decisões sta

126
APÊNDICE SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO Decisões proferidas pelo tribunal de conflitos durante o ano de 2006 DIÁRIO DA REPÚBLICA 15 de Junho de 2007

Upload: saragms

Post on 12-Jun-2015

262 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

Page 1: Decisões STA

APÊNDICESUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

Decisões proferidas pelo tribunal de confl itosdurante o ano de 2006

���������������� ���

15 de Junho de 2007

Page 2: Decisões STA

2 3

Acórdão de 12 de Janeiro de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Contrato de factoring. Garantia de pagamento dada pelo devedor ao Factor. Competência dos tribunais judiciais.

Sumário:

I — Constitui uma garantia suplementar de pagamento do crédito transferido para a sociedade Factor pelo con-trato de factoring, a declaração aposta e assinada nas facturas pelo representante do devedor (no caso do ente público dono da obra efectuada ao abrigo de contrato de empreitada de obras públicas) que reconhece a dívida e assume o compromisso irrevogável de pagar à ordem da Factor os créditos nelas referidos, sem deduções ou compensações.

II — Estruturalmente a referida garantia é uma obrigação autónoma em que é assumido o compromisso de pagar sem discutir a dívida subjacente.

III — É da competência dos tribunais judiciais a acção em que a sociedade Factor demanda o devedor das facturas com fundamento único na garantia por este prestada por meio daquela declaração.

Processo n.º 7/05 -70.Recorrentes: Heller Factoring Portuguesa, S. A., no conflito negativo

de jurisdição entre o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra e o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Rosendo José.

Acordam em conferência os Juízes que compõem o Tribunal dos Conflitos:

I - Relatório.Heller Factoring Portuguesa, S.A. requereu a resolução do conflito

negativo de jurisdição entre o Tribunal administrativo de Círculo de Coimbra e o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro para julgar a acção que propôs contra o Município de Aveiro, tendo como finalidade obter a condenação deste a pagar as facturas emitidas pela empresa ECOP – Empresa de Construções e Obras Públicas Arnaldo de Oliveira S.A. e cedidas à demandante no âmbito de um contrato de factoring, bem como os juros devidos pela mora.

Proposta a acção em primeiro lugar no TAC de Coimbra este declarou--se incompetente por sentença de 5.11.2003 e posteriormente, proposta a acção no Tribunal de Comarca, este declarou -se incompetente para decidir o litígio por sentença de 15.10.2004.

Ambas as decisões transitaram em julgado.

II – Apreciação.1. O litígio.Das certidões juntas aos autos verifica -se que a A. propôs no TAC

de Coimbra em 10.02.2003 acção contra o Município de Aveiro em que alegava:

- Ter celebrado com a aderente ECOP um contrato de factoring ao abrigo de qual recebeu as facturas n.ºs 3648;3649; 3796; 3797 e 3996, representativas de créditos sobre o R. no montante global de 700 655.53 €.

- A Câmara tinha assumido por declaração assinada pelo seu Presi-dente e com o selo branco do Município pagar directamente à deman-dante, sem deduções ou compensações aqueles créditos.

- A Câmara enviou cópia de relatório de liquidação provisória da Empreitada em que se considera credora da ECOP donde pretende retirar a consequência de nada dever à A.

- Os factos invocados pelo R. são todos eles posteriores à assunção da dívida por aceitação da cedência e confirmação da sua existência dos créditos e a A. não tinha qualquer possibilidade de conferir a existência dos créditos cedidos, pelo que só aceitou a cedência dos créditos após o compromisso assumido pela Câmara.

Identicamente alegou a A. perante o Tribunal Judicial.No TAC a decisão de incompetência assentou em que o litígio tal como

está configurado na acção tem como fundamento apenas o contrato de factoring e a responsabilidade exigida resultaria apenas deste contrato pelo que não haveria lugar a apreciar o contrato regulado pelo direito público – a empreitada de obras públicas.

Por seu lado a sentença do Tribunal Judicial assentou em que as partes estão de acordo quanto à cessão dos créditos e ao alcance desse contrato, sendo o litígio centrado sobre a existência e montante do crédito cedido, este relativo à apreciação sobre o cumprimento do contrato de direito público.

2. Os contratos de factoring e de empreitada.2.1. Para ultrapassar as enunciadas divergências sobre o objecto do li-

tígio importa avançar para além de saber qual o contrato que está na base do diferendo porque, caso os efeitos conferidos ao contrato de factoring permitam ao devedor opor ao cessionário os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, e caso a acção tenha sido proposta com fundamento principal no contrato de factoring, então seriam os dois contratos necessariamente chamados à apreciação do litígio.

Mas, como resultará da subsequente exposição, embora a resposta à primeira questão seja positiva, a acção não tem como fundamento principal o contrato de factoring.

Vejamos:Se o devedor puder opor ao cessionário a mesma defesa que pode

opor ao cedente então através da apreciação do contrato de factoring irá também passar a apreciar -se o contrato de empreitada de obra pública, visto que o Município apresenta a sua defesa com base em que a fac-turação não corresponde a trabalhos efectuados e que houve atrasos na obra que resultaram na rescisão do contrato e numa conta da sua posição perante a Aderente em que não é devedora, isto é, o Município pretende defender -se essencialmente através da oposição à demandante dos meios que detém contra a Aderente que cedeu os créditos.

2.2. Analisemos, ainda que brevemente, se em acção proposta com fundamento em contrato de factoring é admissível que o R. desenvolva

Page 3: Decisões STA

4 5

os mesmos meios de defesa de que disporia contra o cedente, ou se o contrato de factoring, afasta a referida possibilidade de discutir contra o cessionário as obrigações entre o primitivo credor e o devedor.

Um obstáculo se levanta desde logo à autonomização das obrigações do Devedor que consiste em não ser parte no contrato de factoring pelo que a respectiva superveniência e em qualquer caso a mencionada alte-ridade, determinam que não poderá projectar efeitos sobre os vínculos contratualmente estabelecidos — entre ele e o (agora) Aderente — no contrato de que emergem as facturas,

Assim o artigo 585.º do CCiv. estatui:“O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse,

todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão”.

É, assim, seguro que apenas os meios de defesa que assentem em facto ocorrido depois do conhecimento da cessão não são oponíveis ao cessionário ou Factor, pelo que por via da cessão financeira o crédito transferido não se torna um crédito abstracto, ou cartular.

2.3. Para melhor avançarmos detenhamo -nos um pouco mais na análise da estrutura obrigacional do contrato de factoring que foi dis-ciplinado no nosso país pelo DL 56/86, de 18 de Maio, posteriormente substituído pelo DL 171/95, de 18/7, cujo artigo 2.º refere:

“A actividade de factoring ou cessão financeira consiste na aquisição de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou de prestação de serviços, nos mercados interno e externo”.

Consiste este contrato na transferência dos créditos a curto prazo pela venda de produtos ou pela prestação de serviços que o seu titular – o aderente ao factor, ou cedente – efectua para o factor ou cessionário.

A este aspecto central da funcionalidade do contrato que envolve a concessão de crédito pelo Factor ao Aderente ao permitir que adquirindo os créditos pague e aquele receba desde logo o montante das facturas descontado de uma margem que é a retribuição do Factor, está também sempre associado o serviço de gestão e cobrança de créditos e de seguro de créditos ou assunção de riscos pelo Factor, aspectos que são inerentes ao próprio contrato enquanto operação financeira.

Para além disso o contrato aparece muitas vezes acompanhado da prestação de garantias dadas pelo terceiro devedor, por outros terceiros, ou pelo próprio cedente dos créditos.

A existência destas garantias, tal como o seguro dos créditos, destina--se a reduzir os riscos de não cobrança, que na sua falta recairiam na totalidade sobre o Factor.

O contrato de factoring numa análise dinâmica, comporta as seguintes operações:

a) O Aderente apresenta uma proposta de adesão à empresa de facto-ring (Factor) que é acompanhada de elementos relativos à sua actividade nos últimos anos e à situação financeira.

b) O Aderente entrega à Factor uma relação dos seus devedores cujos créditos pretende ceder.

c) A Factor avalia com base naquela informação ou outra comple-mentar, o limite de crédito que se dispõe a conceder ao aderente, por vezes com montantes limite por cada devedor do aderente, ou exclui mesmo alguns devedores da operação e propõe também as condições de remuneração que pretende. Pode assumir os riscos da operação ou reduzi -los propondo a prestação de garantias tal como pode introduzir

cláusulas de salvaguarda relacionadas com o persistente incumprimento dos clientes da Aderente.

d) Havendo acordo sobre os pontos mencionados o Aderente e a Factor celebram contrato de factoring por um determinado período de tempo (é comum ser por um ano), e em geral prevêem renovações.

e) A Aderente envia à Factor facturas dos Devedores englobados no contrato de factoring.

f) A Factor entrega em à Aderente o montante correspondente à per-centagem contratada do valor das facturas, inferior a 100 %, uma vez que o diferencial, também chamado provisão financeira, é retido para cobrir notas de crédito devoluções ou outros ajustamentos.

g) O Devedor (ou devedores) da Aderente é informado da cedência do crédito e passa a ficar obrigado a pagar aqueles débitos à Factor no ven-cimento ou no prazo médio que tinha estabelecido com a Aderente.

h) A Aderente paga à Factor uma remuneração pelos adiantamentos recebidos até à liquidação da factura e uma comissão de cobrança.

i) As facturas liquidadas são lançadas na conta da Aderente na data da cobrança, tendo

Além deste desenvolvimento habitual ou típico podem existir parti-cularidades da operação, designadamente a cedência pode ter a cláusula “com recurso” que consiste em a Factor poder exigir da Aderente o pagamento do crédito que o devedor não pagou no prazo estipulado e por outro lado pode ser acompanhada da prestação de garantias de pagamento do crédito, sendo que as garantias do crédito a favor do cedente que não sejam de carácter pessoal se transmitem também com a cedência financeira.

Este breve excurso permite destacar que o contrato de factoring dá lugar a uma situação obrigacional em que predomina a transmissão ou cessão de créditos, (primeiro como promessa de cessão e posterior-mente, apresentadas as facturas, efectuada a entrega do seu montante ao Aderente - ainda que descontado - e notificado o “Devedor” passa a ser uma cessão efectiva) pelo que as obrigações correspondentes a esta parte nuclear do contrato entre o cedente e o cessionário são reguladas em primeiro lugar pelas cláusulas do contrato e subsidiariamente pe-las normas do C.Civil sobre a cessão de créditos, designadamente os artigos 577º, 578º e 585º do C.Civ.

Importa também realçar que o Devedor não é parte no contrato de factoring, apenas fica afecto à sua eficácia depois de lhe ser comuni-cado o contrato e a obrigação de pagar à Factor – artigo 583.º n.º 1 do C.Civ. - consistindo esta afectação apenas no dever de efectuar a prestação à pessoa indicada como cessionário.

Assim, no comum dos contratos de factoring o Devedor não é parte nem assume nenhum compromisso no contrato, nem na sua órbita, e a relação que passa a existir entre o Factor e o Devedor da Aderente é o efeito do contrato de factoring pelo qual o factor vem a ocupar no contrato de venda, de fornecimento, de empreitada - ou outro, que é a fonte da obrigação primária - a posição e os direitos que o Aderente tinha contra o Devedor, pelo que funciona como condição de eficácia da transferência ou substituição da pessoa a quem deve ser realizada a prestação.

Aplicando a um caso típico de factoring a norma do artigo 585.º do C.Civ. quando a sociedade Factor demandar o Devedor pelo não paga-mento do débito da factura, este pode opor -lhe na acção todos os meios

Page 4: Decisões STA

6 7

de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.

2.4. Na acção que nos ocupa o Município “Devedor” diz que pretende discutir aspectos que podem (ou não) ser reportados a momento anterior à cessão, como é o caso de o montante facturado não corresponder a trabalhos realmente efectuados, pelo que se esta defesa fosse admissí-vel, passaria a ser chamada à acção a apreciação do cumprimento do contrato de empreitada de obras públicas e a relação de direito público que nele está implicada.

Porém, ao devedor demandado judicialmente não é permitido pelas regras de processo discutir o que entender ou que convém à sua defesa, mas o que está compreendido no objecto da acção (independentemente de reconvenção, em que não se trata de defesa).

E, o objecto da acção define -se essencialmente pelo pedido e pela causa de pedir tal como apresentados pelo A. na petição inicial, sendo no respectivo âmbito estrito, ou com as extensões que especificamente forem permitidas pela lei de processo, que é delimitado o litígio, en-quanto objecto do processo.

O Tribunal de Conflitos vem fazendo sucessivamente apelo a este princípio, como pode ver -se entre outros nos Ac. de 16.2.2005, Conflito n.º 14/04; de 21.10.2004, Conflito 8/04; de 23.9.2004, Conflito 5/04 e de 1/6/04, Conflito 24/03.

Na espécie em análise se atentarmos na petição inicial constatamos que o pedido de condenação do R. a pagar o montante das facturas e juros não se apoia exclusiva, nem sequer a título principal, no contrato de factoring.

Nem a acção proposta na espécie “sub judice” busca apoio na posição de devedor das facturas que o demandado também ocupa no conjunto das relações subjacentes entre as partes no contrato de factoring.

Diferentemente, a A., como tinha a seu favor a garantia prestada pela aposição nas facturas de declaração de reconhecimento da dívida, bem como o compromisso irrevogável de pagar à ordem da “Factor” os créditos nelas referidos, sem deduções ou compensações, pretende ver reconhecido o direito a haver da demandada o pagamento com base nessa declaração (portanto, sem discutir o contrato de empreitada).

De facto a demandante afirma nos artigos 18 a 20 da petição apresen-tada ao TAC, tal como diz na petição apresentada no Tribunal Judicial, que não tinha possibilidades de conferir a existência do crédito pelo que só aceitou a cessão com aquela garantia e é precisamente essa garantia que vem accionar, e neste contexto não adianta analisar agora outra hipotética perspectiva das suas possibilidades de accionamento (com mais certo ou incerto êxito) do devedor.

Isto é, a A. acciona o R. por uma garantia que interpreta e apresenta na acção como sendo do tipo “on first demand”, sendo esta a única causa de pedir que o tribunal competente há -de apreciar.

De facto, a Autora propõe a acção com base no entendimento de que a declaração aposta nas facturas terá o significado de o declarante se ter vinculado a não invocar qualquer motivo de não pagamento ou qualquer tipo de excepção, e a cumprir a obrigação de pagar, no seu vencimento, de modo automático, as facturas em que apôs a referida garantia.

Assim colocada a questão pela A., o Tribunal que a vai apreciar não terá de pronunciar -se sobre o contrato de empreitada e a sua execução, mas sobre o alcance e accionabilidade da garantia que é apresentada pela demandante como tendo sido dada pelo ente público Devedor à

sociedade Factor, situação que se relaciona com o contrato de factoring apenas pela respectiva funcionalidade, como garantia para o Factor que acresce ao seu direito ao cumprimento do contrato, nessa medida dimi-nuindo os riscos que em princípio sobre ele recairiam quanto a obter o pagamento das facturas (créditos) de que é cessionário.

2. 5. Importa agora passar a determinar se a declaração de vinculação a pagar em que a A. assenta a acção é ela mesma uma relação que releve das relações jurídico -administrativas.

Para distinguir o contrato administrativo do contrato de direito pri-vado importa considerar não só a presença de um contraente público e a promoção de finalidades de direito público, mas também os traços reveladores de uma ambiência de direito público, nas relações que nele se estabeleçam, como se afirmou no Ac. deste Tribunal, no Con-flito 21/03.

O contrato é administrativo quando constitui, modifica ou extingue uma relação jurídica administrativa, como refere o artigo 178.º do CPA.

A caracterização de determinadas relações jurídicas como adminis-trativas depende de nelas estar conferido ao sujeito público (pela lei ou pelo contrato previsto na lei como susceptível desse regime) o poder de exercer determinadas prerrogativas de autoridade sobre a disciplina jurídica da relação, ou estar sujeito a regras de interesse público que modificam a sua situação comparativamente com situações idênticas de direito privado, ainda que sejam especiais vinculações.

A relação jurídica decorrente da declaração sobre as facturas do re-conhecimento da dívida e o compromisso irrevogável de pagar aqueles créditos sem deduções ou compensações surge como qualquer outra declaração de dívida entre sujeitos privados e sem que a parte pública estivesse sujeita a qualquer vinculação própria nesta matéria, nem pu-desse por si mesma exercer qualquer poder sobre a determinação e conteúdo das vinculações decorrentes de tal declaração, manifestamente como forma comum de diminuir o risco de não pagamento do Factor e, portanto, como garantia adicional da obrigação de pagar as facturas.

Semelhante declaração teria exactamente o mesmo alcance e efeitos se tivesse em vista garantir créditos decorrentes de contrato de compra e venda ou de outra natureza. Nem existe uma norma específica sobre semelhante declaração quando prestada em nome de um ente público.

Assim, o Tribunal que a vai apreciar o processo não terá de pronunciar--se sobre o contrato de empreitada, mas essencialmente sobre a validade, a accionabilidade e o alcance e da garantia dada pelo município deman-dado à Factor, mesmo que na acção haja de equacionar os efeitos da proibição de concessão de garantias constante do n.º 7 do artigo 23.º da Lei das Finanças Locais em vigor (Lei 42/96, de 6 de Agosto).

De qualquer modo a situação a analisar como causa de pedir situa -se na apreciação do vínculo e das obrigações decorrentes de uma garantia prestada na órbita do contrato de factoring, que dele se autonomiza pelas suas características de obrigação objectiva ou abstracta, tal como decorre da declaração (título), mas que não assenta nem se reconduz de modo nenhum à apreciação das vicissitudes da empreitada e da liquidação do respectivo saldo.

Assim, resulta transparente que a questão a decidir se contém nos limi-tes de uma relação regulada pelo direito civil, já que a garantia prestada não releva do exercício de poderes públicos, nem configura contrato administrativo, nem é regulada por normas de direito administrativo, mas pelas regras comuns do direito civil, ainda que possam ocorrer,

Page 5: Decisões STA

8 9

pontualmente, limitações externas decorrentes do direito financeiro das autarquias locais (Vd. a este propósito o Parecer da PGR n.º 1136 de 11.02.2001).

Consequentemente, a competência para a acção cabe aos tribunais judiciais.

III - Decisão:Nos termos expostos acordam no Tribunal de Conflitos em julgar

competentes para a acção os tribunais judiciais, pelo que o processo será remetido ao Tribunal da Comarca de Aveiro.

Sem custas.Lisboa, 12 de Janeiro de 2006. — Rosendo Dias José (relator) — An-

tónio Ferreira Girão — Jorge Madeira dos Santos — António Fernando Samagaio — Luís Loureiro da Fonseca.

Acórdão de 18 de Janeiro de 2006.Conflito n.º 12/05Requerente: Almarvouga — Indústria Hoteleira e Turística, L.da, no

Conflito negativo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Políbio Rosa da Silva Flor.

Acordam no Tribunal de Conflitos:I. Almarvouga — Indústria Hoteleira e Turística, Lda, com sede

em Almargem, Calde, Viseu, e Manuel da Costa Rodrigues e mulher Maria de Fátima Fernandes Vieira da Costa, residentes em Almargem, intentaram no Tribunal Judicial da comarca de Viseu, acção declarativa com processo ordinário contra a Junta de Freguesia de Calde, conce-lho de Viseu, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 8.350.000$00, com juros à taxa legal, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais que a ré lhes causou ao não permitir a ligação de água a partir dos fontanários existentes na aldeia, ao restaurante típico e casas de turismo rural que exploram naquela localidade.

A ré contestou, excepcionando a incompetência absoluta do Tribunal para conhecer da causa, dado que se trata de actos de gestão pública, sendo com-petente para conhecer das acções sobre responsabilidade civil de uma junta de freguesia, como ente público, o tribunal administrativo de círculo.

Findos os articulados foi proferido o despacho saneador, tendo o Sr. Juiz julgado improcedente a invocada excepção de incompetência absoluta do tribunal.

Não se conformando com tal decisão a ré recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, considerando o tribunal comum incompetente para conhecer da causa, revogou a decisão recorrida, determinando a prolação de despacho em conformidade com a procedência da excepção de incompetência do tribunal.

Os autores recorreram dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando em síntese:

— Não estão em causa prejuízos decorrentes de actos de gestão ad-ministrativa, antes se trata da violação de direitos dos autores por actos praticados pela ré, que lhes causaram danos;

— A competência para conhecer da causa pertence assim ao tribunal comum;

— O acórdão recorrido violou o artigo 212. °, n.º 3, da Constituição e 3º do ETAF, devendo ser revogado, mantendo -se a decisão da 1ª instância.

A ré contra -alegou, dizendo em síntese:— A acção tem como fundamento danos causados pela não ligação

à rede de água destinada ao estabelecimento de indústria hoteleira e turística dos autores;

— Trata -se de actos de gestão pública, porque praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva que é a Junta de Freguesia ora ré;

— Deste modo, é competente para julgar a acção o Tribunal Admi-nistrativo.

No Supremo Tribunal de Justiça foi proferida decisão no sentido de considerar que o mesmo é incompetente para conhecer do objecto do recurso.

A requerimento dos autores o processo foi remetido para o Tribunal de Conflitos.

O Exmo. Procurador -Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.II. Nos termos do artigo 212. °, n.º 3, da Constituição, compete aos

tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

O artigo 51. °, n.º 1, alínea h), do Decreto -Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor aquando da propositura da acção, dispõe que compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções sobre a responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.

Não há que chamar à colação o Estatuto aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que substituiu aquele, porque não aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.

São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional — artigo 18. °, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).

Tudo está em saber os actos imputados à Junta de Freguesia de Calde, causadores de danos aos recorrentes, são actos de gestão pública ou privada: no primeiro caso a competência para conhecer do respectivo pedido pertencerá ao tribunal administrativo de círculo, no segundo ao Tribunal Judicial de Viseu.

Actos de gestão pública são os que visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e assentam sobre o jus autorictatis da entidade que os pratica.

Os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos do Estado ou de outras pessoas colectivas públi-cas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares — Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. 1, 7ª ed. pg. 643.

Page 6: Decisões STA

10 11

O Prof. Vaz Serra expendia que a distinção se deve fazer atendendo a se o acto se integra, ou não, numa actividade de direito público da pessoa colectiva: se ela se compreende numa actividade de direito privado da pessoa colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida por um particular, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão privada; se, pelo contrário, o acto é prati-cado no exercício de um poder público, isto é, na realização de função pública, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública — Revista de Legislação e Jurisprudência, 103. °, 350.

A distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada radica na natureza da actividade, consoante praticada ou não no exercício do jus imperii

Alegaram os autores na petição inicial que a ré (uma junta de fre-guesia), não autorizou a ligação de água de fontanários existentes na localidade (Calde) ao restaurante típico e casas de turismo rural que exploram naquela localidade.

Em consequência dessa conduta da ré os autores sofreram danos na exploração dessas instalações.

Não é líquido que recaia sobre a ré a obrigação de providenciar pelo abastecimento de água para as instalações dos autores, questão que estes não caracterizaram devidamente e que não está em causa no presente recurso.

Certo é que a ré ao não autorizar, por acto ou omissão, a referida ligação, agiu como ente público, na gestão de um bem público, que são os fontanários existentes na localidade.

Tratando -se de uma questão de responsabilidade civil extracontra-tual, emergente de um acto de gestão pública, é competente para dela conhecer o foro administrativo.

É também este o sentido da jurisprudência sobre a matéria — acórdãos do STJ de 16 -11 -1982, BMJ 321, 361, e de 17 -3 -1993, BMJ 425, 460, e do Tribunal dos Conflitos de 3 -6 -1982, BMJ 322, 211, de 10 -2 -1983, BMJ 324, 403, e de 15 -12 - 1992, BMJ, 422, 72.

III. Nestes termos, negam provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida e declarando competente para conhecer da matéria em causa o tribunal administrativo de círculo.

Não são devidas custas.Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. — Políbio Rosa da Silva Flor (rela-

tor) — Rosendo José — António Henriques Gaspar — Alberto Augusto Oliveira — Manuel Simas Santos — J. Simões de Oliveira.

Acórdão de 18 de Janeiro de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Comissão de serviço. Funcionário público. Incompetência absoluta. Tribunal do Trabalho. Tribunal administrativo.

Sumário:

I — Tendo a parte interposto recurso para o Supremo Tri-bunal de Justiça do acórdão da Relação que julgou absolutamente incompetente o Tribunal do Trabalho, por entender que a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa, pode o Supremo Tribunal de Justiça, embora decidindo não conhecer do recurso, determinar a remessa do mesmo para o Tribunal de Conflitos, em observância do princípio geral de aproveitamento do processado e, bem assim, do princípio da cooperação consagrado no n.° 1 do artigo 266.° do Código de Pro-cesso Civil.

II — Trata -se do chamado pré -conflito de jurisdição, cuja resolução, à semelhança do conflito propriamente dito, é da competência do Tribunal de Conflitos.

III — O facto de a autora, com o estatuto de funcionária pú-blica no serviço de origem, aceitar desempenhar funções no Instituto de Solidariedade e Segurança Social (ISSS), em regime de comissão de serviço, não altera a relação jurídica de emprego público preexistente, sendo que a referência feita no acordo de nomeação em comissão de serviço, de que o mesmo é celebrado ao abrigo do Decreto -Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, tratando -se de uma qualificação jurídica feita pelas partes, não vincula os tribunais, nem tem a virtualidade de atribuir natureza privada àquela relação jurídica de emprego.

IV — Sendo a autora funcionária pública e tendo proposto a acção contra uma pessoa colectiva de direito público, com natureza de instituto público, fundando os seus pedidos remuneratório e indemnizatório em alegada cessação ilícita da comissão de serviço, alicerçada na ilegalidade de dois despachos da Secretária de Estado da Solidariedade e Segurança Social, cabe a respectiva apreciação na competência dos tribunais administrati-vos.

Processo n.º 19/05 -70.Requerente: Maria Isabel Ribeiro da Silva Felgueiras, no conflito

negativo de jurisdição entre o 5° juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Manuel Joaquim Oliveira Pinto Hes-panhol.

Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos:I

1. Em 24 de Setembro de 2003, MARIA ISABEL RIBEIRO DA SILVA FELGUEIRAS instaurou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra o INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL, adiante designado por ISSS, pedindo: (a) que o réu seja condenado a cumprir, até à data do seu termo, o acordo de nomeação em comissão de serviço celebrado com a autora para o

Page 7: Decisões STA

12 13

desempenho do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, e seja o réu condenado a pagar 3.919,46 euros, mensais, desde 24 de Setembro de 2001 [será 24 de Setembro de 2002, conforme resulta do artigo 46º da petição inicial] até 1 de Junho de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das funções que, actualmente, desempenha [assessora principal na função pública, tal como se refere no artigo 46º da petição inicial] devendo o réu, nesta conformidade, ser condenado a pagar à autora os salários vencidos e vincendos no montante de vinte e seis mil, duzentos e vinte e dois euros e setenta e três cêntimos (26.222,73 euros); (b) subsidiariamente, sem conceder e se assim não se entender, que o réu seja condenado a pagar à autora pela cessação do antedito acordo de nomeação em comissão de serviço, a indemnização de vinte e seis mil, duzentos e vinte e dois euros e setenta e três cêntimos (26.222,73 euros); (c) que, em qualquer caso, o réu seja condenado em juros vincendos a partir da citação.

Para tanto, alegou, em síntese, que:— Em 1 de Junho de 2001, o réu celebrou com a autora um acordo

de nomeação em comissão de serviço para o desempenho do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança So-cial de Lisboa, ao abrigo do Decreto -Lei n.° 404/91, 16 de Outubro;

— Este acordo de nomeação em comissão de serviço está sujeito aos princípios e regras vertidos no Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS, nos Estatutos do ISSS e, supletivamente, pelos princípios que regem o contrato individual de trabalho;

— Por força do clausulado do mesmo acordo, à autora aplica -se o regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos do ISSS, pelos regulamentos que lhe derem execução, designadamente, o Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia e, subsidiariamente, pelos princípios que regem o contrato individual de trabalho;

— Por iniciativa do Secretário de Estado da Solidariedade e Segurança Social, que carecia de competência para tal, foi aditada uma alínea f) ao artigo 12.° do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS, que previu a possibilidade da comissão de serviço cessar por despacho fundamentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho, nos termos do artigo 20.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.° 49/99, de 22 de Junho;

— Não sendo esse aditamento proposto pelo conselho directivo do ISSS, tal acto é nulo, consubstanciando uma alteração ao contrato de nomeação da comissão de serviço sem o consentimento da autora;

— As funções e o regime de comissão de serviço da autora não são regulados pela Lei n.° 49/99, que só se aplica aos dirigentes do Estado, sujeitos ao regime da função pública;

— O fundamento invocado pela Secretária de Estado da Solidariedade e Segurança Social para a cessação da comissão de serviço, «necessi-dade decorrente de imprimir nova orientação à gestão de serviços e de modificar as políticas a prosseguir [...1», só poderia ser invocado se tivessem sido dadas orientações à autora e esta não as cumprisse diligentemente, o que não se verificou, pelo que tal fundamento não existe e é improcedente;

— A comissão de serviço da autora cessou em 24 de Setembro de 2002, por despacho de 19 de Setembro de 2002, que é ilegal, sendo certo que o conselho directivo do ISSS não deliberou nem fundamentou a cessação da comissão de serviço da autora, como deveria ter acontecido;

— Assim, tem a autora direito a receber a diferença entre os salários que auferiria caso continuasse a desempenhar as funções de adjunta

da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança até 1 de Junho de 2004 e o vencimento que, actualmente, lhe é pago enquanto assessora principal na função pública;

— Ainda que a cessação da comissão de serviço tivesse sido vali-damente efectuada, sempre a autora teria direito a receber, a título de indemnização, o montante correspondente à diferença entre a retribui-ção do cargo cessante e a remuneração da actual categoria (assessora principal na função pública), incluindo os subsídios de férias e de Natal, até ao termo da comissão de serviço.

O réu contestou, invocando (no que agora interessa) a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, argumentando, no essencial:

— O réu é um instituto público, conforme o disposto no n.° 1 do arti-go 1º do Estatuto do ISSS, aprovado pelo Decreto -Lei n.° 316 -A/2000, de 7 de Dezembro;

— A autora é funcionária pública e foi nomeada, por acto administra-tivo, adjunta da directora do Centro Distrital de Lisboa do ISSS, tendo exercido, por conta do réu e em regime de comissão de serviço, funções que a qualificam como pessoal dirigente;

— A comissão de serviço em que a autora foi investida é regulada pelo Direito Administrativo e corresponde à forma normal de provimento em cargos dirigentes;

— O regime do Decreto -Lei n.° 404/91, 16 de Outubro, nada tem a ver com a comissão de serviço para provimento em cargos dirigentes na Administração Pública, cujo vínculo se inicia e cessa por acto ad-ministrativo;

— O exercício, em regime de comissão de serviço, de funções como as exercidas pela autora tem origem, não em contrato, mas antes em acto administrativo sujeito a aceitação do interessado;

— O acordo de nomeação em comissão de serviço não tem outro valor jurídico que não a aceitação pela nomeada do cargo de adjunta da directora distrital;

— Os factos que servem de causa de pedir à presente causa são rela-tivos ao funcionalismo público, tendo por objecto a definição de uma situação decorrente de uma relação jurídica de emprego público;

— Competindo aos tribunais do trabalho conhecer das questões emer-gentes de relações de trabalho subordinado e não tendo a relação jurídica vigente entre a autora e o réu essa natureza, o Tribunal do Trabalho de Lisboa é materialmente incompetente para conhecer do pedido deduzido contra o réu.

Respondeu a autora, reafirmando a competência do tribunal do tra-balho.

Foi proferido despacho saneador (fls. 184 a 187), no qual se concluiu que «todos os elementos em discussão nos autos assentam numa relação de direito administrativo a dirimir nos tribunais administrativos» e, em consequência, julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho de Lisboa, absolvendo o réu da instância, nos termos dos conjugados artigos 101º, 102.°, 103.°, 105.°, 288.°, n.° 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força da alínea a) do n.° 2 do artigo l do Código de Processo do Trabalho.

2. A autora agravou deste despacho, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa considerado que «o litígio entre a agravante e o agravado emerge de uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral de direito privado, cabendo, por isso, a respectiva apreciação na com-petência dos tribunais administrativos e não dos tribunais do trabalho»,

Page 8: Decisões STA

14 15

pelo que negou provimento ao agravo e confirmou integralmente o despacho recorrido.

Inconformada, a autora interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido como agravo, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, no qual formulou as seguintes conclusões:

«I. A decisão recorrida não valora os factos alegados nos artigos 1.º a 60.° da petição inicial e 4.° a 18.° da réplica, e também não conhece da questão de direito, devidamente alegada, de que a recorrente estava em comissão de serviço de direito de trabalho, nos termos do Decreto--Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, constituindo ambas as omissões nulidades da decisão recorrida, violando o artigo 668.°, n.° 1, alíneas b) e d), do CPC;

II. A decisão recorrida decidiu que a relação jurídica entre a A. e o R. era de direito administrativo, pelo que julgou procedente a excepção de incompetência do Tribunal do Trabalho;

III. A competência material de um determinado Tribunal há -de aferir--se de acordo com os termos em que [a acção] é proposta, atendendo -se ao direito invocado perante o pedido formulado e respectivos funda-mentos, que a Autora pretende ver reconhecidos judicialmente, ou seja, pela natureza da relação material, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante;

IV. Na petição inicial e na resposta à excepção, a A. alegou os factos e o direito que caracterizam a sua relação de trabalho com o réu, como uma relação a que é aplicável o direito do trabalho, constituindo essa relação em novos instrumentos jurídicos de contratação e gestão a que os Institutos Públicos vêm recorrendo na última década;

V. Acresce que a A. não era funcionária pública do Estado, mas de um Instituto Público com personalidade jurídica, tendo celebrado com o ISSS um contrato de trabalho subordinado, com isenção de horário, para desempenhar a actividade de adjunto do director, descontando, como regra para a Segurança Social e não para a Caixa Geral de Aposentações, durante 3 anos, que seria desempenhada em comissão de serviço de direito de trabalho, então prevista e regulada no Decreto -Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, e actualmente prevista e regulada nos artigos 244.° a 248.° do Código do Trabalho;

VI. Assim, a decisão recorrida qualificou mal a comissão de serviço da recorrente, dado que a qualificou como sendo da função pública, enquanto a referida comissão de serviço é de direito de trabalho, dado que ao cargo de adjunto do director era aplicado o regime jurídico do contrato individual de trabalho, em comissão de serviço, nos termos dos artigos 37.°, 38.°, nºs 1 a 4, dos Estatutos do ISSS, aprovados pelo Decreto -Lei n.° 316 -A/2000, de 7 de Dezembro, e do Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia (Despacho n.° 11464, Diário da República, II série, de 30 de Maio);

VII. Consequentemente, a decisão recorrida violou o artigo 85.°, alínea b), da Lei n.° 3/99, de 13.01, pelo que deve ser revogada e subs-tituída por outra que declare o Tribunal do Trabalho de Lisboa com-petente, em razão da matéria, ou, se assim não se entender, ordene o prosseguimento dos autos para julgamento de modo a fazer prova sobre a relação laboral entre a recorrente e o recorrido.»

O réu, em contra -alegação, suscitou a questão prévia da inadmissibili-dade do recurso, pois quando o Tribunal da Relação julga incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição admi-

nistrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos (n.° 2 do artigo 107.° do Código de Processo Civil), pelo que estaria vedado ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do agravo, defendendo, para o caso de assim não se entender, a confirmação do acórdão recorrido.

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de fls. 355 a 366, atento o estipulado no n.° 2 do artigo 107.° do Código de Processo Civil, deci-diu não conhecer do recurso de agravo e determinou a sua remessa ao Tribunal dos Conflitos, «em nome do princípio geral de aproveitamento do processado (artigo 105.°, n.° 2, do Código de Processo Civil)», como é jurisprudência firme daquele Supremo Tribunal.

Na mesma linha de observância do princípio geral de aproveitamento do processado e, bem assim, do princípio da cooperação vertido no n.° 1 do artigo 266.° do Código de Processo Civil, também o Tribunal dos Conflitos vem reiteradamente entendendo que, tendo a parte interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que julgou absolutamente incompetente o tribunal judicial, por entender que a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pode o Supremo Tribunal de Justiça, embora decidindo não conhecer do recurso, determinar a remessa do mesmo para o Tribunal dos Conflitos (cf., entre outros, o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 29 de Setembro de 2005, proferido no processo n.° 9/05, disponível em www.dgsi.pt/jsta, como documento n.° SAC2005092909).

3. No caso, trata -se, efectivamente, do chamado pré -conflito de ju-risdição, cuja resolução, à semelhança do conflito propriamente dito, é da competência do Tribunal dos Conflitos.

Com efeito, a questão que é objecto da intervenção do Tribunal dos Conflitos nos termos do n.° 2 do artigo 107.° do Código de Processo Civil, não constitui um verdadeiro e próprio conflito negativo de ju-risdição no sentido que lhe é atribuído pelo n.° 1 do artigo 115.° do mesmo Código, pois não houve pronúncia divergente de autoridades em conflito sobre a sua competência, só o tendo feito o tribunal judicial de 1ª instância e o tribunal da Relação.

A intervenção do Tribunal dos Conflitos ao abrigo da citada norma tem, assim, uma função preventiva de conflitos de jurisdição.

Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, foi dado cumpri-mento ao disposto nos artigos 86.° e 87.° do Regulamento aprovado pelo Decreto n.° 19.243, de 16 de Janeiro de 1931, com as alterações previstas no Decreto -Lei n.° 23.185, de 30 de Outubro de 1933, tendo o Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitido parecer, «no sentido de se fixar como competentes, para conhecer da acção em causa, os tribunais administrativos».

A única questão a decidir reconduz -se, pois, a saber se a competên-cia para conhecer da acção instaurada pela autora contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social pertence ao Tribunal do Trabalho de Lisboa, como sustenta, ou antes se a mesma se enquadra na competência dos tribunais administrativos, como é defendido pelo réu.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II1. As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:1) Em 1 de Junho de 2001, mediante a «Deliberação n.° 104», cuja

cópia consta de fls. 112, o conselho directivo do réu nomeou a autora

Page 9: Decisões STA

16 17

para desempenhar o cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa;

2) Nessa data, autora e réu celebraram o acordo de nomeação em comissão de serviço, cuja cópia se encontra de fls. 22 a 23, onde consta, nomeadamente, que o mesmo é celebrado e livremente aceite para o exercício do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de Solida-riedade e Segurança Social de Lisboa, em regime de comissão de serviço, ao abrigo do disposto no Decreto -Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, pelo período de 3 anos, ficando a autora abrangida pelo regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos do ISSS, pelos regulamentos que lhe derem execução, designadamente, o Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia, e, subsidiariamente, pelas normas e princípios que regem o contrato individual de trabalho;

3) Em 22 de Novembro de 2001, mas com efeitos retroagidos a 1 de Janeiro de 2001, o conselho directivo do réu, através da «Deliberação n.° 286», cuja cópia consta de fls. 24 a 27, aprovou o modelo/minuta de Acordo a celebrar entre o ISSS e os trabalhadores que viessem a ser nomeados para o exercício, em comissão de serviço, de cargos dirigentes e funções de assessoria especializada e secretariado, em que se estabelece que o acordo entre as duas partes deve ser reduzido a escrito, dado o regime específico que resulta do regulamento do pessoal dirigente e de chefia e porque se trata de acordo entre duas partes, «aquele que nomeia e o que aceita a nomeação»;

4) A 27 de Agosto de 2002, a autora foi confrontada, em sede de audiência prévia, com um projecto de despacho da Secretária de Es-tado da Solidariedade e Segurança Social, tendente a fazer cessar a sua comissão de serviço como adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa;

5) A 24 de Setembro de 2002, a autora foi confrontada com a notifica-ção da cessação definitiva da respectiva função de adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, com efeitos a partir de 24 de Setembro;

6) A autora reagiu judicialmente através de recurso contencioso de anulação contra o referido despacho da Secretária de Estado da Solida-riedade e Segurança Social;

7) A autora é funcionária pública.2. Como é sabido, a competência constitui um dos pressupostos

processuais mais importantes, relativo ao tribunal, a apreciar em função dos termos em que a acção foi proposta e a determinar pela forma como o autor estrutura o pedido e a respectiva causa de pedir.

Na aferição da competência, o tribunal não está obviamente vinculado à qualificação jurídica ou às considerações de direito que os autores fazem perante os factos (com relevância jurídica) descritos na petição inicial, nos quais assentam os pedidos formulados.

Sendo a competência a medida da jurisdição de cada tribunal de-terminada segundo vários critérios, no plano interno ou nacional, a competência encontra -se dividida por várias espécies de tribunais, entre outros fundamentos, segundo a natureza da matéria. A competência em razão da matéria distribui -se por «categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas» (ANTUNES VARELA e OUTROS, Manual de Processo Civil, 2. edição, p. 207).

Ora, «os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (compe-

tência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas» (obra citada, p. 208).

É o que resulta do n.° 1 do artigo 211.º da Constituição, bem como do n.° 1 do artigo 18.° da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro, Lei de Organi-zação e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, normas que consagram a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional — a competência destes tribunais verifica -se sempre que as regras reguladoras da competência de outra ordem jurisdicional não atribuam o conhecimento de uma determinada questão a um tribunal específico.

Os tribunais do trabalho são tribunais de competência especializada, pertencendo -lhes, em matéria cível, a competência delimitada nas alíne-as a) a s) do artigo 85.° da citada Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

No que releva para a temática em apreço, compete aos tribunais do trabalho conhecer «das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de con-tratos de trabalho» [alínea b)] e, bem assim, «das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos do trabalho» [alínea f)].

Precisamente entre os tribunais fora da ordem jurisdicional regra destacam -se os tribunais administrativos e fiscais, aos quais compete «o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (n.° 3 do artigo 212.° da Constituição).

Segundo o artigo 3.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto -Lei n.° 129/84, de 27 de Abril, alterado pelo Decreto -Lei n.° 229/96, de 29 de Novembro — em vigor à data da propositura da acção e que é aplicável ao caso concreto, atento o disposto no artigo 22.° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tri-bunais Judiciais e na disposição transitória constante do artigo 2.° da Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, diploma que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais —, «[i]ncumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Especificamente, comanda o artigo 40.° do citado Estatuto, na redac-ção introduzida pelo Decreto -Lei n.° 229/96, de 29 de Novembro, que compete à Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo conhecer «dos recursos de decisões dos tribunais admi-nistrativos de círculo que versem sobre matéria relativa ao funcionalismo público ou que tenham sido proferidas em meios processuais acessórios» [alínea a)] e «dos recursos de actos administrativos ou em matéria ad-ministrativa praticados pelo Governo, seus membros, [...], todos quando relativos ao funcionalismo público [...]» [alínea b)].

Por sua vez, o artigo 104.° do mesmo Estatuto, também na versão conferida pelo Decreto -Lei n.° 229/96, de 29 de Novembro, estipula que «[p]ara efeitos do presente diploma, consideram -se actos e matéria relativos ao funcionalismo público os que tenham por objecto a defi-nição de uma situação decorrente de uma relação jurídica de emprego público».

Page 10: Decisões STA

18 19

3. No caso vertente, a autora funda os seus pedidos, remuneratório e indemnizatório, decorrentes de alegada cessação ilícita da comissão de serviço, na existência de uma relação jurídica a que afirma ser aplicável o Direito do Trabalho e na ilegalidade de dois despachos da Secretária de Estado da Solidariedade e Segurança Social: (i) o despacho que aditou uma alínea f) ao artigo 12.° do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS, possibilitando que a comissão de serviço cesse por despacho fundamentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho, nos termos do artigo 20.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.° 49/99, de 22 de Junho; (ii) o despacho que fez cessar a comissão de serviço, a partir de 24 de Setembro de 2004.

Subjectivamente, temos, de um lado, como réu, o Instituto de Solida-riedade e Segurança Social, que é uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com natu-reza de instituto público, conforme rege o n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto do ISSS, aprovado pelo Decreto -Lei n.° 316 -A/2000, de 7 de Dezembro, e do outro, uma funcionária pública, que após a cessação da comissão de serviço continuou como «assessora principal na função pública», o que aponta no sentido de que mantém com a Administração Pública, uma relação de emprego regulada pelo Direito Administrativo.

É certo que o n.° 1 do artigo 37.° do citado Estatuto do ISSS deter-mina que ao respectivo pessoal «aplica -se o regime jurídico do contrato individual de trabalho e o preceituado nos regulamentos internos do ISSS», porém, logo se exceptua o disposto nos próprios estatutos e no diploma que os aprova.

Ora, a antedita norma não se aplica à autora, já que, sendo funcioná-ria pública, está sujeita ao regime jurídico prevenido no artigo 38.° do mesmo Estatuto do ISSS, que regula a mobilidade, entre outros, dos funcionários públicos.

Na verdade, o artigo 38.° do mesmo Estatuto do ISSS estabelece no seu n.° 1 que «[o]s funcionários do Estado, de autarquias locais, assim como os empregados, quadros ou administradores de empresas públicas ou privadas, poderão, mediante acordo prévio dos interessados e das entidades a que estiverem vinculados, desempenhar funções no ISSS, em regime de requisição ou de comissão de serviço por um período de três anos, renovável por iguais períodos, com garantia do lugar de origem e dos direitos nele adquiridos, considerando -se o período de requisição ou de comissão como tempo de serviço prestado nos quadros de que provenham, suportando o ISSS as despesas inerentes»; por seu turno, o n.° 4 do mesmo normativo esclarece que os funcionários vinculados aos quadros de pessoal, a que se refere o n.° 1 transcrito, «podem exercer, no quadro específico do ISSS e no regime de comissão de serviço previsto no n.° 1 do presente artigo, cargos dirigentes, funções de secretariado e de assessoria especializada ao conselho directivo e aos directores do Centro Nacional de Pensões e dos centros distritais, nos termos do regulamento interno do ISSS».

Portanto, nos termos dos normativos transcritos, sendo a autora funcionária pública de um instituto público, como assevera na alega-ção do recurso, mesmo após ter aceite desempenhar funções no ISSS em regime de comissão de serviço, manteve o estatuto de funcionária pública do serviço de origem, com a necessária aplicação do respec-tivo regime jurídico, o que significa que não lhe é aplicável o regime jurídico do contrato individual de trabalho na sua relação de trabalho com o réu.

Na realidade, como logo se ponderou no acórdão recorrido, a cele-bração do acordo de nomeação em comissão de serviço (fls. 22 a 23) não operou uma conversão do contrato administrativo existente com a autora num contrato de trabalho regulado pelo Direito Privado, pois sendo a autora funcionária pública, a comissão de serviço limitou -se a consubstanciar, não um facto constitutivo de uma relação nova, mas um facto modificativo de uma relação pré -existente, que, subsequentemente, manteve natureza idêntica (carácter jurídico público).

Aliás, como também se acentua no acórdão recorrido, o facto do acordo de nomeação em comissão de serviço referir que é celebrado ao abrigo do Decreto -Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, não tem as con-sequências que a autora pretende, uma vez que a qualificação jurídica feita pelas partes não vincula os tribunais, sendo que a alusão àquele diploma legal é manifestamente desajustada face à situação concreta da autora, funcionária pública que vai exercer funções dirigentes no âmbito do réu, pessoa colectiva de direito público, com a natureza de instituto público, não tendo a virtualidade de atribuir natureza privada a uma relação jurídica de emprego público.

Acresce que a sujeição da autora, nos termos consignados na «Cláu-sula Terceira» do acordo de nomeação em comissão de serviço, ao regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos do ISSS e no Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS e, subsidiariamente, nas normas e princípios que regem o contrato in-dividual de trabalho, não tem o condão de alterar a natureza do vínculo jurídico -administrativo anteriormente existente, como bem flui da leitura conjugada dos referidos artigos 37.° e 38.° dos Estatutos do ISSS.

Tal como sugere o réu na sua contestação (fls. 102, ponto 13.), a celebração do acordo de nomeação em comissão de serviço entre o réu e a autora não terá outro valor jurídico relevante para além da aceitação pela nomeada do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa.

Consequentemente, emergindo o litígio entre a autora e o réu de uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral de direito privado, cabe a respectiva apreciação na competência dos Tribunais Administrativos e não na dos Tribunais do Trabalho.

IIIPelos fundamentos expostos, decide -se pela competência dos tribu-

nais administrativos para apreciar os pedidos formulados pela autora contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, confirmando -se o acórdão da Relação de Lisboa.

Sem custas, por não serem devidas (artigo 96.° do Regulamento aprovado pelo Decreto n.° 19243, de 16 de Janeiro de 1931).

Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. — Manuel Joaquim Pinto Hespanhol (relator) — Rosendo Dias José — Joaquim Manuel Cabral Pereira Silva — Alberto Augusto Oliveira — António Jorge Fernandes Oliveira Mendes — José Manuel Almeida Simões de Oliveira. Vencido. Na li-nha do decidido em hipótese análoga (Ac. deste Tribunal de Conflitos nº 371/02, de 27 de Fevereiro) consideraria competente o Tribunal do Trabalho.

Page 11: Decisões STA

20 21

Acórdão de 18 de Janeiro de 2006.

Assunto:

Contrato administrativo e contrato de direito privado. Em-preitada. Concessionário de captação e distribuição de águas.

Sumário:

I — Embora possuindo personalidade jurídica de direito privado, os concessionários de serviço público exercem tituladamente poderes públicos e, no exercício dessas prerrogativas, nada obsta a que sejam partes em contra-tos administrativos que tenham por objecto a actividade concessionada, como é o caso da empreitada da obra de concepção e construção de infra -estruturas de captação e distribuição de água (Águas do Cávado, S. A.).

II — Do disposto no artigo 239.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro, resulta a aplicação obrigatória do RJEOP, em bloco, a uma empreitada desse tipo, desde que o respectivo valor seja superior ao fixado na regulamentação comunitária para que o preceito remete — ficando as relações entre as partes submetidas ao regime dos contratos administrativos, incluindo o do respectivo contencioso, a dirimir nos tribunais administrativos.

III — O tribunal competente para o conhecimento da acção em que os empreiteiros pedem a condenação do dono da obra no pagamento de uma importância a título de sobrecustos e prejuízos sofridos por causa da execução da obra é o tribunal administrativo, sendo a estipulação do foro do tribunal judicial de determinada comarca, feita no clausulado do contrato, incapaz de alterar a qualificação do contrato ou de afastar aquela compe-tência, que é de ordem pública.

Processo n.º 20/03 -70.Recorrentes: Construtora do Tâmega e outras, no Conflito Negativo

de Jurisdição, entre o 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. J. Simões de Oliveira.

Acordam no Tribunal de Conflitos: - I -

A CONSTRUTORA DO TÂMEGA, S.A. e outras recorrem para o Tribunal de Conflitos, nos termos do art. 107º, nº 2, do C.P.C., do Acórdão da Relação de Guimarães, de fls. 693, que, nos autos de acção com processo ordinário proposta pelas recorrentes contra ÁGUAS DO CÁVADO, S.A., confirmou a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos que se declarou incompetente em razão da matéria, absol-vendo a Ré da instância.

Nesta acção, as ora recorrentes pediam a condenação da outra parte na quantia global de € 3.326.979,76, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, com fundamento em ter celebrado com ela, em 16.1.97, um contrato designado por Empreitada do sistema multimunicipal de captação, tratamento e distribuição de água do Norte do Grande Porto – Grupo 5.II de Obra – Ramal de Santo Tirso – ociden-tal, contrato esse antecedido de um concurso público lançado pela Ré na qualidade de titular da exploração e gestão do sistema de multimunicipal de captação, tratamento e distribuição de água do Norte do Grande Porto, e no qual as Autoras foram escolhidas como adjudicatárias. A quantia peticionada refere -se a sobrecustos e prejuízos ocasionados pela Ré durante as vicissitudes da execução da empreitada.

Excepcionada a incompetência material do tribunal, por o contrato em causa ser administrativo, a sentença veio a julgar a excepção procedente e declarar o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo a Ré da instância – sentença esta que a Relação de Guimarães veio a confirmar.

As recorrentes insurgem -se contra tal decisão, e terminam as suas alegações enunciando as seguintes conclusões:

“1º VEM O PRESENTE RECURSO INTERPOSTO DO ACÓRDÃO DE FLS.... DOS AUTOS QUE, POR MERA REMISSÃO CONFIRMOU A ALIÁS DOUTA SENTENÇA DE FLS. 584 E SS QUE DECIDIU PELA PROCEDÊNCIA DA ARGUIDA EXCEPÇÃO DE INCOMPE-TÊNCIA, EM RAZÃO DA MATÉRIA, DO DIGNº TRIBUNAL DA COMARCA DE BARCELOS PARA CONHECER DO OBJECTO DOS PRESENTES AUTOS.

2º MAU GRADO O ESFORÇO DE FUNDAMENTAÇÃO QUE SE ADIVINHA TER PRECEDIDO A SENTENÇA RECORRIDA, EN-TENDEM AS ORA ALEGANTES QUE NÃO ASSISTE RAZÃO AO DIGº TRIBUNAL A QUO, TANTO MAIS E ATÉ PORQUE, ATENTO O CARÁCTER REMISSIVO DO DOUTO ACÓRDÃO EM RECURSO PODE MESMO AFIRMAR -SE QUE, NO QUE CONCERNE AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS ESPECÍFICOS, A DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA NÃO CHEGOU, NA PRÁTICA, A VER REAPRECIADAS AS QUESTÕES LEVANTADAS PELA RECOR-RENTES.

3º PODEM, RESUMIDAMENTE, ELENCAR -SE DA SEGUINTE FORMA OS ARGUMENTOS EM QUE SE FUNDOU A DECISÃO AGRAVADA (NATURALMENTE EM CONTRAPOSIÇÃO ÀS POSI-ÇÕES ANTES DEFENDIDAS PELAS PARTES): 1/ O RJEOP TERIA APLICAÇÃO, INTEGRAL E OBRIGATÓRIA, AO CONTRATO DOS AUTOS POR FORÇA DA QUALIDADE DA R. COMO CONCES-SIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO; 2/ TAL APLICAÇÃO TOTAL NÃO FOI PREJUDICADA PELO DISPOSTO NO ART.º 3º DO PRÓ-PRIO CONTRATO DE EMPREITADA OUTORGADO ENTRE AS PARTES; 3/ NEM, TAMPOUCO, PELA NÃO APLICABILIDADE DA DIRECTIVA 93/37/CEE; 4/ NEM, POR ÚLTIMO, PELO FACTO DE O ART.º 10 DO ALUDIDO CONTRATO DE EMPREITADA PRE-VER EXPRESSAMENTE A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE BARCELOS PARA CONHECER DAS QUESTÕES DELE EMERGENTES.

4º AO INVERSO DO DEFENDIDO PELO DIGº TRIBUNAL A QUO, CONCLUÍRAM AS AGRAVANTES PELA INAPLICABILIDADE DO RJEOP AO CASO DOS AUTOS – AO MENOS NA MEDIDA EM QUE

Page 12: Decisões STA

22 23

O QUER FAZER A DECISÃO RECORRIDA – E, ASSIM SENDO, ENTENDEM COMO IMPROCEDENTE A ARGUMENTAÇÃO EM CONTRÁRIO AÍ ADUZIDA.

5º COMO É SABIDO A DEFINIÇÃO DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO E, COMO TAL, DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL A UMA RELAÇÃO CONTRATUAL GENERICAMENTE CONSIDERADA E, MAIS AINDA, ÀQUELAS QUE SE TRADUZEM NA CELEBRA-ÇÃO DE CONTRATOS DE EMPREITADA, SEMPRE TERÁ DE REPORTAR -SE À DATA DA PUBLICAÇÃO DO RESPECTIVO “ANÚNCIO” OU “CONVITE A CONTRATAR” POR PARTE DA “DONA DA OBRA” POR SER ESSE O MOMENTO ONDE SE DE-FINEM OS CONDICIONALISMOS, JURÍDICOS E FÁCTICOS, DE BASE QUE ESTARÃO SUBJACENTES ÀS PROPOSTAS A APRESENTAR.

6º ORA, NO CASO DOS AUTOS, TAL PUBLICAÇÃO TEVE LU-GAR EM 4.07.96 – CONFORME SE REFERIU JÁ NA PI – SENDO, POR ISSO, IRRELEVANTE QUALQUER EVENTUAL, E DE RESTO NÃO PROVADA, POSTERIOR ALTERAÇÃO DE REGIME.

7º RESTA, A ESTE PROPÓSITO, APRECIAR A RELEVÂNCIA DA ARGUMENTAÇÃO DA DOUTA SENTENÇA AGRAVADA A PROPÓSITO DA CLASSIFICAÇÃO DA R. COMO “CONCESSIO-NÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO”.

8º A ESTE RESPEITO, E RETOMANDO O QUE SE DISSE JÁ SUPRA, SEMPRE TERÁ DE COMEÇAR POR PROCEDER -SE À RIGOROSA DEFINIÇÃO DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO – VG. LEGISLAÇÃO VIGENTE – EXISTENTE À DATA DA PUBLICAÇÃO DO ANÚNCIO (04.07.96) OU MESMO, SE ASSIM SE PREFERIR E SEM PRESCINDIR, À DATA DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE EMPREITADA EM CAUSA NOS AUTOS (27.01.97) O QUE, COMO SE VERÁ E PARA O EFEITO, VIRÁ A DAR NO MESMO.

9º ANALISADO O TEOR DOS PRECEITOS EM CAUSA, NA REDACÇÃO APLICÁVEL, RESULTA CLARO QUE MESMO QUE, COMO AFIRMA A R – E NO QUE SE NÃO PRESCINDE – A MESMA SE INTEGRASSE NA “ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL INDIRECTA” E FOSSE ASSIM PARTE DO “SECTOR EMPRESARIAL DO ESTADO” ÀS EMPREITADAS POR SI PROMOVIDAS NÃO SE APLICARIA O RJEOP, EM TERMOS OBRIGATÓRIOS E NA SUA TOTALIDADE, POR FORÇA DA EXCLUSÃO EXPRESSA CONSTANTE DO N” 2 DO ART.” 1 NA REDACÇÃO VIGENTE À DATA DA PUBLICAÇÃO DO ANÚNCIO DA OBRA EM CAUSA NOS AUTOS (E, BEM ASSIM, À DATA DA ASSINATURA DO CONTRATO DE EMPREITADA EM CAUSA NOS AUTOS).

10º SENDO CERTO QUE, RELATIVAMENTE À REDACÇÃO APLICÁVEL DO Nº 1 DO ART.º 239º, SE CONSTATA NÃO PER-MITIR O MESMO CONFERIR APLICABILIDADE AO RJEOP AO CONTRATO EM CAUSA NOS AUTOS, DESDE LOGO E PARA ALÉM DO MAIS, POR NÃO EXISTIR RELATIVAMENTE À R. QUALQUER PORTARIA MINISTERIAL QUE IMPONHA TAL APLI-CAÇÃO.

11º POR SUA VEZ, QUANTO À APLICAÇÃO DO RJEOP POR FORÇA DA CLASSIFICAÇÃO DA R. COMO CONCESSIONÁRIA DO SERVIÇO PÚBLICO, CABE ESCLARECER QUE, TAMBÉM A ESTE RESPEITO, A FORMA COMO SE ENCONTRA FORMU-LADA A CONTESTAÇÃO PRETENDE INDUZIR O LEITOR EM

ERRO QUANTO AO VERDADEIRO SENTIDO E ALCANCE DO AÍ REFERIDO.

12º POR OUTRO LADO A APRESENTAÇÃO CONJUNTA DE DUAS CITAÇÕES DE DOIS ARTIGOS DO RJEOP QUE, EM TER-MOS SISTEMÁTICOS, SE ENCONTRAM TÃO SEPARADOS – REPARE -SE QUE SE TRATA DO ART.º 1º E DO ART.º 239º (!) DO MESMO DIPLOMA - PRETENDE TOLDAR ALGO DE INCONTOR-NÁVEL: É QUE O SENTIDO E OBJECTO VISADOS POR AMBOS OS PRECEITOS NÃO É MANIFESTAMENTE O MESMO.

13º NO CASO DO ART. 1º ESTÁ EM CAUSA A DEFINIÇÃO – INCLUSO DE ACORDO COM A RESPECTIVA EPÍGRAFE DO ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA LEI, EM TERMOS CLÁSSICOS E, DIR -SE -IA, TOTAIS.

14º AO PASSO QUE, POR SUA VEZ, NO ART. 239º – TAMBÉM DE NOVO DE ACORDO, PARA ALÉM DO MAIS, COM A RESPEC-TIVA EPÍGRAFE QUE É “REGIME SUBSIDIÁRIO” – ESTÃO EM CAUSA SITUAÇÕES EM QUE A APLICAÇÃO DO RJEOP NÃO ASSUME CARÁCTER OBRIGATÓRIO, MAS SIM, POR DEFINI-ÇÃO, TERÁ CARÁCTER SUBSIDIÁRIO, ISTO É, O RJEOP SERÁ AQUI UTILIZADO, DE FORMA SUBSIDIÁRIA REPETE -SE, EM CONTRATOS EM QUE O MESMO NÃO TEM APLICAÇÃO OBRI-GATÓRIA, APROVEITANDO O FACTO DE SE TRATAR DE UMA MATÉRIA EM QUE O DIREITO ADMINISTRATIVO, POR FORÇA DAS CIRCUNSTÂNCIAS, DETÉM, FACE AO DIREITO CIVIL, A VANTAGEM DE ESTA SER UMA MATÉRIA PROFUSAMENTE ES-TUDADA E, COMO TAL, COM REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA E ABORDAGEM MAIS COMPLETA DE SITUAÇÕES LIGADAS AO RELACIONAMENTO ENTRE AS PARTES DURANTE A EXE-CUÇÃO DO CONTRATO.

15º SEM QUE, NATURALMENTE, TAL SIGNIFIQUE UMA SUJEI-ÇÃO DOS CONTRATOS CELEBRADOS POR ENTIDADES COMO A R. AO “ESPARTILHO” DO CÓDIGO DO PROCEDIMENTO AD-MINISTRATIVO, DO RJEOP E DO REGIME DE AQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS PELA ADMINISTRAÇÃO.

16º ACRESCE QUE TAL APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA ENCON-TRA, COMO SE ALEGOU JÁ NA PI, REPERCUSSÃO EXPRESSA NAS CLÁUSULAS DO CONTRATO DE EMPREITADA EM CAUSA NESTES AUTOS, ONDE, EXERCENDO PRECISAMENTE A FA-CULDADE QUE LHES ERA CONFERIDA PELA LEI, AS PARTES CONSAGRARAM (DESIGNADAMENTE NO ART.º 3º DO REFE-RIDO CONTRATO E SOB A EPÍGRAFE “DISPOSIÇÕES QUE RE-GEM OS TRABALHOS”)

17º MAIS: AINDA ANTES DE TAL ENQUADRAMENTO LEGAL, E SEMPRE DE ACORDO COM O PLASMADO NO REFERIDO TÍTULO CONTRATUAL, ENTENDERAM AS PARTES – CFR. O ÚLTIMO DOS “CONSIDERANDOS” QUE ANTECEDEM O AR-TICULADO – DEIXAR CLARA A APLICAÇÃO SUPLETIVA DO REGIME JURÍDICO DAS EMPREITADAS DE OBRAS PÚBLICAS APROVADO PELO DL 405/93, DE 10 DE DEZEMBRO – NATURAL-MENTE NA FORMULAÇÃO À DATA CONSTANTE DO MESMO – ÀS INCIDÊNCIAS SUBSTANTIVAS E MATERIAIS RESULTAN-TES DA EXECUÇÃO DOS TRABALHOS DA OBRA.

18º SÃO, POIS, OBJECTIVAMENTE E PELA ORDEM QUE AÍ CONSTA, ESSAS AS DETERMINAÇÕES LEGAIS À LUZ DAS

Page 13: Decisões STA

24 25

QUAIS QUISERAM AS PARTES VER CONFIGURADO O SEU RELACIONAMENTO CONTRATUAL.

19º TAL APLICAÇÃO SUPLETIVA NÃO COMPORTA, NATU-RALMENTE, ENTRE OUTRAS, A PARTE DO ALUDIDO RJEOP RELATIVA AO CONTENCIOSO DOS CONTRATOS (ARTIGOS 224º E SS) UMA VEZ QUE A MESMA SE REPORTA A CONTRATOS EM QUE O ESTADO E DEMAIS ENTIDADES OBRIGATORIAMENTE SUJEITAS A TAL REGIME TÊM INTERVENÇÃO, O QUE COMO SE VIU, NÃO É O CASO DA RÉ (DE RESTO TAL APLICABILI-DADE IMPUTARIA COMO UMA NEGAÇÃO DO ESCOPO QUE PRESIDIU À CRIAÇÃO DE SOCIEDADES ANÓNIMAS COMO A AQUI EM QUESTÃO).

20º RELATIVAMENTE À INVOCAÇÃO DA DIRECTIVA 93/37/CEE EM NADA CONTRIBUI PARA FUNDAR A POSIÇÃO DA RÉ A QUE VEIO A DAR PROVIMENTO A DECISÃO RECORRIDA.

21º DESDE LOGO PORQUE, COMO É SABIDO, O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DE TAL DIRECTIVA NÃO INCLUI OS CHAMADOS “SECTORES EXCLUÍDOS” OU SEJA, OS SECTORES DA ÁGUA, ENERGIA, TRANSPORTES E TELECOMUNICAÇÕES (CFR. A ESTE PROPÓSITO O PROF. MIGUEL CATELA, IN CONTRATAÇÃO PÚBLICA NOS SECTORES DA ÁGUA, ENERGIA, TRANSPORTES E TELECOMUNICAÇÕES, EDIÇÃO FÓRUM MERCADOS PÚBLI-COS, LISBOA 2002).

22º POR OUTRO LADO, MESMO QUE ASSIM NÃO FOSSE É SABIDO E RECONHECIDO QUE A DIRECTIVA EM CAUSA SE OCUPOU APENAS DA MATÉRIA RELATIVA À “COORDENA-ÇÃO DOS PROCESSOS DE ADJUDICAÇÃO DE EMPREITADA DE OBRAS PUBLICAS”, ISTO É, VISOU REGULAMENTAR AS MATÉRIAS CONCURSAIS ATÉ À ADJUDICAÇÃO DAS OBRAS EM CAUSA E NÃO OCUPAR -SE DAS QUESTÕES SUBSEQUEN-TES À EXECUÇÃO DOS TRABALHOS DA OBRA. – CFR. MIGUEL CATELA OB. CIT. PÁG 34 E SS

23º PARA ALÉM DAS LIMITAÇÕES JÁ DESCRITAS – INAPLI-CABILIDADE AO SECTOR DA ÁGUA E NÃO INVOCABILIDADE NO ÂMBITO DAS QUESTÕES EMERGENTES NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO DO CONTRATO – É HOJE CLARO QUE A TRANS-POSIÇÃO, BEM OU MAL, DAS MESMAS PARA O DIREITO NA-CIONAL, SÓ TEVE LUGAR COM O DL 223/01, DE 09 DE AGOSTO (NATURALMENTE, E COMO SE VIU, INAPLICÁVEL À QUESTÃO DOS AUTOS).

24º DE RESTO E RETOMANDO O QUE SE ATALHOU JÁ ACIMA ENTENDEM AS RECORRENTES QUE AS ALTERAÇÕES POSTE-RIORES AO RJEOP (QUER AINDA NA VIGÊNCIA DO D.L 405/93 QUER POSTERIORMENTE COM O D.L 59/99, DE 02 DE MARÇO) INDICIAM, ISSO, SIM E BEM AO INVERSO DO QUE QUER FA-ZER CRER A RÉ, SER INTENÇÃO DO LEGISLADOR ABRANGER SITUAÇÕES ATÉ ENTÃO FORA DO RJEOP.

25º - ÚLTIMA REFERÊNCIA PARA A QUESTÃO DA ATRIBUI-ÇÃO EXPRESSA, NO CONTRATO DE EMPREITADA EM CAUSA NOS AUTOS, DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA AO TRIBUNAL DA COMARCA DE BARCELOS.

26º AO CONTRÁRIO DO QUE DECIDIU A DOUTA SENTENÇA AGRAVADA, A REFERÊNCIA EXPRESSA CONSTANTE DO CON-TRATO DE EMPREITADA OUTORGADO ENTRE AS PARTES À

ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA AO TRIBUNAL DE COMARCA DE BARCELOS (E LEMBRE -SE QUE SE TRATA DE UM DOCUMENTO PREPARADO PELA RÉ E QUE, AO MENOS NESTE ASPECTO, NÃO FOI MINIMAMENTE NEGOCIADO EN-TRE AS PARTES) NÃO RESULTA DE QUALQUER EQUÍVOCO, DISTRACÇÃO OU “IMPROPRIEDADE E IMPERFEIÇÃO” DA RESPECTIVA CLÁUSULA.

27º ALIÁS NENHUM SENTIDO FAZ A LIGEIREZA COM QUE A “IMPERFEIÇÃO” É ABORDADA NA CONTESTAÇÃO.

28º NÃO SE TRATOU, POIS, DE UM ERRO OU IMPRECISÃO, TRATA -SE ISSO SIM DE UMA DISPOSIÇÃO QUE A RÉ, INCLU-SIVAMENTE, IMPÔS, E A QUE AS AUTORAS ANUÍRAM, E QUE A PRIMEIRA PRETENDE AGORA POR EM CAUSA (“COMO SE NADA FOSSE”) UNICAMENTE PORQUE SE LHE AFIGURA SER ISSO NO SEU INTERESSE PROCESSUAL.

29º DE RESTO, E DIFERENTEMENTE DO QUE CONCLUI A DECISÃO RECORRIDA, MESMO QUE VIESSE A DECIDIR -SE PELA NULIDADE, GENÉRICA, DAS CLÁUSULAS CONTRATU-AIS QUE ALTEREM AS REGRAS DE COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA O QUE É INDISFARÇÁVEL É QUE A DISPOSIÇÃO CONSTANTE DO CONTRATO, EM CONCRETO, EM CAUSA NOS AUTOS SEMPRE DEVERIA SER ANALISADA – FACE ÀS DÚVI-DAS EXISTENTES – COMO ELEMENTO INTERPRETATIVO E ESCLARECEDOR DAS REAIS CARACTERÍSTICAS E ENQUA-DRAMENTO JURÍDICO DO MESMO.

30º E, NESSA MEDIDA, TAL CLÁUSULA MAIS NÃO DEMONS-TRA DO QUE, UMA VEZ MAIS, O CARÁCTER MARCADAMENTE PRIVADO DA RELAÇÃO CONTRATUAL ESTABELECIDA ENTRE AUTORAS E RÉ.

31º O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLOU POR ERRO DE INTERPRETAÇÃO O DISPOSTO NOS CITADOS PRECEITOS E DIPLOMAS LEGAIS, DEVENDO SER REVOGADO E SUBSTITU-ÍDO POR OUTRO QUE JULGUE NO SENTIDO DA COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE BARCELOS PARA A PRESENTE ACÇÃO, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA”.

A recorrida contra -alegou, formulando as conclusões seguintes:“1ª A DOUTA DECISÃO NÃO É PASSÍVEL DE CENSURA, JÁ QUE

APLICOU CORRECTAMENTE O DIREITO E FEZ JUSTIÇA;2ª ALIÁS, EM BOA VERDADE, AS RECORRENTES NEM CRI-

TICAM A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, ANTES, NO SEU DESAGRADO E OPOSIÇÃO, PRIVILEGIAM A CONTESTAÇÃO DA RECORRIDA;

3ª NAS CONCLUSÕES DAS SUAS ALEGAÇÕES – QUE DELIMI-TAM O OBJECTO DO RECURSO – AS RECORRENTES LIMITAM--SE, NA PRÁTICA A TRANSCREVER EXCERTOS DO TEXTO QUE POUCO TÊM DE CONCLUSIVOS;

4ª NA CONCLUSÃO 2ª ATACAM AS RECORRENTES A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, “ATENTO O SEU CARÁCTER REMIS-SIVO E IMPUTANDO -LHE FALTA DE PRONÚNCIA QUE NÃO EXPLICAM NEM CONCRETIZAM;

5ª NA CONCLUSÃO 4ª, DIZEM AS RECORRENTES QUE, AO INVÉS DA DOUTA DECISÃO RECORRIDA CONCLUÍRAM AS AGRAVANTES PELA INAPLICABILIDADE DO RJEOP AO CASO DOS AUTOS. MAS AÍ TAMBÉM NÃO EXPLICAM PORQUÊ;

Page 14: Decisões STA

26 27

6ª NA CONCLUSÃO 10ª FAZEM REFERÊNCIA AO N.º 1 DO ARTIGO 239º DO RJEOP, QUANDO TAL NORMA NÃO EXISTE! PRETENDIAM TALVEZ REFERIR -SE À ALÍNEA A);

7ª MAS, COMO SE VIU, APLICÁVEL AO CASO DOS AUTOS E À RECORRIDA, ENQUANTO CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO, É A ALÍNEA B), DAQUELE NORMATIVO, COMO BEM DIZ A DOUTA DECISÃO SOB CENSURA E SEMPRE DEFENDEU A RECORRIDA;

8ª NAS CONCLUSÕES 11ª a 25ª, TAMBÉM AS RECORRENTES NÃO CRITICAM A

DOUTA DECISÃO RECORRIDA ANTES SE VOLTAM CONTRA A CONTESTAÇÃO;

9ª SÓ NA CONCLUSÃO 26ª SE PODE ENCONTRAR A SEGUNDA DISCORDÂNCIA DAS RECORRENTES COM A DECISÃO SOB CENSURA, PARA LOGO A SEGUIR NAS CONCLUSÕES 27ª A 30ª, VOLTAR A ATACAR A CONTESTAÇÃO DA RECORRIDA. ORA,

10ª SALVO O DEVIDO RESPEITO, IMPROCEDEM TOTAL-MENTE TODAS AS CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES DAS RE-CORRENTES, QUER PELO QUE JÁ SE FOI DIZENDO QUER PORQUE:

11ª A DOUTA DECISÃO RECORRIDA FUNDAMENTOU SUFI-CIENTEMENTE A CARACTERIZAÇÃO QUE FEZ DO AJUIZADO CONTRATO COMO CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS;

12ª TAL CARACTERIZAÇÃO IMPÕE -SE PELO FACTO DE A RECORRIDA SER CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO E O CONTRATO TER UM VALOR SUPERIOR AO ESTABELECIDO PARA EFEITOS DE APLICAÇÃO NAS DIRECTIVAS COMUNI-TÁRIAS RELATIVAS À COORDENAÇÃO DOS PROCESSOS DE ADJUDICAÇÃO DE EMPREITADAS DE OBRAS PÚBLICAS;

13ª ISSO É IMPOSTO PELO ARTIGO 239º, B), DO RJEOP, JÁ NA SUA VERSÃO INICIAL;

14ª COM EFEITO, A RECORRIDA TEM COMO OBJECTO SO-CIAL, LEGALMENTE FIXADO E EXCLUSIVO A GESTÃO DO SISTEMA MULTIMUNICIPAL DE CAPTAÇÃO TRATAMENTO E ABASTECIMENTO DE ÁGUA AOS MUNICÍPIOS DO NORTE DO GRANDE PORTO,

15ª QUE TEM A NATUREZA DE SERVIÇO PÚBLICO”, ASSIM TENDO SIDO CLASSIFICADO PELO DECRETO -LEI N.º 319/94, DE 24 DE DEZEMBRO. E NEM SERIA NECESSÁRIA LEI EXPRESSA, POIS TAL SERVIÇO DESTINA -SE A SATISFAZER NECESSIDADES COLECTIVAS DA POPULAÇÃO E TAL SATISFAÇÃO COMPETE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

16ª COMPETÊNCIA QUE MANTÉM, MAS QUE, POR CON-TRATO DE CONCESSÃO, ENTREGA A EXECUÇÃO DESSAS TAREFAS A ENTIDADES COMO A RECORRIDA CRIADAS PARA O EFEITO E COM CAPITAIS TOTAL OU MAIORITARIAMENTE PÚBLICOS;

17ª DE RESTO, NESTA LINHA DE ACTUAÇÃO, O PRÓPRIO CONTRATO DE CONCESSÃO, OUTORGADO ENTRE O ESTADO E AS RECORRIDAS, IMPÕE – E NÃO SERIA NECESSÁRIO FAZÊ--LO EXPRESSAMENTE – QUE A RECORRIDA NÃO ADJUDI-QUE QUALQUER EMPREITADA SEM TER LANÇADO, PRE-

VIAMENTE, CONCURSO PÚBLICO PARA ESCOLHA DO SEU CO -CONTRATANTE PARTICULAR,

18ª O QUE SÓ PODE FAZER -SE NOS TERMOS DO RJEOP, COMO É EVIDENTE;

19ª DE RESTO, A APLICAÇÃO DO RJEOP ÀS CONCESSIONÁ-RIAS DE SERVIÇO PÚBLICO COMO A RECORRIDA É OBRIGATÓ-RIA COMO SE VÊ DA RESPECTIVA DISPOSIÇÃO, ARTIGO 239.4, B), E DO PRÓPRIO PREÂMBULO DO DIPLOMA, ONDE SE PODE LER:

“... CONSAGROU -SE A OBRIGATORIEDADE DA SUA APLICA-ÇÃO ÀS CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS...”

20ª POR OUTRO LADO, A ACEITAR -SE A INTERPRETAÇÃO QUE AS RECORRENTES FAZEM DO DISPOSTO NO ARTIGO 3º DO CONTRATO, TAL CLÁUSULA SERIA NULA POR VIOLAR NORMA IMPERATIVA;

21ª O QUE SE PREVIU, AÍ, FOI A LEGISLAÇÃO APLICÁVEL NA “EXECUÇÃO DOS TRABALHOS” QUE, COMO AÍ SE DIZ, É TODA A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA APLICÁVEL;

22ª COISA DIVERSA É A DISCIPLINA DO CONTRATO. QUANTO A ESSE ASPECTO, DESDE LOGO SE DISSE NA INTRODUÇÃO AO TÍTULO CONTRATUAL QUE O CONTRATO SE REGE EM TUDO O QUE NÃO ESTIVESSE AÍ PREVISTO PELO DECRETO -LEI N.º 405/93, DE 10 DE DEZEMBRO, ISTO É, PELO RJEOP;

23ª AS REGRAS DE COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA NÃO PODEM SER AFASTADAS POR VONTADE DAS PARTES;

24ª POR ISSO, AINDA QUE O ESTABELECIDO NO ARTIGO 10º DO CONTRATO NÃO SE CONSIDERASSE COMO UMA IMPRE-CISÃO, ENTÃO SERIA, TAMBÉM, NULA A ESTIPULAÇÃO POR VIOLAR NORMA IMPERATIVA;

25ª FINALMENTE, E REPETINDO, O DOUTO ACÓRDÃO RE-CORRIDO NÃO VIOLOU QUALQUER PRECEITO LEGAL, QUE AS RECORRENTES NEM IDENTIFICAM COM RIGOR ANTES APLICOU CORRECTAMENTE O DIREITO”.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

O processo foi aos vistos legais, cumprindo agora decidir.

- II –A decisão recorrida, na esteira da sentença de 1ª instância, julgou o

tribunal comum incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, em virtude de a mesma ter como causa de pedir um contrato administrativo de empreitada de obras públicas.

Essa qualificação resultaria, no entender do acórdão, da circunstância de a Ré ser uma concessionária de serviço público e de o valor da obra ser superior ao estabelecido para efeitos de aplicação das directivas das Comunidades Europeias relativas à coordenação dos processos de adju-dicação de empreitadas de obras públicas. Isto, tendo em vista o que se prescreve na al. b) do art. 239º do Dec -Lei nº 405/93, de 10.12 - anterior RJEOP (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas).

A recorrente, porém, defende que o art. 239º não contempla uma aplicação imperativa ou obrigatória do regime das empreitadas de obras públicas, mas simplesmente subsidiária. E a remissão, também ela su-pletiva, que o contrato de empreitada faz para as normas desse diploma

Page 15: Decisões STA

28 29

não comporta a parte do aludido RJEOP relativa ao contencioso dos contratos (artigos 224º e segs). Doutro modo, isso implicaria como que uma negação do escopo que presidiu à criação de sociedades anónimas como a aqui em questão. Acresce ainda que na cláusula 10ª do contrato se estabelece o foro da comarca de Barcelos para resolução de todas as questões de interpretação e execução do contrato, o que não pode levar -se à conta de “impropriedade e imperfeição” – como fez a decisão recorrida – e ilustra bem o carácter marcadamente privado das relações contratuais entre as partes.

Vejamos:Nos últimos tempos, a Jurisprudência tem vindo a insistir em que

o ponto de partida para a resolução das questões da competência do tribunal são os termos em que o autor fundamenta a acção e formula a sua pretensão. É a estrutura da relação jurídica em litígio, tal como ele a recorta, que serve de aferição para a determinação daquele pressuposto processual – cf. os Acs. do Tribunal dos Conflitos, de 31.3.98, proc.º nº 325, e 9.3.04, proc.º nº 4/2003, e os Acs. do S.T.A. de 27.1.94, proc.ºnº 32.278, 8.5.97, proc.º nº 18.487, 6.7.95, proc.º nº 36.380, e 7.3.01, proc.º nº 46.049.

Não raras vezes, porém, e como se fez notar no citado acórdão deste Tribunal de 9.3.04, à vista dos termos em que a acção é proposta nada há que nos permita estabelecer, sem outras indagações, uma conexão definitiva com certa jurisdição que seria competente para a causa. Isto porque o desenho da relação jurídica de que emerge a pretensão do autor não se colhe directamente dos dizeres da petição, incluindo os factos que narra e a formulação do pedido, retirando -se, antes, do contrato para que ela remete, e cuja cópia é junta aos autos, bem como doutros elementos complementares.

Assim, tal conexão só poderá revelar -se mediante a análise desse contrato, em conjugação com outros elementos de interpretação e sob a égide dos critérios distintivos entre contrato administrativo e contrato de direito privado.

A delimitação da fronteira entre o contrato de direito privado e o contrato administrativo nunca foi tarefa fácil, deixando à doutrina e à jurisprudência amplo espaço de debate.

A distinção foi sendo feita recorrendo a critérios relativos aos sujei-tos, ao fim, ao objecto e estatuto privado da Administração Pública (cf. MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo Contrato Administrativo, 1990, p. 75 e segs.).

Mas os termos do problema foram alterados, e a discussão enriquecida, com a publicação do ETAF, cujo art. 9º veio adoptar um critério aberto de contrato administrativo, passando a ser meramente exemplificativa a enumeração dos tipos de contratos administrativos e definido como seu elemento caracterizador a constituição, modificação ou extinção duma relação jurídica de direito administrativo. Publicado alguns anos depois, o CPA acolheu no art. 178º a mesma definição de contrato administrativo.

O carácter taxativo da antiga enumeração legal, bem como a cos-tumeira exigência de que o particular ficasse associado de forma du-radoura e especial à realização do fim administrativo, com submissão à autoridade e direcção dos órgãos da entidade pública contratante, impediram, durante muitos anos, que uma gama muito grande de relações jurídicas pudesse submeter -se a um regime de direito administrativo, e

fosse consequentemente objecto de discussão contenciosa nos tribunais administrativos.

Todavia, nem por isso a mudança da definição legal clarificou o problema, pois o critério de identificação do contrato administrativo pela via da relação jurídica de direito administrativo veio trazer di-ficuldades de interpretação, como anteviu FREITAS DO AMARAL – Lições, 1989, p. 439.

No Acórdão do S.T.A. de 14.7.94 (Apêndices ao Diário da República, p. 5801), assinala -se o seguinte:

“Esta abertura do critério definidor da competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos administrativos coincidiu com uma generalizada tendência para o alargamento, a nível substancial, desta categoria de contratos, de que a doutrina mais actualizada tem dado conta (cf. José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1987, Maria João Estorninho, Requiem pelo Contrato Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1990, e, por último, José Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua Admissibilidade, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Ivridica, n.º 5, Coimbra Editora, Coimbra 1994, em especial pp. 64 -84)”.

SÉRVULO CORREIA chama a atenção para uma categoria de contra-tos, que são os contratos com objecto passível de direito privado, ou seja, aqueles cujo objecto seria em princípio susceptível de ser enquadrado num negócio jurídico – típico ou atípico – celebrado entre os particulares. Para este autor, quando os deveres e direitos pactuados são neutros ou indiferentes, justifica -se a presunção de que as partes remeteram para a aplicação dos princípios gerais do contrato administrativo. Salvo prova de que a vontade real de ambas as partes era a oposta, partir--se -à do princípio de que celebraram um contrato administrativo. Na realidade, “nos nossos dias, o Direito geral da Administração é o Direito Administrativo...” – Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, pp.403 -406. Este entendimento é por diversas vezes citado em acórdãos do S.T.A., como os de 25.1.01, proc.º nº 46.798, e de 7.3.01, proc.º nº 46.049.

Apesar desta tendência, uma análise dos mais recentes arestos do S.T.A. e do Tribunal de Conflitos sobre a matéria permite constatar que a Jurisprudência não se vem limitando a aceitar a matriz administrativa do contrato em função da mera presença de um contraente público e de uma qualquer ligação do objecto do contrato a finalidades de interesse público que esse ente prossiga.

Ao contrário, não prescinde de, caso a caso, procurar detectar a pre-sença de marcas de administratividade, de elementos exorbitantes, ou de traços reveladores de uma ambiência de direito público.

Recorde -se que relação jurídica de direito administrativo não é se-guramente aquela que simplesmente envolve a Administração, é a que “confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração” – FREITAS DO AMARAL, Lições, p. 439/40.

O critério estatutário pode considerar -se entre nós dominante. Nesta concepção, contrato administrativo é o que constitui um processo pró-prio de agir da Administração Pública e que cria, modifica ou extin-gue relações jurídicas, disciplinadas em termos específicos do sujeito

Page 16: Decisões STA

30 31

administrativo, entre pessoas colectivas da Administração ou entre a Administração e os particulares (SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 396).

A preferência generalizada pelo critério estatutário tem um mérito indiscutível. É que, como salientam MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros (Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, p. 341) “trazer para o direito administrativo todos os contratos que tragam marcas - importantes e juspublicisticamente protegidas (específica ou exclusivamente) de administratividade – é a única (proposta) compatível com a imputação constitucional da jurisdição do direito administrativo e dos tribunais administrativos aos tribunais administrativos”.

Feito este intróito, importa agora trazer à tona as particularidades do caso que nos ocupa.

A primeira delas é que nenhuma das partes no processo – e nenhum dos contraentes no contrato de empreitada – é uma pessoa colectiva de direito público. Apenas a Ré e ora recorrida se apresenta com vestes que lhe emprestam um regime de direito público, já que se trata de em-presa concessionária. Saber se a ausência de uma parte pública repele a qualificação do contrato como administrativo será, por conseguinte, a primeira questão a abordar.

Depois, importa precisar o sentido da regra do art. 239º do RJEOP, na versão do diploma aqui aplicável – o Dec -Lei nº 405/93, de 10.12. Estar -se -á perante uma simples permissão da aplicação dum regime supletivo, ou na presença da imposição (obrigatória) dum regime de direito público?

Finalmente, haverá que valorar o sentido da cláusula contratual que atribui ao tribunal de Barcelos competência para dirimir os litígios surgidos a propósito da interpretação e execução do contrato.

