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Ventura, Deisy. “Pandemias e estado de exceção”. In: Marcelo Catoni e Felipe Machado. (Org.). CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: a resposta do constitucionalismo à banalização do terror. Belo Horizonte, MG: Del Rey/IHJ, 2009, p. 159-181. 1 PANDEMIAS E ESTADO DE EXCEÇÃO Deisy Ventura “Eu quero expressar por meio da peste o sufocamento que todos nós sofremos, e a atmosfera de ameaça e de exílio em que vivemos. Eu quero também estender esta interpretação à noção de existência em geral” (Camus, Carnets II, p. 72) 1. Introdução A pandemia 1 não é tema exclusivo de doutos especialistas. Um dos grandes romances do século XX, “A Peste”, de Albert Camus, é declaradamente uma metáfora do terror da Segunda Guerra mundial. Por que teria ele escolhido a peste como representação do mal? Provavelmente porque a epidemia “toca todos os domínios da sociedade e desorganiza a vida da cidade, [é] a única que coloca os cadáveres na rua, que muda a tal ponto as mentalidades” (BLONDEAU:1986, p.80). Logo, a metáfora de Camus não é datada. O que varia na história da humanidade não é a existência ou não da peste, que se sabe cíclica: oscilam apenas a sua amplitude e as suas circunstâncias. 1 Uma pandemia pode ser definida como um fenômeno patológico que alcança simultaneamente um grande número de pessoas, numa zona geográfica muito vasta. A diferença entre pandemia e epidemia é que, embora ambas consistam num forte aumento de casos de uma dada enfermidade, a dimensão da pandemia é maior, seja por sua propagação territorial, seja pela gravidade das ocorrências, o que resulta em número expressivo de casos severos ou mortes (VENTURA e SILVA: 2008, p.280). No momento em que se escreve este artigo, há uma pandemia gripal em curso. No dia 25 de abril de 2009, foi declarada uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em boletim do dia 6 de julho de 2009, a OMS reconhece que 94.512 pessoas estariam contaminadas pelo vírus Influenza A (H1N1), dito da “gripe porcina”, em 136 países. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, no dia 23 de julho de 2009 existiriam 1.583 casos graves da doença. De acordo com nota de 13 de julho do mesmo ano, cerca de 30% dos casos já seriam autóctones. O maior número de mortes foi anotado, até então nos Estados Unidos; Argentina e Chile são os líderes de casos letais na América Latina (OMS:2009). Na França, de acordo com nota do Instituto Nacional de Vigilância Sanitária de 21 de julho de 2009, estima-se que um terço da população seja contaminado até dezembro do mesmo ano.

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Ventura, Deisy. “Pandemias e estado de exceção”. In: Marcelo Catoni e Felipe Machado. (Org.). CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: a resposta do constitucionalismo à banalização do terror. Belo Horizonte, MG: Del Rey/IHJ, 2009, p. 159-181.

1

PANDEMIAS E ESTADO DE EXCEÇÃO

Deisy Ventura

“Eu quero expressar por meio da peste o sufocamento que todos nós sofremos, e a

atmosfera de ameaça e de exílio em que vivemos. Eu quero também estender esta

interpretação à noção de existência em geral”

(Camus, Carnets II, p. 72)

1. Introdução

A pandemia1 não é tema exclusivo de doutos especialistas. Um dos grandes

romances do século XX, “A Peste”, de Albert Camus, é declaradamente uma metáfora

do terror da Segunda Guerra mundial. Por que teria ele escolhido a peste como

representação do mal? Provavelmente porque a epidemia “toca todos os domínios da

sociedade e desorganiza a vida da cidade, [é] a única que coloca os cadáveres na rua,

que muda a tal ponto as mentalidades” (BLONDEAU:1986, p.80). Logo, a metáfora de

Camus não é datada. O que varia na história da humanidade não é a existência ou não da

peste, que se sabe cíclica: oscilam apenas a sua amplitude e as suas circunstâncias.

1 Uma pandemia pode ser definida como um fenômeno patológico que alcança simultaneamente um

grande número de pessoas, numa zona geográfica muito vasta. A diferença entre pandemia e epidemia é

que, embora ambas consistam num forte aumento de casos de uma dada enfermidade, a dimensão da

pandemia é maior, seja por sua propagação territorial, seja pela gravidade das ocorrências, o que resulta

em número expressivo de casos severos ou mortes (VENTURA e SILVA: 2008, p.280). No momento em

que se escreve este artigo, há uma pandemia gripal em curso. No dia 25 de abril de 2009, foi declarada

uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” pela Organização Mundial da Saúde

(OMS). Em boletim do dia 6 de julho de 2009, a OMS reconhece que 94.512 pessoas estariam

contaminadas pelo vírus Influenza A (H1N1), dito da “gripe porcina”, em 136 países. No Brasil, de

acordo com o Ministério da Saúde, no dia 23 de julho de 2009 existiriam 1.583 casos graves da doença.

De acordo com nota de 13 de julho do mesmo ano, cerca de 30% dos casos já seriam autóctones. O maior

número de mortes foi anotado, até então nos Estados Unidos; Argentina e Chile são os líderes de casos

letais na América Latina (OMS:2009). Na França, de acordo com nota do Instituto Nacional de Vigilância

Sanitária de 21 de julho de 2009, estima-se que um terço da população seja contaminado até dezembro do

mesmo ano.

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Dando razão à cantilena dos filósofos, para quem a vocação de qualquer crise sempre

foi desnudar as fraquezas de uma “cidade” ao levantar o véu que acoberta suas

insuficiências, a peste põe radicalmente à prova a sociedade democrática, seus

princípios, sua viabilidade histórica e seu sentido (SLEDZIEWSKI: 2007, p.12). Tanto

no romance como na vida, trata-se, então, menos de falar sobre a peste em si, e mais de

mostrar como se portam os homens diante dela (LÉVI-VALENSI:1991, p.56).

