Credencial emitida pela médica assistente do Centro de Saúde da utente
em questão, que foi entregue por esta à Cliuni aquando da marcação do exame
ecográfico em questão;
21. Tal como foi solicitado, entre outros elementos,
(i) a justificação completa, fundamentada e acompanhada dos elementos
documentais relevantes, da realização de uma ecografia morfológica à utente
quando havia sido requisitada e prescrita a realização de uma ecografia
obstétrica;
(ii) cópia dos elementos relevantes relativos quer ao esclarecimento prestado à
utente previamente à realização de uma ecografia morfológica, quer à
solicitação e/ou aceitação prévia e expressa da utente quanto à realização de
um tal acto;
(iii) cópia de toda a documentação relativa à facturação do acto em questão,
designadamente aquela entregue à utente (p. ex., recibos);
(iv) justificação para haver sido comunicado à utente ser prática comum nessa
Clínica a realização de ecografias obstétricas morfológicas a partir das onze
semanas; e
(v) o número total de exames ecográficos realizados durante gravidez, nos anos de
2007 e até tal momento do 2008, desagregado por “ecografia obstétrica” e
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“ecografia morfológica” e com identificação dos correspondentes tempos de
gestação das utentes aquando da realização dos actos.
22. Assim, a Cliuni na sua resposta de 20 de Junho de 2008, veio alegar que:
i) quem realizou o exame ecográfico à utente foi o Dr. R.V. (com a cédula
médica n.º …), com a especialidade médica de Ginecologia Obstetrícia;
ii) a Clínica “[…] não tem convenção com o SNS”, tendo a exponente
realizado o predito exame “no designado “regime livre” através de um
seguro de saúde da AdvanceCare que no caso da utente e de acordo
com a apólice, estabelece o pagamento total ao balcão pela utente.
Neste caso em concreto a Seguradora não comparticipou em nenhum
montante.”
iii) quanto á justificação e fundamentação técnica para a realização da
ecografia morfologia, foi a mesma dada “[…] pelo Dr. [R.V. …] feita por
carta manuscrita pelo próprio em 31/08/2007” – junta em anexo pela
Clínica na sua resposta de 20 de Junho de 20082;
iv) o médico que realizou o exame, “[o] Dr. R.V. é um médico prestador de
serviços desta clínica. Não existe uma relação de trabalho subordinado
entre o Dr. R.V. e esta instituição.”;
v) o exame efectuado “[…] foi decidido exclusivamente pelo médico
especialista, no âmbito da sua autonomia técnica que, nos termos da
Lei, a nossa instituição é obrigada a respeitar”;
vi) o médico em questão “[…] explicou antecipadamente à Sra. A. as suas
razões técnicas para a realização de uma ecografia obstétrica
morfológica”, a qual segundo “[…] a informação prestada pelo médico
[…] aceitou verbalmente a realização da mesma”.
23. No que concretamente se refere à solicitação de justificação para haver sido
comunicado à utente ser prática comum na Clínica a realização de ecografias
2 Refira-se que uma tal carta corresponde à resposta da Cliuni à reclamação da utente.
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obstétricas morfológicas a partir das onze semanas, veio a Cliuni alegar que nunca
terá dado tal afirmação à utente.
24. Mais se refira que em tal resposta a Cliuni juntou cópia do recibo por si emitido à
utente A., do qual consta ter sido debitada a quantia de € 61,00 relativa a uma
“Ecografia obstétrica morfológica múltipla” – Cfr. cópia do recibo junto aos autos.
25. Em subsequente pedido de elementos da ERS, de 12 de Dezembro de 2008, e entre
outros elementos, foi igualmente solicitado à Cliuni que identificasse os
correspondentes tempos de gestação das utentes aquando da realização das
ecografias obstétricas e ecografias morfológicas por si realizadas;
26. Tendo a Cliuni alegado, na sua resposta, que não poderia fornecer tal informação uma
vez que “a Clínica não guarda em arquivo essa informação”.
27. Nessa mesma resposta, a Cliuni procedeu igualmente ao envio de informação relativa
aos preços por si praticados durante os anos 2007 e 2008, sendo que os valores em
vigor à data dos factos em análise são os constantes da tabela infra:
[…]
28. Da análise da referia tabela de preços resulta que se tivesse sido efectuado à utente o
exame constante da prescrição médica, a mesma deveria ter pago a quantia de €
40,00.
29. No que se refere ao número total de exames ecográficos realizados durante gravidez,
nos anos de 2007 e 2008, desagregado por ecografia obstétrica e ecografia
morfológica e com distinção por identificação da entidade financiadora dos utentes –
SNS, diferentes beneficiários de subsistemas, seguros de saúde e particulares –, tal
informação foi fornecida pela Cliuni, nas suas respostas de 7 de Julho de 2008 e de
13 de Janeiro de 2009, conforme gráficos infra:
N.º de exames realizados durante os anos de 2007 e de 2008
[…]
II.6. Do parecer técnico do consultor médico da ERS, de 2 de Março de 2009
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30. No pedido de informação da ERS, de 29 de Maio de 2009, era solicitado à Cliuni, no
que se referia ao número total de exames ecográficos realizados durante gravidez,
nos anos de 2007 e 2008, que fosse feita a “[…] identificação dos correspondentes
tempos de gestação das utentes aquando da realização dos actos”.