Na concepção tradicional, personificada por MARCELLO CAE-TANO, uma das partes do contrato administrativo teria necessariamente de ser um ente de direito público (cf. Manual, tomo I, p. 587). O critério dos sujeitos ou da diferente natureza das partes integrava o critério da subordinação, constituindo a sua razão de ser – a sujeição da actividade do particular à autoridade e direcção dos órgãos da entidade servida (cf. SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, p. 364).

Já atrás se viu que a Doutrina e da Jurisprudência não se satisfazem com o preenchimento desse requisito, recomendando que além disso se busquem no contrato marcas de administratividade e conexão.

Mas, do mesmo passo, vem -se admitindo que possam nascer contra-tos administrativos das relações entre entidades que não são de direito público. Na sequência do antigo Decreto -Lei nº 48.871, que já incluía uma norma sobre extensão do regime a concessionários, o Decreto -Lei nº 235/86, de 18.8 (que o Dec -Lei nº 405/93 veio revogar) veio prever, no art. 3º, nº 3, a sua aplicação “às empresas de economia mista ou conces-sionárias do Estado”, desde que assim fosse determinado por portaria do ministro competente. Registando o surgimento desta norma, SÉRVULO COREIA propõe que se reconheça a capacidade de celebrar contratos administrativos “a todas as pessoas (ainda que de direito privado) com capacidade para a prática de actos administrativos” (Legalidade e Au-tonomia..., p. 365, 416/7 e Contrato Administrativo, p. 29 a 31). Nesse entendimento é acompanhado por ESTEVES DE OLIVEIRA (Concursos e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa, p. 153 e 157 e Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, p. 344), e

JORGE ANDRADE DA SILVA (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, 6ª edição, p. 41).

Efectivamente, e muito embora se concorde que as empresas con-cessionárias (de serviços públicos, de obras públicas ou de exploração de bens do domínio público) devem continuar a manter -se na categoria das entidades de direito privado, como enfaticamente defende FREI-TAS DO AMARAL (que lhes reserva a designação de sociedades de interesse colectivo – Curso de Direito Administrativo, 2ª ed., I, p. 558 e segs.), não custa aceitar que, pelo menos no que respeita ao campo de actividade em que exercem tituladamente poderes públicos, possam ser sujeito activo de contratos administrativos.

Como se escreveu no Ac. deste S.T.A. de 2.4.03, proc.º nº 113/03:“Admite -se, aliás, que, em certos casos, ao concessionário é dado

praticar actos administrativos, sujeitos à fiscalização contenciosa, e é essa possibilidade que explica a existência do preceito da al. d) do art. 51º do ETAF” (recurso para os TACs dos actos administrativos dos concessionários).

A vinculação deste tipo de entidades à prossecução de tarefas e finali-dades de interesse público e cariz administrativo torna -as, em princípio, aptas a constituir, por acto ou contrato em que sejam parte, relações jurídicas de direito administrativo – que como vimos são o elemento de conexão com o contrato administrativo e simultaneamente com a jurisdição dos tribunais do contencioso administrativo – ex vi do pre-ceituado nos arts. 212º, nº 3, da C.R.P. e 3º do ETAF. Tal facto tem sido reconhecido pelo S.T.A., como se pode constatar por aquele Ac. de 2.4.03 e Ac. de 28.11.02, proc.º nº 1674/02, em que se escreveu:

“A natureza privada ou pública de uma questão não está necessaria-mente condicionada pela natureza dos titulares da relação jurídica”.

Diga -se que não é somente o citado art. 51º/1, al. d), do ETAF a enquadrar os actos dos concessionários sob uma normação (adjectiva e contenciosa) de direito público. Também a nível procedimental a lei optou por equiparar o seu regime ao dos órgãos da Administração Pública, desde que “no exercício de poderes de autoridade” – art. 2º, nº 3, do Código do Procedimento Administrativo.

De resto, e como bem faz notar ESTEVES DE OLIVEIRA (Con-cursos e Outros Procedimentos..., p. 156), aqui não há propriamente inovação, pois “a aptidão virtual ou abstracta das concessionárias de obras, de bens ou de serviços públicos e de entes congéneres delas, neste aspecto (como são as empresas públicas) é, aliás, de há muito, um dado adquirido o nosso ordenamento jurídico: já no domínio do Código Administrativo de 1940 se admitia o recurso para os tribunais administrativos de actos das concessionárias...”

Resta então saber se, na hipótese dos autos, a Ré interveio especifica-mente ao abrigo dos poderes públicos emergentes da concessão.

A sociedade Ré foi constituída pelo Dec -Lei nº 102/95, de 19.5, como sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos que iria receber a concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do Norte da Área do Grande Porto, sendo logo aprovados, em anexo, os seus estatutos e definidos os accionistas ditos originários o IPE – Águas de Portugal, SGPS, S.A. e 7 municípios.

No seu objecto social incluem -se a “construção, extensão, reparação, renovação, manutenção e melhoria das obras e equipamentos necessá-rios” para o desenvolvimento da sua actividade.

Page 17: Decisões STA

32 33

Do contrato de concessão documentado a fls. 103 dos autos retira -se que a concessão é dada por 30 anos em regime de exclusivo, que a concessão “compreende a concepção e construção duma rede fixa e de todas as instalações necessárias à captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público”, cujo “regular abastecimento se obriga a assegurar”. A construção das infra -estruturas é da responsabilidade da concessionária, que responde perante o concedente por eventuais defeitos de concepção, de projecto, de construção ou dos equipamentos; as obras devem ser adjudicadas mediante concurso público; e é reconhecida à concessionária a faculdade de requerer a expropriação de terrenos e de constituir as servidões necessárias,

No outro pólo, o contrato de empreitada celebrado entre as partes (fls. 125) teve por objecto, justamente, o exercício de uma parte das actividades que constituem a razão da criação legal e da existência da sociedade Ré como ente dotado de personalidade jurídica e enquanto concessionária, pois do que se trata é da “realização dos trabalhos de construção civil, o fornecimento e montagem do equipamento e das ins-talações eléctricas do Sistema Multimunicipal de Captação, Tratamento e Distribuição de Água do Norte da Área do Grande Porto – Grupo 4.II de Obras – Ramal de Santo Tirso Ocidental”.

Entre o objecto do contrato, assim definido, e os fins legal e necessa-riamente prosseguidos pela recorrida existe uma conexão muito intensa, muito próxima e muito directa. Tal contrato acha -se “teleologicamente orientado” à realização de um interesse público específico compreendido nas atribuições do contraente que actua por incumbência pública, e a obra em causa é objectivamente pública – e não ligada à organização e funcionamento empresarial da sociedade concessionária.

Pode, deste modo, concluir -se que o contrato em apreço se inscreve no âmago dos poderes públicos recebidos por intermédio da concessão, e bem assim que a ausência de um contraente de direito público qua tale não obsta, por si só, à qualificação do contrato como administrativo.

Obtida a resposta à primeira questão, haverá agora que determinar o sentido da norma do art. 239º do RJEOP. Que significado tem dizer -se que o diploma se aplica, “ainda”, “às concessionárias de serviço público, sempre que o valor da obra seja igual ou superior ao estabelecido para efeitos de aplicação das Directivas das Comunidades Europeias relativas à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas” (al. b) do preceito)?

A recorrente, argumentando com base na expressão “regime subsi-diário” que consta da epígrafe do artigo, pretende que a aplicação do diploma se faz facultativamente, como lei supletiva, ao relacionamento das partes durante a execução da empreitada, mas sem implicar a su-jeição dos contratos celebrados por entidades como a Ré ao espartilho do CPA e do RJEOP.

Mas não é razoável, nem tem fundamento jurídico válido, transformar uma aplicação do diploma definida de modo aparentemente unitário e em bloco numa remissão fraccionada para um conjunto limitado de normas regulando a execução do contrato – deixando de fora outras como as respeitantes ao procedimento de concurso e ao respectivo contencioso (incluindo a expressa atribuição aos tribunais administrativos de com-petência na matéria – art. 224º).

Tão pouco se pode retirar tal sentido do uso da expressão regime sub-sidiário que está na epígrafe do artigo, que é consabidamente elemento interpretativo de escasso valor. A haver algum rigor na formulação da

epígrafe, o que se terá querido dizer foi que o chamamento destas nor-mas se entende sem prejuízo das da matriz regulamentar reguladora do procedimento adjudicatório, que constituem sempre a sua lex specialis e são directamente aplicáveis – aviso, programa do concurso e caderno de encargos.

Acresce que o preceito não refere que o diploma “pode aplicar -se” às concessionárias, mas pura e simplesmente que se lhes aplica, verificadas que sejam as condições que vêm enumeradas.

O que, de resto, corresponde à intenção expressamente anunciada no preâmbulo do diploma, no qual que se afirma:

“Embora o âmbito de aplicação deste diploma às empresas públicas e às sociedades anónimas de capitais maioritariamente públicos e dependa de portaria do ministro competente, consagrou -se a obrigatoriedade da sua aplicação às concessionárias de serviços públicos, sempre que o valor da empreitada seja igual ou superior...”

Não há, assim, maneira de descaracterizar como obrigatória, ou im-perativa, essa aplicação. Foi a forma que o legislador encontrou, con-juntamente com o estabelecimento do critério da dimensão mínima do valor da obra, para submeter a igual tratamento as obras da iniciativa da Administração (directa e indirecta) e dos concessionários de serviço público, atentas as patentes afinidades que se conhecem. No fundo, entendeu -se que a prestação de um serviço público deve reger -se pelas normas da contratação pública em tudo quanto respeitar a obras (de construção e conservação das infra -estruturas), por esta actividade ser porventura das mais importantes no conjunto das acções a levar a efeito pelos concessionários de serviço público a benefício das necessidades colectivas das populações que foram incumbidos de satisfazer.

Não havendo dúvidas de que o valor da obra (Esc. 1.226.309.549$00) é superior ao estabelecido no art. 6º, nº 1, da Directiva 93/37/CEE, do Conselho, de 14.6.93 (5.000.000 ecus), temos que o RJEOP é directa-mente aplicável ao contrato dos autos, por força da regra do art. 239º.

Finalmente, a estipulação do foro da comarca de Barcelos para reso-lução das questões emergentes do contrato de empreitada (artigo 10º) não pode ter a virtualidade de afastar a competência dos tribunais ad-ministrativos, que é de ordem pública e decorre da aplicação da lei – como em hipóteses análogas o Supremo Tribunal Administrativo teve ensejo de afirmar (cf. Acs. de 4.3.82, proc.º nº 11.813 e de 4.12.03, proc.º nº 301/02).

Atinge -se, assim, a conclusão de que as relações jurídicas de que a causa dimana são de natureza administrativa, pois que dimanam dum contrato administrativo de empreitada de obra pública submetido a normas dessa natureza por expressa e inequívoca determinação da lei.

Mostra -se, por conseguinte, irrepreensível a decisão de julgar in-competente o Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, e de com esse fundamento absolver a Ré da instância.

Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso, decla-rando competente para conhecer da acção o tribunal administrativo de círculo.

Sem custas.Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. — J. Simões de Oliveira (relator) — Antó-

nio Henriques Gaspar — Alberto Augusto Andrade de Oliveira — Manuel de Simas Santos — Rosendo José — Joaquim Manuel Pereira Silva.

Page 18: Decisões STA

34 35

Acórdão de 19 de Janeiro de 2006.Processo n.º 13/05 -10.Requerentes: José Manuel Ferreira da Silva, no Conflito Negativo de

Jurisdição, entre o Tribunal do Trabalho de Castelo Branco e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Armindo Ribeiro Luís.

Acordam no Tribunal dos Conflitos

I1. José Manuel Ferreira da Silva impugna o acórdão do Tribunal da

Relação de Coimbra de 27/01/2005 (fls. 359 a 366) que, revogando a decisão do Tribunal do Trabalho de Castelo Branco de fls. 228 a 230 verso, que havia julgado improcedente a excepção dilatória de incom-petência desse Tribunal em razão da matéria e declarado o mesmo competente, julgou procedente tal excepção e absolveu o Réu – Instituto de Solidariedade e Segurança Social da instância.

2. O A. – José Manuel Ferreira da Silva instaurou acção declarativa, que considerou emergente de contrato individual de trabalho contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, pedindo que este seja condenado:

a) A cumprir o Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço cele-brado com o A. até à data do seu termo;

b) No pagamento da quantia de 3.919,46 Euros mensais desde 24 de Setembro de 2002 até 1 de Outubro de 2004;

c) Subsidiariamente e sem conceder, no pagamento da indemnização de 53.481,00 Euros pela cessação do Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço.

3. Para tanto, invocou, em síntese, o seguinte:a) Em 1 de Outubro de 2001 celebrou o A. um contrato digo Acordo

de Nomeação em Comissão de Serviço com o R.;b) Para que desempenhasse o cargo de Adjunto do Director de So-

lidariedade e de Segurança Social de Castelo Branco, em comissão de serviço, a partir de 1 de Outubro de 2001 e por três anos;

c) O A. possuía então a qualidade de funcionário público;d) Sucede, porém, que por despacho da Secretaria de Estado da Soli-

dariedade e da Segurança Social foi determinada a cessação da aludida comissão de serviço com efeitos a partir de 24 de Setembro de 2002;

e) Tal despacho é manifestamente ilegal.4. Frustrada a conciliação das partes, veio o R. contestar, defendendo-

-se, desde logo, por excepção, invocando a incompetência material do Tribunal de Trabalho, dado que a relação jurídica existente entre o A. e o R. não configura um contrato de trabalho subordinado.

5. Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu, além do mais, julgar improcedente a excepção dilatória da incompetência em razão da matéria, declarando -se competente o Tribunal do Trabalho, com o fundamento de que face aos termos em que o A. formula a sua pretensão (Comissão de Serviço em regime de direito privado), se aplicava ao caso, o regime jurídico de contrato individual de trabalho.

6. Inconformado com tal decisão dela agravou o Réu – Instituto de Solidariedade e Segurança Social, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de fls. 359 a 366, dando provimento ao recurso,

revogada a decisão recorrida, e, declarando incompetente o Tribunal de Trabalho, absolveu o R. da instância.

7. O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu que a competência não cabe ao Tribunal do Trabalho, por o A. não ter celebrado com o R. qualquer contrato de trabalho subordinado, mantendo -se vinculado ao Estado para uma relação jurídica de emprego público.

8. Não se conformando com tal acórdão da Relação, dela agravou o A. para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este decidido, conforme consta de fls. 448 e 449, converter tal agravo em recurso para este Tribunal de Conflitos e ordenar a remessa do processo a este Tribunal, como impunha o artigo 107º., nº. 2 do C. P. Civil.

9. O A., no final das suas alegações, formula as seguintes conclu-sões:

1ª.) A decisão recorrida não valora os factos alegados nos artºs. 1º. a 60º. da p.i. e 4º. a 18º. da réplica, e também não conhece da questão de direito, devidamente alegada em que o recorrente estava em comissão de serviço de direito de trabalho, nos termos do Dec. Lei nº. 404/91, de 16/10, constituindo ambas as omissões nulidades da decisão recorrida, violando o artigo 668º., nº. 1, als. b) e d) do CPC;

2ª.) A decisão recorrida decidiu que a relação jurídica entre o A. e o R. era direito administrativo, pelo que julgou procedente a excepção de incompetência do Tribunal de Trabalho;

3ª.) A competência material de um determinado Tribunal há -de aferir--se de acordo com os termos em que é proposta, atendendo -se ao direito invocado perante o pedido formulado e respectivos fundamentos, que o Autor pretende ver reconhecidos judicialmente, ou seja, pela natu-reza da relação material, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante;

4ª.) Na petição inicial e na resposta à excepção o A. alegou os factos e o direito que concretiza a sua relação de trabalho, constituindo essa relação em novos instrumentos jurídicos de contratação e gestão a que os Institutos Públicos vêm recorrendo na última década;

5ª.) Acresce que o A. não era funcionário público do Estado, mas de um Instituto Público com personalidade jurídica, tendo celebrado com o ISSS um contrato de trabalho subordinado, com isenção de horário, para desempenhar a actividade de adjunto do director, descontando, como regra, para a Segurança Social e não para a Caixa Geral de Aposenta-ções, durante 3 anos, que seria desempenhado em comissão de serviço de direito de trabalho, então prevista e regulada no Dec. Lei nº. 404/91, de 16/10 e actualmente prevista e regulada nos artigos 244º. a 248º., do Código de Trabalho;

6ª.) Assim, a decisão recorrida qualificou mal a comissão de serviço do recorrente, dado que a qualificou como sendo da função pública enquanto a referida comissão de serviço é de direito de trabalho, dado que ao cargo de Adjunto do Director era aplicado o regime jurídico de contrato individual de trabalho, em comissão de serviço, nos termos dos artigos 37º., 38º., nºs. 1 a 4, dos Estatutos do ISSS aprovados pelo Dec. Lei nº. 316 -A/2000, de 7/12 e do Regulamento do pessoal dirigente e de chefia (Despacho nº. 11464, DR, II Série, de 30/5);

7ª.) Consequentemente, a decisão recorrida violou o artigo 85º., al. b), da Lei 3/99, de 13/01, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare o Tribunal do Trabalho de Castelo Branco competente, em razão da matéria, ou, se assim não se entender, ordene o prosseguimento

Page 19: Decisões STA

36 37

dos autos para julgamento de modo a fazer prova sobre a relação laboral entre o Recorrente e o Recorrido.

10. O Réu – Instituto de Solidariedade e Segurança Social, na qua-lidade de recorrido, contra -alegou de fls. 403 a 417, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

11. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:12. O Exmº. Magistrado do Ministério Público, no seu Parecer de

fls. 463 a 466, defende o provimento do recurso, por a competência material pertencer ao Tribunal do Trabalho.

II – Fundamentação:A) De facto:Os factos relevantes para a apreciação do recurso e descritos no

acórdão recorrido são os seguintes:a) Em 1 de Outubro de 2001 o R. celebrou com o A. um “Contrato

de Nomeação em Comissão de Serviço”, para que este desempenhasse o cargo de Adjunto do Director do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Castelo Branco, a vigorar pelo período de três anos e com inicio em 1 de Outubro de 2001;

b) O A. possuía já então a qualidade de “funcionário público”;c) Por despacho da Secretaria de Estado da Solidariedade e da Segu-

rança Social foi determinada a cessação definitiva, com efeitos a partir de 24 de Setembro de 2002, da aludida comissão de serviço, antes de ter expirado o prazo legal.

B) De direito:1. Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas

conclusões do recorrente (artigos 684º., nº. 3 e 690º., nº. 1 do C. P. Civil, importando assim, delimitar e decidir as questões colocadas nas conclusões do recurso do autor.

Em face delas, urge apreciar e decidir as seguintes questões:a) Se o acórdão recorrido é nulo, por falta de fundamentação, nos

termos do artigo 668º., nº. 1, al. b) do C. P. Civil;b) Se o acórdão recorrido é nulo, por falta de pronúncia (artigo 668º.,

nº. 1, al. d) – 1ª. parte do C. P. Civil);c) Se cabe aos tribunais do trabalho ou aos tribunais administrativos

o conhecimento da acção.2. Vejamos pois, começando por apreciar e decidir a questão descrita

em a) – supra:Defende o recorrente que o acórdão recorrido é nulo, por não ter valo-

rado factos que entende deverem ter sido valorados, de acordo com a tese que defende, classificando tal actuação, como falta de fundamentação, nos termos do artigo 668º., nº. 1, al. b) do C. P. Civil.

Ora, é jurisprudência assente e doutrina firme que “o que a lei con-sidera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é aspecto diferente, afecta o valor doutrinal do acórdão... mas não produz nulidade “Cfr. Prof. A. Reis – C. P. Civil Anotado – Vol. V – pág. 140), sendo que só a falta absoluta de motivação (e não o seu laconismo) tem a virtualidade de desencadear a sanção grave de nulidade da alínea b) do nº. 1 do artigo 668º. do C. P. Civil (Cfr. Ac. S.T.J. – 03/07/73 – B.M.J. – 229º. – pág. 155)

O acórdão recorrido considerou os factos necessários e suficientes para decidir a questão da competência do tribunal e aplicou -lhes o direito que julgou certo, não ocorrendo assim a mencionada nulidade de falta de fundamentação.

3. Passemos agora a apreciar e decidir a questão descrita em b)--supra:

Defende o autor, no seu recurso, que o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, por não ter conhecido da questão de direito, por ele invocada, de que a comissão de serviço de direito do trabalho, foi exercida nos termos do Dec. Lei nº. 404/91, de 16/10.

A nulidade citada pelo recorrente, a tal propósito, e, prevista no artigo 668º., nº. 1, al. d) – 1ª. parte do C. P. Civil, ocorre quando o colectivo de juízes deixe de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar.

Esta nulidade de “omissão pronúncia”, não postula, segundo orienta-ção uniforme da doutrina e da jurisprudência, a apreciação de todos os argumentos ou razões em que os factos se apoiam para sustentar a sua pretensão. “O que importa é que o Tribunal decida a questão posta” (Cfr. Prof. A. dos Reis – C. P. Civil Anotado – Vol. V – Pág. 143).

No caso em apreço, o acórdão recorrido não tinha que conhecer de direito, conforme pretendia o recorrido, mas conhecer das questões postas pelo recorrente, o que fez. Aliás, vendo as contra -alegações do recorrido perante a Relação, de fls. 328, não se coloca ali expressamente tal questão. O acórdão recorrido apenas tinha de apreciar e decidir “a questão da competência” descrevendo os factos atinentes e o direito que entendia aplicável, e, foi o que fez. Em face do exposto, não ocorre a mencionada nulidade, por omissão de pronúncia.

4. Urge finalmente apreciar e decidir a questão referenciada em c)--supra:

A Jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº. 3 do artº. 212º. da C.R.P. em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emer-gentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cfr. igualmente o artº. 3º. do ETAF, aprovado pelo Dec. lei nº. 124/84, de 27/04).

A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo -lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais (artºs. 211º., nº. 1 da C.R.P. e 18º. da L.O.F.T.J. – nº. 3/99, de 13/01.

A competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, “seja quanto aos seus elementos objectivos (natu-reza da providência solicitada ou de direito para o qual se pretenda a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). Como ensina o Prof. Manuel de Andrade, a competência do tribunal “afere -se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum” (In Noções Elementares de Processo Civil – 1979 – pag. 91).

A competência do Tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes, nem da procedência da acção.

É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fun-damentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos da pretensão.

Este entendimento doutrinal tem vindo a ser aceite pela jurisprudência, designadamente, a deste Tribunal de Conflitos, nomeadamente, o Ac. de 7/5/91, proferido no processo nº. 231 (Apêndice – D. Rep. – 30/10/93 – Pág. 24), o Ac. de 6/5/91, proferido no processo nº. 230 (Apêndice – D.

Page 20: Decisões STA

38 39

Rep. – 30/10/93 – Pág. 34) e o Ac. de 26/9/96, proferido no processo nº. 267 (Apêndice – D. Rep. – 28/11/97 – Pág. 59).

Também a jurisprudência tem vindo a decidir que “a competência do tribunal em razão da matéria afere -se pelo pedido do autor, tendo em conta os termos em que a acção é proposta e, especialmente, face à relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial” (Cfr. entre outros, os Acórdãos do S.T.J., de 12/01/94, 09/05/95 e 04/03/97 – In Colect. Jurisp. / S.T.J. – 94 – 1º., págs. 38, 95 – 2º., pág. 68 e 97 – 1º., pág. 125, respectivamente).

De acordo com esta doutrina e jurisprudência e à face das referidas normas delimitadoras da competência / jurisdição administrativa e da dos tribunais judiciais, importa caracterizar a relação estabelecida entre o Autor e o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, mas tal como o litigio é apresentado pelo primeiro, para decidir se incumbe aos tribunais administrativos (como decorre do acórdão recorrido) ou aos tribunais judiciais de trabalho (como decidiu o Tribunal do Trabalho da 1ª. Instância) o conhecimento da acção.

No caso presente, invoca o Autor que, do clausulado no Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço, decorre que se lhe aplica o regime jurídico do quadro específico definido nos Regulamentos do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, pelos regulamentos que lhe de-ram execução, designadamente, o Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia, e, subsidiariamente, pelos princípios relativos ao contrato individual de trabalho, mas também que ao regime jurídico especial do pessoal do quadro específico da ISSS são aplicáveis os princípios e as normas que regem o contrato individual de trabalho, e ainda que, de harmonia com o disposto no artº. 37º. do Dec. Lei nº. 316 -A/2000, de 07 de Dezembro (Estatuto do ISSS), ao seu pessoal aplica -se o regime jurídico de contrato individual de trabalho e o preceituado nos regulamentos internos do ISSS, não sendo, por isso, a sua Comissão de Serviço regulada pelo direito administrativo.

A nosso ver, o A., ora recorrente, tem razão. Na verdade, contraria-mente ao referido no acórdão recorrido, de que “o A. invocou como causa de pedir a sua qualidade de “funcionário público”, tal não corresponde ao invocado pelo A., porquanto a verdadeira causa de pedir por ele alegada consiste “No acordo de nomeação em Comissão de Serviço” para desempenhar o Cargo de Adjunto do Director do centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Castelo Branco, com início a 1/10/2001 e por 3 anos e cuja cessação foi determinada a partir de 24/09/2002, por despacho ilegal de Sua Excia. a Secretária de Estado da Solidariedade e Segurança Social.

O A. caracteriza como contrato individual de trabalho o vínculo jurí-dico com o ISSS resultante da sua nomeação e exercício e subsequente cessação, em comissão de serviço, para o Cargo de Adjunto do Director do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Castelo Branco, sendo que tal entendimento está suficientemente documentado na deliberação nº. 021/2002 de 24/01/2002 (fls. 27), na Deliberação nº. 286 de 22/11/2001 (fls. 28 e 29) e no Acordo de nomeação em Comissão de Serviço de fls. 30 e 31 dos autos.

O ISSS celebrou com o recorrente um Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço, onde se estipulou que o A. “segundo outorgante fica abrangido pelo regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos do ISSS, pelos regulamentos que lhe deram execução, designadamente, o Regulamento de Pessoal Dirigente e de

Chefia e subsidiariamente pelas normas e princípios que regem o con-trato individual de trabalho” (doc. de fls. 30 e 31 – Cláusula Terceira (Regime Jurídico).

Como acima se referiu, o que releva para a questão da competência em razão da matéria é o facto de o Autor alegar estar vinculado ao Réu através do regime de contrato individual de trabalho, de os termos com que caracteriza a sua situação serem compatíveis com um contrato deste tipo e de ser esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão formulada de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contrato desse tipo.

“Se existe relação jurídica dessa natureza e dela emergem os direitos que o Autor se arroga … é questão que já não respeita ao problema da competência, mas ao mérito da pretensão” (Ac. deste Tribunal – 09/03/2004 – Conflito nº. 375).

Assim, não resultando necessariamente, dos termos em que a acção foi proposta, que tenha sido estabelecida entre o A. e o ISSS uma rela-ção de direito administrativo, e, arrogando -se o Autor a qualidade de titular de um contrato individual de trabalho, durante o exercício do Cargo de Adjunto do Director do centro Distrital de Castelo Branco, em Comissão de Serviço, e, sendo os direitos daí emergentes que quer fazer valer em juízo, é aos tribunais judiciais que incumbe legalmente apreciar a pretensão do Autor (artº. 18º. da L.O.F.T.J.).

E, dentro desta ordem jurisdicional, são competentes para o conhe-cimento da acção os tribunais de trabalho, por força do preceituado no artigo 85º., al. b), da L.O.F.T.J.

III – Decisão:Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar

o acórdão recorrido e declarar competentes os tribunais do trabalho para o conhecimento da acção, como aliás decidiu o Tribunal de Trabalho de Castelo Branco.

Sem custas.Lisboa 19 de Janeiro de 2006. — Armindo Ribeiro Luís (relator) — Rui

Manuel Pires Ferreira Botelho — João Mendonça Pires da Rosa — Jorge Manuel Lopes de Sousa — Adérito da Conceição Salvador dos Santos.

Acórdão de 31 de Janeiro de 2006.Processo n.º 15/05.Requerente: António da Conceição Jacob, no Conflito Negativo de

Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Carlos Bettencourt de Faria.

IAntónio da Conceição Jacob veio deduzir contra o Estado Português,

no tribunal comum de 1ª instância, pedido de reversão (adjudicação) de determinado prédio rústico, sito na freguesia e concelho de Sines, fundando a sua pretensão no disposto no art.º 77° e segs. da Lei 168/99 (C. Das Expropriações).

Page 21: Decisões STA

40 41

O Mmo Juiz da comarca de Santiago do Cacém entendeu, porém, que era competente em razão da matéria para conhecer dos autos o tribunal administrativo de círculo da área da situação do prédio e absolveu o réu da instância, nos termos do art° 105° n°a 1 e 2do C.P.Civil.

Agravou o autor, mas sem êxito.Veio então este recorrer para o Tribunal dos Conflitos.Nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes

conclusões:1 O art° 1° da lei 4 -A12003, ao declarar que “os art°s 5° (da Lei 13/2002),

74°, n°s 1,2 e 3 e 77° da Lei 168/99 passam a ter a seguinte redacção”, que expressou com linhas ponteadas (…..) - em branco -, portanto, só pode ter querido significar eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por essas linhas ponteadas.

2 Daí que o regime vigente na matéria em causa seja — e sempre tenha sido, salvo o devido respeito - , o estatuído pelo n° 1 do art° 77° da Lei 168/99, acrescendo que é manifestamente perceptível que a intenção do legislador, contida na Lei 4 -4A/2003, reside na ideia de ressuscitar a Lei revogada. (art° 77° da Lei 168/99).

3 O acórdão recorrido está inquinado das nulidades previstas pelos art°s 668° n° 1 alíneas b), c) e d) — 1ª parte - , 666° no 3 e 716° do C. P. Civil, pelo que o mesmo deve ser declarado nulo.

4 O acórdão agravado violou ainda os art°s 158°, 669° n°s 1 alínea a) e 2 alínea b) do C. P. Civil, 279° alínea c) do C. Civil, Lei 4.4A/2003 de 19.02 — e, concretamente o art° l - 205° do CRP e 77° da Lei 168/99 de 15.09.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IIApreciandoEstá aqui em causa unicamente saber se a competência para conhecer

dos presentes autos pertence à jurisdição administrativa ou à jurisdição comum.

A este respeito o recorrente refere apenas que o artigo de lei que alte-rou expressamente parte de artigo de anterior lei, ao deixar em branco, mediante linhas ponteadas, os números sobre os quais não dispõe, quis significar que os revogava.

Nada mais contrário à boa técnica legislativa e mesmo ao comum discurso escrito do português.

As linhas ponteadas querem dizer precisamente o contrário, ou seja, que os regimes correspondentes a esses espaços são mantidos em vigor. Trata -se duma manifestação clara e directa da vontade do legislador.

Nem, que saibamos, nunca tal dúvida se suscitou ao intérprete.Nem seria lógico que o legislador não “aproveitasse” a oportunidade

duma alteração de um diploma e deixasse de regular de forma expressa todos aspectos do mesmo a que quisesse aplicar um regime diferente.

Acresce que isso até iria contra a regra da interpretação das leis segunda a qual deve - se entender que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - cf.art°9°n°3 do C. Civil.

Acresce igualmente que seria absurdo o legislador pretender o regresso a um sistema de competências, que acabava de afastar, numa inexplicável e inexplicada reviravolta da orientação legislativa.

Donde se conclui:O art° 1° da Lei 4 -A/2003 de 19.02, ao alterar determinados preceitos

da Lei 13/2002 de 19.02, não revogou aqueles preceitos deste diploma a

que não fez referência, ou a que se referiu, por forma indirecta, através de linhas ponteadas do texto oficial.

Antes revelou desse modo a intenção do legislador de os manter em vigor. Nomeadamente aquele - art° 5° - que determina que a competência para conhecer dos processos que têm como objecto o pedido de reversão, previsto na Lei 16899 de 18.09. passa a ser da jurisdição administrativa - tribunal de circulo -.

Dúvidas também não se põem nem o recorrente as refere - que o dito art° 5° entrou em vigor a 01.01.04. sendo certo que a acção foi instaurada em 20.03.04.

Assim, e resumindo, nos termos do artigo 74º, n° 4. do Código das Expropriações na redacção do citado artigo 5° da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, introduzida pelo artigo 1º da Lei n° 4 -A/2003, de 19 de Fevereiro, são os tribunais administrativos que têm a competência para conhecer da matéria em litígio.

IIIPelo exposto, acorda -se em julgar competente para conhecer da ma-

téria dos presentes autos o tribunal administrativo de círculo da situação do prédio em causa.

Sem custas.Lisboa, 31 de Janeiro de 2006. — Carlos Alberto de Andrade Betten-

court de Faria (relator) — Fernando Manuel Azevedo Moreira — José Joaquim de Sousa Leite — Maria Angelina Domingues — Mário Manuel Pereira — Rosendo Dias José.

Acórdão de 2 de Março de 2006.Processo n.º 20/05 -70.Requerente(s): Vladimiro dos Santos Estevâm e mulher Manuela

Maria Carapinha Gonçalves Estevâm no Conflito Negativo de Jurisdi-ção entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Fernando Pinto Monteiro.

Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos:1 — Vladimiro dos Santos Estêvam e mulher Manuela Maria Carapi-

nha Gonçalves Estêvam deduziram no Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém, contra o Município de Sines e o Estado Português, pedido de adjudicação de prédio rústico que identificam.

Alegaram que o prédio em causa foi expropriado, mas que após a expropriação nunca foi utilizado para o fim que determinou a declara-ção de utilidade pública, pelo que requereram e obtiveram a reversão do imóvel.

Não foi deduzida oposição.Foi proferido despacho que julgou verificada a excepção dilatória de

incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e absolveu os requeridos da instância.

Agravaram os requerentes.

Page 22: Decisões STA

42 43

O Tribunal da Relação confirmou o decidido.Inconformados, recorrem os requerentes para o Tribunal dos Con-

flitos.Formulam as seguintes conclusões: - O acórdão recorrido não conhece, esclarece nem fundamenta as

questões suscitadas no n.° 4 — 3, als. a) e b)das presentes alegações, nem tomou qualquer posição donde resulte a improcedência das conclusões que aí lhe foram apresentadas;

- O artigo 1° da Lei n.° 4 -A/2003, de 19.02, ao declarar que “Os artigos 5° da Lei n.° 13/2002, 74° n.°s 1, 2, 3 e 77º da Lei n.° 168/99 passam a ter a seguinte redacção”, que expressou com linhas ponteadas (...), em branco, portanto, só pode ter querido eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por essas linhas ponteadas;

- Qualquer outro entendimento terá que ser fundamentado em norma legal ou princípio geral de direito — de hermenêutica jurídica — con-sagrado pelo ordenamento jurídico, “elaborado” pela doutrina mais prestigiada e perfilhado pela jurisprudência mais representativa, questões sobre as quais o despacho agravado faz silêncio total;

- A redacção introduzida pela Lei n.° 4 -A/2003, do artigo 77° n.° 1 da Lei n.° 168/99, de 18.09, “ou apaga”, elimina ou oblitera a redacção constante da Lei n.° 13/2002, de 19.02; “ou apaga”, elimina ou oblitera directamente a redacção da Lei n.° 168/99, quanto ao artigo 77º n.° 1, que, em tal perspectiva, deixaria de existir;

- Se tivesse ocorrido a segunda hipótese prevista anteriormente — o que não aconteceu — então haveria que recorrer à Lei geral para so-lucionar a questão, isto é, ao artigo 44° do Estatuto dos Tribunais Ad-ministrativos e Fiscais e à Lei dos Tribunais Judiciais, o qual nada diz sobre a competência na matéria em causa;

- A revogação da norma revogatória antes da entrada em vigor desta, mantendo os seus dispositivos, mas esvaziando -os de todo o seu conte-údo, traduz uma vontade e uma intenção claras do legislador de recuperar a lei anterior, ou seja, de repristiná -la;

- Ora, do regime estatuído pelos diplomas referidos anteriormente, sempre resulta que seriam os Tribunais comuns — e não o foro adminis-trativo — os competentes para apreciar e julgar o litígio em presença;

- A Lei n.° 13/2002, de 19.02, que nos termos do seu artigo 9°, era suposto entrar em vigor um ano após a sua publicação, isto é, às 24 horas do dia 19.02.2003 (artigo 279°, alínea c) do C. Civil), foi alterada, quanto à data da entrada em vigor prevista no seu artigo 5°, pela Lei n.° -A/2003, de 18.03, que determinou que a vigência daquele regime se iniciaria em 01.01.2004;

- A Lei n.° 13/2002, de 19.02 — e concretamente o seu artigo 5° — não alterou o dispositivo legal constante do artigo 77º n.° 1 da Lei n.° 168/99, de 18.09, porque, antes de entrar em vigor em 01.01.2004, foi revogada pela Lei n.° 4 -A/2003, de 19.02, que sobre a mesma matéria obliterou as alterações introduzidas pelo artigo 5º da Lei n.° 13/2002, de 19.02, e repristinou a versão original dos artigos 74° e 77° da Lei n.° 168/99, de 18.09 (Código das Expropriações);

- Em 01.01.2004, já os artigos 5° e 9° da Lei n.° 13/2002 estavam revogados pelo artigo 1° da Lei n.° 4 - A/2003, pelo que tal regime nunca entrou em vigor, uma vez que a Lei n.° 4 -A/2003 é posterior à Lei n.° 13/2002 e “lex posterior derrogat priori”;

- Daí que o regime vigente na matéria em causa seja — e sempre tenha sido — o estatuído pelo n.° 1 do artigo 77° da Lei n.° 168/99, acrescendo que é manifestamente perceptível que a intenção do legis-lador, contida na Lei n.° 4 -A/2003, reside na ideia de ressuscitar a Lei revogada (artigo 77° n.° 1 da Lei n.° 168/99);

- O entendimento perfilhado pelo acórdão agravado tornaria impossí-vel o cumprimento pelo Tribunal das diligências de natureza probatória - designadamente por inspecção judicial e por via pericial previstas pelo artigo 78° da Lei n.° 168/99, de 18.09;

- A Senhora Magistrada do Ministério Público deduziu oposição quanto ao valor a restituir ao expropriante pelo expropriado, mas não suscitou qualquer dúvida ou oposição quanto à competência do Tribunal da Comarca para julgar e decidir a causa em apreço, posição, de resto, coincidente com todas as que já foram manifestadas pelo Ministério Público, nos diversos processos da mesma natureza, sobre os quais já se pronunciou;

- O acórdão agravado está inquinado das nulidades previstas pelos artigos 716° n.° 1, 668° n.° 1, als. b) e d) – 1ª parte, 666° n.° 3 do CPC, pelo que o mesmo deve ser declarado nulo, com os legais efeitos;

- O acórdão agravado violou ainda, para além das referidas normas, as sancionadas pelos artigos 158°, 669° n.°s 1 alínea a) e 2 alínea b) do CPC, 279° alínea c) do C. Civil, Lei n.° 4 -A/2003, de 19.02 - e concre-tamente o artigo 1° e 205° da CRP;

— Deve, pois, ser revogado o acórdão agravado e declarado com-petente para julgar o pleito sub -judice, o Tribunal Comum da Comarca de Santiago do Cacém;

Contra -alegando, o Senhor Procurador -Geral Adjunto defende a ma-nutenção do decidido.

Cumpre decidir.II — Requerida no Tribunal comum a adjudicação de prédio rústico

por ter sido obtida a reversão do imóvel, foi proferido despacho consi-derando que a competência pertence ao foro administrativo, pelo que se declarou a incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, decisão essa confirmada por acórdão do Tribunal da Relação.

Recorrem os requerentes para o Tribunal dos Conflitos, suscitando várias questões.

Impõem -se duas notas prévias.Em primeiro lugar não chega a existir um verdadeiro conflito, tal

como é entendido pelo artigo 115º do C. Processo Civil, uma vez que para isso seria necessário que dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogassem ou declinassem o poder de conhecer da mesma questão.

Em concreto, o Tribunal da Relação declarou incompetentes os Tribu-nais comuns, por considerar que competente era o Tribunal Administra-tivo, não chegando este Tribunal a pronunciar -se. Está -se assim perante uma decisão preventiva face ao eventual futuro conflito.

Em segundo lugar, sendo este um Tribunal dos Conflitos, compete -lhe unicamente fixar o Tribunal competente e não apreciar problemática suscitada a outro título.

A única questão a resolver consiste assim em saber se competentes para apreciar a causa são os Tribunais Administrativos como foi decidido ou se são competentes os Tribunais Judiciais comuns, como defendem os recorrentes.

Page 23: Decisões STA

44 45

Dentro da organização judiciária os Tribunais Judiciais gozam de competência genérica, tendo os tribunais de outra ordem jurisdicional, uma competência limitada em razão da matéria que lhe compete apre-ciar. Aqueles constituem a regra e gozam, por isso, de competência não discriminada e assim também residual.

A competência em razão da matéria distribui -se por “categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhum relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles” — Prof Antunes Varela — “Manual de Processo Civil” 2°ed., pág. 207.

Não cabendo a causa na competência de nenhum Tribunal especial, será para ela competente o Tribunal comum (artigo 66° do C. Processo Civil).

De entre os tribunais especiais, e no que aqui interessa, compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, ou seja, os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, exceptuando -se aqueles que o legislador atribua a outra jurisdição (artigo 1° do ETAF, aprovado pela Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro, alterada pela Lei nº 4 -A/2003 e pela Lei n.° 107 -D/2003).

No caso em apreço está em causa o direito de reversão, que se traduz no poder conferido ao expropriado de reaver ou readquirir os bens que foram objecto de expropriação.

Os bens expropriados que não forem aplicados ao fim cuja utilidade pública justifique a expropriação ou que dele tenham sido desviados “de-vem reverter ao primitivo proprietário a requerimento deste ou dos her-deiros” — Prof Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo “,9ª ed., reimpressão, 1980, 2º, pág. 1033.

Esse direito de reversão e o pedido de adjudicação subsequente susci-taram (designadamente durante a chamada Reforma Agrária) problemas vários.

O artigo 77° n.° 1 do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.° 168/99) dispunha a propósito que “Autorizada a reversão, o inte-ressado deduz, no prazo de 90 dias a contar da data da notificação da autorização perante o Tribunal da Comarca da situação do prédio ou da sua maior extensão, o pedido de adjudicação...”.

A competência, respeitando, aliás, uma longa tradição no que toca ao processo de expropriação, era dos Tribunais comuns.

A reforma do contencioso administrativo com a aprovação de novos diplomas, veio introduzir profundas alterações, designadamente e no que aqui importa apreciar, no processo expropriativo. O mencionado n.° 1 do artigo 77° passou a dispor que o pedido de adjudicação seria deduzido “perante o Tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão...”.

Alteração que está em sintonia com a “ampliação” do foro admi-nistrativo, que passou a comportar novo tipo de acções e uma tutela jurisdicional com maior amplitude de vários interesses legalmente protegidos.

A Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro, que por força da nova redacção dada ao referido artigo 77°, atribuiu competência aos tribunais adminis-trativos, deveria entrar em vigor um ano após a data da sua publicação. Acontece, porém, que a Lei n.° 4 -A/2003 de 19 de Fevereiro veio introduzir alterações ao legislado.

Reproduz -se parcialmente o artigo 1°:

Artigo 1.ºAlterações à Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro

Os artigos 5º, 7° e 9° da Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, passam a ter a seguinte redacção:

Artigo 5.°(...)

………………..Artigo 74.°

(...)1 - ………………..2 - ………………..3 - ………………..4 - Se não for notificado de decisão favorável no prazo de 90 dias a

contar da data do requerimento, o interessado pode fazer valer o direito de reversão no prazo de um ano, mediante acção administrativa comum a propor no tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão.

5 - ……………….Artigo 77.°

(...)1 - ……………….a) ……………….b) ……………….c) ……………….d) ……………….e) ……………….2 - ……………….No artigo 7° são mencionadas alterações que aqui não importa con-

siderar e no artigo 9° estipulou -se que: “A presente lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 2004, com excepção do artigo 7°, que entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.”

Invocando o argumento puramente formal das linhas ponteadas, os recorrentes sustentam que o legislador quis a “revogação da norma revo-gatória antes da entrada em vigor desta, mantendo os seus dispositivos, mas esvaziando -os de todo o seu conteúdo” o que traduz “uma vontade e uma intenção claras de o legislador, recuperar a lei anterior, ou seja, DE REPREST1NÁ -LA”. O artigo 1º da Lei n.° 4 -A/2003 só pode ter querido, dizem, eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por linhas ponteadas.

É evidente que não têm os recorrentes qualquer razão. Embora não seja, eventualmente, a melhor técnica legislativa, é vulgar o legislador recorrer a linhas ponteadas, não para eliminar, como se defende no recurso, mas sim para significar que nessa parte o artigo se mantém inalterado. Se várias vezes se tem deparado com as referidas linhas ponteadas, é a primeira vez que se encontra uma interpretação como aquela que é feita pelos recorrentes.

Page 24: Decisões STA

46 47

O corpo do artigo 5º da Lei n.° 13/2002 e tudo o mais que constava desse artigo, com excepção do n.° 4 do artigo 74° mantiveram anteriores redacções. O significado do ponteado é o de que permanece nessa parte aquilo que já estava - Este Tribunal dos Conflitos já se pronunciou em sentido próximo no Ac. de 29.11.2005, processo n° 17/05, como de forma idêntica tem decidido o Tribunal da Relação de Évora.

Pelo exposto, nega -se provimento ao recurso e confirma -se o acórdão da Relação de Évora, por ser incompetente em razão da matéria o Tri-bunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém, sendo competentes para a acção os Tribunais Administrativos.

Sem custas.Lisboa, 2 de Março de 2006. — Fernando Pinto Monteiro (relator) —

Rui Manuel Pires Ferreira Botelho — Luís António Noronha do Nasci-mento — Rosendo Dias José — João Luís Marques Bernardo — Adérito da Conceição Salvador dos Santos.

Acórdão de 7 de Março de 2006.Processo n.º 22/05 -70.Requerente(s): O Ministério Público, no Conflito Negativo de Ju-

risdição, entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o Tribunal Judicial de Leiria e o Tribunal de Trabalho de Leiria

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Manuel José da Silva Salazar.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:O Ex.mo Magistrado do M. P.° junto do Supremo Tribunal Adminis-

trativo requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição suscitado entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o Tribunal Judicial de Leiria, e o Tribunal do Trabalho de Leiria, que, todos eles, se negaram, sucessivamente, competência para conhecer de uma acção proposta no primeiro pelo Hospital de S.to André, S.A., que por esse meio pedia a condenação da Direcção — Geral dos Serviços Prisionais a pagar -lhe determinadas quantias pecuniárias relativas à prestação de serviços de assistência hospitalar a sete funcionários do Estabelecimento Prisional de Leiria.

Invoca aquele distinto magistrado que, por decisão de 25/10/04, o Ex.mo Juiz do TAF se julgou incompetente por entender que o litígio em causa respeitava a uma relação estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que os autos foram remetidos ao Tribunal Judicial.

Acrescenta que o Ex.mo Juiz deste Tribunal, por decisão de 22/2/05 (e não, como por manifesto lapso refere, 22/2/04), se considerou incom-petente por entender que a hipótese dos autos configurava uma relação de trabalho entre a entidade devedora e os seus funcionários, concluindo que o Tribunal competente era o Tribunal do Trabalho.

Mais refere que neste Tribunal, por sua vez, por decisão de 5/5/05, o Ex.mo Juiz respectivo se considerou incompetente materialmente e absolveu o réu da instância por ter entendido que não existia na situa-ção dos autos um vínculo contratual que ligasse o sinistrado à entidade

responsável, por se tratar de um acidente fora de qualquer relação de trabalho e porque o empregador era a Administração Pública.

Todas essas decisões, juntas por certidão, transitaram em julgado.Foi oportunamente emitido parecer pelo Ex.mo Procurador - Geral

Adjunto, no sentido de a competência caber ao Tribunal comum (ju-risdição cível).

Cabe decidir, tendo em conta que, apesar do disposto no art.° 105° do Decreto n.° 19.243, de 16/1/31, que obriga o Tribunal dos Conflitos a remeter as partes para a autoridade competente, este Tribunal, face ao que dispunha o art.° 17° do Dec. — Lei n.° 23.185, de 30/10/33, e aos termos dos art.°s 115° e 116° do Cód. Proc. Civil, apenas tem competência para resolver os conflitos de jurisdição e competência entre autoridades administrativas e judiciais e não conflitos estritamente de competência entre estas últimas, pelo que, se for de concluir que a competência na hipótese dos autos cabe à jurisdição comum, não pode, aqui, ser resolvida a questão de saber qual, entre o Tribunal Judicial e o Tribunal do Trabalho, é o competente: neste Tribunal dos Conflitos apenas pode ser decidida a questão de saber qual a ordem jurisdicional competente para processar e decidir o pleito.

Por outro lado, há que ter em conta que, apesar de o Tribunal Judicial ter admitido a incompetência do TAF, aceitando a competência da juris-dição comum, não deixa de existir um efectivo conflito de jurisdição na situação dos autos, na medida em que, analisado o despacho do Ex.mo Juiz do Tribunal do Trabalho, se constata que este atribui competência ao Tribunal Administrativo para julgamento do pleito.

Como é sabido, a competência material dos Tribunais para a decisão do litígio configurado em determinada acção afere -se pelo pedido for-mulado nessa mesma acção, analisado à luz da respectiva causa de pedir, a menos que exista lei que especialmente fixe tal competência.

A acção em causa, como se disse, foi proposta pelo Hospital de Santo André, S.A., contra a Direcção Geral dos Serviços Prisionais. E, como resulta do estatuído nos art.°s 1° e 4° do Dec. -Lei n.° 297/02, de 11/12, a inclusão daquele Hospital no Serviço Nacional de Saúde, que se verificava ao tempo de alguns dos serviços médicos prestados (pelo menos os que tiveram lugar em 2001) por ser então uma pessoa colectiva de direito público, foi mantida com a sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.

Ora, já o Dec. -Lei n.° 147/83, de 5/4, estipulava no seu art.° 1 que todas as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde seguiriam os termos do processo sumaríssimo, com determinadas adaptações, o que, como tal forma de processo não existia no contencioso administrativo, pressupunha a atribuição de competência à jurisdição comum, como aliás era prática judiciária corrente.

Por seu lado, o Dec. -Lei n.° 194/92, de 8/9, que nos termos do seu art.° 1º regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, atribuindo nomeadamente força executiva às certidões de dívida emanadas daquelas instituições e serviços e fixando a competência do “Tribunal da comarca” em que se encontrasse sediada a entidade exequente para as correspondentes acções executivas, e que, no seu art.° 13º, revogou aquele Dec. -lei n.° 147/83, embora mantendo, como se vê, a competência da jurisdição comum, foi expressamente revogado pelo art.° 14° do Dec. -Lei n.° 218/99, de 15/6, que é hoje, segundo o seu art.° 1º, o diploma que estabelece o regime de

Page 25: Decisões STA

48 49

cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, mas que não refere de forma expressa qual o tribunal materialmente competente para o efeito de processar e decidir as questões respectivas.

Limita -se este diploma, no seu art.° 7°, a determinar a competência territorial do Tribunal da sede da entidade credora, não incluindo agora a expressão “Tribunal da comarca”, mas sem que tal omissão implique, só por si, que o legislador tenha pretendido introduzir qualquer alteração respeitante à competência, pois a actual expressão pode significar apenas que considerou desnecessário referir -se a uma competência material que pretendia manter.

Com efeito, parece o actual diploma pressupor a manutenção da competência material dos Tribunais da jurisdição comum, isto perante a análise do seu próprio preâmbulo, em que o legislador manifesta claramente a intenção de alterar apenas as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares essencialmente mediante a subs-tituição da acção executiva pela declarativa, pelo facto de entretanto se ter constatado que a força executiva conferida às aludidas certidões não provocara a celeridade e a simplicidade processuais visadas pelo diploma anterior na medida em que na generalidade dos casos a existência do crédito reclamado judicialmente e a verdadeira identidade do devedor eram discutidas em sede de embargos à execução.

E parece manifesto que, se o legislador tivesse então em vista que a alteração das regras processuais abrangesse também alguma alteração sobre a competência dos Tribunais ou da jurisdição em que o processo devesse correr, não se compreenderia que naquele preâmbulo não se fizesse a mínima alusão a tal nem qualquer síntese de razões explica-tivas da nova opção. Ou seja, nada referindo a tal respeito apesar das pormenorizadas explicações preambulares sobre os seus objectivos, parece pelo menos lógico interpretar o dito diploma como não tendo visado introduzir qualquer inovação sobre a competência dos Tribunais que deveriam proceder à análise e decisão das questões respeitantes às dívidas hospitalares.

Acresce que no mesmo sentido aponta o disposto no art.° 6° do mencionado Dec. -Lei n.° 218/99, ao estabelecer a possibilidade de as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde se constituírem partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas, possibilidade essa que aponta de forma praticamente decisiva para a competência da jurisdição comum, que é aquela onde correm os processos penais. Caso contrário, isto é, se o legislador pretendesse que a competência coubesse à jurisdição comum quando os devedores fossem accionados em processo criminal e à jurisdição administrativa quando fossem accionados fora desse processo, estaria ele a consagrar a competência de duas ordens jurisdi-cionais diferentes para apreciar questões da mesma natureza, de forma incongruente, pois a distribuição de competência entre jurisdições se baseia precisamente na natureza das questões a decidir.

Assim, e ainda porque o litígio em questão não integra uma relação jurídica entre pessoas de direito público desenvolvida sob a égide do direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não se enquadra na previsão de qualquer das als. do art.° 4° do E.T.A.F., conclui -se que se trata aqui de um caso nítido em que se justifica uma

interpretação extensiva, por ser manifesto que o legislador disse menos do que aquilo que pretendia dizer, sendo consequentemente de interpretar o citado Dec. -Lei n.° 218/99 no sentido de consagrar a competência dos Tribunais integrados na jurisdição comum para apreciar os pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares por prestação de cuidados de saúde.

Subsiste ainda, porém, a questão de saber se essa competência dos Tribunais comuns se mantém ou não quando os assistidos pelo estabe-lecimento hospitalar sejam servidores públicos acidentados em serviço, questão essa decidida pelo Ex.mo Juiz do Tribunal do Trabalho no sentido negativo.

Ora, é manifesto que o regime da cobrança de dívidas consagrado no citado Dec. -Lei não atende à causa das lesões determinantes dos trata-mentos prestados, salvo (art.°s 9° a 12°) no tocante a dívidas resultantes de acidentes de viação, o que não é o caso. Assim, apenas há que ter em conta a causa de pedir invocada, integrada somente por aqueles factos a que o mencionado diploma reconhece a eficácia de determinar a com-petência do Tribunal, e que consistem em não mais do que a prestação de cuidados de saúde por instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, independentemente da qualidade dos assistidos. Quer isto dizer que a referência feita na petição inicial à qualidade dos assistidos enquanto servidores públicos apenas releva para determinação da legitimidade passiva, pois, se não o fossem, tal legitimidade caberia a eles próprios ou aos causadores das lesões que tenham originado os tratamentos; e não é essa legitimidade, mas a causa de pedir, que tem eficácia na determinação da competência material do Tribunal.

O Dec. -Lei n.° 503/99, de 20/11. que aprova o novo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, dispõe, porém, no seu art.° 48°, n.° 1, que “o interessado pode intentar, no prazo de um ano, nos Tribunais adminis-trativos, acção para reconhecimento do direito ou interesse legalmente protegido contra os actos ou omissões relativos à aplicação do presente diploma, que segue os termos previstos na lei de processo nos Tribu-nais administrativos e tem carácter de urgência.” E foi com base neste dispositivo e no art.° 6°, n.° 4, do mesmo diploma, que o Tribunal do Trabalho considerou competente o Tribunal Administrativo.

Mas não lhe pode ser reconhecida razão, pois esse diploma nada estipula no tocante à questão suscitada no presente conflito.

Com efeito, esse Dec. -Lei, que no n.° 4 do seu art.° 6° se limita a prever o modo como “os estabelecimentos da rede oficial de saúde que prestem assistência aos trabalhadores abrangidos” no mesmo diploma devem cobrar extrajudicialmente as despesas correspondentes junto do serviço ou organismo responsável, o que pretende naquele art.° 48°, n.° 1, é apenas esclarecer a competência para resolução dos litígios que surjam internamente nas relações entre a Administração e os seus servidores que tenham sofrido acidentes em serviço ou padeçam de doenças profissionais, coisa que nos autos a que o presente conflito se refere não acontece.

De todo o exposto resulta a competência da jurisdição comum para o processamento da acção em que foi suscitada a questão do pagamento das dívidas hospitalares em causa e para a decisão da mesma questão, embora este Tribunal não possa, como se referiu, determinar, dentro dessa jurisdição comum, se o materialmente competente é o Tribunal Judicial ou o Tribunal do Trabalho.

Page 26: Decisões STA

50 51

Nestes termos, acorda -se em declarar competente para apreciar e conhecer da acção em causa a jurisdição comum.

Sem custas.Lisboa, 7 de Março de 2006. — Manuel José da Silva Salazar (relator) —

António Bento São Pedro — José António Carmona da Mota — António Políbio Ferreira Henriques — Fernando Araújo de Barros — Fernanda Martins Xavier e Nunes.

Acórdão de 14 de Março de 2006.Processo n.º 18/05 -70.Requerente(s): Luís Manuel Rodrigues da Luz Querido e outra, no

conflito negativo de jurisdição entre a 6ª.Vara Cível de Lisboa e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Arménio de Castro Sottomayor.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:1. Luís Manuel Rodrigues da Luz Querido e Ana Paula Moreira Reino

propuseram nas Varas Cíveis de Lisboa, contra o Município de Lisboa e a Assembleia de Compartes dos Baldios do Bairro Económico do Alto da Ajuda e, na falta da sua constituição, a Junta de Freguesia da Ajuda, procedimento cautelar de embargo de obra, com função preventiva, destinado a evitar a demolição pelo Município de Lisboa de todas as instalações e produções agrícolas, designadamente árvores de fruto exis-tentes nos logradouros de suas casas — habitações de carácter económico — sitas na Rua Orlando Gonçalves, cujas traseiras — logradouros — dão para a Rua das Açucenas no Bairro do Alto da Ajuda, em Lisboa. Alegam que essa intenção foi comunicada a familiares dos requerentes, por um guarda municipal fardado, acompanhado por outra pessoa

A providência foi averbada à 6ª Vara Cível de Lisboa.Por despacho de 1 de Abril de 2004, e com fundamento em que “para

além de ser discutível ser esta a providência própria uma vez que não existem ‘embargos de obra nova com função preventiva’ o que é facto é que, de acordo com o art. 414° do C.P.C. este tribunal não é o competente para apreciar esta questão dado que se trata de obra de autarquia local e referente a baldios”, foi declarado o tribunal incompetente em razão da matéria, sendo liminarmente indeferida a petição inicial.

Após um pedido de esclarecimento, indeferido, foi interposto recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Por despacho do relator, foram julgadas improcedentes as conclusões dos agravantes e confirmada a decisão recorrida.

Houve reclamação para a conferência, que, por acórdão de fls. 59, indeferiu a reclamação, mantendo a decisão.

Os requerentes interpuseram recurso de agravo para o Supremo Tri-bunal de Justiça, o qual foi admitido, tendo suscitado duas questões: a da previsão legal de embargos de obra nova com efeito ou função preventiva e a da competência do tribunal cível.

Após alegações do agravado Município de Lisboa, foram os autos remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça.

Na vista que então teve dos autos, o Ministério Público emitiu pa-recer no sentido de não ser o Supremo Tribunal de Justiça o tribunal competente, face ao disposto no art. 107° n.° 2 do Código de Processo Civil, propondo que seja ponderada a remessa dos autos ao tribunal competente, o Tribunal dos Conflitos.

Depois de notificadas as partes para dizerem o que se lhes ofere-cesse acerca da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, foi exarado despacho pelo relator julgando procedente a questão prévia e, em consequência, declarando incompetente o Supremo Tribunal de Justiça para conhecer do objecto do agravo, o qual é da competência do Tribunal dos Conflitos, tendo sido ordenada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo, onde o Tribunal dos Conflitos se encontra sediado.

2. Das alegações que apresentou no presente recurso, o recorrente extraiu as seguintes conclusões:

1 - Embargo de obra nova é procedimento cautelar que tem função preventiva quando exista ameaça ou receio de lesão de um direito real ou pessoal de gozo.

2 - O art° 412 n.°l do C. P. Civil, relativo aos embargos de obra nova, refere expressamente, “obra, trabalho ou serviço novo que ameace causar prejuízo...”, como é o caso dos autos.

3 - A Lei prevê, pois, embargos de obra nova com efeito ou função preventiva.

4 - O Tribunal civil é o Tribunal competente, por a competência, muito embora da acção faça parte uma autarquia local, se aferir em função da natureza do acto que se pretende atacar.

5 - Tal como vem referido no Acórdão do S.T.J., de 24/01/2002, in C.J. 2002 - 1, pág. 57, a gestão é pública ou privada conforme a entidade que a realiza, a natureza do acto praticado e os fins tidos em vista. No caso a natureza do acto praticado é privado - construção de moradias em banda com destino ao mercado imobiliário, tal como os fins de carácter económico privado.

6 - Além disso, já foram causados prejuízos ao primeiro requerente pela ocupação de 20 m2 do logradouro da sua moradia de área de 255 m2, temendo -se que, sem qualquer título, autorização ou expropriação continuem a destruir a sua propriedade.

7 — Portanto, indispensável se torna que no caso o Município de Lisboa agisse com “jus imperii”, o que não acontece.

8 - Na verdade, trata -se de obras em terrenos baldios, daí ter -se pro-posto procedimento cautelar, também contra a Assembleia de Compartes dos Baldios que é entidade privada.

9 - No caso em questão, trata -se de prevenir que os requerentes - mo-radores do Bairro Económico do Alto da Ajuda (um na qualidade de proprietário já prejudicado e outra utilizadora de longa data de terreno baldio) sejam prejudicados, ou de evitar que os baldios usados por outros moradores venham a ser ocupados abusivamente pelo Município.

10 - Até pelos Acórdãos citados, se verifica que a jurisprudência é unânime em considerar a competência Tribunais comuns que são chamados a pronunciar -se sobre tal matéria.

11 - O acórdão recorrido violou o art° 414 do C. P. Civil.3. O Ministério Público junto do Tribunal dos Conflitos teve vista dos

autos, considerando que o recurso não merece provimento, acrescentando que, estando em causa uma obra de demolição da autarquia, investida de “ius imperii”, o foro materialmente competente é o administrativo.

Page 27: Decisões STA

52 53

Foram colhidos os vistos, havendo que conhecer do recurso.4. O presente recurso, interposto da decisão da Relação que julgou

incompetente em razão da matéria o tribunal comum e competente a jurisdição administrativa, tem a especialidade de, nos termos do art. 107º n.° 2 do Código de Processo Civil, ser decidido pelo Tribunal dos Con-flitos. Com vista a prevenir um conflito futuro, a lei processual civil submete ao tribunal com competência para dirimir os conflitos entre as jurisdições comum e administrativa a apreciação do recurso, de forma a que fique a questão da competência material definitivamente decidida por decisão transitada em julgado, decisão que tem de ser acatada pelo tribunal perante quem depois for a acção proposta. Se assim não aconte-cesse, “se o recurso fosse interposto para o Supremo Tribunal de Justiça e se este tribunal viesse a confirmar a decisão da Relação no sentido da incompetência do tribunal judicial, com o fundamento de que a compe-tência para conhecer da causa pertencia aos tribunais administrativos, a decisão do Supremo não vincularia os tribunais administrativos, por não dispor de jurisdição sobre aquela ordem de tribunais e, deste modo, quando a acção viesse a ser proposta nos tribunais administrativos, estes não estariam impedidos de se declararem incompetentes, por entende-rem que a competência pertencia aos tribunais judiciais” (ac. STJ de 28 -09 -2005 — proc. 1966/05).

5. A competência do tribunal, segundo os ensinamentos de Ridenti, cuja doutrina foi acolhida por Manuel de Andrade (Noções Elemen-tares de Processo Civil, I, pág. 89), “afere -se pelo quid disputandum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, o que significa que é pela análise do pedido formulado pelo autor que deve ser aferida a competência material do tribunal. Idêntica reflexão era feita por Carnelutti (apud, Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, I, pág. 110) ao afirmar que a competência em razão da matéria é determinada pelo conteúdo da lide.

A mesma metodologia tem sido seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal de Conflitos que, quando chamados a apreciar o pressuposto processual atinente à competência, têm procedido à análise da estrutura da relação jurídica material em debate, tal como é apresentada pelo autor na sua petição, atendendo, em especial, aos termos em que a pretensão é formu-lada. (Cfr, por todos, os acs. do STJ de 3 -02 -1987 in BMJ 364 -591, de 12 -01 -1994 in CJ/STJ, II — 1, pág.38, de 19 -10 -2004 proc. 3001/04 in ITIJ - Bases jurídico -documentais) e do STA de 13 -5 -1993, de 28 -5 -1996 e de 23 -10 -1997 in Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Jurisprudência Administrativa, pág. 191, 198 e 204).

6. Nos termos do art. 211º n.° 1 da Constituição da República Portu-guesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, enquanto que, conforme estabelece o art. 212° n.° 3, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ac-ções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Sendo a competência dos tribunais comuns residual, haverá, pois, que verificar primeiramente se a causa cabe na competência dos tribunais administrativos.

O art. 1° n.° 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro afirma serem estes “os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça

em nome do provo, nos litígios emergentes das relações jurídicas ad-ministrativas e fiscais”

E embora os limites do conceito de relação jurídica administrativa sejam controvertidos, são de considerar nele inseridas as relações que se estabelecem entre a Administração e os particulares em que há uma pre-valência do interesse público sobre o particular traduzido na atribuição de poderes de autoridade àquela. (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, pág. e Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, I, pág. 57). O que significa que é da competência da jurisdição administrativa a apreciação de actos da Administração, quando se trate de actos de gestão pública, ou seja, quando o Estado ou a pessoa colectiva pública agem munidos do seu jus imperii, no exercício de um poder público, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, diferentemente do que acontece nos actos de gestão privada, em que intervindo o Estado ou a pessoa colectiva pública numa veste de simples particular, a competência para dirimir o litígio se radica no tribunais comuns.

7. Importa, assim, por interpretação do requerimento inicial de em-bargo de obra nova, ver como os recorrentes conformaram o seu pedido e como caracterizaram os actos do Município de Lisboa, para, por aplicação dos princípios acabados de referir, se poder concluir acerca da jurisdição competente.

Os requerentes alegam que são legítimos donos e proprietários das moradias n.°s 151 e 149 da Rua Orlando Gonçalves, na freguesia da Ajuda, em Lisboa, as quais foram construídas há mais de 60 anos e fazem parte do Bairro das Casas Económicas do Alto da Ajuda; logo acrescentando que as moradias dos requerentes, bem como todas as demais situadas do lado sul da Rua Orlando Gonçalves, têm, nas trasei-ras viradas para a Rua das Açucenas, logradouros onde têm efectuado cultivos de culturas de subsistência e pequenos pomares. Afirmam ainda que os logradouros são contíguos às suas habitações, não existindo qualquer linha divisória da Rua das Açucenas, tendo os moradores, para fazerem as suas hortas, sempre utilizado essa faixas de terrenos que, para além da parte integrante das suas propriedades, constituem terrenos baldios. Aduzem que o Plano Director Municipal de Lisboa prevê que a Rua das Açucenas venha a ser alargada para construção duma via estruturante a ligar o Alto do Restelo ao Polo Universitário do Parque Florestal de Monsanto.

Mais referem que, em 6 de Março de 2004, um guarda municipal do Município de Lisboa, apresentando -se fardado e acompanhado por outra pessoa, avisou verbalmente familiares dos requerentes de que o Município se preparava para demolir todas as instalações e produções agrícolas, designadamente árvores de fruto existentes nesses logradouros. Acrescenta o primeiro requerente que, por ocasião do alargamento da Rua da Açucenas, lhe retiraram cerca de 20 m2 da área do logradouro, pretendendo agora o Município de Lisboa, com nova “investida” contra as “hortas” e quintais, retirar -lhe área superior, causando -lhes, com tal actuação, irremediáveis prejuízos.

Ora, o modo como, no requerimento inicial - e só a esse nos devemos ater pelas razões acima expostas - é feita alusão à finalidade perseguida pelo Município de Lisboa — a execução do Plano Director Municipal — revela que o requerido Município de Lisboa age com ius imperii, no exercício dum poder de autoridade que se impõe aos particulares, o que leva a concluir pela competência dos tribunais administrativos.

Page 28: Decisões STA

54 55

A incompetência dos tribunais comuns, de resto, decorre também da norma do art. 414° do Código de Processo Civil, que estabelece não serem os embargos de obra nova o meio processual próprio para embargar “as obras do Estado, das demais pessoas colectivas públicas e das entidades concessionárias de obras ou serviços públicos quando, por o litígio se reportar a uma relação jurídico -administrativa, a defesa dos direitos ou interesses lesados se deva efectivar através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso”.

8. Conforme se referiu, o recorrente suscita, no seu recurso, a questão de a providência de embargo de obra nova ser meio processual adequado a evitar um prejuízo futuro duma obra que ainda não se iniciou.

Embora o Tribunal dos Conflitos neste recurso se substitua ao Su-premo Tribunal de Justiça, a sua competência está, todavia, limitada ao conhecimento e decisão acerca da jurisdição competente. Só assim não é, alargando -se a competência do Tribunal dos Conflitos ao conheci-mento doutras matérias, se se tratar de questões incidentais directamente relacionadas com o objecto do processo, conforme se decidiu no ac. de 25 -10 -2005, Proc. 06/04 deste Tribunal, ou no caso de ocorrer questão cujo conhecimento se afigure prévio à decisão sobre a competência.

Não se verificando no caso dos autos, nem uma nem a outra das situ-ações, carece, por conseguinte, o Tribunal dos Conflitos de competência para se pronunciar sobre a adequação do meio processual usado pelos recorrentes para a defesa do seu interesse dos requerentes, que, ao tempo em que a providência foi requerida, tinha sido ameaçado de lesão.

Termos em que, acordam no Tribunal de Conflitos em, negando provimento ao agravo, julgar o tribunal comum incompetente em razão da matéria e competente a jurisdição administrativa.

Sem custas.Lisboa, 14 de Março de 2006. — Arménio Castro Sottomayor (re-

lator) — Alberto Augusto Oliveira — Manuel Joaquim Sousa Pei-xoto — António São Pedro — Fernando Azevedo Ramos — João Belchior.

Acórdão de 14 de Março de 2006.

Assunto:

Decisões de três tribunais. Poderes de cognição do Tribunal de Conflitos. Dívidas hospitalares. Servidores do estado acidentados em serviço.

Sumário:

I — O conflito negativo de jurisdição havido entre um Tribunal Administrativo e um Tribunal de Trabalho, em que cada um deles atribui à outra jurisdição a competência para conhecer um certo pleito, não integra também o Tribunal Cível que, tendo recebido os autos do Tribunal Adminis-trativo e aceitando a competência da jurisdição comum, os remetera depois àquele Tribunal de Trabalho.

II — No caso de conflito negativo de jurisdição entre dois tribunais, o âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal de Conflitos cinge -se à determinação da ordem juris-dicional competente, não lhe incumbindo ainda definir, dentro dessa ordem, o tribunal competente «ratione materiae».

III — À luz do disposto no Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, compete à jurisdição comum conhecer das acções em que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde intentem obter a condenação dos réus no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de saúde por si prestados.

IV — Essa competência não é afastada pelo facto de os benefi-ciários dos referidos cuidados serem servidores públicos acidentados em serviço, pois esse pormenor não integra a «causa petendi» do pleito — a qual é explicativa da natureza do pedido e, nessa medida, também da compe-tência ou jurisdição adequadas — e meramente constitui o fundamento da legitimidade passiva do réu Estado.

Processo n.º 21/05 -70.Requerentes: A Magistrada do Ministério Público junto do STA no

Conflito Negativo de Jurisdição entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o Tribunal Judicial de Leiria 3.º Juízo de Competência Cível de Leiria e o Tribunal de Trabalho de Leiria — 2.º Juízo.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Madeira dos Santos.

Acordam no Tribunal de Conflitos:O Hospital de Santo -André, S A, intentou no Tribunal Administra-

tivo e Fiscal (TAF) de Leiria uma acção «com processo sumaríssimo» contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu no pagamento da importância de 968,17 euros e respectivos juros de mora vencidos e vincendos, correspondendo aquela quantia à soma do que falta pagar ao autor pelos «tratamentos médicos» que ele prestou às lesões, resultantes de acidentes em serviço, sofridas por nove funcionários ou assalariados do Ministério da Educação.

Na sua contestação, o réu, representado pelo MºPº, suscitara a excep-ção da «incompetência absoluta do tribunal», em virtude de o conheci-mento da causa incumbir aos tribunais comuns.

Pronunciando -se sobre essa questão prévia, a Mm.ª Juíza do TAF de Leiria julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer da referida acção, por tal competência caber aos tribunais judiciais.

Esta decisão transitou, após o que os autos foram remetidos ao Tri-bunal Judicial da comarca de Leiria.

Então, o Mm.º Juiz do 3.º Juízo de Competência Cível daquela co-marca, embora admitisse que o conhecimento do pleito incumbia aos tribunais judiciais, declarou a incompetência absoluta desse tribunal cível por considerar que a acção deveria ser processada e julgada no Tribunal de Trabalho de Leiria.

Depois do trânsito desta decisão, os autos foram remetidos «ex offi-cio» ao mencionado Tribunal de Trabalho.

Page 29: Decisões STA

56 57

Por sua vez, o Mm.º Juiz do Tribunal de Trabalho de Leiria entendeu que a competência para o conhecimento da acção pertencia aos tribu-nais administrativos, razão por que declarou também a incompetência material desse tribunal.

E esta decisão transitou igualmente em julgado.Considerando existir um conflito negativo de jurisdição entre os três

tribunais acima referidos, vem agora o MºPº, ao abrigo do disposto no art. 117º, n.º 1, do CPC, requerer a resolução dele.

Não há que considerar quaisquer factos distintos das ocorrências processuais «supra» descritas, pelo que passaremos imediatamente à decisão «de jure».

Todavia, justificam -se dois esclarecimentos prévios. «Ante omnia», importa consignar que, embora o Tribunal Cível da comarca de Leiria haja aceitado a competência da jurisdição comum para conhecer da causa, estamos perante um efectivo conflito de jurisdição, a resolver por este Tribunal de Conflitos. É que o Tribunal de Trabalho, para onde os autos foram seguidamente remetidos, assumiu o conflito negativo entre ordens jurisdicionais diferentes ao sustentar a competência dos tribunais administrativos para o julgamento do pleito; e, assim sendo, deparamo -nos com duas – e, sublinhe -se, apenas duas – decisões reci-procamente opostas e transitadas, provindas de tribunais de jurisdições diversas, em cada uma das quais se declina a competência própria e se assevera a competência decisória da outra jurisdição.

Ainda a título preliminar, e porque se trata de questão que, embora metodológica, influi na extensão e na profundidade do discurso a fa-zer, convém que clarifiquemos desde já um outro ponto, resultante da imagem trilateral do dissídio desenhado nos autos e referente à exacta determinação do âmbito em que são exercitáveis os poderes cognitivos deste Tribunal de Conflitos. Com efeito, importa apurar se, na hipótese de o julgamento do presente conflito redundar na atribuição da competência aos tribunais comuns, a indagação ainda deverá prosseguir a fim de se esclarecer se tal competência recai no Tribunal Cível ou no Tribunal de Trabalho. «Primo conspectu», pareceria impor -se esse prosseguimento, não só por razões de economia processual e de certeza jurídica, mas sobretudo porque o art. 105º do Decreto n.º 19.243, de 16/1/31, que continua a ser aplicável ao recurso ora em apreço, obriga o Tribunal de Conflitos a remeter «as partes para a autoridade competente» – estando esta expressão manifestamente inclinada a uma resolução definitiva da controvérsia em causa. Contudo, essa primeira aparência esfuma -se ante o princípio de que uma qualquer alternativa aberta entre tribunais da jurisdição comum é um assunto forçosamente estranho ao Tribunal de Conflitos (cfr. os arts. 115º e 116º do CPC). Na verdade, este tribunal resolve conflitos de jurisdição, e não de competência «sensu stricto», motivo por que lhe não incumbe dizer qual é, de entre os tribunais ju-diciais possíveis, o competente «ratione materiae» para o conhecimento de um certo pleito. Nesta conformidade, o «thema decidendum» do presente recurso cinge -se à determinação da ordem jurisdicional (cfr., de novo, o art. 115º, n.º 1, do CPC) a quem cabe processar e julgar a acção dos autos; e, se acaso viermos a concluir que essa tarefa compete aos tribunais judiciais, atribuir -se -á a jurisdição ao Tribunal de Trabalho de Leiria – por ele ser, de entre aqueles tribunais, o único pólo integrante do conflito bipolar com que ora nos confrontamos. Note -se, por último, que esta hipótese de assim se resolver o conflito nunca prejudicará a possibilidade de no Tribunal de Trabalho ulteriormente se suscitar,

porventura contra o Tribunal Cível de Leiria, uma outra e diferente excepção, fundada no recorte da competência material entre tribunais da mesma ordem jurisdicional.

Postos os anteriores esclarecimentos, passemos à resolução do con-flito.

Só na ausência de disposição legal expressa, atributiva de competên-cia «ex vi legis», é que a competência material dos tribunais – tanto a que os diferencia dentro da mesma ordem jurisdicional, como a que os distingue segundo jurisdições diversas – se afere pelo pedido formulado na acção que esteja em presença, caso, aliás, em que a natureza desse pedido deve ser esclarecida ou iluminada pela causa de pedir de que ele dimane. Assim, é prioritário determinar se existe uma qualquer norma que imediata e irresistivelmente defina qual é a jurisdição ou o tribunal competente para resolver o litígio. E, tendo em conta a indiscutível in-clusão do hospital autor no denominado serviço nacional de saúde – pois essa inclusão, que era evidente aquando da prestação dos «tratamentos médicos» referidos na acção dos autos em virtude de o hospital ser então uma pessoa colectiva de direito público, persistiu com a transformação dele em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (cfr. os arts. 1º e 4º do DL n.º 297/2002, de 11/12) – somos imediatamente remetidos para a análise do DL n.º 218/99, de 15/6, já que este diploma, como consta do seu art. 1º, veio estabelecer «o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados».

O DL n.º 218/99 revogou e substituiu o DL n.º 194/92, de 8/9 – di-ploma em que se atribuíra força executiva às certidões de dívida emana-das das instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de saúde e se determinara que as correspondentes acções executivas seriam «instauradas no tribunal da comarca» em que se encontrasse sediada a entidade exequente (cfr. os arts. 1º e 10º). Portanto, o DL n.º 194/92 excluía qualquer hipótese de os processos daquele tipo correrem nos tribunais administrativos. Logo no preâmbulo do DL n.º 218/99, o le-gislador anunciou o intuito de, através da «lex nova», alterar «as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares», constantes do decreto -lei revogado; mas, como do mesmo preâmbulo eloquente-mente flui, essa alteração de regras centrava -se na substituição da acção executiva pela declarativa, mudança essa justificada pelo facto de se haver entretanto constatado que a força executiva conferida às sobreditas certidões não trouxera as pretendidas celeridade e simplicidade proces-suais. Ora, se a mencionada «alteração das regras processuais» também passasse por uma redefinição dos tribunais e da jurisdição competentes para o conhecimento das acções previstas no diploma, seria natural que o preâmbulo se lhe referisse – pois dificilmente se compreenderia que uma modificação com essa amplitude permanecesse silenciada nas longas considerações preambulares que o legislador teceu. Portanto, o preâmbulo do DL n.º 218/99, apesar de não dispor, «a se», de força normativa, constitui um primeiro e poderoso indício de que o diploma deve ser interpretado no sentido de que nada inovou quanto à compe-tência dos tribunais que apreciariam as chamadas dívidas hospitalares – os quais continuariam a ser os da jurisdição comum.

O art. 7º do DL n.º 218/99, cuja epígrafe consiste na «competência territorial», estabeleceu que as acções previstas no diploma «devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora». Desapareceu, assim, a alusão ao «tribunal da comarca», que constava do art. 10º do

Page 30: Decisões STA

58 59

DL n.º 194/92. Mas esta singela mudança não suporta a ideia extrema de que o legislador, ao eliminar a referência à «comarca», quis trans-ferir a competência da ordem dos tribunais judiciais para a jurisdição administrativa. Se a norma assim fosse interpretada, olvidar -se -ia a proporcionalidade que sempre deve existir entre os efeitos e as respecti-vas causas, entrevendo -se numa minudência literal algo que claramente excede o seu típico horizonte de significação. Assim, a circunstância de o aludido art. 7º não referir que o «tribunal» aí em causa é o «da comarca» deve ser encarada segundo uma justa e equilibrada medida – a de que se trata de um mero «modus dicendi», ainda fiel à linha pretérita de se atribuir aos tribunais judiciais a competência para o conhecimento dos pleitos previstos no diploma.

Por outro lado, o art. 6º do DL n.º 218/99 prevê que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde possam «constituir -se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação dos cuidados de saúde, para dedução de pedido de paga-mento das respectivas despesas». Esta possibilidade de se formular um pedido cível fundado nas dívidas hospitalares aponta inexoravelmente para os tribunais comuns, onde correm os processos penais. Ora, seria extravagante e anómalo que a apreciação dos pedidos de condenação por essas dívidas pudesse caber a duas ordens jurisdicionais diferentes – à jurisdição comum, se os devedores fossem demandados naquele processo criminal, e à jurisdição administrativa, se o fossem fora dele – já que a repartição das matérias entre jurisdições diversas funda -se na natureza dos assuntos em presença, e não em aspectos acidentais como sucederia com a existência ou a falta de um processo penal. Deste modo, o mencionado art. 6º vem corroborar aquilo que já indicavam o preâmbulo do diploma e o teor do seu art. 7º – que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que compete conhecer das acções em que os hospitais da rede pública intentem cobrar as dívidas resultantes dos cuidados de saúde por si prestados.

A anterior conclusão não surpreende. Com efeito, está de há muito consagrada no nosso direito esta solução de sediar na jurisdição comum, ou na sua órbita, a competência para conhecer das referidas matérias, mesmo que por vezes isso só ocorresse em segunda instância. Desenvol-vendo uma linha iniciada pela Lei n.º 1981, de 3/4/40 (diploma apenas referente aos Hospitais Civis de Lisboa), o DL n.º 35.108, de 7/11/45, criou comissões arbitrais com competência para liquidarem e declararem a responsabilidade pelos encargos de assistência, inclusive hospitalar, que não fossem voluntariamente satisfeitos. E o DL n.º 42.596, de 19/10/59, (seguidamente alterado pelo DL n.º 44.450, de 4/7/62, e pelo DL n.º 47.797, de 14/7/67), veio dispor que tais comissões, à excepção das de Lisboa e Porto, funcionariam «nos tribunais judiciais», presidi-das pelo juiz de direito da respectiva comarca (art. 1º, § 4.º), e que, das decisões de todas elas proferidas em processos cujo valor excedesse a alçada dos tribunais de comarca, caberia recurso «para o Tribunal da Relação do respectivo distrito judicial». Essas comissões arbitrais de assistência vieram a ser extintas pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais («vide» o art. 83º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 82/77, de 6/12), ra-zão por que a cobrança das denominadas dívidas hospitalares tinha de passar a fazer -se em moldes algo renovados. Assim, o DL n.º 174/83, de 5/4, para além de revogar expressamente o aludido DL n.º 42.596, veio dispor, logo no seu art. 1º, que todas as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde

seguiriam os termos do processo sumaríssimo, com certas adaptações. A adopção pelo legislador desta forma de processo, que não existia no contencioso administrativo, evidenciava algo que de há muito era claro – que tal matéria estava ligada à jurisdição comum; e essa competência foi assumida pelos tribunais judiciais ao longo dos anos, em milhares de processos, como a prática judiciária facilmente demonstra. Esse DL n.º 147/83 veio a ser revogado pelo art. 13º do DL n.º 194/92, já acima aludido; mas, e como vimos, este último diploma manteve claramente a competência dos tribunais comuns para conhecerem dos pleitos de-correntes das dívidas hospitalares, sendo a sua emergência sobretudo justificada pelo propósito de que esses assuntos passassem a ser resol-vidos em sede executiva.

Portanto, esta breve digressão histórica vem confirmar a ideia de que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que incumbe, à luz do ora vigente DL n.º 218/99, conhecer dos pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares, em cujo género se inscreve a acção a que se refere o presente conflito.

Todavia, importa ainda demonstrar que a competência dos tribunais comuns para o conhecimento da acção dos autos não se desvanece pela circunstância de os beneficiários dos «tratamentos médicos» serem servidores públicos acidentados em serviço. O regime de cobrança de dívidas constante do DL n.º 218/99 desinteressa -se da causa das lesões justificativas dos tratamentos – a não ser no que toca aos acidentes de viação, que merecem uma previsão autónoma devida a particularidades do seu regime substantivo e aos respectivos prolongamentos procedi-mentais. E bem se compreende que assim seja, pois as acções previstas no diploma têm como «causa petendi» o facto simples de as entidades autoras haverem prestado cuidados de saúde, aos quais deveria corres-ponder o pagamento de um certo «quantum» pecuniário. Por isso, não admira que a causa de pedir da acção dos autos seja alheia à circuns-tância de os beneficiários dos tratamentos hospitalares serem servidores públicos acidentados em serviço; pois este pormenor apenas releva para o efeito de se determinar a legitimidade do réu Estado – que, por via da relação funcional e das circunstâncias dos acidentes, vem apresentado como o único e autêntico responsável pelos omitidos pagamentos. Ora, se o vínculo funcional dos utentes tratados pelo autor somente releva em sede de legitimidade passiva, sendo estranho à causa de pedir da acção, temos que tal vínculo nada decide quanto ao apuramento da jurisdição competente – pois é a causa de pedir (enquanto impregnante da verdadeira natureza do pedido, como já dissemos), e nunca a legi-timidade, que ordinariamente influi na determinação da competência material dos tribunais.

Resta assinalar a falência do argumento esgrimido na decisão do Tribunal de Trabalho de Leiria em prol da competência dos tribunais administrativos. Disse o Mm.º Juiz que tal competência transparecia do DL n.º 503/99, de 30/11, «maxime» dos seus arts. 6º e 48º. Mas esse diploma – que estabelece «o regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais ocorridas ao serviço da Administração Pública» (art. 1º) – nada define quanto à questão colocada no presente conflito. Na verdade, o seu art. 6º limita -se a prever o modo como «os estabelecimentos da rede oficial de saúde que prestem assistência aos trabalhadores abrangidos» pelo diploma hão -de cobrar extrajudicial-mente – e não «in judicio», como agora acontece – as correspondentes despesas junto do serviço ou organismo que as deva suportar. Por sua

Page 31: Decisões STA

60 61

vez, o art. 48º dispõe que os servidores públicos vítimas de aciden-tes de trabalho ou de doenças profissionais podem instaurar, contra a Administração e seguramente na jurisdição administrativa, acções de reconhecimento dos seus direitos. Sendo assim, este preceito apenas se refere aos litígios surgidos nas relações internas da Administração com os seus servidores, o que nada tem a ver com o assunto que determinou a eclosão deste conflito.

Do que ficou exposto resulta que a acção a que os autos respeitam deve correr os seus termos na jurisdição comum, e não na administrativa. Por isso, e ao menos imediatamente, competirá ao Tribunal de Trabalho de Leiria, que está em conflito de jurisdição com o TAF da mesma cidade, processar aquela causa.