Sob o prisma do Direito, onde se lê pandemia, leia-se provável restrição das

liberdades fundamentais. A gramática da vigilância epidemiológica compreende a

quarentena, a limitação ou interdição de viagens, o recrudescimento do controle

fronteiriço ou mesmo o fechamento de fronteiras, a imposição de terapias, a restrição ou

supressão de reuniões públicas, a vacinação obrigatória, ou até ingerências no modo

como se realizam os funerais. Além das interdições mais visíveis, na cotidiana gestão da

escassez que toca aos sistemas de saúde dos países periféricos, a política pública a

conduzir uma urgência sanitária traz em seu bojo complexas decisões de fundo: quem

terá direito às primeiras vacinas? Quais serão as prioridades de tratamento médico e

acesso aos leitos hospitalares? Serão “quebradas” as patentes dos medicamentos

essenciais ao tratamento da enfermidade? Vê-se que, na saúde pública, mais do que em

qualquer outro campo, “a vida, que, com as declarações dos direitos, tinha sido

investida como tal do princípio de soberania, torna-se agora ela mesma o local de uma

decisão soberana” (AGAMBEN:2007, p.149).

Por conseguinte, para tratar do problema das pandemias no Estado democrático

de Direito, pouco interessa a prospectiva quanto ao advento ou a extensão da doença,

em que se lança irresponsavelmente grande parte dos formadores de opinião, hesitando

entre o alarmismo e a subestimação. O mundo está diante das primeiras pestes

globalizadas, cuja velocidade de contágio, sem precedentes, é inversamente

proporcional à lentidão paquidérmica do Direito. A gripe espanhola, por exemplo, que

fez cerca de 70 milhões de mortos entre 1918 e 1920, ocorreu numa época em que o

essencial da população mundial vivia no campo e, salvo em alguns países ocidentais,

ninguém sabia o que estava ocorrendo no país ao lado (DERENNE:2009). Hoje, para

que o combate às pandemias seja eficaz, ele deve restringir dois dos pilares

fundamentais da globalização econômica, que são a livre circulação de pessoas e a de

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mercadorias. Por outro lado, as pestes do presente disseminam-se numa conjuntura de

desigualdade econômica jamais vista.

Assim, os principais desafios que as pandemias trazem ao Direito são, em

primeiro lugar, como garantir o direito à saúde em contextos de exacerbação da crise,

eis que, ao menos nos países em via de desenvolvimento (PVDs), a saúde pública já

vive uma crise permanente; e, em segundo lugar, como conceber e gerir o “estado de

exceção”2 que se instala, em maior ou menor grau, diante de vultosos riscos sanitários.

Esta é uma discussão que deveria, por óbvio, preceder as pandemias. No entanto,

estamos em meio a uma delas sem que a sociedade, e nela particularmente a academia,

tenha travado o devido debate3. O presente artigo debruça-se justamente sobre a

tradução da pandemia no processo decisório e normativo de uma sociedade; dito de

outro modo, pretende ser um estudo embrionário da peste como fenômeno jurídico-

político.

No Ocidente, sabe-se que a fita métrica da excepcionalidade é, ou deveria ser, a

Constituição. A esta caberia definir quem tem o poder de decretar um estado de exceção

e por quais motivos; quem pode controlá-lo, e se a priori ou a posteriori; a que

princípios deve obedecer seu curso e quais são os seus limites. Por esta razão, em sua

primeira parte, o texto procura discernir as peculiaridades do estado de exceção

engendrado pelas pandemias. A seguir, do mesmo modo que Camus narrou a luta contra

2 No jargão da Organização das Nações Unidas, estão compreendidas nesta expressão as situações

designadas pelos seguintes termos: estado de urgência, estado de sítio, estado de necessidade, estado de

alerta, estado de prevenção, estado de guerra interna, suspensão das garantias, lei marcial, poderes de

crise, poderes especiais, toque de recolher, e todas as medidas adotadas pelos governos que submetem o

exercício dos direitos humanos a restrições que ultrapassam aquelas regularmente autorizadas em

situações ordinárias (DESPOUY: 1997, p. 8).

3 Em 2005, o bioquímico brasileiro Hernan Chaimovich alertou: “se o mundo tiver muita sorte, teremos

uma pandemia de influenza em cinco anos. (...) Se não tivermos muita sorte, ela ocorrerá daqui a dois

anos e, se realmente formos protegidos por uma força divina, não teremos essa pandemia – mas essa é

uma probabilidade muito baixa. Todos os especialistas em doenças infecciosas acreditam que o mundo

está prestes a padecer de uma pandemia. E, apesar de tudo que se sabe – no ano 1918 morreram vinte

milhões de pessoas no mundo vítimas da gripe espanhola – a sociedade em geral (e vamos chegar à

universidade em particular) aparentemente não está preocupada. Um importante estudo publicado nos

Estados Unidos questiona se o mundo está pronto para uma pandemia, e a resposta é muito clara: não. E a

pergunta que formulo é se a Academia pode ignorar este fato, da forma como ela o está ignorando. Uma

pandemia não se resume a um assunto específico de interesse exclusivo para os especialistas em doenças

infecciosas. Há problemas como: que fazer na cidade de São Paulo com cem mil doentes que precisam ser

internados de uma semana para a outra? Qual é a velocidade da propagação da pandemia? Como fazer

com o serviço de correio quando 30% do pessoal está doente? São problemas que a reflexão acadêmica

não pode dispensar” (p.261-2).

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a peste como metáfora da resistência a todas as formas de totalitarismo – e, inspirado no

ar do seu tempo, particularmente ao nazismo – aqui se pretende conceber o combate às

pandemias como metáfora contemporânea da resistência aos efeitos perversos da

globalização econômica. Contudo, as reações da maioria dos Estados à pandemia de

influenza em curso não dão sinais de caminhar neste sentido. Este artigo busca

demonstrar que os planos de contenção das pandemias têm servido antes como vetores

do que como diques contra os cataclismos político-jurídicos do nosso tempo. Na

segunda parte, indica que os poderes públicos geralmente omitem-se em relação à

imprescindível regulação detalhada das restrições aos direitos humanos no estado de

exceção e, ao fazê-lo, excluem do espaço público o debate sobre tais decisões. Ao final,

evidencia a incapacidade dos Estados de evitar que o agravamento da pandemia

recrudesça também a transposição das assimetrias sócio-econômicas para o contexto de

crise. O peso das urgências sanitárias é, portanto, desigualmente distribuído, fazendo

dos PVDs e, dentro deles, dos contingentes populacionais hipossuficientes, as suas

maiores vítimas.

2. Estado de exceção em nome da saúde pública

“Há no mundo tantas pestes quanto guerras. E, no entanto, as pestes e guerras pegam as

pessoas sempre tão desprevenidas” (CAMUS: 1947, p. 41).

