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© 2005 FADISMA

EdiçãoFADISMA - Faculdade de Direito de Santa Maria

Fone/fax: (55) 3220 2500www.fadisma.com.br

EditoraçãoRicardo Coelho

CapaDiâine Borin

NormalizaçãoCibele Dziekaniak

D536 Um diálogo entre Einstein e Freud: por que a guerra?/apresentação de Deisy de Freitas Lima Ventura,Ricardo Antônio Silva Seitenfus � Santa Maria:FADISMA, 2005.

48 p.

1. Guerra 2. Morte 3. Relações internacionais 4.Sociedade das Nações 5. Violência

CDU 327

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecáriaCibele V. Dziekaniak CRB 10/1385

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Um diálogo entreEinstein e Freud

Por que a Guerra?

Santa MariaFADISMA

2005

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Sobre os direitos autorais referentes a esta publicação(difusão gratuita)

Os textos de Einstein e Freud são de domínio público.Os textos de apresentação foram elaborados por RicardoSeitenfus (�O contexto histórico...�) e Deisy Ventura (�O contextodesta publicação...�), e os respectivos direitos foram cedidosgratuitamente pelos autores à Faculdade de Direito de SantaMaria (FADISMA).

Edição dos documentos

Com base nas traduções brasileira (Obras Completas deSigmund Freud, edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro:Imago, 1976. v. XXII) e francesa (DAVID, Christophe. Einstein eFreud. Pour quoi la guerre? Paris: Payot & Rivages, 2005).Ricardo Seitenfus (Doutor do Instituto de Altos EstudosInternacionais da Universidade de Genebra, Suíça).Deisy Ventura (Doutora da Escola de Direito Internacional eEuropeu da Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne).

Diretor GeralProf. Dr. Ricardo Antônio Silva Seitenfus

Diretor ExecutivoProf. Eduardo de Assis Brasil Rocha

Coordenadora-Geral da GraduaçãoProfª. Dra. Jânia Maria Lopes Saldanha

Apoio institucionalFES Brasil - Fundação Friedrich Ebert,

Representação no BrasilSão Paulo - SP

Tel.: (11) 3253-9090 Fax.: (11) 3253-3131www.fes.org.br

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Projeto Ciência contra a ViolênciaFADISMA � FES Brasil

Ano 2005

O projeto Ciência contra a Violênciaabordará, a cada ano, um tema no qual a ciênciapossa contribuir para a redução dos alarmantesíndices de violência que nos afligem.

No ano de 2005, o tema escolhido foi odesarmamento. No dia 23 de outubro, a populaçãobrasileira deverá responder à questão: O comérciode armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?

A FADISMA reconhece a importânciatanto da consolidação do referendo comomecanismo de democracia participativa, quanto doconteúdo da decisão a ser tomada pelo povobrasileiro.

 Com o apoio da representação daFundação Friedrich Ebert no Brasil (FES-Brasil), aprimeira etapa do projeto consiste na publicação datroca de cartas entre Albert Einstein e SigmundFreud, datada de 1932, pouco conhecida na AméricaLatina, intitulada �Por que a guerra?�.

Estimulada pelo Instituto Internacionalde Cooperação Intelectual, emanação da Sociedadedas Nações, a correspondência visava a entenderas razões que levavam o homem à guerra, comomaneira de evitá-la. As duas belas cartas tratam daviolência humana e do terrível papel que a indústriaarmamentista exerce sobre ela.

 Os objetivos desta fase do projeto são:

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despertar a consciência da comunidade regionalsobre a urgência do desarmamento e os riscos daprogressão da violência como valor em nossasociedade; estimular a participação política dosprofessores, funcionários, alunos e seus respectivoscírculos familiares; finalmente, oferecer mecanismoscapazes de operar no plano das idéias,disseminando convicções humanistas e fornecendomaterial de qualidade a formadores de opinião,aptos a irradiar ditos valores.

Com a publicação deste curto texto e suadifusão gratuita (tiragem de 5.000 exemplares, edisponibilização em formato eletrônico, nos sítiosInternet da FADISMA e da FES-Brasil, parareprodução livre em quaisquer outras páginas),pretende-se contribuir a revelar grandes cientistase pensadores como inveterados pacifistas e, emparticular, anti-armamentistas. Além disso, almeja-se difundir amplamente este tocante libelo em favorda paz e da vida humana.

 

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O contexto histórico do diálogo entreEinstein e Freud:

um debate filho de seu tempo,de todos os tempos

O diálogo entre Einstein e Freud ocorrenum dos momentos mais críticos da história recenteda Humanidade. Há um sentimento predominante,a partir de 1919, de imperiosa necessidade deinstituir mecanismos políticos, morais e jurídicoscapazes de limitar a desenfreada violência queassola as relações internacionais.

A Primeira Guerra Mundial (1914-18)trouxe consigo terríveis inovações. O conflitoestendeu-se a vários continentes. Foram utilizadasalgumas armas de destruição indiscriminada �como, por exemplo, o gás mostarda � e outrastécnicas que aperfeiçoavam a arte de matar, como ouso da aviação. A carnificina atingiu proporçõesjamais vistas em razão da guerra de trincheiras.Enfim, no bojo da guerra se afirmaram novasideologias, tais como o fascismo e o comunismo,que se opunham à liberdade do homem e aos seusdireitos fundamentais.

Para evitar a guerra, a onipotência doEstado, inquestionável no interior de suasfronteiras, deveria conhecer limitações em relaçãoao sistema internacional. Neste diapasão, uma dasmais importantes conseqüências da denominada« Grande Guerra » foi a criação da Liga das Nações(ou Sociedade das Nações � SDN), sediada em

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Genebra, encarregada de prevenir e solucionar osconflitos entre os Estados.

Baseada na doutrina do PresidenteWoodrow Wilson, a SDN foi marcada por trêscaracterísticas marcantes que impregnaram elimitaram sua ação. Foi uma instituição desprovidade meios coercitivos para fazer valer suas decisões.Trata-se, antes de mais nada, de uma associaçãopolítica de alcance moral, fundada na boa vontadedos Estados partícipes. Ao fazer com que a lei docoletivo não se fizesse acompanhar, em caso denecessidade, da espada da eficácia, o trabalho deprevenção e solução de litígios da SDN colheu pífiosresultados. Ela conseguiu operar nos conflitosmarginais, mas foi desconsiderada nos conflitos queenvolveram as Potências, ou os Estados por estasprotegidos.

Ao incluir o Pacto da SDN, ou seja seutratado constitutivo, no próprio Tratado deVersalhes, que colocou um ponto final à PrimeiraGuerra Mundial, os fundadores da instituiçãodeixaram transparecer que se tratava de uma uniãodos vencedores contra os vencidos, especialmentecontra a Alemanha. Portanto, a instituição, quedeveria estar acima dos interesses dos Estados eservir à paz, transformou-se de fato e de direito numinstrumento de opressão constantemente criticadopor Berlim, Roma, Tóquio e Moscou.