Nestes termos, acordam em declarar a jurisdição comum competente para conhecer da acção a que os presentes autos se referem.

Sem custas.Lisboa, 14 de Março de 2006. — Jorge Artur Madeira dos Santos

(relator) — João Manuel Belchior — Fernando de Azevedo Ramos —Alberto Augusto Andrade de Oliveira — Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol.

Acórdão de 21 de Março de 2006.

Assunto:

Conflito negativo de competência. Responsabilidade civil extracontratual. Competência da jurisdição administrativa.

Sumário:

I — O critério para a repartição de competência entre tri-bunais administrativos e tribunais judiciais para conhe-cimento de acções de responsabilidade civil extracon-tratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais passa pela distinção entre os ca-sos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar), hipótese em que serão competentes os tribunais judiciais, e os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (ou a este serviço globalmente considerado, quando não seja individualizável a responsabilidade de um concreto agente dessa administração - falta do serviço), no exercício da actividade estranha à função de julgar, hipótese em que serão competentes os tribunais administrativos.

II — Tendo a autora fundado o pedido de indemnização contra o Estado, em alegados danos provocados pela actuação negligente dos serviços do Tribunal, ao emi-tirem mandado de notificação para a sua comparência, como arguida no julgamento de um processo crime por

emissão de cheque sem provisão, quando não era a verdadeira arguida e constavam no processos elementos identificativos desta, a competência para conhecer da dita acção cabe à jurisdição administrativa.

Conflito n.º 340.Requerente: Maria da Conceição da Costa Teixeira, no Conflito Ne-

gativo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

Relatora: Ex.ma Sr.ª Cons.ª Dr.ª Fernanda Xavier.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:I - RELATÓRIOMARIA DA CONCEIÇÃO DA COSTA TEIXEIRA, com os sinais

dos autos, vem requerer a resolução do presente conflito negativo de competência entre os Mmos Juízes do Tribunal Judicial de Santo Tirso e do extinto Tribunal Administrativo do Círculo (TAC) do Porto (a que sucedeu o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto), que se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer de uma acção de responsabilidade civil, instaurada pela ora requerente contra o Estado Português, por danos patrimoniais e não patrimoniais alega-damente causados pela actuação do Tribunal Judicial de Santo Tirso, ao notificá -la, através da G.N.R de Amarante, para comparecer naquele Tribunal a fim de ser julgada no processo comum singular nº669/95 do 2º Juízo Criminal, por crime de emissão de cheque sem provisão, sem que a autora, ora requerente, fosse arguida daquele processo, apenas, por mero acaso, tendo o nome igual ao da verdadeira arguida.

Alega que o mandado de notificação não continha as indicações in-dispensáveis para que o respectivo cumprimento pudesse ser efectuado sem erro, sendo certo que aquele Tribunal dispunha no processo de elementos identificativos da verdadeira arguida, suficientes para evitar o erro que veio a verificar -se.

O conflito foi instruído com certidões de ambos os despachos, con-forme se vê de fls.5 a 12, constando dos autos que transitaram em julgado, sendo, posteriormente, requisitada e junta fotocópia da petição da referida acção de indemnização (cf. fls.48 e seguintes).

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da competência do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acom-panhando de perto o acórdão deste Tribunal de Conflitos, proferido em 12 de Maio de 1994, no Proc. 266, cujo sumário transcreve.

Colhidos os vistos legais, urge decidir.II - FUNDAMENTAÇÃOEstamos perante um conflito entre duas ordens jurisdicionais – a

jurisdição comum e a jurisdição administrativa, o qual surge face à pretensão da ora requerente, formulada em acção de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado Português, de ser indemnizada por este, por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, que lhe teria causado a actuação do Tribunal Judicial de Santo Tirso, ao ter emitido, erradamente, em nome da requerente, mandado de notificação para comparecer, na qualidade de arguida, no julgamento do processo comum nº669/95, do 2º Juízo Criminal daquele Tribunal, por crime de emissão de cheque sem provisão, quando a requerente não era a verdadeira arguida

Page 32: Decisões STA

62 63

e constavam do processo elementos de identificação desta que, segundo alega, teriam evitado o erro cometido.

A acção foi inicialmente intentada junto do Tribunal Judicial de Santo Tirso, onde obteve o nº65/97 do 2º Juízo de competência especializada cível, tendo o Senhor juiz, por despacho de 05.06.1997, julgado proce-dente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal em razão da matéria, por considerar competentes os tribunais administrativos, pelo que absolveu o Réu da instância (cf. certidão junta a fls.3 e segs.).

A requerente veio a intentar nova acção, agora junto do Tribunal Administrativo do Porto, onde obteve o nº168/98, tendo o Senhor Juiz, por despacho de 29.06.1998, julgado igualmente procedente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal em razão da matéria, por con-siderar competente a jurisdição comum e absolveu o Réu da instância (cf. certidão junta a fls. 6 e segs.).

O conflito está, pois, delineado, como se vê dos despachos judiciais que o geraram, entre a jurisdição comum e a jurisdição administra-tiva.

Ora, a competência do Tribunal afere -se face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao «quid disputatum» e não ao «quid decisum» (1) e fixa -se no momento da propositura da acção (cf. artº8º,nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo DL 229/84, de 27.04, com as alterações introduzidas pelo DL 229/96, de 29.11 e artº5º nº1 do mesmo diploma, na redacção actual).

Por outro lado e como é sabido, são da competência dos tribunais judiciais ou comuns as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cf. artº66º do CPC e também o artº213, nº1 da CRP/89, artº211º, nº1 da CRP, na redacção actual).

Portanto, para decidir o presente conflito negativo de competência, haverá que apurar, em primeiro lugar, se a causa está atribuída a uma outra jurisdição, no caso, à jurisdição administrativa, o que se fará, como se disse, face aos termos em que a autora, ora recorrente, configura a relação jurídica processual e às disposições legais vigentes à data em que a acção foi proposta. Se não estiver e por força do citado artº66º do CPC, ela caberá na competência dos tribunais judiciais.

Vejamos, então, se a competência para conhecer a referida acção de indemnização, instaurada pela ora requerente contra o Estado, cabe aos tribunais administrativos:

Tendo as acções intentadas pela ora requerente contra o Estado sido propostas na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL 129/84, de 27.04, na redacção dada pelo DL 229/96, de 29.11, a competência do tribunal terá de ser aferida face ao referido diploma legal.

Dispunha o artº 3º do ETAF, na apontada redacção, que «Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça, assegu-rar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais».

O legislador ordinário veio, assim, consagrar neste preceito legal, o núcleo essencial do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pos-teriormente também levado ao texto constitucional pelo artº214º, nº3 da Constituição da República Portuguesa, versão de 1989 (actualmente artº 212, nº3).

Como é sabido, a distribuição da competência entre os tribunais comuns e os tribunais administrativos, relativamente às acções de res-ponsabilidade civil contra o Estado assentava, essencialmente, na dis-tinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, sendo, por regra, aqueles da competência dos tribunais administrativos e estes da competência dos tribunais comuns.

Aliás, o artº51º, nº1, h) do ETAF, o artº815º § 1º, b) do Código Ad-ministrativo e o artº 1º do DL 48 051 de 21 de Novembro de 1967 apontavam para essa distinção.

Nem sempre foi fácil a repartição das referidas competências, exis-tindo zonas de fronteira, que deram origem a vária doutrina e jurispru-dência, nem sempre convergente, sobre a matéria.

Contudo, é inegável a constatação de que a doutrina e a jurisprudência evoluíram ainda na vigência do anterior ETAF, no sentido de um “alar-gamento” da competência da jurisdição administrativa, a partir da sua aferição por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, imposto pelo citado preceito constitucional, consignado no também citado artº3º do ETAF.

Com efeito, pode considerar -se pacífico, que os tribunais adminis-trativos são hoje, sem qualquer dúvida e já eram assim considerados mesmo antes da recente reforma do contencioso administrativo, os tribunais comuns em matéria administrativa, o que significa que são competentes para conhecer de todos os litígios decorrentes de relações jurídicas administrativas, que expressamente não estejam excluídos ou atribuídos por lei a outra jurisdição. (2)

No que respeita aos pedidos de indemnização contra o Estado, por actos de órgãos ou agentes da administração judiciária praticados no exercício das suas funções e por causa delas, a questão tem sido parti-cularmente discutida e deu origem a jurisprudência divergente, como se dá nota em vários acórdãos deste Tribunal de Conflitos (3).

No entanto, pode, hoje, considerar -se pacífico o entendimento de que estando em causa responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa.

Todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a activi-dade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à específica função de lugar, inscrevem -se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administra-tiva”, da competência da jurisdição administrativa.

Com efeito, pode considerar -se firmada a jurisprudência deste Tribu-nal de Conflitos e também do STA, na sequência do já citado acórdão do Tribunal de Conflitos de 12.05.1994, Conflito nº266, no sentido de que, «o critério para a repartição de competência entre tribunais administrativos e tribunais judiciais para conhecimento de acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais passa pela distinção entre os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar), hipótese em que serão competentes os tribunais judiciais, e os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (ou a este serviço globalmente considerado, quando não seja

Page 33: Decisões STA

64 65

individualizável - falta de serviço) no exercício de actividade estranha à função de julgar, hipótese em que serão competentes os tribunais administrativos.» (4)

Passando agora à análise do presente conflito, verificamos que o pedido de indemnização formulado contra o Estado, tal como a autora, ora recorrente, o configurou na petição de acção apresentada em juízo, ou seja, o «quid disputatum», não assenta em prejuízos decorrentes de qualquer acto praticado no exercício da função de julgar, mas sim num alegado erro de identificação da arguida, cometido num mandado de notificação emitido para comparência daquela no julgamento de um processo crime por emissão de cheque sem provisão, pois, segundo alega a autora, foi ela notificada naquela qualidade, quando é outra a verdadeira arguida, embora com o mesmo nome e encontrava -se devi-damente identificada no processo.

Estar -se -á, pois, aparentemente, perante um erro ou lapso dos serviços no preenchimento do mandado de notificação, e, portanto, na execução do despacho judicial que a ordenou, não se imputando qualquer erro ou lapso a tal despacho, ou seja, a causa de pedir, tal como está configurada pela autora, não envolve a apreciação de qualquer «erro in judicando», antes a autora imputa aos serviços da administração judiciária, global-mente considerados, uma actuação negligente que a terá prejudicado.

O facto de o mandado de notificação ter, eventualmente, sido assinado pelo juiz e de nele se mencionar a sanção legal para a não comparência do notificando ao julgamento, como vem referido no despacho do Senhor Juiz do extinto TAC do Porto, mas não foi alegado pela autora, não traduz, só por si, qualquer acto materialmente jurisdicional.

Estamos, pois, no que ao presente caso concerne, no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, pelo que, acolhendo a jurisprudência supra citada, haverá que dirimir o presente conflito no sentido de considerar competente a jurisdição administrativa.

III - DECISÃOTermos em que acordam em decidir o presente conflito de jurisdição

no sentido de declarar competente a jurisdição administrativa, para conhecer e julgar o referido pedido de indemnização formulado pela ora requerente contra o Estado.

Sem custas.Lisboa, 21 de Março de 2006. — Fernanda Martins Xavier e Nunes

(relatora) — Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol — Alberto Augusto Andrade de Oliveira — Manuel José da Silva Salazar — António Bento São Pedro — Fernando de Azevedo Ramos.

(1) Cf. Prof. Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, 1976, p.91 e, entre outros, o Ac Tribunal de Conflitos de 18.01.1996 Conflito nº 278 e, entre muitos outros, o Ac. STA de 27.02.2003 rec.285/03

(2) cf. neste sentido, Prof. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 4ª edição, p.110 e segs. e doutrina e jurisprudência ali citada

(3) cf. por exemplo, os Acs. do Tribunal de Conflitos de 12.05.1994, Conflito 266 e de 23.01.2001, Conflito 294.

(4) cf. entre outros, os citados acórdãos deste Tribunal de Conflitos e ainda, entre outros, os Acs. do STA de 13.02.1996, rec. 38.350, de 15.10.98, rec. 36.811, de 12.10.2000, rec. 45.862 e de 12.10.2000, rec. 46.313.

Acórdão de 23 de Março de 2006.

Assunto:

Montante da pensão de reforma. Caixa -Geral de Aposenta-ções. Caixa -Geral de Depósitos. Competência dos Tribu-nais Administrativos. Tribunais de Trabalho. Conflito de jurisdição.

Sumário:

A partir da Lei n.° 28/84 (que veio a ser substituída pela Lei n.° 17/2000 e esta pela Lei n.° 32/2002, de 20 de De-zembro), entendeu -se atribuir relevo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada a intervir na matéria, em vez de se considerar a natureza sucedânea da relação de segurança social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança social aos tribunais de tra-balho.

Processo n.°: 24/05 -70.Requerentes: Diamantino Augusto Marcos, no Conflito Negativo

de Jurisdição, entre o 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Simas Santos.1.1.Diamantino Augusto Marcos, com os sinais dos autos, intentou acção

declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo declarativo comum, contra a Caixa Geral de Depósitos, S.A. e a Caixa Geral de Aposentações, pedindo que, na pro-cedência da acção, fossem as RR condenadas na recondução à situação hipotética actual caso tivessem considerado e encaminhado devidamente os montantes descontados para efeitos de pensão de reforma, com o pagamento do juros legais, a liquidar em execução de sentença.

A Caixa Geral de Depósitos defendeu -se por excepção (incompetência absoluta do tribunal e da prescrição dos créditos peticionados) e por impugnação, e a Caixa Geral de Aposentações invocou a excepção da incompetência absoluta do tribunal (em razão da matéria) e alegando não ser a presente acção meio processual próprio para fazer valer o direito arrogado.

A 1ª Instância conheceu das excepções da incompetência absoluta do tribunal — em razão da matéria — e da prescrição dos créditos, julgando -as improcedentes.

1.2.Recorreram as Rés para a Relação de Lisboa.A Caixa Geral de Depósitos, S.A. pedindo que, no provimento ao

recurso, se revogasse a decisão recorrida e se julgasse procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho, con-sequentemente, absolvendo -a da instância, ou quando assim se não entendesse, julgando procedente por provada a excepção da prescrição,

Page 34: Decisões STA

66 67

absolvendo -a da parte do pedido que se encontra prescrita, com as legais consequências.

A Caixa Geral de Aposentações, pedindo fosse declarada a incompe-tência absoluta, em razão da matéria, do tribunal recorrido.

Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 16.03.2005 (proc. n.° 9.481/ 04 — 4ª Secção Social), deu provimento ao recurso e, em consequência, julgou o Tribunal do Trabalho incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção intentada pelo Autor contra as Rés, absolvendo -as da instância, ao abrigo do disposto no art. 105°, n.° 1, do Código de Processo Civil.

Teve por assente que:1. O Autor foi admitido ao Serviço da Caixa Geral de Depósitos em

1 de Outubro de 1990, tendo em 30 de Janeiro de 1995 e, ao abrigo do disposto na Ordem de Serviço n.° 32/94, Cód. PE. 10, de 10 de Novembro, proferida nos termos e para os efeitos do n.° 2 do art.° 7.° do Decreto -Lei n. 287/93, de 20 de Agosto, declarado que optava pela sujeição ao Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (doc. de fls. 77).

2. O Autor reformou -se em 1 de Novembro de 2001 (doc. de fls. 3).3. A pensão de aposentação foi atribuída ao Autor por despacho da

Administração da Caixa Geral de Aposentações, de 2001 -10 -24 (doc. de fls. 3).

E considerou que ao tempo de propositura da acção já cessara o contrato de trabalho entre o A. e a l.ª R., pelo que o respectivo pedido tem natureza previdencial e não laboral.

Lembrou que, de acordo com o art. 85.°, al. i), da Lei n.° 3/99, de 13.01 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, entre outras, “Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais.

E que, a Lei n.° 17/2000, de 8 Agosto (Lei da Segurança Social) — que revogou a Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto —, no que respeita a esta questão, preceitua expressamente, no n.° 1 do seu art. 73º que os interessados a quem seja negada prestação devida (...) ou que por qualquer forma sejam lesados por acto contrário ao previsto nesta lei têm direito de acesso aos tribunais administrativos, nos termos das leis que regulam o respectivo regime contencioso (n.° 1).

Finalmente louvou -se na doutrina que emana, para a Lei n.º 28/84, do acórdão deste Tribunal, de 14.3.96 (Conflito n.º 296), “a partir da Lei n. 28/84 (que veio a ser substituída pela Lei n.° 17/2000), em vez de se considerar determinante a natureza sucedânea da relação de segurança social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança social aos tribunais de trabalho, entendeu -se atribuir re-levo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada a intervir na matéria”

1.3.Inconformado, recorreu o Autor para o Supremo Tribunal de Justiça,

concluindo nas suas alegações:1. O tribunal do trabalho é competente em razão da matéria;

2. Não é pelo facto da RR/recorridas CGA e Caixa geral de Aposen-tações serem pessoas colectivas de direito público que deixa de poder ser julgada noutro foro que não o Administrativo;

3. A competência afere -se em razão do pedido formulado pelo autor, e os presentes autos inserem -se nas als. o) e i) do art. 85° da LOFTJ.

4. Nenhum reparo merece os despachos proferidos em 1 Instância quanto à competência do tribunal do trabalho e à prescrição do di-reito.

Termos em que, com o douto suprimento de Vexas., deve ser con-cedido provimento ao presente recurso e revogado o douto acórdão recorrido, fazendo -se assim, Justiça.

Alegou a Caixa -Geral de Depósitos, concluindo:1. O Tribunal do Trabalho é incompetente, em razão da matéria, para

julgar a presente acção.2. Tendo a pensão de aposentação do Autor sido atribuída por despacho

do Conselho de Administração da Caixa Geral de Aposentações que fixou também o valor dessa pensão, a alteração desse valor, se devida, só poderá ser alcançada por força de decisão proferida em sede de recurso contencioso de anulação a interpor para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa,

3. E não através de uma acção instaurada perante os Tribunais do Trabalho, como o ora Recorrido pretende com a presente acção, pois os Tribunais Administrativos de Círculo são os únicos Tribunais com competência para a apreciação contenciosa da questão que vem suscitada (cf. artigo 510 do ETAF, então em vigor).

4. A incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória, que foi oportunamente deduzida e que obsta ao conhecimento do pedido, conduzindo à absolvição da instância (cf. artigo 4930, n°2, do CPC).

5. A ora Recorrente deve, pois, ser absolvida da instância, como foi requerido na devida oportunidade.

6. Deste modo, decidindo, como decidiu, o douto acórdão do Tribunal da Relação deve ser inteiramente mantido.

7. Apesar de o douto acórdão recorrido ter considerado que o conhe-cimento da excepção de prescrição ficava prejudicado, face ao conhe-cimento da excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, o Recorrente introduziu também esta matéria nas suas alegações, mas, obviamente, a despropósito.

8. Contudo, se o douto acórdão recorrido for revogado, deverá então o processo baixar ao Tribunal da Relação de Lisboa, para aí se conhecer da excepção de prescrição que constituiu também objecto do recurso interposto pela ora Recorrida, devendo ter -se em conta as alegações que aí foram apresentadas sobre tal matéria.

Termos em que deve negar -se provimento ao recurso, mantendo -se inteiramente o douto acórdão recorrido.

A revogar -se o douto acórdão recorrido, o que só por mera hipótese se coloca, deverá então ordenar -se a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para aí se conhecer da excepção de prescrição deduzida pela ora Recorrida.

E a Caixa Geral de Aposentações, concluiu igualmente, nas suas alegações:

1. O Tribunal do Trabalho é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, tratando -se de uma incompetência absoluta (artigo 101° do CPC).

Page 35: Decisões STA

68 69

2. Não há nem nunca houve qualquer relação de trabalho entre o A. e a ora R., sendo a Caixa Geral de Aposentações uma pessoa colec-tiva totalmente distinta da Caixa Geral de Depósitos, S.A., conforme resulta dos Decretos -Lei n°s 277/93, de 10 de Agosto, e 287/93, de 20 de Agosto.

3. A Caixa Geral de Aposentações é uma pessoa colectiva de direito público (nº 1 do artigo lº do Decreto -Lei n° 277/93, de 10 de Agosto).

4. A relação jurídica existente entre o A. e a Ré Caixa Geral de Apo-sentações é uma relação jurídica administrativa.

5. A pretensão do A na presente Acção implica a apreciação da lega-lidade de um acto administrativo proferido por uma entidade pública dotada de poderes de autoridade.

6. Resulta, pois, claro que o foro competente para conhecer da matéria que se discute na presente acção é o administrativo.

7. Nos termos do artigo 51°, n°1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor à data da interposição da presente acção (o aprovado pelo Decreto -Lei n° 129/84, de 27 de Abril), a com-petência para conhecer das acções e recursos de actos administrativos dos órgãos de serviços públicos dotados de personalidade jurídica e autonomia administrativa é dos Tribunais Administrativos de Círculo.

8. O mesmo decorre dos artigos 1° e 4° do ETAF vigente desde 1 de Janeiro de 2004, ou seja, o aprovado pela Lei n° 12/2003, de 19 de Fevereiro.

9. Também o artigo 103° do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto -Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto -Lei n° 214/83, de 25 de Maio, estabelece que o meio próprio para a impugnação das resoluções da Caixa Geral de Aposentações é o recurso contencioso administrativo.

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28.09.2005 (proc. 1966/05, 4.ª Secção), decidiu não tomar conhecimento do recurso e ordenar e remessa dos autos a este Tribunal de Conflitos, pois destinando--se o mesmo a determinar qual é o tribunal competente para julgar a causa (na decisão recorrida entendeu -se que a competência para co-nhecer do litígio inter partes pertencia aos tribunais administrativos e não ao tribunal do trabalho), devia ter sido interposto para o Tribunal de Conflitos, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 107.° do CPC, não tendo o Supremo Tribunal de Justiça poderes para decidir qual é a jurisdição competente para apreciar o litígio que as partes pretendem ver judicialmente resolvido.

Recebidos os autos neste Tribunal de Conflitos, o Ministério Público pronunciou -se pelo improvimento do recurso:

Colhidos os vistos dos Ex.mos Juízes Adjuntos, cumpre decidir.2.1.Como se refere no acórdão de 14.3.96 deste Tribunal (proc. n.° 296),

que se acompanhará de perto, na evolução histórica da competência jurisdicional em matéria de segurança social, podem distinguir -se as seguintes fases:

- Tribunais arbitrais, até 1933; - Competência geral dos tribunais do trabalho como tribunais espe-

ciais, de 1933 a 1976, com recurso para a 3ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (excepto quanto ao crime de abuso de confiança por desvio dos descontos efectuados, que sempre foi da competência dos tribunais judiciais);

- Passagem da competência, em 1976 (DL n.° 511/76, de 3 de Julho), em matéria contravencional e para execução (cobrança coerciva) das contribuições para os tribunais fiscais, onde ainda se mantém;

- Entrada em vigor, em 1978, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei n.° 82/77, de 6 de Dezembro), com a integração dos tribunais do trabalho na ordem dos tribunais judiciais, passando das suas decisões a recorrer -se para os tribunais de relação e destes para o Supremo Tri-bunal de Justiça;

- Julgamento dos litígios entre as instituições de segurança social e os contribuintes, em 1980 (DL n.° 348/80, de 3 de Setembro), nos tri-bunais fiscais, ficando a competência dos tribunais do trabalho restrita ao julgamento dos litígios entre as instituições e os beneficiários (com excepção da parte contravencional, que desde 1976 já competia aos tribunais fiscais)

— Generalização, entre 1981 e 1989, da aplicação do ilícito de mera ordenação social no domínio da segurança social, competindo aos tribu-nais judiciais (a partir de 1987, aos tribunais do trabalho) o julgamento das impugnações das decisões aplicativas de coimas.

- Reconhecimento, em 1984 com a Lei da Segurança Social (Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto), dos direitos dos beneficiários a quem te-nha sido negada uma prestação devida ou a sua inscrição passa para os tribunais administrativos. Como se escreveu naquele acórdão do Tri-bunal dos Conflitos “a partir da Lei n.° 28/84, em vez de se considerar determinante a natureza sucedânea da relação de segurança social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança social aos tribunais de trabalho, entendeu -se atribuir relevo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada a intervir na matéria” (cfr., também, neste sentido, o Acórdão do STJ de 13 -11 -02, disponível em www.stj.pt)

E, na sequência da Lei n.° 28/84, ali exaustivamente analisada, veio a Lei n.° 32/2002, de 20.12.2002 (que veio a revogar a Lei n.° 17/2000, que por sua vez foi substituir a Lei n.° 28/84), definir “as bases gerais em que assenta o sistema de segurança social, bem como as atribuições prosseguidas pelas instituições de segurança social e a articulação com entidades particulares de fins análogos” (art. 1°) e prescrever (art. 5°) que “o sistema de segurança social abrange o sistema público de se-gurança social, o sistema de acção social e o sistema complementar (n° 1), compreendendo o sistema público o subsistema previdencial, o subsistema de solidariedade e o subsistema de protecção familiar (n.° 2) e sendo o sistema de acção social desenvolvido por instituições públicas, designadamente pelas autarquias e por instituições particulares sem fins lucrativos (n.° 3), competindo ao Estado garantir a administração do sistema público de segurança social e do sistema de acção social, bem como assegurar uma adequada e eficaz regulação, supervisão prudencial e fiscalização do sistema complementar (art. 24.°) e compreendendo a estrutura orgânica do sistema serviços integrados na administração directa do Estado e instituições de segurança social que são pessoas colectivas de direito público, integradas na administração indirecta do Estado (n.° 1 do art. 115.°).

Com efeito, o Estado exerce poderes de fiscalização e inspecção sobre as instituições particulares de solidariedade social e outras de reconheci-dos interesse público, sem carácter lucrativo, que prossigam objectivos de natureza social, por forma a garantir o efectivo cumprimento dos seus

Page 36: Decisões STA

70 71

objectivos no respeito pela lei, bem como a defesa dos interesses dos beneficiários da sua acção e ainda aferir da prossecução efectiva dos acordos e protocolos livremente celebrados (art. 89.º).

O princípio da “garantia judiciária” (art. 22.°), que se conta entre os princípios do sistema de segurança social, assegura aos interessados o acesso aos tribunais, em tempo útil, para fazer valer, o seu direito às prestações.

Os interessados na concessão de prestações do sistema podem apresen-tar, reclamações ou queixas sempre que se considerem lesados nos seus direitos, dirigidas à instituição a quem compete conceder as prestações, sem prejuízo do direito de recurso e acção contenciosa (art. 77º).

Podendo, todo o interessado a quem seja negada uma prestação devida, a sua inscrição no regime geral ou que, por qualquer forma, sejam lesa-dos por acto contrário ao previsto na lei de bases, tem direito de acesso aos tribunais administrativos a fim de obter o reconhecimento dos seus direitos, nos termos das leis que regulam o respectivo regime contencioso (art. 78.º); contando -se entre as garantias da legalidade declaração da nulidade (art. 79°), a revogabilidade, nos termos e nos prazos previstos na lei (art. 80°, n.° 1), salvo quando se trate de prestações continuadas, as quais podem, ultrapassado o prazo da lei geral, ser revogados com eficácia para o futuro (art. 80°, n.° 2).

Entendeu -se, assim, manter o relevo decisivo atribuído à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada a intervir na matéria. E manteve -se a opção pelo ilícito de mera or-denação social, complementada com o recurso aos ilícitos criminais, para sancionar a falta de cumprimento das obrigações legais relativas à inscrição nos regimes de segurança social, bem como à obtenção indevida de prestações (artigo 81.°).

Daí que se mantivesse o art. 85.°, i), da Lei n.° 3/99, de 13.01 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), nos termos do qual compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, entre outras, “Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais, na sequência do disposto no art. 64°, al. i), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987 (Lei n.° 38/87, de 23 de Dezembro) (cfr. na doutrina, Leite Ferreira, Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra, 1989, pág. 68 e Soveral Martins, A Organização dos Tribunais Judiciais Portugueses, 1 volume, Coimbra, 1990, págs. 226 e 227).

No domínio da Lei n.° 28/84, concluíra o Conselho Consultivo da Procuradoria -Geral da República (parecer n.° 63/94, de 10.5.95, DR, IIS de 18.8.95, pág. 9849), atingiu as seguintes conclusões:

“1.ª Os tribunais administrativos de círculo são os competentes, nos termos do artigo 51°, n.° 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto -Lei n.° 129/84, de 27 de Abril, para conhecer dos recursos dos actos administrativos das pessoas colectivas públicas;

2.ª Os centros regionais de segurança social, o Centro Nacional de Pensões, as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto -Lei n.° 549/77, de 31 de Dezembro, e a Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais são pessoas colectivas públicas;

3.ª Para apreciar os recursos dos actos administrativos daquelas ins-tituições, como os de indeferimento de pedido de prestações, são com-petentes os tribunais administrativos de círculo;

4.ª A alínea i) do artigo 64.° da Lei n.° 38/87, de 23 de Dezembro, confere aos tribunais do trabalho uma competência residual para co-nhecer das questões de natureza cível entre as instituições de segurança e seus beneficiários, na medida em que não sejam da competência dos tribunais administrativos e fiscais.

Assim, a partir da Lei n.° 28/84, em vez de se considerar deter-minante a natureza sucedânea da relação de segurança social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança social aos tribunais do trabalho, entendeu -se atribuir relevo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada a intervir na matéria.

No presente caso, está em causa uma prestação devida a um bene-ficiário pela Caixa Geral de Aposentações (pessoa colectiva de direito público), sendo de qualificar como relações juridico -administrativas as que se estabelecem entre a Caixa -Geral de Aposentações, designa-damente, no que ao presente caso concerne, quanto às prestações da pensão de reforma (cfr. quanto às prestações de desemprego e os centros regionais de segurança social, o Ac. deste Tribunal de Conflitos, de 12.10.95, proc. n.° 289).

Aceitando -se que o art. 212.°, n.° 3 da Constituição, ao atribuir aos tribunais administrativos e fiscais competência para o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os li-tígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, não consagra uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos — os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo, e só eles poderão julgar tais questões (cfr. Neste sentido os Acs deste Tribunal dos Conflitos de 12.5.94, processo n.° 266, e de 14.3.96, processo n.° 296 e os Acs do Tribunal Constitucional, n.°s 371/94 e 372/94, de 11.5.94, DR IIS de 3.9.94 e 7.9.94, n.° 417/94, de 18.5.94, n.°s 508/94 e 509/94, de 14.7.94, DRIIS, n°5 286 e 287, de 13 e 14.12.94, n.° 579/94, de 26.10.94, e n.°s 610/94, 629/94 e 630/94, de 22.11.94.)

Decisiva é, neste domínio, a interpretação da norma do art. 78.° da Lei n.° 32/2002 em que se dispõe que pode todo o interessado a quem seja negada a uma prestação devida, a sua inscrição no regime geral ou que, por qualquer forma, sejam lesados por acto contrário ao previsto na lei de bases, aceder aos tribunais a fim de obter o reconhecimento dos seus direitos, nos termos das leis que regulam o respectivo regime con-tencioso, na execução da garantia judiciária: assegurar aos interessados o acesso aos tribunais em tempo útil, para fazer valer o seu direito às prestações (art. 22.°), e que abrange não só os casos em que é negada, em termos absolutos, uma prestação de segurança social, mas também as situações em que a divergência respeita tão -só ao montante da prestação (cfr., neste sentido o Ac. deste Tribunal de 14.3.96, proc. n.° 296).

Na verdade, estende aquele normativo a garantia judiciária não só à negação da prestação devida, mas também à lesão, por qualquer forma, dos seus direitos por acto contrário ao previsto na lei de bases, o que é reafirmado pela norma do art. 77.°, ao referir as reclamações ou queixas que os interessados na concessão de prestações do sistema podem apresentar, sempre que se considerem lesados nos seus direitos,

Page 37: Decisões STA

72 73

dirigidas à instituição a quem conceder as prestações, sem prejuízo do direito de recurso e acção contenciosa.

O que se compreende, pois a razão da transferência da competência nesta matéria dos tribunais do trabalho para os tribunais administrativos: tratar -se de relações reguladas pelo direito administrativo, em que uma das partes é uma pessoa colectiva de direito público — vale para as duas situações (a da negação total e a da negação parcial da prestação que o beneficiário entende ser -lhe devida).

Entendimento que não é tolhido, como vimos, pelo teor literal dos preceitos em causa, sendo certo que no conceito de negação da prestação devida cabe tanto a negação total como a negação parcial e, quanto a esta, quer a divergência se centre no montante da prestação quer no período de tempo por que é devida.

Para além da sua incompatibilidade com a lógica da atribuição de competência nesta matéria aos tribunais administrativos e das apontadas dificuldades de aplicação prática, o critério seguido na decisão da 1.ª Instância violaria, pelo menos em parte, o princípio da especialização e, com este, o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito, de acordo com a natureza da matéria das causas.

Conclui -se, assim, que competentes para decidir do litígio em causa nos presentes autos são os tribunais da jurisdição administrativa; no mesmo sentido, em casos similares, já decidiram os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos, de 12.10.95, proc. n.° 289, e de 11.1.96, proc. n.° 291 e de 14.3.96, proc. n.° 296.

3.Em face do exposto, negam provimento ao presente recurso, con-

firmam o acórdão recorrido e declaram competente, para conhecer da matéria a que os autos se reportam, a jurisdição administrativa.

Sem custas.Lisboa, 23 de Março de 2006. — Manuel de Simas Santos (relator) —

Fernando Manuel Azevedo Moreira — Alberto de Jesus Sobrinho — Maria Angelina Domingues — António Ferreira Girão — Rosendo Dias José.

Acórdão de 4 de Abril de 2006.

Assunto:

Responsabilidade civil extracontratual. Acto de gestão pú-blica. Competência dos Tribunais Administrativos. Cons-trução de estrada. Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR).

Sumário:

I — São competentes os tribunais administrativos para o conhecimento de acção em que é pedida indemnização ao Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR), por actos praticados na construção de uma estrada,

actividade essa que se insere nas suas atribuições como pessoa colectiva de direito público e é desenvolvida ao abrigo de normas de direito público.

II — Os actos referidos são de qual ficar como actos de gestão pública.

Processo nº. 8/03 -70.Requerentes: Abel Guimarães Martins e outros, no Conflito Nega-

tivo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial de Felgueiras e o TAC do Porto.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Jorge de Sousa

Acordam no Tribunal dos Conflitos:1 – ABEL GUIMARÃES MARTINS e esposa MARIA EMÍLIA

PINTO DE CARVALHO E SOUSA interpuseram no Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras a presente acção declarativa pedindo a condena-ção de ICOR – INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA (que foi integrado, por fusão, no IEP – INSTITUTO DAS ESTRADAS DE PORTUGAL, nos termos do art. 1.º do Decreto -Lei n.º 227/2002, de 30 de Outubro) no pagamento de uma indemnização por danos patri-moniais (além de juros de mora, custas e encargos judiciais) derivados de estragos num prédio de que são proprietários,

Os Autores alegam que os danos que descrevem foram provocados pelos trabalhos de construção de uma estrada efectuados junto do referido prédio, implementados pelo Réu.

O Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras declarou -se material-mente incompetente para conhecer da presente acção e absolveu o réu da instância, por entender, em suma, que os Autores pretendem efectivar responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública, en-tendendo que são competentes os tribunais administrativos (fls. 67 -70).

Os Autores interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães, que lhe negou provimento e confirmou a decisão recorrida (fls. 103 -105).

Os Autores interpuseram recurso do acórdão do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça que veio a determinar, por despacho, a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos, por entender ser este o Tri-bunal a quem compete conhecer dele, em face do disposto no art. 107.º,n.º 2, do CPC.

O Réu reclamou para a conferência, discordando da decisão de re-messa do processo, mas ela foi confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 -3 -2003 (fls. 177 -178), que transitou em julgado (certidão a fls. 182), pelo que tem de considerar -se assente a solução de tal questão (art. 672.º do CPC).

Os Recorrentes apresentaram alegação com as seguintes conclu-sões:

1 – O objecto do presente recurso tem por base a apreciação realizada oficiosamente da “Excepção de Incompetência Material” por parte do Tribunal de 1.ª Instância.

2 - Com efeito, o Tribunal a quo entendeu que, no caso sub judice, era materialmente incompetente para o conhecimento da causa o Tribunal Judicial de 1.ª Instância, transferindo -se no seu entendimento essa com-petência para o Tribunal Administrativo, porquanto a presente acção teria como objecto a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos

Page 38: Decisões STA

74 75

resultantes da verificação de actos danosos da propriedade e direitos de terceiros na prática de um acto de gestão pública, por parte da Agravada e como realização de uma função pública de pessoa colectiva.

3 - Ora tal decisão, salvo o devido respeito e melhor opinião, é injusta e não conforme ao direito tendo em atenção toda a factualidade existente porquanto, e sem qualquer espécie de rebuço, é da responsabilidade da Agravante como dona da obra o manter, preservar e diligenciar pelo bom estado de todas as construções e edificações circundantes ao em-preendimento por si efectuado.

4 - Não se consumindo na verificação da ilegalidade da conduta o requisito da ilicitude no domínio da responsabilidade de entes públi-cos, podendo ainda compreender a inobservância de regras técnicas ou cânones de prudência comum.

5 - A Agravada apesar de se constituir como uma Pessoa Colectiva do Direito Público não significa que não esteja sujeita ao regime do direito privado respondendo civilmente perante ofensas de direitos de terceiros designadamente por actos de gestão privada na realização dos fins de interesse público a elas cometidos.

6 - Assim de acordo com o disposto no artigo 34.º, nº. 1, alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estão excluídos da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado ainda que qualquer das partes seja pessoa colectiva de direito público sendo por isso da competência dos Tribunais Judiciais a competência residual de tais acções.

7 - Do disposto no artigo 212.º, n.º 3 da nossa Lei Fundamental porque compete aos Tribunais Administrativos o julgamento de acções, que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas resultou esvaziado muito do seu conteúdo o conceito tradicional de acto de gestão pública.

8 – No direito hodierno é muito mais importante conhecer o conceito de relação jurídica administrativa só relevando para a justiça publicista as relações jurídicas administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de ius imperii no sentido da realização do interesse público legalmente definido.

9 - Nem todos os actos da ora Agravada são de gestão pública como nem todos os actos que integram a gestão pública haverão de representar todos o exercício imediato do ias imperii ou reflectirão directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoa colectivas.

10 - Os actos praticados peia Agravada consubstanciam -se em actos violadores do direito de propriedade e são geradores da obrigação de indemnizar sendo que não se integram em qualquer relação jurídica administrativa regulada pelo direito público.

11 - Não podendo nem devendo considerar -se como correcto face ao anteriormente exponenciado, com o devido respeito, o entendimento do Tribunal a quo no seu douto Acórdão quando afirma o seguinte:

“Resultando, assim, o pedido de indemnização formulado pelos Au-tores de danos para eles resultantes de acto de gestão pública, bem se decidiu ao julgar -se absolutamente incompetente o Tribunal Comum para o conhecimento da questão...”.

12 - Até porque se por um lado a deliberação da realização da obra, a aprovação do respectivo projecto e a sua concretização devem qualificar--se como actos de gestão pública no que concerne à execução prática da estrada, mormente os eventuais danos para terceiros decorrentes dessa

execução já não se afigura assim – Cfr. o AC. Tribunal de Conflitos de 5/11/81. BMJ, pág. 195.

13 - Pode -se afirmar, aliás, na sequência de vários arestos e do dito pelos Profs. Osvaldo Gomes e Alves Correia que uma coisa é proceder à abertura de uma estrada expropriando os terrenos que são mister à sua implantação e realizando por administração directa ou por empreitada a obra, coisa bem diferente é causar danos em propriedade alheia sem autorização dos donos ou prévia expropriação – Cfr. AC. RC de 2/7/96, CJ, Tomo IV, Pág. 25; AC. RP de 30/4/02, Proc. n.º 517/02 – 2.ª Secção; AC. RP de 9/5/02, Proc. nº. 628/02 – 3.ª Secção; AC. RG de 19/6/02, Proc. n.º 66/02 -2 – 2.ª Secção.

14 - Ademais, mesmo que se entendesse que devido à situação de estarmos perante um acto de gestão pública serem competentes na sua veste de Tribunal Especial o Tribunal Administrativo para apreciar o presente dissídio o simples facto da conduta em que incorreu in casu a Agravante ter na sua génese a omissão de um dever de cuidado e vigi-lância a que a aquela se encontrava adstrita, originou a sua colocação num plano de paridade e igualdade de tratamento com o particular e o cidadão, adquirindo esta sua redita omissão a natureza de um acto de gestão privada.

15 - Para que então se possa assim evitar que do alto do seu “ias imperium”, o ente público não se sinta constantemente tentado por via da sua superior posição a “desleixar -se” nos cuidados e deveres a que se encontra vinculado, tendente à prossecução dos interesses públicos que terá de realizar.

16 - Como aliás é o entendimento em sentido análogo da nossa juris-prudência – vide Ac. RP. 95.07.11, BM J, 449, pág. 445.

17 - Assim sendo como é, face ao anteriormente expendido, com o devido respeito, é competente para apreciar a questão em mérito o douto Tribunal Judicial de 1.ª Instância, tal qual como foi configurado pelos Agravantes ab initio na sua Petição Inicial por via designadamente do teor dos artigos 18.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e 66.º, 67.º e 74.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS,Deve revogar -se a decisão recorrida e em face disso julgar -se com-

petente quanto à matéria o Tribunal Judicial de 1.ª Instância.COMO É DE INTEIRA JUSTIÇAO Recorrido contra -alegou, concluindo da seguinte forma:a) Como configurados os factos pelos Autores, na Petição Inicial,

estamos perante um litígio emergente de um acto que se compreende na realização de uma função pública, no exercício de um poder público, visando a prossecução de um interesse público.

b) A construção da “Variante à E.N. 101 em Felgueiras entre a E.M.562 E.M. 564” adjudicada ao consórcio Córsan -Corviam, S.A./Construções Pina do Vale S.A. insere -se no âmbito das atribuições do ICOR, artigo 4º dos Estatutos do Instituto, publicados em anexo ao D.L. 237/99 de 25 de Junho de 1999, com vista à prossecução dos seus fins, pelo que os actos e eventuais omissões alegadamente praticados ou ocorridos no âmbito dessas atribuições são necessariamente actos de gestão pública.

c) Por determinação do n.º 3 do artigo 214º da Constituição da Re-pública Portuguesa, do D.L. N.º48051, de 21 de Novembro de 1967, do artigo 3º e al. h) do n.º l do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais e n.º1 do artigo 6º do D.L. Nº 237/99 de 25 de Junho

Page 39: Decisões STA

76 77

é da competência dos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade do ICOR ou dos seus órgãos de gestão, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.

Nestes termos, e nos mais de Direito, que serão por Vossas Excelên-cias doutamente supridos, deve manter -se a decisão recorrida com as inerentes consequências.

O Excelentíssimo Procurador -Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:

Entende -se, tal como julgou o Tribunal da Relação de Guimarães, que o Tribunal comum é incompetente para conhecer da acção, uma vez que o pedido de indemnização é feito com base em danos resultantes de actos de gestão pública, ou seja, de actos compreendidos no âmbito de uma função pública e no exercício de um poder público, visando a prossecução de um interesse público – a construção da variante à E.N. 101 em Felgueiras, entre a E.M. 562 e a E.M. 564 – no espaço de atribuições do ICOR.

Tal competência cabe, a nosso ver, aos tribunais administrativos de círculo (cfr. art. 214.º, n.º 3 da CRP, D.L. n.º 48051 de 21 -11 -67, art. 3.ºe al. h) do art. 51.º n.º 1 do ETAF e art. 6.º n.º 1, do D.L. n.º 237/99. de 25/6)

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.2 – À face do E.T.A.F. de 1984, a competência dos tribunais adminis-

trativos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes restringe -se aos casos em que esta deriva de actos de gestão pública, como decorre do preceituado no art. 51.º, n.º 1, alínea h), daquele diploma. (1)

A questão da qualificação dos actos de Administração como actos de gestão pública ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos deste Tribunal dos Conflitos.

Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado. (2)

«A solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar:

– Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado;

– Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, indepen-dentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.» (3)

No caso em apreço, os Autores formulam pedido de indemnização por danos causados pelos trabalhos de construção de um estrada denominada “Variante da E.N. 101 (Margaride/Felgueiras)” imputando ao Réu, na qualidade de dono da obra, a responsabilidade por estragos ocorridos no seu prédio, sito junto a essa estrada, provocados por actos praticados nessa construção, designadamente escavações, explosões com dinamite para remoção de terras e pedra e utilização de máquinas de grande porte que produziam vibrações.

Isto é, os Autores pretendem efectivar a responsabilidade do Réu por actos praticados pelo Réu na actividade de construção de estradas.

O ICOR foi criado pelo Decreto -Lei n.º 237/99, de 15 de Janeiro, sendo -lhe atribuída a natureza de pessoa colectiva, do tipo instituto pú-blico, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio (arts. 1.º, n.º 1, daquele diploma e 1.º, n.º 1, dos Estatutos do ICOR por ele aprovados).

No art. 4.º destes Estatutos indicam -se as atribuições fundamentais do ICOR, no seguintes termos:

1 - São atribuições fundamentais do ICOR:a) Assegurar a construção de novas estradas, pontes e túneis planeados

pelo Instituto das Estradas de Portugal (IEP) e a execução de trabalhos de grande reparação ou reformulação do traçado ou características de pontes e estradas existentes que lhe forem cometidos;

b) Promover a realização dos projectos de empreendimentos rodovi-ários que forem necessários ao exercício das suas atribuições;

c) Assegurar a fiscalização, acompanhamento e assistência técnica nas fases de execução de empreendimentos rodoviários;

d) Promover a expropriação dos imóveis e direitos indispensáveis à execução de empreendimentos rodoviários da sua responsabilidade;

e) Zelar pela qualidade técnica e económica dos empreendimentos rodoviários em todas as suas fases de execução;

f) Assegurar a participação ou colaboração relativamente a outras instituições nacionais e internacionais que prossigam finalidades no âmbito da construção de empreendimentos rodoviários.

É, assim, inequívoco que a construção de novas estradas, sua reparação e reformulação do traçado se insere entre as atribuições do ICOR, pelo que os actos que os Autores indicam como geradores dos prejuízos que invocam consubstanciam o exercício de funções de natureza pública, previstas em normas de direito público.

Assim, os actos imputados ao Réu são de qualificar como actos de gestão pública, à face do critério atrás referido, e a responsabilidade deles emergente é responsabilidade por actos de gestão pública.

Para efeitos desta qualificação não releva a circunstância de os actos que se invocam como geradores de responsabilidade civil extracontratual serem actos de natureza jurídica ou operações materiais ou técnicas, pois estas operações «deverão qualificar -se como de gestão pública se na sua prática ou no seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do interesse colectivo, ou porque o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a cumprir de-veres ou sujeito a restrições especificamente administrativos, isto é, próprios dos agentes administrativos. E será gestão privada no caso contrário». (4)

Por outro lado, não se verifica qualquer situação em esteja em causa uma questão de direito privado, pois o regime da responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública é regulado por nor-

Page 40: Decisões STA

78 79

mas de direito público, designadamente, o Decreto -Lei n.º 48051, de 21 -11 -1967.

Por isso, são competentes os tribunais administrativos para o conhe-cimento da presente acção, pelo que bem decidiram as instâncias ao julgarem incompetente o Tribunal Judicial de Felgueiras.

Termos em que acordam neste Tribunal dos Conflitos em negar pro-vimento ao recurso e em confirmar o acórdão recorrido, declarando competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos.

Sem custas.Lisboa, 4 de Abril de 2006. — Jorge de Sousa (relator) — António

Samagaio — Azevedo Moreira — Nuno Cameira — Mário Manuel Pereira — Salvador Nunes da Costa.

(1) Esta norma estabelece que compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer de «acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso».

(2) Neste sentido, podem ver -se os seguintes acórdãos:– do Tribunal dos Conflitos de 5 -11 -1981, processo n.º 124, publicado no Boletim do

Ministério da Justiça n.º 311, página 195;– do Tribunal dos Conflitos de 20 -10 -1983, processo n.º 153, publicado em Apêndice ao

Diário da República de 3 -4 -1986, página 18;– do Tribunal dos Conflitos de 12 -1 -1989, processo n.º 198, publicado em Acórdãos

Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, nº 330, página 845;– do Tribunal dos Conflitos de 12 -5 -1999, processo n.º 338, publicado em Apêndice ao

Diário da República de 31 -7 -2000, página 19;– do Supremo Tribunal Administrativo de 22 -11 -1994, recurso n.º 33332, publicado em

Apêndice ao Diário da República de 18 -4 -1997, página 8256;– de 29 -6 -2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.º 1/04.(3) Acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no processo n.º 124, citado.(4) FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, volume III, página 493, cuja posição é

seguida no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4 -3 -2004, proferido no recurso n.º 10/03.

Acórdão de 4 de Abril de 2006.

Assunto:

Autarquias locais. Obras novas. Embargo extrajudicial. Ra-tificação judicial. Tribunal competente.

Sumário:

I — O pedido de ratificação judicial de um embargo extra-judicial de uma obra de implantação, por uma câmara municipal, de um poste de iluminação pública no “pas-seio” de uma rua cuja propriedade é controvertida tem subjacente, como causa de pedir, a execução de obras públicas para cuja realização é competente essa câmara [artigo 13.º, n.º 1, alíneas a) e b), artigo 16.º, alínea b) e artigo 17º, n.º 1, alínea b) da Lei nº 159/99, de 14/9], ou seja, uma relação jurídica administrativa.

II — Os tribunais competentes para o conhecimento das questões respeitantes a estas relações jurídicas são os

tribunais da jurisdição administrativa (artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e artigo 1.º do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13 002, de 19 de Fevereiro).

III — A questão a resolver, neste meio processual, não é a natureza da propriedade, mas sim a ofensa desse di-reito, que está relacionada com a ilicitude da realização da obra, apenas funcionando, por isso, a natureza da propriedade como pressuposto dessa ilicitude, pelo que não interfere com a natureza da relação jurídica.

IV — Essa natureza pode ser conhecida no processo do conten-cioso administrativo, pelo menos a título prejudicial, com efeitos restritos a esse processo (artigo 15.º do CPTA, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro).

V — A decisão que julgue incompetentes os tribunais comuns e competentes os tribunais da jurisdição administrativa para o conhecimento desta matéria não implica que os tribunais administrativos tenham de conhecer a questão tal como ela foi apresentada no tribunal judicial, pois que esse conhecimento deve ser feito de acordo com os meios estabelecidos no contencioso administrativo, nos quais não está previsto, como decorre da conjugação dos artigos 112.º, n.os 1 e 2 do CPTA, e 414.º do CPC, a ratificação judicial de embargos extrajudiciais de obras de pessoas colectivas de direito público, que não se coadunam com os princípios gerais que disciplinam a actuação da Administração.

Processo n.º 27/05 -70.Recorrente: Etelvina de Freitas, no conflito negativo de jurisdição

entre o Tribunal Judicial da Comarca de Baião e os Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. António Madureira.

Acordam no Tribunal de Conflitos:1. RELATÓRIO1. 1. Etelvina Freitas, viúva, reformada, residente na Rua de Camões,

Baião, requereu, no Tribunal Judicial de Baião, a ratificação de embargo extra -judicial de obra nova, por ela efectuado, relativamente a uma obra levada a cabo pelo Município de Baião.

Por sentença de 7/2/05, esse tribunal julgou procedente a requerida providência cautelar, tendo, em consequência, ratificado o embargo da obra em causa e ordenado ao requerido a suspensão da mesma.

Com ela se não conformando, o requerido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, no qual, entre outras, impugnava a decisão do tribunal “a quo” relativa à excepção, por ela arguida, da incompetência do tribunal em razão da matéria.

Por acórdão de 27/6/2005, o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, julgando o Tribunal Judicial de Baião incom-petente, por considerar que o conhecimento da matéria em apreciação estava atribuído aos tribunais da jurisdição administrativo.

1. 2. Agora foi a requerente que não se conformou com a decisão, tendo interposto recurso para este tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 107.º, n.º 2, do CPC.

Page 41: Decisões STA

80 81

Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:1.ª) - A competência material afere -se em face da relação jurídica

material em litígio, tal como a apresenta a requerente na demanda.2.ª) - A providência cautelar a que respeita a presente demanda tem

subjacente a ocupação de um espaço contíguo a um prédio urbano per-tencente à requerente/agravada, que o requerido/agravado Município de Baião, através dos seus funcionários, ocupou e onde provocou danos.

3.ª) - Quando um município ou câmara municipal ocupa ou invade terreno alheio sem autorização ou conhecimento do seu titular, não marcado pelo “ius imperii”, age despido de poder público.

4.ª) - Agindo, ao invés, como qualquer outra pessoa, em paridade com qualquer outro cidadão.

5.ª) - Assim, cabe aos tribunais judiciais (comuns) a competência em razão da matéria para conhecer desse litígio.

6.ª) - Por outro lado, no novo ETAF a determinação do domínio ma-terial da justiça administrativa continua a passar pela distinção material entre o direito público e privado.

7.ª) - Ao contrário do que acontecia na lei anterior, o novo ETAF dei-xou de excluir (escreveu incluir, mas por manifesto lapso) expressamente da jurisdição administrativa “as questões de direito privado, ainda que uma das partes seja um pessoa de direito público”, mas também não as incluiu, o que significará que estarão excluídas dessa jurisdição.

8.ª) - No caso concreto, não se trata de um problema de responsabili-dade civil extracontratual da administração, mas tão só de uma questão de propriedade, da ilegalidade da sua invasão e ocupação e da consequente violação do direito de propriedade.

9.ª) - Foram, assim, violadas as normas dos artigos 212.º -3 da CRP, 4.º do ETAF e 66.º do CPC.

1. 3. O recorrido contra -alegou, tendo defendido, em síntese: - que o terreno em que foram efectuadas as obras embargadas não

pertencia à recorrente, mas sim ao domínio público do município de Baião;

- que, na execução das obras embargadas, actuou no pleno exercício do seu “ius imperii”, como autarquia e pessoa colectiva de utilidade pública, “praticando um acto administrativo genuíno, porque zelava, no âmbito do dever que sobre si recaía, pela conservação dos arruamentos públicos, de que faz parte integrante o passeio em causa”;

- e porque assim era, essa obra nem sequer podia ter sido, em face do disposto no artigo 414.º do CPC, objecto de embargo extrajudicial, atenta a natureza eminentemente pública do referido passeio.

1. 4. O Exm.º Magistrado do Ministério Público emitiu o douto pa-recer de fls 153, no qual se pronunciou pelo improvimento do recurso, em virtude de considerar que, como decidiu o acórdão recorrido, o conhecimento do litígio em causa compete aos tribunais da jurisdição administrativa.

1.5. Foram colhidos os vistos dos Exm.ºs Juízes Adjuntos, pelo que cumpre decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO2. 1. OS FACTOS:Estão provados, com interesse para a decisão do presente recurso,

os seguintes factos:1 - Está descrito, na Conservatória do Registo Predial de Baião,

sob o n.º 01657/030997, um prédio urbano que consta de casa de rés--do -chão e andar, anexo e logradouro, sito no lugar da Feira (Rua de

Camões), freguesia de Campelo concelho de Baião, a confrontar, de Norte, com Misericórdia de Baião, do Sul, com Altina da Conceição Alves e herdeiros de Maria da Conceição Nogueira Soares, inscrito na matriz sob o art. 996.º, o qual se encontra inscrito, pela quota G -2, a favor de José Soares de Queirós, casado, no regime da comunhão de adquiridos, com a requerente;

2 - José Soares de Queirós faleceu em 17.06.00, no estado de casado, em primeiras núpcias, com a requerente;

3 - Mediante testamento público lavrado no Cartório Notarial do Marco de Canaveses em 01.07.99, a fls. 33 vº do Livro de Notas para Testamentos nº 74 -T, foi legado à requerente por seu marido, José Soares de Queirós, o usufruto dos bens que compõem a herança, por conta da quota disponível e com observância do condicionalismo previsto no art. 2164º do CC;

4 - Da herança do referido José Soares de Queirós, ainda ilíquida e indivisa, faz parte o prédio mencionado em 1, que adveio ao seu patri-mónio por o ter herdado de seus pais, Manuel de Queirós e Maria da Conceição Nogueira Soares;

5 - Deste prédio faz parte integrante uma faixa de terreno que se situa entre a parede fronteira da casa de habitação e a Rua de Camões, com o comprimento de cerca de 23 metros;

6 - Constituindo o que se pode denominar um “passeio”, formado por lajes e granito trabalhadas, sobrelevado em relação ao arruamento público;

7 - Este “passeio” foi construído, conjuntamente com a casa de ha-bitação que compõe o prédio urbano referido em 1, pelos sogros da requerente, Manuel de Queirós e Maria da Conceição, esta conhecida por “Miquinhas”, ou “Miquinhas Queirós”;

8 - Algumas das lajes estão parcialmente colocadas por baixo da parede fronteira da casa, que assenta sobre elas;

9 - Pelo que o edifício que integra o prédio se encontra parcialmente alicerçado nas pedras do mencionado “passeio”;

10 - Este sempre foi limpo, varrido e esfregado por requerente e antecessores e seus serviçais;

11 - Tendo por eles sempre sido arranjado e reparado;12 - Há alguns anos, ainda em vida do marido da requerente, um

camião pesado partiu algumas das lajes que o constituem, tendo elas sido repostas e pagas pelo marido da requerente;

13 - Aquando da reconstrução da casa, ocorrida na mesma altura, as juntas das lajes foram tapadas, a mando do marido da requerente;

14 - A requerente e seu marido, por si e antepossuidores, com exclu-são de outrém, há mais de vinte anos ininterruptos, estão na posse do prédio urbano referido, com todas as suas partes integrantes, incluindo o “passeio” referido em 6, praticando os actos materiais correspondentes ao direito de propriedade, tais como habitarem a casa, repará -la, fazer benfeitorias, cultivarem o quintal, colherem os seus frutos, limpar, varrer e esfregar o “passeio”, arranjá -lo e repará -lo, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, pública e pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e assim o julgando as demais pessoas;

15 - Nunca a requerida ou a população de Baião efectuaram, no sobredito “passeio”, qualquer obra, serviço ou trabalho;

16 - Jamais nele colocaram qualquer objecto, equipamento ou mate-rial, sem autorização dos seus donos;

Page 42: Decisões STA

82 83

17 - Os passeios públicos da vila de Baião foram “arranjados”, tendo o cimento ou as lajes de pedra que constituíam alguns deles sido subs-tituídos por pequenos cubos de pedra;

18 - Nessa altura, a requerente e seu marido pediram à requerida, “nas pessoas dos seus titulares”, que também fosse arranjado o “passeio” em causa, ao que lhes foi respondido que tal não poderia ser, pois era privado e não pertencia ao domínio público;

19 - Na manhã do dia 21 do corrente mês, funcionários ao serviço da requerida partiram uma das lajes que integra o “passeio”, escavaram um buraco, colocaram fios eléctricos, iniciando obras para aí instalarem um poste de iluminação;

20 - Sem darem conhecimento à requerente e sem lhe pedirem au-torização;

21 - Assim, nesse mesmo dia, cerca das 10H30, a requerente embargou--as, extrajudicialmente, por intermédio do seu advogado;

22 - Embargo feito na pessoa dos dois trabalhadores que aí se en-contravam (Pedro Nogueira e Paulo Manuel Nogueira de Sousa) e na de duas testemunhas, referindo -lhes para suspender e não continuar a obra que, assim, ficava embargada;

23 - O embargo extrajudicial não foi efectuado na pessoa da repre-sentante (a Presidente da Câmara Municipal de Baião) da dona da obra (o Município de Baião), porque não se encontrava presente;

24 - Também não se encontrava presente o fiscal de obras, funcio-nário camarário;

25 - Esse fiscal (de seu nome, Armando) foi avisado e chamado telefonicamente por um outro funcionário da requerida, o motorista, António Madureira Monteiro, mas não se deslocou ao local;

26 - Razão pela qual o embargo foi efectuado na pessoa dos dois únicos trabalhadores presentes, por serem os únicos que no local se encontravam;

27 - Mais tarde, apareceu no local uma jurista da requerida para analisar a situação e referiu que, se o embargo estava feito, era para cumprir;

28 - A requerente, dias depois, avisou, por escrito, a legal representante da requerida dos factos mencionados de 21 a 24 e 26;

29 - Entre a fachada desse prédio e o limite exterior do passeio existe uma junta;

30 - Não existe, no local em que se encontra o passeio referido em 6, qualquer solução de descontinuidade relativamente ao nivelamento do passeio público, que é perfeitamente contínuo e com toda a sua pavi-mentação no mesmo plano;

31 - O passeio referido em 6 é transitado por toda a gente, sem inter-ferência por parte da requerente;

32 - Os funcionários do município limpam o passeio em causa e os passeios e arruamentos públicos;

33 - A requerida cobra dos feirantes a respectiva taxa de ocupação desse passeio; e

34 - Ao embargar a obra, a requerente não podia ignorar que estava a impedir os munícipes de verem a luminosidade nocturna melhorada.

2. 2. O DIREITO:2. 2. 1. O que se discute, no presente recurso, é o tribunal que é

competente, em razão da matéria (ou jurisdição), para conhecer da providência cautelar - de embargo de obra nova - em causa.

O acórdão recorrido considerou que essa competência cabia aos tribunais da jurisdição administrativa, em virtude da relação jurídica subjacente ao litígio submetido à apreciação do tribunal ser uma relação jurídica administrativa.

A recorrente (requerente dessa providência) defende, por sua vez, que os tribunais competentes são os tribunais judiciais (comuns), em virtude dessa relação jurídica não ser uma relação jurídica administrativa mas sim uma relação jurídica de direito privado, decorrente da invasão de terreno de um particular, feita pelo recorrido despido do seu ius impe-rii, ou seja, por uma invasão feita em idêntica qualidade à de qualquer particular que a efectuasse.

O recorrido/requerido defende, por sua vez, a bondade do acórdão recorrido, com os fundamentos já enunciados em 1.3..

2.2.2. Estatui o artigo 212.º, n.º3, da CRP, que os tribunais admi-nistrativos são os competentes para conhecer das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Estatuição idêntica estabelece o artigo 1º do ETAF em vigor, apro-vado pela Lei n.º13/ 2002, de 19 de Fevereiro, tal como estabelecia o artigo 3.º do anterior ETAF.

Por sua vez, a LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/1, estatui que os tribunais judiciais são os competentes para o conhecimento das acções cujo conhecimento não esteja atribuído a outra ordem de tribunais (artigo 18.º, n.º 1, alínea a)), o mesmo se consignando no artigo 66.º do CPC.

Face a estas estatuições legais, fácil é concluir que a fixação da competência para o conhecimento da providência em causa depende da natureza da relação jurídica que na mesma se discute. Se essa relação jurídica for uma relação jurídica administrativa, o conhecimento da acção pertencerá à jurisdição administrativa. Se for uma relação jurídica privada, o conhecimento pertencerá à jurisdição comum.

A distinção entre relações jurídicas administrativas e relações jurídicas privadas decorre, grosso modo, dessa relação provir da prática de actos de gestão pública ou de actos de gestão privada

Sintetizando, diremos, em consonância com doutrina e jurisprudência absolutamente consolidadas, que actos de gestão pública são os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando, eles mesmos, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, inde-pendentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas, enquanto que actos de gestão privada são os que se compreendem numa actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado (cfr., por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 1/6/2004 - Con-flito n.º 24/03).

O que nos leva a considerar relações jurídicas administrativas como aquelas que são regidas por normas que regulam as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares no desempenho da actividade administrativa de gestão pública, sendo esta, em síntese, e como já foi referido, a actividade que compreende o exercício de um poder público, integrando, ela mesma, a realização de uma função pública da pessoa

Page 43: Decisões STA

84 85

colectiva, independentemente de envolver ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas (cfr., por todos, os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 28.11.2000 - Conflito 345, de 1.6.2004 - Conflito n.º 24/03, e de 8.7. 2003 - Conflito n.º 10/02).

Importa ainda assinalar que o apuramento da jurisdição competente deve ser feito, de acordo com pacífica jurisprudência dos nossos tribu-nais superiores, em função da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que, na petição, é formulada a pretensão do Autor, incluindo os seus fundamentos (cfr., neste sentido, por todos, o acórdão do STJ de 4/3/97, in Colectânea de Jurisprudência/STJ, 1997, tomo V, pág. 125, do STA de 27/9/01, 28/11/02 e 19/2/03, proferidos nos recursos n.ºs 47633, 1674/02 e 47636, respectivamente, e do Tribunal de Conflitos de 2/7/02, 5/2/03 e de 8/7/03, proferidos nos Conflitos n.ºs 1, 6 e 10/02, respectivamente).

2.2.3. Enunciados os pressupostos legais da determinação da jurisdi-ção competente, há que passar à apreciação da pretensão da recorrente/requerente, fazendo a respectiva subsunção legal dos factos alegados.

Apreciando a posição da requerente, na sua petição, verifica -se que esta veio requerer ao tribunal a ratificação de um embargo que ela efec-tuou extrajudicialmente, embargo esse que recaiu sobre obras efectuadas pelo pessoal da Câmara Municipal de Baião, consistentes no escava-mento de um buraco e colocação de fios eléctricos para presumível instalação de um poste de iluminação pública, num espaço de terreno frontal a um prédio urbano de que é usufrutuária, que considera seu, sem lhe terem dado conhecimento e sem sua autorização.

Essas obras destinavam -se, como considerou o acórdão recorrido, ao melhoramento da rede de iluminação pública do município de Baião e designadamente na rua em que as mesmas estavam a ser executadas.

De acordo com o estabelecido na Lei n.º 159/99, de 14/9, os municí-pios têm atribuições no âmbito do equipamento e da energia (artigo 13.º,n.º 1, alíneas a) e b)), nas quais se compreendem as competências do seu órgão câmara relativas à realização de investimentos nas ruas e arruamentos (artigo 16.º, alínea b)) e à iluminação pública (artigo 17.º, n.º 1, alínea b)).

O que significa que as obras efectuadas pelos agentes da Câmara Municipal de Baião que vieram a ser objecto de embargo cuja ratifi-cação judicial vem requerida se inserem no âmbito das atribuições do município de Baião e da competência da sua câmara.

E, assim sendo, a actividade por eles desenvolvida, seguramente no cumprimento de ordens recebidas dos órgãos ou agentes competentes para o efeito, não pode deixar de ser qualificada como uma actividade de gestão pública.

Não é, com efeito, o facto de terem invadido terrenos alegadamente privados, nos quais terão causado danos, que coloca essa actividade em paridade com a resultante de eventual invasão dessa propriedade por quaisquer simples particulares, pela decisiva razão de que estes não estavam investidos nos poderes públicos em que estavam os agentes do recorrido. O facto da propriedade “invadida” ser privada apenas de-termina a ilicitude dos actos de gestão pública praticados pelos agentes em causa, não os transforma em actos de gestão privada, pois que essa invasão, mesmo que ilícita, visou a satisfação dos interesses públicos dos utentes da rua em causa, que à recorrida incumbia satisfazer e daí

que o tenham feito, mesmo que de forma ilegal, no exercício de um poder que qualquer particular não tinha.

Assim sendo, impõe -se concluir que a relação jurídica subjacente à conduta que a requerente pretende ver ratificada pelo tribunal (embargo da obra), e que constitui a causa de pedir no meio processual exercitado (danos causados na propriedade da recorrente pela realização ilegal de obras), é uma relação jurídica administrativa, o que nos conduz a considerar que bem andou o tribunal recorrido ao considerar incompetente o Tribunal Judicial de Baião e competentes os tribunais da jurisdição administrativa.

Assinala -se ainda, na tentativa de dissipação das dúvidas suscitadas no acórdão recorrido, que a decisão sobre a natureza pública ou privada do terreno onde foi efectuada a obra embargada não é o que vem pedido ao tribunal, mas sim a proibição de continuação das obras em causa, pelo facto do terreno onde foram efectuadas ser privado. Ou seja, que essa natureza não é uma questão a decidir a título principal, mas apenas como pressuposto da legalidade da execução da obra pela recorrida, no âmbito da sua actividade de gestão pública de iluminação das ruas da sua área territorial.

Ora, para além dessa proibição poder ser pedida no âmbito do con-tencioso administrativo (cfr. artigos 2.º, 37.º e 112.º do CPTA), também a natureza do terreno, como pressuposto da viabilidade da pretensão, pode ser conhecida no âmbito do procedimento exercitado na jurisdição administrativa para a defesa dos direitos ou interesses legítimos da recor-rente, pelo menos a título prejudicial, com efeitos restritos ao processo do contencioso administrativo (cfr. artigo 15.º do CPTA) - no sentido da possibilidade de conhecimento dessa matéria a título principal, vd. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Anotado, Vol. I, pág. 36.

Em conclusão: considera -se que, estando em causa o embargo de uma obra pública, a relação jurídica que está subjacente à pretensão em causa é uma relação jurídica administrativa, pelo que o conhecimento das questões decorrentes dessa relação são, como decidiu o acórdão recorrido, os tribunais da jurisdição administrativa.

2.2.4. Assinala -se, finalmente, para que não possa ser considerado que foi decidido que os tribunais administrativos terão de conhecer a questão tal como ela foi apresentada no Tribunal Judicial da comarca de Baião, que o conhecimento da pretensão da recorrente de ver proibida a continuação da obra em causa deve ser feito de acordo com os meios estabelecidos no contencioso administrativo, nos quais não está previsto, como decorre da conjugação dos artigos 112.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA e 414.º do CPC, a ratificação judicial de embargos extrajudiciais de obras de pessoas colectivas de direito público, que não se coadunam com os princípios gerais que disciplinam a actuação da Administração.

3. DECISÃONesta conformidade, acorda -se em negar provimento ao recurso,

julgando que os tribunais competentes para o conhecimento do litígio em causa são os tribunais da jurisdição administrativa, sem prejuízo do não conhecimento por estes tribunais da pretensão formulada por outras questões de índole processual.

Sem custas (artigo 96.º do Decreto n.º 19243, de 16/1/ 1931).Lisboa, 4 de Abril de 2006. — António Madureira (relator) — Salvador

Pereira Nunes da Costa — João Belchior — Mário Manuel Pereira —Políbio Henriques — Nuno Pedro Melo e Vasconcelos Cameira.

Page 44: Decisões STA

86 87

Acórdão de 6 de Abril de 2006.Conflito n.º 5/05.Requerente: Digno Magistrado do Ministério Público, no Conflito

Negativo de Jurisdição, entre o 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. José Vitor Soreto de Barros.

Acordam no Tribunal de Conflitos.Relatório.O Exmo. Magistrado do MP junto do Tribunal Administrativo e Fiscal

de Leiria requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição, surgido entre o 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, para conhecer da nulidade arguida pelo Município das Caldas da Rainha num procedimento de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, requerido junto do primeiro daqueles Tribunais por José Maria da Silva Martins contra o Município de Caldas da Rainha. O conflito negativo surgiu porque o 2° Juízo Cível se julgou incompetente em razão da matéria, por despacho de 22/12/04, que transitou em julgado em 06/01/05, o mesmo tendo decidido Tribunal Administrativo e Fiscal, por despacho que transitou em julgado em 30/12/04.

As Autoridades em conflito foram notificadas para responderem, o que nenhuma delas fez.

No seu visto, o Exmo. Representante do MP junto deste Tribunal de Conflitos pronunciou -se no sentido de que o Tribunal materialmente competente para conhecer da nulidade arguida pelo Município das Caldas da Rainha é o Tribunal onde a arguida nulidade terá sido praticada, no caso, o Tribunal do 2° Juízo Cível da Caldas da Rainha.

Corridos os vistos.Conhecendo.A) Os factos.Em 15/07/04, José Maria da Silva Martins e sua mulher requereram,

pelo Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, contra o Município de Caldas da Rainha, a ratificação de embargo extrajudicial de obra nova. O Requerido deduziu oposição, invocando a excepção de incompetência em razão da matéria, por o Município ter efectuado a obra no âmbito das suas atribuições e competências (“acto de gestão pública”), tratando -se portanto de uma relação jurídico -administrativa.

Por despacho de 31/08/04, o Sr. Juiz do 2° Juízo Cível declarou -se incompetente em razão da matéria e absolveu o Requerido da instância (este despacho viria a transitar em 10/09/04).

Mediante pedido dos requerentes, formulado ao abrigo do art. 105, n°2 do CPC, antes do trânsito do despacho, os autos foram remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, onde, recebidos, o Sr. Juiz convidou os Requerentes a procederem ao aperfeiçoamento do pedido, o que estes fizeram, de acordo com as alíneas d), e) e g) do art. 114 do CPTA, pedindo então, além da ratificação do embargo extra-judicial, também a intimação do Requerido para se abster da prática de certos actos (que ali referem), e identificando dois contra -interessados (Cláudia Sofia Marques Henriques e Francisco António Dinis).

Admitido no TAF o requerido procedimento, foram citados os contra--interessados e notificado o Requerido, este para se pronunciar sobre o novo requerimento.

Aqueles declararam a sua adesão à contestação do Requerido. Este apresentou nova contestação, em que voltou a excepcionar, pugnando pela inexistência de conexão entre o direito de propriedade dos Reque-rentes e a obra embargada, e invocando a caducidade do embargo e as nulidades consubstanciadas na falta do seu acordo quanto ao aprovei-tamento dos articulados (art. 105, n°2 do CPC), além de outras coisas que aqui não relevam.

Convidados a pronunciarem -se sobe as excepções, os Requerentes responderam -lhes, designadamente, quanto à referida nulidade, que a remessa dos autos resulta do disposto no art. 14, n°1 do CPTA.

Após o que o Sr. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal, por des-pacho de 14/12/04, fundamentou que, no caso de verificação de incom-petência absoluta, a remessa dos autos ao tribunal tido por competente carece do acordo das partes quanto ao aproveitamento dos articulados (art. 105, n°2 do CPC), pelo que, sendo a nulidade arguida pelo Re-querido (falta do seu acordo quanto ao aproveitamento dos articulados e caducidade do embargo) susceptível de influir no exame e decisão da causa, decidiu que a apreciação da nulidade deve ser feita pelo Tribunal perante o qual foram praticados ou omitidos os actos em questão: art. 193 e seguintes, art. 666, n°2 e art. 668, n°s 3 e 4 do CPC). Solução que disse sair reforçada pela circunstância de que, se a arguição dever proceder, os autos se extinguem na jurisdição cível. Em consequência, mandou remeter ao Tribunal do 2°Juízo Cível de Caldas da Rainha. Este despacho transitou em 30/12/04. Remetidos os autos ao Tribunal Cível, neste o Sr. Juiz exarou, em despacho de 22/12/04, que, tendo transitado a decisão contida no seu despacho de 31/08/04, não poderia apreciar qualquer nulidade, que, aliás, nem foi arguida perante esse Tribunal. Considerou, assim, materialmente competente para apreciar a questão da nulidade o Tribunal materialmente competente para o procedimento: o Administrativo e Fiscal. Este despacho transitou em 06/01/05.

Notificados o MP e as Partes para os efeitos do art. 117 do CPC, desta forma surgiu, pela mão do MP, o pedido de resolução do presente conflito.

B) O direito.A nulidade arguida (consistente na falta de acordo para aproveitamento

dos articulados, no quadro do art. 105 do CPC - ou seja, omissão de acto que a lei prescreve, susceptível de influir no exame e decisão: art. 201, n°1 do CPC), se existir (e tiver sido arguida em tempo), foi cometida no Tribunal do 2° Juízo Cível de Caldas da Rainha, mas só foi arguida no Tribunal Administrativo e Fiscal.

Quem é competente em razão da matéria para decidir a questão da nulidade?

O tribunal competente para a acção é também competente para co-nhecer dos incidentes que nela se suscitem e das questões que o réu suscite como meio de defesa: art. 96, n°1 do CPC.

Ora, o Tribunal competente para a acção (procedimento de ratifica-ção de embargo extrajudicial de obra nova), por decisão transitada, é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

Page 45: Decisões STA

88 89

Será que o facto de a nulidade arguida pelo Requerido ter sido (se foi) cometida pelo Tribunal Cível durante o período de tempo que o processo nele decorreu, altera isto?

Não parece assim.Embora a questão seja discutível, o certo é sempre que:a) Tribunal materialmente competente para a acção foi já decidido,

com trânsito, que é o Administrativo e Fiscal;b) A questão da nulidade não foi suscitada no Tribunal Cível, mas no

Administrativo e Fiscal;c) Com a absolvição do Requerido da instância no Tribunal Cível e

remessa dos autos para o Tribunal Administrativo, iniciou -se neste uma nova instância, na qual se devem aproveitar os articulados e os actos processuais que deles dependam (como as citações, as notificações), mas não por exemplo a tramitação de qualquer incidente: Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 194.

d) A questão suscitada no Tribunal Administrativo e Fiscal foi -o porque o procedimento foi aí admitido e o Requerido foi nele convidado a apresentar nova petição;

e) Foi na contestação à nova petição que o Requerido suscitou a referida questão da nulidade;

f) Uma vez que a omissão de acto prescrito pela lei só constitui nu-lidade se tal omissão for susceptível de influir no exame e decisão da causa (art. 201, n°1 do CPC), parece que o tribunal vocacionado para a apreciação de tal susceptibilidade de influir no exame e decisão só pode ser o tribunal competente para conhecer do mérito da causa - e não outro.

g) Finalmente, se se devesse reconhecer competência ao tribunal cível para conhecer esta nulidade, poderia ocorrer um resultado indesejável: se o tribunal cível concluir pela nulidade, ele retira ao tribunal competente para conhecer do mérito, e onde já se iniciou nova instância, que é o administrativo, a possibilidade de conhecer do mérito.

Não parece que sejam aqui aplicáveis as normas dos art. 666, n°2 e 668, n°3 e 4 do CPC, como se disse no despacho de 14/12/04, porque não se trata de suprir nulidades da sentença.

Por tais razões, embora a questão não seja totalmente líquida, entende--se que o tribunal competente para a questão da nulidade deva ser o Tri-bunal Administrativo e Fiscal, sobretudo porque a instância no tribunal cível se encontra finda, porque foi perante o tribunal administrativo que a questão foi suscitada e porque é este o tribunal materialmente competente para a acção.

Pelo exposto, acordam em declarar materialmente competente para o conhecimento da arguida nulidade o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2006. — José Vítor Soreto de Barros (relator) —Artur José Mota Miranda — Jorge Artur Madeira dos Santos — Fer-nando Manuel Azevedo Moreira — António Pereira Madeira — António Fernando Samagaio.

Acórdão de 6 de Abril de 2006.Processo n.º 8/05 -70.Requerente: Maria do Carmo Fidalgo, no conflito negativo de juris-

dição entre o Tribunal Judicial da comarca de Oliveira do Hospital e o Tribunal Administrativo e Fiscal.

Relator: Exmº. Sr. Consº. Dr. Artur José Alves Mota Miranda.

Acordam no Tribunal de ConflitosMaria do Carmo Fidalgo interpôs recurso de agravo para este Tri-

bunal de Conflitos, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, negando provimento ao agravo, confirmou a decisão proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital que julgara o Tri-bunal incompetente em razão da matéria, por competentes os Tribunais Tributários e absolvera da instância o Réu Estado Português.

Nas suas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:1) Tendo o Tribunal Constitucional decidido, com trânsito em julgado,

no Acórdão n.° 452/2003, em recurso de fiscalização concreta de cons-titucionalidade interposto pela ora recorrente, de uma decisão do S.T.A. (coisa que não importa minimamente) que a norma do art. 7°, n.° 4 e 5 do CIRS não é inconstitucional na medida em que permite que o interessado obtenha uma decisão judicial (onde pode produzir todos os meios de prova em direito admissíveis) emitida pelos tribunais judiciais, através da qual pode no processo de impugnação judicial tributária impugnar a presunção estabelecida no n.° 4 do art 7º do CIRS, não podia o acórdão da Relação vir decidir no sentido em que o fez, julgando incompetente o Tribunal comum para emitir essa decisão, não admitindo, por essa via, o exercício do direito de acção funcionalizado àquele fim perante os tribunais comuns.

2) O acórdão da relação desconhece erraticamente que existem ac-ções judiciais instrumentais para a decisão de outras acções relativas a questões emergentes de relações jurídicas administrativas ou tributárias, cuja apreciação cabe a outras jurisdições, como está previsto no art. 4°, n.° 2 do ETAF (aliás o mesmo se poderá passar no processo penal — art. 7°, n.° 2 do C.P.P.) fazendo, por essa razão, tábua rasa do acórdão do Tribunal Constitucional.

3) E que a competência para apreciação dessas acções instrumentais pode caber aos tribunais comuns se essa relação instrumental for de direito comum, civil ou comercial, como é o caso e foi julgado pelo acórdão do Tribunal Constitucional.

4) De resto, o julgado do Tribunal Constitucional não faz mais do que postar -se numa linha legislativa histórica, de cuja existência e sentido a recorrente deu conta nas conclusões para a Relação, acima transcritas, mas cuja bondade esta não se deu ao trabalho de rebater como, mais grave as interpretou de forma distorcida, acabando por determinar um objecto de recurso diferente do que nela se erigiu a questão a decidir por ela.

5) A interpretação do art. 7°, n.° 4 e 4 do CIRS e dos artigos 66°, 101º a 103°, 105°, 288°, n.° 1, al. a), 493º, n.° 2 e 494°, al. a) do C.P.C., no sentido de a recorrente não ter acesso a um meio processual nos tribunais comuns, quando está definitivamente julgado não dispor desse meio na jurisdição que a sentença recorrida considera competente, no qual possa fazer valer os seus direitos de demonstrar mediante o uso de toda a prova admissível em direito, entre ela se contando a prova testemunhal

Page 46: Decisões STA

90 91

e documental, que não recebeu os rendimentos presumidos fiscalmente é rotundamente inconstitucional por violação da garantia de acesso aos Tribunais consagrada no art. 20° da C.R.P..

6) O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, em execução do Acórdão do Tribunal Constitucional, ordene o prossegui-mento dos autos para o conhecimento do mérito da acção, pressupondo--se a competência dos tribunais judicias para emitir a decisão.

Em contra alegações, o R. Estado, representado pelo Ex.mo Ma-gistrado do M° P°, considerando estar pedida a ilisão da presunção estabelecida no art. 7º, n.° 4 do CIRS, defende a improcedência do recurso, com confirmação do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir as questões suscitadas pela recor-rente nas conclusões das suas alegações, sabido que são elas que delimi-tam o objecto dos recursos, salvo quanto às questões de conhecimento oficioso (cf. art. 684°, n.° 3 e 690°, n.° 1 do C.P.C. e Rodrigues Bastos em Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. 3, pág. 228).

Assim, a questão a resolver reconduz -se a uma questão de competência em razão da matéria e consiste em saber se a competência cabe, como decidido no acórdão recorrido aos Tribunais Tributários ou se, como defende a recorrente, incumbe ao Tribunal Comum, o Tribunal Judicial de Oliveira do Hospital.

Sabe -se que as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição são da competência dos Tribunais Judiciais, de acordo com o art. 66° do C.P.C. e art. 18° da Lei 3/99 de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).

Por isso, sendo os Tribunais Administrativos e Fiscais, os órgãos que exercem a jurisdição administrativa e fiscal (cf. art. 212°, n.° 3 da Constituição — “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”— e art. 1°, 2° e 3° do dec. -lei 129/84 de 27/4 — Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o vigente à data da instauração da acção) a sua competência determina -se pela análise directa das espécies de acções que podem ser submetidas a sua apreciação e decisão segundo o estabelecido na sua lei orgânica.

Daí que conhecida a competência material que lhes foi especial-mente atribuída por lei e integrando -se a matéria da acção proposta nessa competência fica logo determinada a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal e necessariamente excluída a competência do Tribunal Comum (cf. Antunes Varela, Bezerra e Nora em Manual de Proc. Civil, pág. 208 e Alberto dos Reis no Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. 1, pág. 201).

Assim como a função jurisdicional dos Tribunais Administrativos e Fiscais vem estabelecida nos art. 1°, 3°, 4° e 62° daquele dec. -lei, há que determinar a natureza da relação jurídica pleiteada, como vem apresentada pela A. e concluir se ela se integra em qualquer das situações previstas naqueles preceitos legais (cf. Acórd. do S.T.J. de 12/1/94, de 9/5/95 e de 3/2/87, nas CJ — STJ — 1994 -1 -38, 1995 -2 -68 e BMJ, 364 -591 e ainda Manuel Andrade em Noções Elementares de Proc. Civil, Ed. de 1963, pág. 89).

Para tanto, impõe -se considerar a seguinte factualidade:1) No Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra, a autora impug-

nou a liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) no valor de 49.221.847$00, relativo ao ano de 1990.

2) Por decisão de 24/5/2001, o Tribunal julgou procedente a impug-nação e anulou a liquidação em causa.

3) O Representante da Fazenda Pública interpôs recurso para a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, que em 26/2/2002, concedeu provimento ao recurso e manteve a liquidação impugnada.

4) Para tanto, o Tribunal Central Administrativo fundamentou -se no art. 7°, n.° 4 do CIRS que, na redacção anterior à Lei n.° 30 -G/2000 de 29/12, dispunha que os “lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais se presumem sujeitos a título de lucros ou adiantamentos”.

5) A impugnante recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por acórdão de 18/12/2002, negou provimento ao recurso.

6) Recorreu para o Tribunal Constitucional, alegando que as normas dos n.° 4 e 5 do art. 7° do CIRS, na interpretação de vedar a produ-ção de prova testemunhal e documental no processo de impugnação judicial, viola o art. 20, em conjugação com o art. 18°, n.° 2 e 3 da Constituição.

7) O Tribunal Constitucional, por acórdão de 14/10/2003, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.

8) Em 18/11/2003, a Autora instaurou a presente acção no Tribunal da Comarca de Oliveira do Hospital.

9) Na sua p. i alegou que:a) Foi notificada, pela Direcção Geral das Contribuições e Impostos

para pagar a quantia de 49.221.847$00 proveniente da liquidação de IRS do ano de 1990, efectuada nos termos do art. 81° do CIRS;

b) Esta decisão teve por base a informação da fiscalização de que o Sr. Joaquim Álvaro recebeu no ano de 1990 da firma C.A. Construtora do Alva, S.A. a importância de 77.150.000$00, como adiantamento para a aquisição de dois terrenos que posteriormente venderia à C.A., tendo celebrado dois contratos de promessa de compra e venda com a C.A., sendo essa importância considerada como adiantamentos por conta de lucros, nos termos dos art. 6°, al. h) e 7°, n.° 4 do CIRS;

c) Esta qualificação de adiantamento de lucros daquela quantia de 77.150.000$00 (51.000.000$00 + 26.150.000$00) não tem fundamento pois o falecido Joaquim Álvaro não recebeu quaisquer lucros;

d) As quantias foram entregues, por razões de ordem negocial, para a celebração de dois negócios a favor da C.A.;

e) Tais negócios não se concretizaram e aquelas quantias foram rein-tegradas na sociedade;

f) Conclui -se, assim, que nada permitia aplicar a presunção do art. 7°, n.° 4 do CIRS, já que é evidente que Joaquim Álvaro não recebeu quaisquer quantias a título de lucros ou adiantamentos de lucros, pelo que espera que se reconheça como ilidida tal presunção.

g) E terminou, pedindo que a acção seja julgada procedente por provada, declarando -se que Joaquim Álvaro, marido que foi da autora, não recebeu as quantias de 51.000.000$00 e de 26.150.000$00 a título de lucros ou de adiantamento de lucros.