Embora a proteção da saúde pública encontre-se entre as hipóteses da maior

parte das normas que justificam estados de exceção, cabe questionar: a

excepcionalidade ensejada por uma pandemia reveste-se da mesma natureza das

demais?

Seguramente não se trata do único campo onde se decide sobre a vida e a morte

em nome do interesse coletivo: é também o caso da guerra, ou até mesmo, para

Agamben, o problema da eutanásia: “se ao soberano, na medida em que decide sobre o

estado de exceção, compete em qualquer tempo o poder de decidir qual vida possa ser

morta sem que se cometa homicídio, na idade da biopolítica este poder tende a

emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder de decidir sobre o

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ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante” (2007, p.149). A

singularidade tampouco diz respeito ao número de mortos em diferentes países, entre

outras razões “porque um homem morto só tem peso se foi visto morto, cem milhões de

cadáveres semeados através da história são apenas uma fumaça na imaginação”

(CAMUS:1947, p. 42). De fato, entre doenças, fome, catástrofes naturais e guerras, não

há modo de estabelecer uma hierarquia quantitativa da mortandade humana que venha a

justificar diferentes graus de excepcionalidade. A exceção se justificaria pelo imperativo

de “conservação da civilização, mesmo nos casos em que cada um está inclinado a ser

regido apenas por seus próprios instintos” (PITCHO, 2007; p.40). Resta saber como a

democracia define e conserva a civilização diante do risco.

Ao pensar na “sociedade democrática” que as primeiras pestes da era da

globalização econômica estão a encontrar, tudo indica “um horizonte desumanizado e

niilista, povoado de tropas humanas padronizadas, tão inconsistentes quanto sedentas de

satisfações vulgares” (LIPOVETSKY: 2006, p. 324), numa sociedade hiperconsumista

em que predominam, em absoluto, os interesses individuais. A autonomia do sujeito

poderia, assim, ser compreendida na máxima “primeiro, eu”; em situação extrema, há o

forte risco de recurso a um esquema de autoproteção e autovalidação das normas que

pretendem organizar o mundo na perspectiva de um dado sujeito coletivo – um grupo,

uma “raça”, uma religião – e não de toda a humanidade (SLEDZIEWSKI: 2007, p.15).

Instala-se também um paradoxo: a comunhão de destino insinuada pela “invasão brutal”

da exceção na vida das pessoas deveria ter “por primeiro efeito o de obrigar nossos

concidadãos a agir como se não tivessem sentimentos individuais”, mas as mudanças

causadas pelas interdições são tão rápidas e extraordinárias que não é fácil tomá-las

como algo real; diante de um aparente pesadelo, “o resultado é que nós continuamos a

colocar em primeiro plano nossos sentimentos pessoais” (CAMUS:1947, p.68)

As situações de crise tenderiam, então, a multiplicar geometricamente os

elementos de uma espécie de “barbárie moral”. No entanto, as manifestações de

altruísmo, as reações de indignação em diferentes espaços públicos e, sobretudo, as

redes de solidariedade que se multiplicam em âmbito mundial, lançam dúvidas sobre o

clichê da deslegitimação de todos os valores: o tempo presente parece menos refém do

cinismo e do relativismo generalizados, e mais propenso ao renascimento da

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interrogação moral que se deve “ao recuo da política e à falência dos grandes sistemas

de sentido” (LIPOVETSKY: 2006, p.327).

A política encontra-se, de fato, acuada. De um lado, pelo descrédito que conduz

a solidariedade a outros modos de expressão social, distantes da política tradicional. De

outro, pela criação voluntária de um “estado de emergência permanente” que, apesar de

não declarado formalmente, converteu-se, segundo Giorgio Agamben, numa das

principais técnicas de governo do Estado democrático contemporâneo, transformando a

estrutura e o sentido das distinções tradicionais entre os diversos tipos de Constituição

(2004, p. 13). O estado de necessidade é interpretado como uma lacuna no direito

público, a que o Poder Executivo é obrigado a remediar (idem, p.48). O aspecto

normativo do Direito encontra-se, assim, “impunemente eliminado e contestado por

uma violência governamental” que, embora ignore no âmbito externo o direito

internacional e produza no âmbito interno um estado de exceção permanente, comete a

desfaçatez de apresentar-se como modo de “aplicação” do direito (idem, p. 131).

Não por acaso, a teoria do estado de exceção permanente de Agamben produz-se

na esteira da crítica à obsessão securitária que sucedeu os ataques de 11 de setembro4.

Particularmente nos campos do direito constitucional e do direito internacional, um

campo reflexivo procura retratar criticamente os danos que a “guerra contra o terror”

vem produzindo no catálogo de direitos e liberdades que caracteriza o

constitucionalismo moderno, com especial atenção ao “tempo e o espaço subtraídos” na

baía de Guantanamo (PAIXÃO:2009, p.386) – mais do que um campo de prisioneiros

de guerra, trata-se de um espetáculo: “uma horrenda demonstração do que pode

acontecer com os homens que escolhem jogar fora das regras do jogo”

(COETZEE:2008, p. 29). Como lugar de não-direito, em que as violações de direitos

4 Não que o terrorismo seja novidade histórica. É curioso ler, por exemplo, o início de um artigo

publicado nos anos 1980, acerca do terror na obra de Camus: “O espectro do terrorismo assombra o

mundo contemporâneo. As Brigadas Vermelhas, o Bando de Baader, a FPLP, o ETA, o IRA, Carlos,

Abou Nidal, sem esquecer os diversos esquadrões da morte, fizeram deste final de século o tempo dos

assassinos que Camus havia, com todas as suas forças, buscado conjurar. O problema do terrorismo nele

se situa na encruzilhada de um tema literário, o assassinato; de uma meditação filosófica sobre os fins e os

meios, a culpabilidade e a inocência, a legitimidade ou a ilegitimidade da violência; enfim, uma reflexão

política sobre a democracia e o totalitarismo” (GUÉRIN:1987, p. 39). Diga-se de passagem, a “piscadela”

da primeira frase está relacionada à crítica do marxismo que Guérin desenvolve naquele estudo.

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humanos tornaram-se sistemáticas5, Guantanamo seria, porém, apenas a expressão

extrema de uma prática generalizada, eis que “o estado de exceção, hoje, atingiu

exatamente seu máximo desdobramento planetário”; a cultura política do Ocidente teria

perdido por inteiro, e sem dar-se conta, os princípios que a fundam, precisamente no

momento em que gostaria de dar lições de democracia a culturas e tradições diferentes

(AGAMBEN:2004, p.33) 6

.