31. Conforme já referido supra, a Cliuni na sua resposta de 7 de Julho de 2008, e no que
se refere a uma tal questão em concreto, referiu que “a Clínica não guarda em arquivo
essa informação”.
32. Importava, assim, nesse momento, verificar a necessidade de averiguação sobre a
importância da informação (e sua conservação) relativa à identificação do tempo de
gestação das utentes para efeitos de realização de ecografias, sejam elas obstétricas
ou morfológicas.
33. Nesse sentido, solicitou-se, em 12 de Fevereiro de 2009, Parecer clínico a um
consultor médico da ERS, tendo-se questionado o mesmo sobre,
(i) se tal informação é ou não um elemento relevante a constar do
relatório das ecografias realizadas pelas utentes; e
(ii) se tal informação deve também ficar a constar do registo clínico dos
utentes e, consequentemente, ser objecto de cuidado tratamento e
arquivo em consonância com o respeito pela leges artis3.
34. No Parecer emitido nessa sequência, o Consultor Médico da ERS pronunciou-se não
só sobre as concretas questões que lhe foram colocadas, bem como procedeu à
análise da questão relativa a adequabilidade ou não da realização da ecografia
morfológica à utente em questão.
35. Assim, tendo por base toda a documentação junta aos autos, e designadamente cópia
do exame e relatório da ecografia efectuada à utente, assim como da análise à
Circular Normativa n.º 10/DSMIA da Direcção-Geral de Saúde (DGS), de 7 de Maio de
2001, bem como “das legis artis no que à ecografia obstétrica diz respeito”, emitiu
então o seguinte parecer4:
3 Cfr. Solicitação de Parecer Médico da ERS, junto aos autos.
4 Cfr. Parecer do Consultor Médico da ERS, de 02.03.2009, junto aos autos.
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“[…] Segundo a DGS, considera-se ser três o número máximo de exames
ecográficos a realizar na gravidez de baixo risco e os períodos em que se
recomenda a sua realização são:
- 1.º Exame entre as 11 e 13 semanas;
- 2.º Exame entre as 20 e 22 semanas;
- 3.º exame entre as 28 e 32 semanas.
No que se refere ao 1.º Exame [11 a 13 semanas] é seu Objectivo Primário
a mediação do cumprimento craniocaudal fetal para determinação da idade
gestacional por via ecográfica e correcção da idade gestacional medida por
tempo de amenorreia, pelo que deverá sempre ser mencionada essa idade
gestacional ecográfica no dito exame. Quanto à avaliação morfológica do
feto, a 1.ª Ecografia tem detalhes morfológicos que poderão e se
recomenda que sejam avaliados (definidos como ecoanatomia no relatório
recomendado pela DGS), mas não se trata de uma ecografia morfológica
estrita (recomendada como 2.º exame, entre as 20 e 22 semanas) uma vez
que tal se torna tacticamente impossível pelo estadiamento e
desenvolvimento do feto. Recomendam as legis artis que [no 1.º exame] se
vá o mais longe possível no detalhe anatómico e na avaliação da vitalidade
fetal, mas não se pode abusivamente classificar esta ecografia como
morfológica, uma vez que não exige mais tempo de avaliação, não exige
mais detalhe e capacidade dos aparelhos ecográficos, nem maior
diferenciação no técnico médico que o executa, nem tal avaliação é
permitida, repita-se, pelo estadiamento e desenvolvimento do feto” –
sublinhado nosso.
36. E concretamente sobre a questão atinente à identificação dos tempos de gestação
das utentes aquando da realização das ecografias, e se o mesmo será um elemento
relevante a constar do relatório das mesmas, devendo constar do respectivo registo
clínico, o consultor clínico da ERS é de parecer que:
“[…]
No que se refere ao arquivamento de cópias do registo clínico das
ecografias realizadas nas clínicas certificadas para o efeito, tal não é
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obrigatório mas é recomendável e aconselhável, quer por motivos de
eventuais comparações futuras, quer por motivos de segurança clínica,
devendo ser arquivada uma cópia exacta do relatório entregue à paciente
ou ao médico assistente da mesma.”.
III. DO DIREITO
III.1 Enquadramento Geral
37. De acordo com o n.º 1 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, a ERS
tem por missão a regulação da actividade dos estabelecimentos prestadores de
cuidados de saúde.
38. Sendo que estão sujeitos à regulação da ERS, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do
Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, “[...] todos os estabelecimentos prestadores
de cuidados de saúde, do sector público, privado e social, independentemente da sua
natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas, centros de saúde, laboratórios de
análises clínicas, termas e consultórios”.
39. Sendo, consequentemente, a Cliuni – Clínica Unida, S.A. um estabelecimento
prestador de cuidados de saúde, para efeitos do referido art. 8.º do Decreto-Lei n.º
127/2009, de 27 de Maio, a qual se encontra registada no SRER da ERS sob o
número 15 108.