Sendo estes os factos, há que concluir que a competência, em razão da matéria, cabe não aos Tribunais Tributários mas sim ao Tribunal Comum, no caso concreto, ao Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital.

Page 47: Decisões STA

92 93

Na verdade, a competência é deferida aos Tribunais Tributários nos casos de acções ou recursos contenciosos que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas fiscais, de relações em que esteja em causa uma relação jurídico -tributária, uma relação estabelecida entre a Administração Tributária, agindo como tal, no exercício de competên-cias no domínio tributário e as pessoas singulares ou colectivas e em que a questão a dirimir exija a aplicação e interpretação de normas de direito fiscal.

No caso concreto, não está em causa qualquer relação jurídico--tributária, não está em causa qualquer questão inserida no âmbito fiscal, qualquer relação entre a A. e a Administração Fiscal.

In casu, quer a causa de pedir (esta é, de acordo com a teoria da subs-tanciação consagrada no nosso direito, o facto jurídico de que emerge o direito do autor; é o facto jurídico invocado para obter a pretensão deduzida — cf. Alberto dos Reis em Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. III, pág. 121 e Manuel Andrade em Noções Elementares de Proc. Civil, pág. 259) quer o pedido (o efeito jurídico pretendido pelo autor, a providência jurisdicional requerida — cf. Manuel Andrade em ob. cit., pág. 297) integram -se numa relação jurídica de natureza privada — saber se aquelas quantias, depositadas pela sociedade C.A., em conta do falecido Joaquim Álvaro não foram recebidas como lucros ou adiantamento de lucros.

Com efeito, a questão que é colocada na p. i. reconduz -se ao que ocorreu entre a sociedade C.A. e Joaquim Álvaro e consiste em saber a que título foram depositados na conta do falecido aquelas quantias, afirmando a A. que não foram lucros nem adiantamentos de lucros, mas quantias que se destinavam à celebração de um negócio a favor da sociedade e que foram, por não ter sido concretizado, restituídas à sociedade.

E o pedido encontra -se na sequência do que foi alegado como causa de pedir — que se declare que Joaquim Álvaro não recebeu as quantias a título de lucros ou adiantamentos de lucros.

Com tal pedido, o que a A. pretende é uma decisão que reconheça a inexistência do facto presumido, ou seja, sendo o facto presumido o de que o marido da requerente recebeu aquelas quantias a título de lucros ou de adiantamentos de lucros, a decisão pretendida é a de que o marido da requerente não recebeu tais quantias a título de lucros ou de adiantamentos de lucros.

Aqui, nestes autos, não se impugna a liquidação do imposto, não se pede que se declare ilidida a presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS — apenas se pede a declaração de inexistência do facto pre-sumido.

Com a presente acção, a A. quer obter uma decisão judicial que declare que seu falecido marido não recebeu aquelas quantias a título de lucros, para que, com ela, possa impugnar, em sede tributária, a presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS.

E tal decisão encontra plena justificação, porquanto tal presunção estabelecida naquele art. 7º, n.° 4 (ali considera -se que os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem -se feitos a título de lucros ou adiantamentos dos lucros) só pode ser ilidida, como se determina no art. 7°, n.° 5 do CIRS (norma que não enferma de inconstitucionalidade — Acórd. do Tribunal Cons-

titucional n.° 45203 de 14/10/2003) com base em decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Direcção -Geral das Contribuições e Impostos.

Trata -se, portanto, de uma presunção que, embora admitindo prova em contrário (e esta só se faz provando o contrário do presumido — cf. art. 350°, n.° 2 do C.C. e Antunes Varela na RLJ, 122° -218) não pode ser realizada por qualquer meio de prova no processo de impugnação no Tribunal Tributário.

E que o pedido se reconduz à declaração de que o referido Joaquim Álvaro não recebeu aquelas quantias a título de lucros ou adiantamento de lucros (e não também à declaração de ilisão da presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS) não sofre qualquer dúvida se tomarmos em consideração que na petição inicial se tem de considerar uma parte em que o autor exprime a situação concreta e outra em que o autor formula ou declara a providência requerida; aquela é a narração e esta é a conclusão; naquela contém -se a causa de pedir e nesta o pedido (cf. Alberto dos Reis em Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. II, pág. 349 a 365).

Assim, como a acção não emerge de qualquer relação jurídico--tributária, nela se pretendendo apenas que se reconheça o facto de as quantias não serem lucros, não se pedindo a apreciação e aplicação de qualquer norma de direito fiscal, nem de qualquer acto integrante de qualquer relação jurídico -tributária, nem se decide qualquer ques-tão de natureza tributária, tem, portanto, de correr termos no Tribunal Comum.

Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Conflitos em revogando a decisão recorrida, conceder provimento ao agravo, julgando competente o Tribunal Judicial da comarca de Oliveira do Hospital.

Sem custas.Lisboa, 6 de Abril de 2006. — Artur José Alves Mota Miranda (re-

lator) — António Samagaio — José Vitor Soreto de Barros — Madeira dos Santos — Costa Reis.

Acórdão de 26 de Abril de 2006.

Assunto:

Reversão de prédio expropriado. Pedido de adjudicação.

Sumário:

Após a reforma do Contencioso Administrativo, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004, cabe aos Tribunais Adminis-trativos o julgamento da acção de adjudicação do prédio, autorizada que seja a sua reversão.

Processo n.º 1/06 -70.Requerente(s): Maria Salomé da Cruz Quaresma Elias e Zelinda da

Cruz Quaresma, no Conflito Negativo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém e os Tribunais Administra-tivos e Fiscais em que é recorrido o Estado Português.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Políbio Henriques.

Page 48: Decisões STA

94 95

Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos:1. Maria Salomé da Cruz Quaresma Elias casada, residente no Bairro

l de Maio, n° 145, em Sines e Zelinda da Cruz Quaresma, casada, resi-dente no lugar da Lagoa Grande, Relvas Verdes, freguesia de Santiago de Cacém, deduziram no Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém, contra o Estado Português, pedido de adjudicação do prédio rústico denominado “Courela do Pinhal”, sito na freguesia e concelho de Sines, inscrito na matriz rústica sob o art. 29 da Sec. B” e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n° 325, a fls. 18 do Liv B -20 e inscrito a favor do Gabinete da Área de Sines.

Alegaram, no essencial, que o prédio em causa foi expropriado, mas porque nunca foi usado para o fim que determinou a declaração de uti-lidade pública, requereram e acabaram por obter a reversão do imóvel, determinada por despacho do Secretário de Estado do Ordenamento do Território, proferido em 10 de Dezembro de 2003.

Não foi deduzida oposição.Em 7 de Julho de 2004 foi proferido despacho que julgou verificada

a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e absolveu o requerido da instância.

As requerentes agravaram do despacho, sendo que o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 6 de Outubro de 2005, confirmou o decidido na 1ª instância.

1.1. Inconformadas, as requerentes recorrem desta última decisão para o Tribunal dos Conflitos, apresentando alegações com as seguintes conclusões:

1ª - O acórdão recorrido não conhece, esclarece nem fundamenta as questões suscitadas no n° IV — 3, als. a) e b) das presentes alegações, nem tomou qualquer posição donde resulte a improcedência das con-clusões que aí lhe foram apresentadas.

2ª - O art. 1° da Lei n° 4 -A/2003, de 19.02, ao declarar que “Os arts. 5º (da Lei 13/2002), 74°, n°s 1, 2, 3 e 77° da Lei 168/99 passam a ter a seguinte redacção” que expressou com linhas ponteadas (…..), em branco, portanto, só pode ter querido eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por essas linhas ponteadas;

3ª - Qualquer outro entendimento terá que ser fundamentado em norma legal ou princípio geral de direito - de hermenêutica jurídica, consagrado pelo ordenamento jurídico, “elaborado” pela doutrina mais prestigiada e perfilhado pela jurisprudência mais representativa, questões sobre as quais o despacho agravado faz silêncio total;

4ª - A redacção introduzida pela Lei 4 -A/2003, do art. 77°, n° 1, da Lei n° 168/99, de 18.09, ou “apaga”, elimina ou oblitera a redacção constante da Lei 13/2002, de 19.02 ou apaga, elimina ou oblitera di-rectamente a redacção da Lei 168/99, quanto ao art. 77º, n° 1, que, em tal perspectiva, deixaria de existir.

5ª - Se tivesse ocorrido a segunda hipótese prevista na conclusão anterior - o que não aconteceu, salvo melhor opinião -, então haveria que recorrer à lei geral para solucionar a questão, isto é, ao art. 44° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e à Lei dos Tribunais Judiciais (n° 3/99, de 10.12), o qual nada diz sobre a competência na matéria em causa.

6ª - A revogação da norma revogatória antes da entrada em vigor desta, mantendo os seus dispositivos, mas esvaziando -os de todo o seu

conteúdo, traduz uma vontade e uma intenção claras do legislador de recuperar a lei anterior, ou seja, de repristiná -la.

7º - Ora, do regime estatuído pelos diplomas referidos nas als. ante-riores, sempre resulta que seriam os Tribunais comuns - e não o foro administrativo -, os componentes para apreciar e julgar o litígio em presença.

8ª - A Lei 13/2002, de 19.02, que nos termos do seu art. 9°, era suposto entrar em vigor um ano após a sua publicação, isto é, às 24 horas do dia 19.02.2003 (art. 279° al. c) do Código Civil) foi alterada, quanto à data da entrada em vigor prevista no seu art. 5°, pela Lei 4 -A/2003, de 18.03, que determinou que a vigência daquele regime (da Lei 13/2002) se iniciara em 01.01.2004.

9ª - A Lei 13/2002, de 19.02 — e concretamente o seu art. 5° - não alterou o dispositivo legal constante do art. 77º, n° 1 da Lei 168/99, de 18.09, porque antes de entrar em vigor em 01.01.2004 foi revogada pela Lei.4 -A/2003, de 19.02, que sobre a mesma matéria obliterou as alterações introduzidas pelo art. 5° da Lei 13/2002, de 19.02 e represtinou a versão original dos arts. 74º e 77° da Lei 168/99, de 18.09 (Código das Expropriações).

10ª - Em 01.01.2004, já os arts. 5° e 9° da Lei 13/2002 (sendo que o art. 7º é estranho à questão em apreço) estavam revogados pelo art. 1° da Lei 4 -A/2003, pelo que tal regime nunca entrou em vigor, uma vez que a Lei 4 -A/2003 é posterior à Lei 13/2002 e “lex posterior derrogat priori”.

11ª - Daí que o regime vigente na matéria em causa seja — e sempre tenha sido, salvo o devido respeito -, o estatuído pelo n° 1 do art. 77° da Lei 168/99, acrescendo que é manifestamente perceptível, que a intenção do legislador, contida na Lei 4 -A/2003, reside na ideia de ressuscitar a Lei revogada (art. 77º, n° 1 da Lei 168/99);

12ª - O entendimento perfilhado pelo acórdão agravado tornaria impos-sível o cumprimento pelo Tribunal das diligências de natureza probatória — designadamente por inspecção judicial e por via pericial previstas pelo art. 78° da Lei 168/99, de 18.09.

13ª - Curiosa, mas sugestivamente, a ilustre Magistrada do Ministério Público (ver fls. 56) não deduziu qualquer oposição contra a pretensão das ora recorrentes, pelo que a tese que veio a defender nas suas alega-ções apresentadas em 12.01.2005, resulta, de todo, e insanavelmente contraditória;

14ª - O acórdão agravado está inquinado das nulidades previstas pelos arts 716°, nº 1, 668°, n° 1, als. b) e d) — 1ª parte, e 666°, n° 3 do CPC, pelo que o mesmo deve ser declarado nulo, com os legais efeitos;

15ª - O acórdão agravado violou ainda, para além das referidas no n° anterior, as normas sancionadas pelos arts. 158°, 669°, nºs 1, al. a) e 2, al. b) do CPC, 279°, al. c) do Cód. Civil, Lei n° 4 -A/2003, de 19.02 — e concretamente o art. l° -, e 205° da CRP;

16ª - Deve, pois, ser revogado o douto acórdão recorrido, com todos os legais efeitos e declarado competente para julgar o pleito sub -judice, o Tribunal Comum da área da situação do prédio ou da sua maior extensão, que é o da comarca de Santiago do Cacém.

1.2. Contra -alegando, o Senhor Procurador - Geral Adjunto defende a manutenção da decisão.

Cumpre decidir.2. Decorre do exposto que o presente recurso jurisdicional, interposto

ao abrigo do art. 107°, nº 2 do 2 do C.P. Civil, é um meio de prevenção

Page 49: Decisões STA

96 97

de um conflito futuro, através de uma decisão deste Tribunal que fixe, em definitivo, se a competência para a causa é do foro civil ou do foro administrativo.

E, sendo este um Tribunal dos Conflitos, a questão de saber qual é a ordem de tribunais competente é a única que lhe cumpre conhecer. Não lhe compete apreciar qualquer outra questão relevante noutra sede.

Dito isto, vejamos.O Tribunal da Relação de Évora confirmando despacho proferido

no Tribunal da Comarca de Santiago de Cacém, julgou incompetente o tribunal judicial para conhecer do pedido de adjudicação de prédio que havia sido expropriado e cuja reversão tinha sido já declarada a favor das autoras, por a causa pertencer ao âmbito da justiça administrativa.

As ora recorrentes defendem que são os tribunais judiciais comuns os competentes para a causa.

Adiantando, diremos, que pelas razões que passamos a expor, não lhes assiste razão.

Nos termos do disposto no art. 66° do C.P. Civil “são da competência dos tribunais judiciais, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

E, de acordo com o art. 1º/1 do ETAF aprovado pela Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os competentes para administrar a justiça “nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”

Importa, pois, saber se a competência para a causa está, ou não, cometida aos tribunais da ordem administrativa.

Ora, nos termos previstos no art. 212°/3 da Constituição da República Portuguesa, compete, aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Este preceito constitucional consagra uma reserva material de jurisdi-ção atribuída aos tribunais administrativos. O texto, porém, abre espaço para perplexidade, quanto a saber se a reserva é absoluta ou relativa. Sendo absoluta, implicaria, em sentido negativo, que os tribunais ad-ministrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, em sentido positivo, que só eles poderão julgar tais questões.

É hoje dominante, na Doutrina, a interpretação no sentido que a norma consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do legislador ordinário a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo cons-titucionalmente definido, segundo o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa deve corresponder à justiça administrativa em, sentido material (cfr., neste sentido, Vieira de Andrade, “A Justiça Administra-tiva“, 4ª ed., p. 107 e segs., Sérvulo Correia, “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes”, 1995, p. 25, Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso da responsabilidade” in CJA, n° 16, pp. 35 -36 e Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA. nº 24, p. 3 e segs.).

Esta linha de leitura, que não é repelida pelo texto - que não diz ex-plícita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas - e assenta na ideia de que a finalidade principal da norma é a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos é, também, acolhida pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional [cfr.,

entre outros, os acórdãos n° 372/94 (in DR, II Série, n° 204, de 3 de Setembro de 1994), 347/97 (in DR, II Série, n° 170, de 25 de Julho de 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003] e perfilhada pela Jurispru-dência do STA (vide, por exemplo, os acórdãos do Pleno de 1998.02.18. — rec. n° 40247 e da 1ª Secção de 2000.06.14 — rec. n°45 633, de 2001.01.24 — rec. n° 45 636, de 2001.02.20 — rec. n° 45 431 e de 2002.10.31 — rec. n° 1329/02).

Não se descortinam razões para abandonar este entendimento.Por outro lado, temos como seguro que, por força daquela norma

constitucional, a jurisdição administrativa e fiscal é, hoje, uma jurisdição obrigatória e que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns dessa jurisdição (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série, n° 48 -RC, de 21 de Outubro de 1988, acta n° 46 da CERC, 1517 e segs e o citado acórdão 372/94 do Tribunal Constitucional), com a relevante consequência de que o conhecimento de uma questão de natureza administrativa pertence aos tribunais da ordem administrativa se não estiver expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição (cf. Vieira Andrade, in “A Justiça Administrativa” 4ª ed., p. 112 e jurispru-dência aí citada)

Dito isto, de regresso ao caso sujeito, uma vez que há lei expressa a atribuir a competência, a questão resume -se a determinar, de acordo com os melhores critérios hermenêuticos, qual é o sentido prevalente dessa lei, sendo que, seja qual for o resultado, a opção do legislador ordinário, por não por em crise o núcleo essencial da reserva material da jurisdição administrativa, não ofende os ditames da Constituição.

Ora, o artigo 77°/1 do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n° 168/99 de 18 de Setembro, dizia, a respeito: “autorizada a reversão, o interessado deduz, no prazo de 90 dias a contar da data da notificação da autorização perante o Tribunal da Comarca da situação do prédio ou da sua maior extensão o pedido de adjudicação...”

Por força do artigo 5° da Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Fiscais e Administrativos e com efi-cácia diferida para um ano depois da respectiva publicação, foi alterada a redacção dos artigos 74° e 77° do Código das Expropriações.

Passamos a transcrever o citado preceito da Lei 13/2002:

Artigo 5ºAlterações ao Código das Expropriações

Os artigos 74° e 77° do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n° 168/99, de 18 de Setembro, passam a ter a seguinte redacção:

«Artigo 74°1 – […]2—[...]3—[...]4 — Se não for notificado de qualquer decisão no prazo de 90 dias a

contar da data do requerimento, o interessado pode fazer valer o direito de reversão no prazo de um ano, mediante acção administrativa comum a propor no tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão.

5 — Na acção prevista no número anterior, é cumulado o pedido de adjudicação, instruído com os documentos mencionados no artigo 77°,

Page 50: Decisões STA

98 99

que o tribunal aprecia, seguindo os trâmites dos artigos 78° e 79°, no caso de reconhecer o direito de reversão.

Artigo 77°1 - Autorizada a reversão, o interessado deduz, no prazo de 90 dias a

contar da data da notificação da autorização, perante o tribunal admi-nistrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão, o pedido de adjudicação, instruindo a sua pretensão com os seguintes documentos:

a) [...]b [...]c […]d [...]e [...]2 -[...]»Porém o art. 5° da Lei nº 13/2002, passou a ter a seguinte redacção,

introduzida pelo art. 1º da Lei n° 4 -A/2003, de 19 de Fevereiro que, transcrevemos, de seguida, na parte que interessa:

Artigo 1°Os artigos 5º, 7° e 9º da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, passam

a ter a seguinte redacção:«Artigo 5°

[...]Artigo 74º

[…]1 -[...]2 -[...]3 -[…]4 - Se não for notificado de decisão favorável no prazo de 90 dias a

contar da data do requerimento, o interessado pode fazer valer o direito de reversão no prazo de um ano, mediante acção administrativa comum a propor no tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão.

5—[...]Artigo 77º

[...]1 – […]a) […]b) […]c) […]d) […]e) […]2 - […]Temos, assim, que, nesta sucessão normativa, a redacção do art. 77°/1

do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n° 168/99, de 18 de Setembro, sofreu apenas uma alteração. A que lhe foi introduzida pelo art. 5º da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro. É certo que este diploma, que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, viu alterada a redacção do seu art. 5º, esta modificada pelo

art. 1º da Lei n° 4 -A/2003, de 19 de Fevereiro. Contudo, essa mudança reportou -se, única e exclusivamente, ao nº 4 do art. 74° do Código da Expropriações.

Quanto a isto não há lugar a duas interpretações. Não tem qualquer consistência o argumento das recorrentes no sentido que a utilização de linhas ponteadas, no último dos diplomas acima transcritos, significa a vontade do legislador em eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por essas mesmas linhas ponteadas, fazendo represtinar a re-dacção anterior. É manifesto que, como é recorrente fazer, por economia e para dar evidência à alteração, o legislador da lei nova, dispensou -se de repetir o conteúdo das normas que escaparam à inovação. As linhas ponteadas estão em vez das anteriores redacções da lei antiga e que se mantiveram inalteradas. Não significam o apagamento integral do conteúdo das normas anteriores. Se a intenção do legislador fosse a de eliminar conteúdos, teria dito expressamente que os revogava. E não há qualquer subsídio interpretativo que sugira que a vontade do legislador da Lei 44/ -A/2003, tivesse sido a de retomar a competência do foro ju-dicial. Muito menos se vê razão para considerar que o legislador tivesse lançado mão das linhas ponteadas como técnica revogatória, improvável e bizarra, chegando ao inesperado e insólito de, suprimindo o conteúdo, sem eliminar a forma, deixar o artigo na letra da lei, com a persistência de todos os seus números e alíneas, seguidos de... nada.

Portanto, a redacção do art. 77°/1 do Código das Expropriações, hoje vigente e já em vigor à data da dedução do pedido de adjudicação era a seguinte, na parte que interessa

“Autorizada a reversão, o interessado deduz, no prazo de 90 dias a contar da data da autorização, perante o tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão, o pedido de adjudicação (...)”.

Deste modo, a competência para apreciar a causa é dos tribunais administrativos.

Neste sentido se pronunciou já este mesmo Tribunal dos Conflitos - acórdãos de 2005.11.29 - proc. n° 17/05 e de 2006.03.02 — proc. n° 20/05.

3. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confir-mando o acórdão recorrido que declarou competentes para a acção os tribunais administrativos.

Sem custas.Lisboa, 26 de Abril de 2006. — António Políbio Ferreira Henriques

(relator) — António Rodrigues da Costa — António Bento São Pedro —Carlos Alberto Bettencourt de Faria — Fernanda Martins Xavier e Nunes.

Acórdão de 26 de Abril de 2006.

Assunto:

Competência dos Tribunais Administrativos. Acção de indem-nização. Acto de gestão pública.

Page 51: Decisões STA

100 101

Sumário:

Nos termos da alínea b), nº 1, do artigo 51.º do ETAF de 1984, compete aos Tribunais Administrativos de Círculo o conhecimento de uma acção em que o A. pede a condenação do R. Município pelos prejuízos sofridos com a construção da variante à EN n.º 222.

Processo n.º 2/06 -70.Requerente: António Mendes de Freitas Carvalho no conflito negativo

de jurisdição, entre o Tribunal Judicial de Castelo de Paiva e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. António Fernando Samagaio (por ven-cimento e sorteio).

Acordam no Tribunal dos Conflitos.António Mendes de Freitas Carvalho intentou no Tribunal Judicial da

Comarca de Castelo de Paiva acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra o Município de Castelo de Paiva, “pedindo que, com fundamento na construção, sem o seu consentimento, de duas caleiras para o escoamento de águas pluviais levada a cabo pelo Réu, no decurso da construção da Variante à Estrada Nacional a.° 222, no Lugar de Fundões, freguesia de Sobrado, fosse condenado:

a) a reconhecê -lo como proprietário do prédio que identificou no artigo 1º da sua petição inicial;

b) retirar as caleiras colocadas nesse prédio, repondo -o no estado, em que se encontrava antes da colocação das caleiras; e

c) indemnizá -lo pelos prejuízos sofridos, em quantia a liquidar em execução de sentença.”

O Réu contestou por impugnação, alegando que as obras em causa tinham sido realizadas com o consentimento do Autor e que eram neces-sárias na construção da Variante à Estrada nacional nº 222, e, por outro lado, apresentou reconvenção, pedindo que fosse constituída a seu favor uma servidão administrava de passagem de águas ou de aqueduto.

O Autor deduziu réplica.Em audiência preliminar, foi suscitada a excepção de incompetência

em razão da matéria - incompetência absoluta.O Tribunal Judicial da Comarca de Castelo de Paiva julgou -se in-

competente para conhecer do pedido da acção e, em consequência, absolveu o réu da instância.

Na subsequente acção interposta pelo autor no Tribunal Administra-tivo e Fiscal de Penafiel, este Tribunal também se declarou material-mente incompetente para conhecer do pedido constante dos autos, tendo sido, em conformidade, o Município de Castelo de Paiva absolvido da instância.

Ambas as decisões transitaram em julgado.O Autor vem requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição,

por forma a ser declarada a jurisdição competente para conhecer da causa.

Apresentadas as duas decisões reciprocamente opostas, provindas de tribunais de jurisdições distintas - jurisdição comum e jurisdição admi-nistrativa e -, em que cada uma declina a competência própria e assevera

a competência decisória da outra jurisdição quanto ao conhecimento da mencionada acção declarativa, cumpre decidir.

Vejamos.À face do E.T.A.F. de 1984, a competência dos tribunais administra-

tivos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes restringe -se aos casos em que esta deriva de actos de gestão pública, como decorre do preceito no art. 51º, n.° 1, alínea h), daquele diploma.

Assim, para a resolução do presente conflito negativo de jurisdição, impõe -se qualificar, como de gestão pública ou de gestão privada, os actos praticados pelo Réu (Município), que alegadamente se apresentam como causadores de prejuízos ao Autor.

Sobre a questão da qualificação dos actos da Administração Pública, o Tribunal dos Conflitos, no Acórdão de 04.04.2006 (proferido no pro-cesso n.° 8/03), distinguiu, na esteira de jurisprudência anteriormente perfilhada por este mesmo Tribunal, actos de gestão pública dos actos de gestão privada.

Conforme o referido aresto, “actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado”.

E, chamando à colação o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 05.11.1981 (proferido no processo n.° 124), frisou que “a solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado reside em apurar:

- Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado;

- Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, indepen-dentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas”.

Ora, no caso em apreço, a causa de pedir e o pedido formulado têm por fundamento actos imputados ao Município de Castelo de Paiva na sequência da construção de uma estrada denominada “Variante à E.N. 222”, actos que resultaram do exercício de funções de natureza publica, previstas em normas de direito público, e cuja prática ou exer-cício foram influenciados pela prossecução do interesse público, con-substanciado na construção da rede viária.

Assim, ter -se -á que reconduzir os actos imputados ao Réu à qua-lificação de actos de gestão pública, cabendo, como tal, jurisdição administrativa a apreciação do correspondente litígio.

Page 52: Decisões STA

102 103

Pelo exposto, acordam neste Tribunal dos Conflitos em declarar materialmente competente para conhecer e julgar a presente acção a jurisdição administrativa.

Sem custas.Lisboa, 26 de Abril de 2006. — António Fernando Samagaio (relator

por vencimento) — António Políbio Ferreira Henriques — Edmundo António Vasco Moscoso — António Rodrigues da Costa — Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria (vencido conforme projecto que junto).

IAntónio Mendes de Freitas Carvalho intentou acção ordinária no

Tribunal Comum de Castelo de Paiva contra o Município de Castelo de Paiva, pedindo que o réu fosse condenado a reconhecê -lo como proprietário de determinado prédio, retirando as caleiras que aí colocou. Mais pede que seja condenado em indemnização pelos prejuízos que lhe causou, a liquidar em execução de sentença.

O réu contestou e deduziu pedido reconvencional, pedindo que fosse constituída a seu favor uma servidão de natureza administrativa de passagem de águas ou de aqueduto.

O autor deduziu réplica.Em audiência preliminar foi suscitada a excepção de incompetência

em razão da matéria.Conhecendo desta excepção, o referido tribunal julgou -se incompe-

tente para conhecer dos autos, julgando competente para tanto a jurisdi-ção administrativa. Em consequência foi o réu absolvido da instância.

Na subsequente acção interposta pelo autor no Tribunal Administra-tivo e Fiscal de Penafiel entendeu -se que a competência material para conhecer dos autos pertencia aos Tribunais Judiciais, absolvendo -se o réu da instância.

Recorreu o autor para este Tribunal, apresentando nas suas alegações de recurso a conclusão de que o competente para os presentes autos é o Tribunal Judicial de Castelo de Paiva.

O M° P° no seu parecer entende que o autor não invocou qualquer relação jurídica administrativa, uma vez que unicamente alega como fundamento da sua pretensão a violação pelo réu do seu direito de propriedade.

Corridos os vistos legais cumpre decidir

IIOs factos a atender são os articulados constantes de fls. 7 e 24.

IIIApreciando1 As entidades públicas tanto podem agir de acordo com as normas

de direito público que regem as suas atribuições e as competências que lhe são atribuídas para as prosseguir — o direito administrativo -, como podem actuar de acordo com o direito privado, à semelhança de qualquer outra pessoa colectiva.

No primeiro caso são o sujeito activo ou passivo de relações jurídicas administrativas e no segundo serão igualmente sujeito activo ou passivo, mas de relações jurídicas privadas.

É a titularidade duma relação jurídico -administrativa ou de uma relação jurídico -privada o que separa a actuação de direito público ou de direito privado duma entidade administrativa. O critério da gestão pública dos interesses que lhe cumpre assegurar não é o decisivo, dado que esse objectivo pode ser alcançado através do recurso a normas unicamente de direito privado.

2 Utilizando o critério da referida natureza das relações jurídicas, aos tribunais comuns pertence julgar as causas segundo o direito pri-vado e aos tribunais administrativos julgá -las de acordo com o direito administrativo, conforme a relação jurídica litigiosa dimane de um ou de outro dos referidos normativos.

Expressiva a este respeito é á observação de Oliveira Ascensão a propósito das vias que se abrem ao particular no âmbito do direito do urbanismo — Direito do Urbanismo 340 a 342 -:

“ - Ou invoca o próprio direito de propriedade e tem opção entre impugnar o acto administrativo ou defender directamente a propriedade perante os tribunais comuns.

Ou invoca um direito ou interesse legítimo criado pela lei adminis-trativa, para além do conteúdo da propriedade. O caminho que se lhe abre é então o da acção administrativa.”.

3 No caso em apreço, o autor limita -se a defender a sua proprie-dade.

É só esta que invoca. Da mesma forma que o faria se o autor do acto ilí-cito — a construção em terreno alheio - fosse um simples particular.

Não vem invocar qualquer direito ou interesse legítimo que lhe sejam facultados pela lei administrativa.

E, recorde -se que para a qualificação de um litígio há tão só que atender à forma como o autor o descreve na petição inicial.

O facto das caleiras em questão resultarem da construção duma estrada, que é uma actuação regida pelo direito público, não significa que sejam absorvidas, no seu regime pelo da dita construção. O direito administra-tivo e privado podem apenas conjugar -se na realização de determinado interesse público, sem que isto signifique a perda de autonomia de um deles. Da mesma forma que o réu município optou, para fazer a estrada em apreço, não pela expropriação do autor, mas sim pela compra de terrenos que a este pertenciam. Como o faria qualquer particular.

4 Deste modo, configura -se como competente para os autos a juris-dição comum - cf. os art°s 4º n° 1 do ETAF, 2° n° 2º e 37° n°s 2 e 3 do CPTA -.

Pelo exposto acordam em julgar competente para conhecer da matéria dos autos os tribunais judiciais.

Sem custas.a) Bettencourt de Faria

Acórdão de 26 de Abril de 2006.

Assunto:

Nacionalização. Acção de indemnização. Competência dos Tribunais administrativos.

Page 53: Decisões STA

104 105

Sumário:

Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea h), do ETAF de 1984, compete aos Tribunais Administrativos de Círculo o co-nhecimento de uma acção em que o A. pede a condenação do R. Estado no pagamento de uma indemnização decor-rente da nacionalização de empresas em que era titular de acções.

Processo n.º 5/02 -70.Requerente: Société Financière Commerciale et d’ Affrètement Inc. —

SOFICA, no Conflito Negativo de Jurisdição, entre o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa — 3.ª Vara – 2.ª Secção e os Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Edmundo Moscoso.

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:1 – SOCIÉTÉ FINANCIÈRE COMMERCIALE ET D`AFFRÈTEMENT

INC. - SOFICA, id. a fls. 2, intentou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção declarativa, na forma ordinária, contra o ESTADO POR-TUGUÊS, alegando para o efeito e em síntese o seguinte:

Em 1975 era titular de várias acções da SACOR e da CIDLA, empre-sas estas que foram nacionalizadas pelo DL 205 -A/75, de 16 de Abril.

Os primeiros valores provisórios atribuídos a essas acções foram fixados pelo Despacho Normativo nº 122/79, de 25/5 completados e corrigidos posteriormente pelos DN nº 145/80, de 29/04 e 114/84, de 26 de Maio, a que se seguiu o DN nº 159/84, de 20/05 que fixou para as acções SACOR os valores provisórios de 4.950$00 (acções ao portador) e 4.745$00 (acções nominativas) e de 2.876$00, para as acções CIDLA.

Por despacho do Secretário de Estado das Finanças de 04.07.85 foi determinado que a indemnização pelas aludidas nacionalizações fosse integralmente paga pela entrega de títulos da classe I (Obrigações do Tesouro de 1977 - Nacionalizações e Expropriações), decisão essa que veio ao encontro de pretensão que a A. formulara.

Antes porém de receber aqueles títulos da classe I, em 18.09.85 teve de subscrever, por exigência do R., uma declaração na qual, depois de referir o recebimento da indemnização derivada de todas as acções que possuía, afirmava “que se considerava totalmente indemnizada, quer a título de indemnização provisória quer a título de indemnização definitiva, nada mais tendo a receber ou reclamar do Estado Português”.

Exigência essa que lhe foi posta como condição sine qua non do recebimento da indemnização em causa.

Esta declaração apenas foi assinada pela A. no pressuposto de que o valor definitivo a atribuir às acções da SACOR e CIDLA não seria substancialmente diferente do valor fixado provisoriamente pelo Despa-cho Normativo nº 159/84 e que serviu de base à indemnização recebida pela A. e à emissão daquela declaração.

Todavia, através do Despacho normativo nº 80/88, de 1/10, o R. veio a atribuir às acções daquelas empresas valores definitivos (6.891$50 e 3.516$50, respectivamente) que ultrapassavam largamente os valores provisórios acima indicados que serviram de base ao cálculo da indem-nização recebida pela A.

Por tal motivo em 23.11.88 a A. dirigiu -se ao Secretário de Estado das Finanças e do Tesouro solicitando a correcção do quantum indem-nizatório que lhe havia sido atribuído, actualizado com base nos novos valores definitivos entretanto fixados, o que não mereceu acolhimento por parte daquela entidade, como se alcança do despacho do Ministro das Finanças de 25/02/89 (doc. nº 7).

Termina formulando o seguinte pedindo:“a) - Deve ser declarada nula a declaração supra identificada no

artº 10º da petição inicial;b) - Em alternativa, deve a mesma ser anulada ou julgada resol-

vida;c) - Em qualquer caso, e por consequência, deve condenar -se o R.

a pagar à A. a quantia de 298.005.592$00 correspondente à diferença entre o valor da indemnização a que, nos termos dos pertinentes des-pachos normativos de fixação dos valores definitivos das acções de que era titular, tem direito, acrescida de juros de mora...”.

2 – No despacho saneador - decisão de 06.06.2001 - o Juiz da 3ª Vara Cível da Comarca de Lisboa decidindo excepção que o R. invocara na contestação, julgou aquele tribunal materialmente incompetente em razão da matéria para o conhecimento da acção e em consequência absolveu o R. da instância.

Decisão essa que viria posteriormente a ser confirmada, em sede de recurso jurisdicional, pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 14.02.2002 (fls. 352/355).

3 – Do acórdão da Relação de Lisboa, interpôs a A., ao abrigo do dis-posto no artº 107º nº 2 do CPC, recurso que dirigiu ao Tribunal de Confli-tos, tendo em sede de alegações formulado conclusões (fls. 360/370 cujo conteúdo se reproduz) que e em termos úteis se resumem ao seguinte:

I – A competência do Tribunal em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta.

II – O pedido nuclear formulado nos presentes autos consiste na declaração de invalidade e/ou anulação ou resolução de uma decla-ração particular de exoneração do dever de indemnizar, emitida, por exigência da Administração, por ocasião da dação em pagamento à aqui recorrente de títulos da dívida pública de determinada classe, com a garantia de que os valores dos referidos títulos seria substancialmente equivalente aos valores indemnizatórios definitivos que viessem a ser fixados para as acções de que a interessada era titular – o que não veio a verificar -se;

III – Com fundamento em tal declaração negocial privada, a Adminis-tração recusou -se, subsequentemente, a pagar à impetrante o diferencial entre o valor dos referidos títulos e da indemnização apurada com base nos valores definitivos fixados para as referidas acções;

IV – Por conseguinte, não se está aqui em presença de um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, pelo que ao foro administrativo falece competência para conhecer da causa, devendo a mesma ser julgada pelos Tribunais comuns.

4 – De modo diferente argumenta o R. Estado na sua alegação, onde formula a seguinte conclusão:

Tratando -se de actos em que o Estado actua no exercício do seu “jus imperi” (actos de gestão pública), como se depreende da relação material controvertida, em que na acção intentada pela recorrente contra o Estado se reporta a um processo de nacionalização de bens questionando diferenças do valor da indemnização a que se julga com

Page 54: Decisões STA

106 107

direito, o tribunal competente para dirimir tais matérias é o Tribunal Administrativo de círculo (al. h) do nº 1 do artº 51º do ETAF.

Cumpre decidir:5 – Vem interposto, ao abrigo do art. 107º, nº 2 do C. P. Civil, recurso

do Acórdão da Relação de Lisboa de 14.02.2002 (fls. 352/355) que, confirmando anterior decisão proferida pelo Juiz da 3ª Vara Cível da Comarca de Lisboa (fls. 313/315) considerou o Tribunal Cível incom-petente em razão da matéria para conhecimento da presente acção e em conformidade absolveu o R. Estado da instância.

Considerou para o efeito a decisão recorrida que nos presentes autos está em questão um pedido indemnizatório decorrente de um acto de nacionalização.

E, muito embora a A. não ataque o acto da nacionalização, é com base na prática desse acto que se pretende efectivar a responsabilidade civil do Estado.

Considerando que os actos de nacionalização e de atribuição dos montantes indemnizatórios e a sua realização prática, são actos de gestão pública, já que o Estado, ao praticá -los, age no exercício do jus imperii, entendeu -se no Acórdão recorrido que, face ao disposto no artº 51º/1/h) do ETAF, para conhecer a presente acção sobre responsabilidade civil do Estado por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública são competentes os tribunais administrativos de círculo.

Discordando do decidido no acórdão sob recurso, a recorrente alicerça a sua defesa dizendo essencialmente que o “pedido nuclear formulado nos presentes autos consiste na declaração de invalidade e/ou anulação ou resolução de uma declaração particular de exoneração do dever de indemnizar”, já que teria sido com fundamento em tal declaração negocial privada que “a Administração se recusou a pagar à impetrante o diferencial entre o valor dos referidos títulos e da indemnização apurada com base nos valores definitivos fixados para as referidas acções” – cf. cls. II) e III).

A única questão a resolver reside por conseguinte em determinar qual o tribunal competente para julgar a presente acção ou mais precisamente em saber se essa competência pertence à jurisdição comum como sus-tenta a recorrente ou caso contrário, se essa competência pertence à jurisdição administrativa como se decidiu na decisão recorrida.

Nos termos do artº 211º nº 1 da CRP, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição (cfr. ainda artº 18º nº 1 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro e 66º do CPC).

Por sua vez, a competência dos tribunais administrativos, nos termos do estabelecido no artº 212º nº 3 da CRP compreende “as acções e recur-sos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” ou, nos termos do artº 3º do ETAF, aprovado pelo DL 229/96, de 29/11 (aplicável aos presentes autos – artº 9º da Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro que aprovou o novo ETAF, na redacção introduzida pelo artº 1º da Lei nº 4 -A/2003, de 19/02), “incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na Administração da justiça... dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Essas relações jurídicas administrativas são naturalmente reguladas por normas de direito administrativo, ou seja, “normas que regulam as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares no desempenho da actividade administrativa de gestão pública” (cfr. Frei-tas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, pg. 134), com

exclusão de “todas as actividades de gestão privada da Administração Pública, que o Direito Administrativo não regula”.

A “gestão pública” é justamente, no dizer de Freitas do Amaral (obra e pág. citada) “uma expressão que se utiliza no nosso direito para designar a actividade pública da Administração” ou, como entende Marcelo Caetano são “actos de gestão pública” “toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito” (cf. Manual, Vol. II, pág. 1222).

Como tem sido jurisprudência pacífica, nomeadamente do Tribunal de Conflitos (cfr. nomeadamente ac. nº 25/03, de 18/11/04) o saber se estamos ou não perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa ou seja, a determinação da jurisdição competente para decidir a acção, tem de ser aferida em função dos termos em que o A. configurou a acção ou, mais precisamente, face aos termos em que o autor formulou a sua pretensão e os fundamentos em que a sustentou – pedido e causa de pedir.

Como se referiu, discordando do decidido no acórdão sob recurso, como único fundamento discordante a A. limita -se a dizer que o pe-dido nuclear formulado nos presentes autos consiste na declaração de invalidade e/ou anulação ou resolução de uma declaração particular de exoneração do dever de indemnizar, já que teria sido com fundamento em tal declaração negocial privada, que a Administração se teria recusado a pagar -lhe a indemnização pretendida.

Refira -se no entanto que, caso se entendesse que o pedido principal formulado nos autos consiste naquele pedido de declaração de invali-dade, a decisão recorrida teria decidido naturalmente de forma diferente já que nela se entendeu que “a apreciação da questão da invalidade e/ou resolução da declaração negocial em apreço, quando encarada isoladamente, não geraria problemas a nível de determinação da com-petência material: ela caberia, sem dúvida, ao foro comum”.

Só que, face ao alegado na petição inicial, as coisas não podem ser vistas como a recorrente as apresenta.

Desde logo, é a A. que expressamente refere que “em 23/11/88” e nos termos do requerimento de fls. 27, se dirigiu ao Secretário de Estado das Finanças e do Tesouro solicitando a correcção do quantum indem-nizatório que lhe havia sido atribuído, actualizado com base nos novos valores definitivos entretanto fixados, requerimento esse que acabou por ser indeferido por despacho do Ministro das Finanças de 25.02.89 (cf. doc, de fls. 28 a 30 e artº 14º a 16º da petição).

Inconformada, dirigiu “em 17/01/92” nova petição ao Ministro das Finanças onde solicitava a reapreciação do assunto (doc. de fls. 31), pretensão essa que acabou igualmente por ser indeferida por despacho do Sec. de Estado do Tesouro de 01.09.92, onde se considerou que a A. não tinha direito a ser indemnizada de acordo com os valores definitivos publicados pelo Despacho Normativo nº 80/88, de 12 de Setembro (doc. de fl. 37/41 e artº 17 e 18 da petição).

Donde resulta que a A. procurou desde logo, através do recurso à via administrativa, obter a indemnização a que considerava ter direito e que no essencial se resume à diferença entre o montante da indemnização provisória que lhe foi arbitrada e o montante da indemnização definitiva que foi fixada com referência às acções que detinha naquelas sociedades que foram nacionalizadas.

Page 55: Decisões STA

108 109

Só após lhe ter sido negada pelas competentes entidades adminis-trativas a pretendida indemnização, é que a A. resolve lançar mão à presente acção, através da qual e no essencial visa obter o mesmo efeito jurídico – ser ressarcida de determinado montante a que julga ter direito, “correspondente à diferença entre o valor da indemnização a que, nos termos dos pertinentes despachos normativos de fixação dos valores definitivos das acções de que era titular, tem direito”.

Pretender sustentar que o pedido nuclear que formulou na presente acção consiste na declaração de nulidade da declaração que subscreveu e onde declarava que se “considerava totalmente indemnizada, quer a título de indemnização provisória, quer de indemnização definitiva, nada mais tendo a receber ou reclamar do Estado”, não tem qualquer consistência, já que o que a A. pretende é ver satisfeita a sua preten-são relativa ao pagamento do montante da indemnização peticionada, pela qual tem vindo desde há muito a insistir nomeadamente através daqueles requerimentos que dirigiu à Administração e que acabaram por ser indeferidos.

Esse montante deriva precisamente do facto de, por força do despacho normativo nº 80/88, ter sido atribuído às acções de que era titular um valor definitivo de montante superior àquele que anteriormente fora fixado provisoriamente e lhe fora pago a título de indemnização pela nacionalização das aludidas empresas.

É aí – pedido de pagamento do diferencial entre o valor fixado de-finitivamente e o valor que lhe foi pago - que efectivamente reside o verdadeiro pedido ou o pedido principal, ou seja a pretensão que a A. pretende fazer valer.

Formula no entanto o pedido no sentido de ser “declarada nula” aquela declaração que subscreveu, por a A. eventualmente considerar que aquela declaração constitui um obstáculo ou um facto impeditivo do direito ao pagamento da pretendida indemnização. A declaração subs-crita pela A. estará assim e eventualmente conexionada com o pedido de indemnização decorrente do acto de nacionalização.

Esse pedido de declaração de nulidade, só a titulo incidental, caso se venha a revelar necessário, é que terá eventualmente de ser apreciado, já que o que a A. pretende é ver satisfeito o pedido de indemnização. De outro modo o conhecimento isolado do pedido de declaração de nulidade daquela declaração não traria qualquer benefício ou utilidade para a A.

Daí que, a competência do Tribunal tenha de ser aferida em função do pedido indemnizatório formulado pela A.

Ora, no que respeita ao conhecimento do pedido indemnizatório a recorrente não suscita qualquer objecção ao decidido na sentença sob recurso, ao considerar que o conhecimento desse pedido compete aos Tribunais Administrativos.

Diga -se no entanto que a pretendida indemnização decorre, como se referiu, de anterior acto administrativo que nacionalizou aquelas socie-dades, conexionado com os consequentes despachos que fixaram quer a indemnização provisória quer a indemnização definitiva, com referência ao valor fixado às acções das empresas nacionalizadas.

É a própria CRP (cfr. artº 83º) que relega para a lei ordinária a de-terminação dos critérios de fixação da correspondente indemnização derivada da “apropriação pública dos meios de produção” (onde se inclui a nacionalização da empresa em questão nos autos), bem como

as condições e termos em que deverá ser feito o pagamento da indem-nização devida pela nacionalização de bens.

Daí deriva desde logo que as nacionalizações visam a prossecução de interesses exclusivamente públicos ou colectivos, regulados natural-mente por normas que conferem poderes de autoridade à Administração Pública.

É por conseguinte visível e notório que a indemnização peticionada deriva de actos de gestação pública, em que o Estado, através dos seus órgãos ou agentes surge ou actua revestido do “jus imperii”. Toda essa actividade administrativa decorrente das nacionalizações de bens do domínio privado com a consequente fixação das respectivas indemni-zações, foi exercitada ao abrigo ou no âmbito de normas que conferem poderes de autoridade ou seja de normas de direito público.

Formula assim a A. um pedido de indemnização emergente de actos praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, isto é, de actos de gestão pública.

Aliás, a competência para conhecimento das acções fundadas em indemnizações derivadas da nacionalização de empresas sempre tem sido pacificamente aceite pelos Tribunais Administrativos (cf. entre outros os Ac. do STA de 24.03.04, Rec. 112/03 e de 07.03.06, Rec. 488/05).

Estamos pois, perante actuações da Administração Pública que in-tegram o exercício dos seus poderes de autoridade, cujos prejuízos decorrentes dessa actuação tem, naturalmente, de ser dirimidos pelos tribunais administrativos, nos termos do art. 51º, nº 1, al. h) do ETAF de 1984 (aplicável à situação dos autos).

6 – Termos em que ACORDAM os Juízes deste Tribunal de Con-flitos:

a) - Negar provimento ao recurso, declarando os Tribunais Adminis-trativos competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente acção.

b) - Sem custas.Lisboa, 26 de Abril de 2006. — Edmundo António Vasco Moscoso

(relator) — Carlos Alberto Bettencourt de Faria — António Fernando Samagaio — António Artur Rodrigues da Costa — António Bento São Pedro.

Acórdão de 26 de Abril de 2006.

Assunto:

Comissão de serviço de funcionário no ISSS. Regime de di-reito privado (contrato individual da trabalho). Tribunal competente.

Sumário:

I — A competência do tribunal em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, pelo modo como o Autor estrutura a causa — sem

Page 56: Decisões STA

110 111

que para esse efeito releve a prognose acerca do êxito da acção ou seja lícita qualquer indagação incidindo sobre o respectivo mérito.

II — Invocando o Autor um acordo escrito celebrado com o ISSS tendo por objecto o exercício de funções como ad-junto da directora de Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social, no qual eram estabelecidos a remu-neração base que auferia e o subsídio por isenção de horário de trabalho e se remetia para o regime jurídico do pessoal do quadro específico do ISSS (definido como o do contrato individual de trabalho), o regulamento do pessoal dirigente e de chefia e, subsidiariamente, o do contrato individual de trabalho, afirmando ele a natureza laboral da relação que mantinha com o Réu e desconsiderando por completo o lugar de origem nos quadros do Estado, vindo a pedir a respectiva conde-nação no pagamento de diferenças salariais e, sub-sidiariamente, numa indemnização, deve entender -se que, pelo critério exposto em I, o litígio nasce sob a égide de normas de direito privado laboral, e não de direito administrativo, pelo que é o tribunal do trabalho o competente para o conhecimento da acção.

III — A tal conclusão não obsta a circunstância de existir uma decisão da Secretária de Estado a pôr termo à comissão de serviço do Autor (na sequência de uma alteração da regulamentação interna aplicável a possibilitar essa medida, da responsabilidade da mesma entidade), nem a impugnação de ilegalidades a tal decisão que re-dundam em vícios específicos do domínio do direito administrativo, se o Autor não inclui no seu pedido a anulação dessas decisões, afirma que essa matéria á objecto de um recurso contencioso que já interpôs no tribunal administrativo, alega que a decisão de o afastar foi, de facto, do Réu ISSS e não do Secretário de Estado e aceita que a instância possa ser suspensa no tribunal de trabalho a espera da decisão dessa «questão prejudicial».

Processo n.º 6/05 -70.Requerente: José Manuel Milheiriço de Carvalho Chaves, no con-

flito negativo de jurisdição, entre o Tribunal do Trabalho de Leiria e os Tribunais Administrativos e Fiscais

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Simões de Oliveira.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:

-I -JOSÉ MANUEL MILHEIRIÇO DE CARVALHO CHAVES pro-

pôs contra o INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL, no Tribunal do Trabalho de Leiria, acção declarativa que considerou emergente de contrato individual de trabalho.

No saneador, o juiz considerou o tribunal do trabalho incompetente em razão da matéria, por a relação jurídica entre Autor e Réu não configurar

um contrato de trabalho subordinado. Interposto agravo desta decisão, a Relação de Coimbra confirmou -a, decidindo - a menos implicitamente - que o tribunal competente era o tribunal administrativo, em virtude de o Autor se encontrar ligado ao Réu por uma relação jurídica de emprego publico.

O Autor voltou a gravar, desta vez para S.T.J., o qual, sob invocação do art. 107°, nº 2, do C.P.C., veio a decidir não tomar conhecimento do recurso e remeter os autos a este Tribunal de Conflitos, por ser ele o competente para conhecer do agravo.

Nas suas alegações, o recorrente enunciou as seguintes conclusões:“A) Das nulidades do acórdão recorrido1ª - A decisão recorrida não valora os factos alegados nos arts. 1° a

60° da p. i. e 4° a 18° da réplica, que se reproduzem infra e também não conhece da questão de direito, devidamente alegada em que o recorrente estava em comissão de serviço de direito de trabalho, nos termos do Dec--Lei n.° 404/91, de 16/10, constituindo ambas as omissões nulidades da decisão recorrida, violando o art. 688°, n.° 1, al. b) e d), do CPC.

B) Errada interpretação de factos e violação da lei2ª - A decisão recorrida decidiu que a relação jurídica entre o A. e o

R. era direito administrativo, pelo que julgou procedente a excepção de incompetência do Tribunal do Trabalho.

3ª - A competência material de um determinado Tribunal há -de aferir--se de acordo com os termos em que é proposta, atendendo -se ao direito invocado perante o pedido formulado e respectivos fundamentos, que o Autor pretende ver reconhecidos judicialmente, ou seja, pela natu-reza da relação material, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

4ª - Na petição inicial e na resposta à excepção o A. alegou os factos e o direito que caracterizam a sua relação de trabalho com o Réu com uma relação a que é aplicável o direito de trabalho, constituindo essa relação em novos instrumentos jurídicos de contratação e gestão a que os Institutos Públicos vem recorrendo na última década.

5ª - Acresce que o A. não era funcionário público do Estado, mas de um Instituto Público com personalidade jurídica, tendo celebrado com o ISSS um contrato de trabalho subordinado, com isenção de horário, para desempenhar a actividade de gerente, descontando, como regra, para a Segurança Social e não para a Caixa Geral de Aposentações, durante 3 anos, que seria desempenhado em comissão de serviço de direito de trabalho, então prevista e regulada no Dec -Lei n.° 404/91, de 16/10 e actualmente prevista e regulada nos arts. 244º a 248°, do Código do Trabalho.

6ª - Assim, a decisão recorrida qualificou mal a comissão de serviço do recorrente, dado que a qualificou como sendo da função pública enquanto a referida comissão de serviço é de direito de trabalho, dado que o cargo de Adjunto do Director era aplicado o regime jurídico de contrato individual de trabalho, em comissão de serviço, nos termos dos arts. 37º, 38°, n° 1 a n.° 4, dos Estatutos do ISSO aprovados pelo Dec -Lei.n.° 316 -A/2000, de 7/12 e do Regulamento do pessoal dirigente e de chefia (Despacho n.° 11464, DR, II Série, de 30/5).

7ª - Consequentemente, a decisão recorrida violou o art 85°, al. b), da Lei 3/99, de 13/01, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare o Tribunal do Trabalho de Leiria competente, em razão da matéria, ou, se assim não se entender, ordene o prosseguimento dos

Page 57: Decisões STA

112 113

autos para julgamento de modo a fazer prova sobre a relação laboral entre o Recorrente e o Recorrido”.

O R contra -alegou, defendendo a confirmação do julgado.O processo foi aos vistos, cumprindo agora decidir.

- II -Antes de mais, e por se tratar de questão de conhecimento prioritário,

importa tomar posição sobre a arguição de nulidade do acórdão recorrido (conclusão 1ª).

Haveria violação do preceituado nas alíneas b) e d) do art. 668° do C.P.C., em virtude de a Relação “não ter valorado” determinados factos e de não ter conhecido da “questão de direito” de que o recorrente “estava em comissão de serviço de direito de trabalho nos termos do Dec -Lei n°404/91, de 16/10”.

Os tribunais superiores não se têm cansado de afirmar que as nulidades da sentença de que trata o art. 668° do C.P.C. não podem confundir -se com os eventuais erros de julgamento de que a mesma possa enfermar. E que sob a designação de questões cabem apenas as verdadeiras questões submetidas à sua apreciação, nos termos do art. 660°, n°2, do C.P.C. - e não os argumentos e raciocínios desenvolvidos pelas partes, que o juiz não está obrigado a rebater.

Ora, a circunstância de a sentença não valorar (em favor da perspec-tiva do autor, claro) certos factos descritos na p. i. não é susceptível de integrar nulidade, designadamente a tipificada na al. b) do n° 1 do art. 668º do C.P.C.. E não pode haver omissão de pronúncia quando o tribunal se tiver efectivamente debruçado sobre a questão da sua própria competência, embora sem se referir a um dos ângulos argumentativos de uma das partes.

Improcede, deste modo, a arguição de nulidades do acórdão.Prosseguido:Para atingir a conclusão de que o tribunal do trabalho era incompetente

para conhecer da acção, o acórdão recorrido estribou -se numa série de considerandos, que podem resumir -se do seguinte modo:

a) A competência material determina -se em função do pedido do autor, do quid dispuratum;

b) O Autor arroga -se a qualidade de funcionário público;c) E invoca como fundamento da sua pretensão a ilegalidade do

despacho da Secretária de Estado da Solidariedade e Segurança Social que determinou a cessação da sua comissão de serviço;

d) O regime do contrato individual de trabalho, a que alude o art. 37º do Dec -Lei n°316 -A/00, de 7/12, é afastado pelo art. 38º do mesmo diploma, que permite que os funcionários do Estado e institutos públicos desempenhem funções no ISSS em regime de requisição ou comissão de serviço por um período de três anos, renovável, considerando -se mesmo período como prestado nos quadros de que provenham;

e) A entidade empregadora continua a ser o Estado e o vínculo é de emprego público, não tendo sido celebrado com o ISSS nenhum contrato de trabalho subordinado (o acordo de nomeação em comissão de serviço mais não é do que a aceitação pelo nomeado do cargo que lhe foi proposto).

Tal com o tem sido repetidamente afirmado por este Tribunal de Con-flitos, e igualmente pelo S.T.J. e pelo S.T.A., é em função dos termos em que a acção é proposta, mormente do pedido que perante o tribunal se

formula, que se afere da competência — cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1963, páginas 89 e 90, Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), 27.2.02, procº. n° 371/02, 9.3.04, proc.° n° 4/03, 23.9.04, proc.° n° 5/04, Acs. do STA de 12 -01 -88, proc.° n.° 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6 -06 -78, in BMJ, 278,122. O pedido do autor corresponde ao quid disputatum, ou seja, a providência concreta que ao tribunal vem solicitar -se.

A competência não depende, assim, da legitimidade das partes nem da procedência da acção e, por isso, o que o réu vem alegar na contestação não pode servir de contributo para o juiz fixar a competência do tribunal, assim como não pode relevar qualquer prognose acerca da viabilidade da acção ou outra indagação atinente ao respectivo mérito.

O que cumpre verificar, para o efeito do estabelecimento da com-petência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo.

Analisemos então a petição inicial da acção, começando pelos termos em que se formularam os pedidos.

O primeiro consiste na condenação do Réu a “cumprir o Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço celebrado com o autor até à data do seu termo como adjunto da Directora do CDSSS de Leiria e seja o réu condenado a pagar 3.319,46 euros mensais desde 24 de Setembro de 2001 até 1 de Junho de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das actuais funções que desempenha, pelo que o ISSS deve ser conde-nado a pagar ao autor os salários vencidos e vincendos no montante de 40.809,23 euros”.

O segundo pedido é, formulado subsidiariamente: “… se assim não se entender seja o ISSS condenado a pagar ao autor pela cessação do Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço a indemnização no montante de 40.809,23 euros” (em qualquer dos casos, acrescem os juros vincendos a contar da citação).

Ora, como pode ver -se, os traços estruturais que estes pedidos em-prestam à acção não são decisivos no sentido de a caracterizar como pertencente a qualquer das espécies em confronto — acção emergente de contrato individual de trabalho ou meio contencioso pertencente aos tribunais administrativos.

Podia ser -se tentado a valorizar, em favor da marca juslaboral, o facto de neles se não conter o pedido de anulação ou declaração de nulidade de acto administrativo. Mas o recurso contencioso, a que o mesmo per-tence, não é senão um dos meios processuais para que é competente o contencioso administrativo - muito embora seja, de todos eles, o que mais intensamente radica na respectiva essência. O ETAF e a LPTA prevêem as acções sobre contratos administrativo se sobre responsabilidade civil, e não é de excluir que aqueles pedidos, pelo recorte que apresentam, se pudessem enquadrar nalguma dessas espécies.

Deste modo, é apenas a literal idade da expressão “salários vencidos e vincendos”, contida no primeiro pedido; que pode jogar a favor daquela primeira opção. No entanto, desacompanhada como está doutras marcas típicas de um litígio laboral, só pode ter o valor não vinculativo duma simples sugestão.

Haverá, pois, que completar esta indagação com a análise dos restantes termos da petição.

O Autor começa por alegar que celebrou com o Réu um Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço, descrevendo os termos desse acordo (em síntese, para o desempenho do cargo de Adjunto da Directora

Page 58: Decisões STA

114 115

do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Leiria, em comissão de serviço e ao abrigo do D -L. n° 404/91, de 16.10, mediante determinada remuneração base e subsídio de isenção de horário de trabalho, e com sujeição ao “regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos estatutos do ISSS, pelos regulamentos que lhe derem execução, designadamente, o Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia e, subsidiariamente, pelas normas e princípios que regem o contrato individual de trabalho”).

Refere depois que por iniciativa da Secretária de Estado da Soli-dariedade e Segurança Social foi aditada ao art. 12° do Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia uma al. f), nos termos da qual as comissões de serviço como a do Autor poderiam cessar “por despacho fundamentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho nos termos do artigo 20º, n° 2, al. a) da Lei n° 49/99 de 22 de Julho”. Na sequência desta alteração, a comissão do Autor foi feita cessar por despacho da mesma entidade (19.10.2002). Esta decisão é ilegal, porquanto: i) a alteração do regulamento viola a boa -fé das partes contratantes; ii) só o Conselho: Directivo do ISSS, entidade com personalidade jurídica própria, poderia fazer cessar a comissão de serviço: iii) só podia ser invocada contra o recorrente a necessidade de “imprimir nova orientação à gestão dos serviços” caso lhe tivessem sido dadas orientações concretas que ele não tivesse cumprido diligentemente; iiii) a intenção foi a de nomear outro dirigente da confiança política e partidária do Ministro; iiiii) existe falta de fundamentação.

Seguidamente o Autor fundamenta o pedido de condenação na dife-rença entre os salários vencidos e o que está a auferir enquanto “Assessor Principal na Função Pública” - sendo de notar que é a premira vez (e a petição já vai no seu artigo 46º) que o Autor diz que era titular de um cargo público.

E prossegue com a invocação do “regime jurídico aplicável”, que para ele é o do contrato individual de trabalho (no artigo 60° designa especi-ficamente o contrato que celebrou como de contrato de trabalho).

É certo que aqui e além, ao caracterizar algumas das ilegalidades que afectariam a decisão da Secretária de Estado, o Autor emprega uma terminologia própria do Direito Administrativo (acto ferido por incompetência absoluta, dever de fundamentação, vício de forma, des-vio de poder), e, além disso, cita normas do Código do Procedimento Administrativo que o despacho violaria.

No entanto, dessas supostas disfunções que estariam a inquinar a de-cisão da Secretária de Estado o Autor não retira quaisquer consequências ao nível das providências que vem solicitar ao tribunal, pois, como atrás se viu, não pede que a mesma seja declarada nula ou anulada.

E tem o cuidado de ressalvar a existência de um litígio com esse pedido e esse fundamento, que se acha já pendente, por iniciativa sua, no tribunal administrativo (artigo 67°, fls. 16).

Mais: no articulado de resposta às excepções, além de insistir que o litígio releva do domínio de uma relação laboral, o Autor aceita que a questão da invalidade do despacho da Secretária de Estado “pode ser considerada uma questão prejudicial a esta acção”, e que por esse fundamento a instância poderá ser suspensa - o que a final requer (cf. fls. 127 a 129, 135 e 136).

Verifica -se, assim, que o Autor localiza a origem do litígio numa relação de direito laboral, cuja fonte é um acordo que designa por con-trato de trabalho e cujo texto efectivamente remete para as “normas e

princípios que regem o contrato individual de trabalho”. E, embora a causa de pedir seja atravessada pela imputação de ilegalidades que, em parte, correspondem a institutos do domínio do direito público, dúvidas não há de que quis deliberadamente evitar que a acção tivesse essa cono-tação - seja escolhendo para estas concretas providências o foro laboral e reservando para o foro administrativo o ataque formal ao despacho da Secretária de Estado, seja pela desconsideração e quase ocultação no longo texto da petição da existência de um lugar de origem na função pública, seja ainda acentuando (como faz, p. ex., nos artigos 41°, 44º e 80º) que, de facto, a decisão de o afastar foi do próprio ISSS e não da Secretária de Estado.

Contra isso, nem vale argumentar, como faz a decisão recorrida, que o acordo em que o Autor se funda mais não é do que a “aceitação” da comissão de serviço - até porque a aceitação é um acto unilateral e o documento em causa é um clausulado subscrito pelas duas partes.

Os termos em que a acção vem proposta, com especial atenção para o recorte que nela tem a relação jurídica de que emerge o litígio fa-vorecem, assim, claramente, a conclusão de que, nesse bom critério, o foro competente para dela conhecer é aquele onde foi proposta - o tribunal do trabalho.

É que (e aqui residirá o principal equívoco do acórdão recorrido) não só não é legítimo emprestar relevo, contra o que foi a inequívoca intenção do Autor, ao anterior lugar público do Autor, como não pode ser esse elemento a marcar o timbre das relações jurídicas trazidas à apreciação do tribunal. A conclusão de que a entidade empregadora “continua a ser, como era, o Estado”, para além de inexacta do ponto de vista da destrinça entre os diversos entes com personalidade jurídica pública que coexistem com o Estado propriamente dito, esquece que mesmo o Estado, bem como as outras pessoas colectivas públicas, mantêm com muitas pessoas relações de colaboração fora do domínio do direito público e, por conseguinte, de qualquer relação de emprego público - é justamente o caso do pessoal do ISSS, sujeito ao regime do contrato individual de trabalho (art. 37° dos Estatutos do ISSS, aprovados pelo D -L n°316 -A/2000, de 7.12).

Acresce que o que é verdadeiramente importante para a fixação do tribunal competente para conhecer desta causa não é, por assim dizer, historiar os antecedentes do relacionamento do Autor com a Administra-ção Pública, mas identificar com precisão de onde brotou em concreto o litígio que trouxe as partes ao tribunal, o que implica a relevância da relação jurídica com o recorte que tinha no momento em que isso aconteceu. Ora, pelo menos na versão de quem vem a juízo, o termo da “comissão de serviço” nada teve a ver com nenhum dos pólos da relação de emprego público que o Autor anteriormente mantinha, e prende -se exclusivamente com a ruptura introduzida pelo actual empregador no trabalho prestado sob os auspícios de um contrato regulado por instru-mentos de direito privado.

Em face do exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, julgando competente para conhecer da acção o Tribunal do Trabalho.

Sem custas.Lisboa, 26 de Abril de 2006. — José Manuel Almeida Simões de

Oliveira (relator) — António Artur Rodrigues da Costa — António Fernando Samagaio — Carlos Alberto Bettencourt de Faria — António Bento São Pedro.

Page 59: Decisões STA

116 117

Acórdão de 18 de Maio de 2006.

Assunto:

Relação jurídica administrativa. Associação de beneficiários de obra de fomento hidroagrícola. Taxas de conservação e exploração. Competência dos tribunais administrativos e fiscais.

Sumário:

Compete aos tribunais administrativos e fiscais, concreta-mente aos tribunais tributários, conhecer de acção na qual se pretende a declaração de inexigibilidade de taxas de conservação e exploração, impostas por associação de beneficiários de obra de fomento hidroagrícola, e a condenação desta ré a restituir ao autor os montantes correspondentes a taxas por este anteriormente pagas.

Processo n.º 4/05 -70.Requerente: Manuel da Silva Gil, no conflito negativo de jurisdição,

entre o Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Adérito Santos.

Acordam, no Tribunal de Conflitos:1. Manuel da Silva Gil, melhor identificado nos autos, recorre para

o Tribunal de Conflitos, ao abrigo do disposto no art. 107, nº 2 do CPCivil, de um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, con-firmando despacho do Mmo Juiz do tribunal Judicial da Figueira da Foz, julgou os tribunais judiciais incompetentes, em razão da matéria, para decidir de uma acção declarativa que o recorrente aí propôs contra a Associação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego.

Apresentou alegação, com as seguintes conclusões:A) as quantias que a R. cobrou ao A. referem -se a Facturas relativas

a comparticipação em despesas com reparações, limpezas, etc.;B) a R. pretende cobrar as mesmas ao A. em virtude de alguns mem-

bros da Direcção da associação de Proprietários do Campo do Frade, de que o A. faz parte – e a qual, antes, efectuava esses trabalhos –, terem “pedido a integração” na R.;

C) a R. ainda não pode cobrar taxas de conservação e de exploração, nos termos legais, porque a Obra ainda não chegou ao Campo do Frade e só após, quando fornecer água, é que a lei lhe dá o poder de cobrar essas taxas;

D) portanto, é ilicitamente que, para cobrança coerciva, a R. utiliza as execuções fiscais, cujo acesso lhe é dado para outros fins, claramente expressos na lei;

E) como tal, os actos que o A. impugna na presente acção são actos de gestão privada;

F) em consequência, era – e é! – ao tribunal comum e não ao tribunal administrativo ou fiscal (na primeira instância, a fls. 136, fala -se no fiscal e a fls. 137 no administrativo) que incumbe a decisão da questão;

G) Deve, por isso, ser revogado o douto acórdão do tribunal da Re-lação de Coimbra que confirma o despacho da 1ª instância que decidiu pela incompetência do tribunal comum, declarando, em definitivo, que a competência para dirimir a presente questão pertence ao tribunal comum.

Pelas razões expostas, impetrando o douto suprimento de V. Exas. E suplicando pelas deficiências do patrocínio, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, declarando competente o tribunal comum, mande prosseguir o processo, assim se fazendo

JUSTIÇA!Não houve contra -alegação.A Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu o seguintePARECERAfigura -se -nos que o presente recurso, destinado a fixar o tribunal

competente, não merece ser provido.A definição da competência dos tribunais administrativos tem a sua

sede no art.º 212°, n° 3, da CRP, e, também, neste caso, no artº 3° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estabelecido pelo DL n° 129/84, de 27.04, aqui aplicável.

Nos termos daquele preceito da Lei Fundamental “compete aos tribu-nais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”, sendo que corresponde a este dispositivo o referido artº 3° daquele ETAF.

Por sua vez, o artº 51°, n° 1, alínea h), deste mesmo diploma, dispõe que “compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das ac-ções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública...”. Conforme tem vindo a ser reiteradamente afirmado por este Tribunal dos Conflitos e pelo STA, a competência em razão da matéria afere -se em função dos termos em que a acção é proposta – cfr, a título de exemplo, o acórdão do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361), e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. n° 31478), de 96.05.28 (proc. n° 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. n° 43973), de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024).

Escreve Vieira de Andrade que “só interessam à justiça administra-tiva as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo” e “que se devem considerar relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente definido”(1).

Ora, assume estas características a relação jurídica que está na base do litígio, no caso em análise.

Através da acção interposta pretende o autor, ora recorrente, além do mais:

- A devolução, por parte da ré, da importância que lhe foi paga pelo autor, a título de taxas de conservação e de exploração;

- A condenação da ré a devolver ao autor a quantia que se mostrar devida por danos patrimoniais e não patrimoniais, a liquidar em exe-cução de sentença.

Funda esse pedido no facto de a ré, criada no âmbito da obra de fo-mento hidroagrícola efectuada pelo Estado, ter vindo a cobrar ao autor importâncias indevidas, a título de pretensas taxas de exploração e de

Page 60: Decisões STA

118 119

conservação, sem que em Campo de Frade – onde se situam os prédios rústicos do autor – exista qualquer obra dessa natureza, e, consequente-mente, sem que os prédios do autor tenham recebido qualquer benefício decorrente de obra de aproveitamento hidroagrícola.

Por força de Portaria do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimenta-ção, de 88.08.29, publicada no DR II série, de 88.09.15, foi a ré Asso-ciação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego reconhecida como pessoa colectiva de direito público.

A sua constituição teve em vista atribuir -lhe, além do mais, a tarefa de assegurar a exploração e conservação das obras de fomento hidro-agricola ou das partes destas que lhes fossem entregues – cfr artº 4°, alínea b), do Regulamento das Associações de Beneficiários estabelecido pelo Decreto Regulamentar n° 84/82, de 04.11, entretanto revogado por força do DL n° 86/2002, de 06.04, ao revogar o artº 90° do DL n° 269/82, de 10.07, que previa essa regulamentação.

Para efeitos de pagamentos das despesas da exploração e conservação das obras, foi -lhe atribuído o poder de cobrar uma taxa aos respectivos beneficiários, susceptível de ser cobrada coercivamente pelos tribunais de execuções fiscais, de harmonia com os artºs 66°, 67°, 68° e 69°, do DL n° 269/82, e, com o artº 4°, alíneas g) e h), 49° e 50°, do citado Regulamento.

Frise -se que o regime que foi alterado pelo citado DL n° 86/2002 manteve -se em vigor até à celebração dos contratos para efectivação do novo regime, de concessão, num prazo máximo de três anos, nos termos do respectivo artº 104°, nºs 1 e 2.

Ora, não é difícil concluir que o diferendo aqui em causa surgiu numa relação em que um dos sujeitos, a ré na acção – pessoa colectiva regulada pelo direito público – se substituiu ao Estado -colectividade, prosseguindo a satisfação de um interesse público, munida de poderes de autoridade, praticando, por essa via, actos de gestão pública.

Cremos, pois, que o litígio que opõe o autor à ré emerge de uma relação que o inclui na jurisdição administrativa, nos termos do artº 212°, n° 3, da CRP, e, dos artºs 3° e 51°, n° 1, alínea h), do mencionado ETAF.

Pelas razões expostas, somos de parecer que deverá ser negado pro-vimento ao presente recurso jurisdicional.

Cumpre decidir.2. A questão que se discute nos presentes autos é a da competência, em

razão da matéria, dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos e fiscais para julgar a acção que o autor, ora recorrente, propôs contra a ré Associação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego, pedindo que se declare não lhe serem exigíveis quaisquer quantias a título de taxas de conservação, exploração ou qualquer outro e se condene a ré a devolver, por terem sido indevida-mente exigidas e pagas, as taxas anteriormente cobradas pela mesma ré ao autor recorrente.

Vejamos, pois.Como observa o acórdão deste Tribunal de Conflitos, de 27.10.04 -

Conflito nº 2/04, citado no acórdão de 29.6.05 -Conflito nº 1/05, são as leis orgânicas e estatutárias específicas que distribuem por cada categoria ou espécies de tribunais a sua medida de jurisdição, ou seja, determinam a categoria de pleitos que a cada um deles é destinada.

Neste sentido, a competência dos tribunais, em geral, resulta da medida da jurisdição atribuída aos diversos tribunais, do modo como entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em

bloco, pertence ao conjunto dos tribunais (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Ed. de 1979, pp 88/89).

As regras de competência judiciária “ratione materiae” são, assim, atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais dispostos “horizontalmente” (ac. TC nº 114/2000, de 22 de Fevereiro, in BMJ 494/48).

Sobre a competência em razão da matéria dos tribunais comuns, dispõe a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei nº 101/99, de 26 de Julho, pelos DL nº 323/2001, de 17 de Dezembro, nº 38/2003, de 8 de Março, e nº 105/2003, de 10 de Dezembro) que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (art. 18, nº 1).

Este preceito está em consonância com o «princípio da plenitude da jurisdição comum» consagrado no art. 211, nº 1 da CRP, de acordo com o qual os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Do modo como se encontra enunciada a regra geral estabelecida no citado art. 18, nº 1 da LOFTJ que a competência dos tribunais judiciais comuns é residual, só se verificando quando as regras reguladoras da competência de outra ordem jurisdicional não abarcam o conhecimento da questão submetida à apreciação do tribunal.

De notar, quanto à aplicação da lei no tempo, neste âmbito, dispõe o art. 22 da LOFTJ que «1 – A competência fixa -se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente. 2 – São igualmente irrelevantes as modifica-ções de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa».

Por outro lado, e no que respeita aos tribunais administrativos e fis-cais, o art. 212, nº 3 da Constituição da República, com a redacção da revisão constitucional de 1989 (Lei Constitucional de nº 1/89, de 8.8) e a numeração da revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional de nº 1/97, de 20.9), circunscreve a respectiva competência ao domínio das «relações jurídicas administrativas e fiscais».

Na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender -se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a re-lação jurídica pública, «em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» – J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 55/56.

É este o quadro orientador da definição legal da competência dos tribu-nais administrativos e fiscais, devendo ter -se presente que, recentemente, a área do contencioso administrativo foi objecto de profundas alterações, achando -se hoje revogadas as leis delimitadoras de competência vigentes à data da propositura da acção a que respeitam os autos.

Com efeito, a Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, aprovou um novo estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2004 (cf. art. 4º da Lei nº 107 -D/2003, de 31 de Dezembro) e revogou, no seu art. 8, o ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27 de Abril.

Page 61: Decisões STA

120 121

Todavia, pela disposição transitória contida no seu art. 4º, nº 1, estabe-leceu que as disposições do novo Estatuto «não se aplicam aos processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor».

Assim sendo, e dado que a petição inicial da acção deu entrada na se-cretaria do Tribunal Judicial da Figueira da Foz em 12 de Maio de 2003, como se vê pelo carimbo constante do rosto da petição inicial de fls. 2, não há que entrar em linha de conta com as regras do contencioso ad-ministrativo actualmente em vigor, designadamente as constantes do ETAF aprovado pela citada Lei nº 13/2002.

À data da propositura da acção, a competência jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais estava traçada pelo ETAF, aprovado pela Lei nº 129/84, de 17 de Abril.

E, de acordo com o art. 3º deste diploma «Incumbe aos tribunais ad-ministrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais».

No art. 4º do mesmo diploma, traçam -se os limites da jurisdição administrativa e fiscal, dela se excluindo, designadamente, as «questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa colectiva de direito público» [nº 1/f)].

Relativamente à competência dos tribunais administrativos de circulo, o art. 51, nº 1, conferia -lhes a competência para o conhecimento «h) Das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso», ressalvando o nº 3 do mesmo preceito que tal competência «não abrange as matérias respeitantes ao contencioso fiscal».

Quanto aos tribunais tributários, também o art. 62, nº 1, do ETAF (red. DL nº 229/96, de 29 de Novembro) lhes conferia competência para o conhecimento «m) Das acções para reconhecimento de direitos de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal».

No que diz respeito à aplicação da lei no tempo, dispõe o art. 8º do mesmo ETAF, aprovado pela Lei nº 129/84, que «1 - A competência fixa -se no momento em que a causa se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente. 2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o tribunal a que a causa estava afecta, se deixar de ser competente em razão da matéria e da hierarquia, ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.»

Vistas as regras que definem as categorias de pleitos atribuídas a cada uma das ordens jurisdicionais em causa, retornemos ao caso sub judice.

3. Como é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, a competência em razão da matéria é apreciada em função dos termos em que a acção é proposta e determina -se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Neste sentido, veja -se o citado acórdão de 27.10.04, que vimos seguindo, e a demais jurisprudência e doutrina nele referenciadas.

É perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objectivos (pedido e seus fundamen-tos) e subjectivos (identidade das partes) da acção, a sua pretensão se enquadra na ordem jurisdicional comum ou na ordem jurisdicional administrativa e fiscal.

Esta a questão que nos ocupa, não cabendo a este tribunal apreciar os demais pressupostos processuais que deverão estar preenchidos para possibilitar a apreciação do mérito da causa (designadamente o interesse processual e a legitimidade das partes), nem as condições de procedibilidade do pedido formulado, pois que esta questão da compe-tência em razão da matéria (a única que nos ocupa) precede logicamente a apreciação jurisdicional pelo tribunal competente de tais questões essenciais.

O juízo a formular, quanto à competência, tem de ser elaborado, independentemente até da idoneidade do meio processual utilizado (2), bem como da verificação dos demais pressupostos de que a lei faz de-pender a apreciação do mérito da causa e da verificação das condições de provimento desta.

Ora, a presente acção foi intentada contra a Associação de Beneficiá-rios da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego.

A fundamentar a mesma acção, o autor, ora recorrente, alega que essa obra de fomento hidroagricola, justificativa das taxas que lhe vêm sendo liquidadas e cobradas, ainda não abrange os terrenos de que é proprietário, não lhe sendo, por isso, exigíveis tais taxas de exploração e conservação.

O pedido formulado é, em síntese, o de que se declare a inexigibilidade das quantias que lhe foram e vêm sendo cobradas e se condene a ré, por enriquecimento sem causa, na devolução dos montantes correspondentes às taxas abusivamente liquidadas e cobradas, bem como no pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, na quantia que se mostrar devida, a liquidar em execução de sentença.

Na petição (nºs 20º a 24º), refere o autor, como direito violado, os arts 66, nº 1, 67., nº 1 e 68, do DL 269/82, de 10 de Julho, actualizado pelo DL 86/2002, de 6 de Abril, que prevêem o pagamento, pelos be-neficiários de obras de fomento hidroagrícola, de taxas de conservação e exploração em função do volume de água utilizado, bem como a respectiva cobrança, a partir da disponibilização da água para regra, que, segundo defende o autor, ainda não aconteceu, nos terrenos de que é proprietário.

A ré Associação de Beneficiários da Obra e Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego foi reconhecida como «pessoa colectiva de direito público», por Portaria, de 29.8.88, do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação, publicada no DR, II Série, de 15.9.88, nos termos do DR 84/82, de 4 de Novembro, que estabeleceu a disciplina jurídica das associações de beneficiários de obras de fomento hidroagrícola, conforme o previsto no art. 90 daquele DL 269/82.

Entre outras, são atribuições da ré, definidas no art. 4 do indicado DR 84/82, «b) Assegurar a exploração e conservação das obras de fomento hidroagrícola …» e «d) Realizar trabalhos complementares destinados às aumenta a utilidade da obra…», competindo -lhe, para tanto, «f) Elaborar em cada ano o orçamento das suas receitas e des-pesas para o ano seguinte …», «h) Fazer directamente a cobrança das taxas de exploração e conservação…», recorrendo, se necessário, às execuções fiscais, conforme o previsto no nº 5 (3) do art. 69 do citado DL 269/82.

Assim, como bem considerou o recorrido acórdão da Relação de Coimbra, a ré, entidade de direito público, actuou na prossecução de um interesse público definido por lei (DL 269/82), munida de poderes de autoridade e praticando actos de gestão pública.

Page 62: Decisões STA

122 123

Pelo que, diversamente do que defende o autor recorrente, o lití-gio que o opõe à ré Associação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego emerge de uma relação jurídica ad-ministrativa.

O que, desde logo, afasta a competência dos tribunais judiciais para o conhecimento da acção em causa (arts 18, nº 1 LOFTJ, 212, nº 3 CRP e 3 ETAF 84).

Para além disso, importa ainda notar que o referido litígio resulta da exigência, feita pela ré, do pagamento de quantias que, nos termos legais (vd. arts. 66 (4) e 67 (5), do DL 269/82), se destinam à satisfação dos encargos com a conservação, gestão e exploração da obra de fomento hidroagrícola, em que, por lei (art. 49 (6), DL 269/82 e art. 4, DR 84/82, cit.), a mesma ré participa, no prosseguimento do interesse público do desenvolvimento agrícola da região correspondente à respectiva área de intervenção.

Estamos, assim, perante questão fiscal, sendo que, como tal, devem entender -se, conforme o entendimento repetidamente afirmado na ju-risprudência (7), «todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas ou teleologicamente subordinadas» – Ac. STA, de 6.10.93 – Rº 26 369 (Ac. DR de 15.10.96, 4792.

Pelo que, face às disposições dos citados artigos 51, nº 3 e 62, nº 1, al. m) do ETAF 84, deve concluir -se, em suma, que o conflito deve decidir -se atribuindo a competência para o julgamento da acção em causa à ordem dos tribunais administrativos e fiscais, concretamente aos tribunais tributários.

3. Por tudo o exposto, acordam em negar provimento ao recurso e em declarar competentes para conhecer da presente acção os tribunais administrativos e fiscais.

Sem custas.Lisboa, 18 de Maio de 2006. — Adérito da Conceição Salvador

Santos (relator) — Fernando Azevedo Ramos — Fernando Manuel Azevedo Moreira — Manuel José da Silva Salazar — Alberto Acácio de Sá Costa Reis — José António Carmona da Mota.

(1) In Direito Administrativo e Fiscal, 1997, p. 55.(2) Neste sentido, o acórdão do STA, de 23.3.99 -Rº 43 973.(3) Artigo 69ºAfixação dos mapas da taxa de conservação e exploração…5 – Na falta de pagamento voluntário das taxas de conservação e de exploração no prazo

de 30 dias contados do termo do prazo para reclamações, serão cobradas coercivamente pelos tribunais das execuções fiscais, revertendo ainda a favor da respectiva entidade responsável pela conservação e exploração, 50 % dos juros de mora devidos.

(4) Artigo 66ºTaxa de conservação…2 – A taxa de conservação destina -se exclusivamente a cobrir custos de conservação

das infra -estruturas …(5) Artigo 67ºTaxa de exploração…

2 – A taxa de exploração destina -se exclusivamente a cobrir os custos de gestão e exploração da obra, incluindo os custos de utilização da água …

(6) Artigo 49ºParticipação das associações de beneficiáriosDeterminada a elaboração do projecto de execução de uma obra dos grupos I, II e III, a

DRA em cuja área de jurisdição se situe a maior parte dos terrenos a beneficiar, em conjunto com a IHERA, apoiará a constituição de uma associação de beneficiários e promoverá a sua audição nas componentes do projecto que lhe digam directamente respeito.

(7) vd., entre outros, os acs. STA, de 8.9.93 -Rº 36 624, de 18.3.97 -Rº 34 327, de 29.3.01 - Rº 47165 e de 29.5.01 -Rº 47383.

Acórdão de 25 de Maio de 2006.

Assunto:

Pedido de reversão de um prédio expropriado. Tribunal com-petente.

Sumário:

I — A determinação do tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo autor afere--se em função dos termos em que a acção vem proposta e com os fundamentos em que ela se estriba e não com as pessoas das partes, a sua legitimidade, ou a procedência da acção.

II — Deste modo, se os autores intentam uma acção declara-tiva comum onde eregem o pedido de condenação dos réus a reconhecer a existência do direito de reversão do prédio que lhes foi expropriado como sendo o pedido principal, o pedido de que tudo depende, e se o funda-mentam no facto daquele não ter sido aplicado na fina-lidade que justificou a sua expropriação, isso significa que o que questionam é a legalidade da declaração de expropriação e do indeferimento de reversão.

III — Todavia, tanto a declaração da utilidade pública da expropriação como o acto que aprecia (deferindo ou indeferindo) o pedido de reversão do prédio expropriado são actos administrativos proferidos na consequência de requerimentos feitos à autoridade competente para a sua prolação, cabendo aos Tribunais Administrativos conhe-cer da legalidade da decisão que sobre eles recair.

IV — E, porque assim, é matéria cuja competência está sediada na jurisdição administrativa.

V — Os Tribunais comuns são, pois, incompetentes, em razão da matéria, para conhecer do objecto daquela acção declarativa.

Processo n.º 26/05 -70.Requerentes: Domingos José Soares de Almeida Lima e outros, no

conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Seixal e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Costa Reis.

Page 63: Decisões STA

124 125

Domingos José Soares de Almeida Lima e outros intentaram no Tri-bunal Judicial do Seixal, a presente acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra a “Siderurgia Nacional SGPS, S.A.” e Urbindústria – Sociedade de Urbanização e Infra -estruturas de Imóveis, S.A.” tendo, no decurso da acção, requerido a intervenção principal de 31 pessoas jurídicas das quais foram admitidas o Município do Seixal, o “Banco Totta e Açores S.A.”, a “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, o “IMTA – Indústrias Metalomecânicas de Tecnologia Avançada, S.A” e “Lopes e Moura, Lda”.

Aquele Tribunal, porém, julgou -se incompetente, em razão da matéria, para dela conhecer, pelo que - nos termos dos art.ºs 102.º, 103.º e 105º do CPC - absolveu os Réus da Instância.

Julgamento que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou.Inconformados, os Autores recorreram para o Supremo Tribunal

de Justiça tendo rematado as suas alegações do seguinte modo:1. A expropriação por utilidade pública, seguida pela venda lucrativa,

totalmente fora do âmbito da declaração de utilidade pública, dá azo a uma injustiça digna de apreciação judicial.

2. A competência material deverá ser aferida pelo modo por que a acção seja proposta e pela natureza dos respectivos pedido e causa de pedir.

3. O direito de retenção é bifronte: perante a entidade expropriante, assenta numa relação administrativa; mas erga omnes, dá corpo a um direito real de aquisição.

4. Os Tribunais Comuns são competentes para apreciar a existência desse direito real de aquisição e as eventuais violações a que possa dar azo.