Com efeito, o paralelo entre a luta contra o terrorismo e o combate às pandemias

parece auspicioso e, embora não possa ser desenvolvido no modesto âmbito deste

artigo, vale ao menos esboçá-lo. A definição de terrorismo constitui o principal

obstáculo às negociações multilaterais em matéria de segurança: para alguns, sendo

essencialmente uma alcunha política, não se trata de um conceito juridicamente

aceitável (SASSOLI: 2007, p.32); para outros, “os atos de terrorismo são previstos,

definidos e incriminados pelo direito internacional” (DOUCET:2005, p.265). Todos

reconhecem, porém, a extrema sensibilidade do debate sobre os eventuais elementos

constitutivos desta definição, com destaque para o direito de resistência à ocupação

estrangeira como excludente da tipificação, ou a inclusão, como forma de terrorismo, do

uso, pelo Estado, das forças militares contra a população civil (idem, p.264). Ora, a

depender do conceito, não somente esta, mas um conjunto significativo de práticas

estatais pode ser considerado como terrorismo. Há, porém, uma diferença substancial

5 “Alguém deveria fazer um balé com o título de Guantanamo, Guantanamo! Um grupo de prisioneiros

acorrentados uns aos outros pelos tornozelos, grossas mitenes de feltro nas mãos, protetores de orelhas,

capuzes pretos na cabeça, faz a dança dos perseguidos e desesperados. Em torno deles, guardas de fardas

verde-oliva se empinam com demoníaca energia e ânimo, aguilhões de gado e cassetetes em prontidão.

Eles tocam os prisioneiros com os aguilhões e os prisioneiros saltam; submetem e imobilizam os

prisioneiros no chão, enfiam os cassetetes em seus ânus e os prisioneiros têm espasmos. Num canto, um

homem sobre pernas-de-pau com a máscara de Donald Rumsfeld alterna a escrita em seu pódio com

danças de pequenas gigas estáticas. Um dia, isso será feito, embora não por mim. Poderá até ser um

sucesso em Londres, Berlim e Nova York. Não terá qualquer efeito nas pessoas que são o seu alvo, que

não ligam a mínima para o que as platéias de dança pensam delas” (COETZEE:2008, p. 46).

6 A escolha de Agamben como marco teórico para o manuseio do estado de exceção no âmbito deste

artigo não ignora as críticas a sua polêmica tese. Por exemplo: “o direito, a exemplo da língua, não é

fascista, e sim reacionário. Ele é reacionário porque ele sempre vem ‘depois’. Ele vem ‘depois’ de alguém

‘já’ ter decidido, depois de alguém ‘já’ ter falado. Trata-se do paradoxo constitutivo do direito e da

linguagem. A necessidade de ‘dizer’ algo, a necessidade de ‘decidir’ algo, só existe porque alguém ‘já’

disse algo, porque alguém ‘já’ decidiu algo. A violência pura, não o foi o direito quem criou, e sim o

tempo. Porque o tempo destrói as possibilidades não consumadas. Ele decide que o passado será

irreversível. É então o tempo que é fascista, e não o direito, que sobrevém sempre ‘depois’. Ora, ‘mostrar’

o tempo, como propõe Agamben, não é um gesto político, mas um gesto contemplativo. O tempo passa e

alguém ‘já’ decidiu, e este é o limite insuperável de todo o pensamento anarquista. É também o que se

chamava, no passado, a realidade” (DUBREUIL:2004, p.202-3).

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entre o terror praticado pelo Estado e aquele perpetrado por indivíduos ou grupos:

enquanto o terrorismo de um grupo mata, o terrorismo de Estado mata e tiraniza

(GUÉRIN:1987, p.44). Ademais, enquanto o terrorismo de um grupo se justifica no plano

individual ou numa carta programática, o terror de Estado toma para si a noção de

interesse público, o que supostamente legitima o desfrute do monopólio da violência

legítima.

No cotejo entre o estado de exceção gerado pela luta contra o terrorismo e a

exceção fundada na pandemia, dois aspectos merecem maior destaque. Primeiro, uma

diferença: no caso do terrorismo, o modo como o Estado, ele mesmo, incute o terror na

população e pratica o terror contra os “adversários” que institui. Em geral, a pandemia

incute o terror na população por intermédio dos meios de comunicação, e

secundariamente pela via das religiões, quase sempre contra os interesses do Estado e

do setor privado que, em princípio, pouco teriam a ganhar com o pânico7.

Ocorre que tanto na exceção securitária quanto na sanitária pode haver um

“inimigo comum” que seria identificado como o portador do mal. Nas doutrinas de

segurança nacional, é fácil rotular o “comunista” ou o ator “ideológico” (sendo o Estado

supostamente “neutro”). No mundo pós-11 de setembro, teme-se a população

muçulmana, como se não existissem outros fundamentalismos, religiosos ou não. Em

relação à peste, ela parece, de início, uma abstração. Mais adiante, com a evolução da

pandemia, o terreno do medo passa a ser fértil para a estigmatização de estrangeiros (os

mexicanos no início do surto de gripe porcina, por exemplo, discriminados nos Estados

Unidos como “responsáveis” pela epidemia), de grupos de risco (como no caso da

AIDS em relação aos homossexuais) ou de profissões (carreiras da saúde; ou pessoas

que trabalham em criação de animais, no caso das gripes aviária e porcina). Salta aos

olhos que a mobilização social fundada no medo, tão contagioso quanto as doenças

infecciosas, mostra-se incompatível com a democracia, e produz efeitos nefastos a

médio e longo prazo.

7 “É sem dúvida o descrédito das políticas que se soma, aqui, aos velhos espectros do envenenamento

coletivo e da contaminação mortal nas sociedades industriais cujos membros não conhecem mais a

origem da maior parte do que comem” (NAU:2005, p.2).

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Ademais, parece haver algo em comum na força do argumento de restrição dos

direitos humanos em nome da preservação da vida, representada, em ambos os casos,

pela inconteste equação do predomínio da segurança ou da saúde pública, como

interesse coletivo, sobre os interesses individuais. Ora, o meio-ambiente, embora

igualmente crucial para a preservação da civilização, até então jamais justificou estados

de exceção que implicassem restrições extraordinárias de direitos. O aspecto econômico

do fenômeno pandêmico será mencionado ao final deste artigo; por ora, cabe ressaltar

que tanto o combate contra o terrorismo como a luta contra as pandemias constituem

um valor agregado significativo para duas das mais importantes indústrias no plano

mundial: a armamentista e a de medicamentos.