O sentimento isolacionista que tomouconta, a partir de 1919, do Congresso dos EstadosUnidos impediu a ratificação do Tratado deVersalhes e, por conseguinte, excluiu Washingtonda SDN. Portanto, embora a organizaçãopropugnasse sua universalidade, a composição daLiga das Nações indicava ser, antes de mais nada,uma instituição centrada essencialmente na EuropaOcidental.

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Após a concordância da derrotadaAlemanha com o ingresso na SDN, em 1926, comoconseqüência dos Acordos de Locarno, foi possívelimaginar uma nova era nas relações européias.Neste mesmo ano, foi fundado em Paris, no âmbitoda SDN, o Instituto Internacional de CooperaçãoIntelectual (IICI).

O objetivo do IICI era o de fortalecer acolaboração entre intelectuais de cultura enacionalidade distintas, a fim de criar condiçõespropícias ao surgimento de um novo humanismo,com o escopo de respaldar os esforços da SDN emprol da paz.1

É neste diálogo entre culturas que seinsere a troca de correspondências, datada de 1932,entre Einstein e Freud. Contudo, há imensocontraste entre o humanismo realista de Einstein,que participava, desde 1922, dos trabalhosintelectuais da SDN, e o pessimismo de Freud, emcujo texto pulsa a morte.

Einstein não escondia suas críticas àausência de força e de boa vontade por parte da SDNpara cumprir sua missão. Com perspicácia, elepercebe na instituição genebrina um simples e dócilinstrumento nas mãos do grupo de Potências que

1 Há dois grupos de atividades do IICI. O primeiro trata de debatespúblicos que aconteceram em grandes cidades européias sobretemas tais como Goethe, O futuro da cultura, A formação do Homemmoderno, O novo humanismo e As relações entre a Europa e a AméricaLatina. O segundo reúne a troca de correspondências entre grandesintelectuais. Foram publicados os seguintes livros: Para uma sociedadedo espírito [introdução de Paul Valéry e Henri Focillon com cartasde Salvador de Mariaga, Gilbert Murray, Miguel Ozzorio deAlmeyda, Alfonso Reyes e Henri Focillon]; Por que a guerra? [1933];O espírito, a ética e a guerra [cartas de Johan Bojet, J. Huizinga, AldousHuxley, André Maurois e Robert Waelder]; Civilizações: Oriente/Ocidente, gênio do Norte/latinidade [cartas de Henri Focillon, GilbertMurray, Josef Strzygowski e Rabindranath Tagore].

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domina a Europa. Contudo, ele mantém esperançasque a SDN possa vir a estar à altura de seu desafio.

Freud, por sua vez, aceita o convite dediálogo proposto por Einstein, correndo o risco, noentanto, de decepcioná-lo. Com efeito, Einsteinpretendia dar ao pequeno fascículo resultante datroca de cartas o nome de �Direito e violência�.Freud recusa esta denominação, pois ela nãocorrespondia ao conteúdo das cartas (especialmenteda sua). Por isso, ele sugere � ou melhor, impõe � otítulo �Por que a guerra?�.

Consciente de que sua posição nãocorresponde ao discurso humanista dos trabalhosda IICI, Freud declara que sua carta aborda amaneira de evitar a guerra, embora ele saiba �quenão receberá o prêmio Nobel da paz por estapublicação�.

A crise econômica que se abateu sobre ocapitalismo após a quebra da Bolsa de Nova Iorque,em 1929, repercutiu politicamente na Europa. Opoder de Mussolini consolidou-se. Foi incendiadoo Reichstag, na noite de 27 de fevereiro de 1933,conduzindo à prisão mais de 10 mil pessoas naAlemanha. Seguiu-se, em 5 de março, a eleição deHitler. O nazismo deu início, então, à sinistrapolítica que conduziria o mundo a uma catástrofesem precedentes.

Adquirem amplitude as reticências deEinstein e o pessimismo de Freud. Os dois gêniosalcançam com o �Por que a guerra?� uma dimensãouniversal e atemporal, pois os dramas e dilemasque assaltavam a organização das relaçõesinternacionais, bem como a interface entre Direito eviolência, encontram-se no cerne dos desafios queenfrentam as sociedades na atualidade. Oterrorismo, o conflito iraquiano, a propalada reformada ONU e o aumento exponencial da insegurança

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pública são alguns exemplos a demonstrar o caráterpremonitório do �Por que a guerra?�.

Ainda mais inquietante é a constataçãode que, entre os seis maiores produtores eexportadores de armas bélicas do mundo, estão oscinco membros do Conselho de Segurança da ONU.Exceto pela Alemanha, foram justamente China,Estados Unidos, França, Inglaterra e Rússia osEstados incapazes de evitar que cerca de duzentosconflitos bélicos ocorressem no mundo desde 1945,fazendo mais de cinqüenta milhões de vítimas.Portanto, a paz, na crua análise de Paul Valéry foi,de fato, �a guerra em outro lugar�.

Triste situação a da humanidade quandoos encarregados da paz são os senhores da guerra.

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O contexto desta publicação:das Grandes Guerras à diária guerra

urbana

Entre todos os objetos que podem causaro ferimento ou a morte de um ser humano, o únicoque serve precipuamente a esta finalidade é a armade fogo. O desenvolvimento tecnológico trazidopelas guerras costuma ser louvado comextraordinário entusiasmo. Nestas ocasiões, poucose fala, porém, sobre o irreparável dano causado aoser humano pela massificação das armas de fogo,instrumentos que deveriam ser limitados ao usoentre soldados, profissionais a serviço de Estadosem guerra, ou a profissionais a serviço do Estadono âmbito da segurança pública interna.

Atualmente, a guerra mata mais a civisque a militares, pela perversidade das operaçõesbélicas em curso, travestida de tecnologia de ponta.Quase anti-sépticos para os agressores, os ataquesarmados revelam-se horrivelmente sangrentos paraos agredidos, despedaçando em frangalhos corposde inocentes, em particular de crianças, maioresvítimas de cada vez mais modernos mísseis e minas.

É um erro, contudo, pensar que a guerraestá em outro lugar. Não somente porque, comoescreveu Espinosa, a paz não é apenas a ausênciade guerra declarada, mas sobretudo porque acultura da guerra impregnou o homem de modobem mais profundo e definitivo do que ele podesupor.

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A banalização da violência,principalmente por meio do culto às armas de fogo,já presente em muitas culturas locais (inclusive nagaúcha), difundiu-se em proporção geométrica pormeio da indústria cultural que se impôs nas últimasdécadas. Ainda mais grave é o fato de que ditaindústria visa particularmente às crianças, cujoentretenimento é empapado de insultos e agressões,emitidos por invejados personagens fortementearmados.

Quanto aos adultos, forjados ou não noculto à agressão armada, sentem-se acossados pelafalta de segurança pública, notória omissão desucessivos governos, principalmente nos Estadosem via de desenvolvimento. Os seres humanos quepossuem patrimônio material são especialmenteatingidos pela obsessão securitária: sobressaltados,oferecem grande risco à sociedade com suas reaçõesinoportunas e desproporcionais, diante da mínimasuspeita de prejuízo. A prepotência e o privilégiosocial não raro se escondem sob a capa da legítimadefesa.