5. Em especial, compete -lhes constatar a sua presença e condenar os intervenientes a respeitá -lo.

6. Compete -lhes, ainda, pronunciar -se sobre situações de enriqueci-mento ilegítimo daí decorrentes.

7. Também a matéria indemnizatória e a atinente ao registo, puramente instrumentais, têm cabimento no foro comum.

8. Apenas a assunção da competência necessária para as apontadas apreciações permitirá evitar a violação, entre outros, dos artigos 20.°, n.º 1, 4 e 5, da Constituição, 2.° e 66.° do CPC e 18.° n.º 1 da Lei n.º 3/99, de 13/01, violação em que, com o devido respeito, incorreu o douto acórdão recorrido.

Urbindústria, S.A contra alegou para formular as seguintes con-clusões:

1. O douto acórdão recorrido julgou os Tribunais Comuns incompe-tentes para decidir a presente acção, por esta pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa.

2. O presente recurso tinha de ser interposto para o Tribunal de Con-flitos (vd. art.º 107°/2 do CPC), devendo, por isso, ser rejeitado (vd. Ac. STJ de 1999.01.20, Proc. 1054/98), tanto mais que o douto despacho de fls. 1497 dos autos não vincula este Supremo Tribunal (vd. art.ºs 687°/4 do CPC).

3. A Administração Pública e os Tribunais Administrativos são as entidades competentes para decidir do pedido de reversão referente a imóveis expropriados, que constitui o pedido principal e o pressuposto dos restantes pedidos formulados pelo ora recorrente (vd. artº 212° da CRP e art.ºs 101.º, 102°, 105.º/1, 288°/1/a), 493° e 494°/a) do CPC).

4. No caso sub judice, está em causa uma relação jurídica adminis-trativa exercício do direito de reversão, por alegadamente os imóveis expropriados ao ora recorrente terem sido afectos a fim diverso do que motivou aquele acto ablativo (vd. artº 212° da CRP; cfr. art.ºs 5.º e 70.º e seg.s do CE 91) -, competindo exclusivamente aos Tribunais Admi-nistrativos apreciar da legalidade do acto administrativo que indeferiu o requerimento de reversão apresentado pelo ora recorrente (vd. art. S1°/1/c) do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27/04; cfr. Ac. do Tribunal de Conflitos de 2004.11.04, Conflito n.° 12/04).

5. A questão nova invocada na conclusão 1.ª das alegações do ora recorrente, além de claramente inadmissível (vd. art.ºs 676°/1, 680° e 690°/1 do CPC), é absolutamente improcedente, pois no caso em análise não se discute nem está em causa a susceptibilidade de a pretensão do recorrente ser objecto de “apreciação judicial”, mas apenas quais os Tribunais que na nossa ordem jurídica têm competência material para apreciar a referida pretensão (vd. art.ºs 20° e 212° da CRP).

6. O douto Acórdão do STA, de 1996.01.26, já transitado em julgado, rejeitou o recurso contencioso interposto do indeferimento tácito do pedido de reversão apresentado pelo ora recorrente que, com a presente acção, mais não pretende do que pôr em causa a força e autoridade do caso julgado do referido aresto (vd. art.ºs 671.° e segs. do CPC);

7. A relação material controvertida, tal como foi configurada pelo ora recorrente, consubstancia um litígio emergente de uma relação jurídico -administrativa, pretendendo o recorrente ser indemnizado por pretensos danos resultantes de actos de gestão pública imputáveis ao Senhor Primeiro Ministro (vd. art. 70°/1 do CE 91), sendo os Tribunais Administrativos os únicos com competência para o seu conhecimento, ex vi do disposto no art.º 51°/1/h) do ETAF (cfr. art.º 22° da CRP e art.º 2°/1do DL 48051, de 1967.11.21);

8. Os restantes pedidos formulados pelo ora recorrente respeitam a actos de gestão pública, cujo conhecimento compete igualmente aos Tribunais Administrativos (vd. art.º 51°/1/h) do ETAF; cfr. art.º 4°/1g) e i) do novo ETAF).

A Câmara Municipal do Seixal contra alegou rematando assim as suas alegações:

A. O D. Acórdão recorrido não merece censura, pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso.

B. Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se verificando o reconhecimento do direito de reversão, inexiste enriquecimento sem causa por parte das Recorridas,

C. Logo, o pedido alegadamente subsidiário de “enriquecimento sem causa” carece absolutamente de causa de pedir, pelo que o teor da conclusão 2.ª milita contra o Recorrente.

D. O teor das conclusões 1.ª e 3.ª mais não constitui do que uma tentativa - salvo o devido respeito - “gorada”, de adaptação dos pedidos formulados na D.P.I. e transcritos nas D. Alegações do Recorrente, que permanecem indissociavelmente ligados ao invocado direito à reversão da propriedade do prédio expropriado e na sua estreita dependência.

E. Assim, ao dirigir -se ao Tribunal Comum nos termos peticionados, o A. ora Recorrente, espera dele que profira decisões que só poderiam ser tomadas por um Tribunal Administrativo, contrariamente ao alegado nas conclusões 4.ª, 5.ª, 6.ª e 7.ª, que assim se impugnam.

F. Ao declarar -se incompetente para julgar a acção, o Tribunal de 1.ª instância outra coisa não poderia ter feito.

Page 64: Decisões STA

126 127

G. Da mesma forma, ao não determinar a reformulação da P.I. e dos pedidos, também o D. Tribunal da Relação não podia ter feito de outro modo, limitados que estão os seus poderes de cognição às conclusões do recurso!

H. Num caso, como noutro, era ao A. e Recorrente que o ónus cabia e este não se compadece - na expressão do próprio - com “naturais flutuações de linguagem”.

I. Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, o D. Acórdão recorrido decidiu bem, no estrito respeito pelas normas aplicáveis, ao confirmar a D. decisão da 1ªa instância, que se julgou incompetente em razão da matéria, para o julgamento da causa, absolvendo consequentemente as rés da instância.

O Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto no art.º 107.º, n.º 2 do CPC, remeteu o processo para este Tribunal de Conflitos.

O Ilustre Magistrado do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Mostrando -se colhidos os vistos legais cumpre decidir.FUNDAMENTAÇÃOI MATÉRIA DE FACTOO Tribunal recorrido julgou assentes os seguintes factos:1. – No seu articulado inicial, que deu entrada em juízo em 30/6/97,

os Autores formularam o seguinte petitório:“a) A reconhecer o desaparecimento da necessidade da expropriação

do prédio em litígio.b) A reconhecer, sobre o prédio em litígio, a oneração resultante

do exercício pelos Autores do direito de reversão previsto nas leis de expropriação.

c) A absterem -se de alienar, onerar ou transformar, directamente, ou por interposta pessoa, quaisquer parcelas pertencentes ao prédio em litígio.

d) Subsidiariamente, quando o direito de reversão não seja reco-nhecido em sede administrativa, a restituir aos Autores o valor corres-pondente ao seu enriquecimento, em termos a calcular em execução da sentença.

e) Em qualquer dos casos, a indemnizar os Autores por todos os prejuízos, despesas e outros custos, causados com recusa injustificada em reconhecer os seus direitos, em termos a calcular também em exe-cução de sentença.

Mais se requer a V.ª Ex.cia o cancelamento de todos os registos existentes sobre o prédio em litígio, posteriores ao registo de aquisição a favor de José Maria de Almeida Lima.”

2. – Por Acórdão de 23/01/1996 o STA decretou que “os Recorrentes não têm legitimidade para o presente recurso contencioso de anulação, devendo rejeitar -se o recurso …. já que do eventual provimento do recurso não poderiam obter o efeito jurídico -prático pretendido com a interposição do recurso contencioso de anulação do acto tácito de indeferimento impugnado, ou seja, a reversão da propriedade dos pré-dios expropriados, agora na propriedade e posse de terceiros, titulado em acto administrativo com força de caso resolvido.”

II O DIREITO1. Resulta do antecedente relato que os Autores interpuseram recurso

contencioso de anulação do indeferimento do seu pedido de reversão do prédio ora em causa e que tendo esse recurso sido rejeitado, com funda-mento na sua ilegitimidade, deduziram, no Tribunal Judicial do Seixal,

a presente acção declarativa pedindo que os Réus fossem condenados a reconhecer que a necessidade da expropriação do referido prédio havia desaparecido, que este estava onerado com o direito de reversão de que os Autores eram titulares, a absterem -se de o alienar, onerar ou transformar fosse de que forma fosse e, subsidiariamente, para o caso daquele direito não vir a ser reconhecido em sede administrativa, fossem condenados a restituir -lhes o seu valor e a indemnizá -los de todos os prejuízos causados pela sua recusa de reconhecimento dos seus direitos. Requereram, ainda, o cancelamento de todos os registos existentes sobre esse prédio que fossem posteriores ao registo da sua aquisição a favor de José Maria de Almeida Lima.

O que significa que o que os Autores pretendem nesta acção é a obtenção de efeitos que substituam, ou compensem, os efeitos que teriam alcançado se, no recurso contencioso, lhes tivesse sido reconhecido o direito de reversão do mencionado prédio.

Todavia, a Relação de Lisboa, confirmando o julgamento que havia sido feito no Tribunal de 1.ª Instância, considerou que os Tribunais comuns careciam de competência material para conhecer dos iden-tificados pedidos e, consequentemente, para decretar as medidas re-queridas e, nessa conformidade, manteve a decisão que havia absolvido os Réus da Instância.

E justificou assim esse entendimento:“Na verdade, como se enuncia, neste caso bem, na sentença recorrida

todos os pedidos formulados – mesmo os que o foram a título subsidiário …….. – estão indissoluvelmente ligados ao invocado direito à reversão da propriedade do prédio expropriado e em estrita dependência do mesmo. Ou seja, ao contrário do que é alegado pelo Agravante, este não se limita a «invocar factos materiais de onde retira efeitos civis», querendo, antes, que o Tribunal a que se dirige profira decisões que só pode, - poderiam ser tomadas por um Tribunal Administrativo; quando muito, nos Tribunais comuns, poderia discutir -se e decidir -se se o Es-tado (ou mais exactamente a entidade beneficiária da expropriação) usou o não o prédio para os fins que foram invocados para justificar essa expropriação e se, por esse facto, sofreram ou não os Autores um empobrecimento do seu património correspondente ao enriquecimento ilegítimo dessa beneficiária ou de uma outra qualquer entidade. Só que não foi isso que os Autores pediram e a competência do Tribunal determina -se a partir dos concretos pedidos formulados.”

E, porque assim, a questão que se nos coloca é a de saber qual a jurisdição competente para conhecer da matéria suscitada nesta acção. Será a administrativa como se decidiu no Tribunal recorrido ou, pelo contrário, como se defende neste recurso, será a jurisdição comum?

1. A jurisdição dos Tribunais Administrativos vinha definida no art. 3.º do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27/04 - aplicável por vigorar à data da propositura desta acção - do seguinte modo: “incumbe aos Tribunais Administrativos e Fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais.” (1)

Sendo certo, por outro lado, que a CRP estabelece que os “tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – vd. seu art.º 211°, n.° 1 – o que significa que, como a doutrina e a

Page 65: Decisões STA

128 129

jurisprudência têm afirmado, a jurisdição dos Tribunais Judiciais se define por exclusão, cabendo -lhe julgar todas as acções que não sejam especialmente atribuídas a outras espécies de Tribunais.

A determinação do Tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor afere -se em função dos termos em que a mesma vem proposta e dos fundamentos em que ela se estriba, “sendo, para esse efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão), mas sendo igualmente certo que o Tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelo Requerente ou Autor”. É o que tradicionalmente se costuma expri-mir com a fórmula «a competência determina -se pelo pedido formulado pelo Autor». – Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11/7/00, Conflito n.º 318 (AD 468/1.630). No mesmo sentido, e a título meramente exem-plificativo, vd. Acórdãos desse mesmo Tribunal de 3/10/00, (Conflito n.º 356), de 6/11/01, (Conflito n.º 373) e de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 21/4/99, rec. n.º 373/98 e Prof. Manuel de Andrade”, Noções Elementares de Processo Civil” pg. 88 e seg.s

“A competência do Tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os seus fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.” – M. Andrade, Obra citada a fls. 91.

Encontra -se, pois, assente que a determinação da competência ma-terial de um Tribunal depende dos termos em que o Autor formulou a sua pretensão e dos fundamentos em que a estribou e, assim sendo, cumpre resolver a identificada questão à luz dos princípios acabados de expor.

2. Os Autores (ora Recorrentes) interpuseram esta acção no Tribu-nal Judicial do Seixal alegando que haviam herdado um prédio e que este havia sido expropriado, em 1/10/1970, para nele serem implantadas as instalações fabris da Siderurgia Nacional, o que não veio a acontecer por o mesmo ter sido transferido para o património da Urbindústria, S.A. que o urbanizou e alienou os correspondentes lotes a terceiros.

Deste modo, e porque o dito prédio não foi aplicado no fim que jus-tificou a sua expropriação, reclamam o direito de reversão do mesmo para a sua titularidade o qual, a não ser reconhecido, determinará um enriquecimento injusto e ilegal dos Réus que, por isso, ficam consti-tuídos na obrigação de os indemnizar de todos os prejuízos sofridos decorrentes dessa situação.

Pedem, assim, a título principal, que os Réus sejam condenados a reconhecer que desapareceu a necessidade que determinou a referida expropriação e o seu direito à reversão do prédio expropriado e, conse-quentemente, que sejam condenados a absterem -se de o alienar, onerar ou transformar. Mas, na improcedência deste pedido e não sendo reco-nhecido em sede administrativa o direito de reversão, pedem, a título subsidiário, que se condene os Réus a restituir -lhes o valor correspon-dente ao seu enriquecimento e a indemnizá -los por todos os prejuízos sofridos em resultado do não reconhecimento dos seus direitos.

É, assim, visível que o que os Autores pretendem alcançar nesta acção é o reconhecimento de que são titulares do direito de reversão

sobre o mencionado prédio, com vista a obterem os correspondentes benefícios (veja -se o pedido subsidiário), em suma pretendem conseguir o que lhes foi recusado no recurso contencioso onde solicitaram a anu-lação do indeferimento do pedido de reversão daquele prédio. E, tanto assim, que eregem o pedido de condenação dos Réus a reconhecer a existência do direito de reversão como sendo o pedido principal, o pedido de que tudo depende, e fundamentam -no no facto do prédio ora em causa não ter sido aplicado na finalidade que justificou a sua expropriação.

Todavia, tanto a declaração da utilidade pública da expropriação como o acto que aprecia (deferindo ou indeferindo) o pedido de re-versão do prédio expropriado são actos administrativos proferidos na sequência de requerimentos feitos à autoridade competente para a sua prolação, cabendo aos Tribunais Administrativos conhecer da legalidade da decisão que sobre eles recair. – vd. art.ºs 11.º e 70.º/1 do CE/91 e art.º 51.º do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27/4, aplicáveis por vigorarem na data em que os Autores requereram a declaração desse direito e, entre muitos outros, Acórdão deste STA de 11/02/99, rec. 37.648).

O que os Autores bem sabiam pois que só depois de verem adminis-trativamente indeferido o pedido de reversão daquele prédio e só depois de verem naufragado o recurso contencioso deste indeferimento é que interpuseram a presente acção. Só que, como se vê dos respectivos fundamentos, esta versa sobre a alegada ilegalidade deste acto de indeferimento e, no fundo, é este acto que eles pretendem ver removido da ordem jurídica.

O que significa que o que os Autores pretendem ver discutido nesta acção é a legalidade de um acto administrativo

Com efeito, saber se se mantém a necessidade que determinou a ex-propriação do identificado prédio e saber que consequências se devem retirar desse facto e decidir em conformidade é matéria directamente atinente à competência da entidade que declarou a utilidade pública da expropriação e à legalidade deste acto e não matéria relacionada com as pessoas dos seus beneficiários. E, porque assim, é matéria cuja competência está sediada na jurisdição administrativa.

Os Tribunais comuns são, pois, incompetentes, em razão da ma-téria, para conhecer do objecto da presente acção.

Face do exposto acordam os Juízes que compõem este Tribunal de Conflitos em negar provimento ao recurso e, em consequência, mantendo -se o Acórdão recorrido, declarar os Tribunais comuns in-competentes, em razão da matéria, para conhecer desta acção por essa competência pertencer aos Tribunais Administrativos.

Custas pelos Recorrentes, digo sem custas.Lisboa, 25 de Maio de 2006. — Costa Reis (relator) — Azevedo Mo-

reira — Angelina Domingues — António Mortágua — Manuel Soares —Sebastião Póvoas.

(1) Sublinhado nosso. O novo ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19/02, não se afastou deste entendimento pois proclamou que “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.”

Page 66: Decisões STA

130 131

Acórdão de 31 de Maio de 2006.Conflito n.º 5/06.Requerente(s): IMOCRAVO — Construções Imobiliária, S. A., no

conflito negativo de jurisdição entre o 2.º Juízo Civil do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Oliveira Mendes.

Acordam no Tribunal de Conflitos:Imocravo - Construções Imobiliária, SA., com sede em Sabrosas,

freguesia de Nogueira do Cravo, concelho de Oliveira de Azemis, in-tentou, no Tribunal Administrativo do Circulo de Coimbra, acção com processo sumário, contra o Estado Português, em que pediu fosse este condenado a pagar -lhe a importância de € 12.131,26, bem como a quantia que se liquidar em execução de sentença, ou em momento oportuno, decorrente dos prejuízos que venha a sofrer resultantes da privação do capital pedido, alegando a declaração de nulidade de venda de imóvel, que adquiriu em execução fiscal, por desconformidade da descrição constante do auto de penhora e dos anúncios atinentes à venda, bem como a circunstância de haver ficado privada da quantia de € 36.761,41, correspondente à terça parte do preço do imóvel, quantia que depositou à ordem do processo de execução fiscal em 14 de Abril de 1999 (1)

Mediante decisão proferida em 10 de Outubro de 2002, o Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, na procedência de excepção arguida pelo Ministério Público, declarou -se incompetente do ponto de vista material, sob a alegação de que a acção não visa dirimir litígio emergente de relação jurídica administrativa, tendo absolvido o de-mandado da instância.

Accionou então aquela sociedade o Estado Português no Tribunal Judicial da comarca de Santa Maria da Feira, instância que, na parcial procedência do pedido, condenou o demandado a pagar a quantia de Euros 7.240,48.

Interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto, com arguição da incompetência absoluta do tribunal, veio aquela Relação a conceder -lhe provimento, declarando incompetente o tribunal judicial e competente o tribunal administrativo.

Inconformada, recorreu a demandante para o Supremo Tribunal de Justiça, que se considerou incompetente para o conhecimento do recurso e ordenou a sua remessa a este Tribunal de Conflitos.

A Exma. Procuradora da República emitiu parecer no sentido de que a competência para decisão da causa cabe aos tribunais administrativos.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.Única questão a apreciar é a de saber qual o tribunal materialmente

competente para conhecer a acção intentada pela demandante “Imo-cravo” contra o Estado Português, mais concretamente se a competência cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos.

Primeira observação a fazer é a de que a determinação do tribunal materialmente competente, como este Tribunal de Conflitos, o Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo têm afirmado inúmeras vezes, deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo autor, isto é, tendo em conta a pre-

tensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos - pedido e causa de pedir. (2)

É pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum. (3)

Do exame e análise da petição inicial da acção que subjaz ao pre-sente conflito, resulta que a demandante “Imocravo” pretende que o Estado seja condenado a pagar -lhe certa e determinada importância (€ 12.131,26), bem como a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença correspondente aos prejuízos que venha a sofrer decorrentes da privação da importância pedida (€ 12.131,26), alegando, por um lado, a declaração de nulidade de venda de imóvel, que adquiriu em execução fiscal, por desconformidade da descrição constante do auto de penhora e dos anúncios atinentes à venda (4) e por outro lado, a circunstância de haver ficado privada da quantia de € 36.761,41, correspondente à terça parte do preço do imóvel, quantia que depositou à ordem do processo de execução fiscal em 14 de Abril de 1999. (5)

Daqui resulta que a demandante veio a juízo formular um pedido de indemnização contra o Estado baseado em responsabilidade civil extracontratual (6) por acto praticado por entidade pública, no exercício dos respectivos poderes, concretamente pela desconforme descrição, no auto de. penhora e nos anúncios atinentes à venda, do imóvel por si adquirido no âmbito de execução fiscal, do que resultou a anulação da compra/venda, bem como pelo facto de ter ficado privada, desde 14 de Abril de 1999, da importância que pagou (€ 36.761,41) e, bem assim, pelo facto de a Repartição de Finanças não haver procedido à restituição da importância depositada por conta do preço, quer depois da prolação da decisão judicial anulatória, quer após haver sido por si interpelada para tal.

Segunda observação a fazer é a de que os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou não discriminada, o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional - artigos 211°, da Constituição da República Portuguesa e 18°, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

Ao invés, os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas, atribuição que segundo o artigo 212°, nº 3, da Constituição da República, se cinge ao julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. (7)

Em concretização da norma constitucional, o artigo 3°, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo DL nº124/84, de 27 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL n° 229/96, de 29 de Novembro (hoje revogado pela Lei nº13/02, de 19 de Fevereiro, com início de vigência em 1 de Janeiro de 2004 - artigo 9°, da Lei n° 13/02, de 19 de Fevereiro), aqui aplicável, porquanto a competência se fixa no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modifica-ções de facto e de direito que ocorram posteriormente (artigos 5° do actual ETAF e 8° do anterior), estabelece que: «Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da

Page 67: Decisões STA

132 133

legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Por outro lado, os artigos 26°, 30°, 32°, 33°, 40°, 41°, 42°, 51° e 62° do diploma em apreço, distribuem a competência, em razão da hierarquia, pelos diversos tribunais da jurisdição, sendo que segundo o artigo 51º, n°1, alínea h) - vigente à data da propositura da acção que subjaz ao conflito:

«1. Compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer:…h) Das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes

públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorren-tes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso». (8)

A questão da qualificação dos actos de Administração como actos de gestão pública ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos deste Tribunal de Conflitos.

Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado (9).

Como referia Antunes Varela (10) actos de gestão pública são os que visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e assentam sobre o jus autorictatis da entidade que os pratica; os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos do Estado ou de outras pes-soas colectiva públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. (11)

Destarte, a solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar:

- Se tais actos se compreendem numa actividade do ente público em que este, despido do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado;

- Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, indepen-dentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas (12)

No caso em apreço, atenta a forma como foi estruturada a causa que subjaz ao conflito, é de concluir estarmos em presença de uma acção sobre responsabilidade civil (extracontratual) do Estado por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.

Com efeito, como já atrás deixámos consignado, vem pedida indem-nização ao Estado por comportamento alegadamente ilícito de um ente público (Repartição de Finanças de Santa Maria da Feira), comporta-

mento assumido no exercício dos seus poderes próprios e na realização da sua especifica função pública.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, declarando -se competente para conhecer da matéria objecto da acção intentada pela recorrente contra o Estado o tribunal administrativo de círculo.

Sem tributação - artigo 96º, do Regulamento aprovado pelo Decreto nº 19243, de 16 de Janeiro de 1931.

Lisboa, 31 de Maio de 2006. — António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes (Relator) — Pires Esteves — António Fernando da Silva Sousa Grandão — Jorge de Sousa — Rosendo José.

(1) Vem ainda alegado que, após a decisão que declarou nula a compra/venda do imóvel penhorado (prolatada em 17 de Outubro de 2001), foi requerido à Repartição de Finanças de Santa Maria da Feira a restituição da importância de € 36.761,41 depositada por conta do preço, pedido formulado em 28 de Novembro de 2001, sendo que até à data da propositura da acção (o que se verificou em 17 de Janeiro de 2002) nada foi restituído.

Dos elementos juntos aos autos consta que a restituição daquela quantia ocorreu no dia 4 de Fevereiro de 2002.

(2) Cf. entre outros os acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 91.01.31, AD, 361 e de 93.07.06, Conflito n° 253, do STJ, de 87.02.03, BMJ 364, 591, de 90.02.20, BMJ 394, 453, de 94.01.12, CJ STJ), II, 1, 328 e de 95.05.09, CJ STJ), III, II, 968, e do STA, de 89.03.09, Recurso n.° 25084, de 93.05.13, Recurso n.°25084, de 93.05.13, Recurso nº31478, de 00.10.03, Recurso n.°. 356 e de 00.07.11, Recurso n°318.

No mesmo sentido se pronunciam Alberto dos Reis, Comentário Código de Processo Civil, 1º, 110 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1°, 88.

(3) Como expressamente se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos de 03.05.13, pro-ferido no Conflito n.° 11/02, a competência dos tribunais em razão da matéria afere -se pelo quid decidendum e não pelo quid decisum, ou seja, a determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pela demandante deve partir do teor dessa pretensão e dos fundamentos em que se baseia sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma, por se tratar de questão atinente ao mérito da causa - no mesmo sentido o acórdão do Tribunal d Conflitos de 04.09.23, proferido no Conflito n.° 5/04.

(4) Vem invocado, mais concretamente, que do auto de penhora e dos anúncios constava que ao prédio deles constantes fora concedido alvará de licenciamento de loteamento urbano pela Câmara Municipal da Feira, com o n.° 6/98, de 24 de Abril de 1989, quando é certo que aquele alvará de loteamento nada tinha a ver com o prédio penhorado e por si adquirido, prédio que, sendo parte integrante de uma reserva ecológica, não permitia a implantação de qualquer construção, desconformidade que a demandante alega que a Repartição de Finanças de Santa Maria da Feira não podia desconhecer.

(5) Como atrás se consignou, mais alegou a demandante que após a decisão que declarou nula a compra/venda do imóvel penhorado, foi por si requerido à Repartição de Finanças respectiva a restituição da importância depositada por conta do preço, pedido que formulou em 28 de Novembro de 2001; consta dos elementos juntos aos autos que a restituição se verificou em 4 de Fevereiro de 2002.

(6) A responsabilidade civil extra -obrigacional do Estado e demais entidades públicas, abrangendo quer a actividade administrativa, quer a legislativa, quer a judicial, encontra -se consagrada no artigo 22°, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual: «O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos e garantias ou prejuízo para outrem», preceito que consagra um princípio geral de directa responsabilidade civil do Estado, por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa, administrativa e jurisdicional, sendo que o direito de indemnização daí decorrente está sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias - artigo 17°, da Constituição da República - razão pela qual é directamente aplicável, não dependendo de lei para poder ser invocado pelo lesado.

(7) Apesar de a competência dos tribunais administrativos ser limitada, por confronto com a competência genérica dos tribunais judiciais, pode -se e deve -se actualmente afirmar que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição — neste preciso sentido os acórdãos do Tribunal Constitucional n°s 508/94 e 347/97, publicados nos DR de 94.12.13 e de 97.07.25, bem como os acórdãos do STA de 96.10.03 e de 03.02.27, proferidos nos Recursos n.°s 41.403 e 285/03.

Page 68: Decisões STA

134 135

(8) Bold nosso.(9) Neste sentido, podem ver -se os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 81.05.11, proferido

no Processo n.° 124, publicado no BMJ, 311, 195, de 83.10.20, proferido no Processo n.° 153, publicado em Apêndice ao Diário da República de 86.03.04, 18, de 89.01.12, proferido no Processo n.° 198, de 99.05.12, proferido no Processo nº 338, publicado em Apêndice ao Diário da República de 00.07.31, 19, e de 06.01.18, proferido no Recurso n.°12/05.

(10) Obrigações em Geral (7ª edição), 1,643.(11) Em sentido coincidente pronunciou -se Vaz Serra, RLJ 103°, 350, ao expender que a

distinção se deve fazer atendendo a se o acto se integra, ou não, numa actividade de direito público da pessoa colectiva: se ele se compreende numa actividade de direito privado da pessoa colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida por um particular, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão privada: se, pelo contrário, o acto é praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de função pública, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública.

(12) Cf o acórdão do Tribunal de Conflitos de 81.05.11, atrás citado.

Acórdão de 20 de Junho de 2006.Processo n.º 13/06 -70.Requerente: A magistrada do Ministério Público, junto do Supremo

Tribunal Administrativo, no conflito negativo de jurisdição entre o 7.° Juízo Cível da Comarca de Lisboa (3.ª Secção) e os Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais — 2.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Nuno Pedro de Melo Vasconcelos Cameira.

Acordam no Tribunal de Conflitos:1. Meinrad Karl Bambush impugnou judicialmente a decisão do Ins-

tituto de Segurança Social que lhe indeferiu o pedido de apoio judiciário ali formulado para intentar acção administrativa.

Distribuído o processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Lis-boa 2, foi aí proferida em 17.10.05 decisão a declarar o Tribunal in-competente em razão da matéria para conhecer da impugnação e a ordenar o envio dos autos para os Juízos Cíveis da mesma comarca, nos termos do art.° 28°, n°s 1 a 3, da Lei 34/04, de 29/7 (Lei do Apoio Judiciário — LAJ).

Distribuído o processo ao 7º Juízo cível, também este Tribunal se declarou por decisão de 28.10.05 incompetente em razão da matéria para apreciar a impugnação, considerando competente o Tribunal Ad-ministrativo e Fiscal.

Tendo ambas as decisões transitado em julgado, gerou -se assim um conflito negativo de jurisdição cuja resolução nos é pedida pela Exa. magistrada do MP junto do Supremo Tribunal Administrativo.

2. O art.° 28° da Lei do Apoio Judiciário dispõe que:“1. É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da

comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica, ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente.

2. Nas comarcas onde existam tribunais judiciais de competência especializada ou de competência específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de competência.

3. Se o tribunal se considerar incompetente, remete para aquele que deva conhecer da impugnação e notifica o interessado.

4. Recebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso disso, e imediatamente conclusa ao juiz que, por meio de despacho concisa-mente fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade ou manifesta inviabilidade”.

No entendimento do TAF 2, muito embora o pedido de apoio judiciário se destinasse, no caso em apreço, a intentar uma acção administrativa, a aplicação analógica do preceito transcrito, por forma a inscrever na jurisdição administrativa e fiscal a competência para decidir a impug-nação, não é viável porque está em causa uma situação de competência jurisdicional, na qual a lei teve em vista, apenas, o tribunal judicial de 1ª instância (art.° 62°, n° 1, da Lei 3/99, de 13/1 — LOTJ).

O magistrado do 7° juízo cível, diversamente, sustenta que o n° 2 do citado art.° 28° da LAJ impõe a apreciação da impugnação pelo tribunal materialmente competente para a decisão da causa em relação à qual foi peticionado o apoio judiciário, conclusão esta que ainda mais evidente se torna quando, como aqui sucede, aquela causa já se encontra pendente.

Interpretada à letra, a norma em apreço aponta no sentido que foi acolhido na decisão do TAF 2: porque a lei não distingue, com efeito, os casos em que a decisão impugnada respeita a pedidos de apoio judi-ciário que visam procedimentos da competência de órgãos jurisdicionais integrados em ordens diferentes da ordem judicial, é lícito entender -se que também o intérprete não deverá distinguir, por estar clara e inequi-vocamente expresso o pensamento legislativo; e assim, falando a lei somente em tribunais judiciais, a estes estaria cometida a competência material para apreciar todas as impugnações de decisões administrativas relativas à concessão de protecção jurídica, independentemente do facto de esta ser solicitada para causas da competência de tribunais integrados noutras ordens (nomeadamente a ordem administrativa e fiscal, a ordem constitucional e a ordem de fiscalização das contas públicas).

Só que a interpretação não deve nunca cingir -se à letra da lei; há que tomar em conta, no seu conjunto, os restantes elementos a que alude o art.° 9º, n° 1, do Código Civil, sem perder de vista, por um lado, que não pode ser considerado um pensamento legislativo sem um mínimo de correspondência verbal no texto da lei, mesmo que imperfeitamente expresso, e, por outro lado, que na fixação do sentido e alcance desta deverá o intérprete presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada, exprimindo adequadamente o seu pensamento.

Ora, a ponderação destes cânones interpretativos leva -nos à conclu-são de que está perfeitamente correcto o entendimento expresso pelo magistrado do 7° juízo cível de Lisboa.

Na verdade, como se observou num acórdão do STJ de 22.9.05 (P° 05B 1248), importa não esquecer que a circunstância de o apoio judiciário ter deixado de ser um incidente do processo não fez desaparecer as várias razões de peso que aconselham o tratamento conjunto dessa questão com a questão principal (o litígio propriamente dito) debatida no processo. Avulta entre elas a apertada conexão que inegavelmente existe entre a acção pendente ou a intentar e o incidente administrativo respeitante à concessão de protecção jurídica. Por isso faz todo o sentido pensar -se que, havendo nova jurisdicionalização da questão do apoio judiciário por força do recurso interposto, o legislador não deixou de querer, como dantes já queria, o tratamento de tudo — questão “incidental” e questão “principal” — pelo mesmo julgador. E é isto mesmo o que está consagrado no n° 2 do art.° 28° da LAJ, embora, literalmente, só para

Page 69: Decisões STA

136 137

aqueles casos em que o apoio judiciário requerido se destina a acção da competência de tribunais inseridos na ordem judicial, na jurisdição comum. Como resulta do exposto, contudo, a ratio legis do preceito vale com a mesma força persuasiva para as outras situações a que nos referimos, ou seja, para os casos em que a acção é da competência duma ordem diferente da ordem judicial. Em boa verdade, tudo leva a crer que o legislador pretendeu estabelecer regimes idênticos, e não opostos, para a jurisdição comum e para as outras ordens jurisdicionais. Seria aliás contraditório, como se pondera no aresto do STJ já citado, “invocar a separação das jurisdições para consagrar uma solução em que uma delas fica a decidir o que, em termos substanciais, é um inci-dente de uma outra”. Tem plena justificação, assim, interpretando -se extensivamente a norma jurídica em questão, dizer que as regras de competência ali fixadas se reportam não só à jurisdição comum, mas também à jurisdição administrativa e fiscal; é um entendimento que, não sendo repelido pela letra do preceito, está nitidamente enquadrado no seu espírito, tornando desnecessário o recurso à analogia.

3. Nestes termos, acorda -se em declarar competente para conhecer o recurso de apoio judiciário a que os autos se referem a jurisdição administrativa e fiscal.

Sem custas.Lisboa, 20 de Junho de 2006. — Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos

Cameira (relator) — Fernando Manuel Azevedo Moreira — Rosendo Dias José — António Bento São Pedro — António A. Moreira Alves Velho — Camilo Moreira Camilo.

Acórdão de 22 de Junho de 2006.Processo n.º 10/06 -70.Requerente: Ilídio da Rocha Pereira no conflito negativo de jurisdição,

entre o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu e o Tribunal Adminis-trativo e Fiscal de Viseu.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Manuel Oliveira Barros.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:Ilídio da Rocha Pereira, casado, madeireiro, de Mosteirô, Pepim,

Castro Daire, requereu em 1/2/2005, a concessão do beneficio do apoio judiciário na modalidade da dispensa de taxas de justiça e demais en-cargos com o processo para o efeito de deduzir oposição em autos de execução fiscal instaurada nos Serviços de Finanças de Viseu.

Por ofício de 4/5/2005, a Segurança Social comunicou -lhe ter -lhe sido concedida protecção jurídica limitada ao pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Interpôs, por isso, recurso para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, nos termos dos arts. 27° e 28° da Lei n°34/2004, de 29/7, de impugnação desse despacho do Director do Centro Distrital de Segu-rança Social de Viseu.

O Tribunal referido declarou -se, no entanto, incompetente em razão da matéria para conhecer desse recurso, e ordenou a remessa desses

autos ao Tribunal Judicial de Viseu, na conformidade do n°3° do predito art.28°.

Veio então a ser proferida decisão, por igual transitada em julgado, do 4° Juízo Cível de Viseu, que, reportando -se ao art.29°, n°1°, da Lei n°30 -E/2000, de 20/12, declinou, por sua vez, a sua competência material para conhecer do recurso aludido, atribuindo -a ao tribunal fiscal referido.

Em 11/10/2005, o recorrente requereu, ao abrigo do art.117°, n°1°, CPC, ao Tribunal da Relação de Coimbra a resolução de conflito (nega-tivo) que disse de competência surgido entre o Tribunal Administrativo e Fiscal e o Tribunal Judicial, de Viseu, ambos, uma vez que um e outro declinaram tê -la para conhecer do recurso aludido.

Ouvidas as autoridades em conflito, só o primeiro tribunal referido se pronunciou (arts. 118° e 119° CPC), notando estar -se perante conflito de jurisdição (e não de competência).

Observado o disposto no art.120°, n°1°, CPC, o mesmo veio a relevar o M°P°, com referência aos arts.209°, n°1°, e 213° da Constituição, e 115°, n°s 1° e 2°, e 116°, n°1°, CPC.

Destarte acertada a competência do Tribunal de Conflitos para re-solver o impasse acima delineado, foi declarada a incompetência para tanto da Relação de Coimbra e ordenada a remessa destes autos a este Tribunal.

O Digno Representante do M° P° junto do mesmo pronunciou -se no sentido da atribuição ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu da competência para conhecer do falado recurso do indeferimento de pedido de benefício de apoio judiciário.

Colhidos os vistos legais, há que apreciar e decidir. Assim:Observando, embora, que, deduzido o pedido de apoio judiciário em

1/2/2005, é a Lei n°34/2004, de 29/7, a aplicável, o M°Pº acompanhou a citação de Salvador da Costa, “Apoio Judiciário”, 3ª ed., 128, feita no despacho lavrado no predito Juízo Cível, segundo a qual, em suma, decorre do art.28°, nºs 1° e 2°, daquela Lei ser competente para conhecer do recurso em questão o tribunal que o for para conhecer da acção em função da qual o apoio judiciário foi requerido, mesmo se ainda não pendente em juízo.

Tratando -se, no caso, de um processo de natureza fiscal, daí a com-petência material do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.

Tal assim, prossegue, em vista, ainda, do art.49°, n°1°, al. d), do Esta-tuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei n°13/2002, de 19/2, que nomeadamente comete aos tribunais tributários a competência para conhecer dos incidentes e das oposições - por sua vez admitindo o art.166°, n°1°, al. c), do Código de Procedimento e Processo Tributário o incidente do apoio judiciário nos processos de execução fiscal. Por outro lado:

Como a sua própria designação manifesta, a oposição a que alude o art.203° do Código de Procedimento e Processo Tributário tem por fim impugnar a execução fiscal.

Correspondendo aos embargos de executado em processo civil (arts. 812° ss CPC), com conhecida natureza instrumental, tem -se, de facto, notado que, configurando -se, formalmente, como uma acção, a petição inicial respectiva assume, funcionalmente, o papel de contestação do pedido executivo, que visa impugnar. Pois bem:

Não obstante não se tratar, propriamente, dum incidente da oposição - ainda não deduzida - a execução fiscal, antes, na realidade, se apre-

Page 70: Decisões STA

138 139

sentando como um preliminar dessa oposição, não parece que se possa deixar de ver consagrada no art.28°, nºs 1° e 2°, da Lei n°34/2004, de 29/7, a regra accessorium sequitur principali (de que, nomeadamente, há afloramento na lei do processo civil em matéria de procedimentos cautelares, conforme art.383°, nºs 1° a 3°, CPC).

Como assim conforme com a boa razão a solução proposta pelo M°P°, decide -se declarar o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu competente para conhecer do recurso do indeferimento do pedido de benefício de apoio judiciário aludido.

Sem custas.Lisboa, 22 de Junho de 2006. — Manuel Oliveira Barros (relator) —

Rosendo Dias José — Manuel de Simas Santos — Maria Angelina Do-mingues — António Pereira Madeira — José Manuel da Silva Santos Botelho.

Acórdão de 04 de Julho de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Actos de gestão pública.

Sumário:

I — São actos de gestão pública os compreendidos no exer-cício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.

II — Os actos e omissões relativos ao licenciamento municipal de obras particulares são actos de gestão pública.

Processo n.º 11/06 -70.Requerente: João Gonçalves Martins e Filho, L.da, no conflito nega-

tivo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial de São Roque do Pico e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. António São Pedro.

Acordam no Tribunal de Conflitos:1. RelatórioJOÃO GONÇALVES MARTINS E FILHO LDA. devidamente iden-

tificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial de São Roque do Pico, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICÍ-PIO DA MADALENA, JORGE MANUEL PEREIRA RODRIGUES e JAIME ANTONIO SILVEIRA JORGE, pedindo a condenação dos réus a pagarem uma indemnização a título de danos patrimoniais:

a) no montante correspondeste à perda de a.078.340,10 euros, relativos à perda de lucros previsíveis, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não emitirem a licença de utilização, entre Outubro de 1999 e

Outubro de 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12 % ao ano, desde a data da citação até integral pagamento;

b) no montante de 27.100,00 euros, pelo não fornecimento de bens ou prestação de serviços, no período compreendido entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não contratarem os serviços da autora, acrescida de juros à taxa legal de 12 % ao ano, desde a data da citação até integral pagamento;

c) no montante de 10.815,48 euros, correspondente à quantia que dispendeu com a aquisição de inertes e aluguer de equipamentos nos anos de 1999 e 2000, acrescida de juros à taxa legal de 12 % ao ano, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.

Contestaram os réus invocando, em primeiro lugar a incompetência absoluta do tribunal, por entender em suma, que a alegada actuação dos réus releva claramente no âmbito da gestão pública, mais concretamente na denominada responsabilidade extracontratual da Administração Pú-blica, e portanto, da competência dos Tribunais Administrativos.

Por decisão de 5 de Novembro o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico absolveu os réus da instância por ter entendido que os actos praticados (ou não praticados) são iniludivelmente administrativos, quer quanto aos sujeitos requeridos, quer quanto à natureza do objecto, quer quanto ao fim, e, nessa medida, absolutamente incompetentes, em razão da matéria, os tribunais da ordem judicial.

A autora interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Por acórdão 5 -7 -2006, a Relação de Lisboa confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de S. Roque do Pico, negando provi-mento ao recurso.

A autora inconformada com tal acórdão recorreu do mesmo para o Supremo Tribunal de Justiça.

No Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Conselheiro Relator proferiu o seguinte despacho:

“O Tribunal da Relação de Lisboa julgou incompetente em razão da matéria o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico por entender que a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa. Assim, nos termos do disposto no art. 107°, 2 do C. P. Civil, o recurso destinado a fixar o tribunal competente devia ter sido interposto para o Tribunal de Conflitos. Remeta, pois, os autos ao Tribunal de Conflitos e informe o Tribunal da Relação de Lisboa”.

No Tribunal de Conflitos, o Ex.mo Procurador -geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser confirmado o acórdão da Relação de Lisboa.

Com dispensa de vistos foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Fundamentação2.1. Matéria de factoCom interesse para o julgamento do recurso são relevantes os se-

guintes factos:a) JOÃO GONÇALVES MARTINS E FILHO LDA. intentou no Tri-

bunal Judicial de São Roque do Pico, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICIPIO DA MADALENA, JORGE MANUEL PEREIRA RODRIGUES e JAIME ANTONIO SILVEIRA JORGE, pedindo a condenação dos réus a pagarem uma indemnização a título de danos patrimoniais:

i) no montante correspondeste à perda de a.078.340,10 euros, relativos à perda de lucros previsíveis, como consequência da conduta dolosa dos

Page 71: Decisões STA

140 141

réus ao não emitirem a licença de utilização, entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12 % ao ano, desde a data da citação até integral pagamento;

ii) no montante de 27.100,00 euros, pelo não fornecimento de bens ou prestação de serviços, no período compreendido entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, como consequência da conduta dolosa dos réus ao não contratarem os serviços da autora, acrescida de juros à taxa legal de 12 % ao ano, desde a data da citação até integral pagamento;

iii) no montante de 10.815,48 euros, correspondente à quantia que dispendeu com a aquisição de inertes e aluguer de equipamentos nos anos de 1999 e 2000, acrescida de juros à taxa legal de 12 % ao ano, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.

b) Contestaram os réus invocando, em primeiro lugar a incompetência absoluta do tribunal, por entender em suma, que a alegada actuação dos réus releva claramente no âmbito da gestão pública, mais concretamente na denominada responsabilidade extracontratual da Administração Pú-blica, e portanto, da competência dos Tribunais Administrativos.

c) Por decisão de 5 de Novembro o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico absolveu os réus da instância por ter entendido que os actos praticados (ou não praticados) são iniludivelmente administrativos, quer quanto aos sujeitos requeridos, quer quanto à natureza do objecto, quer quanto ao fim, e, nessa medida, absolutamente incompetentes, em razão da matéria, os tribunais da ordem judicial.

d) A autora interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa.

e) Por acórdão 5 -7 -2006, a Relação de Lisboa confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de S. Roque do Pico, negando provi-mento ao recurso.

2.2. Matéria de direitoA questão que se coloca, neste processo, é a de saber qual a jurisdição

competente para julgar um pedido de indemnização por factos ilícitos formulado contra o Município de Madalena, Jorge Manuel Pereira Rodrigues (Presidente da Câmara) e Jaime António Silveira Jorge (fun-cionário do Município).

Tanto a 1ª instância, como a Relação entenderam que os factos ilícitos imputados aos titulares dos órgãos do réu, deveriam ser qualificados como actos de gestão pública e, por isso, consideraram os tribunais da “ordem judicial” materialmente incompetentes para julgar a acção. No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a autora insurgia -se contra a declarada incompetência material, com os argumentos já invocados junto da Relação, ou seja:

“V - o cerne deste caso concreto radica em saber se os réus, ora recorridos, agiram ou não desprovidos da veste pública.

VI - quando os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge em conluio, ma-nipularam os residentes do lugar dos Toledos, concelho da Madalena para se manifestarem contra a Central de Britagem de Pedra que a autora estava a instalar, parece óbvio que estamos perante um acto de gestão privada, desprovido de veste pública e como tal deve ser competente para decidir o Tribunal de São Roque e não os Tribunais Administrativos;

VII - A ré Município da Madalena demorou três anos para deliberar de que as obras de construção civil de instalação da Central de Britagem estavam isentas de licenciamento, não obstante os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge, durante esse período terem agido com o intuído de afectar

a actividade da ora autora, pois sabiam as obras de construção civil estavam isentas de licenciamento, apesar de fazerem crer que não.

VIII - os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge praticaram actos de gestão privada e não de gestão pública, pelo que agiram desprovidos da veste pública. Grande parte dos prejuízos causados à autora decorrem de actos em que os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge não estavam munidos da veste pública” (cfr. Fls. 384).

Vejamos.A competência do tribunal afere -se em função da pretensão (pedido

e causa de pedir) do autor. “A competência do tribunal - ensina Redenti - “afere -se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; (…). É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não impor-tando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1079, pág. 91

Na presente acção a autora resume a sua pretensão pedindo o ressar-cimento de três tipos ou categorias de danos.

Um primeiro tipo de danos emergente pela não emissão dolosa de uma licença de utilização; um segundo tipo de danos emergente de uma conduta dolosa dos réus em não celebrarem com a autora contratos de fornecimento de bens e serviços e, finalmente um terceiro tipo de danos com aquisição de inertes e aluguer de equipamentos.

Todos estes danos estão conexionados com a não emissão tempestiva da licença de utilização de uma Central de Britagem, entre Outubro de 1999 e Outubro de 2002, englobando os lucros cessantes, a inexistência de contratos com o Município e os gastos no ano de 2000 no aluguer de máquinas e aquisição de inertes, resultantes de tal indústria.

Tal decorre, com toda a clareza do alegado no art. 43º, 44º, 45º, 46º e 47° da petição inicial:

“43ºNão fora a conduta persecutória dos réus, a autora tinha no mínimo

obtido o alvará de licença de utilização das obras de construção civil, em Outubro de 1999 (quarenta e cinco dias após a entrega do pedido de licenciamento, documento 6, pois as obras existentes nessa data não sofreram qualquer alteração).

44°Na verdade, a conduta dos réus impediu que a Central de Britagem

iniciasse a sua laboração, pelo menos, durante trinta e seis meses antes do seu início, ou seja em Outubro de 1999, e em vez de Outubro de 2002, como viria a suceder.

45ºO artigo 22° da Constituição da República diz: “O Estado e as demais

entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticados no exercício das suas funções e por causa do exercício de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

Page 72: Decisões STA

142 143

46°.Os titulares dos órgãos da 1ª ré, neste caso concreto os réus Jorge

Rodrigues e Jaime Jorge e os seus funcionários não agiram nos termos a que estavam obrigados no exercício das suas funções.

47°Os titulares dos órgãos da 1ª ré, ou seja, os réus Jorge Rodrigues

e Jaime Jorge, e a 1ª ré tinham de se limitar a emitir o não a licença relativa às obras de construção civil da Central de Britagem de Pedra”

É, portanto, claro que, tal como a autora desenhou a causa e formulou a sua pretensão, os factos ilícitos geradores da responsabilidade civil são os actos e omissões dos réus Jorge Manuel Pereira Rodrigues e Jaime António Silveira Jorge, enquanto “funcionários” do Município réu.

A argumentação da autora, alegando que os réus manipularam a po-pulação contra a instalação da Central de Britagem, não é determinante, pois não foi essa alegada manipulação que lhe causou os peticionados danos. Os danos resultaram, sim, do facto sintetizado no art. 15° da petição inicial, ou seja no facto da autarquia ter estado “três anos para emitir uma licença de utilização”.

A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos pode ser accionada nos Tribunais Judiciais, quando os actos lesivos sejam praticados “no exercício de actividades de gestão privada” (art. 501° do C. Civil). E podem ser accionada na Jurisdição Administra-tiva, quando tais actos sejam praticados no exercício de actividades de gestão pública (art. 3º e 51º, 1, al. h) do ETAF então em vigor — Dec.lei 129/84, de 27 de Abril).

“Actos de gestão pública — como se diz no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4 -4 -2006, proferido no 08/03 - são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado - Neste sentido, podem ver -se os seguintes acórdãos: — do Tribunal dos Conflitos de 5 -11 -1981, processo n.° 124, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.° 311, página 195; —do Tribunal dos Conflitos de 20 -10 -1983, processo n.° 153, publicado em Apêndice ao Diário da República de 3 -4 -1986, página 18; — do Tribunal dos Conflitos de 12 -1 -1989, processo n.° 198, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n° 330, página 845; — do Tribunal dos Conflitos de 12 -5 -1999, processo n.° 338, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31 -7 -2000, página 19; — do Supremo Tribunal Administrativo de 22 -11 -1994, recurso n.° 33332, pu-blicado em Apêndice ao Diário da República de 18 -4 -1997, página 8256; — de 29 -6 -2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.° 1/04.)“

Como se destaca no acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo n.° 124 citado: «A solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos

titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar: — Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particu-lares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado; — Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.»

No caso dos autos, como se viu, a prática e a omissão de actos re-lacionados com a emissão da licença de utilização de uma Central de Britagem, ou melhor com a sua emissão tempestiva foram, na tese da autora, os actos que lhe causaram os prejuízos invocados (os actos ilícitos).

Ora, a licença de utilização a emitir pela 1ª ré, era sem dúvida um acto de gestão pública. O Dec. Lei 445/91, de 15 de Outubro, com as modificações introduzidas pelo Decreto -Lei n.° 250/94 de 15 de Outu-bro atribuía às Câmaras Municipais e ao seu Presidente atribuições em matéria de licenciamento de obras particulares. Mais concretamente a atribuição da licença e alvará de utilização era da competência do Presidente da Câmara (art. 26° do citado diploma). O preâmbulo do Dec. Lei 250/94, de 15 de Outubro chama -lhe “regime de licenciamento municipal de obras particulares”.

O atraso na emissão de tal licença bem como a falta de diligência na análise da respectiva situação de facto, sobre a necessidade, ou não, de licenciamento da construção, também são actos inerentes às atribuições que em matéria de licenciamento de obras são cometidas aos órgãos do Município. O autor juntou, inclusivamente, aos autos fotocópia do auto de embargo relativo à instalação de uma Britadeira, o que mostra que toda a actividade causadora dos danos se relacionava com as funções da Câmara Municipal no âmbito dos seus poderes públicos no licenciamento municipal de obras particulares.

Não é duvidoso que o regime de licenciamento de obras particulares, implicando um condicionamento do “jus aedificandi”, por razões de interesse geral (ordenamento do território, salubridade e estética das povoações) tem natureza de direito público, pelo que a intervenção das entidades com atribuições nesta matéria, no âmbito das mesmas, traduz o exercício de uma actividade de gestão pública,

Nos termos do art. 51, al. h) do ETAF compete aos tribunas admi-nistrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado e dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.

Assim, deve negar -se provimento ao recurso, considerando os tribu-nais judicias incompetentes em razão da matéria para apreciar a presente acção, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada — cfr. art. 107°, 2 e 3 do C.P. Civil.

3. DecisãoFace ao exposto, os juízes do Tribunal de Conflitos acordam em

negar provimento ao recurso, considerando incompetente em razão da

Page 73: Decisões STA

144 145

matéria o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada.

Sem custas.Lisboa, 4 de Julho de 2006. — António Bento São Pedro (relator) — An-

tónio da Silva Henriques Gaspar — Manuel Maria Duarte Soares — João Moreira Camilo — António Políbio Ferreira Henriques — Edmundo António Vasco Moscoso.

Acórdão de 6 de Julho de 2006.Processo n.º 7/06 -70Recorrente: magistrada do Ministério Público junto do STA, no con-

flito negativo de jurisdição entre o 9.° Juízo Cível da Comarca de Lisboa e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa (2.°Juízo).

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Paulo Armínio de Oliveira e Sá.Adjuntos: João Camilo, Madeira dos Santos, José Cândido de Pinho,

Borges Soeiro e Alberto Augusto.

Acordam no Tribunal de Conflitos:1. Ana Rita de Sampaio Palhinha da Silva Correia apresentou nos

Juízos Cíveis da Comarca de Lisboa recurso de impugnação judicial da decisão do Centro Distrital de Lisboa do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, que indeferiu o seu pedido de concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos, com vista a deduzir oposição a uma execução fiscal.

2. Distribuído o processo ao 9.º Juízo Cível, o M.mo Juiz proferiu decisão, datada de 28 de Setembro de 2005, declarando a incompetência material desse tribunal para a tramitação dos autos, ordenando a remessa ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa (doravante TAF).

3. Fundamenta -se tal decisão no seguinte:a) O pedido de apoio judiciário em causa destina -se a deduzir oposição

a uma execução fiscal que já corre termos no TAF de Lisboa;b) A decisão em análise não cabe na previsão da primeira parte do

n.° 1 do artigo 28.°, da Lei n.° 34/04, de 29 de Julho, segundo a qual é competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da co-marca em que está sediado o serviço de Segurança Social que apreciou o pedido de apoio judiciário,

c) antes cai na previsão da segunda parte dessa disposição, de acordo com a qual, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, é competente o tribunal em que esta se encontra pendente.

4. Porém, remetidos os autos ao TAF de Lisboa (2.° Juízo) foi, também aí, proferida decisão, em 8 de Novembro de 2005, a julgar -se incom-petente, em razão da matéria, para conhecer da referida impugnação e a determinar a remessa dos autos aos Juízos Cíveis da Comarca de Lisboa, por serem os competentes, ao abrigo do n.° 1 do artigo 28.°, da Lei n.º 34/04.

5. Sustenta o M.mo Juiz do TAF que:a) Face à primeira parte do nº. 1 do artigo 28.° e seu n.° 2, a 2ª parte

do n.° 1 da citada disposição legal, deve ser interpretada como visando

apenas os casos em que as acções pendentes ocorrem na ordem dos tribunais judiciais;

b) Assim, “o tribunal judicial de 1ª instância será o competente para conhecer da impugnação, não só na hipótese de o pedido de protec-ção jurídica haver sido formulado para os procedimentos em geral da competência dos tribunais tributários, administrativos, de contas ou do tribunal constitucional, a implementar subsequentemente junto deles, como também nos casos em que o pedido de protecção jurídica foi formulado na pendência de procedimentos em alguns deles”.

6. As decisões em causa transitaram, respectivamente, em julgado em 20 de Outubro de 2005 e 24 de Novembro de 2005.

7. Está configurado um conflito negativo de jurisdição.8. Foram notificadas as partes para se pronunciarem e foi dada vista

ao M.º P.º9. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:II. Questão prévia será a de determinar a lei aplicável.O último diploma sobre apoio judiciário é a Lei 34/2004 de 29/07,

cujo início de vigência foi determinado para o dia 1 de Setembro de 2004 (art. 51.°).

Segundo o n.° 2 dessa disposição, esta lei será aplicável aos processos iniciados após a sua vigência, ou seja, após 1 de Setembro de 2004.

O pedido de apoio foi apresentado em 10 de Fevereiro de 2005 (certi-dão de fls.28/29), pelo que lhe é aplicável a Lei 34/2004 e não a revogada Lei 30 -E/2000, de 20 de Dezembro.

Segundo o n.° 1 do art. 28.° da citada Lei, o tribunal competente para a impugnação judicial é o “tribunal da comarca” em que está sediado o serviço da Segurança Social que apreciou o pedido ou, caso este tenha sido formulado na pendência da acção, o “tribunal” em que esta se encontra pendente.

Acrescenta o n.° 2 que “nas comarcas onde existem tribunais de competência especializada ou de competência específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de competência”.

Sobre o preceito antes citado diz SALVADOR DA COSTA (O Apoio Judiciário, 5ª Edição actualizada e ampliada, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 184 e 185): “Ao reportar -se ao tribunal de comarca, contra a realidade das coisas envolvente da existência de ordens de tribunais diversa da judicial cujos processos comportam a concessão da protecção jurídica, a lei apenas teve em vista o tribunal judicial de 1ª instância (artigo 62.°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro).

“Como a segunda parte deste normativo está directamente conexio-nada com a primeira, a competência para decisão da impugnação no caso de a protecção jurídica haver sido pedida para acções pendentes só visou as hipóteses de essa pendência ocorrer na ordem dos tribunais judiciais.

“Nesta perspectiva, o tribunal judicial de 1ª instância será o com-petente para conhecer da impugnação, não só na hipótese de o pedido de protecção jurídica haver sido formulado para os procedimentos em geral da competência dos tribunais tributários, administrativos, de contas ou do Tribunal Constitucional, a implementar subsequentemente junto deles, como também nos casos em que o pedido de protecção jurídica foi formulado na pendência de procedimentos em alguns deles.”

Refere ainda mais adiante (idem, pp. 186 e 187) o mesmo Autor: “Já se suscitou a questão de saber se a regra de competência que o normativo em análise insere não deverá ser adaptada às situações em

Page 74: Decisões STA

146 147

que a impugnação da decisão administrativa incida sobre o pedido de protecção jurídica destinado a acções ou procedimentos da competência de tribunais inseridos em ordens diversas da judicial, como é o caso dos tribunais administrativos, fiscais, do Tribunal de Contas e do Tribunal Constitucional.

“Na realidade, há estreita conexão entre a causa judicial concreta pendente ou a intentar e o incidente administrativo da concessão da protecção jurídica

(…).“A lógica da previsão sobre esta matéria implicaria a solução geral

de que a competência para a decisão da impugnação se inscrevesse no órgão jurisdicional onde o procedimento estivesse pendente ou, no caso de ainda não estar pendente, no órgão competente para dele conhecer.

“Mas não foi isso, coerente ou incoerentemente, que ficou consagrado na lei ao não distinguir as hipóteses de a decisão recorrida se reportar a pedido de protecção jurídica com vista a procedimentos da competência de órgãos jurisdicionais integrados em ordens de tribunais diversas da ordem judicial.

“Tendo em conta que se está perante uma situação de competência jurisdicional, não se afigura viável a aplicação analógica do referido normativo aos casos em que a impugnação da decisão administrativa se reporta a pedidos de protecção jurídica relativos a causas da competência de órgãos jurisdicionais integrados em ordens de tribunais diversas da ordem judicial.”

Não perfilhamos inteiramente esta posição interpretativa.De facto, nos termos do artigo 17.° da Lei 34/04 o “regime de apoio

judiciário aplica -se a todos os tribunais e nos julgados de paz, qualquer que seja a forma do processo” (n.° 1), bem como, com as devidas apli-cações “aos processos de contra -ordenações e aos processos de divórcio por mútuo consentimento, cujos termos corram nas conservatórias de registo civil” (n.° 2).

Da referência feita atrás a todos os tribunais, parece dever distinguir--se, na interpretação do artigo 28.°, entre tribunal de comarca ou tribunal judicial de primeira instância e tribunal “tout court”.

A regra da competência, em primeira linha, para o tribunal judicial de 1ª instância e a explicitação, só aqui necessária, da regra do n.° 2 do citado artigo é facilmente compreensível, uma vez que não é exigível à Segurança Social que tenha exacta noção de qual a espécie de tribunal ou a entidade que tem competência para decidir do pedido que se pre-tende formular e, porque se pretende evitar a ocorrência de conflitos de jurisdição.

Já não assim, se já existe uma acção pendente em tribunal.Neste caso, o legislador não utiliza a designação de “tribunal de

comarca” ou “tribunal judicial” e, havendo um processo pendente, o n.° 2 do citado normativo não é de aplicar.

A expressão “tribunal» parece, pois, dever ser entendida, tal como no atrás citado artigo 17.° e de acordo com a formulação do artigo 209.°, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, as razões que justificaram, na nossa perspectiva, a opção do legislador quanto ao primeiro segmento do n.° 1 do artigo 28.° da Lei 34/04, já não se verificam no segundo segmento da norma, registando--se, pelo contrário, a favor desta distinção, vantagens de economia e celeridade processuais.

Acontecendo que a causa conexa é da competência da jurisdição fiscal, onde pende e tratando -se aqui da competência jurisdicional, deve entender -se ser o tribunal onde corre a execução (acção, no sentido do artigo 2.°, n.° 2 do Código de Processo Civil e 20.° n.°1 da Constitui-ção da República Portuguesa) o competente para apreciar o pedido de impugnação do indeferimento do apoio judiciário.

Ou seja, o TAF de Lisboa.III. Decisão:Pelo exposto, acordam em declarar competente o Tribunal Admi-

nistrativo e Fiscal de Lisboa (2.° Juízo) para conhecer do recurso de impugnação judicial da decisão do Centro Distrital de Lisboa do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, que indeferiu o pedido de concessão do benefício de apoio judiciário formulado.

Sem custas.Lisboa, 6 de Julho de 2006. — Paulo Armínio Oliveira e Sá (rela-

tor) — João Moreira Camilo — Azevedo Moreira — Borges Soeiro —Madeira Santos — Jorge de Sousa.

Acórdão de 6 de Julho de 2006.

Assunto:

REFER, E. P. Admissibilidade do recurso. Responsabilidade civil extracontratual. Estatutos da REFER. Norma atribu-tiva de competência. Constitucionalidade.

Sumário:

I — Nada obsta a que o Tribunal dos Conflitos conheça do recurso interposto de um acórdão da Relação que deveria ser -lhe direccionado mas que, por um erro ini-cial depois corrigido, fora interposto e admitido para o STJ.

II — O artigo 32.º, n.º 1, dos estatutos da REFER, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril, dispunha que competia aos tribunais judiciais o julgamento das acções em que ela fosse demandada por responsabili-dade civil extracontratual.

III — Essa norma, na medida em que reproduzia quase «ip-sis verbis» o estatuído no então vigente artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, não padecia de inconstitucionalidade material ou orgânica.

IV — A mesma norma prevalecia sobre quaisquer considera-ções que «in concreto» se tecessem acerca da natureza administrativa do litígio ou que «in abstracto» se pre-tendessem extrair do anterior ETAF.

V — Assim, compete aos tribunais judiciais conhecer da acção, interposta em 2003, em que a autora visa obter a condenação da REFER no pagamento de uma indem-nização pelos prejuízos sofridos em resultado de uma

Page 75: Decisões STA

148 149

obra executada numa estação ferroviária e em áreas limítrofes, danos esses que teriam advindo de a obra ter dificultado o acesso do público a um estabelecimento comercial da autora que assim viu drasticamente redu-zida a respectiva facturação.

Processo n.º 28/05 -70.Requerente: Panificação Reunida de Queluz, L.da, no conflito negativo

de jurisdição entre a 2.ª Vara Mista da Comarca de Sintra e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Madeira dos Santos.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:Panificação Reunida de Queluz, Ld.ª, interpôs no Tribunal Judicial

da comarca de Sintra uma acção fundada em responsabilidade civil e na qual pediu a condenação da ré Rede Ferroviária Nacional – REFER, EP, no pagamento da quantia de 467.128,80 euros e respectivos juros moratórios.

Suscitada pela ré a incompetência do tribunal «ratione materiae», o Mm.º Juiz julgou essa excepção improcedente por considerar que a alegada responsabilidade civil dimanava da execução de obras que traduziam «um manifesto acto de gestão privada».

Desse despacho, a REFER agravou para a Relação de Lisboa. E este tribunal de 2.ª instância, através do acórdão cuja cópia consta de fls. 74 a 78 destes autos, qualificou as sobreditas obras como uma actividade de «gestão pública», determinante do conhecimento do pleito pelos tribunais administrativos – pelo que concedeu provimento ao agravo e absolveu a ré da instância.

A autora recorreu desse aresto, tendo sucessivamente indicado, como tribunal «ad quem», o STJ e este Tribunal dos Conflitos – como melhor veremos «infra». E terminou a sua alegação de recurso com o ofereci-mento das conclusões seguintes:

A – Dispõe o art. 32º do Estatuto anexo ao DL n.º 104/97 (Estatuto da agravada), cuja epígrafe é «tribunais competentes», o seguinte:

“n.º 1 – Sem prejuízo decorrente do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 3º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte a REFER, EP, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a res-pectiva empresa.

n.º 2 – São da competência dos tribunais administrativos os julgamen-tos dos recursos dos actos dos órgãos da REFER, EP, que se encontrem sujeitos a um regime de direito público, bem como o julgamento das acções sobre validade, interpretação ou execução dos contratos admi-nistrativos celebrados pela empresa.”

B – Daí decorre que o tribunal competente para julgar o presente pleito é o tribunal comum, no caso concreto as Varas Cíveis da comarca de Sintra, uma vez que há preceito expresso e taxativo que assim estabelece e que, como lei especial, sempre se sobreporia a qualquer interpretação em contrário que porventura decorresse do ETAF aplicável à data da interposição da presente acção – a lei especial revoga a lei geral.

C – Com efeito, o caso em lide não se subsume a qualquer uma das situações referidas nos arts. 3º, n.º 2, al. a), e 32º, n.º 2, do Estatuto da agravada, que constitui o anexo I do citado DL n.º 104/97, razão pela qual

se aplica o disposto nos termos do n.º 1 do referido art. 32º, que funciona como verdadeiro repositório residual de competência judicial.

D – Independentemente, porém, da existência de lei expressa e es-pecial, para mais posterior ao ETAF aplicável à data da propositura da acção (pelo que nem sequer é preciso entrar em linha de conta com o estatuído no art. 7º, n.º 3, do Código Civil, sendo certo que, mesmo que assim não fosse, sempre salientaria a competência «in casu» dos juízos comuns e a consequente incompetência dos tribunais administrativos), sempre haveria de se levar em linha de conta o seguinte:

E – Existe uniformidade jurisprudencial no sentido de que a compe-tência se afere pelo pedido do autor e que, não cabendo uma causa na competência de outro tribunal, ela é da competência do tribunal comum (v. acórdão do STJ de 3/2/87, «in» BMJ, 364º, 591), conforme resulta do art. 213º da CRP, dos arts. 13º, 14º e 56º da LOTJ e dos arts. 66º e 67º do CPC.

F – O critério dominante para se aferir da competência do tribunal não é tanto, pois, o de saber quem pratica o acto ou a omissão, mas qual a natureza do acto em causa, havendo, portanto, que ter em consideração os termos em que a acção foi proposta e a natureza do acto praticado.

G – No caso vertente, a causa de pedir apresentada pela autora e ora agravante entronca na responsabilidade civil emergente da execução de obras ou, melhor dizendo, dos efeitos secundários destas e do seu reflexo na zona circundante, quer no plano físico, quer humano, traduzida pelos factos concretos alegados na petição inicial, constituindo o pedido, por-tanto, o ressarcimento dos danos provocados por aqueles factos.

H – Não há, portanto, entre agravante e agravada, qualquer relação jurídica administrativa, sendo certo que aquela se limita a demandar esta, a título de responsabilidade civil extracontratual, pela prática de acto lícito, já que uma das funções da agravada é justamente a construção e manutenção da infra -estrutura ferroviária, sendo portanto a obra em causa efectuada no âmbito das suas funções.

I – Contudo, entende a agravante que o âmago da questão, justamente por não residir na prática do acto – que não se questiona – mas sim pela natureza das suas consequências, que em termos de danos extravasam claramente, pela sua natureza e dimensão, os limites estabelecidos pelo art. 266º da CRP, pois, mesmo entendendo -se que as obras cons-tituem «gestão pública», a verdade é que esta pressupõe uma actuação correspondente ao exercício do poder de autoridade e exige que os meios utilizados sejam adequados ao prosseguimento das atribuições conferidas por lei ao agente.

J – No caso vertente, tal não sucedeu. Basta ater ao arrastar das obras, ao cerceamento do fluxo normal de pessoas, à intransitabilidade das ruas limítrofes e dos respectivos acessos, tudo factos que originaram em termos brutais e deveras anormais os danos cujo ressarcimento se pede, que o legislador não quis, com toda a certeza, «legalizar», considerando--os como «gestão pública».

L – Ora, quando, como é o caso, uma entidade, mesmo pública, e ainda que prosseguindo um fim público, assim actua, não está a agir investida de qualquer poder de autoridade, nem ao abrigo de normas de direito público, ou a praticar actos de «gestão pública».

M – De facto, passa a estar sujeita exactamente às mesmas regras, deveres e obrigações que resultariam para um particular colocado na sua posição, pelo que os seus actos e respectivas consequências passam a

Page 76: Decisões STA

150 151

constituir «gestão privada», ou seja, são destituídos de «jus auctoritatis», regendo -se por normas de direito privado.

N – Sucede que os tribunais administrativos, como se escreve no acórdão do Supremo de 4/3/97, «in» CJ, V, 1.º, 125 (Acs. STJ) só diri-mem litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e nunca questões de direito privado; daí que a responsabilidade civil extracon-tratual da agravada, que só envolve questões de direito privado, seja da competência dos tribunais comuns, conforme resulta, aliás, do art. 4º, n.º 1, al. f), do ETAF aplicável.

O – Tem, por isso, razão a douta sentença da 1.ª instância, que clas-sifica a questão em lide – ressarcimento de danos – à luz da «gestão privada», quando sustenta que a posição da agravada não se pauta nem se desenvolve com «jus auctoritatis».

A REFER contra -alegou, formulando as conclusões seguintes:1 – Tendo o Tribunal da Relação de Lisboa declarado o tribunal

judicial incompetente para a causa, em razão da matéria, o tribunal competente para conhecer do presente recurso é o Tribunal de Conflitos – art. 107º, n.º 2, do CPC.

2 – Não podendo, consequentemente, o STJ conhecer do recurso, devendo ser julgado findo, dado que o recurso foi interposto e admitido para este Supremo Tribunal, opondo -se também a recorrida ao aprovei-tamento do processado, nos termos do art. 105º, n.º 2, do CPC.

3 – O recurso da recorrente vem circunscrito a matéria de direito – competência em razão da matéria – porém, a recorrente, nas suas conclusões, não indica as normas jurídicas violadas nem as normas que, em sua opinião, o tribunal deveria ter aplicado, verificando -se ainda falta de síntese nas suas conclusões.

4 – Assim, não deu cumprimento ao exigido no art. 690º, ns.º 1 e 2, als. a) e c), do CPC, pelo que se requer que seja aplicado o disposto no art. 690º, n.º 4, do CPC, sob pena de não se conhecer do recurso.

5 – Em relação ao art. 32º, n.º 1, dos Estatutos da recorrida, anexos ao DL 104/97, de 29/4, norma invocada pela recorrente como determinante da competência do tribunal cível para a presente acção, tal norma não tem o sentido que a recorrente pretende extrair da mesma.

6 – Com efeito, a mesma deve ser interpretada no sentido de serem da competência dos tribunais judiciais todos os litígios em que seja parte a REFER, EP, quando essa competência não esteja reservada, obviamente, a outra ordem jurisdicional, sob pena de a mesma colidir com a regra constitucional do tribunal cível não poder exercer jurisdição em áreas atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211º, n.º 1, da CRP.

7 – Pelo que a interpretação da norma do art. 32º, n.º 1, dos Estatutos da recorrida, anexos ao DL 104/97, de 29/4, no sentido de serem da competência dos tribunais cíveis todos os litígios em que seja parte a recorrida, mesmo que em razão da matéria pertençam a outra jurisdição, é inconstitucional por violação do disposto no art. 211º, n.º 1, da CRP.

8 – Por outro lado, nos termos do art. 51º, al. h), do ETAF (DL 129/84), compete aos tribunais administrativos conhecer das acções sobre res-ponsabilidade civil dos entes públicos por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.

9 – A empreitada em causa nos autos, da qual, alegadamente, teriam resultado prejuízos para a recorrente, insere -se no âmbito do serviço público, exclusivo, que a recorrida detém de gestão, construção, insta-lação e renovação da infra -estrutura ferroviária nacional, a que alude o art. 2º, ns.º 1, 2 e 3, do DL 104/97, estando também abrangida pelo

regime jurídico das empreitadas de obras públicas – art. 1º, n.º 1, do DL 405/93, de 10/12, na redacção da Lei 94/97, de 23/8.

10 – Tendo, assim, a mesma a natureza de contrato administrativo – art. 1º, n.º 4, do DL 405/93, dado que se trata de uma empreitada de obra pública.

11 – Tratando -se, assim, claramente, de um acto de gestão pública ou, pelo menos, dentro do fim típico que a recorrente preconiza, inde-pendentemente de qualquer relação com a recorrente.

12 – Por último, no art. 4º, al. g), do ETAF, com a redacção da Lei 13/02, de 19/2, alterada pela Lei 4 -A/2003 e proposta de lei 102/IX, alterada e aprovada pela Assembleia da República em 19/12/03, foi estabelecida a competência exclusiva da jurisdição administrativa para apreciação de litígios em que esteja em causa a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público, independen-temente da natureza pública ou privada do acto praticado.

13 – Tendo tais normas revogado, nos termos do art. 7º, ns.º 2 e 3, do Código Civil, todas as disposições anteriores, incompatíveis com as mesmas, como resulta também do preâmbulo da proposta de lei 102/IX, em que há intenção inequívoca do legislador em submeter exclusiva-mente à jurisdição administrativa a apreciação de litígios respeitantes a responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito público.

14 – Tendo tal norma – art. 4º, al. g), do ETAF – carácter adjectivo, a mesma é inclusivamente, salvo melhor opinião, aplicável no presente caso.

O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu douto parecer em que, secundando a posição veiculada no acórdão recorrido, se pronunciou pelo não provimento do recurso.

Não há que atender a quaisquer factos distintos das várias ocorrências processuais documentadas nos autos, pelo que passaremos imediata-mente à decisão «de jure».

Todavia, temos de começar pelas três questões prévias suscitadas pela recorrida nas quatro primeiras conclusões da sua contra -alegação; e, dentro desse genérico domínio, impõe - -se que confiramos uma natural primazia ao problema da admissibilidade deste recurso – de que tratam as 1.ª e 2.ª conclusões da referida peça.

O presente recurso foi expressamente interposto e tacitamente admi-tido para o STJ. Depois, ao oferecer a sua alegação, ainda na Relação de Lisboa, a recorrente requereu ao respectivo relator que considerasse o recurso como dirigido ao Tribunal dos Conflitos; e, apesar da oposição da aqui recorrida, o relator satisfez aquele requerimento, já que ordenou a remessa dos autos a este tribunal. Ora, coloca -se a questão de saber se os descritos acontecimentos acarretam, ou não, a inadmissibilidade do presente recurso.

Dado o preceituado no art. 107º, n.º 2, do CPC, é indiscutível que o recurso devia ser imediatamente interposto para o Tribunal dos Conflitos; houve, pois, um erro na direcção que originariamente lhe foi imprimida. E, para perfeitamente determinarmos as consequências desse erro, con-vém que especulemos sobre o que se passaria se ele não tivesse sido corrigido pelo relator, a solicitação da recorrente. Ora, se acaso o presente recurso tivesse subido ao STJ, ocorreria decerto uma situação com que vulgarmente nos deparamos no Tribunal dos Conflitos – que é a de os Srs. Conselheiros relatores daquele Supremo, aliás em observância dos princípios não formalistas que actualmente permeiam o nosso processo

Page 77: Decisões STA

152 153

civil (em que avulta o denominado princípio «pro actione» – «vide», sobretudo, o art. 265º do CPC), reenviarem «ex officio» a este tribunal os recursos aludidos no art. 107º, n.º 2, do CPC. Essa prática jurisprudencial tem como pressuposto óbvio a possibilidade de convolação, limitada aos aspectos referidos, do requerimento de interposição do recurso; e, se ela fosse seguida «in casu», este tribunal, fiel à sua linha decisória pretérita, iria conhecer do recurso por entender que aquela prática constitui um modo legítimo de garantir o conhecimento do fundo da questão, reme-tendo os aspectos processuais para o papel instrumental – e, portanto, secundário – que naturalmente lhes corresponde.

Sendo as coisas assim, nenhum motivo há para que julguemos inad-missível o presente recurso. Com efeito, se tranquilamente o aceitaríamos na hipótese de ele subir ao STJ e daí nos ser remetido, temos também, e «a fortiori», de o considerar admissível no caso vertente – em que, por uma intervenção correctiva do próprio tribunal «a quo», ele ascendeu a este Tribunal dos Conflitos tal como era imposto «secundum legem». Ao invés, a pretensão de que concedêssemos primazia ao despacho de admissão do recurso sobre o despacho seguinte do Sr. Desembargador relator e, por isso, encarássemos o recurso como deduzido para o STJ, para aí o enviando, propiciaria o absurdo resultado de o recurso nos voltar mais tarde, então sob o impulso de um despacho do Sr. Conselheiro relator naquele Supremo; ora, a extravagância da solução constitui a prova intrínseca e automática de que ela não é aceitável.

Ademais, da «linha decisória pretérita» deste Tribunal dos Conflitos, a que acima nos referimos, decorre imediatamente a admissibilidade do recurso. Na verdade, aquela aceitação de recursos reenviados pelo STJ tem um fundamento e uma teleologia que manifestamente abrangem a situação presente – pois trata -se sempre de conhecer de recursos de-duzidos de arestos das Relações e dirigidos, num primeiro momento, a um tribunal «ad quem» que não era o apropriado.

Portanto, o presente recurso é admissível – e acrescente -se que, contra essa admissibilidade, é absolutamente vão que a recorrida invoque o disposto no art. 105º, n.º 2, do CPC, já que esta norma nada tem a ver com o assunto. Todavia, ela também sustenta que as conclusões da alegação da recorrente enfermam de vícios formais; e, como já atrás dissemos, este assunto tem de ser enfrentado antes de podermos passar ao conhecimento do fundo do recurso.

Desde logo, a recorrida diz que a parte adversa não indicou as normas jurídicas violadas pelo aresto «sub judicio». Contudo, olhando -se as três primeiras conclusões da alegação de recurso, logo se capta «de visu» que a recorrente sustenta que o acórdão da Relação de Lisboa ofendeu o estatuído no art. 32º do estatuto anexo ao DL n.º 104/97, de 29/4. E, ante a indicação de uma norma jurídica violada, falece imediatamente o intuito de que se extraiam consequências processuais da falta absoluta de indicações desse género.

Seguidamente, a recorrida afirma que a recorrente não concluiu de um modo sintético. Esta denúncia envolve alguma surpresa, pois as catorze conclusões da alegação de recurso são em número exactamente igual às da contra -alegação. Mas importa sobretudo dizer que, em pro-cesso civil, a prolixidade das conclusões oferecidas pelos recorrentes é ultimamente controlada pelo relator (no seu primeiro contacto com o recurso) e pelos adjuntos (quando têm vista do processo), ou seja, pelos juízes que compõem o tribunal «ad quem» e sempre num momento anterior ao do julgamento do recurso (cfr. o art. 690º, n.º 4, do CPC).

Sendo assim, qualquer denúncia desse tipo de vícios, como a feita pelos recorridos nas suas alegações, configura uma simples sugestão de que aqueles juízes exerçam os ditos poderes de controle; e a circunstância de uma tal sugestão não ser seguida – como, no presente caso, não foi – nenhuns efeitos acarreta em sede de conhecimento do recurso, pois que singelamente significa que a respectiva alegação estava em perfei-tas condições de ser contraditada pelo recorrido e de ser decidida pelo tribunal. Portanto, a mera prolação deste aresto traduz, «ea ipsa», a falta de fundamento da denúncia que esteve em apreço.

Ante o exposto, soçobram todas as questões prévias que a recorrida deduziu nas quatro primeiras conclusões da sua contra -alegação. Por isso, estamos agora em condições de conhecer do problema de fundo posto no presente recurso, que consiste em decidir qual a ordem jurisdicional competente para julgar a acção dos autos.

Através dessa acção, interposta em 2003, a aqui recorrente almeja obter a condenação da REFER, ora recorrida, a pagar -lhe uma indem-nização pelos prejuízos que diz ter sofrido em resultado de uma obra da iniciativa da ré e executada na estação ferroviária de Queluz, da linha de Sintra, e em áreas limítrofes; e esses danos teriam precisamente advindo do facto de a obra ter dificultado por um tempo excessivo o acesso do público a um estabelecimento comercial da autora, que assim viu drasticamente reduzida a respectiva facturação.

A competência material dos tribunais – tanto a que os diferencia dentro da mesma ordem jurisdicional, como a que os distingue segundo jurisdições diversas – afere -se normalmente pelo pedido formulado na acção que esteja em presença, caso, aliás, em que a natureza desse pedido deve ser esclarecida ou iluminada pela causa de pedir de que ele dimane. Mas este critério geral, que acabava por apelar à distinção entre gestão pública e gestão privada e que era, aliás, indiscutível em face do bloco de legalidade vigente aquando da instauração da causa, não operaria plenamente se porventura houvesse uma disposição legal expressa, atributiva de competência «ex vi legis».

A recorrida foi criada pelo DL n.º 104/97, de 29/4, cujo anexo I con-tém os estatutos da REFER, EP. Ora, o art. 32º, n.º 1, desses estatutos dispunha que, salvo no que toca à «cobrança de taxas» prevista no art. 3º, n.º 2, al. a), «compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte a REFER, EP, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a respectiva empresa»; e, afastando -se da regra estabelecida no n.º 1, o n.º 2 do mesmo artigo atribuía aos tribunais administrativos a competência para «os julgamentos dos recursos dos actos dos órgãos da REFER, EP, que se encontrem sujeitos a um regime de direito público, bem como o julgamento das acções sobre validade, interpretação ou execução dos contratos administrativos celebrados pela empresa».

A recorrente acha que o artigo «supra» citado resolve o presente conflito de jurisdição por forma a que a competência seja atribuída aos tribunais judiciais. Mas a recorrida entende que não, por quatro fundamentais motivos – relacionados com a interpretação da norma, com a sua conformidade à CRP, com a natureza da actividade de que terão emergido os danos e com o novo regime estatutário dos tribunais administrativos. Avaliemos estas objecções, ponto por ponto, tendo em mente que as reflexões a fazer se hão -de sempre reportar à data da propositura da acção.

Page 78: Decisões STA

154 155

Segundo a recorrida, o mencionado art. 32º, n.º 1, deve ser interpre-tado no sentido de serem da competência dos tribunais judiciais todos os litígios em que a REFER seja parte e que a lei não haja reservado para outra ordem jurisdicional. «Primo conspectu», esta proposta de interpretação tornaria o preceito completamente inútil e redundante, já que ele, em vez de introduzir por si qualquer regra de competência, limitar -se -ia ao reconhecimento servil da competência definida noutras normas. Ademais, o referido texto legal não aponta para esse improfícuo sentido, pois a sua letra amplamente sugere que o legislador, ao editá -lo, quis precisar que seria à jurisdição comum que competiria conhecer dos litígios em que fosse parte a REFER, com a óbvia exclusão da cobrança de taxas e do contencioso de actos ou contratos administrativos.

Todavia, não é de excluir que, para salvaguarda da constitucionalidade do mencionado art. 32º, ele deva ser alvo de uma interpretação restritiva, con-forme à propugnada pela aqui recorrida – o que nos remete para a segunda objecção por ela levantada. Na óptica da REFER, a regra de competência introduzida no art. 32º, se tomada nos amplos termos que da letra do preceito fluem, ofenderia o disposto no art. 211º, n.º 1, da CRP, dado que culminaria numa atribuição governamental de competência aos tribunais judiciais em matérias já atribuídas pela lei geral à ordem administrativa.

Mas não colhe esta denúncia de que uma interpretação corrente do art. 32º padeceria de inconstitucionalidade – fosse ela material ou formal. É que a dita norma constitui uma aplicação particular, e feita quase «ipsis verbis», do então vigente art. 46º do DL n.º 260/76, de 8/4. Este diploma viera, ainda antes da emergência da CRP, estabelecer o regime geral das empresas públicas; e esse regime, que incluía o dito artigo, persistiu in-questionavelmente na ordem jurídica após o ulterior início da vigência da Lei Fundamental, nunca se hesitando sobre a suficiente compatibilidade entre aquele art. 46º e o disposto nos artigos 211º e 212º da CRP. Sendo assim, o referido art. 32º não correspondeu a uma qualquer actuação inovadora do Governo em matéria de reserva relativa da Assembleia da República (cfr. o art. 165º, n.º 1, al. p), da CRP), mas traduziu somente a reiteração, para o caso de uma certa empresa pública, de algo que a legislação em vigor no país já genericamente dispunha. Ora, na medida em que o Governo não alterou, «motu proprio» e através do art. 32º introdu-zido pelo DL n.º 104/97, a definição então existente acerca da repartição das competências dos tribunais, necessário é concluir que tal preceito dos estatutos da REFER não pode padecer da inconstitucionalidade que exclusivamente adviria dessa suposta intervenção inovadora.

Entretanto, o DL n.º 260/76 foi revogado pelo DL n.º 558/99, de 17/12, cujo art. 18º veio regular em moldes aparentemente novos a questão de se saber quais os tribunais competentes para julgar os litígios em que intervenham empresas públicas. Assim, poderia questionar -se se o art. 32º dos estatutos da REFER, dada a sua assinalada similitude com o art. 46º do DL n.º 260/76, não será deveras e materialmente uma norma geral, ainda que contida num diploma especial – e, por isso, susceptível de derrogação por aquele art. 18º. Contudo, é de excluir radicalmente essa possibilidade de se considerar o dito art. 32º revogado pela «lex generalis». Com efeito, a recepção, no art. 32º dos estatutos da REFER, da solução geral que o art. 46º do DL n.º 260/76 previa corresponde a um intuito de particularização que obrigava a considerar, doravante, aquele preceito dos estatutos como «lex specialis»; e nada nos permite concluir que o legislador quis sobrepor a solução acolhida no art. 18º do DL n.º 5558/99 a quaisquer preceitos especiais que diferentemente

dispusessem. Consequentemente, atento o que preceitua o art. 7º, n.º 3, do Código Civil, o art. 32º dos estatutos da REFER permaneceu em vigor apesar da edição do DL n.º 558/99.

Vigorando o art. 32º e não havendo razões de inconstitucionalidade que impusessem a sua desaplicação na data em que a lide foi instaurada, tudo indica que será à luz dessa norma que o dissídio ora em presença haverá de ser solucionado. Na verdade, o preceito dizia com clareza qual a ordem jurisdicional competente para julgar a acção dos autos – pois atribuía, «recte», aos «tribunais judiciais» a competência para esse efeito.