Logo, torna-se decisivo saber quem enuncia o interesse público na democracia.

Ocorre que, tanto na tutela da saúde como da segurança pública, a subsistência do

estado de necessidade pretensamente esgotaria o problema da legitimidade do estado de

exceção, tanto para quem considera que “a necessidade não conhece nenhuma lei”,

como para quem propugna que “a necessidade cria a sua própria lei”

(AGAMBEN:2004, p.40). No entanto, pensar a necessidade como situação objetiva

seria de todo ingênuo: a necessidade, longe de mostrar-se como um dado objetivo,

implica claramente um juízo subjetivo: “necessárias e excepcionais são, é evidente,

apenas aquelas circunstâncias que são declaradas como tais” (idem, p.46).

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Ventura, Deisy. “Pandemias e estado de exceção”. In: Marcelo Catoni e Felipe Machado. (Org.). CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: a resposta do constitucionalismo à banalização do terror. Belo Horizonte, MG: Del Rey/IHJ, 2009, p. 159-181.

10

3. Direito da urgência e da necessidade

“Sim, diz Rieux, é o mesmo enterro, mas hoje nós fazemos fichas. O progresso é

incontestável” (CAMUS:1947, p.162).

Antes de mais nada, é preciso afirmar, sem hesitação – e numa radical oposição

à idéia de que a necessidade dispensa ou cria a lei – que certos direitos jamais poderão

ser objeto de suspensão: o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a

um trato humano, a proibição da escravidão, o princípio da não-retroatividade das leis, a

liberdade de consciência e religião, a proteção da família, o direito a um nome, os

direitos das crianças, o direito à nacionalidade, o direito de participar do governo e as

garantias judiciais essenciais, particularmente o habeas corpus e o mandado de

segurança (CIDH:2002,§52). A transigência no que concerne a estas prerrogativas

desmente a razão de ser do Direito; não mais se trata de ordem jurídica, e sim de

medidas de arbítrio. Desafortunadamente, a história mostra que mesmo os mais

explicitamente anti-jurídicos estados de exceção tiveram seus juristas de plantão,

vorazes em travestir de norma o puro terror.

No mesmo diapasão, o direito internacional, embora admita o estado de exceção,

preconiza o respeito, em qualquer caso, malgrado a excepcionalidade das

circunstâncias, dos seguintes princípios, enunciados em convenções internacionais ou

consolidados na jurisprudência internacional: legalidade – a possibilidade de decretação

deve estar prevista na Constituição; proclamação – medida pública sob a forma de uma

declaração oficial passível de controle interno, que descreva a situação excepcional em

curso, o campo de aplicação territorial, o período de duração, as medidas autorizadas e

as interdições, e o fundamento legal; notificação – endereçada à comunidade

internacional como condição da impossibilidade temporária de atendimento a dadas

obrigações, atendidos os mesmos requisitos da proclamação; transitoriedade – as

medidas não podem tornar-se rotineiras e devem limitar-se ao tempo estritamente

imprescindível; ameaça excepcional – perigo atual ou iminente que ameace toda a

população de um Estado e própria existência organizada da comunidade, diante do qual

a ordem jurídica ordinária seja manifestamente insuficiente; proporcionalidade –

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adequação entre as medidas adotadas e a gravidade da crise; não discriminação – as

restrições devem atingir igualmente a todos, e jamais visar em particular a raça, cor,

sexo, origem social, idioma ou religião; compatibilidade, concordância e

complementaridade com as normas internacionais (DESPOUY: 1997, p. 15-25).

A Constituição brasileira prevê dois tipos de estado de exceção: o de defesa,

“para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a

ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade

institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136,

caput); e o de sítio, em caso de “I - comoção grave de repercussão nacional ou

ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de

defesa” ou de “II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada

estrangeira” (art. 137)8. No Brasil, compete ao Presidente da República decretar tanto o

estado de defesa como o de sítio, ambos controlados pelo Congresso Nacional: o

primeiro a posteriori (o Presidente submete-lhe a decretação em 24 horas), o segundo a

priori (o Congresso autoriza e mantém-se reunido durante todo o período do estado de

sítio).

Ora, não se pode imaginar uma noção de ordem pública que exclua a saúde9. No

entanto, ainda falta no direito brasileiro a regulamentação específica sobre situações

especiais vinculadas à saúde pública10

. Se é verdade que as medidas tomadas durante

8 No estado de sítio, admite a Constituição Federal restrições aos direitos de: “a) reunião, ainda que

exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e

telefônica; II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública,

respondendo a União pelos danos e custos decorrentes” (art. 136). No estado de defesa, só poderão ser

tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: “I - obrigação de permanência em localidade

determinada; II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; III -

restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de

informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV - suspensão da

liberdade de reunião; V - busca e apreensão em domicílio; VI - intervenção nas empresas de serviços

públicos; VII - requisição de bens (art. 139).

9 Originário do direito administrativo francês, e de extrema subjetividade, o conceito de ordem pública é

utilizado, com matizes diversos, por também variados ramos do direito. “A expressão ordem pública

representa os elementos fundamentais que ligam e unificam todo sistema legal. Representa o interesse

social do conjunto da sociedade e deriva das fundações culturais e morais da sociedade. (...) Comumente,

o conceito de ordem pública é usado pelos países em direito interno e em direito internacional privado

(...). A ordem pública em direito internacional público foi contestada durante muitos anos; ela é hoje

aceita como parte da evolução do direito constitucional internacional” (WEBER:2009, p.61).

10 “O dilema de regulamentar ou não as restrições aos direitos humanos evoca o duplo paradigma que

atinge o campo do direito por uma ambigüidade essencial. De um lado, há uma tendência normativa, em

sentido estrito, que visa a cristalizar-se num sistema rígido de normas cuja conexão com a vida é, porém,

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um estado de emergência são autoritárias, também o é que o interesse coletivo deve

primar, em princípio, sobre o interesse individual em caso de colisão. O autoritarismo

inaceitável seria, então, a recusa de debater a exceção antes que ela ocorresse. Via de

conseqüência, pensar o regime excepcional da urgência sanitária de modo democrático é

fazer o esforço de imaginar meios de enquadrar democraticamente as necessárias

restrições (KOROLITSKI:2007, p. 36).