40. As atribuições da ERS, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 3.º do Decreto-Lei
n.º 127/2009, de 27 de Maio, compreendem “[…] a supervisão da actividade e
funcionamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde no que
respeita:
a) Ao cumprimento dos requisitos de exercício da actividade e de
funcionamento;
b) À garantia dos direitos relativos ao acesso aos cuidados de saúde e dos
demais direitos dos utentes;
c) À legalidade e transparência das relações económicas entre os diversos
operadores, entidades financiadoras e utentes”.
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41. Por seu lado, constituem objectivos da actividade reguladora da ERS, em geral, nos
termos do art. 33.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio:
“[…]
b) Assegurar o cumprimento dos critérios de acesso aos cuidados de
saúde, nos termos da Constituição e da lei;
c) Garantir os direitos e interesses legítimos dos utentes;
d) Velar pela legalidade e transparência das relações económicas entre
todos os agentes do sistema;
e) Defender a concorrência nos segmentos abertos ao mercado […]”.
42. O referido Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, que entrou em vigor em 26 de
Maio de 2009, sucedeu ao Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro, e que
constituía o quadro legal de conformação e actuação da ERS até tal momento.
43. Ora, já em tal anterior quadro legal, que criou a ERS, era missão desta Entidade, de
acordo com o artigo 3.º do referido Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro, a
ERS a regulação, a supervisão e o acompanhamento, da actividade dos
estabelecimentos, instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde;
44. E desde tal momento que se encontram sujeitos à regulação da ERS, nos termos do
então artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro, os “[...]
estabelecimentos [...] prestadores de cuidados de saúde, integrados ou não na rede
de prestação de cuidados de saúde, independentemente da sua natureza jurídica”.
45. Nesse sentido, e atendendo ao facto de que já então eram objectivos da actividade
reguladora da ERS, em geral, nos termos do artigo 25.º n.º 1 do Decreto-lei n.º
309/2003, de 10 de Dezembro:
“c) Assegurar os direitos e interesses legítimos dos utentes”;
46. Para além de que lhe incumbia, nos termos do n.º 2 do artigo 25.º Decreto-Lei n.º
309/2003, de 10 de Dezembro:
“a) Zelar pelo respeito da liberdade de escolha nas unidades privadas de
saúde;
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[…]
c) Prevenir e combater as práticas de indução artificial da procura de
cuidados de saúde”.
47. A ERS procurou analisar a situação denunciada porquanto a mesma poderia,
hipoteticamente, configurar
(i) uma eventual violação dos direitos e interesses legítimos do utente em
causa, por desrespeito dos direitos dos utentes ao consentimento
informado e esclarecido (alínea e) do n.º 1 da Base XIV da Lei de
Bases da Saúde) e, consequentemente, de escolher livremente o
agente prestador de cuidados de saúde (alínea a) do n.º 1 da Base XIV
da Lei de Bases da Saúde), em virtude de uma alegada ausência de
informação prévia à utente sobre a realização de exame diferente
daquele que constava da prescrição médica de que a mesma era
portador, e consequente ausência de consentimento;
(ii) uma eventual situação de desnecessidade de realização de um
determinado acto médico (in casu de uma ecografia morfológica) que
ademais não havia sido prescrito pelo médico assistente da utente em
questão, susceptível de colocar em crise os interesses financeiros dos
utentes, em face do pagamento do valor de um exame que não era
necessário efectuar, e consequentemente consubstanciar um eventual
indício de potencial situação de indução artificial da procura;
(iii) e igualmente uma eventual violação dos direitos e interesses legítimos
dos utentes, por omissão de determinado comportamento, in casu
arquivo e conservação de cópias dos registos clínicos das ecografias
efectuadas às utentes, o que poderá ser susceptível de configurar um
desvio ou desrespeito das leges artis.
48. Ora, mantendo-se os objectivos regulatórios da ERS no quadro do Decreto-Lei n.º
127/2009, de 27 de Maio, e designadamente aqueles relativos
(i) aos direitos e interesses legítimos dos utentes, nos termos da alínea c)
do artigo 33.º de tal diploma;
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(ii) à prevenção e punição das práticas de indução artificial da procura de
cuidados de saúde, nos termos da al. c) do artigo 35.º do referido
diploma; e
(iii) ao seu dever de zelar pelo respeito da liberdade de escolha nos
estabelecimentos de saúde privados, nos termos da al. d) da mesma
norma;
49. É, então, incumbência da Entidade manter a sua análise às referidas questões, ora à
luz do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio
III.2 – Da ausência de informação prévia sobre a realização do exame e de consentimento informado – Caracterização geral
50. Cumpre analisar inicialmente a questão relativa à não informação, por parte da Cliuni,
sobre a realização de exame diferente do que havia sido prescrito pela Médica
assistente e, consequentemente, da eventual ausência de consentimento informado
prestado pela utente A. para a realização ecografia morfológica, em vez da ecografia
obstétrica.
51. Nos termos do disposto na Base XIV n.º 1 alínea e) da Lei de Bases da Saúde, os
utentes têm direito a “[s]er informados sobre a sua situação, as alternativas possíveis
de tratamento e a evolução provável do seu estado”, pelo que um tal direito consistirá,
desde logo, no direito a estar plenamente informados sobre todos os dados relativos
ao seu estado de saúde, nomeadamente, dos tratamentos a que vai ser submetido e
dos respectivos riscos e benefícios que os mesmos comportam, das alternativas
possíveis, dos efeitos em caso de recusa de tratamento, bem como do diagnóstico, do
prognóstico e dos progressos que se forem verificando no seu estado de saúde.