Contra essa indicação normativa, é vão argumentar com a efectiva natureza do litígio em presença; pois, e como dissemos já, os critérios gerais a que se recorre para resolver conflitos de jurisdição só intervêm e operam na hipótese de não haver – como aqui havia – um preceito especial que expressamente contemple e solucione o assunto. Portanto, todos os elementos do caso que porventura apontassem para a natureza administrativa do litígio tornam -se inúteis ante a presença de uma dispo-sição legal que estatui em sentido inverso. E isto afasta a argumentação da recorrida no sentido de aqui relevarem a natureza administrativa do contrato de empreitada – cuja execução terá originado os danos – ou a previsão genérica constante do art. 51º, n.º 1, al. h), do anterior ETAF.

E, se o anterior ETAF não opera como critério resolutivo do problema em apreço, também o novo ETAF carece manifestamente dessa aptidão. É que este diploma apenas entrou em vigor em 1/1/04 (cfr. o art. 4º da Lei n.º 107 -D/2003, de 31/12), numa altura, portanto, em que a acção dos autos já estava instaurada; como aquele ETAF só rege para o futuro (art. 12º, n.º 1, do Código Civil), é debalde que a recorrida invoca o seu art. 4º, al. g), para resolução do presente conflito.

Afastadas as várias objecções da recorrida à aplicabilidade, «in casu», do art. 32º dos estatutos da REFER, e porque outras se não vislumbram, há que concluir que nesse preceito reside o critério normativo que regula o assunto em presença. Pelo que, contrariamente ao decidido pela Re-lação de Lisboa, que aliás se absteve de ponderar aquela norma, não é aos tribunais administrativos, mas aos tribunais judiciais, que incumbe o julgamento da acção de condenação dos autos.

Nestes termos, acordam em conceder provimento ao presente recurso, em revogar o acórdão recorrido e em declarar a jurisdição comum competente para conhecer da referida acção.

Sem custas.Lisboa, 6 de Julho de 2006. — Madeira dos Santos (relator) — Mo-

reira Camilo — Azevedo Moreira — Borges Soeiro — Jorge de Sousa —Alves Velho.

Acórdão de 11 de Julho de 2006.Processo nº. 12/06 -70.Requerente: TNL — Sistemas de Equipamentos Tecnológicos e

Sistemas Ambientais, L.da, no conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial de São João da Madeira (4.º Juízo) e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Manuel David da Rocha Ribeiro de Al-meida.

Page 79: Decisões STA

156 157

Acordam no Tribunal de Conflitos1) Em recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, julgou

incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.

Tal entendimento do tribunal filiou -se no facto da matéria controver-tida ser subsumível ao contrato de fornecimento regulado pelo Decreto--Lei 197/99 de 8/06, e por isso ser da competência dos tribunais adminis-trativos como estabelecido na alínea e) do Artigo 4º do ETAF aprovado pela Lei 13/2002 de 19/02.

2) TNL intentou acção de condenação contra Euroreciclagem, tendo a Câmara Municipal de São João da Madeira intervindo na acção na qualidade de chamada.

A Autora alega na sua petição inicial e em resumo que exerce a actividade de fabricação, comercialização, importação e exportação, representação, colocação de equipamentos ambientais e gestão de pro-jectos ambientais e gestão de resíduos.

No exercício da sua actividade profissional a Autora forneceu à Réu Euroreciclagem, a pedido desta, mercadorias no valor global de € 87.539,02.

Na sua contestação a Réu Euroreciclagem alega, no que para a ex-cepção assume relevância, que o material, equipamento em causa foi encomendado pela Câmara Municipal de S. João da Madeira, tendo sido instalado em terreno da autarquia, sem nunca ter passado pela posse da Réu Eurorecidagem. Mais diz que a Euroreciclagem não teve qualquer interferência na montagem do material em causa e que o mesmo tem sido utilizado pelos munícipes de S. João da Madeira.

A Câmara entende que é matéria controvertida saber quem encomen-dou tais equipamentos, quem os usa e a quem compete o pagamento dos mesmos.

- Tal matéria é subsumível aos contratos administrativos de forneci-mentos, cujo regime de direito público está consagrado no Decreto -lei n° 197/99 de 8 de Junho.

3) O Exmo. Procurador emitiu parecer no sentido de que deve ser atribuída a competência aos tribunais comuns.

Colhidos os vistos cumpre decidir.4) Os factos são os que constam em 2).5) A única questão a resolver consiste em saber se competentes para

apreciar a causa são os Tribunais Administrativos como foi decidido ou se são competentes os Tribunais Judiciais comuns, como defende o Exmo. Procurador.

Dentro da organização judiciária os Tribunais Judiciais gozam de competência genérica, tendo os tribunais de outra ordem jurisdicional, uma competência limitada em razão da matéria que lhe compete apre-ciar. Aqueles constituem a regra e gozam, por isso, de competência não discriminada e assim também residual.

A competência em razão da matéria distribui -se por “categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhum rela-ção de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles - Prof. Antunes Varela — “Manual de Processo Civil” 2ª ed, pág. 207.

Não cabendo a causa na competência de nenhum tribunal especial, será o tribunal comum o competente - cf. Artigo 66 do Código Processo Civil.

Entre os Tribunais especiais, e no que ao caso interessa, compete aos tribunais administrativos e fiscais, os litígios originados no âm-bito da administração pública globalmente considerada, com excepção daqueles que o legislador atribua a outra jurisdição - cf. Artigo 1º do ETAF, aprovado pela Lei 13/2002 de 19/02 alterada pela Lei 4 -A/2003 e 107 -D/2003.

Por não bastar a qualidade pessoal da chamada - Câmara Municipal - para se poder afirmar que ela no caso concreto prossegue um interesse público e ainda menos que o seu procedimento tivesse de ser sujeito ao regime pré -contratual de aquisição de bens aprovado pelo citado Decreto -Lei 197/99 de 8/06, este sim da competência dos Tribunais Administrativos, o que não é tema de discussão nestes autos. Mas dos elementos que constam dos autos não se pode concluir que exista uma relação jurídica constituída pela celebração de um contrato subsumível a procedimento pré -contratual, pelo que o Decreto -Lei invocado não se aplica.

A causa de pedir que subjaz ao pedido decorre da responsabilidade civil pelo não pagamento do preço de material fornecido á Ré.

É da competência dos Tribunais Administrativos conhecer das acções em que se discuta a responsabilidade do Estado e demais entes públicos - entre eles as autarquias - por pedidos de indemnização por danos decorrentes da gestão pública.

A Ré imputa á Câmara a compra dos equipamentos ambientais e seu uso, tendo tão só

intermediado o negócio com a Autora.Acto de gestão pública define -se como sendo o que se compreende no

exercício de um poder público, integrando a sua prática, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independente do uso de meios de coerção ou de regras de ordem técnica a observar.

Gestão privada compreende -se na actividade do ente público quando despido de poder público, encontrando -se a actuar numa posição de paridade com os particulares a que o acto respeita, ou seja, tal e qual como actua um particular.

Acontece que se discute nos autos quem procedeu á encomenda dos equipamentos, quem os usa e quem os deve pagar.

Ora a aquisição ou não dos equipamentos é um acto de gestão pri-vada, e não é pelo facto de intervir uma Câmara que se pode e deve afirmar, sem mais, que persegue um interesse público, e muito menos que a aquisição do equipamento tivesse que estar sujeito ao regime do Decreto -Lei 197/99.

O Tribunal competente em razão da matéria é o tribunal comum.6) No caso não se pode afirmar a existência de uma relação jurídica

regulada por normas de direito público.Acorda -se em declarar competente para apreciar e conhecer da acção

em causa a jurisdição comum - Artigo 18 n.º 1 da LOFTJ.Sem custas.

Lisboa, 11 de Julho de 2006. — Manuel David da Rocha Ribeiro de Almeida (relator) — Fernando Manuel Azevedo Moreira — João Vaz dos Santos Carvalho — Rosendo Dias José — José Norberto de Melo Baeta de Queiroz — António Alves Velho.

Page 80: Decisões STA

158 159

Acórdão de 26 de Setembro de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Providência cautelar não especificada. Questão fiscal. Competência dos tribunais tributários.

Sumário:

Compete aos tribunais administrativos e fiscais, concreta-mente aos tribunais tributários, de harmonia com o disposto nomeadamente nos artigos 4.º, n.º 1, alínea d), e 49.º, n.° 1, alínea e), subalíneas i) e iv), do ETAF vigente, conhecer de providência cautelar não especificada tendente à sus-pensão do tarifário de consumo de água, saneamento e de «disponibilidade», aprovado pela assembleia municipal do concelho da Figueira da Foz e a cobrar pela empresa municipal a quem foi concessionado o serviço público de captação, tratamento e distribuição de água bem como do sistema de recolha.

Conflito n.º 14/06 -70.Requerente: ACOP — Associação de Consumidores de Portugal, no

conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz e os tribunais administrativos e fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. João Belchior.

Acordam no Tribunal de Conflitos (TC):I. RELATÓRIOI.1. “ACOP - Associação de Consumidores de Portugal” (dora-

vante ACOP), com os demais sinais nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Figueira da Foz (TJFF), contra “Águas da Figueira, S.A.”, também devidamente identificada nos autos, procedimento cautelar não especificado, pedindo que fosse decretada a suspensão de todo o tarifário de consumo de água, saneamento e de disponibilidade, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 2005 no concelho da Figueira da Foz, com a consequente reposição do que vigorava antes dessa data.

Mais peticionou que fosse decretada a suspensão, até decisão final, da chamada “tarifa de disponibilidade”, bem como a obrigatoriedade da requerida proceder à emissão mensal das facturas, porquanto entende que os aumentos dos preços foram desnecessários e injustificados, a aludida tarifa é ilegal e, bem assim a periodicidade da facturação bimestral.

Citada a requerida para deduzir oposição, veio a mesma para o que ora interessa alegar a incompetência daquele tribunal em razão da ma-téria.

Notificada a requerente, para se pronunciar ao abrigo do artigo 3°, n° 2 do Código de Processo Civil, alegou o carácter privatístico das relações ora em apreço (entre consumidores e concessionária) e, daí o recurso aos tribunais judiciais, concluindo pela improcedência das excepções alegadas.

I.2. Naquele Tribunal foi proferido o despacho de fls. 277/283 que, com invocação dos artigos 101º, 105°, n° 1, 493°, n° 2 e 494º, n° 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, concluiu pela incompe-

tência em razão da matéria, com a consequente absolvição da requerida da instância.

I.3. De tal despacho recorreu a ACOP para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a revogação daquele despacho.

I.4. Naquele Tribunal Superior foi proferido o acórdão de fls. 338 -340 que, sufragando o entendimento do Tribunal da Comarca de Figueira da Foz, negou provimento ao agravo.

I.5. Continuando inconformada, a ACOP interpôs recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo rematado a concernente alegação com as seguintes CONCLUSÕES:

1. A concreta espécie de facto opõe a ACOP - Associação de Con-sumidores de Portugal e a Águas da Figueira, S.A., sendo certo que a ACOP é uma associação de consumidores de âmbito nacional e interesse genérico (artigo 17 da Lei 24/96), em representação dos consumidores em geral, ex vi dos artigos 10, 13 e 18 da Lei 24/96.

2. A espécie controvertida é de natureza eminentemente, dir -se -ia, exclusivamente privatística - consumidores versus fornecedor de água: Lei 24/96 - artigos 2°, 1102 e 9°, nos 1 e 8.

3. Sendo de natureza privatística (contrato de consumo), a ordem de jurisdição própria é a judicial - Lei 3/99, artigo 1° e segts e artigo 66° do C.P.C..

4. Que não a administrativa, pese embora tratar -se, no limite, de uma relação trilateral - município/concessionária/consumidores (representa-dos por uma estrutura associativa legítima).

5. Os contratos de concessão de serviços de interesse geral subsumem--se em toda a sua disciplina - e para todos os efeitos - ao direito do con-sumo: Lei do Consumidor e diplomas avulsos de desenvolvimento.

6. Donde o douto Acórdão recorrido violar os preceitos legais supra referidos nas conclusões 2ª e 3ª.

I.6. Por seu lado, a requerida “Águas da Figueira, S.A.” contra -alegou, tendo formulado as seguintes Conclusões:

1. A recorrente pretende ver reconhecida a competência do tribunal judicial da Figueira da Foz para apreciar o presente litígio fundando -se no exclusivo argumento de que a relação de fornecimento estabelecida entre a Concessionária, ora Recorrida, e o utente constitui uma relação de direito privado.

2. Sucede, no entanto, que não só não é verdade que tais relações entre utentes e concessionárias sejam exclusivamente reguladas pelo direito privado, como o que está em causa no presente processo não é um litígio de direito privado relativo a tal contrato, mas antes um pedido de suspensão de um tarifário aprovado unilateralmente ao abrigo de normas de direito público e relativo à prestação de um serviço público.

3. O tarifário que se pretende que seja suspenso foi aprovado ao abrigo de poderes públicos de autoridade, aplicando -se a todos os actuais e aos futuros utentes dos serviços, tendo assim natureza regulamentar. Um litígio, como aquele que aqui está em causa, em que se pretende a sua suspensão - e previsivelmente em acção principal a respectiva anulação - não pode ser obviamente caracterizado como um litígio relativo a uma relação contratual de fornecimento.

4. Na realidade, tal tarifário foi aprovado pelos órgãos competentes do Município da Figueira da Foz, o que torna clara a natureza admi-nistrativa - e regulamentar - de tal acto, e a competência dos tribunais administrativos nos termos do n. 1, alinea b) do artigo 4º do ETAF.

Page 81: Decisões STA

160 161

5. Nada impede a Recorrente de impugnar tal tarifário, o qual tem natureza regulamentar, nos termos do artigo 72.° do CPTA, não se colocando aqui a questão levantada pela Recorrente relativamente à legitimidade para intentar uma acção sobre contratos contra o Município (o qual não é parte do contrato).

6. Mas ainda que se tenha em conta a relação tal como o ora Recor-rente a configurou e que se pressupusesse que tal tarifário fora fixado pela Concessionária (a qual teria competência para o suspender), ainda assim se manteria a competência dos tribunais administrativos para o presente processo, pois continuaria a estar em causa um acto unilateral regulamentar emitido ao abrigo de poderes públicos de autoridade.

7. A concessionária exerce uma actividade de prestação de serviço público, por lei reservada à Administração, para a qual foi habilitada por acto do poder público. Exerce assim uma função administrativa, designadamente no que diz respeito a um eventual poder de fixar e suspender tarifas, pelo que os litígios que digam respeito ao exercício de tal função - como é o caso - são claramente litígios respeitantes a uma relação jurídica administrativa.

8. E mesmo que se entenda - o que se admite, sem conceder, por mera cautela de patrocínio - que o que está aqui em causa é a relação contratual entre os utentes e a Concessionária, também essa relação contratual, em especial no que compete ao acto de fixação de tarifas, é hoje do foro administrativo, nos termos da alínea f) do n.° 1 do artigo 4° do ETAF.

9. Note -se, finalmente, que aquilo que a ora recorrente pretende dis-cutir no presente processo não são questões jurídico -privadas relativas a uma eventual relação de direito privado entre a concessionária e os utentes, mas antes eventuais violações de normas de direito adminis-trativo relativamente fixação de um tarifário pela prestação de um serviço público. Não se vê como poderiam ser os tribunais judiciais, designadamente à luz das novas normas de contencioso administrativo, os competentes para tal apreciação.

I.7. O Excelentíssimo Relator no Supremo Tribunal de Justiça a quem os autos foram distribuídos proferiu o despacho de fls. 384/385 no qual expendeu o seguinte:

“O presente recurso de agravo foi interposto do acórdão da Relação de Coimbra que confirmou a decisão proferida no Tribunal Judicial da Figueira da Foz e que julgou aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do presente procedimento cautelar não especifi-cado que a ACOP - Associação de Consumidores de Portugal requereu contra a sociedade Aguas da Figueira, S. A.

Segundo a referida decisão da 1ª instância, a razão da incompetência deveu -se a ser competente para conhecer da presente lide o tribunal administrativo.

Foi, igualmente, este o entendimento do referido acórdão em re-curso.

Tendo a requerente ficado inconformada com o mesmo acórdão, dele interpôs o presente agravo para este Supremo Tribunal de Justiça, o que foi deferido naquela Relação, sendo apresentadas as respectivas alegações e contra -alegações.

Distribuído neste Supremo o referido recurso, há que apreciar e decidir.

Nos termos do art. 107°, n° 1 do Cód. de Proc. Civil, se a Relação decidir em via de recurso, que um tribunal é incompetente, em razão da matéria ou da hierarquia, para conhecer de certa causa, há -de o Supremo

Tribunal de Justiça, no recurso que vier a ser interposto, decidir qual o tribunal competente. Neste caso, é ouvido o Ministério Público e no tribunal que for declarado competente não pode voltar a suscitar -se a questão da competência.

Porém, o seu n° 2 acrescenta que se a Relação tiver julgado incom-petente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito de jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos.

Daqui resulta claramente que o presente recurso devia ter sido in-terposto para o citado Tribunal de Conflitos e não para este Supremo Tribunal.

E compreende -se a razoabilidade deste regime legal. Com efeito, se o “conflito” é entre vários tribunais do foro comum: entre a competência material do Tribunal de Família e Menores e do Tribunal de Trabalho, por exemplo, o Supremo pode decidir o litígio, por ter jurisdição sobre todos estes tribunais, o que não acontece sobre os Tribunais Adminis-trativos e Fiscais.

Pese embora haver uma decisão do Tribunal de Conflitos - de 25 -2 -99, DR de 31 -07 -2000, pág. 2 - que entendeu que o recorrente perdeu o direito a ver o litígio ser apreciado pelo tribunal competente, entende-mos que deve ser mandado seguir o recurso para o tribunal competente, aproveitando -se os termos já processados.

E que, por um lado, há uma certa confusão entre o Tribunal de Con-flitos, o Supremo Tribunal Administrativo e o Supremo Tribunal de Justiça, derivado, desde logo, do facto de os membros que constituem o primeiro serem provenientes dos demais tribunais citados.

Por outro lado, o princípio do aproveitamento do processado, tanto quanto possível, em caso de nulidade, previsto no art. 201° do Cód. de Proc. Civil e ainda a preferência do legislador pela decisão de mérito em detrimento da decisão de forma reforçada com a reforma do Cód. de Proc. Civil de 1995 -1996, apontam claramente para a solução proposta.

Desta forma, seguirá o presente recurso para o Tribunal de Conflitos, apesar de ter havido erro na sua interposição e na sua admissão.

Remeta os autos ao Tribunal de Conflitos”.I.8. Neste TC a Digna Procuradora -Geral -Adjunta emitiu o seguinte

PARECER:“A nosso ver o presente recurso deverá ser decidido atribuindo -se

a competência para a apreciação do litígio em causa aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, em concreto, aos tribunais tributários.

Em conformidade com o art° 212°, no 3, da CRP, compete aos tri-bunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo que esta cláusula geral veio a ser reafirmada no art° 1º, n° 1, do actual ETAF.

Relativamente a esse preceito constitucional, suscitou -se a questão de saber se consagra uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, no duplo sentido de que, por um lado, os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito admi-nistrativo, e de que, por outro lado, só eles poderão julgar tais questões.

Como nos dá conta o recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 2006.04.26, no conflito n° 1/06, é hoje dominante, na Doutrina, a interpretação no sentido de que a norma consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do legislador ordinário a intro-dução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve

Page 82: Decisões STA

162 163

o núcleo essencial do modelo constitucionalmente definido, segundo o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa deve corresponder à justiça administrativa em sentido material; e esta linha interpretativa é também acolhida pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional, e perfilhada pela Jurisprudência do STA.

Como refere Vieira de Andrade, a generalidade das alíneas do n° 1 do art° 4º do actual ETAF - com excepção de parte das alíneas b), e), g) e h), relativas a matéria de contratos e de responsabilidade civil - visa apenas a concretização positiva do conceito de “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, não levantando, por isso, problemas de maior”.

É o caso da alínea d) do referido n° 1, que aqui importa ter em atenção, nos termos da qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos.

Como refere o citado Professor, é de notar a preocupação legal de delimitação do âmbito da jurisdição através da referência aos “poderes administrativos” e ao regime de “direito público” naquelas alíneas que possam abranger actos jurídicos praticados por sujeitos privados: v., por exemplo, a alínea d), sobre a fiscalização da legalidade de normas e actos jurídicos...”.

Cai no âmbito desta alínea d) o procedimento cautelar aqui em causa, atenta a sua dependência da acção principal onde se apreciará a legali-dade do tarifário de água e da tarifa de disponibilidade cuja suspensão aqui é requerida.

Conforme constitui ponto assente na jurisprudência, a competência em razão da matéria é apreciada em função dos termos em que a acção é proposta e determina -se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos.

No presente litígio é requerente, ACOP — Associação de Consumi-dores de Portugal, e, requerida Águas da Figueira, SA.

Esta última é concessionária do serviço público de exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água e do sistema de recolha, tratamento e rejeição dos efluentes do concelho da Figueira da Foz.

Pretende a requerente, além do mais: - que seja decretada a suspensão de todo o tarifário de consumo de

água, saneamento e de disponibilidade, entrado em vigor em 2005.01.01, no concelho da Figueira da Foz, com a consequente reposição do anterior vigente a essa data;

- que seja decretada a suspensão, até decisão final, da tarifa de dis-ponibilidade.

Como revelam os autos, através de um contrato de concessão, foi atribuída pela Câmara Municipal da Figueira da Foz (concedente) à sociedade Águas da Figueira, S.A. (concessionária), o serviço público de exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água e do sistema de recolha, tratamento e rejeição dos efluentes do concelho da Figueira da Foz.

Nos termos do artigo 73º do contrato de concessão “a concessionária cobrará o fornecimento da água e a prestação dos serviços de saneamento de acordo com uma tabela de tarifas...”.

O art° 13°, n° 2, do DL n° 379/93, de 05.11, estabelece que “a con-cessionária, precedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização, e está autorizada a recorrer ao regime legal da expropria-ção, nos termos do Código das expropriações, bem como aos regimes de empreitadas de obras públicas”.

É indiscutível que a requerida, enquanto concessionária, actua na prossecução de um interesse público, munida de poderes de autoridade e praticando actos de gestão pública, o que faz incluir o presente litígio no âmbito da alínea d) do n° 1 do art° 4° do ETAF, afastando a competência dos tribunais judiciais nos termos do art° 18°, n° 1, da LOFTJ.

Além disso, o litígio resulta da exigência, imposta autoritariamente pela requerida, do pagamento de quantias que correspondem a uma contrapartida pelo serviço público prestado (art° 13°, n° 2, e art° 15°, do DL n° 379/93). Estamos, assim, perante uma questão fiscal, sendo que se deve entender como tal - de acordo com o entendimento firmado na jurisprudência - “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas” - cfr ac. do STA de 93.10.06, processo n° 26369, e ac. de 2006.05.18, processo n° 4/05.

A jurisdição competente para conhecer do litígio é, assim, a jurisdi-ção dos tribunais administrativos e fiscais, concretamente os tribunais tributários, dado o disposto no art° 490, n° i, alínea e) -i) e iv), do actual ETAF.

Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso jurisdicional, declarando -se competentes os tribunais tributários”.

Colhidos os vistos da lei vêm os autos à conferência para apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃOII.1. Está em causa a definição da jurisdição competente relativa-

mente a providência cautelar não especificada instaurada pela requerente contra as “Águas da Figueira, SA” (concessionária do serviço público de captação tratamento e distribuição de água bem como do sistema de recolha, qualidade essa atribuída pelo respectivo Município através do competente concurso) no Tribunal Judicial da Figueira da Foz (TJFF) em que a requerente pretende, em síntese, que seja decretada a suspensão de todo o tarifário de consumo de água, saneamento e de disponibilidade, entrado em vigor em 2005.01.01, no concelho da Figueira da Foz (com a consequente reposição do que vigorava anteriormente a essa data), e o decretamento da suspensão da chamada “tarifa de disponibilidade”.

Como se viu, quer o TJFF, quer o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), que em recurso apreciou decisão da 1ª instância, são no sentido de que a competência material cabe aos tribunais administrativos, es-sencialmente por duas ordens de razões:

- por um lado, o acto jurídico que se visa impugnar – o aludido tarifário do serviço público respectivo – tem natureza exclusivamente administrativa, por haver sido fixado unilateralmente por entidade admi-nistrativa (Município da Figueira da Foz, concretamente por deliberação da Assembleia Municipal);

Page 83: Decisões STA

164 165

- por outro lado, entre aquele Município e as “Águas da Figueira, SA”, foi outorgado um contrato de concessão tipicamente administrativo e cuja validade a requerente também pretende por em causa.

A requerente da providência faz assentar o entendimento de que a competência pertence à jurisdição comum na seguinte ordem de pon-derações:

- A espécie controvertida é de natureza exclusivamente privatística - consumidores versus fornecedor de água (cf. Lei 24/96 - artigos 2° e 9°, nos 1 e 8), estando em causa um singelo contrato de consumo;

- por outro lado, “os contratos de concessão de serviços de interesse geral subsumem -se em toda a sua disciplina - e para todos os efeitos - ao direito do consumo: Lei do Consumidor e diplomas avulsos de desenvolvimento”.

Vejamos pois.II.1. A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere -se pela forma

como o autor configura a acção, definida pelo pedido e causa de pedir, ou seja, pelos objectivos prosseguidos pelo mesmo.

Tal competência, em geral, e como é recordado em recente acórdão deste TC (proferido a 18.05.06 -Proc. nº 04/05), resulta da medida da jurisdição atribuída aos diversos tribunais, do modo como entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais (cf. Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Ed. de 1979, págs. 88/89).

As regras de competência judiciária ratione materiae são, assim, atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente (cf. ac. TC nº 114/2000, de 22 de Fevereiro, in BMJ 494/48).

Como é sabido, os tribunais comuns detêm competência genérica, exercendo jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas (cf. art.º 211, n.º 1, da CRP, 66.º do CPC e 18.º, n.º1, da Lei nº 3/99 - LOTJ, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei nº 101/99, de 26 de Julho, pelos DL nº 323/2001, de 17 de Dezembro, nº 38/2003, de 8 de Março, e nº 105/2003, de 10 de Dezembro), pelo que cumpre indagar se a matéria que integra o pedido dos autos se encontra deferida à jurisdição administrativa, tal como foi decidido.

II.2. Prescreve o art.º 212.º, n.º3, da CRP, que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contencio-sos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

Em anotação a idêntico preceito contido no art.º 214.º, n.º 3 da CRP (aditado pela LC n.º 1/89), escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico--administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico -civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico -adimistrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed.).

Preceitua, por seu lado, o art.º 1° do Estatuto dos Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais (ETAF vigente) que, “Os tribunais administrativos da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para a administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 1) (1).

Importa ainda atentar no artº 4º nº 1 do mesmo ETAF que enuncia o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal através de enumerações, definindo a título exemplificativo, pela positiva os litígios nela incluídos (cf. nº 1 (2)), e pela negativa os litígios dela excluídos (cf. nº 2 e 3).

A generalidade das alíneas do n° 1 do art° 4º do actual ETAF - com excepção de parte das alíneas b), e), g) e h), relativas a matéria de con-tratos e de responsabilidade civil - visa apenas a concretização positiva do aludido conceito de matriz constitucional, litígios emergentes de relações jurídicas administrativas (3).

É o caso da alínea d) do referido n° 1, que aqui importa particularmente ter em atenção, nos termos da qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos pra-ticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos.

II.3. Sublinhe -se que a requerente da providência pretende que seja decretada a suspensão do aludido tarifário respeitante ao consumo de água, saneamento e de disponibilidade e o decretamento da suspensão da “tarifa de disponibilidade”, tarifário esse fixado pela entidade pública concedente como contrapartida do aludido serviço público, ao abrigo de normas de direito administrativo [sendo que, a actividade de “Captação, tratamento e distribuição de água para consumo público…”, nos termos da alínea a) do nº 1 da Lei n.º 88 -A/97 de 25 de Julho, é vedada a em-presas privadas e a outras entidades da mesma natureza, salvo quando concessionadas] questionando -se a sua legalidade.

Tal actividade de concessionário (4) integra um serviço público que, “nunca deixa…de ser uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua dona do serviço, sendo o concessionário a entidade que recebe o encargo de geri -lo…”(5).

Naquela qualidade de concessionário pode a requerida da providência, “…, precedendo aprovação pelo concedente…fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização…” [nº 2 do artº 13º do DL nº 379/93, de 5 de Novembro, que fixou o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos], sendo porém que no caso o aludido tarifário foi fixada pela entidade concedente do serviço público, embora tal questão não interesse para a decisão do que vem posto a este Tribunal, pois sempre se trataria de acto unilateral emitido ao abrigo de poderes de autoridade.

É que, e como é assinalado no acórdão recorrido, a fixação de tal tarifário foi levada a efeito sem que lhe tivesse presidido alguma nego-ciação com os ulteriores contratantes -consumidores, antes sim de forma unilateral e no exercício de jus imperii.

Justamente, o que está em causa nos autos não é um litígio de direito privado relativo a algum contrato entre a requerente da providência e a requerida (nomeadamente relativo a uma relação contratual de forneci-mento), antes sim aquele tarifário que se pretende suspender, aprovado

Page 84: Decisões STA

166 167

ao abrigo dos já aludidos poderes públicos de autoridade, sendo de aplicação a todos os actuais e aos futuros utentes dos serviços, tendo assim natureza regulamentar. Uma tal fixação insere -se na satisfação de necessidades colectivas definidas, seleccionadas e ordenadas pela lei como é próprio da função administrativa (6).

Pelo exposto, pode já concluir -se e sem necessidade de mais inda-gações, que a competência dos tribunais administrativos, resulta desde logo, da previsão do nº 1, alínea d), do artigo 4º do ETAF, pois que a requerida, enquanto concessionária e no plano que vem questionado, actua na prossecução de um interesse público, munida de poderes de autoridade e praticando actos de gestão pública, assim se afastando a competência dos tribunais judiciais nos termos do citado art° 18°, n° 1, da LOFTJ.

II.4. Por outro lado, como já acima aludiu e como também é assina-lado pelo Ministério Público no seu referido parecer, o litígio em apreço resulta da exigência, imposta autoritariamente pela requerida, do paga-mento de quantias como contrapartida pelo serviço público prestado (cf. citado art° 13°, n° 2, e ainda o art° 15°, ambos do DL n° 379/93).

Estamos, assim, perante uma questão fiscal, entendendo -se como tal, “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas” – cfr. citado acórdão deste TC de 2006.05.18 (Proc. n° 4/05), e vasta jurisprudência ali registada.

II.5. Pode pois concluir -se que a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação é, assim, a jurisdição dos tribunais administra-tivos e fiscais, concretamente os tribunais tributários, atento o disposto no art° 49º, n° 1, alínea e) -i) e iv), do ETAF vigente.

III. DECISÃONos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes

deste Tribunal em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, declarando -se competentes os tribunais tributários.

Sem custas.Lisboa, 26 de Setembro de 2006. — João Manuel Belchior (relator) — Ar-

tur José Alves da Mota Miranda — Jorge Manuel Lopes de Sousa — António Políbio Ferreira Henriques — José Vaz dos Santos Carvalho — Políbio Rosa da Silva Flor.

(1) Sob o regime do ETAF/84 prescrevia a tal respeito o art.º 3° que, “incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

(2) Para o que interessa, transcreve -se tal normativo:“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios

que tenham nomeadamente por objecto:a)…b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas

colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;

c)…d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos

privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de actos pré -contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré -contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

(…)”Sobre os limites da jurisdição administrativa e fiscal prescrevia o artº 4º do anterior ETAF,

dela se excluindo, designadamente, as «questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa colectiva de direito público» [nº 1/f].

Cf. o Prof. Vieira de Andrade, in A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA – 5ª ED., a p. 118 e segs.

(3) Cf. o Prof. Vieira de Andrade, in A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA – 5ª ED., a p. 118 e segs.

(4) Concessão de serviços públicos, constitui o contrato administrativo (cf. art. 178º do CPA) através do qual o particular se encarrega de montar e explorar um serviço público, durante certo tempo, e por sua conta e risco (cf. anotação àquele preceito do CPA, por Santos Botelho, Cândido Pinho e Pires Esteves em CPA ANOTADO. Veja -se o artº 13º nº 1 do DL 379/03).

(5) In Prof. Marcello Caetano, “MANUAL…”, a p. 1801 e ss.(6) Cf. Prof. MARCELO REBELO DE SOUSA, in LIÇÕES DE DIREITO ADMINIS-

TRATIVO, fls. 15 e segs.

Acórdão de 4 de Outubro de 2006.Recurso n.º 3/06 -70.Requerente: Hélder José Contente Gomes, no conflito negativo de

jurisdição entre o 3.° Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os tribunais administrativos e fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Sousa Fonte.

Acordam no Tribunal de Conflitos:1.1.1. Hélder José Contente Gomes, com os sinais dos autos, propôs

acção emergente de contrato individual de trabalho contra a TAP AIR Portugal, S.A., pedindo a condenação da Ré:

a) a reconhecer que a renda mensal paga pela habitação do A., en-quanto seu representante na Venezuela, no Senegal e ria República da Africa do Sul, constituía subsídio de renda de casa que era devido como retribuição;

b) a regularizar a situação junto do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social (CDSSS) de Lisboa, declarando a totalidade das remunerações correspondentes ao subsídio de renda de casa e efectuando os pagamentos das contribuições em dívida;

c) a entregar no mesmo CDSSS as quantias que reteve a título de contribuições do A. para a Segurança Social sobre um complemento de rétribuição auferido pelo Natal dos anos de 1992 a 1996, no valor de €6.718,75;

d) a pagar ao A. as quantias em que este vier a ter agravada a tribu-tação em sede de IRS, em consequência das regularizações, a liquidar em execução de sentença.

A R. contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Page 85: Decisões STA

168 169

E, deduzindo reconvenção, pediu a condenação do A. a pagar -lhe a quantia de €38.048,65, acrescida de juros.

Na audiência de julgamento o A. reduziu o pedido de entrega de con-tribuições no CDSSS formulado na ai. c) para a quantia de €1.650,26, o que foi admitido.

Na sentença de primeira instância, Tribunal do Trabalho julgou -se incompetente para conhecer do pedido de condenação da Ré a entregar os descontos retidos sobre as “utilidades” pagas ao A., em 1996 — pedido constante da al. c) —, e a Ré foi absolvida do pedido quanto ao mais — pedidos constantes das als, a), b) e d).

Foi ainda julgado extinto, por prescrição, o crédito invocado na re-convenção e o A. absolvido do correspondente pedido.

1.2. Não se conformando com tal decisão, o A. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, restringindo o recurso à parte da sentença que julgou improcedentes os pedidos formulados nas alíneas a) e b) do seu petitório.

Por acórdão de fls. 490 e ss., o Tribunal da Relação julgou impro-cedente a apelação, confirmando, consequentemente a sentença re-corrida.

1.3. Mais uma vez inconformado, o A., interpôs recurso de revista para o STJ, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

«1ª A renda da casa paga mensalmente pela habitação do A. enquanto esteve destacado ao serviço da R., constituía retribuição em espécie, como se previa no n.° 2 do art.° 82° do revogado D.L. n.° 49.408, de 24 de Novembro de 1969;

2ª Assim, como se estipula na alínea m) do art.° 2° de Decreto Re-gulamentar n.° 12/83, de 12 de Fevereiro, sobre o valor de cada renda mensal incidiam as taxas contributivas para a segurança social;

3ª Competia à R., como se estipulava no n.° 3 do art.° 24° da Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto, proceder mensalmente à entrega das con-tribuições devidas, as suas e as do A., nos serviços competentes da Segurança Social.

4ª O Tribunal do Trabalho é competente, em razão da matéria, para conhecer e decidir do pedido do pagamento e entrega pela R. dos descon-tos para a Segurança Social, uma vez que este pedido emerge de relação conexa com a relação de trabalho entre A. e R. por dependência e cumula--se com pedido para o qual o Tribunal é directamente competente.

5ª Decidindo como decidiu, confirmando a sentença da ? instância, o Acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art.° 82° do (ora) revogado D.L. n.° 49.408, de 24 de Novembro de 1969, na al. m) do Decreto Regulamentar n.° 12/83, de 12 de Fevereiro, no art.° 24° da Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto, e nas alíneas b) e o) da Lei 3/99, de 3 de Janeiro».

A ré contra -alegou, defendendo a manutenção do julgado.1.5. Pelo acórdão de fls. 556 e segs., o Supremo Tribunal de Justiça

considerou verificada a situação prevista no art.107°, n.° 2 do CPC e ordenou a remessa dos autos para este Tribunal dos Conflitos.

Aqui, o Senhor Procurador -Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 576 a 578, no sentido de que deverá julgar -se o Tribunal do Trabalho de Lisboa incompetente para conhecer da acção intentada pelo recorrente e competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais.

1.6. Notificadas as partes do dito parecer e obtidos os vistos dos Senhores Juízes Conselheiros designados para intervir no conflito, cumpre decidir.

2. Decidindo:2.1. As instâncias consideraram provados os seguintes factos:«1. O A. foi admitido ao serviço da R. em 25 de Outubro de 1966,

para lhe prestar a sua actividade, sob as suas ordens, direcção e fisca-lização.

2. O A. esteve ininterruptamente ao serviço da R. desde a data da sua admissão até 05 de Junho de 2002, data em que o A. passou à situação de reforma por velhice antecipada, com efeitos a partir de 23 de Maio de 2002.

3. Desde 02 de Fevereiro de 1990 até 31 de Dezembro de 1996 o A. desempenhou as funções de Representante/Delegado da R. na Venezuela.

4. Para o efeito o A. e a R. subscreveram o “Acordo” constante a fls. 87 a 91 dos autos (doc. nº 1 junto com a contestação) e o “Acordo de deslocação” constante a fls 92 a 94 dos autos (doc. n° 2 junto com a contestação).

5. Até Março de 1992 o A. esteve alojado em hotéis, pagos pela R..6. A partir de Abril de 1992 o A. esteve alojado numa casa arren-

dada.7. Para o efeito o A. subscreveu, na qualidade de arrendatário, o

contrato de arrendamento constante a fls 8 a 10 dos autos (doc. n° 3 junto com a petição inicial).

8. As rendas eram pagas à senhoria pela R., e os respectivos recibos eram emitidos ou em nome do A., na qualidade de “presidente” ou “Director geral” da R., ou em nome da R..

9. A aludida renda teve o valor mensal de USD 3 300,00 até Dezembro de 1995 e de USD 2 800,00 a partir de Janeiro de 1996.

10. Em 29.11.1982 a R. publicou a Ordem Geral de Serviço (OGS) A5 -25 -82, a qual contém o Estatuto do Pessoal Deslocado no Estran-geiro, e consta a fls 135 a 145 destes autos (doc. n° 44 junto com a contestação).

11. Em 20.4.1992 a R. publicou a OGS n° 3/92, a qual contém o Estatuto do Pessoal Deslocado por mais de 90 dias no Estrangeiro, com efeitos a partir de 01.5.1992 e consta a fls 156 a 177 destes autos (dcc. n°55 junto com a contestação).

12. Em 11.12.1995, tendo recebido da senhoria o pedido de a renda passar a ser paga numa conta em dólares americanos nos Estados Unidos da América, tendo como contrapartida a sua redução para USD 2 800,00, o A. pediu instruções à R., nos termos da comunicação constante a fls 134 dos autos (doc. n°43 junto com a contestação).

13. No “Acordo” referido em 4 ficou estipulado que, sem prejuízo de eventuais e futuras actualizações, o A. auferiria uma remuneração global calculada na base anual de USD 49 000,00, a qual incluiria quaisquer prestações remuneratórias porventura estabelecidas pela legislação local, as quais, a existirem, importariam o desdobramento daquela retribuição global, em conformidade.

14. Os serviços administrativos da delegação da R. na Venezuela processavam a aludida remuneração anual em 15 prestações mensais, incluindo subsídio de férias e de Natal e, no final de cada ano, uma 15ª prestação, a qual, conjugada com a 14ª prestação, era designada na Venezuela por “utilidades”.

15. Os serviços administrativos da delegação da R. na Venezuela, ao calcularem o valor das “utilidades” (14ª e 15ª prestação) a serem pagas

Page 86: Decisões STA

170 171

em cada ano ao A., incluíram nelas o valor das rendas referidas em 8 e 9, por entenderem que tal era imposto pela legislação venezuelana.

16. Os serviços centrais da R. autorizaram e procederam ao pagamento ao A. das utilidades referidas em 2.15.

17. A título de “utilidades” correspondentes às aludidas rendas o A. recebeu da R. os seguintes valores:

Esc. 901 064$00 (€ 4 494,49) em 1992; Esc. 1 055 634$00 (€ 5 265,48) em 1993; Esc. 1189 138$00 (€5 931,40) em 1994; Esc. 975 986$00 (€4 868,20) em 1995; Esc. 828 109$00 (€4 130,59) em 1996.

18. No ano de 1996 a R. fez incidir, sobre o total da quantia recebida pelo A. a titulo de “utilidades”, no valor de USD 15 225,76, o desconto de 11 %, destinado à segurança social portuguesa.

19. Para produzir efeitos em 01.7.1997, em 04.6.1997 a R. emitiu a OGS n° 03/97, a qual aprovou o novo Estatuto do Pessoal Deslocado por mais de 90 dias no Estrangeiro, o qual substitui o estatuto anterior-mente aprovado, e consta a fls 178 a 197 destes autos (doc. n° 56, junto com a contestação).

20. Desde Janeiro de 1997 até 31 de Maio de 2000, o A. desempenhou as funções de representante da R. no Senegal.

21. Em 20.12.1996 a R. enviou ao A. o memorando documentado a fls 198 destes autos (doc. n° 57 junto com a contestação), enunciando as “condições básicas” da sua “expatriação” no Senegal, o qual o A. aceitou, com a ressalva “no pressuposto do respeito da legislação apli-cável e em vigor”.

22. Nos primeiros meses o A. esteve alojado num hotel.23. A partir de Agosto de 1997 o A. esteve alojado numa casa ar-

rendada.24. Para o efeito o A. subscreveu o contrato de arrendamento constante

a fls 11 a 15 dos autos (doc. n° 4 junto com a petição inicial).25. As rendas eram pagas à senhoria pela R., e os respectivos reci-

bos eram emitidos ou em nome de “Monsieur Helder Gomes (Tap Air Portugal)” ou em nome da R..

26. No Senegal a renda teve o valor mensal de F CFA 1 450,400.27. Desde, pelo menos, Outubro de 2000, e até Fevereiro de 2002,

o A. desempenhou as funções de representante da R. na África do Sul.28. O A. esteve alojado numa casa arrendada, desde 14 de Outubro

de 2000, tendo para o efeito a R. celebrado o contrato de arrendamento constante a fls 16 a 21 dos autos (doc. n° 5 junto com a p.i.).

29. As rendas eram pagas pela R. ao senhorio e os recibos eram emitidos em nome da R..

30. As rendas tiveram os seguintes valores mensais: R. 9 290,34, no período de 14 a 31 de Outubro de 2000; R 16 600,00, de Novembro de 2000 a Outubro de 2001; R 17 600,00, de Novembro de 2001 até Fevereiro de 2002.

31. A R. nunca fez incluir nas folhas de remuneração enviadas à Se-gurança Social, relativas ao A., prestações a titulo de subsidio de renda de casa, nem sobre elas fez incidir contribuições».

2.2. O Direito2.2.1. Incumbe ao Tribunal dos Conflitos decidir a questão da com-

petência em razão da matéria sobre que se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa e fixar qual o tribunal competente para apreciar e decidir a causa, dirimindo este conflito de jurisdição, nos termos do disposto no art.107°, n.° 2, do CPC.

Em face dos concretos contornos que assumiu a presente acção e da específica restrição do objecto da apelação e da revista a que procedeu o recorrente — com o inerente trânsito em julgado da decisão da 1ª instância quanto às matérias que não foram objecto de recurso —, tal tarefa reconduz -se à questão de saber se a apreciação dos pedidos daquelas alíneas a) e b) se inscreve na competência jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais ou na competência jurisdicional dos tribunais judiciais comuns (nos quais se incluem, desde a Lei n.° 82/77 de 6 de Dezembro, como tribunais de competência especializada, os tribunais do trabalho).

2.2.2. Como refere Manuel de Andrade, a competência dos tribunais em geral resulta da medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais, do modo como entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais (1).

Quanto aos tribunais judiciais, estabelece o art. 18°, n.° 1 da LOFTJ (aprovada pela Lei n.° 3/99 de 13 de Janeiro e alterada pela Lei n.° 101/99 de 26 de Julho, pelo DL n° 323/2001 de 17 de Dezembro, pelo DL nº 38/2003 de 8 de Março e pelo DL n° 105/2003 de 10 de Dezembro), que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Este preceito está em consonância com o “princípio da plenitude da jurisdição comum” consagrado no art. 211°, n.° 1, da CRP, de acordo com o qual os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Entre os tribunais judiciais a que se reporta a LOFTJ, encontram -se os tribunais do trabalho — cfr. os arts. 64°, 78° e 85° e ss.

A competência especializada dos tribunais do trabalho encontra -se definida naquele art. 85°, nos termos da qual lhes compete conhecer, em matéria cível, entre outras:

“b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;

(...)i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de

família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;

(...)o) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho

ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementa-ridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente;”

A propósito da aplicação da lei no tempo neste âmbito, dispõe o art. 22° da LOFTJ que:

“1 - A competência fixa -se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posterior-mente.

2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribu-ída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.”

Page 87: Decisões STA

172 173

Em matéria de competência dos tribunais administrativos e fiscais, o art. 212°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa (com a re-dacção da revisão constitucional de 1989 (2) e a numeração da revisão constitucional de 1997 (3)) circunscreve a competência destes tribunais ao domínio das “relações jurídicas administrativas”, ou seja, das que conferem poderes de autoridade ou impõem restrições de interesse pú-blico à administração perante os particulares, ou que atribuem direitos ou impõem deveres públicos aos particulares perante a administração (4).

À data da propositura da presente acção (2003.05.13), a competência jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais estava traçada pelo ETAF, aprovado pelo DL nº 129/84 de 27 de Abril, sendo este o diploma a atender nos presentes autos em face da disposição transitória contida no art. 4º, n.° 1, da Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (5), de acordo com o qual as disposições do novo Estatuto “não se aplicam aos processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor”.

De acordo com o art. 3° do ETAF aprovado pelo DL n° 129/84,“Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da

justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Relativamente à competência dos tribunais administrativos de círculo, o art. 51°, n°1, al. f) conferia a estes a competência para o conhecimento das “acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido”.

Quanto aos tribunais tributários, também o art. 62°, n.°1, al. m), do ETAF (na redacção que lhe foi conferida pelo DL n° 229/96 de 29 de Novembro) lhes conferia competência para o conhecimento das “acções para reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal”.

No que diz respeito à aplicação da lei no tempo nesta matéria, dispõe o art. 8° do ETAF aprovado pelo DL n° 129/84 que:

“1 - A competência fixa -se no momento em que a causa se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posterior-mente.

2— São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta, se deixar de ser competente em razão da matéria e da hierarquia, ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.”

2.2.3. Conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência em razão da matéria é apreciada em função dos termos em que a acção é proposta e determina -se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos (6).

A presente acção foi intentada pelo A. Hélder José Contente Gomes contra a TAP -Air Portugal, S.A..

Como fundamento da mesma, o A. invoca que esteve ao serviço da R. entre 1966 e 5 de Junho de 2002, que auferiu, em determinados períodos que identifica, subsídio de renda de casa e que a R. nunca fez incluir este subsídio nas folhas de remuneração enviadas à Segurança Social, nem nunca sobre ele fez incidir as contribuições devidas e quotizações rela-tivas ao A., apesar de tal parcela constituir remuneração para os efeitos do que se encontra previsto na legislação relativa ao âmbito da base de

incidência contributiva das contribuições e quotizações para a Segurança Social e, ainda, que a R. não entregou na Segurança Social nos anos de 1992 a 1996 a quotização relativa a um complemento de retribuição pago ao A., pelo Natal de cada ano, designado “utilidades”.

O pedido nela formulado traduz -se na condenação da Ré a reconhecer que a renda paga ao A. constituía retribuição e a regularizar as declara-ções e pagamentos das contribuições e quotizações à Segurança Social relativamente ao subsídio de renda de casa e ao complemento de retri-buição pago no Natal, bem como a pagar ao A. o valor do agravamento de IRS que resultar das regularizações peticionadas.

Quanto aos pedidos referentes ao pagamento das quotizações relati-vamente ao complemento de retribuição (‘utilidades”) pago no Natal, bem como ao pagamento do valor do agravamento de IRS que resultar das regularizações peticionadas, mostra -se a R. absolvida com trânsito em julgado, respectivamente, da instância e do pedido.

O litígio entre as partes subsiste, apenas, quanto aos pedidos de reco-nhecimento do carácter retributivo da renda mensal paga pela habitação do A. e de condenação da R. a regularizar as declarações e pagamentos das contribuições e quotizações à Segurança Social relativamente à mesma — pedidos das alíneas a) e b) do petitório.

Como se refere no acórdão do STJ proferido a fls. 556 e ss. dos autos, embora as instâncias tenham cindido esta matéria em duas questões distintas, analisando, por um lado, o carácter retributivo da renda de ha-bitação que era paga ao Autor pela sua entidade patronal, e pronunciando--se, por outro lado, quanto à competência do tribunal sobre o pedido de condenação da Ré na entrega das contribuições à segurança social, “a verdade é que essas questões se encontram indissociavelmente ligadas e integram um único pedido”.

Com efeito, o A. não pediu que a R. fosse condenada a pagar -lhe de-terminadas importâncias que considerasse possuírem carácter retributivo, mas unicamente pretendeu obter a sua condenação a regularizar a sua situação perante a Segurança Social, mediante a entrega ao respectivo Centro Distrital de Segurança Social de Lisboa dos descontos corres-pondentes à aludida renda de casa.

Este pedido, continua o acórdão do STJ, “enquadra -se exclusivamente no âmbito da relação jurídica contributiva e destina -se a assegurar, em particular, o cumprimento da obrigação contributiva da entidade empregadora, tal como se encontra definida no actual artigo 45° da Lei n.° 32/2002, de 20 de Dezembro (Lei de Bases da Segurança social).

Tendo em conta que o montante das contribuições da entidade patronal é determinado por referência à remuneração do trabalhador (artigo 46°, n.° 1, da mesma Lei), a caracterização da falada renda de casa como retribuição constitui, neste contexto, o fundamento do pedido — e integra a causa de pedir na acção -, visto que esse é um elemento indispensável para considerar, como se pretende, que a incidência contributiva abranja as quantias pagas a esse título.

Em qualquer caso, na qualificação da renda de casa como retribuição, para o aludido efeito, não está em causa a aplicação do conceito jus laboral de remuneração, mas antes o noção de remuneração que, para efeitos contributivos, nos fornece o artigo 2° do Decreto -Regulamentar n.° 12/83, de 12 de Fevereiro, que justamente visa determinar a base de incidência das contribuições para a segurança social.

Como bem se vê, os aspectos jurídicos analisados pelas instâncias englobam afinal apenas uma questão — a incidência contributiva da

Page 88: Decisões STA

174 175

renda de casa —, pelo que a declaração de incompetência material do tribunal de trabalho, agora confirmada pela Relação, deve entender -se como referente ao único pedido formulado e que apenas tem a ver com aquela matéria.”

Aliás o A. alega na sua petição inicial que o comportamento ilícito da R. decorre de ela nunca ter feito incidir sobre a renda da habitação as contribuições e quotizações relativas ao A., apesar de aquela parcela constituir remuneração “para os efeitos do que se encontra previsto na legislação relativa ao âmbito da base de incidência contributiva das contribuições e quotizações para a Segurança Social, designadamente no Decreto Regulamentar n.° 12/83 de 12/12”, aqui fundamentando a sua pretensão rio sentido de a R. ser compelida a regularizar a situação contributiva perante a Segurança Social.

E vem a precisar, nas alegações da revista, que a obrigação da R. de proceder mensalmente à entrega das contribuições devidas (as suas e as do A.), nos serviços competentes da Segurança Social resulta do estipulado no n.° 3 do art.° 24° da Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto (Lei de Bases da Segurança Social).

2.2.4. A obrigação que o A. invoca na presente acção impender so-bre a R. e que pretende ver apreciada e reconhecida pelo tribunal é, pois, a obrigação de pagamento à Segurança Social das contribuições e quotizações relativas à renda de casa que a R. pagou enquanto o A. desempenhou o cargo de representante da R. na Venezuela, no Senegal e na África do Sul, entre 1992 e 2002.

De acordo com o que estabelece o art. 24° da Lei n.° 24/84, de 14 de Agosto, e também os arts. 60.° e 62.° da Lei n.° 27/2000, de 8 de Agosto (que revogou a Lei n.° 28/84), bem como os arts. 45.° e 47.° da Lei n.° 32/2002, de 20 de Dezembro (que revogou a Lei n.° 27/2000), a propósito da obrigação contributiva e da responsabilidade pelo pa-gamento das contribuições, a contribuição é uma prestação pecuniária que consubstancia o objecto de uma verdadeira obrigação, a que cor-responde um direito por parte da Segurança Social, estabelecendo -se entre o contribuinte e a instituição de Segurança Social uma relação jurídica contributiva.

Resulta também dos mesmos preceitos que os titulares da obrigação contributiva são os trabalhadores e as entidades patronais e que, no caso dos trabalhadores por conta de outrem, há uma obrigação unitária de pagamento das contribuições, a cargo da entidade patronal.

Assim, como se refere no Acórdão deste Tribunal dos Conflitos n.° 2/04, de 2004.10.27 (7), que num caso similar considerou caber aos tribunais tributários a competência material para conhecer de um pedido de condenação do empregador a pagar à Segurança Social as contribui-ções devidas no âmbito de um contrato individual de trabalho “a relação jurídica contributiva, filiada embora na relação laboral, não se confunde com ela, e concretiza -se sob a forma de uma relação jurídica bilateral dado que apenas incide sobre um dos sujeitos passivos, a entidade patronal, a quem cabe a liquidação e pagamento das contribuições, mesmo na parte respeitante ao trabalhado” (8).

Ainda de acordo com o mesmo aresto, no âmbito desta relação jurí-dica contributiva, a entidade empregadora não está constituída perante o trabalhador em qualquer dever jurídico. “É perante as instituições de Segurança Social, que integram a chamada administração indirecta do Estado, pois são entidades públicas, revestidas de autoridade pública,

designadamente tendo poderes para intervenções coactivas, que as entidades empregadoras têm que cumprir a sua obrigação contributiva.”

Além disso, importa ter presente que, como também se sublinhou no dito acórdão do Tribunal dos Conflitos, “as contribuições para a Segu-rança Social, enquanto verdadeiras quotizações sociais, não são impostos ou taxas (dos quais se distinguem quanto aos objectivos, à estrutura jurídica e à própria cobrança (9)), mas imposições para fiscais”.

Na verdade, tais prestações inscrevem -se no universo das imposi-ções financeiras públicas, ou seja, constituem prestações pecuniárias estabelecidas ou impostas por lei a favor de organismos do Estado ou de instituições investidas de autoridade pública que têm a seu cargo a realização de acções necessárias à efectivação do direito à Segurança Social, constitucionalmente reconhecido no art. 63° da Lei Fundamental, com o fim imediato de obter meios ou recursos destinados ao financia-mento das acções de protecção social.

De acordo com Ilídio das Neves (10), os tributos parafiscais são “im-posições financeiras sociais com algumas características técnicas e jurídicas idênticas ou semelhantes às que são próprias das imposições tributárias, mas com objectivo específico (protecção social), regime financeiro autónomo e um quadro normativo bastante particular”.

2.2.5. As competências jurisdicionais para a apreciação das matérias do Direito da Segurança Social foram sendo perspectivadas pelo legis-lador, ao longo do tempo, de modo diverso: se, numa primeira fase, os tribunais do trabalho abarcavam todas as competências jurisdicionais em matéria de Direito da Segurança Social, depois, o legislador passou a recorrer de forma crescente à jurisdição fiscal, no âmbito da obrigação contributiva e, posteriormente, à jurisdição administrativa, no âmbito da obrigação prestacional da Segurança Social.

Verificou -se assim uma intervenção crescente da jurisdição tributá-ria em conflitos emergentes da relação jurídica contributiva (que, no caso dos trabalhadores por conta de outrem, se efectiva como relação jurídica bilateral entre a entidade empregadora e a instituição da Se-gurança Social).

E verificou -se, também, uma intervenção crescente da jurisdição administrativa nos conflitos emergentes da relação jurídica prestacional (que, no caso dos trabalhadores por conta de outrem, se estabelece entre o beneficiário e a instituição da Segurança Social).

Esta crescente intervenção das jurisdições administrativa e tributária nos conflitos relacionados com a matéria do Direito da Segurança Social encontra a sua explicação, consoante as relações jurídicas em causa, nas seguintes circunstâncias:

- quanto à relação jurídica prestacional (que se estabelece entre o be-neficiário e a instituição), na circunstância de a actividade da instituição da Segurança Social se inscrever na actividade administrativa indirecta do Estado (sujeita às regras de Direito Administrativo);

- quanto à relação jurídica contributiva (que se estabelece entre o contribuinte e a instituição da Segurança Social), na natureza parafiscal da obrigação contributiva.(11)

2.2.6. Perante as regras legais enunciadas que fixam a medida de jurisdição, quer dos tribunais administrativos e fiscais, quer dos tribunais do trabalho enquanto tribunais de competência especializada dentro da ordem dos tribunais judiciais comuns, entendemos que os pedidos em causa na presente acção versam sobre matéria que é da competência dos tribunais fiscais.

Page 89: Decisões STA

176 177

Com efeito, o que o A. essencialmente pretende com os mesmos é que a R. seja condenada a proceder ao pagamento de contribuições que entende a mesma dever à Segurança Social por considerar que a incidência contributiva abrange as quantias pagas pela R. como renda de casa, ou seja, pretende se reconheça impender sobre a R. uma obrigação contributiva e que esta cumpra tal obrigação.

Ou seja, o objecto da acção é a relação jurídica contributiva da qual emerge uma obrigação da ré (enquanto sujeito passivo da obrigação) perante a Segurança Social.

O art. 62°, n.° 1 al. m) do ETAF aprovado pelo DL n.° 128/84, de 27 de Abril (na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.° 229/96, de 29 de Novembro) atribui aos tribunais tributários competência para conhecer das “acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal”.

Tendo em atenção o disposto nos arts. 3° e 62°, n.° 1, al. m), do ETAF revogado, mas aqui aplicável, e o supra exposto quanto à transferência gradual de competências do âmbito da jurisdição dos tribunais do tra-balho para a jurisdição administrativa e fiscal, e uma vez que a presente acção — em face da alegação do autor e do modo como fundamenta o seu pedido —, se destina a obter o reconhecimento de um interesse legal-mente protegido em matéria parafiscal, a apreciação do litígio inscreve--se na competência jurisdicional dos tribunais tributários.

Neste sentido decidiram recentemente os acórdãos deste Tribunal, o já citado, de 2004.10.27 (Conflito n.° 2/04), e o de 2005.06.29 (Conflito n.° 1/05).

Diga -se que o novo ETAF, aprovado pela Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro (alterada pelas Leis n.°s 4 -A/2003 de 19 de Fevereiro e 107 -D/2003 de 31 de Dezembro) contém uma regra de atribuição de competência aos tribunais tributários com o mesmo conteúdo do art. 62°, n.° 1, al. m), do anterior. Assim, a al. c) do art. 49° atribui aos tribunais tributários competência para conhecer das “acções destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal” e a regra geral do seu art. 4°, n.°1, inclui no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais “a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito adminis-trativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.

2.2.7. Invoca o recorrente que o Tribunal do Trabalho é competente, em razão da matéria, para conhecer e decidir do pedido do pagamento e entrega pela R. dos descontos para a Segurança Social, uma vez que este pedido emerge de relação conexa com a relação de trabalho entre A. e R. por dependência e cumula -se com pedido para o qual o Tribunal é directamente competente.

Ora, embora a obrigação contributiva da entidade empregadora tenha como pressuposto a existência de um contrato de trabalho — já que é por virtude da celebração deste que a entidade empregadora paga retribuições ao trabalhador e é deste pagamento que resultam as obrigações, quer do trabalhador, quer da entidade empregadora, de pagar ao Estado as contribuições —, ela concretiza -se, como vimos, sob a forma de uma relação jurídica bilateral entre a entidade empregadora (sujeito passivo da obrigação, a quem cabe a liquidação das contribuições, mesmo na

parte respeitante ao trabalhador) e o Estado (sujeito activo), relação jurídica esta que tem natureza parafiscal.

Se o facto de o contrato de trabalho ser um dos pressupostos da relação jurídica contributiva que se estabeleceu entre a entidade empregadora e o Estado (relação jurídica que, verdadeiramente, é objecto da acção) poderia levar a sustentar que esta causa se enquadra nas hipóteses do art. 85°, al. b) da LOFTJ, a expressa previsão do art. 62°, n.°1, al. m) do ETAF aplicável reconduz para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente para a competência dos tribunais tributários, a apreciação do litígio que, de acordo com a alegação da petição inicial e as normas que prevêem a obrigação da ré nela afirmada pelo autor, se destina a reconhecer um interesse legalmente protegido em matéria que se integra no direito fiscal.

Independentemente da procedibilidade da pretensão do autor atenta a matéria sobre que versa a presente acção, a ordem jurisdicional compe-tente para a sua apreciação não é aquela em que se incluem os tribunais do trabalho, mas a ordem dos tribunais administrativos e fiscais.

Deve salientar -se que, também aqui, como ocorreu no caso a que se reporta o Conflito n° 2/04 sobre que incidiu o acórdão de 2004.10.27, apesar de esta operação positiva de subsunção da matéria sobre que versa a acção às regras delimitadoras da competência jurisdicional da ordem dos tribunais administrativos e fiscais ser decisiva quanto à atribuição da competência a estes para o conhecimento do litígio, também de modo negativo — pelo não preenchimento das diversas hipóteses em que a lei atribui competência em razão da matéria à jurisdição laboral, enquanto jurisdição especializada — se concluiria não ser competente para o conhecimento da presente acção o Tribunal do Trabalho.

Com efeito, da análise dos arts. 18° (delimitação negativa da com-petência do tribunal do trabalho) e 85° a 87° (delimitação positiva da competência do tribunal do trabalho), da LOFTJ resulta que aos tribunais do trabalho compete julgar as causas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais (art. 18°), mas que estejam mencionadas na sua área de competência especializada (arts. 85° a 87°).

Ora, como se passará a expor, nenhuma das alíneas do art. 85° relativas à competência cível se mostra preenchida no caso “sub -judice”, maxime a referenciada pelo recorrente.

De acordo com a al. b) do art. 85.°, compete ao tribunal do trabalho conhecer, em matéria cível, das “questões emergentes de relações de trabalho subordinado”.

É este o núcleo essencial das questões submetidas à apreciação dos tribunais do trabalho, núcleo este que é completado por sucessivos nú-cleos de alargamento a problemas conexos, de maneira cada vez mais mediata, com este núcleo fundamental.

Por isso deve considerar -se que esta alínea se reporta apenas aos litígios directamente relacionados com o nascimento, a vida e a morte do contrato e não a quaisquer outros, a não ser que expressamente refe-renciados nas demais alíneas do preceito (que alargam a competência a questões bem delimitadas que têm atinências com a relação de trabalho mas não emergem directamente dela).

Como se refere no Ac. do STJ de 2000.05.03, as questões emergentes da relação laboral a que se reporta a al. b) deverão ser consideradas apenas as que são conteúdo essencial dessa relação, ou seja, aquelas que respeitam a direitos e deveres recíprocos, a ela inerentes, daqueles que aí são partes (12).

Page 90: Decisões STA

178 179

Atendendo a que o pedido de reconhecimento do carácter retributivo da renda de habitação paga pela ré não tem autonomia face ao pedido de condenação desta a regularizar a sua situação contributiva perante a Segurança Social no que àquelas rendas diz respeito e considerando, também, que a obrigação contributiva da entidade empregadora perante a Segurança Social sobre que versam estes pedidos não tem obviamente a ver com o núcleo essencial do contrato de trabalho, é manifesto que a referenciada al. b) do art. 85.° da LOFTJ não se mostra preenchida na presente acção.

Por seu turno a al. i) do art. 85° da LOFTJ atribui competência para o conhecimento das «questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais adminis-trativos e fiscais”.

Também esta hipótese se não mostra integrada, desde logo porque a presente acção não versa sobre um litígio entre o trabalhador e uma instituição de Segurança Social.

A questão submetida à apreciação judicial não se reporta à relação jurídica prestacional (entre o beneficiário e a Segurança Social) mas à relação jurídica contributiva (entre a entidade empregadora contribuinte e a Segurança Social).

Deve contudo dizer -se que, mesmo relativamente à relação jurídica prestacional, a crescente intervenção dos tribunais administrativos no âmbito da Segurança Social, agora definida em razão da natureza jurídica da instituição (sendo certo que a Lei n.° 28/84 transformou as institui-ções de Segurança Social em serviços do Estado, embora integrados na administração indirecta), determinou um alargamento da competência do contencioso administrativo neste âmbito (13).

Como se faz notar no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria--Geral da República de 1995.07.14, “a alínea i) do artigo 64° da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro (com igual redacção ao actual art. 85°, i), da Lei n.° 3/99, de 13.01), confere aos tribunais de trabalho uma competência residual para conhecer das questões de natureza cível entre as instituições de segurança e seus beneficiários, na medida em que não sejam da competência dos tribunais administrativos e fiscais.” (14)

Também no acórdão deste Tribunal, de 14 de Março de 1996 (Con-flito n.° 2/96), se sublinhou que “a partir da Lei n.° 28/84, em vez de se considerar determinante a natureza sucedânea da relação de segurança social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança social aos tribunais de trabalho, entendeu -se atribuir re-levo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada a intervir na matéria”.

Daí a orientação jurisprudencial praticamente uniforme no sentido de que são competentes para o conhecimento dos litígios relativos à relação jurídica prestacional, entre as instituições de Segurança Social e os respectivos beneficiários (por se tratar de relações reguladas pelo direito administrativo, em que uma das partes é uma pessoa colectiva de direito público), os tribunais administrativos (15).

Resta -nos a al. o) do aludido art. 85°, norma que atribui competência ao tribunal do trabalho para o conhecimento das “questões entre su-jeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos é terceiros; quando emergentes de relações conexas com a relação de

trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente”.

Como refere Leite Ferreira (16), a alínea o) contempla um caso de extensão de competência em razão da matéria, uma vez que as questões aí referidas se situam, em regra, fora do círculo de competência dos tribunais do trabalho, mas para ele são atraídos em consequência de uma posição de conexão que mantém com as causas especializadas, ou melhor dizendo, com as questões de competência específica ou estrutural daqueles tribunais. Dei as se poderá dizer, continua aquele Autor, que são estranhas, pela sua própria natureza, ao domínio directo da competência dos tribunais do trabalho, mas que com ele se mostram conexas de certa maneira. Trata -se de questões de que os tribunais do trabalho não podem conhecer quando se apresentam isoladamente, mas que o legislador entendeu por bem atribuir -lhes quando se cumulem com outras para as quais sejam directamente competentes.

Poder -se -ia dizer que esta alínea estaria liminarmente afastada no caso “sub judice” por na presente acção não estar neste momento em causa qualquer outro pedido para além do pedido de condenação da ré no paga-mento das contribuições para a Segurança Social relativas às prestações de renda de habitação no período enunciado na petição inicial.

Na verdade, e como se viu, o pedido de reconhecimento da natureza retributiva dessa renda [al. a) do pedido] não tem autonomia face aquele pedido de condenação [al. b) do pedido], inserindo -se ambos no âmbito do reconhecimento da obrigação contributiva da R.

Quanto aos demais [als. c) e d) do pedido], foi já proferida decisão com trânsito em julgado a absolver a R., da instância e do pedido, respectivamente.

Não nos parece contudo que assim se deva perspectivar a presente acção para efeito de aferir qual a ordem jurisdicional com competência material para proceder à sua apreciação.

Esta competência, uma vez reconhecida em face das leis orgânicas e estatutárias específicas que distribuem por cada categoria ou espécies de tribunais a sua medida de jurisdição, mantém -se até ao julgamento final da causa independentemente da sorte dos diversos pedidos nela formulados.

Como se viu, é perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objectivos (pedido e seus fundamentos) e subjectivos (identidade das partes) da acção, a sua apreciação se enquadra na ordem jurisdicional comum ou na ordem jurisdicional administrativa e fiscal.

Se eventualmente a competência do tribunal para a apreciação da globalidade dos pedidos é afirmada em virtude de na acção se ter formu-lado um pedido para que o tribunal é directamente competente — como sucede na hipótese da al. o) do art. 85.° da LOFT — e o pedido for-mulado na petição inicial que determina a atribuição da competência vem a ser julgado improcedente, não é por isso que o tribunal perde a competência (que ganhara com a formulação daquele pedido) para apreciar os demais pedidos.

Mas, mesmo perspectivando a totalidade dos pedidos, não se vê que nesta acção tenha sido formulado um pedido para o qual o Tribunal do Trabalho fosse directamente competente.

Especificamente o constante da al. d) do petitório (de condenação da R. a pagar ao A. as quantias em que este vier a ter agravada a tribu-

Page 91: Decisões STA

180 181

tação em sede de IRS em consequência das regularizações a efectuar à Segurança Social, a liquidar em execução de sentença), não emerge directamente da relação de trabalho e, manifestamente, não se cumula com outro pedido para o qual o tribunal é directamente competente (sendo esta uma condição que a alínea em causa estabelece de modo cumulativo com a verificação da aludida conexão).

Os pedidos das alíneas a), b) — e também c) — da petição inicial, já o vimos, são todos da competência directa dos tribunais tributários na medida em que as questões com eles colocadas pelo autor ao tribunal se reconduzem à apreciação da extensão e âmbito da relação jurídica contributiva estabelecida entre a R. e a Segurança Social (17).

Ora a relação jurídica contributiva estabelece -se tendo como pres-suposto a existência de um contrato de trabalho, mas não emerge de qualquer relação conexa com a relação de trabalho.

Aliás, e como bem se nota no citado acórdão deste Tribunal, de 2004.10.27, “não faria sentido que o legislador - a considerar serem conexos com o contrato de trabalho os vínculos entre os sujeitos do con-trato de trabalho (trabalhador ou entidade empregadora) e a Segurança Social - simultaneamente, atribuísse aos Tribunais de Trabalho, na al. o) competência para o julgamento das questões emergentes desses vínculos, se já na al. i) incluía a competência para o julgamento das questões entre um dos sujeitos do contrato e a Segurança Social”.

Se as questões entre os trabalhadores ou entidades empregadoras (de um lado) e a Segurança Social (de outro) fossem de considerar “emer-gentes de relações conexas com a relação de trabalho” naqueles termos, não faria qualquer sentido o alargamento tímido (em face da parte final do preceito, que ressalva a competência dos tribunais administrativos e fiscais) constante da al. i).

22.8. É pois de concluir que o “conflito” se deve decidir atribuindo competência para o julgamento desta acção à ordem dos tribunais ad-ministrativos e fiscais, concretamente aos tribunais tributários.

3. Decisão:Pelo exposto, acordam no Tribunal de Conflitos em julgar o Tribunal

do Trabalho de Lisboa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção intentada pelo Autor Hélder José Contente Gomes contra a TAP AIR Portugal, S.A., e considerar competentes para conhecer da matéria a que os autos se reportam os Tribunais Tributários.

Sem custas.Lisboa, 4 de Outubro de 2006. — João Manuel Sousa Fonte (rela-

tor) — Azevedo Moreira — Manuel Joaquim Sousa Peixoto — Santos Botelho — Mário Manuel Pereira — Rosendo José.

(1) In “Noções Elementares de Processo Civil”, ed. de 1979, pp.88 -89.(2) Lei Constitucional n.° 1/89 de 8.8(3) Lei Constitucional n.° 1/97 de 20.9(4) Vide Freitas do Amaral, in “Lições de Direito Administrativo”, edição policopiada,

p. 423.(5) O novo ETAF, entretanto alterado pelas Leis n.°s 4 -A/2003 de 19 de Fevereiro e

107 -D/2003 de 31 de Dezembro, e vigente desde 1 de Janeiro de 2004 (cfr. o art. 4º da Lei n.° 107 -D/2003 de 31 de Dezembro).

(6) Vide Manuel de Andrade, in ob. cit., pp. 90 e ss., José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, I, p. 110, José Manuel Santos Botelho in “Contencioso Admi-nistrativo Anotado e Comentado”, 3ª edição, 2000, pp. 13 e ss. e, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 78.06.06 (in B.M.J. 278/122), de 98.02.12 (in CJ, Acs. do STJ, I, p 263), de 2003.05.14 (proferido na Rev. n.° 414/03 da 4ª Secção), de 2003.10.01 (proferido na Rev. n.° 2059/03 da 4ª Secção) e de 2004.01.14 (proferido na Rev. n.° 743/03

da 4ª Secção), os Acs. do STA de 93.05.13 (Rec. n.° 31.478), de 96.05.28 (Rec. n.° 39.911), de 99.03.03 (Rec. n.° 40.222) e de 99.10.13 (Rec. n.° 44.068).

(7) Disponível em texto integral na base de dados do ITIJ (www.dgsi.pt)(8) Vide também o Ac. do STJ de 2003.02.05 (proferido na Revista n.° 2673/02 da 4ª

Secção) e Ilídio das Neves, in “Direito da Segurança Social — Princípios Fundamentais numa Análise Prospectiva”, 1996, p.328.

(9) Aqui se destacando a possibilidade do pagamento voluntário retroactivo de contribuições prescritas (e, por isso, não exigíveis coercivamente).

(10) In ob. cit., p 366.(11) Vide numa análise histórica exaustiva Ilídio das Neves, in ob. cit., pp. 632 e ss., o citado

Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2004.10.27. e o de 1996.03.14 (in BMJ 455/222).(12) In CJ, Acórdãos do STJ, II, p. 39.(13) Cfr. os arts. 73° da Lei n.° 17/2000 e 78° da Lei n.° 32/2002.(14) In DR, II série de 18 de Agosto de 1995(15) Vide os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 2003.05.13 e de 97.07.01 (ambos disponíveis

da base de dados do ITIJ), o citado Ac do Tribunal dos Conflitos de 1996.03.14 (in BMJ 455/222) e os Acs. do STJ de 2002.03.06 (proferido na Rev. n.° 3359/01 da 4ª Secção) e do STA de 1997.06.12 (também disponível na base de dados do ITIJ).

(16) Código de Processo do Trabalho, Coimbra Editora, 1989, pag. 71 e seguintes.(17) É de notar que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando a

incompetência material dos tribunais do trabalho para conhecer da falta de pagamento das contribuições devidas à Segurança Social pelas entidades empregadoras, quer em acções em que nenhum outro pedido se formula, quer em acções em que se discutiam questões directamente emergentes do contrato de trabalho ou outras para que o tribunal do trabalho tinha competência directa - vide os Acórdãos do STJ de 2005.02.15 (Revista n.° 3037/04 da 4.ª Secção) e de 2005.02.23 (Revista n.° 1148/04 da 4.ª Secção).

Acórdão de 12 de Outubro de 2006.Recurso n.º 23/05 -70.Requerente(s): Maria Manuel Matias de Lacerda Magalhães Mexia,

no conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca da Lousã e os tribunais administrativos e fiscais.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Manuel Oliveira Barros.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:Maria Manuel Matias de Lacerda Magalhães Mexia requereu em

3/3/2005 no Tribunal Judicial da comarca da Lousã a instauração de inventário para separação de meações.

No processo assim iniciado, foi no seguinte dia 17 proferido despacho liminar que, com fundamento, em termos de facto, em que se tratava de processo com carácter acidental relativamente a processo de execução a correr termos na Repartição de Finanças da Lousã, e louvando -se, em termos de direito, no art.151°, n°1°, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), ordenou a remessa do processo ao tribunal tributário de 1ª instância territorialmente competente.

Em despacho de 23/5/2005, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra declinou a competência em razão da matéria dessa ordem jurisdicional para conhecer daquele processo, indeferiu liminarmente, nos termos dos arts. 16° CPPT e 234° -A CPC, o requerimento inicial do mesmo, e, na falta de declaração formal, expressa, da sua própria incompetência material por parte do tribunal judicial referido, ordenou que os autos aguardassem por 14 dias a contar do trânsito dessa decisão que a requerente do inventário requeresse a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Lousã, nos termos do art.18°, n°1°, CPPT - o que esta efectivamente fez em 25/5/2005.

Page 92: Decisões STA

182 183

Foi então proferido nesse Tribunal, em 6/6/2005, despacho, por igual transitado em julgado (cfr. o certificado a fls.68), que, desta vez expres-samente, declinou, invocando os arts.66°, 96°, 101º, 102°, 103° e 105° CPC, a sua competência em razão da matéria para conhecer do processo aludido, atribuindo -a aos tribunais tributários de 1ª instância.

O requerimento da instauração do inventário pretendido foi, por isso, indeferido liminarmente.

Em 24/6/2005 a requerente do inventário requereu, ao abrigo do art.117°, n°1°, CPC, ao Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra a resolução de conflito de jurisdição assim gerado, que como tal ajustadamente qualificou.

Autuado esse requerimento como relativo a conflito de competência, o relator a que esses autos foram distribuídos, reportando -se ao disposto nos arts.115°, n°1°, e 116°, n°1°, 1ª parte, CPC, conjugado, este, com os arts.33°, al.b), a contrario, e 36°, al.d), Lei de Organização e Funciona-mento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ - Lei n°3/99, de 13/1, republicada em anexo à Lei n°105/2003, de 10/12), e 59°, § 2°, do Regulamento do Tribunal de Conflitos, julgou, com invocação ainda de acórdão deste mesmo Tribunal de 27/2/75, publicado nos Acórdãos Doutrinais do Su-premo Tribunal Administrativo n°172, 303, ser ao Tribunal de Conflitos que cabe resolver o conflito em questão, ordenando, consoante art.117°, n°2°, CPC, a remessa dos autos a este Tribunal.

Ouvidas as autoridades em conflito (arts.118° e 119° CPC), nada vieram dizer.

Observado o disposto no art.120°, n°1°, CPC, o M°P°, com referência aos arts.209°, n°1°, e 212° da Constituição, e 115°, nºs 1° e 2°, e 116°, n°1°, CPC, pronunciou -se no sentido da atribuição ao tribunal judicial da competência para proceder à separação de bens pretendida.

Louvou -se para tanto no disposto nos arts.151°, n°1°, e 166° CPPT e 18°, n°1°, LOFTJ e nas razões indicadas no despacho do Senhor Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. Aditou ter essa solução respaldo na doutrina, citando Jorge Lopes de Sousa, “CPPT Anotado “,4ª ed., 956 -957.

Colhidos os vistos legais, importa decidir. Assim:Na tese da Senhora Juíza da comarca da Lousã, está -se perante inci-

dente de processo de natureza fiscal, atípico, visto que não referido no art. 166° CPPT. Daí a competência material do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, conforme art.151°, n°1°, CPPT.

Fundamentou essa posição em que o processo de inventário em ques-tão deriva de execução fiscal pendente na Repartição de Finanças da Lousã em que foi penhorado bem comum do casal, constituindo incidente só surgido depois da citação efectuada nesse processo nos termos do art. 220° CPPT.

Do conhecimento dos tribunais tributários as questões relativas a tais processos, a partir dessa citação, “todo o processo emerge duma relação jurídica tributária, que, neste caso, significa, salvo o incidente de separação judicial de bens, a responsabilização do cônjuge por dívi-das tributárias do outro”; e “todo o incidente é regulado, num primeiro momento, pela legislação processual fiscal”, o que indicia ser essa a jurisdição competente, conforme art.151°, n°1°, CPPT.

Tal assim apesar de não incluído nos incidentes típicos referidos no art.166° CPPT, mas por se tratar de incidente atípico, dado constituir

ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo, visto que determina a suspensão da execução fiscal até à sua decisão.

No Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra discorreu -se, em suma, e bem que em ordem diversa, como segue:

O âmbito da jurisdição fiscal encontra -se definido nos arts.212° da Constituição e 4° e 49° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, de que decorre que compete aos tribunais fiscais pronunciar -se apenas sobre as relações jurídicas fiscais.

Entende -se como questão fiscal a que emerge duma resolução auto-ritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, bem como o conjunto das relações jurídicas com tal objectivamente conexas ou teleologicamente subordinadas.

O inventário para separação de meações que emerge duma execução fiscal não integra uma questão fiscal, mas sim uma questão privada entre cônjuges.

Esse inventário para partilha dos bens comuns do casal destina -se a garantir os interesses dum cônjuge contra os encargos do outro.

O Estado intervem nele nos mesmos termos que qualquer outro credor do cônjuge executado.

Tornado necessário por os processos de execução fiscal, apesar de terem carácter judicial, correrem termos, conforme art.103° da Lei Geral Tributária, nos serviços das finanças, o art.151° CPPT visa apenas regu-lar as questões de competência adentro do processo de execução fiscal - não também as questões de competência entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa e fiscal.

Trata -se, nesse preceito, de separar as águas num processo em que participam, em momentos distintos, um órgão administrativo e um órgão judicial, competindo àquele praticar actos de natureza não jurisdicional e a este dirimir as questões de natureza jurisdicional suscitadas no processo de execução fiscal.

O inventário para separação de meações não faz parte dos inciden-tes típicos da execução fiscal previstos no art. 166° CPPT, nem é um incidente atípico, pois não se trata de ocorrência extraordinária que interfira com o andamento normal do processo, constituindo, isso sim, questão prejudicial que determina a suspensão da execução fiscal até à sua decisão no tribunal competente.

Finalmente:Uma vez que, como se vê dos arts.1770° e 1771° C.Civ., o inventário

para separação de meações se destina a produzir efeitos também fora da execução de que depende, e como bem assim resulta do art.96°, n°2°, CPC, que afasta o caso julgado material quando a decisão da questão incidental importe violação dessas regras, as regras de competência absoluta obstam à apensação determinada no art.1406° CPC.

Vejamos então:Um dos critérios de repartição do poder jurisdicional no plano interno

é, como se sabe, o do objecto do litígio. A instituição de diversas espé-cies de tribunais e a definição da respectiva competência em razão da matéria ou objecto da causa, ou seja, da natureza da relação substancial pleiteada obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes, desde logo, uma maior garantia de acerto ou perfeição da decisão. (1)

Page 93: Decisões STA

184 185

O art.49°, n°1°, al.d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei n°13/2002, de 19/2, comete, nome-adamente, aos tribunais tributários a competência para conhecer dos incidentes e das oposições. Segue -se, deste modo, regra clássica, segundo a qual accessorium sequitur principali.

Na definição de Mortara, subscrita por Alberto dos Reis, “Comentário “, III, 563 (v. também 564), transcrita em Ac. STJ de 24/1/89, BMJ 383/521, o incidente é uma forma processual secundária que apresenta o carác-ter de episódio ou acidente em relação ao processo da acção (no caso, executiva fiscal) (2)

Inumeráveis as questões que podem surgir no decurso das causas e de que a discussão se reveste de carácter incidental, a grande maioria constitui objecto de incidentes inominados ou atípicos; outras são assunto de incidentes perfeitamente definidos e assim intitulados - incidentes nominados, típicos (3)

Posto que têm por objecto questão que não é a questão fundamental da causa, visando, antes, questões secundárias ou acessórias, enxertadas na questão principal, os incidentes constituem ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide - ou, na expressão dos tribunais refe-ridos, ocorrências extraordinárias que perturbam o movimento normal do processo.

Destinada a separação de meações pretendida a salvaguardar o pa-trimónio dum dos cônjuges da responsabilização por dívida do outro, opera -se em processo especial, de inventário, autónomo e com tramitação específica. E conquanto, é certo, apenas eventual, e determinante da suspensão da execução, mas prevista que, na realidade, se encontra na própria regulamentação do processo executivo, bem, afinal, não se vê como considerar a dedução do pedido de separação das meações como ocorrência extraordinária, estranha ou anormal.

Por outro lado, determinada a competência material pela vocação específica das diversas espécies de tribunais, bem, de facto, não se vê também como incluir na própria dos tribunais tributários a de proceder a inventário para separação de meações.

Como assim conforme com a boa razão a solução propugnada pelo M°P°, decide -se declarar o Tribunal Judicial da comarca da Lousã o competente para levar a efeito o inventário para separação de meações em questão.

Sem custas.Lisboa, 12 de Outubro de 2006. — Manuel Oliveira Barros (relator) —

António Fernando Samagaio — Manuel Maria Duarte Soares — Fernando Manuel Azevedo Moreira — Carlos Alberto Bettencourt de Faria — Rosendo Dias José.

(1) Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil” (1976), 94 -II -a), Antunes Varela e outros, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., 207 (n.° 66) e 222.

(2) V. também, ARC de 18/12/84, CJ, IX, 5.°, 99 -III e 100, 2.ª col.; desenvolvidamente, Parecer da PGR n.° 53/62, de 25/10/62, no BMJ 120/181 ss; e, mais recentemente, Ac. STJ de 16/4/98 , BMJ 476/305 -I.

(3) Transcreveu -se enunciado de Lopes Cardoso, “Manual dos Incidentes da Instância”, 2.ª ed. (1965), 10. V. também Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, 4.ª ed. (2006), 10 a 12.

Acórdão de 19 de Outubro de 2006.Recurso n.º 9/06.Requerente: José Carlos Ferreira, no conflito negativo de jurisdição

entre o 4.° Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os tribunais administrativos e fiscais.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:José Carlos Ferreira instaurou no 4° Juízo do Tribunal do Trabalho

de Lisboa a presente acção contra Portugal Telecom SGPS e PT Comu-nicações, pedindo que a condenação das rés a:

pagarem -lhe a quantia de € 21.911,10 referente às prestações mensais que devem integrar a sua pensão de aposentação, bem como nas demais que se venderem até efectivo e integral pagamento;

a pagarem / provisionarem na mensalidade da pensão de aposentação as prestações mensais de isenção de horário de trabalho, a remuneração adicional venc. 14 e os rendimentos em espécie que auferia à data da cessão do contrato de trabalho;

a comunicarem à Caixa Geral das Aposentações (CGA) o total das remunerações auferidas pelo autor e proceder aos respectivos descon-tos.

Na sua contestação as rés excepcionaram a incompetência em razão da matéria do tribunal do trabalho, alegando que o que estava em causa era a legalidade de um acto duma pessoa colectiva de direito público - a CGA - , ou seja, a decisão desta de aposentar o autor e de lhe atribuir uma pensão de aposentação no valor mensal de € 4.228,17.

Respondeu o autor que não impugna o cálculo efectuado pela dita CGA, mas sim as omissões das rés que levaram a tal cálculo.

No despacho saneador o Juiz julgou a excepção em causa impro-cedente.

Desta decisão agravaram as rés, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa declarado incompetente o tribunal do trabalho em razão da matéria para conhecer dos autos.

Recorreu o autor para este tribunal, nos termos do art° 107° nº 2 do C. P. Civil.

Nas suas alegações de recurso apresenta as seguintes conclusões:1 A competência do Tribunal determina -se de acordo com os pedidos

formulados pela recorrente na sua p. i., pelo que, face aos mesmos, resulta inequívoco que os pedidos emergem da relação laboral existente com as recorridas, em consequência, o tribunal do trabalho é compe-tente em razão da matéria, nos termos das alíneas i) e o) do art° 35° da LOFT.