Como medir, porém, a necessidade e a excepcionalidade na seara sanitária,

quando se leva em conta que “a saúde terá sempre um conceito próprio em cada

comunidade” (DALLARI: 2009, p. 99) e que, na maior parte das Constituições, a saúde

pública é gerida por entes federativos concorrentes? A gestão em saúde torna-se

inviável num quadro de concentração de poder, tanto no que atine à relação entre Estado

e sociedade11

, como no que diz respeito às decisões tomadas pelas diferentes pastas do

Executivo e, sobretudo, por diferentes esferas de governo12

. O Plano Brasileiro de

Preparação para uma Pandemia de Influenza refere diretamente a necessidade de “criar

mecanismos de articulação e cooperação entre os entes federativos para que estes

possam, em eventuais situações de emergência, implementar ações rápidas de controle

de epidemias. Esses mecanismos devem prever formas de atuação complementar da

União para quando os demais entes federativos não forem capazes de conter as

epidemias existentes, tendo em vista o risco que o alastramento poderia provocar para

toda a sociedade brasileira” (MINISTÉRIO DA SAÚDE:2006, p.146).

problemática, senão impossível (o estado perfeito de direito, em que tudo é regulado por normas). De

outro lado, uma tendência anômica que desemboca no estado de exceção ou na idéia do soberano como

lei viva, em que uma força de lei privada de norma age como pura inclusão da vida”

(AGAMBEN:2004,p. 111). A palavra lei é propositadamente riscada pelo filósofo, que denuncia “a força

de lei separada da lei, o imperium flutuante, a vigência sem aplicação e, de modo mais geral, a idéia de

uma espécie de ‘grau zero’ da lei, são algumas das tantas ficções por meio das quais o direito tenta incluir

em si sua própria ausência e apropriar-se do estado de exceção ou, no mínimo, assegurar-se uma relação

com ele” (idem, p.80).

11 Há um imenso desnível entre a opinião pública e a dos especialistas. Segundo um estudo da Comissão

Européia, no qual foram entrevistados 600 profissionais de diversas áreas e nacionalidades, as doenças

infecciosas constituem a primeira urgência internacional, maior até que o terrorismo; paradoxalmente,

todos, menos o “grande público”, estão conscientes das possíveis conseqüências de uma epidemia de

gripe que seria capaz de fazer mais vítimas do que a gripe espanhola de 1918 (MORDINI:2007, p.23).

12 Note-se que “o real problema da descentralização ocorrida pós-1988 é a falta de planejamento,

coordenação e cooperação entre os entes federados e a União, ou seja, a falta de efetividade da própria

Constituição e do federalismo nela previsto” (BERCOVICI:2004, p.72).

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13

No entanto, o trecho do Plano brasileiro que mais chama a atenção é aquele que

propugna a criação de um “Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica”, em

detrimento das tendências de ausência de regulação ou da regulação mínima – por

exemplo, a edição de uma lei específica ou, ainda pior, um ato normativo do Poder

Executivo sobre quarentena ou outra sobre fechamento de fronteiras. No mesmo

diapasão, o Plano reputa “necessário prever, para a tomada de decisões em situações de

emergência epidemiológica, procedimentos e órgãos decisórios democráticos”,

harmonizando a atuação dos fóruns já existentes e criando um órgão representativo

específico que reúna não somente agentes do governo como também representantes da

sociedade civil: “médicos, advogados, usuários do sistema, cidadãos representativos,

etc.” (idem).

Na falta deste sistema e de uma discussão nacional a este respeito13

, prossegue

em vigor a Lei 6.259, de 30 de outubro de 1975, incipiente e anacrônica em relação à

vigilância epidemiológica em geral, e silente no que atine às restrições a direitos

fundamentais. Um dos piores efeitos da pandemia gripal vivida atualmente poderia ser,

então, o de levar o governo federal, sob a pressão do aumento de número de casos

graves, a anunciar uma norma sobre exceção desvinculada de uma compreensão global

do problema da vigilância epidemiológica, e particularmente do reconhecimento da

necessidade de criar uma estrutura eficaz de prevenção e combate às epidemias, da qual

as normas sobre restrição de direitos são apenas um recurso extremo14

.

A omissão do direito interno é ainda mais grave na medida em que se conforma,

no plano internacional, um direito de ingerência sanitária. O reconhecimento da

13

Em 2006, o Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário (CEPEDISA) da Universidade de São

Paulo apresentou, a pedido do Ministério da Saúde, um anteprojeto de “Lei das Emergências de Saúde

Pública de Relevância Nacional”, que foi discutido em alguns âmbitos acadêmicos e de governo, mas

hoje parece estar fora da pauta da crise pandêmica. Para Maria Célia Delduque, da Fundação Osvaldo

Cruz, caso aprovado aquele anteprojeto de lei, o Estado poderia “saber quem são os cidadãos que estão

sofrendo medidas sanitárias, a fim de garantir que não aconteçam abusos”; para Sueli Dallari, do

CEPEDISA, “na hora em que você determina quais são as garantias e fixa um procedimento para que a

autoridade possa tomar determinadas atitudes, as pessoas passam a ter os seus direitos mais garantidos, o

que não acontece na lei hoje” (LÔBO:2007).

14 Por exemplo, a Defensoria Pública da União anunciou, no Rio de Janeiro, em 23 de julho de 2009, a

propositura de uma ação civil pública contra a União, o Estado e o Município do Rio Janeiro, por omissão

na prevenção e combate à epidemia de gripe A(H1N1), sob o argumento de que o atendimento prestado

pelo “serviço público de saúde do Rio foi precário desde os primeiros sinais da doença no estado,

prejudicando centenas de pessoas e contribuindo para a proliferação da epidemia e as mortes”

(BASTOS:2009).