52. Mas, tal direito dos utentes à informação não se limita ao que prevê a alínea e) do n.º
1 da Base XIV da Lei de Bases da Saúde, para efeitos de consentimento informado e
esclarecimento quanto a alternativas de tratamento e evolução do estado clínico;
53. Trata-se, antes, de um princípio que deve modelar todo o quadro de relações actuais
e potenciais entre utentes e prestadores de cuidados de saúde, públicos e privados.
16
54. Refira-se a este respeito que a informação em saúde5 deve ser prestada com verdade,
com antecedência (para não colocar o doente numa situação de pressão quanto à
decisão de dar ou recusar o seu consentimento), de forma clara, adaptada à sua
capacidade de compreensão, contendo toda a informação necessária à tomada de
decisão do utente, que deverá obviamente incluir a informação sobre os concretos
actos que lhe venham a ser prestados e o preço a pagar pelos mesmos, e tendo em
conta ainda a sua personalidade, o grau de instrução e as condições clínicas e
psíquicas do utente.
55. Por outro lado, o direito dos utentes dos serviços de saúde à informação, resulta ainda
daquele direito mais abrangente assegurado a todos os consumidores “à informação
para o consumo”, previsto na alínea e) do artigo 3.º da Lei de Defesa do Consumidor
(Lei n.º 24/96 de 31 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º
67/2003, de 8 de Abril).
56. De acordo com o previsto na referida Lei de Defesa do Consumidor, mais
concretamente no seu artigo 8.º n.º 1, “o […] prestador de serviços deve, tanto nas
negociações como na celebração de um contrato, informar de forma clara, objectiva e
adequada o consumidor, nomeadamente, sobre características, composição e preço
do […] serviço” em questão.
57. Refira-se ainda a respeito do preço dos serviços prestados que, nos termos do artigo
10.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 138/90, de 26 de Abril (com as alterações introduzidas
pelo Decreto-Lei n.º 162/99, de 13 de Maio), “[o]s preços de toda a prestação de
serviços, seja qual for a sua natureza, devem constar de listas ou cartazes afixados no
lugar onde os serviços são propostos ou prestados ao consumidor”6.
5 A Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, sobre a informação genética pessoal e a informação de
saúde, define informação em saúde como sendo “todo o tipo de informação directa ou indirecta
ligada à saúde, presente ou futura, de uma pessoa, quer se encontre com vida ou tenha falecido, e
a sua história clínica e familiar”.
6 Sendo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 138/90, de 26 de
Abril (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 162/99, de 13 de Maio), a inexistência de
listas ou cartazes afixados no lugar onde os serviços são propostos ou prestados ao consumidor
constitui contra-ordenação punível com coima. Igualmente o artigo 64.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º
28/84, de 20 de Janeiro (relativo Regime de infracções anti-económicas e contra a Saúde Pública)
17
58. E como parecerá claro, esse dever de informação sobre preços não pode quedar-se
apenas por um aparente cumprimento resultante de uma mera afixação de preços;
59. Antes implicando que os consumidores – utentes tenham plena informação e
conhecimento de qual o serviço que se encontram a contratar e sua correspondência
com a tabela de preços em uso e conhecida por aqueles.
60. E também por isso importa garantir que a informação prestada ao utente seja
suficiente para dotar o utente medianamente esclarecido e diligente dos elementos
necessários à sua tomada de decisão sobre a realização de determinados actos ou
exames, cuja necessidade se verifica apenas no decurso de um outro acto, que de
forma livre e esclarecida o utente escolheu efectuar em determinado prestador;
61. E concretamente quanto a este aspecto, refira-se que a forma de transmissão da
informação deve acomodar a preocupação da existência de uma assimetria de
informação em prejuízo do utente.
III.2.1 – Da ausência de informação prévia sobre a realização do exame e de consentimento informado – A situação concreta
62. Quanto à situação concreta vinda de analisar, a utente em questão recorreu à Cliuni
para a realização de uma ecografia obstétrica (entre as 11 e 13 semanas de
gestação);
63. Tendo entregue à Cliuni, aliás e para o efeito da marcação do exame, a credencial
que lhe havia sido entregue pela sua médica de família;
64. E da qual consta expressamente a prescrição, por tal médica assistente, do exame
ecografia obstétrica.
estabelece que será punida com coima “[…] a falta de indicação dos preços dos serviços nos locais
onde os mesmos são normalmente prestados ou oferecidos ao público, indicação feita por forma
insuficientemente visível ou legível para o consumidor ou utente, bem como a não observância de
preceitos especiais sobre a matéria”.
18
65. Acontece que o prestador de cuidados de saúde em questão entendeu que se
justificaria como necessária a realização de determinado exame complementar de
diagnóstico.