No entanto, mesmo os mais pobres,diante da contínua exploração dos crimes cruéiscontra a pessoa, pelos meios de comunicação queauferem imensos lucros por meio dosensacionalismo, cedem ao apelo fácil de umasuposta preparação para a legítima defesa.

Causa espanto que milhões deatrocidades diárias � e ao contrário dos crimes,totalmente previsíveis � não choquem e nãosuscitem prevenção, ainda que também divulgadaspelos meios de comunicação. Por exemplo, aagressão à integridade física de milhões sereshumanos perpetrada pela desnutrição, por umsistema de saúde ineficaz, pelo abandono decrianças à sua própria sorte e pela violação de

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direitos fundamentais promovida pelos própriosórgãos do Estado. Falta-lhes, supõe-se, apropaganda que incite à indignação.

Quanto à indústria da violência, porém,propaganda não falta. Ela é financiada, entre outros,pelos produtores e vendedores de armas. DisseAlain Bosquet que a violência é a maior indústrianorte-americana. De fato, é inquestionável o poderdos fabricantes de armas nos Estados Unidos,regalados com o contínuo envolvimento do país emconflitos bélicos.

No Contrato Social, Rousseau escreveuque, sendo a finalidade da guerra a destruição doEstado inimigo, tem-se o direito de matar seusdefensores enquanto eles tiverem armas na mão;mas tão logo eles as deponham e se rendam, deixamde ser inimigos ou instrumentos do inimigo. Elesvoltam a ser simplesmente homens e não se temmais direito sobre a sua vida. Portar armas só temsentido quando há uma guerra entre comunidadesou entre Estados. Na falta de uma, os EstadosUnidos não hesitam em criá-la.

Entretanto, que o trabalho do soldadoseja matar e morrer, já é algo questionável do pontode vista humano. Na maioria das guerras, o soldadosequer sabe porque está morrendo, mas em meio auma névoa de fanatismo e mentira, alguns poucosque jamais pisaram no front estão ganhando, tantopoder como muito dinheiro.

O quê leva, então, um jovem comum,normalmente alguém de parcos recursosfinanceiros, que não é nem de longe privilegiadopela ordem que defende, a abraçarprofissionalmente a morte e o assassinato?

São as idéias que se forjam para mover aguerra que provocam este torpor, quase semprefundado na ilusão do heroísmo. Em época de

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guerra, o nacionalismo, a xenofobia, o fanatismoreligioso e outras enfermidades devem sersuficientemente fortes para transformar outro serhumano num estranho, e logo a seguir num inimigo.A idéia precisa ser suficientemente reducionista,imoderada e estereotipada para que gere um ódiopuro e inquestionável.

As idéias são, portanto, uma condiçãoprévia às armas. É preciso acreditar na necessidadede portá-las, caso contrário jovens saudáveis nãose transformariam em carne de canhão.

O que estamos vivendo no Brasil de hojeé justamente o recrudescimento da ideologia quejustifica e incita ao comércio e ao porte de armas,que nos faz acreditar que outros seres humanos,nossos compatriotas e contemporâneos, sãoestranhos inimigos. A estranheza é, portanto, umdos elementos importantes desta ideologia.

Melhor esquecer, então, por exemplo, orapaz drogado que, num assalto, reconheceu navítima um ex-colega de escola, e exclamou: �já quenão posso te roubar, me compra esta arma, eu avendo por quinze reais�. Melhor esquecer tambémque é muito mais provável que meu vizinhoportador de arma mate a um amigo comum do quea um delinqüente.

Ainda melhor não pensar, como fazemtradicionalmente os detetives nos romancespoliciais em relação ao crime investigado, em quemse beneficia com a venda de armas. Que eu estejaarmada me rende uma hipotética capacidade dereação diante de uma agressão. Já aos que produzeme vendem armas, não há nenhuma dúvida sobre olucro, certeiro e direto, que deriva deste comércio.

Todavia, enquanto a indústria daviolência não corre nenhum risco, eu,provavelmente, caso se concretize a profetizada

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agressão, morrerei ao reagir a um assalto ou, comsorte, terei minha arma furtada juntamente comoutros bens. Sorte improvável, porque a regra entreos que andam armados é a de que não se saca umaarma para ameaçar: é preciso matar, porque oagressor, na iminência presumida de sua própriamorte, não hesitará em matar. Corro, ainda, o riscode, num momento de perturbação mental, ferirgravemente ou matar um ente querido, ou dele servítima.

Caso, para diminuir meus riscos, eudeseje me preparar para a agressão, incorporarei aviolência ao meu cotidiano com cursos de defesapessoal, leituras sobre o �inimigo�, etc. Minhaagressividade virá à tona e provavelmente metransforme numa dessas pessoas alarmadas (equantas conhecemos!), capazes de assassinar o filhoque entra no quarto, durante a noite, porque oconfunde com o assaltante. Ou num desses homenscorroídos pelo stress, capazes de matar por umadiscussão no trânsito, e que paulatinamente se vãodeslumbrando com o efeito que o porte de armasprovoca sobre as pessoas. Os argumentos vão setornando secundários e a pretensa coragem se vairevelando uma imensa covardia.

Em outras palavras, todos nós, searmados, tornamo-nos personagens da guerra detodos contra todos a que se referiu Thomas Hobbes.Criamos o Estado para garantir nossa segurança.Quando ele não a oferece, porém, não oquestionamos. Seguimos pagando o Estado e aindaretornamos voluntariamente ao nosso estadonatural, de guerra permanente.

Em lugar disto, poderíamos seguir outrocaminho. Buscar informações sobre as armas, antesde mais nada. Punir, por meio do voto, os governosque não oferecem a segurança pública que pagamos

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com nossos impostos. Preparar o futuro, evitandoque as crianças consumam a cultura da violência.Agir no meio social em que vivemos para melhoraras condições econômicas, que são as grandesresponsáveis pelo tipo de criminalidade que nosaflige.

Por trás de todos os nossos gestos,repito, estão nossas idéias, e é urgente fazer circularoutras que não sejam as da propaganda da indústriada violência. Não é um acaso que os grandes gêniosda humanidade tenham sido pacifistas. Ahumanidade seria outra, hoje, não fosse a indústriaarmamentista.

Não é ocasional, igualmente, que aacademia e seu pensamento independente tenhamum papel tão secundário nas sociedades dos paísesem desenvolvimento. Urge recuperar cadaexpressão do pensamento como uma drágea dacivilização. Afinal, como escreveu Ítalo Calvino,estar certo é muito pouco.

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Documento 1 :correspondência de

Albert Einstein àSigmund Freud

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Potsdam, 30 de julho de 1932.