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14

existência de uma pandemia, que pode vir a fundar medidas excepcionais, depende de

uma engrenagem complexa entre os Estados e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

A principal razão de existir da OMS é “administrar o regime mundial de luta contra a

propagação internacional das doenças”, como preconiza o Preâmbulo do Regulamento

Sanitário Internacional (RSI). A decisão sobre a existência de uma “urgência de saúde

pública de alcance internacional” compete à Organização Mundial da Saúde, de acordo

com o procedimento previsto pelo Regulamento Sanitário Internacional, revisado em

2005 (particularmente o artigo 12 e o Anexo 2). O anexo 2 do Regulamento contém um

“instrumento de decisão que permite avaliar e notificar eventos que possam constituir

uma urgência de saúde pública internacional”, baseado essencialmente nas seguintes

perguntas: as repercussões do evento sobre a saúde pública são graves? O evento é

inabitual ou inesperado? Há um risco importante de propagação internacional? Há um

risco importante de restrição a viagens internacionais ou ao comércio internacional?

Uma vez declarada uma situação de urgência de saúde pública de alcance

internacional, um sistema de identificação de fases permite mensurar tanto a gravidade

de uma pandemia como das medidas que a ela respondem15

. As recomendações da

OMS, previstas no Título III do RSI, podem ser temporárias ou permanentes. As

temporárias concernem medidas sanitárias que devem ser aplicadas pelo(s) Estado(s)

Parte(s) “no que concerne às pessoas, às bagagens, cargas, containers, meios de

transporte, mercadorias e/ou embalagens postais, para prevenir ou reduzir a propagação

da enfermidade e evitar todo entrave inútil ao tráfico internacional” (art. 15.1 RSI).

Assim, uma das peculiaridades do estado de exceção justificado pela pandemia é

precisamente o fato de que sua decretação depende de um procedimento de cooperação

internacional. A OMS depende da notificação dos Estados para a decretação de uma

urgência, mas opera uma nítida ingerência em seus assuntos, em nome do interesse

público mundial, no combate a esta mesma urgência. O campo de disputa política do

15

“A determinação de fases em uma pandemia é uma iniciativa que a Organização Mundial da Saúde

desenvolveu para a Influenza a partir de um grupo de peritos no assunto. Temos a Fase 1, caracterizada

pela detecção da existência do vírus circulando em animais, mas sem relatos em humanos. Foi o que

aconteceu com as pequenas epidemias em criação de porcos, principalmente nos EUA. A Fase 2 significa

que o vírus apresentou modificações que podem infectar humanos. A Fase 3 caracteriza infecção em

humanos sem transmissão de pessoa a pessoa. A Fase 4 é decretada quando há transmissão de pessoa a

pessoa. A Fase 5 também representa transmissão de pessoa a pessoa, mas em pelo menos dois países de

uma mesma região da OMS. E a fase 6 significa que essa transmissão ocorreu em pelo menos mais um

país de uma outra região da OMS em adição à Fase 5” (MEDRONHO:2009).

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15

qual resulta a regulamentação destas situações excepcionais, via de conseqüência,

excede largamente a dimensão nacional, configurando um problema

transconstitucional16

, cujo deslinde, via de regra, acaba por depender do recurso à

jurisdição.

No plano interno, mas de modo crescente também pela via da jurisdição

internacional – especialmente dos tribunais regionais de direitos humanos –, os juízes

devem cumprir o papel fundamental de fiscalizar a aplicação dos princípios que coíbem

o uso abusivo de medidas de exceção. Não se pode negar aos magistrados o poder de

questionar os motivos que levam os Estados a suspender direitos, tampouco o de valorar

a justa adequação entre as medidas adotadas e a gravidade da situação, além de declarar

a ilegalidade das medidas que se baseiem exclusivamente em motivos discriminatórios

(DESPOUY: 2008, p. 7-8).

No caso específico das pandemias, as principais questões que se colocam aos

juízes parecem estar relacionadas às prioridades de tratamento. Seria equitativo que as

populações de risco, não raro as pessoas mais vulneráveis, fossem desprezadas em

benefício daqueles que dispõem dos meios para se proteger e eventualmente de tratar-

se? O controle das decisões do Poder Executivo pela autoridade judiciária poderia ser

descartado em nome da maior eficácia do dispositivo de luta contra pandemia, em

detrimento do respeito às liberdades públicas? Finalmente, “como prevenir sem

excluir”? (MAGENDIE:2007, p.7).

4. Considerações finais: a multiplicação geométrica da desigualdade

“Nos países pobres, onde os sistemas de saúde normalmente são frágeis, teme-se que morra

um grande número de doentes que, se tratados, poderiam ser salvos. (...) Hoje nós temos

um nível de informação bem avançado em matéria sanitária, e todos saberão que os ricos

terão deliberadamente deixado morrer milhões de pobres” (DERENNE:2009).

16

“Cada vez mais, problemas de direitos humanos ou fundamentais e de controle e limitação do poder

tornam-se concomitantemente relevantes para mais de uma ordem jurídica, muitas vezes não estatais, que

são chamadas ou instadas a oferecer respostas para a sua solução. Isso implica uma relação transversal

permanente entre ordens jurídicas em torno de problemas comuns. (...) Em face dessa situação, introduzo

o conceito de transconstitucionalismo. Não se trata, portanto, de constitucionalismo internacional,

transnacional, supranacional, estatal ou local. O conceito aponta exatamente para o desenvolvimento de

problemas jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas” (NEVES:2009, p.XV).

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16

Face aos perigos sanitários, a democracia não pode deixar de tomar um partido

ético que consiste em colocar o homem no centro de todas as decisões e de defender sua

humanidade (SLEDZIEWSKI: 2007, p.14). No entanto, nas últimas décadas, as redes

de poder foram deslocadas para o campo da administração macroeconômica global. Ao

abrir mão do controle das políticas monetária e fiscal, os Estados operaram uma “erosão

da autoridade pública e o esgarçamento da solidariedade nacional, despolitizando

radicalmente as relações econômicas e reduzindo ao mínimo a vida democrática”,

particularmente nos países periféricos, lançados a um “estado de exceção econômico

permanente” (BERCOVICI:2006, p. 98).

