debord, guy - panegírico

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PANEGÍRICO GUY DEBORD i N R A D

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cinema, biografia

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Page 1: DEBORD, Guy - Panegírico

PANEGÍRICO

GUY DEBORD i

N R A D

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PANEGÍRICO

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CONRAD EDITORA DO BRASIL LTDA.

DIREÇÃO

André Forastieri Cristiane Monti Rogério de Campos

GERENTE DE PRODUTOS

André Martins

CONRAD LIVROS

DIRETOR EDITORIAL

Rogério de Campos COORDENADORA EDITORIAL

Priscila Ursula dos Santos ASSISTENTE EDITORIAL

Ricardo Liberal

ASSISTENTE DE ARTE

Marcelo Ramos

Page 4: DEBORD, Guy - Panegírico

PANEGÍRICO GUY DEBORD

CLÁSS ICOS C O N R A D

C O N R A D L I V R O S

Page 5: DEBORD, Guy - Panegírico

Copyright © Editions Gallimard 1993. Copyright desta edição © 2002, Conrad Editora do Brasil Ltda.

CAPA: Marcelo Ramos (ilustração de Asger Jorn)

TRADUÇÃO: Edison Cardoni

PRODUÇÃO GRÁFICA: Ed Wilson

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO: Anísio Arruda

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Debord, Guy, 1931-Panegírico / Guy Debord ; [tradução Edison Cardoni).

-- São Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2002. --(Clássicos Conrad)

Titulo original: Panégyrique. ISBN 85-87193-77-5

1. Debord, Guy, 1931- 2. Radicais - França -Biografia I. Título. II. Série.

n 9 , 1 n q CDD-303.484092

índices para catálogo sistemático: 1. Radicais : Mudanças sociais : Biografia 303.484092

CONRAD LIVROS Rua Maracaí 185 Aclimação

São Paulo-SP 01534-030 Fone: 11 3346.6088 Fax: 11 3346.6078

e.mail: [email protected] site: www.conradeditora.com.br

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"Panegírico significa mais que elogio. O elogio con-tém, sem dúvida, o louvor do personagem, mas não exclui uma ponta de crítica, uma certa censu-ra. O panegírico não comporta nem censura nem crítica."

Littré Dictionnaire de la langue française

"Por que queres saber minha origem? Os homens são como as folhas. Quando chega o outono, elas caem e são arrastadas pela terra, e novamente vem a primavera e reverdece tudo. Assim são os ho-mens, nasce uma geração e a outra perece."

Riada, Canto VI

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"Quanto a seu plano, podemos facilmente demons-trar que ele não o tem, que escreve quase ao aca-so, baralhando os fatos, relatando-os sem seqüên-cia e sem ordem; confundindo, ao tratar de uma época, o que pertence a outra; desdenhando justi-ficar suas acusações e seus elogios; adotando sem exame, e sem esse espírito crítico tão necessário ao historiador, julgamentos falsos, produtos da prevenção, rivalidade ou inimizade e dos exageros de humor ou da malevolência; atribuindo a uns ações e a outros discursos incompatíveis com suas posições e características; nunca citando outro tes-temunho que não seja o dele mesmo nem outra referência além de suas próprias assertivas."

General Gourgaud Examen critique de l'ouvrage de M.

le comte Philippe de Ségur

Toda minha vida transcorreu em tem-pos turbulentos, de extremas perturbações

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na sociedade e imensas destruições. Tomei parte nesses tumultos. Tais circunstancias são suficientes, sem dúvida, para impedir que até o mais transparente dos meus atos ou raciocínios receba aprovação universal. Mas também acredito que numerosos entre eles podem ter sido mal compreendidos.

Clausewitz, no início de sua história sobre a campanha de 1815, dá este resumo do seu método: "Em toda crítica estratégi-ca, o essencial é colocar-se exatamente na posição dos que têm um papel ativo nos acontecimentos; é verdade que, freqüente-mente, isso é muito difícil". A dificuldade consiste em saber quais eram "todas as cir-cunstâncias em que se encontravam os ato-res" num momento determinado, a fim de estar, assim, em condições de julgar escru-pulosamente a série de suas escolhas na condução de sua guerra: como fizeram o que fizeram e o que, eventualmente, poderiam ter feito de diferente. É necessário saber o que eles pretendiam antes de tudo e, é cla-ro, o que eles presumiam, sem esquecer o que eles ignoravam. E o que eles ignoravam não era somente o resultado, ainda por vir, de suas próprias operações se chocando com as operações que lhes seriam opostas, mas

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também muito daquilo que já se fazia efeti-vamente pesar contra eles, nas disposições ou nas forças do campo adversário, e que, no entanto, lhes permanecia desconhecido. E no fundo eles não souberam o valor exato que convinha atribuir às suas próprias for-ças até que elas se deixassem conhecer, jus-tamente no momento de sua utilização, cujo resultado, ademais, algumas vezes modifi-ca esse valor tanto quanto o põe à prova.