66. Nestas situações, e antes de se averiguar sobre a adequabilidade daquela concreta
alteração de exame efectuada por aquele prestador, importa garantir em todos os
casos de realização de exame diferente (ou pretensamente diferente) do solicitado na
prescrição médica de que os utentes sejam portadores, que os mesmos sejam
previamente informados da necessidade de realização de um acto que inicialmente
não estaria previsto ser efectuado (ou que o utente medianamente esclarecido e
diligente, e em face da assimetria de informação existente, não pudesse prever como
possível a sua necessidade de realização);
67. Bem como garantir que a informação sobre a realização de um tal acto não deixe de
se caracterizar pela completude, veracidade e inteligibilidade, sendo
consequentemente prestada com objectividade, e contendo a informação não apenas
sobre o motivo da realização do mesmo, como também sobre os riscos e benefícios
que comporta, as alternativas possíveis, os riscos ou implicações da recusa de
realização, e obviamente o preço subjacente à sua realização, e que irá acrescer ao
preço inicialmente previsto.
68. Refira-se aliás que, o direito dos utentes à informação está, ademais, ínsito à própria
relação de confiança que os mesmos estabelecem com os prestadores de cuidados
de saúde, que se deve pautar, ela própria, globalmente, por princípios da verdade e
transparência.
69. Deve-se assim, concluir que, quando um utente recorre a um prestador de cuidados
de saúde, estabelece-se uma relação contratual de confiança, a qual subentende uma
necessidade de transparência na integralidade dos pressupostos subjacentes à
mesma;
70. Ou seja, o utente terá que obter do prestador, antes e durante a prestação de
cuidados de saúde, toda a informação necessária, sob pena de lesão, directa ou
indirecta, actual ou potencial, do seu direito ao consentimento informado e esclarecido
(alínea e) do n.º 1 da Base XIV da Lei de Bases da Saúde) e, consequentemente, de
escolher livremente o agente prestador de cuidados de saúde (alínea a) do n.º 1 da
Base XIV da Lei de Bases da Saúde).
19
71. Não se pode olvidar que a não transparência na informação prestada ao utente, o
poderá induzir a recorrer aos serviços de uma entidade que lhe terá sido indicada em
função da sua reputação, mas também em face do conhecimento prévio do preço
ínsito à prestação de cuidados de saúde, e que poderia motivar uma decisão de
recusa de realização de determinado acto.
72. Quanto a esta questão, e atendendo às alegações e esclarecimentos apresentados ao
longo de todo o processo pela Cliuni, deve primeiramente esclarecer-se um primeiro
aspecto e que resulta do facto de a Cliuni ter vindo alegar, como visto,
i) que o médico que realizou o exame, “[o] Dr. R.V. é um médico
prestador de serviços desta clínica. Não existe uma relação de trabalho
subordinado entre o Dr. R.V. e esta instituição.”;
ii) que o exame efectuado “[…] foi decidido exclusivamente pelo médico
especialista, no âmbito da sua autonomia técnica que, nos termos da
Lei, a nossa instituição é obrigada a respeitar”; e que
iii) o médico em questão “[…] explicou antecipadamente à Sra. A. as suas
razões técnicas para a realização de uma ecografia obstétrica
morfológica”, a qual segundo “[…] a informação prestada pelo médico
[…] aceitou verbalmente a realização da mesma”.
73. Ressalta à evidência uma tentativa de desresponsabilização da Cliuni e concomitante
imputação de integral responsabilidade eventual pelos factos em análise ao médico
em questão;
74. O que constitui a assunção de uma posição totalmente contrária aos quadros legal e
contratual à luz dos quais devem ser analisados os factos e comportamentos sub
judice;
75. E que apenas poderá resultar de falta de conhecimento – desde logo censurável – dos
mesmos.
76. Efectivamente, quando a utente se desloca às instalações da Cliuni e solicita a
prestação de determinado exame ou serviço, e esta última aceita prestar o mesmo,
estabelece-se entre a Cliuni e a utente um contrato de prestação de serviços médicos;
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77. E que pacificamente se considera como genericamente enquadrado no disposto no
artigo 1154.º do Código Civil (CC), relativo ao contrato de prestação de serviço.
78. E é em resultado da existência de uma tal relação contratual estabelecida entre tais
contrapartes – utente e Cliuni – que esta última emitiu à utente o recibo n.º …, de
21.08.2007, enquanto quitação (e cumprimento dos deveres fiscais próprios e não de
terceiros) pelo pagamento por si recebido enquanto contraprestação da realização do
objecto (mediato) da relação jurídica estabelecida entre si e a utente ora reclamante.
79. E nesse quadro é, então, juridicamente irrelevante e indiferente o facto de a Cliuni ter
livremente entendido contratar “[o] Dr. R.V. [como] médico prestador de serviços desta
clínica”;
80. E independentemente de “Não exist[ir] uma relação de trabalho subordinado entre o
Dr. R.V. e esta instituição.”.
81. A Cliuni recorreu ao referido médico enquanto auxiliar para cumprimento do contrato
de prestação de serviços que estabeleceu com a utente;
82. Sendo portanto a Cliuni, nesse âmbito, o devedor do cumprimento da obrigação
convencionada.
83. Ora, “o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes
legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais
actos fossem praticados pelo próprio devedor” – cfr. n.º 1 do artigo 800.º do Código
Civil;
84. E independentemente da autonomia técnica de tais pessoas assim utilizadas para o
cumprimento da obrigação;
85. Ou até do eventual direito de regresso do devedor sobre as referidas pessoas
utilizadas como auxiliares de tal cumprimento.