A saúde pública constitui, sem dúvida alguma, um campo privilegiado para o

estudo dos efeitos nefastos da globalização econômica. A situação sanitária

internacional revela um desolador quadro de subsistência de enfermidades devidas

exclusivamente à pobreza. As pandemias gripais recentes costuram uma frágil

intersecção entre ricos e pobres, pouco favorável aos segundos:

“Por ser um vírus novo, a suscetibilidade da população é total e em escala mundial. Claro

que temos outras preocupações no nosso campo no hemisfério Sul, e que também são muito

graves. Mas quando a imprensa começa a contar os casos confirmados, acaba causando

temor na população. Costumo perguntar aos jornalistas que me procuram porque não contar

os casos de óbitos por tuberculose no Brasil. São cerca de cinco mil por ano, o que dá a

média de 12 a 14 casos por dia. Imagine ter diariamente na primeira página dos jornais que

os casos de tuberculose aumentam cada dia. Fico imaginando que impacto isso teria do

ponto de vista do controle da doença, pois isso significaria uma relativa redução deste grave

problema de saúde pública. Claro que a tuberculose não é uma ameaça às classes

dominantes; é uma doença que fica muito oculta na sociedade, atingindo as classes menos

favorecidas” (MEDRONHO:2006).

Por tudo isto, o debate público sobre as pandemias deveria abranger os efeitos da

exclusão econômica sobre a origem da propagação e acerca do combate à doença17

. Na

17

Um dos primeiros títulos que Camus imaginou para “A Peste” foi “Os Exilados”; o título que ele

atribuiu a um extrato que publicou do livro foi “Os Exilados na Peste” – de fato, durante todo o romance,

ele insiste na idéia de separação (GRENIER:1987, p.177). Esta idéia pode ser trabalhada sob diversos

ângulos, entre eles o do duplo isolamento imposto aos desvalidos: “As famílias pobres encontravam-se,

assim, numa situação muito penosa, mas às famílias ricas quase nada faltava. Enquanto a peste, pela

imparcialidade eficaz que trazia em sua obra deveria ter reforçado a igualdade entre os cidadãos, pelo

jogo normal dos egoísmos, ao contrário, ela tornava mais agudo no coração dos homens o sentimento de

injustiça. Restava, evidentemente, a igualdade impecável da morte, mas esta ninguém queria. Os pobres,

que sofriam a fome, pensavam, com ainda maior nostalgia, nas cidades e nos campos vizinhos, onde a

vida era livre e onde o pão não era caro. Porque eles não podiam alimentar-se suficientemente, eles

tinham o sentimento, aliás pouco razoável, de que deveriam deixá-los partir. Tanto que uma palavra de

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relação entre o mundo desenvolvido e o em via de desenvolvimento, destaca-se a

questão das patentes de vacinas e medicamentos:

“Uma outra pergunta que falta, na reflexão existente, tem a ver com questões relacionadas à

pesquisa, à produção e às patentes. Existe um único antiviral que é medianamente efetivo

contra a influenza. Ele é produzido pela Roche e ela não tem capacidade sequer de produzir

vacina suficiente se a gripe vier daqui a um ano e meio ou dois. Se isso acontecer, o Brasil

vai ter que decidir se quebra a patente, e não podemos pensar que é um problema ético ou

político, pois é um problema de sobrevivência de cerca de seis milhões de brasileiros. Não

podemos tomar a decisão de quebrar ou não a patente quando a pandemia já estiver

instalada.” (CHAIMOVICH:2005, p. 263).

Diante da atual propagação da enfermidade, a fim de coibir um movimento

político em direção à quebra da patente do medicamento acima referido, a principal

empresa fabricante deflagrou uma ofensiva de comunicação, com respaldo amplo da

OMS. A transnacional doou 5,65 milhões de tratamentos à organização; criou,

igualmente, um “programa” para facilitar o acesso dos países em via de

desenvolvimento (PVD) ao medicamento, que compreende a diferenciação do preço

entre países desenvolvidos e PVD (ROCHE:2009, p.1)18

. Ora, quando o mundo

desenvolvido convencionou, à época da negociação dos acordos da Organização

Mundial de Comércio, a possibilidade de quebra de patentes de medicamentos19

,

poderia haver hipótese que melhor configurasse a sua necessidade do que as pandemias?

O movimento político das organizações de direitos humanos vinculadas à

prevenção e combate à AIDS muito ensinou à sociedade sobre o compromisso e a

resistência em nome do bem comum. Para numerosos atores sociais, os governos

deveriam apostar na democracia participativa na gestão das crises, convocando “estados

gerais” que permitam afirmar publicamente os valores democráticos a inspirar as

ordem havia terminado por grassar e se lia, às vezes, nas paredes, ou se gritava, outras vezes, à passagem

do Prefeito: ‘ou pão, ou ar’ ” (CAMUS:1947, p. 214-5).

18 Graças a tal programa, a caixa mais barata do medicamento, de 30mg., passará a custar entre 2 e 2,55

euros No Brasil, por exemplo, antes de ser retirado de circulação, o produto chegava a custar R$ 132,00

nas farmácias (COSTA:2009, p.2). Diga-se de passagem, o fato de que a Roche ora dispõe-se a oferecer o

produto por um valor equivalente a cerca de 10 reais é um indicativo da margem de lucro proporcionada

pela venda do medicamento nos anos em que circulou no mercado.

19 Consoante o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio

(ADPIC-TRIPS), uma licença compulsória, obrigatória ou não-voluntária, dita “quebra de patente”, pode

ser utilizada em caso de urgência nacional, outras circunstâncias de extrema urgência ou em caso de

utilização pública para fins não comerciais, e em todas situações em que há conflito entre o interesse

público e o interesse privado do titular da patente (art. 31, b, TRIPS). A definição de urgência nacional ou

extrema urgência cabe aos Estados.

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decisões em matéria de saúde pública (HIRSCH: 2006, p.2). Quando as pandemias

convertem-se em tema de especialistas, e as decisões das instituições se deixam pautar

por interesses privados, embora as populações desfavorecidas portem um fardo bem

pesado diante da catástrofe, é a sociedade em seu conjunto que sai de uma crise sanitária

ainda mais fragmentada (DAB:2007, p.21-2).

Estas considerações embrionárias sobre a relação entre pandemias e direito

evocam, acima de tudo, a “distração” da academia no que concerne ao profundo debate

suscitado pelo risco, capaz, talvez, de devolver ao homem a consciência de que seu

destino não se resolve na pretensamente redentora dimensão individual. Bem ao

contrário, depende de uma dimensão coletiva a reconstruir:

“cada um a porta em si, a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo é a ela indene. E

é preciso cuidar-se incessantemente para não ser levado, num minuto de distração, a

respirar no rosto de outro e nele colar a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a

saúde, a integridade, a pureza, como queira, é efeito da vontade e de uma vontade que não

deve cessar jamais. O bom homem, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que

tem a menor distração possível” (CAMUS:1947, p.228).

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