Prezado Professor Freud

A proposta da Liga das Nações e de seuInstituto Internacional para a Cooperação Intelectual,em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, deminha própria escolha, para um franco intercâmbiode pontos de vista sobre algum problema que eupoderia escolher, oferece-me excelenteoportunidade de conferenciar com o senhor arespeito de uma questão que, da maneira como ascoisas estão, parece ser o mais urgente de todos osproblemas que a civilização tem de enfrentar.

Este é o problema: existe alguma formade livrar a humanidade da ameaça de guerra? É doconhecimento geral que, com o progresso da ciênciade nossos dias, esse tema adquiriu significado deassunto de vida ou morte para a civilização, tal comoa conhecemos; não obstante, apesar de todo oempenho demonstrado, todas as tentativas desolucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.

Ademais, acredito que aqueles cujaatribuição é atacar o problema de forma profissionale prática, estão apenas adquirindo crescenteconsciência de sua impotência para abordá-lo, eagora possuem um vivo desejo de conhecer os

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pontos de vistas de homens que, absorvidos pelabusca da ciência, podem mirar os problemas domundo sob a perspectiva que a distância permite.

Quanto a mim, o objetivo habitual demeu pensamento não me permite uma compreensãointerna das obscuras regiões da vontade e dosentimento humano. Assim, na indagação oraproposta, posso fazer pouco mais do que procuraresclarecer a questão em referência e, preparando oterreno das soluções mais óbvias, possibilitar queo senhor proporcione a elucidação do problemamediante o auxílio do seu profundo conhecimentoda vida instintiva do homem.

Existem determinados obstáculospsicológicos cuja existência um leigo em ciênciasmentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetentepara compreender; estou convencido de que osenhor será capaz de sugerir métodos educacionaissituados mais ou menos fora dos objetivos dapolítica, os quais eliminarão esses obstáculos.

Como pessoa isenta de preconceitosnacionalistas, pessoalmente vejo uma formasimples de abordar o aspecto superficial (isto é,administrativo) do problema: a instituição, por meiode acordo internacional, de um organismolegislativo e judiciário para arbitrar todo conflitoque surja entre nações. Cada nação submeter-se-iaà obediência às ordens emanadas desse organismolegislativo, a recorrer às suas decisões em todos oslitígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e apôr em prática todas as medidas que o tribunalconsiderasse necessárias para a execução de seusdecretos.

Já de início, todavia, defronto-me comuma dificuldade: um tribunal é uma instituiçãohumana que, em relação ao poder de que dispõe, é

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inadequada para fazer cumprir seus veredictos, estámuito sujeito a ver suas decisões anuladas porpressões extrajudiciais. Este é um fato com quetemos de contar; a lei e o poder inevitavelmenteandam de mãos dadas, e as decisões jurídicas seaproximam mais da justiça ideal exigida pelacomunidade (em cujo nome e em cujos interessesesses veredictos são pronunciados), na medida emque a comunidade tem efetivamente o poder deimpor o respeito ao seu ideal jurídico.

Atualmente, porém, estamos distantes depossuir qualquer organização supranacionalcompetente para emitir julgamentos de autoridadeincontestável e garantir absoluto acatamento àexecução de seus veredictos. Assim, sou levado aomeu primeiro princípio; a busca da segurançainternacional envolve a renúncia incondicional, portodas as nações, em determinada medida, à sualiberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e éabsolutamente evidente que nenhum outro caminhopode conduzir a essa segurança.

O insucesso, malgrado sua evidentesinceridade, de todos os esforços, durante a últimadécada, no sentido de alcançar essa meta, não deixalugar à dúvida de que estão em jogo fatorespsicológicos de peso que paralisam tais esforços.Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar.O intenso desejo de poder, que caracteriza a classegovernante em cada nação, é hostil a qualquerlimitação de sua soberania nacional. Essa fome depoder político está acostumada a medrar nasatividades, de um outro grupo, cujas aspirações sãode caráter econômico, puramente mercenário.Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido,porém decidido, existente em cada nação, compostode indivíduos que, indiferentes às condições e aoscontroles sociais, consideram a guerra, a fabricação

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e venda de armas simplesmente como umaoportunidade de expandir seus interesses pessoaise ampliar a sua autoridade pessoal.

O reconhecimento desse fato, no entanto,é simplesmente o primeiro passo para umaavaliação da situação atual.

Logo surge uma outra questão: como épossível a essa pequena súcia dobrar a vontade damaioria, que se resigna a perder e a sofrer com umasituação de guerra, a serviço da ambição de poucos?(Ao falar em maioria, não excluo os soldados, detodas as graduações, que escolheram a guerra comoprofissão, na crença de que estejam servindo àdefesa dos mais altos interesses de sua raça e deque o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio dedefesa).

Parece que uma resposta óbvia a essapergunta seria que a minoria, a classe dominanteatual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente,também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilitaorganizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento desta minoria.

Ainda assim, nem sequer essa respostaproporciona uma solução completa. Daí surge umanova questão: como esses mecanismos conseguemtão bem despertar nos homens um entusiasmoextremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas?Pode haver apenas uma resposta. É porque ohomem encerra dentro de si um desejo de ódio edestruição.

Em tempos normais, essa paixão existeem estado latente, emerge apenas em circunstânciasanormais: é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvezaí esteja o ponto crucial de todo o complexo defatores que estamos considerando, um enigma quesó um especialista na ciência dos instintos humanospode resolver.

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Com isso, chegamos à nossa últimaquestão. É possível controlar a evolução da mentedo homem, de modo a torná-lo à prova das psicosesdo ódio e da destrutividade? Aqui não me estoureferindo tão-somente às chamadas massas incultas.A experiência prova que é, antes de todas, achamada Intelligentzia a mais inclinada a ceder aessas desastrosas sugestões coletivas, de vez que ointelectual não tem contato direto com o lado rudeda vida, mas a encontra em sua forma sintética maisfácil na página impressa.

Para concluir: até aqui somente falei dasguerras entre nações, aquelas que se conhecem comoconflitos internacionais. Estou, porém, bemconsciente de que o instinto agressivo opera soboutras formas e em outras circunstâncias. (Penso nasguerras civis, por exemplo, devidas à intolerânciareligiosa, em tempos precedentes, hoje em dia,contudo, devidas a fatores sociais; ademais, tambémnas perseguições a minorias raciais.)

Foi deliberada a minha insistêncianaquilo que é a mais típica, mais cruel e extravaganteforma de conflito entre os homens, pois aqui temosa melhor ocasião de descobrir maneiras e meios detornar impossíveis qualquer conflito armado.

Sei que nos escritos do senhor podemosencontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todosos aspectos desse problema urgente e obsessivo.Mas seria da maior utilidade para nós todos que osenhor apresentasse o problema da paz mundial sobo enfoque das suas mais recentes descobertas, poisuma tal apresentação bem poderia demarcar ocaminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Muito cordialmente,

Albert EINSTEIN

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Documento nº 2 :resposta de

Sigmund Freud àAlbert Einstein

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Viena, setembro de 1932.