86. Mas daqui também resulta que sobre a Cliuni impende o ónus de explicar cabalmente
a situação sub judice.
87. Na verdade, o escrutínio da execução dos serviços prestados à luz dos critérios da
responsabilidade civil, e quer se trate de uma relação contratual ou extracontratual,
21
assenta nos pressupostos do facto (controlável pela vontade do homem); ilicitude;
culpa; dano; e nexo de causalidade entre o facto e o dano;
88. Com a particularidade de, no que concretamente respeita ao âmbito contratual, que
“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso
da obrigação não procede de culpa sua” – n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil.
89. E então temos que a utente em questão recorreu à Cliuni para a realização de uma
ecografia obstétrica tendo entregue à Cliuni, aliás e para o efeito da marcação do
exame, a credencial da qual constava expressamente a prescrição do exame
ecografia obstétrica;
90. Sendo, consequentemente, a realização de tal exame o conteúdo da obrigação que a
Cliuni se obrigou a cumprir.
91. Acontece que – facto - o prestador de cuidados de saúde em questão, através de um
seu auxiliar, entendeu realizar um outro exame complementar de diagnóstico
(ecografia morfológica).
92. Desse facto, e enquanto resultado directo e necessário do mesmo (nexo causal),
resultou que a utente pagou € 61,00, ao invés de € 40,00 (dano).
93. E o que é certo é que o conteúdo da obrigação não cumprido ou, no limite, foi
deficientemente cumprido;
94. Pelo que não basta, seguramente, à Cliuni alegar que o seu auxiliar “[…] explicou
antecipadamente à Sra. A. as suas razões técnicas para a realização de uma
ecografia obstétrica morfológica”, a qual segundo “[…] a informação prestada pelo
médico […] aceitou verbalmente a realização da mesma”.
95. E tanto mais é assim quanto a Cliuni, de forma inexplicável e seguramente censurável,
permitiu afastar-se daquilo que era a prescrição médica efectuada à utente pela sua
médica assistente;
96. Ou seja, permitiu-se transmutar de mero executante da prescrição médica em
verdadeiro prescritor do exame.
97. E constituindo a prescrição – com suporte documental – simultaneamente o conteúdo
da obrigação contratual, não bastará à Cliuni, para cumprir o standard de prova a seu
22
cargo, que segundo “[…] a informação prestada pelo médico […]” a utente “aceitou
verbalmente” a realização de uma ecografia morfológica.
98. É assim, então, que se conclui pela existência, no caso concreto em análise, de um
comportamento da parte do prestador susceptível de se consubstanciar numa lesão
dos direitos e interesses legítimos, por violação dos direitos do utente ao
consentimento informado e esclarecido (al. e) do n.º 1 da Base XIV da Lei de Bases
da Saúde) e, consequentemente, de escolher livremente o agente prestador de
cuidados de saúde (al. a) do n.º 1 da Base XIV da Lei de Bases da Saúde).
III.3. Da realização de exame diferente daquele que havia sido inicialmente prescrito
99. Recorde-se que a utente reclamante refere, na sua exposição, que o exame que
marcou na Cliuni e que lhe havia sido prescrito pela sua médica assistente (in casu a
sua médica de saúde) foi uma ecografia obstétrica;
100. O que ademais é confirmado pela análise da própria requisição do SNS –
requisição n.º … - emitida pela Dra. M., Médica de família no Centro de Saúde de
Alameda (Lisboa), e da qual consta a indicação “Ecografia Obstétrica”7.
101. Acontece que não obstante ter sido uma “Ecografia Obstétrica” o exame que havia
sido prescrito pela médica assistente da utente, o exame que lhe foi realizado – ou
melhor dizendo, facturado - foi uma ecografia morfológica múltipla;
102. O que poderia consubstanciar a prática do ilícito contra-ordenacional de indução
artificial da procura de cuidados de saúde, previsto e punido nos artigos 43.º n.º 1
alínea a) e 44.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro.
103. Efectivamente, o utente dos serviços de saúde encontra-se tipicamente
prejudicado por uma assimetria de informação face ao prestador dos mesmos;
104. Sendo que, por tal facto e no momento do consumo de um bem ou serviço de
saúde, e por não possuir informação ou toda a informação relevante, regra geral
7 Recorde-se, contudo, que a utente é beneficiária do seguro de saúde da Advancecare, tendo sido
nessa qualidade que recorreu aos serviços da Cliuni.
23
delega a sua decisão sobre o que consumir e quando fazê-lo numa outra entidade
que possua essa informação: o agente da oferta (médicos e outros profissionais de
saúde).
105. E nesta delegação de direitos de propriedade sobre o consumo – ou seja, relação
de agência, em que aquele agente é o representante do principal (utente
consumidor) – é suposto que a tomada de decisão quanto ao consumo seja feita no
respeito integral das necessidades e preferências do utente consumidor.