2 O recorrente, no seu articulado inicial, pretende o reconhecimento como retribuição de todos os montantes que lhe eram pagos pelas re-corridas como contrapartida da sua prestação laboral, o que estas não querem reconhecer, não tendo efectuado os respectivos descontos e, por via disso, os cálculos da pensão da CGA também os não reconhece.

3 A relação jurídico laboral do recorrente com as recorridas é de natu-reza privada, sendo a relação jurídica controvertida do foro laboral.

4 Por aplicação das alíneas b), i) e o) do art° 35° da LOFT é compe-tente o Tribunal do Trabalho.

Page 94: Decisões STA

186 187

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.Apreciando1 O recorrente inicia as suas conclusões de recurso alegando que

a competência do Tribunal determina -se de acordo com os pedidos formulados na petição inicial. Naquele articulado referiu que lhe eram devidas certas retribuições, pelo que limitou -se a invocar a relação labo-ral existente entre ele e as recorridas, a qual é de natureza privada.

Vejamos.Com efeito, no essencial, o recorrente pede que seja reconhecida a

obrigação das recorridas de efectuarem determinado descontos para a Caixa Geral de Aposentações. Ou seja, pretende obter a condenação destas a regularizarem a sua situação perante a Segurança Social, me-diante a entrega dos devidos descontos.

No Acórdão deste Tribunal dos Conflitos nº 2/04 de 27.10.04 entendeu--se que “as contribuições para a Segurança Social, enquanto verdadeiras quotizações sociais, não são impostos ou taxas (dos quais se distinguem quanto aos objectivos, à estrutura jurídica e à própria cobrança) mas imposições parafiscais”.

Isto porque tais prestações inscrevem -se no universo das imposições financeiras públicas a favor de organismos do Estado, ou de instituições investidas de autoridade pública que têm a seu cargo a realização de acções necessárias à efectivação do direito à Segurança Social, como se considerou no Acórdão n° 3/06, também deste Tribunal dos Conflitos, de 04.10.06.

Assim e seguindo tal jurisprudência, temos que o objecto da presente acção é a relação jurídica contributiva da qual emerge uma obrigação da ré perante a Segurança Social.

O art° 62° n° 1 alínea m) do ETAF, aprovado pelo DL 128/84 de 27/4 na redacção que lhe foi conferida pelo DL 229/96 de 29.11 - , atribui aos tribunais tributários competência para conhecer das “acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegidos em matéria fiscal”.

Esta disposição é aqui aplicável, pelo que a apreciação do litígio inscreve -se na competência jurisdicional dos tribunais tributários.

Aliás, normas de competência com o mesmo conteúdo encontram -se nos art° 49° alínea c) e 4° nº 1 do ETAF aprovado pela Lei n° 13/2000 de 19.02.

2 Invoca o recorrente que aquilo que pede é a apreciação duma relação jurídica laboral.

Sendo certo que a prestação contributiva devida pela entidade empre-gadora tem como pressuposto a existência de um contrato de trabalho, a verdade é que essa obrigação concretiza -se através duma relação jurídica entre a mesma entidade e o Estado, que tem, como vimos, a natureza parafiscal.

Acresce que esta questão, embora resulte duma relação laboral, não respeita a direitos e deveres recíprocos das partes no contrato, a relações jurídicas entre elas directamente estabelecidas. Razão pela qual não pode aqui ser aplicado o disposto no art° 85° alínea b) da LOFT, quando estabelece a competência dos tribunais do trabalho para conhecer das questões emergentes das relações de trabalho subordinado.

Acresce também que a alínea j) do mesmo art° 85° estipula a com-petência da jurisdição laboral para a apreciação das questões entre a Segurança Social e os seus beneficiários, mas não entre esta e os seus contribuintes.

Termos em que se conclui pela competência da jurisdição adminis-trativa e fiscal para conhecer desta causa, através dos tribunais tribu-tários.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para conhecer da pre-sente acção os tribunais tributários.

Sem custas.Lisboa, 19 de Outubro de 2006. — Carlos Alberto Andrade Betten-

court de Faria (relator) — António Fernando Samagaio — Fernando Manuel Azevedo Moreira — Manuel Maria Duarte Soares — Rosendo Dias José.

Acórdão de 26 de Outubro de 2006.

Assunto:

Responsabilidade civil extracontratual. Pessoas colectivas de direito público. Município. ICERR. Pedido de indemniza-ção. Violação dos deveres de sinalização. Passeio público. Competência dos tribunais administrativos.

Sumário:

I — Nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do actual Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei n.º 107 -D/2003, de 31 de Dezembro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer, pois, por actos de gestão pública (como no ETAF84) quer por actos de gestão privada praticados no exercício da função pública.

II — Daí que sejam competentes os tribunais administrati-vos para conhecer de uma acção em que se pede uma indemnização a um município e ao ICERR para res-sarcimento de danos resultantes da queda da A. por o passeio público por onde caminhava não se encontrar sinalizado de que estava em obras nem conter guarda ou protecção de uma ravina adjacente.

Recurso n.º 18/06 -70.Requerente: Maria da Paz Garcia Fernandes, no conflito negativo

de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Melgaço e os tribunais administrativos e fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. António Samagaio.

Page 95: Decisões STA

188 189

Acordam no Tribunal de ConflitosMARIA DA PAZ GARCIA FERNANDES, viúva, residente no lugar

de Lamprejão, nº 350, Freguesia de Cristelo, concelho de Caminha, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (posteriormente reencaminhado para este Tribunal de Conflitos) do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que, confirmando a decisão do Tribunal Judicial de Melgaço, concluiu pela incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário proposta contra o INSTITUTO PARA A CONSERVAÇÃO E EXPLORAÇÃO DA REDE RODOVIÁRIA (ICERR) E MUNICÍPIO DE MELGAÇO, para ser ressarcida dos danos que lhe advieram da queda por uma ravina em consequência de se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, resultando--lhe ferimentos por todo o corpo, não existindo no local e no passeio em causa qualquer guarda ou protecção nem qualquer sinalização que indicasse que o passeio estava em obras, ou que existia perigo de queda para peões.

Alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:“I) Na presente acção apenas contestou o Réu Município de Melgaço,

tendo o mesmo invocado a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais civis.

II) A excepção invocada foi julgada procedente pelo tribunal de 1ªª ins-tância, que julgando os tribunais comuns incompetentes em razão da ma-téria para conhecer da presente acção, absolveu os RR. da instância.

III) Ambos os RR. são pessoas colectivas de direito público.IV) Considerou o tribunal a quo, aderindo aos fundamentos e teor da

decisão proferida em 1ª -instância, que sendo ambos os RR. pessoas colectivas de direito público e, estando em causa a efectivação de res-ponsabilidade extracontratual, é aplicável a alínea g) do n° 1. do art. 4° do ETAF, facto que determina que a competência para julgar a acção cabe aos tribunais administrativos.

V) A agravante não se conforma com tal decisão.VI) Perante a conduta alegadamente atribuível às RR., enquanto ór-

gãos públicos há, desde logo, que saber se as mesmas exerciam ou não um poder público enquanto entidades integradoras da Administração do Estado, ou se agiram despidas dessa qualidade “status” tal como se fosse uma entidade privada.

VII) Os RR. mesmo sendo, como são, pessoas colectivas de direito público, podem limitar -se a exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com os particulares, portanto desprovidos do poder de supre-macia que em principio lhes advém da sua qualidade de ente público administrativo. Os actos assim praticados já seriam de qualificar como de “gestão privada”

VIII) O verdadeiro “distinguit”, para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada/gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.

IX) A “pedra de toque” para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dico-

tomia “actos de gestão pública - actos de gestão privada -, mas sim no critério constitucional plasmado no art. 212°, n° 3 da Lei Fundamental, ou seja, compete aos tribunais dessa jurisdição especial o “julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”,

X) Âmbito assim definido com apelo ao mesmo critério na legislação Infra -constitucional (conf, arts. 3° do ETAF 84 e 1° do ETAF 2002).

XI) Trata -se nos presentes autos de uma actividade, acto, comporta-mento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabili-dade civil é regulada, por normas de direito privado, que não por normas, princípios e critérios de direito público.

XII) Ora, a uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer rela-ção jurídico -administrativa, uma relação jurídica regulada pelo direito público, mas uma mera relação jurídico -privada, como tal regulada pelo direito privado.

XIII) Rege, neste domínio, o princípio de que os tribunais de jurisdição ordinária, na circunstância os tribunais de comarca, são os tribunais--regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18° da LOFTJ 99, aprovada pala Lei nº 3/99 de 13/1 e do art. 66° do CPC, nos termos dos quais “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”,

XIV) Regra/princípio ainda hoje aplicável a titulo subsidiário, tal como resulta do art. 7º do novo ETAF, aprovado pela Lei n° 13/2002 de 19/2.

XV) Trata -se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da respon-sabilidade civil extracontratual vasados no art. 483º e segs, do C. Civil.

XVI) Trata -se de uma “questão de direito privado” - aquela que as partes submeteram à apreciação do tribunal - ainda que ambos os RR., alegadamente responsáveis, sejam pessoas de direito público, para uti-lizar a expressão contemplada na al. f) do nº 1 do art. 4° do ETAF.

XVII) Questão essa que deve ser aferida por normas, princípios e critérios próprios do direito privado, e, como tal, a respectiva dirimência encontrar -se -á, por sua própria natureza, arredada da jurisdição especial dos tribunais administrativos.

XVIII) Acresce que, o n° 1 do art 7° do Dec. -Lei n° 558/99, de 17 de Dezembro (a chamada Lei das Bases Gerais das Empresas Públicas) prescreve que “sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais, intermunicipais e municipais, as empresas públicas regem -se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos estatutos”

XIX) Na ausência de preceito legal expresso de alcance geral (apli-cável a todas elas) ou do respectivo estatuto em contrário, as empresas públicas - todas elas - se encontram sujeitas ao direito privado, comun-gando desta natureza os actos jurídicos que as mesmas levam a cabo nestas circunstâncias.

XX) O tribunal de 1ª instância é competente em razão da matéria para apreciar a matéria em discussão nos autos.

XXI) Não devia proceder a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais comuns.

XXII) Deve ser revogada a Douta Decisão recorrida, porquanto viola, nomeadamente, o disposto no n° 3 do art. 212º da Constituição da Re-pública Portuguesa, bem como o art. 4°, nº 1, al. f) do ETAF”.

Page 96: Decisões STA

190 191

Os RR não contra -alegaram.O Ex.º Procurador -Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do recurso

ser improvido, e, em consequência, julgarem -se os tribunais adminis-trativos como os materialmente competentes para o conhecimento da acção, por os actos imputados aos RR serem de gestão pública.

A) A A. interpôs, para o STJ, recurso do acórdão da Relação de Gui-marães, que, confirmando a decisão do tribunal judicial de Melgaço sobre a sua incompetência em razão da matéria, por competente ser o tribunal administrativo, negou provimento ao recurso. Tratando -se, porém, de um pré -conflito, nos termos do nº 2 do art. 107º do CPC, segundo o qual “Se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos”, pelo que não se deveria ter recorrido para o STJ.

Tal não obsta ao conhecimento do recurso em causa por este Tribunal de Conflitos dado tratar -se de erro na sua espécie, face ao disposto no nº 3 (2ª parte) do art. 687º do CPC no qual se estatui que “(…) tendo -se interposto recurso diferente do que competia, mandar -se -ão seguir os termos do recurso que se julgue apropriado”.

B) A A. intentou a presente acção contra o Município de Melgaço e o ICERR sendo certo que a responsabilidade de um exclui a do outro. Aqui e agora, porém, apenas está em causa determinar qual o tribunal competente para julgar a causa pelo que será aquele a decidir a questão da legitimidade dos RR.

C) O ICERR, que sucedeu à JAE, foi extinto e integrado no IEP pelo art. 1º, nº 1, do DL nº 227/02, de 30/10. Os factos pelos quais a A pede indemnização aos RR ocorreram em 21 de Abril de 2002 e a acção deu entrada no tribunal a 15/04/2005, numa altura, pois, em que aquele Instituto já não tinha existência legal. Esta é, porém, outra questão com que este Tribunal não tem de ocupar -se pelas razões já expostas, pois será, por certo, objecto de apreciação pelo tribunal competente.

D) A competência dos tribunais determina -se pela forma como o A, configura a acção, recortada esta pela respectiva causa de pedir e do pedido.

No caso vertente, a A. formula um pedido de indemnização contra os RR. por danos causados numa queda por uma ravina em consequência de se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, resultando--lhe ferimentos por todo o corpo, não existindo no local e no passeio em causa qualquer guarda ou protecção nem qualquer sinalização que indicasse que o passeio estava em obras, ou que existia perigo de queda para peões. Trata -se, assim, de responsabilidade civil extracontratual imputada aos RR pela A.

O acórdão recorrido, estribando -se no disposto na alínea g), nº 1, do art. 4º do novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, segundo o qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…) “concluiu que, sendo os RR pessoas colectivas de direito público, eram os tribunais administrativos os competentes para julgar a presente acção.

Anote -se, contudo, que o acórdão recorrido, concordando com a decisão do tribunal da 1ª instância, também concluiu que a conduta imputada aos RR, ou seja, falta de sinalização que indicasse que o pas-

seio público estava em obras ou que existia perigo de queda para peões, nem existindo no mesmo qualquer guarda ou protecção relativamente à ravina, consubstanciava actos de gestão pública, pelo que competentes para conhecer da acção igualmente seriam os tribunais administrativos à luz do critério que toma por base os actos de gestão pública e actos de gestão privada.

Contra o assim decidido reagiu a A., ora Recorrente para quem, em síntese, os tribunais cíveis são os competentes em razão da matéria por a conduta dos RR ser regida por normas de direito privado – art. 483º e segs. do C.C. sobre os pressupostos da responsabilidade civil extracon-tratual - que não por normas, princípios e critérios de direito público à qual não subjaz qualquer relação jurídica administrativa, como estatui o art. 212º, nº 3 da Constituição da República, sendo a existência desta o traço distintivo entre a competência, em razão da matéria, dos tribu-nais cíveis e os tribunais administrativos, pela responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.

Acrescenta, ainda, que o critério diferenciador da competência em razão da matéria entre a jurisdição civil e administrativa é a existência de relação jurídica administrativa, pelo que não ocorrendo esta no caso vertente a competência é dos tribunais cíveis, por serem estes “os tri-bunais–regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) aprovada pela Lei nº 3/99, de 13/01, segundo o qual são da competên-cia dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurídica.

A A., porém, elabora em manifesto equívoco não obstante o seu esforço, ao longo de várias páginas de alegações e de conclusões, para convencer da credibilidade da sua argumentação.

O critério diferenciador da competência entre a jurisdição admi-nistrativa e a jurisdição cível arrancava, na vigência do ETAF84, da existência, respectivamente, dos actos de gestão pública e de gestão privada, até à data em que entrou em vigor o actual Estatuto dos Tri-bunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro. Esta era a jurisprudência pacífica e abundante deste Tribunal de Conflitos. A título de exemplo cfr. Acs. de 4.4.2006, pro-ferido no Proc. nº 08/03, de 25.10.2005, Proc. nº 06/04, de 3.11.2004, Proc. nº 028/03 e de 17.06.2003, Proc. nº 012/02, in www. dgsi.pt. Na Doutrina, cfr., igualmente, por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao nº 3 do art. 212º “in” “Constituição da República Por-tuguesa Anotada”, 3ª ed.

Outro, porém, é o critério legal consagrado na alínea g), nº 1, do art. 4º do ETAF actualmente em vigor, desde 1 de Janeiro de 2004, quanto à competência dos tribunais administrativos no âmbito da responsabi-lidade civil extracontratual, que passou a abranger não só os actos de gestão pública como os actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público.

Estatui, efectivamente, esta norma sobre o âmbito da jurisdição ad-ministrativa que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto. “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, in-cluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.

Page 97: Decisões STA

192 193

Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pre-tendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para este Tribunal de Conflitos.

Mário Aroso de Almeida, em “O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVO”, 4ª ed., revista e actualizada, a págs. 99, salienta que: “a) Compete à jurisdição administrativa apre-ciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas co-lectivas de direito público”.

E, mais adiante salienta: “Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos”, invocando no mesmo sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265.

Também Santos Serra, Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tri-bunal Administrativo, numa intervenção em “A Nova Justiça Adminis-trativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Iberoamericana dos Tribu-nais de Justiça Fiscal e Administrativa, Cidade do México, 28 de Agosto de 2006, refere, depois de descrever a evolução do nosso contencioso administrativo e tendo em mente o actual ETAF que” Existindo agora uma cláusula positiva de demarcação da competência da jurisdição administrativa, a fronteira entre justiça administrativa e a dita justiça comum sai clarificada, e os tribunais administrativos, esses, ganham um espaço privativo de actuação – um conjunto nuclear de tarefas que os torna, finalmente, verdadeiros e próprios tribunais, compondo uma jurisdição administrativa e fiscal autónoma, em tudo equivalente à chamada jurisdição comum, inclusive no nível de garantias prestadas a quem se lhe dirige em busca de protecção.

Assim, e para dar apenas um exemplo, no plano da responsabilidade civil extracontratual, esse espaço de actuação inclui hoje: 1) todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração, independentemente dessa responsabilidade emergir de uma actuação de gestão pública ou de gestão privada; 2) as questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.

Igualmente em “Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, vol, I, pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sus-tentam que “Segundo a actual redacção desta alínea g) – posta pela Lei nº 107 -D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de respon-sabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as

“questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual” dessas pessoas.”

E mais adiante: “(…) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás referida e a vontade expressa na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada”

Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contenciosa Adminis-trativo I, a pág. 714, salienta que “No tocante à responsabilidade civil extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência sub-jectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos”.

Anote -se que, e ao contrário do que defende a A., mesmo os actos de gestão privada praticados no quadro de actividades funcionalmente administrativas pelas pessoas colectivas de direito público, ou pelos titulares dos seus respectivos órgãos, tais como os descritos na petição inicial, dão lugar à existência de uma relação jurídico -administrativa, disciplinada pelo direito público, como, por exemplo, o DL nº 58 081, de 21/11/1967, isto é, esta relação emerge de actos de gestão pública e actos de gestão privada.

Forçoso é, pois, concluir que, após a entrada em vigor do actual ETAF, os tribunais administrativos são os competentes para apreciar as questões de responsabilidade civil extracontratual, como é o caso, emergentes da actuação de órgãos ou respectivos titulares de pessoas colectivas de direito público no exercício da função pública.

É evidente que o Município contra quem a A. intentou a presente acção é uma pessoa colectiva de direito público.

Quanto ao ICERR, contra quem a A. também demandou nestes au-tos, igualmente não subsistem dúvidas que é uma pessoa colectiva de direito público, pois é dotado de autonomia administrativa e financeira e de património próprio – nº 1 do art. 1º dos seus Estatutos, in anexo ao DL nº 237/99, de 25/06 –, que representa o Estado como autoridade nacional de estradas em relação às infra -estruturas rodoviárias nacionais não concessionadas, competindo -lhe zelar pela manutenção permanente de condições de infra -estruturação e conservação e de salvaguarda do Estatuto da Estrada, que permitam a livre e segura circulação – nº 2 do art. 5º daquele DL - , que tem como atribuições fundamentais, entre outras, “Assegurar a conservação e exploração das estradas e pontes nacionais sob a sua jurisdição” – a), nº 1 do art. 4º, do seu referido Estatuto - o qual para o exercício das suas atribuições detém poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis quanto, “inter alia”, “À responsabilidade civil extracontratual , nos domínios dos actos de gestão pública” – h), nº 3, ainda daquele diploma legal.

Por outro lado, a presente acção foi proposta a 15 de Abril de 2005,pre-tendendo a A., através dela, fazer valer, a seu favor, a responsabilidade

Page 98: Decisões STA

194 195

civil extracontratual dos RR, porquanto pede uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de ferimentos vários que lhe advieram da queda por uma ravina em consequência de se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, tendo aqueles violado o dever de sinalização de obras em que se encontrava ou que existia perigo de queda para os peões, violando ainda o dever de colo-cação de guarda ou protecção da ravina.

Consequentemente, sendo os RR. pessoas colectivas de direito público e pretendendo a A. accionar a responsabilidade civil extracontratual dos mesmos, face ao disposto na alínea g), nº 1, do art. 4º do actual ETAF, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da presente questão, como o seria na vigência do ETAF84, por se tratar de acto ou actos de gestão pública.

Pelo exposto, e sem necessidade de mais desenvolvidas considera-ções, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando o acórdão recorrido, e declarar competentes os tribunais administrativos para conhecer da presente acção.

Sem custas.Lisboa, 26 de Outubro de 2006. — António Fernando Samagaio

(relator) — António Fernando da Silva Sousa Grandão — José Antó-nio de Freitas Carvalho — Manuel Maria Duarte Soares — Edmundo Moscoso.

Acórdão de 2 de Novembro de 2006.Conflito n.º 6/06.Requerente: Paulo Jorge Gomes Taveira Lima no conflito negativo

de jurisdição entre o 2.° Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Seixal e os tribunais administrativos e fiscais.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Marques Benardo.

Acordam, em conferência, no Tribunal de Conflitos:I -Na presente acção, intentada por Heitor Taveira Lima e mulher Maria

Antónia Rosa Gomes Lima (cujo posição processual foi assumida pelo filho quando atingiu a maioridade Paulo Jorge Gomes Taveira Lima) contra Joaquim Alves Pereira Neto (entretanto habilitado por ter falecido) e Estado (por sucessão do Instituto de Acção Social Escolar, que teve sede na R. Duque d’Ávila, 135 Lisboa, o Tribunal do Seixal proferiu sentença em que:

Absolveu da instância por incompetência material o Estado; Absolveu do pedido os demais RR.

O A. Recorreu, mas o Tribunal da Relação confirmou totalmente a decisão.

Recorreu novamente, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, con-tinuando a insurgir -se, quer contra a absolvição da instância do Estado, quer quanto à absolvição do pedido dos outros, como se pode ver das conclusões das alegações que são do seguinte teor:

1.° - O presente recurso de revista vem interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos presentes autos, que

confirmou a sentença proferida em lª instância, tendo julgado improce-dente as alegações de recurso formuladas pelo ora recorrente.

2.° - Nos presentes autos, e já na sentença recorrida, o Tribunal julgou -se incompetente em razão da matéria, relativamente ao pedido formulado contra o Estado Português, entendendo que a apreciação daquele pedido cabe aos Tribunais Administrativos.

3.° - A presente acção foi proposta contra o então Instituto de Acção Social Escolar, que tinha sido criado e se regulava pelos D.L. nº. 178/71 de 30 de Abril e pelo D.L. n.º 223/73 de 11 de Maio, tendo sido objecto de indeferimento liminar.

4.° - Desse despacho o recorrente recorreu para o Tribunal da Re-lação de Lisboa, tendo este decidido que assistia razão ao recorrente, mandando prosseguir os autos.

5.° - Considerando a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, está subjacente à mesma, o reconhecimento da competência dos Tribunais comuns para a apreciação do pedido formulado contra o Instituto de Acção Social Escolar.

6.° - Pois se assim não fosse, deveria desde logo a Relação de Lisboa ter decidido no sentido da absolvição da instância quanto ao segundo réu, o Instituto, se efectivamente entendesse que a competência cabia aos Tribunais Administrativos, o que não aconteceu e os autos pros-seguiram.

7.° - No decorrer do processo e por causa da extinção do antigo Insti-tuto de Acção Social Escolar, foi julgado habilitado nos presentes autos o Estado Português, uma vez que foi este que sucedeu nas atribuições e competências do antigo Instituto.

8.° - Porém, e tal como consta do D.L. n.º 178/71 de 30 de Abril e do D.L. nº. 223/73 de 11 de Maio, o Instituto gozava de personalidade jurídica e gozava de autonomia administrativa e financeira.

9.° - Por esse motivo, entendia a jurisprudência e a doutrina que para apreciar e decidir a responsabilidade do Instituto de Acção Social Escolar, eram competentes os Tribunais comuns e não os Tribunais Administrativos.

10.° - Foi por esse motivo que a presente acção foi intentada no Tri-bunal comum, também na parte em que se pede a condenação daquele Instituto a indemnizar o ora recorrente.

11.° - E considerando que a legislação aplicável ao Instituto lhe confe-ria personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, bem como, que a jurisprudência e a doutrina entendiam igualmente que os Tribunais competentes eram os Tribunais comuns, deverá entender -se, que continuam a ser os Tribunais comuns os competentes para apreciar e decidir a responsabilidade do Instituto no que respeita à indemnização a pagar ao ora recorrente.

12.° - Na douta sentença de 1ª instância, invoca -se o art. 17.° da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo aprovada pelo DL nº. 40.768 de 8 de Setembro de 1956.

13.° - Porém, aquele artigo aplicava -se, tal como constava expressa-mente do mesmo, aos contratos administrativos e bem como às acções destinadas a efectivar a responsabilidade do Estado ou de instituto público no âmbito desses mesmos contratos administrativos.

14.° - O que significa que aquele artigo não se aplicava ao caso concreto dos presentes autos, pois não estava em causa um contrato administrativo, estando em causa, sim, um contrato de seguro, figura

Page 99: Decisões STA

196 197

jurídica do direito privado, e como tal da competência dos Tribunais comuns.

15.° - Para além do acima exposto, há que considerar que nos pre-sentes autos o Tribunal declarou -se competente em razão da matéria no despacho saneador, por duas vezes, conforme se pode constatar a fls. 59 e a fls. 283 dos presentes autos.

16.º - Assim, e no momento que a lei confere para esse efeito, o Tri-bunal não se declarou incompetente em razão da matéria, relativamente ao peticionado contra o Instituto de Acção Social Escolar, sendo que até dispôs de duas ocasiões para o efeito, declarando -se expressamente, em ambas as ocasiões, competente.

17.° - Pelo exposto, deve concluir -se que os Tribunais comuns são competentes para conhecer do pedido formulado pelo recorrente contra o Instituto de Acção Social e Escolar, devendo ser proferida decisão de mérito quanto a esse aspecto da presente causa.

18.° - A presente acção foi julgada improcedente no que se refere à responsabilidade dos recorridos, porque o Tribunal “a quo” entendeu que não ficou provado que o pai do Fernando Neto não tenha cumprido o seu dever de vigilância.

19.......Contra -alegou o Digno Magistrado do Mº. Pº. junto do Tribunal da

Relação, rebatendo os argumentos invocados e entendendo, no que nos importa, que são os tribunais administrativos os competentes, sem que haja, nomeadamente, caso julgado formal em sentido contrário.

Entendeu -se, todavia, no Supremo Tribunal de Justiça que o Tribunal competente para decidir do conflito era o Tribunal de Conflitos, atento o disposto no nº. 2 do art. 107º do CPC.

II -Temos, pois, que decidir se:Quanto ao pedido relativo ao, então existente, Instituto de Acção

Social Escolar e agora, por sucessão, ao Estado, são competentes os tribunais judiciais ou os tribunais administrativos.

III –Os factos, retirados dos elementos do processo, são os seguintes:1. No dia 22.11.1984 deu entrada no Tribunal Judicial do Seixal a

presente acção;2. Intentada por Heitor Taveira Lima e mulher Maria Antónia Rosa

Gomes Lima contra Joaquim Alves Pereira Neto (entretanto habilitado por ter falecido) e Instituto de Acção Social Escolar, com sede na R. Duque d’Ávila, 135 Lisboa;

3. Pedindo a condenação solidária dos RR a pagar -lhes a indemnização de 397 mil escudos;

4. Em virtude dos danos corporais sofridos pelo filho deles, Paulo Jorge Gomes Taveira Lima - que frequentava a Escola Secundária do Seixal - emergentes de agressão com uma pedra por parte do menor Fernando Carlos Rodrigues Neto;

5. Quando o filho se encontrava a descer as escadas de acesso à Escola Secundária de Amora.

6. Alegando, nomeadamente, que “Ao Instituto de Acção Social Es-colar está confiada a prestação de serviços de seguro escolar de todos os alunos inscritos no serviço escolar oficial dependente do Ministério da Educação”.

7. A acção foi indeferida liminarmente com o fundamento em ma-nifesta improcedência;

8. Este despacho foi revogado pelo Tribunal da Relação, por entender que este fundamento não podia ser tido em conta em acções, como esta, sumárias;

9. A dado passo da tramitação que se seguiu, o filho do autor atingiu a maioridade e assumiu a parte activa da acção.

10. A folhas 109 foi proferido despacho saneador em que se julgou o tribunal “absolutamente competente”.

11. A folhas 203 e seguintes foi deduzido articulado superveniente, ampliando -se o pedido.

12. A folhas 262 foi considerado habilitado o Estado Português -Ministério da Educação em substituição do extinto Instituto de Acção Social Escolar.

13. A folhas 276 e 277 foram declarados nulos todos os actos pro-cessuais posteriores ao despacho que designou dia para uma tentativa de conciliação.

14. A folhas 283 foi proferido novo despacho saneador em que se declarou o “tribunal competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade”.

15. A folhas 365 teve lugar nova ampliação do pedido.16. A folhas 445 foi proferida a sentença. Absolveu -se o R. Estado

da instância por incompetência do tribunal em razão da matéria. E absolveram -se os demais RR do pedido.

17. Houve recurso, mas o Tribunal da Relação julgou -o improce-dente.

18. Foi interposto novo recurso para o Supremo Tribunal de Jus-tiça.

19. Aqui entendeu -se que a questão - que vinha levantada - da com-petência dos tribunais judiciais para conhecimento do pedido relativo ao Estado cabia ao Tribunal de Conflitos nos termos do nº. 2 do art. 107.° do CPC.

......................................................................................IV -A presente acção foi instaurada em 22.11.1984, de sorte que a ques-

tão da competência que se discute terá, antes do mais, que ser fixada no tempo.

Esta fixação vai encontrar tradução no art. 63.° do CPC na redacção de 1961. Esta regra teve sequência no art. 18.º da Lei nº. 38/87, de 23.12 e actualmente temos o artº.22º. da Lei nº. 3/99, de 13.1.

As redacções dos preceitos que se sucederam nem sempre foram coincidentes e dúvidas houve de interpretação, mas tudo passa à margem do presente caso.

É incontroverso que a competência terá de ser aferida tendo em conta as normas vigentes no dia da instauração da acção.

V -Vigorava, em 1984, a Lei Orgânica do Supremo Tribunal Adminis-

trativo, aprovada pelo DL nº 40.768, de 8.9.1956.Cujo art. 17.° dispunha que são propostas nas auditorias administra-

tivas as acções que tiverem por objecto efectivar a responsabilidade do Estado ou de institutos públicos.

Já estava, outrossim, estabelecida a distinção entre responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas por gestão privada

Page 100: Decisões STA

198 199

e por gestão pública. Além vigorava o art. 501.° do CC e aqui o DL nº. 48 051, de 21.11.

Este DL conferiu, no art. 10.°, nº. 2, nova redacção à alínea b) do § 1.° do art. 815.° do Código Administrativo, reportando o contencioso administrativo à responsabilidade por actos de gestão pública.

Resume -se, pois, já então, a questão da competência que aqui se nos levanta a saber se estamos perante actos de gestão pública ou de gestão privada. Conforme jurisprudência deste Tribunal de Conflitos expressa no Ac. de 5.11.1981 (BMJ 311, 195).

VII -Deste aresto podemos recolher as definições - ali profusamente fun-

damentadas - de actos de gestão pública e actos de gestão privada.Os primeiros são “os praticados pelos órgãos ou agentes da Adminis-

tração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção”.

Os segundos correspondem ao “praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder público e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou particulares a que os actos respeitam e, daí, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão às normas de direito privado”.

A diferença tem sido constantemente objecto de decisões do Supremo Tribunal Administrativo, mas mantém -se, no essencial, firme ao longo do tempo, a linha de fronteira. De entre muitos, pode -se atentar no Ac. de 2.2.05 sumariado em www.dgsi.pt.

VIII -O Instituto de Acção Social Escolar foi criado pelo DL nº. 178/71,

de 30.9, alterado pelo DL nº. 223/73, de 11.5.Segundo o art. 1.°, nº. 1 do primeiro daqueles normativos, o IASE

tinha por fim possibilitar os estudos a quem tenha capacidade intelectual para os prosseguir, bem como proporcionar aos estudantes em geral condições propícias para tirarem dos estudos o máximo rendimento.

Para tal - e já no art. 2.° - dispõe -se que:1. Na realização da finalidade referida no artigo anterior, são atri-

buições do Instituto de Acção Social Escolar o estudo da problemática global da acção social escolar e execução no âmbito do Ministério da Educação Nacional, da política de acção social escolar definida pelo Governo.

2. Para tanto, compete ao Instituto de Acção Social Escolar praticar todos os actos necessários ou convenientes à integral prossecução das suas atribuições e, em especial, exercer os poderes de administração, de cooperação, de superintendência e de prestação enumerados nos artigos seguintes.

No art. 6.° refere -se que, no exercício da sua competência de pres-tação, pertence ao Instituto criar os serviços necessários à realização, em benefício da população estudantil, das prestações de acção social escolar, entre as quais, e agora já no art. 7.°, nº. 3 f), se inclui a prestação relativa a seguros.

E é no prosseguimento dessa competência que - de acordo com o art. 16.° do segundo daqueles diplomas - toma sob a sua dependência o Fundo Nacional do Seguro Escolar, criado pelo Decreto -Lei nº. 24618, de 29.10.1934. Fundo este definido naquele mesmo art. 16.° como um serviço que se destina a garantir, em regime de mutualidade, a actividade

seguradora e a respectiva cobertura financeira, na diversas modalidades de seguro aplicáveis ao estudante, enquanto tal.

No seguimento destas disposições, veio a lume a Portaria nº.703/79, de 26.12 que aprovou o Regulamento de Acção Social Escolar nos Es-tabelecimentos de Ensinos Preparatório e Secundário e nas Escolas do Magistério Primário, a qual, no nº. 6, estatuía que o seguro escolar tem como objectivo, para além duma política de prevenção de acidentes, a garantia da transferência de responsabilidade civil, sempre que os mesmos se verifiquem.

IX -A própria lei alude aos “poderes” e, de todo o contexto destes diplo-

mas, resulta reforçada a ideia de que o exercício da competência que determinou que o IASE fosse demandado na presente acção nos situa dentro do conceito de gestão pública, a nosso ver, bem longe mesmo da fronteira com a gestão privada.

X -Depois, sucederam -se vários Diploma no tempo.Por um lado, foi extinto o IASE, passando as suas competências para

o Estado (al. j) do art.20º. do DL nº. 133/93, de 26.4);Por outro entraram em vigor o ETAF, a Lei. de Processo dos Tribunais

Administrativos e Fiscais e, já mais recentemente, as que integram a chamada Reforma do Contencioso Administrativo.

Nenhuma destas leis bole com a nossa construção, atento, logo à partida, o que ficou dito em IV.

Mas, se carecêssemos de atentar no respectivo conteúdo, conferindo--lhes a categoria de normas interpretativas, não teríamos de alterar os nossos parâmetros de raciocínio. A diferença entre gestão pública e gestão privada continuou a ser a pedra de toque distintiva das com-petências.

XI -Toda esta construção cederia se se considerasse o caso julgado formal

derivado:Do acórdão da Relação que revogou o despacho de indeferimento

liminar; OuDa declaração de competência material do tribunal judicial levada a

cabo no despacho saneador de folhas 283.XII -Quanto à primeira hipótese não há, no dito acórdão, qualquer refe-

rência à competência. A acção havia sido indeferida por manifestamente improcedente e o tribunal superior decidiu que, tratando -se de acção sumária, tal fundamento não era pertinente.

XIII -Quanto à segunda, vigorava, então e já ao tempo de propositura

da acção, o nº. 2 do art. 104.° do CPC que dispunha que o despacho saneador só constituía caso julgado em relação às questões concretas de competência que tenham sido decididas.

Interpretando -o, foi proferido o Assento do STJ de 1.2.1963 no sen-tido de que é definitiva a declaração em termos genéricos, no despacho saneador transitado, relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos que nela se repercutam.

Face a este Assento dividiram -se as opiniões:Para uns, a sua interpretação devia estender -se a qualquer questão de

forma decidida em termos genéricos no saneador (Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, Lições de 1971 -72, III, 162);

Page 101: Decisões STA

200 201

Para outros, não devia estender -se, continuando a valer o que resul-tava da interpretação puramente literal daquele nº. 2 (Prof. A. Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 395).

Cremos nós que discussão terá terminado com o Assento (hoje com força de Acórdão Uniformizador) do STJ de 27.11.1991, publicado no Diário da República, I Série, de 11.1.1992. Só a decisão sobre as questões concretamente apreciadas faz caso julgado.

Aquele art. 104.° foi revogado, mas temos idêntico texto no art. 510.°, nº. 3 do CPC.

Não há caso julgado que impeça a confirmação da decisão de incom-petência que teve lugar no acórdão recorrido.

XIV -Não podemos, todavia, deixar de expressar que esta solução leva a

grande injustiça.Depois de mais de 20 anos de pendência da acção, o autor vê -se con-

frontado com uma declaração de absolvição da instância do Estado.Decerto que o legislador não deixou de atender à economia proces-

sual e permitir no nº. 2 do art. 105.° do CPC que se aproveite parte do tramitado, desde que haja acordo das partes nesse sentido.

O Estado, que através dos seus órgãos não conseguiu proporcionar ao autor uma decisão transitada em tempo útil, terá talvez um débito ético no sentido desse acordo.

Mas isso transcende - é mais que evidente - o objecto do presente recurso.

XV -Independentemente disso, há a considerar que no recurso de revista, o

autor impugna também a absolvição do pedido que visou o outro R.Deve o processo, também por isso, voltar ao Supremo Tribunal de

Justiça.XVI -Nestes termos:Nega -se provimento ao recurso do Acórdão da Relação de folhas 536

e seguintes, na parte em que manteve a decisão, vinda da 1ª instância, de julgar o tribunal judicial incompetente em razão da matéria para conhecimento do pedido contra o Estado, por competentes para tanto serem os tribunais administrativos.

Quanto ao mais, determina -se que, após trânsito, os autos se remetam ao Supremo Tribunal de Justiça.

Sem tributação.Lisboa, 2 de Novembro de 2006. — João Luís Marques Bernardo

(relator) — Rosendo Dias José — Abílio Vasconcelos de Carvalho —Jorge Manuel Lopes de Sousa — José Rodrigues dos Santos — Alberto Acácio de Sá Costa Reis.

Acórdão de 29 de Novembro de 2006.

Assunto:Acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado.

Actividade respeitante a administração de justiça. Actos e actividades estranhos a função de julgar. Competência em razão da matéria.

Sumário:

I — O critério para a repartição de competência entre tri-bunais administrativos e tribunais judiciais para co-nhecimento de acções de responsabilidade civil extra-contratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais passa pela distinção entre os casos em que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, e todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à específica função de julgar.

II — Na primeira situação a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função ad-ministrativa.

III — Nas restantes situações, a competência cabe aos tribu-nais administrativos, uma vez que tais actividades se inscrevem nos conceitos de actos e actividades admi-nistrativas ou de «gestão pública administrativa», da competência da jurisdição administrativa.

IV — Assentando a causa de pedir em omissões de respon-sabilidade difusa ou repartida (v. g. não comunicação das penhoras ao processo executivo em que a penhora foi efectuada em primeiro lugar), bem como em defi-ciente cumprimento de despacho judicial por parte de oficiais de justiça (v. g. venda de bens penhorados por negociação particular em vez de carta fechada, como fora ordenado, são os tribunais administrativos os com-petentes para o conhecimento da acção proposta.

Conflito n.º 3/05 -70.Requentes: Arnaldo dos Santos Ruivo e João Tomás Cardoso, no

conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Águeda e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Cons. Dr. Freitas Carvalho.

Acordam no Tribunal de Conflitos:Arnaldo dos Santos Ruivo e João Tomás Cardoso, identificados nos

autos, recorrem para este Tribunal de Conflitos, ao abrigo do artigo 107, do C. P. Civil, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de fls.541 e seg.s, que negou provimento ao agravo interposto da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda que julgou o Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de indem-nização por ele formulado na acção ordinária que intentaram contra o Estado Português.

Pedem a revogação do acórdão recorrido e a resolução do conflito com a atribuição da competência aos tribunais comuns, no caso ao Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, onde a acção foi proposta.

Page 102: Decisões STA

202 203

Os recorrentes concluem as suas alegações da forma seguinte:1. Os Recorrentes interpuseram acção contra o Estado Português

por actos e omissões praticados no exercício da função jurisdicional na jurisdição comum;

2. O Meritíssimo Juiz da 1ª instância declarou -se absolutamente incompetente, deferindo a competência para a apreciação da acção à jurisdição administrativa;

3. Em recurso, o Tribunal da Relação manteve nos seus precisos termos a decisão da 1ª instância;

4. Compete, agora, a este Tribunal de Conflitos fixar definitivamente a competência para o conhecimento da acção — artigo 107°, n° 2, do Código de Processo Civil;

5. A Lei n° 13/2002, de 19/02, introduziu alterações no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, passando a prever expressamente que compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicio-nal — artigo 4°, n° 1, al. g);

6. Porém, à data da propositura da acção - 20/06/2003 -, dominava na jurisprudência administrativa o entendimento de que os tribunais administrativos apenas conheciam dos conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas — artigo 3° do ETAF (Decreto -Lei n° 129/84 de 27 de Abril) e artigo 214°, n° 3, da Constituição da República Portuguesa;

7. Entendendo -se por relações administrativas as que emergem dos vínculos que se estabelecem entre os órgãos, agentes ou entidades ad-ministrativas e os particulares e/ou entre órgãos, agentes ou entidades administrativas distintas, no âmbito do exercício da função administra-tiva do Estado stricto sensu;

8. Os actos praticados no âmbito da função jurisdicional estariam, assim, pela sua natureza e qualidade excluídos da função administrativa do Estado stricto sensu;

9. E não se poderiam configurar como actos de gestão pública qua tale.

Contra alegou o Exmº Magistrado do M.º P.º junto do Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo pela improcedência do recurso in-terposto, sustentando que, de acordo com Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que cita, “haverá ainda que distinguir entre as acções de responsabilidade civil extracontratual, por danos decorrentes e causados pela prática de actos específicos das respectivas funções pelos juízes e pelos magistrados do M°P° designadamente, em processos criminais, em que será competente a jurisdição comum, e acções em que não esteja em causa qualquer decisão, mas apenas o ressarcimento de danos causados pela falta da sua prolação em prazo razoável, ou em que causa de pedir sela um facto ilícito imputável a um órgão da admi-nistração judiciária, globalmente considerado, casos esses em que serão competentes os tribunais administrativos”, pelo que “em casos como o dos presentes autos, em que a responsabilidade pedida ao Estado, não decorre de facto ilícito imputado a um juiz na sua função de julgar, mas sim de danos resultantes de actos e omissões de funcionamento de um órgão da administração judiciária (globalmente considerado), se deva entender que a competência para o julgamento da acção é dos tribunais administrativos e não dos tribunais comuns.”

No mesmo sentido se pronunciou o Exmº Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal, emitindo parecer que se passa a transcrever na parte relevante:

“É vasta a jurisprudência relativa à questão da delimitação da com-petência material das jurisdições administrativas e comuns para o conhecimento de acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais, do que é demonstrativo as variadas decisões judiciais a esse respeito proferidas no STA, STJ e neste Tribunal de Conflitos que já foram citadas em diversas peças processuais nestes autos.

Ora, afigura -se -me consubstanciar ideia -força que subjaz a essa produção jurisprudencial que o critério decisivo para a repartição da competência entre os tribunais administrativos e judiciais passa pela determinação da causa de pedir em cada uma das acções intentadas.

Assim, a competência será dos tribunais judiciais quando a causa de pedir seja um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (ou seja, quando é instado a resolver uma questão de direito), será dos tribunais administrativos quando se reporte a um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária ou a um serviço globalmente considerado, a que é estranha a função de julgar - cfr., entre outros, os já citados acórdão do tribunal de Conflitos de 30 -0496 e 23 -01 -01, nos conflitos n.°s 266 e 294.

Sabendo -se que a questão da competência material dos tribunais administrativos e judiciais se afere pelos termos da relação jurídica--processual apresentada em juízo, aí relevando a causa de pedir confi-gurada e a pretensão deduzida, importará de seguida apurar se no caso sob apreciação a causa de pedir na acção intentada pelos recorrentes se traduz num facto ilícito decorrente da função de julgar ou se, ao invés, o dever do Estado indemnizar os recorrentes resulta do mau funcionamento da sua “máquina de administração da justiça” como se concluiu no acórdão em recurso.

A elucidação desta questão, a meu ver, não é isenta de algumas dificuldades.

Na verdade, a causa de pedir na acção concretiza -se num quadro factual de alguma complexidade em que interferem actos de raiz juris-dicional (v.g. despacho judicial a suspender a execução), com omissões de responsabilidade difusa ou repartida (v.g. não comunicação das penhoras ao processo executivo em que a penhora foi efectuada em primeiro lugar), bem como em deficiente cumprimento de despacho judicial por parte de oficiais de justiça (v.g. venda de bens penhorados por negociação particular em vez de carta fechada, como fora orde-nado). De todo o modo, antes que de um ou outro facto ou omissão individualmente considerado, a causa de pedir na acção reconduz -se e assenta, na sua essência, no deficiente funcionamento da “máquina judiciária” do Estado (entendida esta como um todo orgânico e funcio-nal) — cfr. artigos 10º, 12.°, 39.°,48.°,53.º,54.º,55.°,61.°,62.°, 66.°,74.° e 106.° da petição inicial.

Nesta conformidade, sou de parecer que os tribunais administrativos devem ser declarados os competentes para conhecer e julgar a acção de responsabilidade civil extracontratual instaurada no Tribunal Judicial de Águeda.”

II. Os AA., aqui recorrentes, intentaram, no Tribunal Judicial de Águeda, contra o Estado Português acção comum sob a forma ordinária pedindo a condenação deste a pagar a quantia de € 29.728,35 ao Autor

Page 103: Decisões STA

204 205

João Cardoso e a quantia de € 29.209,60 ao Autor Arnaldo Ruivo, ambas a título de danos patrimoniais, bem como a quantia de € 12.500,00 a cada um deles, para compensação dos danos não patrimoniais, todas elas acrescidas de juros legais contados a partir da data da data da citação, até integral pagamento, alegando, em síntese, o seguinte:

- em 13 -03 -2001, os recorrentes intentaram uma acção executiva do Tribunal do Trabalho de Águeda contra a sociedade Galop — Indústria para Veículos de Transporte, Lda, para quem trabalharam, com vista à cobrança coerciva dos créditos laborais sobre esta, à qual coube o n° 2 -B/2001, onde, por despacho de 16 -03 -2001, foi convertido em penhora o arresto da máquinas e equipamentos e do direito de arren-damento e trespasse do estabelecimento pertencentes à executada, an-teriormente decretado;

- por despacho de 10 -01 -2002, foi ordenada a suspensão dessa execu-ção nos termos do art. 93º do CPT e a comunicação ao processo executivo n° 109 -A/2000, nos termos e para os efeitos do n° 2 desse preceito;

- dos bens penhorados na acção em que são exequente, apenas dois deles (verbas n°s 1 e 6) tinham penhora anterior na execução n.º 109 -A/2000, pelo que, em 28 -02 -2002, pediram a aclaração daquele despacho, sem resposta até ao presente;

- a execução 2 -B/2001 foi sustada até à venda naquele processo n.º 109 -A/2000;

- em início de Outubro de 2002, tomaram conhecimento que todos os bens em causa já haviam sido vendidos e que tal ocorreu na exe-cução n° 229 -A/2000 desse mesmo Tribunal, em que era exequente o Ministério Público e onde também haviam sido penhorados, tendo sido já repartido o respectivo produto;

- apresentaram requerimentos pugnando pela nulidade das omissões praticadas na execução 2 -B/2001 e dos actos praticados na execução 229 -A/2000, tendo o respectivo Juiz respondido encontrar -se esgotado o seu poder jurisdicional e que nada podia fazer, estando a instância nesta última execução já extinta, o que os impediu de lançar mão de qualquer recurso;

- tal ocorreu por falha do Tribunal, que não cumpriu o referido art. 93º do CPC quanto à primeira penhora efectuada no P.º executivo n.º 229 -A/2000, sendo que havia conhecimento do referido arresto, mas a secretaria nada informou, apesar de lhe competir;

- também não foi comunicada a penhora ocorrida na sequência da conversão do arresto requerido pelos recorrentes

- os ditos bens foram vendidos pelo preço de € 3.990,40, muito inferior ao resultante da avaliação sendo o real não inferior a € 30.000,00;

- foi -lhes vedada, em virtude da actuação não diligente do Tribunal, a possibilidade de cobrarem o seu crédito, acrescendo ainda que a secre-taria expediu deprecada para venda por negociação particular, quando tinha sido ordenada a venda por propostas em carta fechada, o que levou à venda por valor inferior ao que seria alcançado.

Concluem que essa negligência na actuação e o erro e ilegalidade dos procedimentos adoptados pelo Tribunal resultaram para eles prejuízos patrimoniais - por não obterem a cobrança dos seus créditos, já que a devedora não possui outros bens - além de danos não patrimoniais, que o Estado está obrigado a indemnizar por ter incorrido em responsabi-lidade civil por actos (ou omissões) praticados no exercício da função jurisdicional.

III. No presente recurso os recorrentes, invocando o entendimento da jurisprudência administrativa no sentido de que os tribunais administra-tivos, à data da propositura da acção (em que estava em vigor o ETAF aprovado pelo Decreto -Lei n° 129/84 de 27 de Abril), apenas conheciam dos conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, nos termos do artigo 3°, de referido ETAF, e artigo 214°, n° 3, da CRP, sustentam que, integrando -se os actos prati-cados no âmbito da função jurisdicional, estariam, pela sua natureza e qualidade, excluídos da função administrativa do Estado stricto sensu, não se podendo configurar como actos de gestão pública qua tale, pelo que, ao contrário do decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, deve ser declarado competente o Tribunal Judicial de Águeda

Vejamos.A posição sustentada pelos recorrentes corresponde à chamada tese

judicialista, segundo a qual, por força dos princípios constitucionais e da separação de poderes e da independência dos tribunais, os tribunais administrativos só teriam competência para julgar questões inerentes aos actos e actividades de “gestão pública” em sentido estrito, isto é, actos e actividades da Administração Pública, excluídos os praticados por quaisquer órgãos do Estado no âmbito das funções política, le-gislativa, jurisdicional e parajurisdicional, caso em que o julgamento das acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de acções ou omissões desses órgãos ou agentes seria da competência dos tribunais judiciais.

Tal corrente jurisprudencial, foi, porém, objecto de análise no acórdão de 12 -05 -1994, deste Tribunal de Conflitos, proferido no Proc. n.º 266, in Ap DR de 30 -04 -1966, que, depois de enunciar e criticar os funda-mentos das duas teses opostas que, então, dividiam a jurisprudência – a que chamou “judicialista” e “administrativista”, respectivamente - discorreu nos seguintes termos:

“A judicialista parece enfermar do pecado original de ter nascido quando imperava o ensinamento do prof. Marcello Caetano que entendia que os tribunais administrativos, posto que se chamassem de tribunais e os respectivos juízes gozarem da mesmas garantias de independência e imparcialidade dos juízes dos tribunais judiciais, não eram verdadei-ros tribunais, não se integrando na função judicial, sendo, outrossim, órgãos superiores da Administração Pública com a missão, exercida com independência dos órgão e agente da administração activa, de julgar da legalidade dos actos e da responsabilidade extracontratual decorrente de actos praticados por estes últimos são a égide do direito administrativo (…).

Desta causa primeira fazia -se decorrer, como corolário lógico ne-cessário e, ao tempo até o seria: a natureza parajurisdicional ou, por outras palavras, não administrativa, de todos e quaisquer actos prati-cados e actividades desenvolvidas nos Tribunais judiciais praticados pelos juizes dos tribunais judiciais no exercício da sua função, mesmo que não correspondentes à estrita função de julgar e por funcionários dos tribunais judiciais, fazendo apelo à teoria da função intermédia ou função -ponte, entre a função jurisdicional propriamente dita e a função administrativa comum, a que os acórdãos mais representativos dessa corrente se acolhiam.

Ora, nem a causa subsiste, nem a teoria tem, agora, utilidade e fundamento constitucional e legal.”

Page 104: Decisões STA

206 207

E continua o dito aresto:“A Constituição da República Portuguesa, na versão resultante da

Lei de Revisão Constitucional n.º 1/80, de 8/7, partindo da utilidade do sistema judiciário, instituiu várias ordens ou categorias de tribu-nais – artº 211º - cada um deles consagrado como órgão de soberania — art° 205°/l — e a cada categoria ou ordem atribuindo, explicitamente ou implicitamente, espaço de jurisdição devidamente delimitado, não em função de uma estrita e absoluta especialização, que funciona apenas como critério indicativo, mas, em obediência a critérios organizacionais e de racionalidade na distribuição das matérias respeitantes à adminis-tração da justiça, por intermédio da actividade específica dos juízes, função do Estado pertencente, em globo, à função judicial e ao poder soberano dos tribunais — art°s 213°, 214”, 215º e 216º.

Todas as jurisdições, assim criadas, são no plano constitucional e abstractamente, de igual dignidade e competência técnico -jurídica no respectivo âmbito material - 205º/1 e 2 - todos os tribunais e juízes de tribunais estaduais gozam das mesmas garantias de imparcialidade e independência - art° 206° e 218°

Entre as jurisdições instituídas, com organização constitucionalmente estabelecida, surge a jurisdição administrativa e fiscal, com estatuto autónomo e com competência específica, nos termos do disposto no art° 214º, para “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”,

Nenhuma dúvida, portanto, que a jurisdição administrativa cabe o julgamento de questões, em termos decisórios finais, com força de caso julgado material, prevalecente e imperativo, conforme ao disposto no art° 209°/2 da Constituição, que tenham por objecto “dirimir litígios emergentes de relações administrativas” sem quaisquer limitações ou restrições de ordem constitucional.

….Há que fixar -se, pois, como ponto de partida incontestável, que, em

princípio, cabe aos tribunais da jurisdição administrativa o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Em princípio, dissemos, porque nada obsta, de acordo com os citados preceitos constitucionais, como acima advertimos, que o legislador ordinário possa, ressalvadas as matérias de natureza criminal, no uso de seu poder conformador concreto do interesse público, atribuir a uma jurisdição competência de julgar sobre “matéria” que, em prin-cípio e em geral, caberia a outras jurisdições, conforme ao critério da especialização, meramente indicador e operacional, na repartição de competências das várias ordens de tribunais que instituiu.

Resulta isso da filosofia subjacente ao sistema judicial unitário cons-titucionalmente instituído e do disposto no art° 168°/1, q) da Constitui-ção, onde se consagra a reserva relativa da Assembleia da República para legislar sobre «organização e competência dos tribunais e do Ministério Público»

Sendo, pois, exacto que ao definir a competência da jurisdição admi-nistrativa, reportando -se às relações jurídicas administrativas, ou seja, ao círculo de interesses que se jogam no âmbito do direito aplicável à Administração Pública, abrangendo as relações jurídicas, que nasçam e se desenvolvam sob a égide do direito administrativo, já não sob a égide do direito público em geral, como se dizia antes, caberá, naturalmente,

aos tribunais administrativos a apreciação e julgamento de todos os litígios originados no âmbito da administração pública, globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário tenha ex-pressamente atribuído, ou venha a atribuir, a outra jurisdição.

E isto, aliás, que dizem os artigos 3.º, 4.º, n.° 1, alínea g), e 51°, nº 1, alínea f) do ETAF, ao estabelecer que «incumbe aos tribunais admi-nistrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âm-bito das relações jurídicas administrativas e fiscais, salvo os que forem excluídos por lei, e os recursos e as acções pertencentes ao contencioso administrativo para que não seja competente outro tribunal.

Por outras palavras, aos tribunais administrativos está atribuída a jurisdição comum em matéria administrativa.”

Sendo certo que a questão da competência material para o julgamento de acções para efectivação da responsabilidade extracontratual por actos e omissões de órgãos ou agentes da administração judiciária, praticados no exercício das suas funções ou por causa delas, foi bastante discutida como se dá nota no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 12 -05 -1994, cuja doutrina se acabou de transcrever, hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administra-ção da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à específica função de lugar, inscrevem -se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12 -05 -1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23 -01 -2001, Conflito n.º 294, e de 21 -02 -06, Conflito n.º 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. n.º 38.474, in AP DR de 31 -8 -98, 1095; de 15.10.98, Proc. n.º 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.º 45.862, in AP DR de 12 -2 -2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.º 46.313, in AP DR de 12 -2 -2003, 7378; e de 22 -05 -2003, Proc. n.º 532/03).

Analisando o caso em apreço, como acima se viu, o pedido de in-demnização formulado pelos Autores, tal como estes o configuram na respectiva petição inicial, assenta nos seguintes factos:

- existindo um processo executivo (Proc. n.º 229 -A/2000) a correr no Tribunal contra a empresa devedora dos créditos dos AA./ recorrentes contra a qual estes instauraram também a respectiva execução judicial (Proc. n.º 2 -B/2001), em que foram penhorados bens da devedora que, anteriormente, haviam sido por eles arrestados, não foi comunicado à primeira execução, onde ocorreu a primeira penhora dos mesmos bens, nos termos do artigo 93, do CPT, a existência da penhora na segunda execução;

- a secretaria informa, naquela primeira execução, que os mesmos bens se encontravam penhorados na execução n.º109 -A/2000, do mesmo Tribunal, com penhora igualmente anterior à dos recorrentes, quando, na verdade, apenas existia penhora em relação a dois dos seis bens penhorados no processo em que eram exequentes os recorrentes;

Page 105: Decisões STA

208 209

- foi sustada a execução n.º 2 -B/2001, ao abrigo do artigo 93 do CPT, aguardando a venda na execução n.º 109 -A/2000, do mesmo Tribunal, não tendo sido comunicada à execução n.º 229 -A/2000 a penhora ali efectuada a pedido dos recorrentes;

- a secretaria expediu deprecada para a venda por negociação particu-lar quando tinha sido ordenada a venda por propostas em carta fechada, sendo a venda efectuada por valor muito inferior ao real;

- todos os bens da executada foram vendidos, e repartido o respectivo produto, no processo executivo n.º 229 -A/2000, ficando os recorrentes sem possibilidade de cobrar os seus créditos.

O pedido indemnizatório assenta, pois, nos prejuízos decorrentes da actuação negligente do Tribunal na tramitação dos processos de execução nele pendentes contra a executada, da qual os Autores eram credores, e não de qualquer acto praticado no exercício da função de julgar, ou como bem refere o Exm.º Procurador Geral Adjunto no seu parecer, de fls. 594 a 596, “a causa de pedir na acção reconduz -se e assenta, na sua essência, no deficiente funcionamento da «máquina judiciária» do Estado (entendida como um todo orgânico funcional)”.

Está -se, pois, no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, pelo que, de acordo com a jurisprudência acima citada, e nos termos dos artigos 3º, do ETAF/84, 212, n.º3, da CRP, há que concluir que incumbe aos tribunais administrativos o julgamento da acção proposta pelos aqui recorrentes.

IV. Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida e declarando os tribunais administrati-vos competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da acção proposta a fls. 2.

Lisboa, 29 de Novembro de 2006. — José António de Freitas Car-valho (relator) — Adelino César Vasques Dinis — Armindo dos Santos Monteiro — Maria Angelina Domingues — Salvador Pereira Nunes da Costa — Rosendo Dias José.

Acórdão de 29 de Novembro de 2006.

Assunto:

Responsabilidade civil extracontratual. Competência dos Tribunais Administrativos. Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR). Actos de gestão pública.

Sumário:

I — A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere -se pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos.

II — São competentes os tribunais administrativos para o conhecimento de acção em que é pedida indemnização ao Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR),

por actos praticados na construção de uma estrada, actividade essa que se insere nas suas atribuições como pessoa colectiva de direito público e é desenvolvida ao abrigo de normas de direito público.

III — Os actos referidos são de qualificar como actos de gestão pública.

IV — O que determina a competência do tribunal para jul-gar uma acção de indemnização não é a natureza do direito violado mas sim, exclusivamente, a veste com que a entidade pública actua quando viola direitos de terceiros. Se agir munida do ius imperium os tribunais administrativos serão os competentes, caso contrário, serão os tribunais comuns.

Conflito n.º 16/03 -70.Requerentes: Maria Joaquina Teixeira Fernandes e outros no conflito

negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Rui Botelho.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:I RelatórioMaria Joaquina Teixeira Fernandes, Maria de Salete Fernandes

de Vasconcelos Teixeira, Jaime Fernandes de Vasconcelos Teixeira, Maria Haidé Fernandes Vasconselos Teixeira, António Fernando Fernandes de Vasconcelos Teixeira e Paula Cristina Fernandes de Vasconcelos Teixeira, com melhor identificação nos autos, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (posteriormente reenca-minhado para este Tribunal), do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que, confirmando a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras, concluiu pela incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da acção declarativa ordinária de condenação proposta contra o ICOR, Instituto para a Construção Rodoviária, pelo facto de ter ocupado - no âmbito do processo de construção de uma variante municipal denominada “Variante de Felgueiras” - parte de um prédio que lhes pertencia, no qual também foram provocados danos.

Os recorrentes terminaram a sua alegação formulando as seguintes conclusões:

“1 - Vêm os ora Agravantes, interpor recurso do mui douto Acórdão promanado pelo Tribunal a quo.

2 - O presente recurso versa, apenas e somente, sobre a apreciação da competência material do Tribunal de 1.ª Instância, apreciada que foi oficiosamente “Excepção de Incompetência Absoluta”,

3 - Com efeito, o Tribunal a quo entendeu que, no caso sub judice era materialmente incompetente para o conhecimento da causa o Tribunal Judicial de 1.ª Instância, transferindo -se no seu entendimento essa com-petência para o Tribunal Administrativo, porquanto a presente acção teria como objecto tão somente a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos resultante da verificação de actos danosos da propriedade de terceiros na prática de um acto de gestão pública por parte da Agra-vada e como realização de uma função pública de pessoa colectiva.

4 - Ora tal decisão, salvo o devido respeito e melhor opinião, é injusta e não conforme ao direito tendo em atenção toda a factualidade existente,

Page 106: Decisões STA

210 211

porquanto, e sem qualquer espécie de rebuço, é da responsabilidade da Agravada a “ocupação ilegal” de uma certa parte do imóvel que se constitui como propriedade dos Agravantes efectuada fora do âmbito de qualquer processo expropriatório e de uma forma não temporária, não se tendo consubstanciado pela Agravada o pagamento de quaisquer valores aos Agravantes que pudessem configurar uma JUSTA INDEMNIZA-ÇÃO e CONTEMPORÂNEA como dona da obra o manter, preservar e diligenciar pelo bom estado de todas as construções e edificações circundantes ao empreendimento por si efectuado.

5 - Sendo que quanto à situação descrita em supra os Recorrentes em algum momento e por alguma forma prestaram o seu consentimento à Agravada para que esta consumasse a sua conduta ilícita, verificando -se deste modo um esbulho da sua propriedade plena e exclusiva perpetrado pela Recorrida na ocorrência em mérito com graves prejuízos para a esfera jurídico -patrimonial dos Agravantes que ascendem ao montante de 144.978,10 EUR.

6 - Além do mais, a habitação implantada na propriedade dos Agravan-tes sofreu diversos e elevadíssimos danos materiais como consequência necessária e directa das obras levadas a cabo pela Agravada.

7 - Todos estes actos praticados pela Agravada foram de molde a originar o desprovimento quanto às pessoas dos Agravantes da parcela de terreno em equação com correspectiva depreciação da parte sobrante do imóvel, derivada da construção por parte da Agravada de um muro de betão com vários metros, o que impossibilita a vista que o imóvel anteriormente possuía, e além disso, retirando -lhe grande parte do apro-veitamento da luz Solar, existindo actualmente uma perda brutal da qualidade ambiental e uma desvalorização considerável em termos de utilidade económica, patrimonial e capacidade do prédio com reflexos no seu valor de mercado.

8 - Não respeitando assim a Agravada o dever de no exercício da sua função pública não poder ofender do direito de propriedade de terceiros.

9 - Não se consumindo na verificação da ilegalidade da conduta o requisito da ilicitude no domínio da responsabilidade de entes públi-cos, podendo ainda compreender a inobservância de regras técnicas ou cânones de prudência comum.

10 - A Agravada apesar de se constituir como uma pessoa colectiva do direito público não significa que não esteja sujeita ao regime do direito privado respondendo civilmente perante ofensas de direitos de terceiros (reivindicação de propriedade e indemnizatórios). designadamente por actos de gestão privada na realização dos fins de interesse público a elas cometidos.

11 - Assim de acordo com o disposto no artigo 34º., n.º 1. alínea f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estão excluídos da jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado ainda que qualquer das partes seja pessoa colectiva de direito público sendo por isso da competência dos Tribunais Judiciais a competência residual de tais acções.

12 - Do disposto no artigo 212°., n°. 3 da nossa Lei Fundamental por-que compete aos Tribunais Administrativos o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas resultou esvaziado muito do seu conteúdo o conceito tradicional de acto de gestão pública.

13 - Portanto no direito hodierno é muito mais importante conhecer o conceito de relação jurídica administrativa só relevando para a justiça publicista as relações jurídicas administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo aquelas em que um dos sujeitos pelo menos actue na veste de ius imperii no sentido de realização do interesse público legalmente definido.

14 - Porém nem todos os actos da ora Agravante são de gestão pú-blica, como nem todos os actos que integram a gestão pública haverão de representar todos o exercício imediato do ius imperii ou reflectirão directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoa colectivas.

15 - Ora os actos praticados pela Agravante consubstanciam -se em actos violadores do direito de propriedade e são geradores da obrigação de indemnizar sendo que não se integram em qualquer relação jurídica administrativa regulada pelo direito público.

16 - Como, aliás, entendeu e bem o Tribunal da Relação de Guimarães no mui douto Acórdão em oposição promanado em 19 de Julho de 2002 - Processo nº. 66/02 -2 - 2ª. Secção, que enunciou o seguinte:

“Por tal motivo, há ofensa de direito privado (direito de propriedade). Não pode ser considerado como um acto administrativo, pois “o direito dos Autores que então invocam como ofendidos é um direito privado e não um direito público ou uma garantia de natureza publicista”. Não se está em tais casos “...perante o exercício do jus imperium mas de uma actuação qualquer pública ou privada, singular ou colectiva que na sua gestão comum pode praticar, violando normas exclusivamente de direito privado.”

17 - Pode -se afirmar, aliás, na sequência de vários arestos e do dito pelos Profs. Osvaldo Gomes e Alves Correia que uma coisa é proceder à abertura de uma estrada expropriando os terrenos que são mister à sua implantação e realizando por administração directa ou por Empreitada a obra, coisa bem diferente é causar danos em propriedade alheia sem autorização dos donos ou prévia expropriação - Cfr. AC, RC de 2/7/96, CJ, Tomo IV, Pags. 25; Ac. RP de 30/4/02, CJ, Ano XXVII, Tomo II, Págs. 221 a 225; AC, RP de 0/5/02, Proc. n°. 628/02 -3ª. Secção,

18 - Por outro lado se a deliberação da realização da obra e a aprovação do respectivo projecto e a sua concretização devem qualificar -se como actos de gestão pública no que concerne à execução prática da estrada, mormente os eventuais danos para terceiros decorrentes dessa execução já não se afigura assim - Cfr. também o AC. Tribunal de Conflitos de 5/11/98, BMJ, 311, Pág. 195.

19 - Ademais, mesmo que se entendesse que devido à situação de estarmos perante um acto de gestão pública ser competente na sua veste de Tribunal Especial o Tribunal Administrativo para apreciar o presente dissídio o simples facto da conduta em que incorreu in casu a Agravante ter na sua génese a omissão de um dever de cuidado e vigilância a que aquela se encontrava adstricta, originou a sua colocação num plano de paridade e igualdade de tratamento com o particular e o cidadão adqui-rindo esta sua redita omissão a natureza de um acto de gestão privada.

20 - Para que então se possa assim evitar que do alto do seu “ius imperium”, o ente público não se sinta constantemente tentado por via da sua superior posição a “desleixar -se” nos cuidados e deveres a que se encontra vinculado, tendente à prossecução dos interesses públicos que terá de realizar.

Page 107: Decisões STA

212 213

21 - Assim sendo como é, face ao anteriormente expendido, e com o devido respeito, pensa -se ser competente para apreciar a questão em mérito o douto Tribunal Comum, tal qual como foi configurado pelos Agravados ab initio na sua Petição Inicial, por via dos artigos 18º., nº. 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e 66º., 67º. e 74º.,. n°. 2 do Código de Processo Civil, devendo por isso com o devido respeito e salvo melhor opinião ser não só revogado o Acórdão recorrido mas também ser Uniformizada a Jurisprudência no sentido de fixar o Tribunal Comum como materialmente competente para apreciar questões de reivindicação de propriedade e pedidos indemnizatórios formulados por um cidadão comum, quando a entidade esbulhadora seja uma pessoa colectiva de direito público ainda que na prossecução da respectiva actividade.”

O recorrido concluiu a sua alegação sustentando a improcedência do recurso.

O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido, defendendo a manutenção do julgado.

Cumpre decidir.IICom o presente recurso visa -se, apenas, determinar a jurisdição com-

petente para conhecer da acção.Embora não estejamos perante um verdadeiro conflito de jurisdição,

pois os tribunais administrativos não tiveram a oportunidade de se pronunciar, cabe ao Tribunal dos Conflitos dirimir esta controvérsia, ou pré -conflito, e fixar definitivamente a jurisdição competente, nos termos do n.º 2 do art.º 107 do CPC, assim prevenindo um eventual conflito.

III DireitoVejamos.1. As recorrentes, no Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras,

na petição inicial, para sustentarem a procedência da acção, alegaram o seguinte:

“1 - Os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio composto por uma construção com dois pisos e logradouro com jardim, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º 319 sito na freguesia de S. Jorge da Várzea, concelho de Felgueiras;

2 - O qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00244/160891;

3 - Com as seguintes confrontações: Norte: EN 207; Sul: Autores; Nascente: Autores; Poente: Estado.

4 - Factos que, ademais, são incontestados pela Ré tal qual melhor se expende por cópia de “Vistoria Ad Perpetuam Rei Memoriam” que se junta e dá por integralmente reproduzida para os devidos e legais efeitos (Doc. nº. 1);

5 - Acontece que parte do prédio e que assumiu a identificação de parcela 39.3 com área de 35 m2 foi ocupada pela Ré;

6 - Ocupação que se deve à construção de uma variante municipal denominada “Variante de Felgueiras”;

7 - A Ré afectou pois uma parte do prédio dos Autores para além área prevista para expropriação;

8 - Dizendo para o efeito que “por necessidade de execução dos tra-balhos da obra foi necessário ocupar a área que constitui a parcela n°. 39.3 que não estava incluída na expropriação inicial”.

9 - Com efeito, a redita parcela não consta do “Processo Expropria-tório”;

10 - Porquanto a mesma não faz parte do mapa anexo à “Declaração de Utilidade Pública” para aquele troço de via;

11 - Traduzindo -se num aumento da área - propriedade dos Autores - sacrificada aos interesses da Ré;

12 - Com a construção de um muro e ocupação parcial do jardim;13 - Da “Declaração de Utilidade Pública” publicada em Diário da

República não consta a denominada parcela - Cfr. Diário da República, II Série, n.º 35 de 11 de Fevereiro de 1999;

14 - Isto é, não haverá pelos prejuízos suportados pelos Autores qual-quer responsabilidade indemnizatória em sede de expropriação por utilidade pública;

15 - Tal qual, aliás, já foi doutamente decidido pelo Tribunal Judicial desta comarca;

16 - No processo n°. 204/01 do 2°. Juízo que neste Tribunal correu termos e cuja cópia autenticada de decisão se junta e dá por integralmente reproduzida para os devidos e legais efeitos (Doe. nº. 2);

17 - Relegando -se essa matéria para o regime geral da responsabilidade - vide também artigo 18°., nº. 4 do Código das Expropriações;

18 - Ora esta ocupação da propriedade privada, não obstante vir dizer--se a coberto de uma “Declaração de Utilidade Pública” - o que não está como vimos supra - não deixa de constituir uma ocupação que desvirtua a legalidade, tanto mais que não é temporária;

19 - Tanto mais que não acompanhada da JUSTA INDEMNIZAÇÃO e CONTEMPORÂNEA com prejuízos graves para os Autores tal como iremos escalpelizar infra;

20 - Embora, mal grado diversos contactos e trocas epistolares, a Ré continuou e continua a fazer o que entende por bem e sempre dentro da propriedade dos Autores, não obstante a posição de descontentamento por estes assumida em razão dos danos avultados que sofreram e ainda sofrem;

21 - E sempre fora do âmbito material do “Processo Expropriató-rio”;

22 - Ocuparam parcialmente a propriedade dos Autores já identifi-cados nos Autos;

23 - Ocupação que não cuidou de acautelar os mais fundamentais direitos daqueles;

24 - Bem assim como de providenciar pelo terreno sobrante, segurança e demais apoios para que os sacrifícios a suportar e danos tossem redu-zidos ao mínimo possível e ajustado às circunstâncias concretas;

25 - Na verdade, os Autores viram -se privados da utilização de um poço (abastecido por nascente própria);

26 - Encontrando -se coarctados de fruição de água durante aproxima-damente três semanas porquanto a redita água foi cortada sem reposição em termos definitivos;

27 - Ora sucede que os Autores se viram na contingência de modo próprio requisitar o “abastecimento de água domiciliário” disponibili-zado pela Câmara Municipal de Felgueiras;

28 - A água originária do poço em mérito, afora ser gratuita, abastecia os consumos domésticos de duas habitações e um estabelecimento co-mercial (café) e, bem assim era utilizada para rega de diversos terrenos propriedade dos Autores;

29 - Com esta situação forçada passaram a pagar mensalmente as seguintes quantias: contadores (3) a Esc. 225$00 Esc. 775$00: consumos médios globais Esc. 12.000$00;

Page 108: Decisões STA

214 215

30 - Tendo ainda despesas de instalação e inutilização ou tomados obsoletos os seguintes bens: 1 poço Esc. 600.000$00; tubagens em hidronil Esc. 90.000$00; 1 motor trifásico Esc. 90.000$00; despesas de instalação (nova) Esc. 60.000$00; pichelaria Esc. 60.000$00;

31 - Para além dos danos descritos ficaram os Autores desprovidos da parcela de terreno acima indicada e viram depreciada consideravel-mente a parte sobrante, nomeadamente pela construção de um muro em betão com vários metros o que impossibilita a vista que anteriormente o imóvel possuía e, além disso, retirando -lhe grande parte do aprovei-tamento da luz solar;

32 - Com efeito, verifica -se uma perda brutal da qualidade ambiente nessa parte e uma desvalorização considerável em termos de utilidade económica e patrimonial e capacidade do prédio;

33 - Sendo certo que até à referida obra o prédio se encontrava situado numa área de sossego e envolvente de qualidade e com esta construção ficou com essa estrada e barulhos inerentes encostado ao sobrante;

34 - Ou seja, hoje o mesmo prédio não proporciona os mesmos có-modos que anteriormente proporcionava e que tem reflexos, designa-damente, no valor de mercado afecto ao mesmo;

35 - Além do mais, a habitação implantada na propriedade dos Au-tores observa danos materiais importantes em consequência directa e necessária das obras levadas a cabo pela Ré;

36 - Assim, a redita ampliação da área ocupada para a obra referida em supra e esta de per si implicou, designadamente, os seguintes danos e prejuízos pecuniários:”

O recorrido apresentou contestação que, todavia, foi mandada de-sentranhar.

Com fundamento nestes factos aquele tribunal decidiu que:“Assim sendo, e atento o acima exposto, é de concluir que, de acordo

com a petição inicial, nos alegados actos lesivos dos direitos dos AA. praticados pelo ICOR, para a realização das suas atribuições próprias, destinadas à prossecução do interesse público, o ICOR está investido em poder público, tratando -se, pois, de acto de gestão pública: efecti-vamente, e segundo a petição inicial, foi no âmbito da sua actividade própria de construção de estradas - designadamente, na construção de uma variante municipal denominada “Variante de Felgueiras” - que o ICOR violou os direitos dos autores. Tem, assim, de entender -se que a presente acção está subtraída à competência deste tribunal, estando antes submetida à competência material do tribunal administrativo. Verifica--se, pois, a incompetência material deste tribunal para a presente acção, excepção que, nos termos do art. 102.º do Cód. Proc. Civil, é de conheci-mento oficioso e de que ora se conhece de imediato. Em conformidade, e nos termos conjugados do disposto nos arts. 101.º, 102.º, 105.º, 288.º, n.º 1, al. a), 493° n.º 1 e n.º 2, e 494.º, al. a), todos do Cód. Proc. Civil, 51.º, n.º 1, al. h), do E.T.A.F. e 6.º, n.º 1, do DL n.º 237/99, de 15/06, julgo este Tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, pelo que absolvo da instância o réu ICOR - INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA.”

O Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando a decisão da 1.ª Instância, concluiu que:

“Os Autores assentam o pedido de indemnização na responsabili-dade civil extracontratual por factos ilícitos praticados pelo Réu. A invocada responsabilidade civil do Réu dimana de acto que não pode ser praticado por qualquer pessoa, resultando do exercício de especí-

ficos poderes de império. Os actos em causa reportam -se à actividade funcional e específica da entidade que os praticou - ICOR - Instituto para a Construção Rodoviária - que é um Instituto Público, dotado de personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, sujeito à tutela e superintendência do Ministro do Equipamento Social, tendo como escopo institucional essencial a construção de novas estradas, pontes e túneis, e a execução de trabalhos de grande reparação ou re-formulação do traçado ou características de pontes e estradas existentes que lhe forem cometidos, estando, para o exercício das suas atribuições equiparado ao Estado (cfr. Artigos 1°, 5° do DL n° 237/99, de 25/6 e artigos 3° e 4° dos Estatutos deste Instituto anexos ao citado Decreto--Lei). Resultando, assim, o pedido de indemnização formulado pelos Autores, de danos para eles resultantes de acto de gestão pública, bem se decidiu ao julgar -se absolutamente incompetente o tribunal comum para o conhecimento da questão. Pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.

2. Dir -se -á, desde já, que o decidido é para confirmar.Sobre esta mesma questão - responsabilidade civil extracontratual do

ICOR (ou JAE, que o antecedeu) por danos infligidos no decurso da sua actividade de construtor de estradas - este Tribunal dos Conflitos pronunciou -se já, repetidamente, sempre no sentido da competência dos Tribunais Administrativos. Veja -se, como meros exemplos, os acórdãos de 4.3.04 no Conflito n.º 10/03, de 6.5.04 no Conflito n.º 14/03 e de 4.4.06 no Conflito n.º 8/03. Por ser o último, e por corresponder a uma situação em tudo idêntica à dos presentes autos ir -se -á transcrever os trechos relevantes do acórdão proferido no Conflito n.º 8/03.

“À face do ETAF de 1984, a competência dos tribunais administra-tivos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes restringe -se aos casos em que esta deriva de actos de gestão pública, como decorre do preceituado no art. 51.º, n.º 1, alínea h), daquele diploma. (Esta norma estabelece que com-pete aos tribunais administrativos de círculo conhecer de «acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso»). A questão da qualificação dos actos de Administração como actos de gestão pública ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos deste Tribunal dos Conflitos. Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado. (Neste sentido, podem ver -se os seguintes acórdãos: do Tribunal dos Conflitos de 5 -11 -1981, processo n.º 124, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 311, página 195; do Tribunal dos Conflitos de 20 -10 -1983, processo n.º 153, publicado em Apêndice ao Diário da República de 3 -4 -1986, página 18; do Tribunal dos Conflitos de 12 -1 -1989, processo n.º 198, publicado em Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n° 330, página 845;

Page 109: Decisões STA

216 217

do Tribunal dos Conflitos de 12 -5 -1999, processo n.º 338, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31 -7 -2000, página 19; do Supremo Tribunal Administrativo de 22 -11 -1994, recurso n.º 33332, publicado em Apêndice ao Diário da República de 18 -4 -1997, página 8256; de 29 -6 -2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.º 1/04). «A solução do problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar: -Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas do direito privado; -Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independente-mente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas» (Acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no processo n.º 124, citado).”

No caso dos autos, os recorrentes, como se viu, formularam um pedido de indemnização por danos causados pelos trabalhos de construção de uma estrada, denominada “Variante de Felgueiras”, imputando ao Réu, na qualidade de dono da obra e responsável pela sua execução, a responsabilidade por estragos ocorridos no seu prédio, situado junto a essa estrada, e ainda pela ocupação de uma parcela de 35m2. Ou seja, os recorrentes pretendem efectivar a responsabilidade do recorrido por actos por ele praticados na actividade de construção de estradas.

“O ICOR foi criado pelo Decreto -Lei n.º 237/99, de 15 de Janeiro, sendo -lhe atribuída a natureza de pessoa colectiva, do tipo instituto público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de patrimó-nio próprio (arts. 1.º, n.º 1, daquele diploma e 1.º, n.º 1, dos Estatutos do ICOR por ele aprovados). No art. 4.º destes Estatutos indicam -se as atribuições fundamentais do ICOR, nos seguintes termos:

1 - São atribuições fundamentais do ICOR:a) Assegurar a construção de novas estradas, pontes e túneis pla-

neados pelo Instituto das Estradas de Portugal (IEP) e a execução de trabalhos de grande reparação ou reformulação do traçado ou carac-terísticas de pontes e estradas existentes que lhe forem cometidos;

b) Promover a realização dos projectos de empreendimentos rodovi-ários que forem necessários ao exercício das suas atribuições;

c) Assegurar a fiscalização, acompanhamento e assistência técnica nas fases de execução de empreendimentos rodoviários;

d) Promover a expropriação dos imóveis e direitos indispensáveis à execução de empreendimentos rodoviários da sua responsabilidade;

e) Zelar pela qualidade técnica e económica dos empreendimentos rodoviários em todas as suas fases de execução;

f) Assegurar a participação ou colaboração relativamente a outras instituições nacionais e internacionais que prossigam finalidades no âmbito da construção de empreendimentos rodoviários.

É, assim, inequívoco que a construção de novas estradas, sua reparação e reformulação do traçado se insere entre as atribuições do ICOR, pelo que os actos que os Autores indicam como geradores dos prejuízos que invocam consubstanciam o exercício de funções de natureza pública, previstas em normas de direito público. Assim, os actos imputados ao

Réu são de qualificar como actos de gestão pública, à face do critério atrás referido, e a responsabilidade deles emergente é responsabilidade por actos de gestão pública. Para efeitos desta qualificação não releva a circunstância de os actos que se invocam como geradores de responsabi-lidade civil extracontratual serem actos de natureza jurídica ou operações materiais ou técnicas, pois estas operações «deverão qualificar -se como de gestão pública se na sua prática ou no seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do interesse colectivo, ou porque o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a cumprir deveres ou sujeito a restrições especificamente administrativos, isto é, próprios dos agentes administrativos. E será gestão privada no caso contrário». (FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, volume III, página 493, cuja posição é seguida no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4 -3 -2004, proferido no recurso n.º 10/03). Por outro lado, não se verifica qualquer situação em que esteja em causa uma questão de direito privado, pois o regime da responsabilidade civil extra-contratual por actos de gestão pública é regulado por normas de direito público, designadamente, o Decreto -Lei n.º 48051, de 21 -11 -1967. Por isso, são competentes os tribunais administrativos para o conhecimento da presente acção, pelo que bem decidiram as instâncias ao julgarem incompetente o Tribunal Judicial de Felgueiras.”

A circunstância de a acção ter tido igualmente como fundamento a ocupação de uma parcela com a consequente violação do direito de propriedade dos recorrentes é irrelevante, para este efeito, uma vez que a competência do tribunal para julgar a acção de indemnização é determinada, como se viu, não pela natureza do direito violado mas sim, exclusivamente, pela veste com que a entidade pública actua quando viola direitos de terceiros. Se agir munida do ius imperium os tribunais administrativos serão os competentes, caso contrário, serão os tribunais comuns.

Haverá de concluir -se, portanto, tal como se decidiu, que sendo a com-petência dos tribunais administrativos, por estar em causa uma relação jurídica administrativa (art.º 212, n.º 3, da CRP e art.º 3 do ETAF), está excluída a competência dos tribunais comuns (art.º 66 do CPC).

Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação da recorrente.IV DecisãoNos termos e com os fundamentos expostos acordam em negar provi-

mento ao recurso e em confirmar o acórdão recorrido, assim se declarando competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos.

Sem custas.Lisboa, 29 de Novembro de 2006. — Rui Manuel Pires Ferreira

Botelho (relator) — António da Silva Henriques Gaspar — Rosendo Dias José — João Manuel de Sousa Fonte — Fernando Manuel Azevedo Moreira — Salvador Pereira Nunes da Costa.

Acórdão de 29 de Novembro de 2006.

Assunto:

Execução fiscal. Reversão. Hipoteca. Tribunal competente.

Page 110: Decisões STA

218 219

Sumário:

Instaurada uma execução fiscal contra o devedor originário, posteriormente revertida contra aquele que a administra-ção fiscal considera ser o devedor subsidiário, se este, com fundamento na ilegalidade da reversão e da hipoteca legal constituída sobre bens imóveis seus, pretender a conde-nação do Estado no cancelamento do registo da referida garantia e no pagamento de indemnização pelos prejuízos que ela lhe vem causando, deverá mover a correspondente acção na jurisdição administrativa e fiscal, a cujo tribunal tributário da área onde corre a execução caberá a respec-tiva competência.

Processo n.º 16/06 -70.Requerente: Florinda Ferreira Gomes Martins no conflito negativo

de jurisdição entre o Tribunal Judicial de Santo Tirso e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Cândido de Pinho.

Acordam no Tribunal de Conflitos:I - Florinda Ferreira Gomes Martins, inconformada com o teor do

acórdão da Relação do Porto que, em sede de recurso de agravo da decisão proferida em 7/11/2005 do Tribunal Judicial de Santo Tirso nos autos de acção de condenação sob a forma ordinária intentada contra o Estado Português, manteve a incompetência em razão da matéria daquele tribunal para conhecer dos pedidos ali formulados - entre os quais o da condenação em pagamento de indemnização - reconhecendo -a, por outro lado, aos Tribunais Administrativos e Fiscais, recorre para este Tribunal de Conflitos, ao abrigo do disposto no art. 107º, nº2, do CPC.

Nas alegações, concluiu da seguinte maneira:«lª A Recorrente alegou, na conclusão 7ª das alegações de recurso

para o Tribunal da Relação do Porto, que “o direito violado tem a na-tureza de direito absoluto, e, como tal, a sua tutela efectiva faz -se nos tribunais comuns”.

2ª O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre esta matéria; por isso o douto acórdão recorrido é nulo (art°. 668°.1, d) ex vi art°, 716°,1, ambos do CPC).

Sem prescindir:3ª Os tribunais administrativos e fiscais apreciam e julgam os conflitos

emergentes de relações jurídicas administrativas ou fiscais, mas não as de direito penal ou civil.

4ª Os tribunais comuns são os tribunais competentes para o cidadão aí se defender de factos praticados pela A.F., mesmo que estes se baseiem numa relação jurídica fiscal, por ela alegada mas inexistente.