Prezado Professor Einstein

Quando soube que o senhor pretendiaconvidar-me para um intercâmbio de pontos devista sobre um assunto que lhe interessava e queparecia merecer o interesse de outros além dosenhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhorescolhesse um problema situado nas fronteirasdaquilo que é atualmente cognoscível, umproblema em relação ao qual cada um de nós, físicoe psicólogo, pudesse ter o seu ângulo deabordagem especial, e no qual pudéssemos nosencontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindode direções diferentes.

O senhor apanhou-me de surpresa, noentanto, ao perguntar o que pode ser feito paraproteger a humanidade da maldição da guerra.Inicialmente me assustei com o pensamento deminha � quase escrevi �nossa� � incapacidade delidar com o que parecia ser um problema prático,um assunto para Estadistas. Depois, no entanto,percebi que o senhor havia proposto a questão, nãona condição de cientista da natureza e físico, mascomo filantropo: o senhor estava seguindo asugestão da Liga das Nações, assim como FridtjofNansen, o explorador polar, assumiu a tarefa deauxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerramundial.

Além do mais, considerei que não mepediam para propor medidas práticas, mas simapenas que eu delimitasse o problema para evitar

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a guerra tal como ele se configura aos olhos de umcientista da psicologia. Também nesse ponto, osenhor disse quase tudo o que há a dizer sobre oassunto. Embora o senhor se tenha antecipado amim, ficarei satisfeito em seguir no seu rastro e mecontentarei com confirmar tudo o que o senhordisse, ampliando-o com o melhor do meuconhecimento � ou das minhas conjeturas.

O senhor começou com a relação entre odireito e o poder. Não se pode duvidar de que sejaeste o ponto de partida correto de nossainvestigação. Mas, permita-me substituir a palavra�poder� pela palavra mais nua e crua de �violência�?

Atualmente, direito e violência se nosafiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrarque uma se desenvolveu da outra e, se nosreportarmos às origens primeiras e examinarmoscomo essas coisas se passaram, resolve-se oproblema facilmente. Perdoe-me se, nessasconsiderações que se seguem, eu trilhar chãofamiliar e comumente aceito, como se isto fossenovidade. O fio de minhas argumentações o exige.

É, pois, um princípio geral que osconflitos de interesses entre os homens sãoresolvidos pelo uso da violência. É isto o que sepassa em todo o reino animal, do qual o homemnão tem motivo por que se excluir. No caso dohomem, sem dúvida ocorrem também conflitos deopinião que podem chegar a atingir a mais rarasnuanças da abstração e que parecem exigir algumaoutra técnica para sua solução. Esta é, contudo, umacomplicação a mais.

No início, numa pequena horda humana,era a superioridade da força muscular que decidiaquem tinha a posse das coisas ou quem faziaprevalecer sua vontade. A força muscular logo foisuplementada e substituída pelo uso de

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instrumentos: o vencedor era aquele que tinha asmelhores armas ou aquele que tinha a maiorhabilidade no seu manejo.

A partir do momento em que as armasforam introduzidas, a superioridade intelectual jácomeçou a substituir a força muscular bruta; mas oobjetivo final da luta permanecia o mesmo � umaou outra facção tinha de ser compelida a abandonarsuas pretensões ou suas objeções, por causa do danoque lhe havia sido infligido pelo desmantelamentode sua força.

Conseguia-se esse objetivo de modomais completo se a violência do vencedor eliminassepara sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Istotinha duas vantagens: o vencido não podiarestabelecer sua oposição e o seu destinodissuadiria outros de seguirem seu exemplo.Ademais disso, matar um inimigo satisfazia umainclinação do instinto, que mencionareiposteriormente.

À intenção de matar opor-se-ia a reflexãode que o inimigo podia ser utilizado na realizaçãode serviços úteis, se fosse deixado vivo e numestado de intimidação. Nesse caso, a violência dovencedor contentava-se com subjugar, em vez dematar, o vencido. Foi este o início da idéia de poupara vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedorteve de contar com a oculta sede de vingança doadversário vencido e sacrificou uma parte de suaprópria segurança.

Esta foi, por conseguinte, a situaçãoinicial dos fatos: a dominação por parte de qualquerum que tivesse poder maior � a dominação pelaviolência bruta ou pela violência apoiada nointelecto. Como sabemos, esse regime foimodificado no transcurso da evolução. Havia umcaminho que se estendia da violência ao direito ouà lei.

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Que caminho era este? Penso ter sidoapenas um: o caminho que levava aoreconhecimento do fato de que à força superior deum único indivíduo, podia-se contrapor a união dediversos indivíduos fracos: a união faz a força. Aviolência podia ser derrotada pela união, e o poderdaqueles que se uniam representa, agora, a lei, emcontraposição à violência do indivíduo só. Vemos,assim, que a lei é a força de uma comunidade.

Todavia, ela é ainda violência, pronta ase voltar contra qualquer indivíduo que se lheoponha. Ela funciona pelos mesmos métodos epersegue os mesmos objetivos. A única diferençareal reside no fato de que aquilo que prevalece nãoé mais a violência de um indivíduo, mas a violênciada comunidade.

A fim de que a transição da violência aesse novo direito ou justiça pudesse ser efetuada,contudo, uma condição psicológica teve de serpreenchida. A união da maioria devia ser estável eduradoura. Se apenas fosse posta em prática com opropósito de combater um indivíduo isolado edominante, e fosse dissolvida depois da derrotadeste, nada se teria realizado.

A pessoa, a seguir, que se julgassesuperior em força, haveria de mais uma vez tentarestabelecer o domínio através da violência, e o jogose repetiria ad infinitum. A comunidade devemanter-se permanentemente, deve organizar-se,deve estabelecer regulamentos para antecipar-se aorisco de rebelião e deve instituir autoridades parafazer com que esses regulamentos � as leis � sejamrespeitadas, e para superintender a execução dosatos legais de violência.

O reconhecimento de uma entidade deinteresses como estes levou ao surgimento devínculos emocionais entre os membros de um grupo

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de pessoas unidas � sentimentos comuns, que sãoa verdadeira fonte de sua força. Acredito que, comisso, já tenhamos todos os elementos essenciais: aviolência suplantada pela transferência do poder auma unidade maior, que se mantém unida por laçosemocionais entre os seus membros. O que restadizer não é senão uma ampliação e uma repetiçãodesse fato.

A situação é simples enquanto acomunidade consiste em apenas poucos indivíduosigualmente fortes. As leis de uma tal associação irãodeterminar o grau em que, se a segurança da vidacomunal deve ser garantida, cada indivíduo deveabrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a suaforça para fins violentos.

Um estado de equilíbrio dessa espécie,porém, só é concebível teoricamente. Na realidade,a situação complica-se pelo fato de que, desde osseus primórdios, a comunidade abrange elementosde força desigual � homens e mulheres, pais e filhos� e logo, como conseqüência da guerra e daconquista, também passa a incluir vencedores evencidos, que se transformam em senhores eescravos.