106. Ora, quando o prestador não actua como agente perfeito do utente, ou seja,
quando decide de modo diferente do que o utente decidiria e, em particular, quando
toma a decisão comparando o seu benefício marginal (que inclui o do doente e as
suas preferências enquanto prestador) com o seu custo marginal, podemos estar
numa situação de indução artificial da procura;
107. E que ocorrerá, por exemplo e simplificando, quando o prestador pratique um acto
que o utente efectivamente não necessitaria;
108. Ou quando pratique um acto distinto daquele que o utente necessitaria;
109. Visando com isso obter, de forma directa ou indirecta, um benefício (monetário ou
outro) que de outro modo não obteria.
110. Assim, e sendo o acto “Ecografia Obstétrica” aquele que havia sido prescrito para
satisfação da necessidade da utente;
111. E tendo sido facturado o acto distinto “ecografia morfológica múltipla”;
112. O que, como visto, representa o benefício económico para o prestador
correspondente ao diferencial do preço entre os dois referidos actos (de € 40,00
para € 61,00);
113. Estaríamos, muito provavelmente, numa situação efectiva de indução artificial da
procura.
114. Sucede, porém, que conforme melhor resulta do Parecer emitido em 02.03.2009
pelo Consultor Médico da ERS, já supra referido,
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“[…] Segundo a DGS, considera-se ser três o número máximo de exames
ecográficos a realizar na gravidez de baixo risco e os períodos em que se
recomenda a sua realização são:
- 1.º Exame entre as 11 e 13 semanas;
- 2.º Exame entre as 20 e 22 semanas;
- 3.º exame entre as 28 e 32 semanas.
No que se refere ao 1.º Exame [11 a 13 semanas] é seu Objectivo Primário
a mediação do cumprimento craniocaudal fetal para determinação da idade
gestacional por via ecográfica e correcção da idade gestacional medida por
tempo de amenorreia, pelo que deverá sempre ser mencionada essa idade
gestacional ecográfica no dito exame. Quanto à avaliação morfológica do
feto, a 1.ª Ecografia tem detalhes morfológicos que poderão e se
recomenda que sejam avaliados (definidos como ecoanatomia no
relatório recomendado pela DGS), mas não se trata de uma ecografia
morfológica estrita (recomendada como 2.º exame, entre as 20 e 22
semanas) uma vez que tal se torna tacticamente impossível pelo
estadiamento e desenvolvimento do feto. Recomendam as legis artis
que [no 1.º exame] se vá o mais longe possível no detalhe anatómico e
na avaliação da vitalidade fetal, mas não se pode abusivamente
classificar esta ecografia como morfológica, uma vez que não exige
mais tempo de avaliação, não exige mais detalhe e capacidade dos
aparelhos ecográficos, nem maior diferenciação no técnico médico
que o executa, nem tal avaliação é permitida, repita-se, pelo
estadiamento e desenvolvimento do feto” – destaque nosso.
115. E disto resulta, neste caso concreto, uma impossibilidade de ter sido realizada à
utente, atento o seu estadiamento de gestação e desenvolvimento do feto, um
exame de ecografia morfológica;
116. Tanto mais que in casu a realização do acto tampouco implicava um maior detalhe
e capacidade dos aparelhos ecográficos, nem maior diferenciação no técnico
médico.
117. Mas daqui não resulta que o prestador tenha agido correcta ou licitamente.
25
118. Efectivamente, verifica-se que o prestador incorreu numa outra situação,
vulgarmente denominada por “up-coding” ou “up-charging” e que igualmente visa a
obtenção de benefícios que de outro modo não seriam obtidos.
119. O “up-coding” ou “up-charging” consiste, simplisticamente, em explorar a já
referida assimetria de informação e desconhecimento do utente consumidor, no
sentido de adulterar ou fazer uso de códigos ou nomenclaturas correspondentes a
acto(s) melhor remunerado(s) do que aquele(s) efectivamente realizado(s).
120. E tanto corresponde à situação aqui analisada;
121. Em que o prestador realizou de facto e verdadeiramente uma ecografia obstétrica
– e só assim se justifica que o relatório de tal exame nem sequer apresente
quaisquer elementos preenchidos na parte referente à “morfologia”;
122. E que corresponde ao acto que a utente necessitava e lhe havia sido prescrito;
123. Mas fez uso da nomenclatura “ecografia morfológica múltipla” para assim facturar
à utente um valor de € 61.00 ao invés do valor de € 40,00 correspondente à
nomenclatura “ecografia obstétrica”;
124. O que representa uma violação grosseira dos direitos e interesses dos utentes,
designadamente financeiros, e que à ERS cabe acautelar e fazer cessar.
III.4. Da não conservação de cópias dos registos clínicos das ecografias efectuadas às utentes
125. Por último, deve ainda cuidar-se da análise de uma eventual violação dos direitos
e interesses legítimos dos utentes decorrente da omissão de arquivo e conservação
de cópias dos registos clínicos das ecografias efectuadas às utentes.
126. Recorde-se que
“[…]
No que se refere ao arquivamento de cópias do registo clínico das
ecografias realizadas nas clínicas certificadas para o efeito, tal não é
obrigatório mas é recomendável e aconselhável, quer por motivos de
26
eventuais comparações futuras, quer por motivos de segurança clínica,
devendo ser arquivada uma cópia exacta do relatório entregue à paciente
ou ao médico assistente da mesma.” 8.
127. Sendo que porventura tanto assente, aliás, numa interpretação relativamente
permissiva do disposto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro.