5ª Nos tribunais administrativos e fiscais o cidadão pode pedir a revogação desse acto, mas isso não impede que ele, pela via da acção e dos procedimentos cautelares cíveis, defenda a posse e propriedade dos seus bens nos tribunais comuns.

6ª Os direitos patrimoniais, tal como os direitos de natureza de perso-nalidade, são direitos absolutos, com a natureza de direitos fundamentais do cidadão (art°. 1305°. do CC e actos. 62°, 17° e 16°, 2 da CRPP, com referência ao art. 17°. da Decl. Univ. dos Dtos do Homem).

7ª Os direitos patrimoniais, mormente o direito de propriedade, são direitos de natureza civi1, competindo aos tribunais comuns assegurar a defesa dos interesses emergentes desses direitos, quando violados (arts. 1311°. e segts. do CC e arts. 202°.2 e 211°,1, lª parte da CRP).

8ª O disposto no art. 4°. do ETAF, mormente na al. a) do seu nº 1, terão que ser interpretados de harmonia com o princípio da interpretação das leis conforme a Constituição e os princípios da unidade do sistema jurídico, este imanente ao princípio de direito, consagrado no art. 1°, da Constituição e reconhecido no art° 8°,1 do CC, bem como com o disposto nos já aludidos arts. 62°, 17º, 16°, 2, 202°,2 e 211°,1 da Constituição, e ainda com o disposto no nº 3 do art. 212°, da Lei Fundamental.

9ª Assim, aos tribunais administrativos e fiscais compete apreciar os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, mas não retira aos tribunais comuns o dever de apreciar os factos pra-ticados pela Administração Pública que violem direitos absolutos cuja defesa seja da competência dos tribunais comuns, sob pena de violar o disposto no art°. 13° da CRP, mormente quando a AF inventa relações tributárias inexistentes.

10ª Doutro modo, com o pretexto da existência de uma relação jurídica administrativa ou fiscal, invocando normas jurídicas administrativas ou fiscais, com total despropósito, ao contrário do que poderiam fazer os sujeitos de direito provado, e abusando assim dos inconstitucionais princípios da presunção de legalidade dos seus actos e do benefício da execução prévia, a A.F. ficava com o campo aberto para criar situações de facto altamente gravosas para os cidadãos, que assim ficavam impedidos de reagir pela via da acção e meios cautelares comuns.

11ª Esta dualidade não é suprida com o recurso aos tribunais adminis-trativos e fiscais, nomeadamente quando estão em causa factos praticados pela A.F., pois, na jurisdição fiscal, não existem para os sujeitos de direito privado os meios pertinentes, p. ex., os procedimentos cautelares de defesa reivindicação e defesa da posse e da propriedade.

12ª Os direitos dominiais têm pois a natureza de direito civil, com-petindo aos tribunais comuns a apreciação das questões relativas à defesa dos interesses protegidos por esses direitos, mesmo quando o facto violador vem enroupado com a capa de uma relação jurídica ad-ministrativa ou fiscal. Por isso os tribunais comuns, como tribunais de jurisdição plena, não podem deixar de averiguar se, por baixo da capa, está coisa séria ou coisa ilícita.

13ª Deste modo de ver as coisas resulta que o disposto na al. a) do nº, 1, do art. 4°, do ETAF não foi interpretado de harmonia com as normas constitucionais aqui invocadas; mas se o seu sentido é aquele que lhe foi dado nas interpretações recorridas, então essa norma é inconstitu-cional porque viola as normas e princípios constitucionais invocados nestas conclusões.

14ª. Pese o muito respeito que lhes é devido, pelas razões e direito aduzidos nestas conclusões, as doutas decisões recorridas deverão ser revogadas».

A entidade recorrida pugnou pelo improvimento do recurso.Cumpre decidir.II - Os FactosConsidera -se assente a seguinte factualidade:1 - A recorrente, Florinda Ferreira Gomes Martins, é dona e possui-

dora dos prédios rústicos “terreno de cultura e Mato”, “Cerrado da Vessada”, “Campo do Lameiro Novo” e “campo da Cortinha”, todos

Page 111: Decisões STA

220 221

sitos no lugar de Espinheiros, freguesia de Monte Córdova, concelho de Santo Tirso, inscritos na matriz sob os nºs 2501, 2500, 2490 e 2498, descritos na Conservatória do Registo Predial daquele concelho sob os nos 01799/281201, 01800/281201, 00812/071196 e 00811/071196, respectivamente (docs. Fls. 8 a 22).

2 - Estes prédios foram objecto de hipoteca legal a favor da Fazenda Nacional, no âmbito de uma acção executiva fiscal intentada contra “Martimor –Acessórios e Ferramentas Lda”, como garantia de paga-mento de créditos fiscais de IVA relativo aos anos de 2001 a 2002 e coima fiscal do ano de 2003 e respectivos juros e custas, no valor de 51,499,79 euros (docs. loc. cit. e ainda fls. 56), hipoteca que viria a ser registada ao abrigo dos arts. 195º, nº3 do CPPT e 687º e 693º do Código Civil (fls. 57).

3 - Alegando nada dever ao Fisco, nem sequer subsidiariamente a título de reversão por dívidas de “Martimor -Acessórios e Ferramentas, limitada”, sociedade de que nunca foi gerente, nem de direito, nem de facto, intentou acção declarativa de condenação no Tribunal Judicial de Santo Tirso (fls. 1/6).

3 - O Tribunal Judicial de Santo Tirso julgou procedente a excepção de incompetência material arguida pelo Estado Português na referida acção, absolvendo -o da instância (fls. 71/73).

4 - O Tribunal da Relação do Porto, em sede de recurso jurisdicional, acolheu esta posição, por considerar que a competência para a acção pertencia à jurisdição administrativa e fiscal (fls. 102/107).

III - O Direito1 - Da nulidade do acórdão da RelaçãoO presente recurso é típico para a fixação de competência. E porque

incide sobre uma decisão do Tribunal de Relação que confirma a decisão da 1ª instância (de julgar o tribunal judicial incompetente para a acção), ele não consubstancia um conflito de competência entre tribunais ou de jurisdições distintas, mas representa aquilo a que vulgarmente se designa “pré -conflito” ou, na expressão de Alberto dos Reis, a “prevenção de conflito futuro”, (C.P.Civil Anotado), obrigatoriamente dirigido ao Tribunal de Conflitos.

De qualquer maneira, sempre visa a solução para a excepção de competência, o que nos leva a concluir que por aí haverá de ficar a parcela de jurisdição que ao TC cabe, o que, de resto, nos parece obter acolhimento pleno no disposto no art. 116º, nº1, do CPC e, ainda mais especificamente, no art. 107º, nº2 do mesmo Código, “in fine”, quando estabelece que o recurso interposto para este tribunal é «…destinado a fixar a competência». Por isso, aí se esgota, portanto, o nosso poder decisório, o que impede o Tribunal de Conflitos, por exemplo, de co-nhecer de questões que transcendem o seu específico objecto, como é, por exemplo, o caso da nulidade do acórdão recorrido.

Na verdade, a nulidade de sentença por omissão de pronúncia sus-citada (art. 668º, nº1, al. d), do CPC) não cabe no âmbito deste tipo de recurso, o qual, mesmo ordinário (Ac. do TC de 1//12/97, Proc. nº 000316), apenas tem por missão a “resolução dos conflitos”, quando existam (cfr. art. 98º da LPTA) ou “fixar a competência” para decidir o mérito da questão submetida ao tribunal.

Eis por que não apreciaremos a arguida nulidade.2 - Do mérito do recurso

Como é sabido, o requisito da competência resulta de necessidade de se repartir o poder jurisdicional pelos vários tribunais segundo critérios diversos.

No plano interno, à frente de todos, surge o critério da especiali-zação. A lei, em função do reconhecimento da vantagem em reservar para cada um dos tribunais aquelas matérias que constituem o núcleo preferencial da sua actividade, fixa a regra da competência (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 1987, pag. 197).

Ora, no que respeita à jurisdição administrativa e fiscal o art. 1º do novo ETAF estatui que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça…nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Numa fórmula semelhante, a Constituição da República Portu-guesa comete «aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (art. 212º, nº3), ao mesmo tempo que, por exclusão, estabelece que «tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais» (art. 211º, nº1).

O que quer dizer que o primado na determinação da competência vai inteiro para a lei. De tal modo que se a lei não atribuir competência a alguma jurisdição especial, então a causa cai na alçada do tribunal judicial (art. 66º do CPC).

O ETAF, a este propósito, aponta em alguns dos seus preceitos a frac-ção do poder jurisdicional que pode ser exercida pelos tribunais adminis-trativos, fixando -lhes o espaço jurisdicional da actividade a desenvolver no pleito. Mas essa é a competência abstracta, de que destacamos em matéria contenciosa administrativa, v.g., os arts. 24º, 37 e 43º.

Resta saber se o tribunal concreto pode julgar a causa que as partes lhe submetem, tarefa que cai já sob o domínio da competência concreta de cada tribunal.

Pode dizer -se que o tribunal administrativo é competente para a acção se entre esta e aquele (tribunal) existir um nexo jurídico de competência (Castro Mendes, in Direito Processual Civil, pag. 646), ou, para utilizar as palavras de outro autor, se entre ambos for possível configurar uma conexão relevante e decisiva por lei (Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, pag. 400).

Para o efeito importa perscrutar os índices de competência, olhando para a acção de acordo com os termos em que ela foi proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solici-tada, natureza do direito para o qual pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, etc), seja quanto aos elementos subjectivos (identidade e natureza das partes).

O pedido do autor é, neste aspecto, o limite da competência. A compe-tência, ensina Redenti, «afere -se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo a que será mais tarde o quid decisum)». Costuma dizer -se, neste caso, que a competência se determina pelo pedido do autor (Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pags. 90/91; Acs. do STA de 26/05/1999, Rec. nº 40 648; de 30/06/1999, Rec. nº 46 161. Também do Tribunal de Conflitos, de 11/07/2000, Proc.

Page 112: Decisões STA

222 223

Nº 318, in AD nº 468/1630; 5/02/2003, Proc. Nº 6/02; 8/07/2003, Rec. nº1/03 e de 9/07/2003, Proc. Nº 9/02, entre outros).

Tivéssemos nós unicamente presente que, afinal de contas, o que se discutia era um direito de propriedade do A., pretensamente violado, numa perspectiva unicamente civilista, teríamos já a solução para a controvérsia, pois que os tribunais administrativos não são especialmente aptos para resolução de questões emergentes de conflitos de direitos de propriedade sobre imóveis.

Se, no entanto, virmos mais de perto os termos em que a acção foi proposta, quer quanto aos elementos objectivos, quer quanto aos sub-jectivos, até mesmo quanto à essência dos pedidos formulados, já a solução se nos afigura, necessariamente, outra. É que, a alegada “vio-lação” do direito de propriedade só surge “ex vi” do accionamento de uma garantia patrimonial em ordem ao pagamento de uma dívida fiscal. Isto é, não está em discussão nos autos se a propriedade sobre determinados bens pertence por direito à autora, pois sobre isso não há conflito que urja composição, mas sim, se a hipoteca legal accionada sobre aqueles bens assenta em pressuposto de facto existente e válido, quer dizer, se houve reversão válida contra a autora e se esta é ou não devedora, mesmo subsidiariamente, à Administração Fiscal de alguma soma de dinheiro. Sejamos, portanto, rigorosos: o que a autora quer é ver afastada a hipoteca sobre os seus bens. Só que isso conduz -nos logo para outro campo de estudo, que acabará por desaguar em conclusão contrária àquela por que a autora se bate.

Mas vejamos em mais pormenor.Recordemos que em causa estava um crédito tributário de IVA, de

coima e juros respectivos e que, por falta de pagamento voluntário, viria a ser alvo de um processo de execução fiscal. Crédito que o Fisco detinha sobre o devedor originário, “Martimor Acessórios e Ferramentas, Lda”, mas cuja execução viria a ser revertida contra a autora por despacho de fls. 58, ao abrigo dos arts. 24º, nº1, al.b) da Lei Geral Tributária e 8º, nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Ora, a execução fiscal é o mecanismo posto à disposição da Admi-nistração Fiscal tendente à cobrança coerciva de tributos e de coimas (entre outras dívidas: art. 148º,CPPT). Nasce, assim, de uma relação jurídico -fiscal, que mesmo sendo obrigacional (obrigação fiscal), não deixa de ser de direito público (Soares Martinez, in Direito Fiscal, Almedina, pag. 161). O direito fiscal, ou direito tributário, é, de resto, ele mesmo um ramo de Direito Público (António Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, Vol. I, 3ª ed., pag. 23).

Mas, além de disciplinada pelo direito público aquela relação, se-rão, por outro lado, públicos os interesses que o Estado nela defende? A importância da resposta decorre do facto de, segundo o critério da natureza dos interesses, a relação ser de direito administrativo se em causa estiver um interesse da colectividade (M. Caetano, in Manual de Direito Administrativo, I, pag. 45; Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 1973, I, pag. 45).

Por nossa parte, desde já adiantaremos, sem esforço, que o interesse subjacente era, efectivamente, público.

Como se costuma dizer, público é aquele que respeita à existên-cia, conservação e desenvolvimento da colectividade política e so-cialmente organizada, daí que esteja presente em todas as normas jurídico -administrativas (M. Caetano, ob. cit., I, pag. 49). É o interesse colectivo, o interesse geral de uma comunidade, é o bem comum (bem

comum que representa «aquilo que é necessário para que os homens vivam, mas vivam bem», segundo São Tomás de Aquino) que se associa à satisfação de necessidades colectivas (F. Amaral, in Direito Admi-nistrativo, II, pag.36). Sendo assim, trata -se de uma noção que acentua a ideia de interesse geral ou interesse comum, de modo a favorecer a totalidade ou pelo menos uma parte importante de uma comunidade. Um interesse público, geral, colectivo, comum, é assim um interesse objectivo, insusceptível de individualização: por pertencer a um grupo indiferenciado, não se identifica com os interesses próprios dos seus membros.

Ora, não se duvida que o interesse da Administração Fiscal na co-brança da obrigação tributária deriva de um interesse público: o interesse do Estado na obtenção de receitas públicas para levar a cabo as múltiplas funções e tarefas que lhe incumbem e que dele demandam avultados meios económicos. Na medida em que a despesa que o Estado efectua assenta no dever de promover o desenvolvimento do país e o bem estar dos seus cidadãos, a receita que o direito fiscal lhe proporciona serve para atingir esse fim e, assim, realizar o interesse geral e colectivo.

E é precisamente nesse pressuposto que a natureza dos interesses impõe que os litígios verificados a esse nível se dirimam nos tribunais tributários, dentro da ordem dos tribunais administrativos, como este mesmo tribunal já concluiu (neste sentido, v.g., Ac. do Tribunal de Conflitos, de 12/10/2004, Proc. nº 03/04).

Mas, se por fim quisermos levar em linha de conta a posição dos sujeitos da relação jurídica estabelecida entre a Administração e o con-tribuinte, é bem claro que aquela intervém com uma qualidade que lhe confere, por lei, e em razão do interesse publico que prossegue, uma posição de “potestas” e de supremacia sobre o outro sujeito da relação, impondo -lhe unilateralmente a sua vontade, por via da necessidade de realização do referido fim (Ac. do Tribunal de Conflitos, 18/12/2003, Proc. nº 02/03).

Essa posição de sujeito activo está patente não só na criação do imposto, do tributo, isto é, no poder de instituir impostos tout court - e que não exorbita de um poder tributário de feição legislativa (mas não é esse o poder que aqui interessa evidenciar) -, mas ainda na titulari-dade do crédito tributário no âmbito de uma relação tributária material e, finalmente, com particular ênfase e especial interesse para o caso que nos ocupa, na relação tributária formal no quadro já de um poder instrumental de aplicação da norma tributária e, assim, no uso concreto de um processo tendente à cobrança da dívida (Soares Martinez, in Manual de Direito Fiscal, 1990, Almedina, pag. 275 e sgs.).

Tudo se passa, por conseguinte, numa ambiência publicística.Como se diz no citado aresto do Tribunal de Conflitos «O Estado

actuou no exercício de um poder público, apreendendo judicialmente o bem, para se garantir de uma divida de que é credor, ou nessa qua-lidade.

Usou das “armas de Estado”, como Administração fiscal e como titular do poder tributário sobre os seus cidadãos – pessoas singulares ou jurídicas (…). Tanto é dizer que, a qualidade em que intervém o Estado, na relação conflituosa donde emerge o recurso, não é idêntica a um qualquer exequente particular, a requerimento do qual se fizesse judicialmente a penhora de um determinado bem, para garantir uma divida privada, que atingisse esfera jurídica de outrem, não devedor. A

Page 113: Decisões STA

224 225

divida é fiscal, (Por outras palavras, trata -se de “um crédito emergente de relação juridico -tributária proveniente de tributo fiscal”».

Já agora, “ex abundanti”, por nos parecer de particular utilidade à hermenêutica em apreço, importa olhar para o que dispõe o art. 151º do CPTT:

«1.Compete ao tribunal tributário de 1ª Instância da área onde correr a execução, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a gradua-ção e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução fiscal.

2. O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior».

Também para o art. 4º, nº1, do ETAF:«1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a

apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:a) Tutela de direitos fundamentais, bem como direitos e interesses

legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos pra-ticados ao brigo de disposições de direito administrativo ou fiscal».

Tanto basta. Se tudo isto é assim, e se o que a autora pretende é afastar a hipoteca e respectivo registo legal sobre seus prédios no âmbito de um processo de execução fiscal (e apensos) instaurado no Serviço de Finanças de Paços de Ferreira – hipoteca, de resto, constituída ao abrigo do art. 195º, nº1, do CPTT (DL nº 433/99, de 26/10) – com o argumento de que nada deve ao Fisco e de que, por isso, ela fora ilegal, também por atentar contra o seu direito de propriedade, então a reacção que o presente processo patenteia, independentemente da forma de processo utilizada e da nomenclatura mais adequada - impugnação de actos lesivos (art. 49º, nº1, al.a), iii, e d) do ETA), oposição (cit. art. al. d)), impugnação da sua legitimidade enquanto responsável subsidiária (cit. art, al. d)), até mesmo reclamação (art. 276º do CPTT) - é própria de um processo a correr perante os tribunais tributários, pois que assim o impõem os arts. 151º do CPTT e 4º e 49 do ETAF (no mesmo sentido, ver citado acórdão do Tribunal de Conflitos de 12/10/2004, Proc. nº 03/04).

O que tudo significa, sem adicionais e escusadas delongas, que a jurisdição apropriada ao conhecimento da acção em que é pedido o cancelamento do registo da hipoteca, com fundamento na ilegalidade da reversão e da garantia, e bem assim o pagamento de indemnização pelos prejuízos que a hipoteca vem causando ao revertido é a administrativa e fiscal, a cujo tribunal tributário da área onde corre a execução caberá a respectiva competência.

IV - DecidindoFace ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal de Conflitos em

negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido e decla-rando o tribunal tributário da área onde pende a execução o competente para a acção.

Sem custas (art. 97º do Dec. nº 19243, de 16/01/1931).Lisboa, 29 de Novembro de 2006. — José Cândido de Pinho (re-

lator) — João Manuel de Sousa Fonte — Rui Manuel Pires Ferreira Botelho — José Amílcar Salreta Pereira — Jorge Artur Madeira dos Santos — Maria Laura de Carvalho Leonardo.

Acórdão de 5 de Dezembro de 2006.Recurso n.º 8/06 -70.Requerentes: Manuel João Leitão Ferreira Dias e outros, no conflito

negativo de jurisdição entre o 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. João Camilo.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:Manuel João Leitão Ferreira Dias e outros, com os demais sinais nos

autos, intentaram no Tribunal do Trabalho de Lisboa “acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho”, sob a forma de processo comum, contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social (dora-vante ISSS), também devidamente identificado nos autos, pedindo que o Réu fosse condenado:

a) a “cumprir o Contrato de Comissão de Serviço celebrado com os autores, até à data do seu termo, como Directores do CDSSS e (…) a pagar 4.452,68 euros mensais desde 24 de Setembro de 2001 até 1 de Fevereiro de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das actu-ais funções que desempenham, pelo que o ISSS deve ser condenado a pagar aos autores os salários vencidos e vincendos (nos seguintes montantes …),

b) “subsidiariamente, sem conceder, e se assim não se entender [fosse] o ISSS condenado a pagar [aos autores] pela cessação da Comissão de Serviço a indemnização, também, nos montantes referidos na alínea a) deste pedido” e

c) “[em] juros vincendos a partir da citação”.O Réu contestou, suscitando – no que agora interessa –, a título de

excepção dilatória, a questão da incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho de Lisboa para conhecer do pedido formulado pelos Autores, chamando à colação a natureza da relação jurídica subjacente, que disse ser de funcionalismo público e, por conseguinte, regulada pelo direito administrativo, razão pela qual “a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal” devia ser julgada “procedente” e, em consequência, ser o Réu “[absolvido] (…) da instância”.

Responderam os Autores, concluindo pela improcedência da excep-ção, porquanto estava “claramente demonstrada a existência de relação laboral entre os Autores e o réu”, à qual será de aplicar o “regime jurídico do contrato individual de trabalho e o preceituado nos regulamentos internos do ISSS”, caindo, deste modo, no âmbito da competência, em razão da matéria, do Tribunal do Trabalho de Lisboa.

O Tribunal do Trabalho de Lisboa entendeu que a relação jurídica estabelecida entre os Autores e o Réu era de direito administrativo, pelo que, por despacho a fls. 587 e ss, julgou “procedente a excepção de incompetência [absoluta] do Tribunal do Trabalho” e, em consequência, absolveu o réu da instância, nos termos do disposto nos art.s 101.º, 102.º,103.º, 105.º e 288.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, aplicáveis ex vi alínea a) do n.º 2 do art. 1.ºdo CPT.

E recordou que os Autores (dirigentes por nomeação em comissão de serviço para o desempenho dos cargos de directores do CDSSS) já haviam reagido judicialmente – por via de recurso contencioso de anulação, acção que ainda se encontra a correr termos nos Tribunal Ad-ministrativos – contra o então projecto de despacho de Sua Excelência

Page 114: Decisões STA

226 227

a Secretária de Estado da Segurança Social e Solidariedade, quando notificados do sentido provável da decisão, ainda na fase de audiência dos interessados, decisão essa que se consubstanciava em fazer cessar as correspondentes comissões de serviço.

Inconformados com este despacho que julgou procedente a excepção de incompetência do Tribunal do Trabalho, os Autores dele interpuseram recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual foi ad-mitido e cujo âmbito se reconduziu tão -só à questão da (in)competência.

Atendendo a que “a competência material do tribunal se afere pelos termos em que a acção é proposta (…) e que se determina pela forma como o autor estrutura ou configura o pedido e os respectivos funda-mentos ou causa de pedir”, (…) “sendo irrelevantes, para este efeito, as qualificações jurídicas dessa pretensão efectuadas pelo autor, bem como o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma, por se tratar de questão atinente ao mérito da causa”, o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo em conta os factos alegados na petição inicial, qualificou os Autores como funcionários públicos.

Terminando o aresto da seguinte forma:“os cargos dos enquanto Directores do CDSSS, se iniciaram e ces-

saram por meio de actos administrativos, invocando a cessação ilegal das suas comissões de serviço, por despacho do Secretário de Estado, como aliás, os próprios recorrentes reconhecem ao interporem recurso contencioso para os tribunais administrativos.”

“Deste modo, estando em causa a legalidade de actos administrativos, que se repercutiam sobre os contratos administrativos de direito público, que os autores detêm com o Estado face à sua qualidade de funcionários públicos, à luz do art. 85 ª da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, (LOTJ) os tribunais do trabalho são incompetentes em razão da matéria para o conhecimento desta acção.”

E, nestes termos, foi proferido acórdão a “[negar] provimento ao recurso, [confirmando] o despacho recorrido.”

Novamente inconformados, os recorrentes interpuseram recurso de agravo, em 2.ª instância, para o Supremo Tribunal de Justiça, que veio a ser admitido, por despacho de 22 de Novembro de 2005, pelo Tri-bunal a quo.

O Réu, na contra -alegação, suscitou a questão prévia do conhecimento do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça por considerar caber antes a sua apreciação ao Tribunal dos Conflitos.

E, de facto, invocando o disposto no art. 107.º do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que “não cabe [a este] Supremo Tribunal conhecer do presente agravo, sendo competente para dele conhecer o Tribunal de Conflitos, a quem se remeterão, oportunamente, os autos.”

O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu douto parecer, segundo o qual “o conhecimento da presente acção contra o ISSS, com fundamento em contrato individual de trabalho, pertence aos Tribunais Judiciais e destes aos Tribunais do Trabalho (art.s 18.º e 85.º, al. b) da LOFTJ)”, devendo, assim, “conceder--se provimento ao recurso, revogar -se o acórdão recorrido e declarar -se competente para o conhecimento da acção o Tribunal do Trabalho de Lisboa”.

Vejamos.A competência baliza a jurisdição de cada tribunal.

Determinada segundo vários critérios, a competência encontra -se dividida pelas várias espécies de tribunais, entre outros fundamentos, segundo a natureza da matéria, distribuindo -se assim os litígios por “categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas” (v. Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, p. 207).

Os tribunais judiciais constituem, a par dos tribunais administrativos e fiscais e do Tribunal de Contas, uma das três categorias, constitu-cionalmente consagradas, de tribunais permanentes. Por outro lado, “constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limi-tada às matérias que lhes são especialmente atribuídas” (idem, p. 208)

É o que resulta do art. 211.º, n. 1, da CRP, bem como do art. 18.° da LOFTJ e do seu regulamento, aprovados pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, Decretos -Lei n.º186 -A/99, de 31 de Maio, e 178/2000, de 9 Agosto, respectivamente, normas que consagram a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

De modo que, primeiramente, ter -se -á que aferir se o caso em apreço cai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, âmbito genericamente definido em termos constitucionais pelo art. 212.º, n.º 3, da CRP, ao atribuir aos tribunais administrativos e fiscais a competência para o “julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, e concretizado, em termos ordinários, pelo art. 3.º do ETAF, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 124/84, de 27 de Abril.

Sem esquecer que, na aferição da competência, o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica, e o mesmo se diga relativamente às considerações de direito, que os Autores fazem dos factos apresentados na petição inicial, pois a competência deve ser apurada tendo em conta tão só e apenas o modo como estruturaram a causa de pedir e exprimiram a correspondente pretensão em juízo.

Este entendimento doutrinal tem vindo a ser afirmado pela jurispru-dência, designadamente, a deste Tribunal de Conflitos, nomeadamente, o Acórdão, de 7/5/91, proferido no processo n.º 231 (Apêndice ao DR de 30/10/93), o Acórdão, de 6/5/91, proferido no processo nº. 230 (Apêndice ao DR de 30/10/93) e o Acórdão, de 26/9/96, proferido no processo nº. 267 (Apêndice ao DR de 28/11/97), bem como, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 12/01/94, 09/05/95 e 04/03/97, in Colectânea de Jurisprudência do STJ n.º 94 – 1º., p. 38, n.º 95 – 2º, p. 68 e 97, 1º, pág. 125, respectivamente).

Interessa caracterizar a relação estabelecida entre os Autores e o Réu tal como foi apresentada por aqueles, por conseguinte, atender -se -á:

a) Ao primeiro pedido, que consiste em condenar o Réu no cumpri-mento do “Contrato de Comissão de Serviço celebrado com os autores, até à data do seu termo, como Directores do CDSSS e seja o réu con-denado a pagar 4.452,68 euros mensais desde 24 de Setembro de 2001 até 1 de Fevereiro de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das actuais funções que desempenham, pelo que o ISSS deve ser condenado a pagar aos autores os salários vencidos e vincendos (nos seguintes montantes …)”,

Page 115: Decisões STA

228 229

b) Ao segundo pedido, formulado subsidiariamente (“sem conceder, e se assim não se entender”), que visa a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização, também, nos montantes referidos na alínea (ante-rior), a favor do “autor pela cessação da Comissão de Serviço”.

c) E ainda um terceiro, segundo o qual “o réu [deverá ser] condenado em juros vincendos a partir da citação”.

Daqui se retira que os traços estruturais que os pedidos empres-tam à acção não são decisivos para a caracterizar como pertencente a qualquer das espécies em confronto – “acção emergente de contrato individual de trabalho” ou “meio contencioso pertencente aos tribunais administrativos”.

Acontece, porém, que a ausência de tais elementos decisivos não se verifica somente nos traços estruturais, pois, na verdade, não se retira de todo o teor do pedido da acção qualquer marca decisiva ou impressiva que nos reconduza à natureza juslaboral ou administrativa da matéria.

Ou seja, não é de excluir que aqueles pedidos pudessem resultar de uma acção sobre contratos administrativos, bem como de uma acção sobre responsabilidade civil, meios de acesso aos tribunais adminis-trativos previstos no ETAF e na LPTA e que integram o “contencioso (administrativo) por atribuição”.

De igual modo, também não será de excluir que esses mesmos pe-didos pudessem resultar de um litígio laboral, por constar no teor dos pedidos a expressão “salários vencidos e vincendos”. Pese embora, tal expressão, desacompanhada de outras, tenha um valor indicativo ou de simples sugestão, não relevando, pela insuficiência que lhe é inerente, de forma decisiva ou impressiva para se poder reconduzir o litígio ao contencioso juslaboral.

Será então necessário apreciar a causa de pedir para que esta indagação se complete, visto ser necessário caracterizar a relação estabelecida entre os Autores e o Instituto de Solidariedade Social.

Pertinentemente, releva dos autos (no que à causa de pedir respeita), além do mais, o seguinte:

1. Ser o Réu uma pessoa colectiva de direito público dotada de auto-nomia administrativa, financeira e patrimonial, com natureza de instituto público, nos termos dos respectivos estatutos;

2. Terem os autores sido nomeados, em regime de comissão de serviço, para o exercício dos referidos cargos públicos, pelos despachos (…) de Sua Excelência o Ministro do Trabalho e da Solidariedade;

3. Terem os Autores ficado a auferir, mensalmente, a remuneração base correspondente a Director Distrital, nos termos do Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia (Despacho n.º 11464, DR, II Série, de 30 de Maio) e previsto na tabela remuneratória aprovada pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade;

4. Não ter havido nenhuma deliberação do Conselho Directivo do ISSS no sentido de cessar as referidas comissões de serviço que, a existir, conforme o art. 12.º, n.º 2, do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia, teria que ser fundamentada;

5. Ter havido, por iniciativa de Sua Excelência a Secretária de Estado da Solidariedade, um aditamento às alíneas do art. 12.º do Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS, que se consubstanciou na inclusão de uma alínea f) ao art. 12.º do dito Regulamento, consagrando a possibilidade de as comissões de serviço cessarem por despacho fun-damentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho nos termos do artigo 20.º, n.º 2, al. a) da Lei n.º 49/99, de 22 de Julho.

[No que concerne ao aditamento, os Autores invocam o vício de incompetência absoluta, que gera a nulidade, para além de alegarem tratar -se de uma alteração ao contrato de comissão de serviço sem necessário consentimento dos Autores, pelo que a estas comissões de serviço não poderia ser aplicável esta forma de cessação do exercício do cargo, caso contrário seria violado o princípio da boa fé das partes contratantes e, se outro fundamento não existisse, seria um claro abuso de direito.]

6. Ter sido na sequência desta alteração que Sua Excelência a Secretá-ria de Estado da Solidariedade Social, por despacho de 19 de Setembro de 2002, fez cessar as comissões de serviço dos Autores;

7. Não ser de aplicar às comissão de serviço dos Autores, em termos de Direito de Trabalho, o Decreto -Lei n.º 49/99, de 22 de Julho, que se aplica exclusivamente aos dirigentes do Estado.

8. Só contavam estar e estavam (os Autores) abrangidos pelas cláu-sulas contratuais decorrentes do Despacho de Nomeação em Comissão de Serviço, as do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia, as dos Estatutos do ISSS e, subsidiariamente, as leis do regime jurídico do contrato individual de trabalho.

Ora, é certo que os Autores, aqui e ali, avocam uma terminologia própria do Direito Administrativo para imputarem ilegalidades ao acto que determinou a cessação de comissão de serviço, terminologia que corresponde ao domínio do direito público, referenciando até a existência de um litígio na jurisdição administrativa, mas, na verdade, resulta do articulado que as alegadas invalidades derivam da introdução da alínea f) ao n.º 1 do Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia do Instituto de Solidariedade Social pelo Despacho n.º 18 006/2002, de 19 de Setembro de 2002, que os Autores advogam ser inaplicável e/ou ilegal.

Daí que os Autores tenham aceitado, em sede de resposta às excep-ções, que a questão da invalidade do Despacho acima identificado “pode ser considerada uma questão prejudicial a esta acção” e que por esse fundamento a instância pode ser suspensa – o que a final requerem (cf. fl. 522 dos autos).

Todavia, no caso vertente, é patente que os Autores localizaram a origem do litígio numa relação de direito laboral, identificaram a fonte como sendo um contrato individual de trabalho e somente invocaram as cláusulas contratuais decorrentes do despacho de nomeação em comissão de serviço, as do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefias, as dos Estatutos do ISSS e, subsidiariamente, as leis do regime jurídico do contrato individual de trabalho.

O Tribunal dos Conflitos, no Acórdão de 19 de Janeiro de 2006 (proc. n.º 13/05), salientou: “o que releva para a questão da competência em razão da matéria é o facto de o Autor alegar estar vinculado ao Réu através do regime de contrato individual de trabalho, de os termos com que caracteriza a sua situação serem compatíveis com um contrato deste tipo e de ser esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão formulada de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos deste tipo.”

Hodiernamente, o Estado, bem como outras pessoas colectivas pú-blicas, mantém com muitas pessoas relações de colaboração fora do domínio do direito público e, por conseguinte, de qualquer relação de emprego público – é justamente o caso do pessoal do ISSS, sujeito ao regime do contrato individual de trabalho (cf. artigos 23.º, 25.º, 29.º, 37.º e ss, todos do Decreto -Lei n.º 316 -A/2000, de 7 de Dezembro) e,

Page 116: Decisões STA

230 231

neste sentido, v. Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 26 de Abril de 2006, proc. n.º 06/05.

Mas também é verdade que nas relações estabelecidas há inúmeras vezes uma aplicação miscigenada do direito público e do direito privado, tornando legítima a atracção dos litígios daí emergentes para a jurisdição administrativa, chamada para a resolução total do litígio, mesmo que implique a análise de aspectos de natureza privada que, por princípio, caberiam a outra jurisdição.

Contudo, sempre se dirá que podem ser estabelecidos por via regu-lamentar os moldes queridos para as condições de recrutamento, de exercício e de cessação dos cargos de pessoal dirigente de uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa, finan-ceira e patrimonial, designadamente, de um instituto público, regime esse que pode apresentar um pendor mais administrativista ou, pelo contrário, mais privatista.

In casu, decorre do art. 37.º do Estatuto do ISSS, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 316 -A/2000, de 7 de Dezembro, que “ao pessoal do ISSS aplica -se o regime jurídico do contrato de trabalho e o preceituado nos regulamentos internos do ISSS, sem prejuízo do disposto nos presentes estatutos e no diploma que os aprova” e, bem assim, do art. 41.º do mesmo estatuto que “as carreiras do pessoal do ISSS abrangido pelo regime jurídico do contrato de individual trabalho constam do regulamento interno do ISSS” (artigos sistematicamente inseridos no capítulo V, cuja epígrafe é “Do pessoal”).

No que concerne à estrutura orgânica interna deste Instituto, será de atender ao Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS – que foi aprovado por Despacho n.º 11 463/2001, de 23 de Abril de 2001, (entretanto alterado pelo Despacho n.º 18 006/2002, de 17 de Julho de 2002), ao abrigo do art. 3.º, n.º 1, do Decreto -Lei n.º 316 -A/2000, e do art. 41.º, n.º 1, dos Estatutos do ISSS e, ainda, da delegação de competências do Ministro da Solidariedade – para, então, se proceder à análise dos moldes em que se pautam os regimes de recrutamento, nomeação e exercício do cargo de director de centro distrital de soli-dariedade e segurança social e, seguidamente, podermos concluir se os Autores poderiam exercer, ou não, uma relação de colaboração fora do domínio do direito público.

Um director de um centro distrital de solidariedade e segurança social exerce, nos termos do regulamento invocado, um cargo diri-gente (art. 2.º), dentro da categoria intitulada “Pessoal dirigente e de chefia”, que não constitui uma carreira e que é exercido em regime de comissão de serviço (art. 3.º), cujo recrutamento é feito por escolha de entre as pessoas que possuam os requisitos previstos nesse mesmo Regulamento (art. 4.º).

Inevitavelmente, haverá que distinguir aqueles que detêm o estatuto de funcionários públicos no serviço de origem e que aceitam desempenhar um cargo de dirigente no ISSS, pois, neste caso, a presença, ainda que de forma latente, do regime jurídico do funcionalismo público impede a aplicação sem mais do regime jurídico do contrato individual de tra-balho na relação que entretanto foi estabelecida com o Réu, por estar subjacente a impossibilidade de operar “uma conversão do contrato administrativo existente (…) num contrato de trabalho regulado pelo Direito Privado, pois [tratando -se de um funcionário público], a comissão de serviço limitou -se a consubstanciar, não um facto constitutivo de uma relação nova, mas um facto modificativo de uma relação pré -existente,

que, subsequentemente, manteve natureza idêntica (carácter jurídico público)” – in Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 18 de Janeiro de 2006, no âmbito do processo n.º 19/05.

Aliás, situação, desde logo, salvaguardada pelo art. 38.º dos Estatutos do ISSS, sob a epígrafe “Mobilidade”, que especialmente prevê esta situação.

Nesta medida, o “regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos do ISSS e no Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS e, subsidiariamente, nas normas e princípios que regem o contrato individual de trabalho, não tem o condão de alterar a natureza do vinculo jurídico -administrativo anteriormente existente, como bem flui da leitura conjugada dos referidos artigos 37.º e 38.º dos Estatutos do ISSS” – in Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 18 de Janeiro de 2006, proc. 19/05.

Eis os pontos que relevam para a questão da competência em razão da matéria.

Compulsados os autos, junto se acha uma outra dificuldade – não ser admissível a presente cumulação de Autores.

Entre os Autores encontram -se, por um lado, funcionários públicos, que vieram exercer funções de dirigentes, por via de uma comissão de serviço, na pessoa colectiva de direito público que é o ISSS.

Esse status, resultante da relação jurídica de emprego público no serviço de origem, impede que o fundamento da pretensão formulada pelos Autores se possa identificar, tão só e apenas, com um contrato de trabalho regulado pelo direito privado.

Por outro lado, encontramos Autores que, não sendo funcionários públicos, vieram exercer funções de dirigentes, por via de uma comis-são de serviço, na pessoa colectiva de direito público que é o ISSS, apresentando como fundamento da pretensão formulada as relações laborais estabelecidas e às quais é de aplicar o regime de contrato individual de trabalho.

Decisão:Por derivar dos termos em que a acção foi proposta que, entre os

Autores, uns são funcionários públicos, posições subjectivas que im-primem às relações jurídicas estabelecidas contornos que não fogem ao direito administrativo, e outros não o são, trazendo a juízo relações jurídicas que escapam ao direito administrativo por lhes ser aplicável o direito do trabalho, caberá:

- À jurisdição administrativa e fiscal apreciar os pedidos formulados pelos Autores que detêm o estatuto jurídico de funcionários públicos no serviço de origem,

- À jurisdição comum apreciar os pedidos formulados pelos demais Autores, que se apresentaram na qualidade de titulares de um contrato individual de trabalho, e, dentro desta ordem jurisdicional, aos tribunais do trabalho, por força do preceituado no art. 85.º, al. b), da LOFTJ.

Pelo exposto, e nessa medida, decide -se:a) Revogar parcialmente o acórdão da Relação de Lisboa, julgando -se

competentes os tribunais judiciais (art. 18º. da LOFTJ) e, dentro desta ordem jurisdicional, o Tribunal do Trabalho, por força do preceituado no artigo 85º., al. b), da LOFTJ, para conhecer dos pedidos formulados pelos Autores que na acção não se apresentam com o estatuto de fun-cionário público, mas tão só e apenas na qualidade de titulares de um contrato individual de trabalho;

Page 117: Decisões STA

232 233

b) Confirmar o acórdão da Relação de Lisboa na parte em que julgou competentes os tribunais administrativos para conhecer dos pedidos formulados pelos Autores que na acção se apresentam com o estatuto de funcionário público.

Sem custas, por não serem devidas (artigo 96.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931).

Lisboa, 5 de Dezembro de 2006. — João Moreira Camilo (relator) —António da Silva Henriques Gaspar — Rosendo Dias José — Fernando de Azevedo Ramos — Azevedo Moreira — Baeta de Queiroz.

Acórdão de 19 de Dezembro de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Empreitada de obras públicas. Insti-tuição privada de solidariedade social. Competência dos Tribunais Administrativos.

Sumário:

I — As instituições particulares de solidariedade social são pessoas colectivas de direito privado, com autonomia, não administradas pelo Estado, que prosseguem os objectivos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto -Lei n.º 118/83, de 25 de Fevereiro, que estabelece o seu estatuto legal (artigos 1.º e 3.º desse diploma).

II — Estão sujeitas à tutela do Estado, cuja autorização dos serviços competentes é necessária para a prática de determinados actos, nomeadamente a aquisição de bens imóveis a título oneroso ou a alienação de imóveis a qualquer título (artigo 32.º, n.º 1), os seus orçamentos e contas carecem do visto dos serviços competentes (artigo 33.º), que poderão ordenar a realização de in-quéritos, sindicâncias e inspecções a estas instituições e seus estabelecimentos (artigo 34.º); as empreitadas de obras de construção ou grande reparação deverão ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente (artigo 23.º, n.º 1).

III — Da conjugação da disciplina estabelecida nos preceitos enunciados no número anterior com a estabelecida no artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto -Lei n.° 59/99, de 2 de Março, é de concluir que a sua gestão está sujeita a um controlo por parte do Estado, donde de-corre que estas pessoas são de considerar donas de obras públicas; o que significa que os contratos por elas celebrados são contratos de empreitada de obras públicas, regulados pelo referido Decreto -Lei n.° 59/99. São contratos praticados a coberto de uma ambiência de direito público, resultante do predomínio de preocupa-

ções de interesse público, que prosseguem, que as leva a não poder adoptar procedimentos diferentes dos nele tipificados e a actuar numa posição de supra-ordena-ção que lhes possibilita o estabelecimento de cláusulas exorbitantes; ou seja, são contratos administrativos.

IV — Face ao referido em I, II e III, é de concluir que são compe-tentes os tribunais administrativos para apreciar acção respeitante a questão(ões) derivada(s) da execução de um contrato de empreitada (regulada pelo Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março) para a construção de um cen-tro social e paroquial celebrado entre uma instituição particular de solidariedade social e um empreiteiro.

Conflito n.º 25/05 -70.Requerente: Construtora da Bairrada — Sociedade de Construções, S. A.,

no conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relatora: Ex.ma Sr.ª Cons.ª Dr.ª Maria Angelina Domingues.

Acordam no Tribunal de Conflitos:1.1. Construtora da Bairrada – Sociedade de Construções, SA., (id.

a fls.2), intentou no Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, “Processo de Injunção” contra o Centro Paroquial de Angeja, com sede em An-geja, pedindo a notificação deste a fim de lhe ser paga a quantia de € 261.846.45, sendo € 240.314,71 a título de capital e € 21.372,12 a título de juros de mora. Indicou como causa de pedir o “fornecimento de bens ou serviços”.

Juntou diversas facturas, que alegou respeitarem a autos de medição de trabalhos contratuais.

1.2. Invocada, pelo Réu, a incompetência do Tribunal em razão de matéria, o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, por decisão proferida a fls. 164 e segs, julgou procedente a aludida excepção, considerando competente para o conhecimento da causa o Tribunal Administrativo de Círculo.

1.3. Inconformada com a decisão referida em 1.2, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão de fls. 230 e segs, negou provimento ao agravo, confirmando a decisão do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro.

1.4. A Autora interpôs recurso do acórdão da Relação referenciado em 1.3 para o S.T.J.

Concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:“1ª - O documento de fls. 67 não permite concluir que a empreitada

de construção em causa foi financiada, pelo I.S.S.S., em mais de 50 % do respectivo valor de adjudicação à recorrente,

2ª - Sendo certo que nem pelo recorrido foi junta aos autos, nem pelos Tribunais Judicial de Oliveira do Bairro e da Relação de Coimbra foi oficiosamente solicitada, certidão comprovativa do concreto valor de tal financiamento.

3ª - O n°5 da Portaria 138/88 de 13 de Março, citado naquele docu-mento, expressamente preceitua que o custo total dos empreendimentos a financiar pela Segurança Social, inclui, além do custo da construção propriamente dito, os encargos decorrentes da revisão de preços e de

Page 118: Decisões STA

234 235

erros e omissões do projecto inicial, quando existam, bem como, o do equipamento fixo e móvel.

4ª - Tal significa que o legislador claramente pretendeu repartir a comparticipação estatal por outras vertentes do empreendimento a financiar (revisão de preços e de erros e omissões do projecto inicial e equipamento fixo e móvel) por forma a acautelar que a IPSS interessada utilizasse exclusivamente tal comparticipação na respectiva componente de construção civil, e descurasse, designadamente, a componente de equipamento indispensável ao funcionamento do empreendimento.

5ª - Isso mesmo foi esclarecido ao recorrido sob o § 4° do documento de fls. 67.

6ª - Pelo que, salvo o melhor opinião, face à lei e ao conteúdo de tal documento, não colhe o argumento usado no acórdão recorrido de que é “... irrelevante que o financiamento pudesse abranger também 80 % do valor dos equipamentos, porque estes não são objecto da empreitada e se esta esgotar o «tecto» da comparticipação, esses bens apenas e já não poderão ser candidatos ao financiamento” (sic, fls. 232);

7ª - Acresce que, da consulta do sítio oficial na Internet do Departa-mento de Prospectiva e Planeamento do Ministério das Finanças em

www.dpp.pt/gestao/ficheiros/piddac_reg_2004.pdf ewww.dpp.pt/gestao/ficheiros/piddac_reg_2005.pdf8ª - Resulta que, incluindo equipamento, o ISSS disponibilizou ao

recorrido para a realização do projecto de Centro de Dia para 40 idosos, Apoio Domiciliário para 15 idosos e um ATL para 40 jovens (cfr. doc. fls. 67) a comparticipação total de 147.290.00 euros, o que corresponde a 29.528.993$78 escudos,

9ª - Valor muito inferior a 50 % do preço global da empreitada de construção adjudicada à recorrente (135.001.304$00).

10º - Não estamos, pois, no caso sub júdice no âmbito da previsão do n° 5, do art° 2°, do DL 55/99, de 2 de Março,

11ª - Pelo que a empreitada em causa não pode ser equiparada a «empreitada de obra pública» e, como tal, não está subordinada “ao regime do w contrato administrativo de empreitada de obras públicas» estabelecido no DL 55/ 99 de 2 de Março.

12ª - Contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, não se aplicam, pois, àquele contrato as normas dos art°s 2° , n° 5, e 253°, no 2 desse D.L. 55/99, que, assim, foram violadas pelo Tribunal “a quo”,

12ª - Sendo, por isso, competente para conhecer do mérito da presente causa, à luz do preceituado no art° 66° do CPC, que igualmente foi violado, o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro.”.

1.5. O Réu contra -alegou pela forma constante de fls. 254 e segs, concluindo:

“1ª - Para a caracterização do contrato de empreitada como de di-reito público ou de direito privado, o que é determinante é a definição inicial do valor da adjudicação e o montante da comparticipação, e não a entrega efectiva desta.

2ª - Se a caracterização dependesse do efectivo pagamento da compar-ticipação, o contrato teria diferentes naturezas, consoante o respectivo montante ainda não atingisse, ou ultrapassasse a fasquia dos 50 %.

3ª - Ao prever -se que a comparticipação do Estado era paga através de autos de vistoria e de medição dos trabalhos, e com facturas das mesmas datas, está a excluir -se, ou quando muito a reduzir -se a proporções resi-duais e ínfimas o pagamento de fornecimentos ou de erros de medição

(estes já de todo excepcionais), onde não têm lugar autos de medição, porque não são “trabalhos”.

4ª - Logo, a totalidade da comparticipação concedida pelo Estado, já de si superior a 50 % do valor da adjudicação, destinava -se, toda ela, à obra do contrato de empreitada.

5ª - Desconhece -se a fiabilidade e actualidade da informação constante do site oficial da Segurança Social, que nada prova de particularmente útil para o presente caso, circunscrito, aliás, à questão de direito.

6ª - O contrato de empreitada celebrado entre Recorrente e Recorrido é um contrato administrativo e, consequentemente, criou entre ambas as partes uma relação jurídica administrativa.

7ª - O Recorrido é uma ‘pessoa colectiva de direito privado e interesse público’, identificada constitucionalmente como instituição particular de solidariedade social, constituída ao abrigo da legislação que regula estas entidades e a quem, por força deste estatuto, o Estado -Administração devolveu, ou delegou, uma parcela das suas funções em matéria de solidariedade e de assistência à infância, aos jovens e aos idosos, e a quem foi, por isso, conferido, pela Administração Pública, o estatuto de ‘pessoa colectiva de utilidade pública.

8ª - A obra, cuja construção o Recorrido promoveu, foi a do edifício do Centro Social, logo pois uma obra de interesse público, perfeita-mente inserida no seu escopo de entidade vocacionada para as tarefas de solidariedade e assistência social.

9ª - O Recorrido anunciou a abertura do concurso da construção com indicações precisas de que os encargos da obra seriam também suporta-dos pela Administração Pública e que o contrato seria regulado em todos os seus pormenores por normas de direito administrativo.

10ª - Pelo que a Recorrente sabia, desde o momento em que decidiu concorrer à construção da obra, que era uma obra também paga pelo Estado, que se destinava a fins de interesse público e que ao contrato seriam aplicadas as normas do regime jurídico das empreitadas de obras públicas.

11ª - E assim, tratando -se de um contrato administrativo, também por aqui (e talvez até sobretudo por aqui) só os tribunais administrativos são competentes para o julgamento dos respectivos litígios.

12ª - Face ao disposto no artigo 684° -A/1 CPCvil, o Recorrido pre-tende, no caso de, por mera hipótese, ser atendido o recurso agora interposto pela Recorrente, que seja apreciada a questão da natureza administrativa do contrato de empreitada.”

1.6. No Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido pelo Relator do processo o seguinte despacho:

“Construtora da Bairrada — Sociedade Construções, S.A., agra-vou do acórdão da Relação que, negando provimento ao agravo para si interposto, confirmou a sentença a julgar competente para conhecer da acção que propôs contra Centro Paroquial de Angeja o foro ad-ministrativo.

Ao abrigo do disposto no art. 107 -2 CPC competente para fixar o tribunal competente é o Tribunal de Conflitos.

Como assim, remetam -se os autos ao mesmo.”1.7. No Tribunal dos conflitos, a Exmª Procuradora da República

emitiu o seguinte parecer:“Trata -se de recurso do acórdão da Relação de Coimbra que não

foi interposto para este Tribunal de Conflitos, como impunha o n.º 2 do art. 107° do CPC, mas para o Supremo Tribunal de Justiça, que

Page 119: Decisões STA

236 237

não tomou conhecimento do recurso e ordenou a sua remessa a este Tribunal.

O referido acórdão, confirmando a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, julgou esse tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer das questões trazida pela autora, atribuindo tal competência aos tribunais administrativos.

Ora, conforme este Tribunal de Conflitos tem reiteradamente afirmado, a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, quer quanto aos seus elementos objectivos, quer quanto aos seus elementos subjectivos. A competência do tribunal não depende assim, da legitimidade das partes ou da procedência da acção.

No caso em análise, a Requerente, sob a forma de processo de in-junção, pretende obter o pagamento do Requerido, de determinada quantia, acrescida dos juros de mora, relativa ao fornecimento de bens e serviços, obrigação esta emergente de transacção comercial a que se refere o D.L. n.° 32/2003, de 17/02.

Como tal, é nos termos da pretensão assim formulada que deve ser analisada a competência do tribunal para dela conhecer, não obstando à fixação dessa competência o facto do Requerido sustentar que as facturas de que a Requerente se alega credora, como sendo parte de um preço, reportam -se a um contrato administrativo de empreitada de obras públicas e que, por isso, o litígio se refere à execução desse contrato, sendo consequentemente materialmente competentes para dele conhecer, os tribunais administrativos.

Na verdade, para decidir da competência material dos tribunais, im-porta caracterizar a relação estabelecida entre Requerente e Requerido, mas tal como o litígio é apresentado pela primeira.

Questão diferente é a de saber se a situação assim descrita está ou não sujeita ao regime jurídico invocado pela Requerente, a qual se prende com o mérito da acção. E, se não for esse regime o aplicável, mas sim o invocado pelo Requerido, o que sucederá é improceder a acção.

Pelo exposto, arrogando -se a Requerente a qualidade de credora da quantia cujo pagamento pretende, crédito esse que qualifica como emergente de transacção comercial, nos termos do DL n.° 32/2003, de 17/02, é materialmente competente para conhecer do pedido o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro.

Com efeito, a jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo -lhe atribuída em todas as áreas não atribu-ídas a outras ordens judiciais (arts. 211° da CRP e 66° do CPC).

Por outro lado, não podem considerar -se competentes os tribunais administrativos, nos termos dos arts. 212°, n° 3, da CRP e 4° do ETAF, só porque o Requerido se opôs à injunção, alegando que o litígio dizia respeito à execução de contrato de empreitada de obra pública. Isto porque, decidir esta questão seria entrar no conhecimento do mérito.

Sou, pois, de parecer que o recurso merece provimento, devendo ser revogado o acórdão recorrido e declarado competente o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro para conhecer do pedido.”

2. Obtidos os vistos dos Exmos Conselheiros intervenientes no pro-cesso, cumpre decidir.

2.1. O acórdão recorrido considerou assentes, com relevo para a decisão, os seguintes factos:

“1. O réu, Centro Social Paroquial de Angeja, é uma instituição de solidariedade social, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, mediante o registo definitivo dos seus estatutos em livro das

fundações de solidariedade social da Direcção -Geral da Segurança Social, com efeitos desde 28 de Junho de 1989. [fls.77]

2. O réu publicitou o anúncio do “concurso público para arrematação da empreitada de construção do Centro Social e Paroquial de Angeja” na III Série do Diário da República de 19 de Outubro de 2000, onde se refere expressamente que se trata de um “concurso público, nos termos do art. 80.º do DL 59/99 de 2 de Março”. [fls. 60]

3. Por oficio de 18 de Dezembro de 2000, O Centro Regional de Segurança Social do Centro informou o réu que fora autorizada, “pelo despacho superior de 2000/12/13, a adjudicação da empreitada de cons-trução do «Centro de Dia ATL» à firma «Construtora da Bairrada, Ld.a», por Esc. 135.001.304$00, valor da proposta apresentada a concurso público e ao qual acresce o IVA à taxa legal em vigor” e nesse mesmo oficio determinou -se que “à medida que a obra for sendo executada devem ser elaborados autos de vistoria e medição de trabalhos, conforme minutas anexas e enviados a este serviço acompanhados das facturas ou documentos equivalentes...” [fls. 62]

4. Por ofício de 10.12.2001, o Centro Regional de Segurança Social participa ao réu: “tendo em atenção as capacidades definidas para cada uma das valências inscritas e sendo o custo/máximo por utente de 1.300 contos — 100 contos e 900 contos, respectivamente — a comparticipação da Segurança Social foi definida com base nos 80 %, calculados ao abrigo dos arts 3º, 4º e 5º da Portaria 138/88 de 01 de Março com o limite de 43.000 contos para as valências de idosos e 29.000 contos para o ATL. Conforme consta do ponto 1 do art. 5° o financiamento inclui, além do custo da construção propriamente dito, os encargos com a aquisição do equipamento fixo e móvel necessário ao seu normal funcionamento. A comparticipação da Segurança Social é efectuada mediante a apresen-tação de Autos de Vistoria e Medição de Trabalhos, acompanhados de facturas ou documentos equivalentes...” [fls. 67]”

2.2. O Direito2.2.1. Como resulta do antecedente relato, constitui objecto do pre-

sente processo decidir a questão da competência, em razão da matéria, sobre que se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra – o qual confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, que se julgou incompetente para conhecer da presente acção, por considerar competente, para o efeito, o Tribunal Administrativo de Círculo – e fixar qual o tribunal a quem compete apreciar e decidir a acção em causa, dirimindo este conflito “impróprio” de jurisdição.

Vejamos, pois:O Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, onde foi proposta a acção

em análise, declarou -se incompetente para o conhecimento da mesma, por considerar, em síntese, que sendo o Réu financiado na maior parte do empreendimento pelo Estado, e estando sujeito ao controlo deste, conforme resultaria dos artos 32.º, 33.º e 34.º do DL 119/83, a relação que estabeleceu com a Autora, como dono de obra pública, deve situar--se no âmbito de uma contrato de empreitada de obra pública; face ao disposto nos artos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º, 9.º, n.º 2 e 51.º, g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor, o DL 129/84, de 27.4, a competência para o conhecimento da acção em causa cabe aos tribunais administrativos, o que é corroborado pelo artº 253.º, nos 1 e 2, do aludido DL 59/99.

Page 120: Decisões STA

238 239

O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso interposto desta decisão do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, aduzindo, embora, diferente fundamentação jurídica.

Com efeito, tendo como assente que a empreitada dos autos “– Foi financiada em 72.000 contos (43.000 + 29.000 contos), num preço glo-bal de 135.001.304$00; logo, em mais de metade (135.001.304$00: 2= 67.500.652$00), sendo irrelevante que o financiamento pudesse abranger também 80 % do valor dos equipamentos, porque estes não são objecto da empreitada e se esta esgotar o «tecto» da comparticipação, esses bens apenas e já não poderão ser candidatados ao financiamento;

– O financiamento é directo, incidindo sobre a própria obra, por entrega de fundos, mediante vistorias e medições pontuais (fls. 67) e não através de financiamento da actividade geral do réu, sem afectação específica e predeterminada; e

– O financiador – Instituto de Solidariedade e Segurança Social – é, enquanto instituto público, uma das entidades referidas no art. 3° do DL 55/99 [n° 1, alínea b].”, considerou que o contrato em causa estava subordinado ao regime do “contrato de empreitada de obras públicas”, estabelecido no DL 55/99, apenas por força da equiparação legal sem reserva a que se reporta o art.º 2.º, n.º 5 do DL 59/99 “e não porque: «– Estejamos em presença do próprio e paradigmático contrato admi-nistrativo (ou no interior de uma relação jurídica administrativa;

– A obra objecto da empreitada seja uma “obra pública” ou– O réu, dono da obra, seja, ele próprio “dono de coisa pública” por

ser uma das entidades “criadas para satisfazer de um modo específico necessidades de carácter geral”, compreendidas nas alíneas do art.º 3ºdo DL 55/99»

E, nesta linha de entendimento, concluiu que competentes para dirimir as questões postas pela Requerente na acção são os tribunais administra-tivos, nos termos do art.º 253.º, n.º 2 do DL 55/99, a cujo regime integral está submetida, por equiparação, a empreitada em causa.

A Recorrente põe em causa este julgamento do Tribunal da Relação de Coimbra, defendendo que a obra não foi financiada em mais de 50 % pelo ISSS, ao invés do considerado no acórdão recorrido, pelo que não estamos no âmbito de previsão do n.º 5 , do art.º 2.º, do DL 55/99, de 2 de Março, não podendo a empreitada em causa ser equiparada a empreitada de obra pública, sujeita ao regime do “contrato administrativo de emprei-tada de obras públicas” estabelecido no DL 55/99 de 2 de Março.

Por tal razão, não se aplicaria o preceituado no art.º 253.º, n.º 2 do DL 55/99, que expressamente atribui competência aos tribunais administrativos para dirimir as questões sobre interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, cabendo a competência para apreciar a acção aos tribunais comuns, nos termos do art.º 66.º do C.P.C.

Entende -se, todavia, que não lhe assiste razão.Na verdade, a decisão que considerou competentes os tribunais admi-

nistrativos para dirimir as questões relativas ao contencioso do contrato em causa, e concretamente aquela a que se reporta a acção intentada no T. Judicial de Oliveira do Bairro, merece ser confirmada, embora por fundamentos jurídicos diferentes dos enunciados no acórdão sob recurso, a que acima se aludiu.

Vejamos:2.2.2.De acordo com a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais

superiores, a competência em razão em razão da matéria (ou jurisdição)

afere -se em função da relação material controvertida, atendendo aos termos em que é formulada a pretensão do Autor, incluindo os seus fundamentos.

A Autora, ora recorrente, embora tenha invocada no seu requerimento inicial, como causa de pedir “o fornecimento de bens ou serviços”, reconheceu, na réplica, tal como o Réu excepcionou na respectiva Opo-sição ao pedido, que as facturas cujo pagamento reclamou no processo de injunção dizem respeito ao contrato de empreitada de construção do Centro Social e Paroquial de Angeja, celebrado com o Réu, após concurso público publicitado no DR III Série de 19.10.2000.

O ponto de discordância, a este propósito, passou, pois, a situar -se tão só na natureza pública (posição do Réu) ou privada (tese da Autora) do contrato de empreitada em causa, e nos consequentes reflexos quanto ao tribunal competente para dirimir o litígio, como, de resto, é também evidenciado pelas alegações da Autora nos recursos que interpôs para o Tribunal da Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça.

Não tem, assim, razão o M.º Público quando sustenta, no parecer emitido sobre a decisão a proferir no presente recurso, que, para a de-terminação da competência do Tribunal, se deverá atender, apenas, ao pedido formulado pela Autora no requerimento inicial do processo de injunção, arrogando -se a qualidade de credora de determinada quantia a título de “fornecimento de bens ou serviços”, com origem em transacção comercial a que se refere o DL 32/2003, de 17.2, e que, nessa perspectiva, competentes para o julgamento da causa seriam os tribunais comuns.

Prosseguindo:Não se conhecem decisões do Tribunal de Conflitos que tenham

incidido sobre situações idênticas à dos autos. Porém, questão seme-lhante à colocada no presente Conflito foi objecto de análise em alguns processos que correram termos na secção do contencioso administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tendo o tribunal concluído, em sentido uniforme e com identidade de fundamentos, pela qualificação como contratos de empreitada de obras públicas, geradores de rela-ções jurídicas administrativas, dos contratos em causa (acos de 8.10.02, p.º 1308/02; de 14.3.06, p.º 483/03; de 14.3.06, p.º 976/05).

A fundamentação que subsequentemente se aduzirá, segue de perto a linha argumentativa dos citados arestos, com a qual se concorda.

Assim:Antes de mais, há que partir do facto de que o Réu “Centro Paroquial

de Angeja”, adjudicante no contrato a que se reportam os autos, é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, tendo sido reconhecido como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, conforme Declaração publicada no DR III Série de 18/7/90.

Estas instituições, reguladas pelo Decreto -Lei nº. 119/93, de 25 de Fevereiro, são pessoas de direito privado, com autonomia, não admi-nistradas pelo Estado, que prosseguem os objectivos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do seu artigo 1.º (artigos 1.º e 3.º), que detêm o estatuto de utilidade pública (artigo 8.º), cujo contributo o Estado aceita, apoia e valoriza, e que são por ele apoiadas mediante acordos a estabelecer (art.º 4.º, nos 1 e 2).

Estão sujeitas à tutela do Estado, sendo necessária a respectiva autorização através dos serviços competentes, para a prática de de-terminados actos, nomeadamente a aquisição de bens imóveis a título oneroso ou a alienação de imóveis a qualquer título (art.º 32.º, n.º1).

Page 121: Decisões STA

240 241

Os seus orçamentos e contas são aprovados pelos corpos gerentes nos termos estatutários, mas carecem do visto dos serviços competen-tes (art.º 33.º n.º 1), que poderão ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções a estas instituições (art.º 34.º).

As empreitadas de obras de construção ou grande reparação deverão ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente. (art.º 23º)

Cabe agora analisar as disposições, com pertinência para o caso em apreço, relativas ao regime jurídico do contrato administrativo de empreitada de obras públicas.

De harmonia com as disposições conjugadas dos artos 2º, n.º 3 e 1.º, n.º 1 do DL 59/99, de 2 de Março (diploma que estabelece o regime jurídico das empreitadas de obras públicas e, cuja regulamentação foi adoptada no procedimento de celebração do contrato dos autos, conforme consta de Anúncio publicado no DR II Série de 19.10.00), entende -se por empreitada de obras públicas o contrato administrativo, celebrado mediante o pagamento de um preço, entre um dono de obra pública e um empreiteiro de obras públicas, que tenha por objecto, designadamente, obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, reparação, adaptação, beneficiação e demolição de bens imóveis, destinadas a preencher, por si mesmas, uma função económica ou técnica, executadas por conta de um dono de obra pública.

Por seu turno, o art.º 3.º do diploma legal em referência, estatui:“1— Para efeitos do disposto no presente diploma são considerados

donos de obras públicas:a) O Estado;b) Os institutos públicos;c) As associações públicas;d) As autarquias locais e outras entidades sujeitas a tutela adminis-

trativa;e) As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;f) As associações de que façam parte autarquias locais ou outras

pessoas colectivas de direito público;g) As empresas públicas e as sociedades anónimas de capitais maio-

ritária ou exclusivamente públicos, sem prejuízo do disposto no n.° 3 do artigo 4.°;

h) As concessionárias de serviço público, sempre que o valor da obra seja igual ou superior ao estabelecido para efeitos de aplicação das directivas da União Europeia relativas à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas;

i) As entidades definidas no número seguinte, assim como as asso-ciações dessas entidades.

2 -Para efeitos do disposto na alínea i) do número anterior são consi-deradas donos de obras públicas as entidades dotadas de personalidade jurídica, criadas para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial em relação às quais se verifique uma das seguintes circunstâncias:

a) Cuja actividade seja financiada maioritariamente por alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente número;

b) Cuja gestão esteja sujeita a um controlo por parte de alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente número;

c) Cujos órgãos de administração, de direcção ou de fiscalização sejam compostos, em mais de metade, por membros designados por alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente número.”

O estatuto do Recorrido de instituição privada de solidariedade social, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, permite, desde logo, garantir a verificação do requisito da satisfação das necessidades de ordem geral, a que se refere o corpo do n.º 2 do preceito transcrito (v. art.º 1.º, n.º 1 do DL 119/83, sobre a definição de instituição particular de solidariedade social; cf. ainda artos 1.º a 4.º, inc, dos Estatutos do recorrido, juntos a fls. 51 e segs).

E, se é certo que não resulta dos Estatutos do Réu Centro Social Pa-roquial de Angeja a verificação das circunstâncias a que se referem as alíneas a) e c) do n.º 2 do transcrito artigo 3.º, afigura -se inquestionável o preenchimento do requisito previsto na alínea b) do aludido número.

Na verdade, a enunciação supra efectuada dos vários aspectos do re-gime legal a que estão imperativamente sujeitas as instituições de solida-riedade social, por força do DL 119/83, de 25.2, designadamente, a tutela sobre elas exercida pelo Estado (artos 32.º e 34.º), a imposição de que as empreitadas de obras de construção ou grande restauro seja feita em concurso público (art.º 23.º), a necessidade do visto dos serviços compe-tentes em relação aos orçamentos e contas destas instituições (art.º 33.º)e a fiscalização a que estão sujeitas, podendo os serviços competentes or-denar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções às instituições e seus estabelecimentos (art.º 34.º), permite concluir que, para o efeito do disposto no nº 2 do art.º 3.º do DL 59/99, a gestão das instituições privadas da solidariedade social está sujeita ao controlo do Estado.

Assim sendo, estas instituições, entre as quais se insere o Réu recor-rido, são de considerar donas de obras públicas, o que significa que os contratos por elas celebrados para a execução, ou concepção/execução das obras a que se refere o art.º 1.º, n.º 1 do citado DL 59/99, de 2 de Março – como é o caso da obra de construção do Centro Social e Paroquial de Angeja – são contratos de empreitada de obras públicas, regulados pelo Decreto -Lei 59/99.

“São contratos praticados a coberto de uma ambiência de direito público, resultando do predomínio de preocupações de interesse público, que prosseguem, que as leva a não poder adoptar procedimentos dife-rentes dos nele tipificados e a actuar numa posição de supra ordenação que lhes possibilita o estabelecimento de cláusulas exorbitantes, ou seja, são contratos administrativos” (ac. do STA de 8.10/02, p.º 1308/02, acima citado).

Em face do exposto, é de concluir que o contrato, em cuja execução radicam as questões suscitadas no processo intentado no T. Judicial de Oliveira de Bairro, dizem respeito a empreitada de obras públicas, geradora de relações jurídicas administrativas.

Os tribunais competentes para o seu conhecimento são, pois, os tri-bunais administrativos, como concretamente é estatuído pelo art.º 253.º,n.º 2 do DL 59/99 e, sempre resultaria do preceituado no art.º 212.º, n.º 3 da CRP e 3.º do ETAF.

Dentro destes, a competência cabe ao tribunal administrativo de círculo (art.º 51.º, alínea j) do ETAF).

Assim, embora por fundamentos jurídicos diferentes – o que nos dispensa de tomar posição sobre as criticas dirigidas pela Recorrente à fundamentação usada no acórdão recorrido –, impõe -se concluir que a decisão recorrida, considerando competentes para o conhecimento da acção em debate os tribunais administrativos, merece ser confirmada.

Page 122: Decisões STA

242 243

3. Nos termos e pelas razões expostas, acordam em negar provimento ao recurso, declarando competentes, em razão de matéria, os tribunais administrativos para conhecer da acção em causa.

Sem custas.Lisboa, 19 de Dezembro de 2006. — Maria Angelina Domingues

(relatora) — Salvador Pereira Nunes da Costa — José Vaz dos Santos Carvalho — Rosendo Dias José — João Manuel Belchior.

Acórdão de 20 de Dezembro de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Apoio judiciário. Competência dos tribunais administrativos.

Sumário:

I — O n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, não deve ser entendido em sentido estritamente literal, como reportando -se apenas aos tribunais judiciais, ou seja, da jurisdição comum, sendo mais coerente com o princípio da unidade do sistema jurídico e com a teleo-logia da norma entender a referência ao «tribunal da comarca» como reportada ao tribunal de 1.ª instância da jurisdição a que se reporta a acção principal, com vista a cuja instauração ou prosseguimento o apoio judiciário foi solicitado.

II — Visando o apoio judiciário solicitado a instauração de uma acção administrativa impugnatória de uma deli-beração do Conselho Superior da Ordem dos Advoga-dos, que é sem dúvida da competência dos tribunais administrativos e fiscais, é aos tribunais desta ordem jurisdicional que cabe conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa sobre o pedido de protecção jurídica, nos termos dos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da citada lei.

Conflito n.º 4/06 -70.Requerente: José Manuel Pereira Rodrigues, no conflito negativo de

jurisdição entre o 3.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Pais Borges.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:(Relatório)JOSÉ MANUEL PEREIRA RODRIGUES, identificado nos autos,

pretendendo intentar uma acção administrativa impugnatória de deli-beração do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, requereu, em 02.02.2005, ao Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de

Lisboa a respectiva Protecção Jurídica, nas modalidades de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e nomeação e pagamento de honorários de patrono.

Perante a decisão de indeferimento do seu pedido, de 18.03.2005, fundada em alegada impossibilidade de apreciação por falta de junção de documentos de prova da sua insuficiência económica, o requerente impugnou judicialmente esta decisão em petição dirigida ao TAF de Lisboa, em processo a que foi atribuído o nº 1287/05.8BELSB – 2º Juízo, peticionando a anulação daquele despacho de indeferimento e a consequente concessão do apoio judiciário requerido.

Enviado o processo ao TAFL, por a decisão de indeferimento ter sido mantida, nos termos do nº 3, in fine, do art. 27º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, foi, por despacho judicial de 19.05.2005, declarada a incompetência absoluta daquele Tribunal, por violação de regra de com-petência em razão da matéria, e considerado competente para conhecer da impugnação o Tribunal Judicial de 1ª Instância de Lisboa.

Tendo o processo sido remetido aos Tribunais Cíveis de Lisboa, e distribuído ao 3º Juízo Cível – 3ª Secção, com o nº 3847/05.8TJLSB, ali veio a ser proferido, a 18.07.2005, despacho judicial em que foi excepcionada a incompetência absoluta dos tribunais cíveis para co-nhecer daquela impugnação, considerando -se para tal competente o TAF de Lisboa.

Tendo ambas as decisões transitado em julgado (cfr. certidões de fls. 45 e 54), veio o requerente, ao abrigo do disposto nos arts. 116º, nº 1 e 117º do CPCivil, pedir a resolução do conflito negativo de jurisdição, requerendo que seja declarado qual o tribunal competente em razão da matéria para apreciar a impugnação em causa.

A Exma magistrada do Ministério Público neste Tribunal dos Confli-tos, sustentando que o texto da norma do art. 28º, nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho (ao aludir ao “tribunal da comarca”) não pode ser tomado no seu sentido literal, pronunciou -se pela atribuição da competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, atendendo a que, no caso em análise, o apoio judiciário visa a impugnação de decisão proferida pelo Conselho Superior da Ordem dos Advogados, para cuja apreciação é competente o TAF de Lisboa.

Colhidos nos vistos, cumpre decidir.(Fundamentação)Está em causa, no presente conflito negativo, a determinação de qual

a jurisdição (comum ou administrativa e fiscal) a que cabe conhecer da impugnação judicial de decisão final sobre pedido de protecção jurídica, prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, solicitada com vista à instauração de uma acção administrativa (no caso, impugnatória de uma deliberação do Conselho Superior da Ordem dos Advogados), uma vez que os dois tribunais em conflito (TAF de Lisboa e 3º Juízo Cível de Lisboa) declinaram, atribuindo -a reciprocamente, a competência para o conhecimento dessa impugnação.

Este Tribunal dos Conflitos teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão em apreço, em situações idênticas, em que estava em causa igualmente uma decisão administrativa de indeferimento de apoio judiciário solicitado com vista à instauração de uma pretensão nos tribunais administrativos e fiscais, considerando serem estes os tribu-nais competentes para o seu conhecimento – cfr. os recentes Acs. de

Page 123: Decisões STA

244 245

06.07.2006 – Proc. 7/06, de 22.06.2006 – Proc. 10/06, cuja orientação, que ora se reitera, seguiremos de perto.

No mesmo sentido se pronunciou igualmente o STJ, no Ac. de 22.09.2005 – Proc. 5B1248, sufragando uma interpretação extensiva do art. 29º, nº 1 da anterior lei do apoio judiciário (Lei nº 30 -E/2000, de 20 de Dezembro), correspondente ao art. 28º da actual lei.

Dispõem os referidos normativos da Lei nº 34/2004, de 29 de Ju-lho:

Artigo 27ºImpugnação judicial

1 – A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de pro-tecção jurídica ou no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados que negou nomeação de patrono, no prazo de 15 dias após o conhecimento da decisão.

(…)3 – Recebida a impugnação, o serviço de segurança social ou o

Conselho Distrital da Ordem dos Advogados dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo -a, enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal competente.

Artigo 28ºTribunal competente

1 – É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente.

2 – Nas comarcas onde existem tribunais judiciais de competência especializada ou de competência específica, a impugnação deve respeitar as respectivas regras de competência.

(…)

Importa, desde já, sublinhar que a tarefa interpretativa a encetar deverá necessariamente ter em conta que a Lei nº 34/2004 (pese em-bora uma manifesta falta de rigor técnico), concretizando a imposição constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP), assegura que “o regime de apoio judiciário aplica -se em todos os tribunais e nos julgados de paz, qualquer que seja a forma do processo” (art. 17º, nº 1), o que traduz uma garantia de acesso ao direito e aos tribunais necessariamente extensiva a todos os tribunais da nossa organização judiciária, previstos no art. 209º da Constituição.

Por outro lado, o apoio judiciário constituía, tradicionalmente, uma questão incidental do processo principal, ou seja, daquele (instaurado ou a instaurar) para o qual a pretensão de apoio era solicitada.

E, tendo o mesmo sido desjudicializado, passando a ter natureza ad-ministrativa, por razões de ordem prática e de eficácia processual, não desapareceram contudo os motivos que aconselhavam um tratamento dessa questão incidental juntamente com a causa principal a que se reporta, assim se justificando, em caso de judicialização impugnatória, uma aproximação do processo a cuja instauração ou prosseguimento se reporta a protecção jurídica solicitada.

Como se pondera no Ac. do STJ atrás citado:“Tal é o regime para a jurisdição comum, e não é aceitável que o

legislador tivesse querido uma solução oposta para as outras ordens jurisdicionais. Ou seja, num caso a proximidade dos autos e noutro o seu desfasamento completo, que não é só de tribunais mas de jurisdições.

Aliás, e salvo o devido respeito, é contraditório invocar a separação das jurisdições para consagrar uma solução em que uma delas fica a decidir o que, em termos substanciais, é um incidente de uma outra”.

Nesta conformidade, afigura -se que o texto do citado nº 1 do art. 28º da Lei nº 34/2004 não deve ser entendido em sentido estritamente literal, como reportando -se apenas aos tribunais judiciais, ou seja, da jurisdição comum, sendo mais coerente com o princípio da unidade do sistema jurídico e com a teleologia da norma entender a referência ao “tribunal da comarca”como reportada ao tribunal de 1ª instância da jurisdição a que se reporta a acção principal, com vista a cuja instauração ou pros-seguimento o apoio judiciário foi solicitado.

Na situação sub judice, e tendo em conta que o apoio judiciário pre-tendido visa a instauração de uma acção administrativa impugnatória de uma deliberação do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, que é sem dúvida da competência dos tribunais administrativos e fiscais, é aos tribunais desta ordem jurisdicional que cabe conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa sobre o pedido de protecção jurídica, nos termos dos arts. 27º e 28º, nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.

(Decisão)Com os fundamentos expostos, acordam em resolver o presente

conflito de jurisdição, atribuindo a competência para o conhecimento da questão – impugnação judicial da decisão final sobre pedido de pro-tecção jurídica, prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho – à jurisdição administrativa, no caso, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa – 2º Juizo.

Sem custas.Lisboa, 20 de Dezembro de 2006. — Luís Pais Borges (relator) — Ma-

nuel Maria Duarte Soares — Rosendo Dias José — António da Silva Henriques Gaspar — Maria Angelina Domingues.

Acórdão de 20 de Dezembro de 2006.

Assunto:

Conflito de jurisdição. Apoio judiciário. Competência dos Tribunais Administrativos.

Sumário:

I — O n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, não deve ser entendido em sentido estritamente literal, como reportando -se apenas aos tribunais judiciais, ou seja, da jurisdição comum, sendo mais coerente com o princípio da unidade do sistema jurídico e com a teleo-logia da norma entender a referência ao «tribunal da

Page 124: Decisões STA

246 247

comarca» como reportada ao tribunal de 1.ª instância da jurisdição a que se reporta a acção principal, com vista a cuja instauração ou prosseguimento o apoio judiciário foi solicitado.

II — Visando o apoio judiciário solicitado a instauração de uma providência cautelar já intentada no tribunal administrativo, com vista a evitar uma situação de clandestinidade da requerente, perante a denegação, pelas autoridades administrativas, da «prorrogação de permanência» consignada no artigo 71.º, n.º 7, do Decreto Regulamentar n.º 6/2004, é aos tribunais desta ordem jurisdicional que cabe conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa sobre o pedido de protecção jurídica, nos termos dos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da citada lei.

Conflito nº 20/06 -70.Requerente: Magistrado do Ministério Público, no conflito negativo

de jurisdição entre o 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa (2.ª Secção) e os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Pais Borges.

Acordam no Tribunal dos Conflitos:(Relatório)A MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO neste Supremo

Tribunal Administrativo vem, ao abrigo do disposto nos arts. 115º nº 1, 116º e 117º, todos do CPCivil, requerer a resolução do conflito de juris-dição entre o 4º Juízo Cível da comarca de Lisboa /2ª Secção e o TAF de Lisboa /2ª Secção, com os seguintes fundamentos:

SVITLANA BETYAN, cidadã ucraniana, a residir em Portugal in-documentada (id. a fls. 6), ao pretender prevalecer -se do disposto no art. 71º, nº 7 do Decreto Regulamentar nº 6/2004, relativo à “prorrogação de permanência”, foi notificada de que os procedimentos ao abrigo do citado diploma legal estavam suspensos.

Por tal motivo, intentou no TAF de Lisboa uma providência cautelar com vista a evitar a situação de clandestinidade, a qual foi distribuída ao 2º Juízo daquele Tribunal, sob o nº 3137/B4.3 BELSB, tendo solicitado no Instituto de Segurança Social de Lisboa protecção jurídica para efeitos da referida providência cautelar.

Perante a decisão de indeferimento do seu pedido de protecção jurí-dica, a requerente impugnou judicialmente esta decisão, peticionando a anulação daquele despacho de indeferimento e a consequente concessão do apoio judiciário requerido, tendo a impugnação sido remetida aos Juízos Cíveis, e dado origem aos Autos de Recurso de Impugnação de Apoio Judiciário nº 2438/05.8, do 4º Juízo.

Por decisão de 08.05.2006, o Sr. Juiz do 4º Juízo Cível julgou aquele tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento da impugnação, por considerar que as regras de competência do art. 28º da Lei nº 34/2004 se reportam às duas jurisdições, determinando a remessa dos autos, após trânsito do seu despacho, ao 2º Juízo do TAF de Lisboa (3ª Unidade Orgânica), que considerou o competente, para efeitos de apensação aos autos de procedimento cautelar ali pendentes.

Recebida a impugnação no TAF de Lisboa, ali veio a ser proferido, no processo nº 1612/06.4, BELSB, o despacho judicial de 20.06.2006, no qual se declarou igualmente este Tribunal incompetente em razão da matéria, agora sob o entendimento de que as referidas regras de competência constantes do citado art. 28º se reportam exclusivamente à jurisdição comum.

Ambas as decisões transitaram em julgado, respectivamente a 25.05.2006 e a 06.07.2006 (cfr. certidão de fls. 6 a 15).

Colhidos nos vistos, cumpre decidir.(Fundamentação)Está em causa, no presente conflito negativo, a determinação de qual

a jurisdição (comum ou administrativa e fiscal) a que cabe conhecer da impugnação judicial de decisão final sobre pedido de protecção jurídica (prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho) solici-tada para efeitos de uma providência cautelar intentada nos tribunais administrativos com vista a evitar uma situação de clandestinidade da requerente, perante a denegação, pelas autoridades administrativas, da “prorrogação de permanência” consignada no art. 71º, nº 7 do Decreto Regulamentar nº 6/2004.

Este Tribunal dos Conflitos teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão em apreço, em situações idênticas, em que estava em causa igualmente uma decisão administrativa de indeferimento de apoio judiciário solicitado com vista à instauração de uma pretensão nos tribu-nais administrativos e fiscais, considerando serem estes os tribunais com-petentes para o seu conhecimento – cfr. os recentes Acs. de 06.07.2006 – Proc. 7/06, de 22.06.2006 – Proc. 10/06, e de 20.06.2006 – Proc. 13/06, cuja orientação, que ora se reitera, seguiremos de perto.

No mesmo sentido se pronunciou igualmente o STJ, no Ac. de 22.09.2005 – Proc. 5B1248, sufragando uma interpretação extensiva do art. 29º, nº 1 da anterior lei do apoio judiciário (Lei nº 30 -E/2000, de 20 de Dezembro), correspondente ao art. 28º da actual lei.

Dispõem os referidos normativos da Lei nº 34/2004, de 29 de Ju-lho:

Artigo 27ºImpugnação judicial

1 – A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados que negou nomeação de patrono, no prazo de 15 dias após o conheci-mento da decisão.

(…)3 – Recebida a impugnação, o serviço de segurança social ou o

Conselho Distrital da Ordem dos Advogados dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo -a, enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal competente.

Artigo 28ºTribunal competente

1 – É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que

Page 125: Decisões STA

248 249

apreciou o pedido de protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente.

2 – Nas comarcas onde existem tribunais judiciais de competência especializada ou de competência específica, a impugnação deve res-peitar as respectivas regras de competência.

(…)Importa, desde já, sublinhar que a tarefa interpretativa a encetar deverá

necessariamente ter em conta que a Lei nº 34/2004 (pese embora uma manifesta falta de rigor técnico), concretizando a imposição constitu-cional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP), assegura que “o regime de apoio judiciário aplica -se em todos os tribunais e nos julgados de paz, qualquer que seja a forma do pro-cesso” (art. 17º, nº 1), o que traduz uma garantia de acesso ao direito e aos tribunais necessariamente extensiva a todos os tribunais da nossa organização judiciária, previstos no art. 209º da Constituição.

Por outro lado, o apoio judiciário constituía, tradicionalmente, uma questão incidental do processo principal, ou seja, daquele (instaurado ou a instaurar) para o qual a pretensão de apoio era solicitada.

E, tendo o mesmo sido desjudicializado, passando a ter natureza ad-ministrativa, por razões de ordem prática e de eficácia processual, não desapareceram contudo os motivos que aconselhavam um tratamento dessa questão incidental juntamente com a causa principal a que se reporta, assim se justificando, em caso de judicialização impugnatória, uma aproximação do processo a cuja instauração ou prosseguimento se reporta a protecção jurídica solicitada.

Como se pondera no Ac. do STJ atrás citado:“Tal é o regime para a jurisdição comum, e não é aceitável que o

legislador tivesse querido uma solução oposta para as outras ordens jurisdicionais. Ou seja, num caso a proximidade dos autos e noutro o seu desfasamento completo, que não é só de tribunais mas de juris-dições.

Aliás, e salvo o devido respeito, é contraditório invocar a separa-ção das jurisdições para consagrar uma solução em que uma delas fica a decidir o que, em termos substanciais, é um incidente de uma outra”.

Nesta conformidade, afigura -se que o texto do citado nº 1 do art. 8º da Lei nº 34/2004 não deve ser entendido em sentido estritamente literal, como reportando -se apenas aos tribunais judiciais, ou seja, da jurisdição comum, sendo mais coerente com o princípio da unidade do sistema jurídico e com a teleologia da norma entender a referência ao “tribunal da comarca” como reportada ao tribunal de 1ª instância da jurisdição a que se reporta a acção principal, com vista a cuja instauração ou prosseguimento o apoio judiciário foi solicitado.

Na situação sub judice, e tendo em conta que o apoio judiciário pre-tendido se reporta a uma providência cautelar já intentada no tribunal administrativo, com vista a evitar uma situação de clandestinidade da requerente, perante a denegação, pelas autoridades administrativas, da “prorrogação de permanência” consignada no art. 71º, nº 7 do Decreto Regulamentar nº 6/2004, é aos tribunais desta ordem jurisdicional que cabe conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa sobre o pedido de protecção jurídica, nos termos dos arts. 27º e 28º, nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.

(Decisão)Com os fundamentos expostos, acordam em resolver o presente

conflito de jurisdição, atribuindo a competência para o conhecimento da questão – impugnação judicial da decisão final sobre pedido de pro-tecção jurídica, prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho – à jurisdição administrativa, no caso, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa – 2º Juizo.

Sem custas.Lisboa, 20 de Dezembro de 2006. — Luís Pais Borges (relator)

— Manuel Maria Duarte Soares — Rosendo Dias José — António da Silva Henriques Gaspar — Maria Angelina Domingues.

Page 126: Decisões STA

APÊNDICESUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOPublicação periódica ordenada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho,e pelo artigo 30.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos,aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro.

���������������� ���

Depósito legal n.º 25 495/89