A justiça da comunidade então passa aexprimir graus desiguais de poder nela vigentes.As leis são feitas por e para os membrosgovernantes e deixa pouco espaço para os direitosdaqueles que se encontram em estado de sujeição.

Dessa época em diante, existem nacomunidade dois fatores em atividade que são fontede inquietação relativamente a assuntos da lei, masque tendem, ao mesmo tempo, a um maiorcrescimento da lei.

Primeiramente, são feitas, por certosdetentores do poder, tentativas, no sentido de secolocarem acima das proibições que se aplicam a

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todos � isto é, procuram escapar do domínio pelalei para o domínio pela violência.

Em segundo lugar, os membrosoprimidos do grupo fazem constantes esforços paraobter mais poder e ver reconhecidas na lei algumasmodificações efetuadas nesse sentido � isto é,fazem pressão para passar da justiça desigual paraa justiça igual para todos. Essa segunda tendênciatorna-se especialmente importante se uma mudançareal de poder ocorre dentro da comunidade, comopode ocorrer em conseqüência de diversos fatoreshistóricos. Nesse caso, o direito pode gradualmenteadaptar-se à nova distribuição do poder; ou, comosucede com maior freqüência, a classe dominantese recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerracivil se seguem, com uma suspensão temporária dalei e com novas tentativas de solução mediante aviolência, terminando pelo estabelecimento de umnovo sistema de leis.

Ainda há uma terceira fonte da qualpodem surgir modificações da lei, e queinvariavelmente se exprime por meios pacíficos:consiste na transformação cultural dos membros dacomunidade. Isto, porém, faz parte propriamentede uma outra correlação e deve ser consideradoposteriormente.

Vemos, pois, que a solução violenta deconflitos de interesses não é evitada sequer dentrode uma comunidade. As necessidades cotidianas eos interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoasvivem juntas num lugar, tendem, contudo, aproporcionar a essas lutas uma conclusão rápida,e, sob tais condições, existe uma crescenteprobabilidade de se encontrar uma solução pacífica.Outrossim, um rápido olhar pela história da raçahumana revela uma série infindável de conflitosentre uma comunidade e outra, ou diversas outras,

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entre unidades maiores e menores � entre cidades,províncias, raças, nações, impérios � , que quasesempre se formaram pela força das armas. Guerrasdessa espécie terminam ou pelo saque ou pelocompleto aniquilamento e conquista de uma daspartes.

É impossível estabelecer qualquerjulgamento geral das guerras de conquista.Algumas, como as empreendidas pelos mongóis epelos turcos, não trouxeram senão malefícios.Outras, pelo contrário, contribuíram para atransformação da violência em lei, ao estabeleceremunidades maiores, dentre as quais o uso daviolência se tornou impossível e nas quais um novosistema de leis solucionou os conflitos. Desse modo,as conquistas dos romanos deram aos paísespróximos ao Mediterrâneo a inestimável paxromana, e a ambição dos reis franceses de ampliaros seus domínios criou uma França pacificamenteunida e florescente.

Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nadainadequado de estabelecer o reino ansiosamentedesejado de paz �perene�, pois está em condiçõesde criar as grandes unidades dentro das quais umpoderoso governo central torna impossíveis outrasguerras. Contudo, ela falha quanto a esse propósito,pois os resultados da conquista são geralmente decurta duração: as unidades recentemente criadasesfacelam-se novamente, no mais das vezes devidoa uma falta de coesão entre as partes que foramunidas pela violência.

Ademais, até hoje as unificações criadaspela conquista, embora de extensão considerável,foram apenas parciais, e os conflitos entre elasensejaram, mais do que nunca, soluções violentas.O resultado de todos esses esforços bélicos

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consistiu, assim, apenas em a raça humana havertrocado as numerosas e realmente infindáveisguerras menores por guerras em grande escala, quesão raras, contudo muito mais destrutivas.

Se nos voltamos para os nossos própriostempos, chegamos a mesma conclusão a que osenhor chegou por um caminho mais curto. Asguerras somente serão evitadas com certeza, se ahumanidade se unir para estabelecer umaautoridade central a que será conferido o direito dearbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estãoenvolvidos claramente dois requisitos distintos:criar uma instância suprema e dotá-la do necessáriopoder. Uma sem a outra seria inútil. A Liga dasNações é destinada a ser uma instância dessaespécie, mas a segunda condição não foipreenchida: a Liga das Nações não possui poderpróprio, e só pode adquiri-lo se os membros da novaunião, os diferentes Estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as perspectivasnesse sentido.

A instituição da Liga das Nações seriatotalmente ininteligível se fosse ignorasse o fato deque houve uma tentativa corajosa, como raramente(talvez jamais em tal escala) se fez antes. Ela é umatentativa de fundamentar a autoridade sobre umapelo a determinadas atitudes idealistas da mente(isto é, a influência coercitiva), que de outro modose baseia na posse da força. Já vimos que umacomunidade se mantém unida por duas coisas: aforça coercitiva da violência e os vínculosemocionais (identificações é o nome técnico) entreseus membros. Se estiver ausente um dos fatores, épossível que a comunidade se mantenha ainda pelooutro fator.

As idéias a que se faz o apelo só podem,naturalmente, ter importância se exprimirem

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afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas idéias podemexercer. A história nos ensina que, em certa medida,elas foram eficazes. Por exemplo, a idéia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbarosde além-fronteiras � idéia que foi expressa comtanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos enos jogos �, foi forte a ponto de mitigar os costumesguerreiros entre os gregos, embora, é claro, nãosuficientemente forte para evitar dissensões bélicasentre as diferentes partes da nação grega, ou mesmopara impedir uma cidade ou confederação decidades de se aliar com o inimigo persa, a fim deobter vantagem contra algum rival.

A identidade de sentimentos entre oscristãos, embora fosse poderosa, não conseguiu, àépoca do Renascimento, impedir os EstadosCristãos, tanto os grandes como os pequenos, debuscar o auxílio do sultão em suas guerras de unscontra os outros. E atualmente não existe idéiaalguma que, espera-se, venha a exercer umaautoridade unificadora dessa espécie. Na realidade,é por demais evidente que os ideais nacionais, pelosquais as nações se regem nos dias de hoje, atuamem sentido oposto.

Algumas pessoas tendem a profetizarque não será possível pôr um fim à guerra,enquanto a forma comunista de pensar não tenhaencontrado aceitação universal. Mas esse objetivo,em todo caso, está muito remoto, atualmente, etalvez só pudesse ser alcançado após as maisterríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente,parece estar condenada ao fracasso a tentativa desubstituir a força real pela força das idéias.Estaremos fazendo um cálculo errado sedesprezarmos o fato de que a lei, originalmente, eraforça bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindirdo apoio da violência.

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Passo agora a acrescentar algumasobservações aos seus comentários. O senhorexpressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamarnos homens o entusiasmo pela guerra, e insere asuspeita, de que neles exige em atividade algumacoisa � um instinto de ódio e de destruição � quecoopera com os esforços dos mercadores da guerra.Também nisto apenas posso exprimir meu inteiroacordo. Acreditamos na existência de um instintodessa natureza, e durante os últimos anos temo-nosocupado realmente em estudar suas manifestações.