128. Efectivamente, em tal dispositivo é estabelecido que
“A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados,
resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e
diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de
saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para
outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde
e outros estabelecidos pela lei.” – destaques nossos.
129. Ou seja, se porventura o respeito estrito de tal dever legal não passe
necessariamente pelo arquivamento de cópia exacta do relatório elaborado;
130. O mesmo passará, seguramente, pelo registo do resultado dos exames realizados
aos utentes.
131. Ora, recorde-se que por pedido de elementos de 12 de Dezembro de 2009, a ERS
solicitou à Cliuni que identificasse os correspondentes tempos de gestação das
utentes aquando da realização das ecografias obstétricas e ecografias morfológicas
por si realizadas;
132. Tendo a Cliuni alegado que “não guarda em arquivo essa informação”.
133. Ou seja, a Cliuni, enquanto unidade do sistema de saúde, não se encontrará a
organizar e arquivar, de forma completa, a informação de saúde dos seus utentes;
134. Designadamente os resultados dos exames de diagnóstico, como o sejam as
ecografias obstétricas e ecografias morfológicas realizadas;
8 Cfr. Parecer do Consultor Médico da ERS, de 02.03.2009, junto aos autos.
27
135. Sendo por demais evidente que os tempos de gestação das utentes, aquando da
realização de tais ecografias, é um dado essencial a constar de tal registo de
informação de saúde.
136. E sendo tal registo propriedade da pessoa, isto é, dos utentes, um tal desrespeito
de tratamento completo e correcto da sua informação de saúde por parte dos
prestadores de cuidados de saúde e sobre quem impende o dever de cuidado,
organização e depósito (o que equivale a arquivo) corresponde a uma violação dos
direitos e interesses dos utentes;
137. E que à ERS cabe acautelar e fazer cessar, nos termos do artigo 33.º, al. c) do
Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, ordenando à Cliuni a correcção imediata
da sua prática actual nesta matéria.
V. AUDIÊNCIA DE INTERESSADOS
138. A presente decisão foi precedida da necessária audiência escrita de interessados,
nos termos do art. 101.º n.º 1 do CPA, tendo sido chamados a pronunciar-se,
relativamente ao projecto de deliberação da ERS, o Cliuni – Clínica Unida, S.A. e a
exponente A.
139. A Cliuni exerceu o seu direito de pronúncia relativamente ao projecto de
deliberação em causa através de comunicação que deu entrada na ERS no dia 1 de
Junho de 2009;
140. Ainda que se tenha limitado a dar conhecimento, mediante envio de prova
documental, do cumprimento parcial da instrução contida no projecto de Deliberação
notificado;
141. Mais concretamente a constante da alínea a) do parágrafo n.º 137 do projecto
notificado, a qual estabelecia que:
“a) A Cliuni – Clínica Unida, S.A. deve reembolsar, de forma imediata, a
utente A. do valor correspondente à diferença entre o montante pago (€
61.00 correspondente à nomenclatura “ecografia morfológica múltipla”) e o
valor efectivamente devido (€ 40.00 correspondente à nomenclatura
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“ecografia obstétrica”), e relativo ao acto que lhe foi efectivamente
realizado;
[…]”.
142. Posteriormente, em 19 de Junho de 2009, foi contactada a exponente a qual
confirmou a recepção de um cheque que lhe havia sido endereçado pela Cliuni
contendo a quantia relativa à diferença entre o montante pago (€ 61.00
correspondente à nomenclatura “ecografia morfológica múltipla”) e o valor
efectivamente devido (€ 40.00 correspondente à nomenclatura “ecografia
obstétrica”), isto é, € 21,00.
143. Refira-se, então, que tendo-se verificado, a esse respeito, uma adequação do
comportamento da Cliuni, deixa de se mostrar necessário manter a instrução no que
se refere à devolução à exponente da quantia em causa.
144. Por outro lado, mantém-se válida e justificada a necessidade de emissão da
instrução no que se refere á necessidade da Cliuni garantir o arquivamento e
conservação de toda a informação de saúde, incluindo os dados clínicos
registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções
e diagnósticos, a qual é propriedade dos utentes;
145. Pelo que, quanto a esse ponto a ERS mantém in totum o seu entendimento já
constante do projecto de deliberação notificado.
29
VI. DECISÃO
146. O Conselho Directivo da ERS delibera, assim, nos termos e para os efeitos do
preceituado nos artigos 41.º, n.º 1 e 42.º, b) do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de
Maio emitir uma instrução à Cliuni – Clínica Unida, S.A. nos seguintes termos:
a) A Cliuni – Clínica Unida, S.A. deve garantir, de forma imediata, o integral e
permanente cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º
12/2005, de 26 de Janeiro, e assegurar o arquivamento e conservação de
toda a informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados,
resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e
diagnósticos, a qual é propriedade dos utentes.
b) A Cliuni – Clínica Unida, S.A. deve dar conhecimento à ERS, no prazo
máximo de 30 dias após a notificação da presente deliberação, de todas as
acções adoptadas para cumprimento da presente instrução.
147. A presente decisão será publicitada no sítio oficial da Entidade Reguladora da
Saúde, na Internet.
O Conselho Directivo