Permita-me que me sirva dessaoportunidade para apresentar-lhe uma parte dateoria dos instintos que, depois de muitas tentativashesitantes e muitas vacilações de opinião, foiformulada pelos que trabalham na área dapsicanálise?

De acordo com nossa hipótese, osinstintos humanos são de apenas dois tipos: aquelesque tendem a preservar e a unir � quedenominamos �eróticos�, exatamente no mesmosentido em que Platão usa a palavra �Eros� em seuSymposium, ou �sexuais�, com uma deliberadaampliação da concepção popular de �sexualidade��; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quaisagrupamos como instinto agressivo ou destrutivo.

Como o senhor vê, isto não é senão umaformulação teórica da universalmente conhecidaoposição entre amor e ódio, que talvez possa teralguma relação básica com a polaridade entreatração e repulsão, que desempenha um papel nasua área de conhecimentos. Entretanto, não devemosser demasiado apressados em introduzir juízoséticos de bem e de mal.

Nenhum desses dois instintos é menosessencial do que o outro; os fenômenos da vidasurgem da ação confluente ou mutuamente contrária

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de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipodificilmente pudesse operar isolado; está sempreacompanhado � ou, como dizemos, amalgamado� por determinada quantidade do outro lado, quemodifica o seu objetivo, ou, em determinados casos,possibilita a consecução desse objetivo. Assim, porexemplo, o instinto de auto-preservação certamenteé de natureza erótica; não obstante, deve ter à suadisposição a agressividade, para atingir seupropósito.

Dessa forma, também o instinto de amor,quando dirigido a um objeto, necessita de algumacontribuição do instinto de domínio, para queobtenha a posse desse objeto. A dificuldade deisolar as duas espécies de instinto em suasmanifestações reais, é, na verdade, o que até agoranos impedia de reconhecê-los.

Se o senhor quiser acompanhar-me umpouco mais, verá que as ações humanas estãosujeitas a uma outra complicação de naturezadiferente. Muito raramente uma ação é obra de umimpulso instintivo único (que deve estar compostode Eros e destrutividade). A fim de tornar possíveluma ação, há de existir, via de regra, umacombinação desses motivos compostos. Isto, hámuito tempo, foi percebido por um especialista nasua matéria, o professor G. C. Lichtenberg, queensinava física em Göttingen, durante o nossoclassicismo, embora, talvez, ele fosse ainda maisnotável como psicólogo do que como físico. Eleinventou uma �bússola de motivos�, pois escreveu:�Os motivos que nos levam a fazer algo poderiamser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e recebernomes de uma forma parecida: por exemplo, �pão-pão-fama� ou �fama-fama-pão�.� De forma que,quando os seres humanos são incitados à guerra,podem ter toda uma gama de motivos para se

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deixarem levar � uns nobres, outros vis, algunsfrancamente declarados, outros jamaismencionados. Não há por que enumerá-los todos.Entre eles está certamente o desejo da agressão edestruição: as incontáveis crueldades queencontramos na história e em nossa vida de todosos dias atestam a sua existência e a sua força.

A satisfação desses impulsos destrutivosnaturalmente é facilitada por sua mistura comoutros motivos de natureza erótica e idealista.Quando lemos sobre as atrocidades do passado,amiúde é como se os motivos idealistas servissemapenas de desculpa para os desejos destrutivos; e,às vezes � por exemplo, no caso das crueldades daInquisição � é como se os motivos idealistastivessem assomado a um primeiro plano naconsciência, enquanto os destrutivos lhesemprestassem um reforço inconsciente. Ambospodem ser verdadeiros.

Receio que eu possa estar abusando doseu interesse, que, afinal, se volta para a prevençãoda guerra e não para nossas teorias. Gostaria, nãoobstante, de deter-me um pouco mais em nossoinstinto destrutivo, cuja popularidade não é demodo algum igual à sua importância. Comoconseqüência de um pouco de especulação,pudemos supor que esse instinto está em atividadeem toda criatura viva e procura levá-la aoaniquilamento, reduzir a vida à condição originalde matéria inanimada.

Portanto, merece, com toda seriedade,ser denominado instinto de morte, ao passo que osinstintos eróticos representam o esforço de viver. Oinstinto de morte torna-se instinto destrutivoquando, com o auxílio de órgãos especiais, édirigido para fora, para objetos. O organismopreserva sua própria vida, por assim dizer,

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destruindo uma vida alheia. Uma parte do instintode morte, contudo, continua atuante dentro doorganismo, e temos procurado atribuir numerososfenômenos normais e patológicos a essainternalização do instinto de destruição. Foi-nos atémesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir aorigem da consciência a esse desvio daagressividade para dentro.

O senhor perceberá que não éabsolutamente irrelevante se esse processo vai longedemais: é positivamente insano. Por outro lado, seessas forças se voltam para a destruição no mundoexterno, o organismo se aliviará e o efeito deve serbenéfico. Isto serviria de justificação biológica paratodos os impulsos condenáveis e perigosos contraos quais lutamos. Deve-se admitir que eles sesituam mais perto da Natureza do que a nossaresistência, para a qual também é necessárioencontrar uma explicação.

Talvez ao senhor possa parecer seremnossas teorias uma espécie de mitologia e, nopresente caso, mitologia nada agradável. Todas asciências, porém, não chegam, afinal, a uma espéciede mitologia como esta? Não se pode dizer omesmo, atualmente, a respeito da sua física? Paranosso propósito imediato, portanto, isto é tudo oque resulta daquilo que ficou dito: de nada valetentar eliminar as inclinações agressivas doshomens.

Segundo se nos conta, em determinadasregiões privilegiadas da Terra, onde a naturezaprovê em abundância tudo o que é necessário aohomem, existem povos cuja vida transcorre em meioà tranqüilidade, povos que não conhecem nem acoerção nem a agressão. Dificilmente possoacreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeitode coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas

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esperam ser capazes de fazer a agressividadehumana desaparecer mediante a garantia desatisfação de todas as necessidades materiais e oestabelecimento da igualdade, em outros aspectos,entre todos os membros da comunidade. Isto, naminha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hojeem dia, estão armados da maneira mais cautelosa,e o método não menos importante que empregampara manter juntos os seus adeptos é o ódio contraqualquer pessoa além das suas fronteiras.

Em todo caso, como o senhor mesmoobservou, não há maneira de eliminar totalmenteos impulsos agressivos do homem; pode-se tentardesviá-los num grau tal que não necessitemencontrar expressão na guerra.

Nossa teoria mitológica dos instintosfacilita-nos encontrar a fórmula para métodosindiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderirà guerra é um efeito do instinto destrutivo, arecomendação mais evidente será contrapor-lhe oseu antagonista, Eros. Tudo o que favorece oestreitamento dos vínculos emocionais entre oshomens deve atuar contra a guerra. Esses vínculospodem ser de dois tipos.

Em primeiro lugar, podem ser relaçõessemelhantes àquelas relativas a um objeto amado,embora não tenham uma finalidade sexual. Apsicanálise não tem motivo porque se envergonharse nesse ponto fala de amor, pois a própria religiãoemprega as mesmas palavras: �Ama a teu próximocomo a ti mesmo.� Isto, todavia, é mais facilmentedito do que praticado.

O segundo vínculo emocional é o queutiliza a identificação. Tudo o que leva os homensa compartilhar de interesses importantes produzessa comunhão de sentimento, essas identificações.E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas,em grande escala.

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Uma queixa que o senhor formulouacerca do abuso de autoridade leva-me a uma outrasugestão para o combate indireto à propensão àguerra. Um exemplo da desigualdade inata eirremovível dos homens é sua tendência a seclassificarem em dois tipos, o dos líderes e o dosseguidores. Esses últimos constituem a vastamaioria; têm necessidade de uma autoridade quetome decisões por eles e à qual, na sua maioriadevotam uma submissão ilimitada. Isto sugere quese deva dar mais atenção, do que até hoje se temdado, à educação da camada superior dos homensdotados de mentalidade independente, nãosuscetível de intimidação e desejosa de manter-sefiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir asmassas dependentes.

É desnecessário dizer que as usurpaçõescometidas pelo poder executivo do Estado e aproibição estabelecida pela Igreja contra a liberdadede pensamento não são nada favoráveis à formaçãode uma classe desse tipo. A situação ideal,naturalmente, seria a comunidade humana quetivesse subordinado sua vida instintual ao domínioda razão. Nada mais poderia unir os homens deforma tão completa e firme, ainda que entre eles nãohouvesse vínculos emocionais. No entanto, comtoda a probabilidade isto é uma expectativa utópica.Não há dúvida de que os outros métodos indiretosde evitar a guerra são mais exeqüíveis, embora nãoprometam êxito imediato. Vale lembrar aquelaimagem inquietante do moinho que mói tãodevagar, que as pessoas podem morrer de fomeantes de ele poder fornecer sua farinha.

O resultado, como o senhor vê, não émuito frutífero quando um teórico desinteressadoé chamado a opinar sobre um problema práticourgente. É melhor a pessoa, em qualquer caso

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especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todosos meios à mão.

Eu gostaria, porém, de discutir maisuma questão que o senhor não menciona em suacarta, a qual me interessa em especial. Por que osenhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamostão violentamente contra a guerra? Por que não aaceitamos como mais uma das muitas calamidadesda vida? Afinal, parece ser coisa muito natural,parece ter uma base biológica e ser dificilmenteevitável na prática.

Não há motivo para se surpreender como fato de eu levantar essa questão. Para o propósitode uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez,permitir-se usar uma máscara de supostoalheamento. A resposta à minha pergunta será a deque reagimos à guerra dessa maneira, porque todapessoa tem o direito à sua própria vida, porque aguerra põe um término a vidas plenas deesperanças, porque conduz os homensindividualmente a situações humilhantes, porqueos compele, contra a sua vontade, a matar outroshomens e porque destrói objetos materiaispreciosos, produzidos pelo trabalho dahumanidade.

Outras razões mais poderiam serapresentadas, como a de que, na sua forma atual, aguerra já não é mais uma oportunidade de atingiros velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido aoaperfeiçoamento dos instrumentos de destruição,uma guerra futura poderia envolver o extermíniode um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos.Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmenteverdadeiro, que não se pode senão sentirperplexidade ante o fato de a guerra ainda não tersido unanimemente repudiada.

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Sem dúvida, é possível o debate em tornode alguns desses pontos. Pode-se indagar se umacomunidade não deveria ter o direito de dispor davida dos indivíduos; nem toda guerra é passívelde condenação em igual medida; de vez queexistem países e nações que estão preparados paraa destruição impiedosa de outros, esses outrosdevem ser armados para a guerra. Mas não medeterei em nenhum desses aspectos; não constituemaquilo que o senhor deseja examinar comigo, etenho em mente algo diverso.

Penso que a principal razão por que nosrebelamos contra a guerra é que não podemos fazeroutra coisa. Somos pacifistas porque somosobrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos.E sendo assim, temos dificuldade em encontrarargumentos que justifiquem nossa atitude.

Sem dúvida, isto exige algumaexplicação. Creio que se trata do seguinte. Duranteperíodos de tempo incalculáveis, a humanidadetem passado por um processo de evolução cultural(sei que alguns preferem empregar o termo�civilização�). É a esse processo que devemos omelhor daquilo em que nos tornamos, bem comouma boa parte daquilo de que padecemos.

Embora suas causas e seus começossejam obscuros e incerto o seu resultado, algumasde suas características são de fácil percepção. Talvezesse processo esteja levando à extinção a raçahumana, pois em mais de um sentido ele prejudicaa função sexual; povos incultos e camadas atrasadasda população já se multiplicam mais rapidamentedo que as camadas superiormente instruídas.

Talvez se possa comparar o processo àdomesticação de determinadas espécies animais, eele se acompanha, indubitavelmente, de

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modificações físicas; mas ainda não nosfamiliarizamos com a idéia de que a evolução dacivilização é um processo orgânico dessa ordem.As modificações psíquicas que acompanham oprocesso de civilização são notórias e inequívocas.Consistem num progressivo deslocamento dos finsinstintivos e numa limitação imposta aos impulsosinstintivos. Sensações que para os nossos ancestraiseram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou atémesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicospara as modificações em nossos ideais éticos eestéticos.

Dentre as características psicológicas dacivilização, duas aparecem como as maisimportantes: o fortalecimento do intelecto, que estácomeçando a governar a vida do instinto, e ainternalização dos impulsos agressivos com todasas suas conseqüentes vantagens e perigos. Ora, aguerra se constitui na mais óbvia oposição à atitudepsíquica que nos foi incutida pelo processo decivilização, e por esse motivo não podemos evitarde nos rebelar contra ela; simplesmente nãopodemos mais nos conformar com ela. Isto não éapenas um repúdio intelectual e emocional. Nós,os pacifistas, temos uma intolerância constitucionalà guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbadano mais alto grau.

Realmente, parece que o rebaixamentodos padrões estéticos na guerra desempenha umpapel dificilmente menor em nossa revolta do queas suas crueldades.

E quanto tempo teremos de esperar atéque o restante da humanidade também se tornepacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não serutópico esperar que esses dois fatores, a atitudecultural e o justificado medo das conseqüências deuma guerra futura, venham a resultar, dentro de um

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tempo previsível, em que se ponha um término àameaça de guerra.

Por quais caminhos ou por que atalhosisto se realizará, não podemos adivinhar. Mas umacoisa podemos dizer: tudo o que estimula ocrescimento da civilização trabalhasimultaneamente contra a guerra.

Espero que o senhor me perdoe se o queeu disse o desapontou, e com a expressão de todaestima, subscrevo-me.

Cordialmente,

Sigmund FREUD