Aquele que tenha conduzido semelhante ação, em virtude da qual grandes conse-qüências repercutiram ao longe, no mais das vezes terá sido praticamente o único a saber de suas mais importantes facetas que, por diversas razões, permaneceram desconheci-das, enquanto outras foram desde então es-quecidas, simplesmente porque seu tempo passou ou porque morreram aqueles que poderiam lembrá-las. E mesmo o testemu-nho dos vivos não é sempre acessível. Um não sabe verdadeiramente escrever; outro está constrangido por interesses ou ambições mais atuais; um terceiro pode ter medo; e o último corre o risco de se inquietar com a preocupação de preservar a própria reputa-ção. Como veremos, não estou preso a ne-nhum desses obstáculos. Então, falando tão

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friamente quanto possível daquilo que sus-citou muita paixão, vou contar o que fiz. Se-guramente, uma grande quantidade de críti-cas injustas, senão todas, logo se verão varridas como pó. E eu me persuado de que as grandes linhas da história de meu tempo sobressairão mais claramente.

Serei obrigado a entrar em detalhes, o que pode me levar para bem longe. Não me recuso a encarar a amplidão da tarefa. Dela me ocuparei pelo tempo que for ne-cessário. Mas, ainda assim, não direi, como Sterne fez ao começar a escrever Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy: "Não vou me apressar, mas sim escrever tranqüilamente e publicar minhas memó-rias à razão de dois volumes por ano se o leitor quiser suportar meu passo e se eu chegar a um arranjo aceitável com meu editor". Porque, seguramente, não quero me comprometer a publicar dois volumes por ano, nem mesmo prometer não importa qual outro ritmo menos acelerado.

Meu método será muito simples. Fala-rei do que amei. À luz disso, todo o resto se evidenciará e se fará compreender suficien-temente.

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"O tempo enganoso nos dissimula seus traços, mas ele passa, célere", diz o poeta Li Po, que acrescenta: 'Talvez mantenhais ain-da a índole alegre da juventude - mas vos-sos cabelos já estão todos brancos. Para que vos lastimardes?" Não pretendo me lastimar por nada, e certamente não pela maneira como pude viver.

Tanto menos eu quero dissimular-lhe os traços que sei exemplares. Que alguém se disponha a relatar precisa e efetivamente a vida que levou é algo que sempre foi raro em virtude das numerosas dificuldades do tema. E talvez ainda mais precioso o será no pre-sente, tratando-se de uma época em que tan-tas coisas têm sido mudadas, na surpreen-dente velocidade das catástrofes. Época da qual se pode dizer que quase todas as refe-rências e padrões têm sido subitamente tra-gados juntamente com o próprio solo onde estava edificada a antiga sociedade.

Em todo caso, me é fácil ser sincero. Não me defronto com nada, em qualquer assunto, que possa me provocar o menor constrangimento. Jamais acreditei nos va-lores assimilados por meus contemporâ-neos, e eis que atualmente ninguém mais

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reconhece nenhum deles. Lacenaire, talvez ainda muito escrupuloso, me parece que exagerou a responsabilidade em que tinha diretamente incorrido pela morte violenta de um número muito reduzido de pessoas: "Penso valer mais que a maioria dos ho-mens que conheci, mesmo com o sangue que me tinge", escrevia ele a Jacques Arago. ("Mas vós estáveis lá conosco, senhor Arago, nas barricadas, em 1832. Lembrai-vos do Convento de Saint-Merry... Vós não conhe-ceis a miséria, senhor Arago. Jamais tives-tes fome", haveriam de responder um pou-co mais tarde, não a ele, mas a seu irmão, nas barricadas de junho de 1848, os ope-rários a quem este último viera arengar, tal qual tribuno romano, argumentando sobre o abuso que é insurgir-se contra as leis da República.)

Não há nada mais natural que alguém enxergar todas as coisas a partir de si, con-siderando-se o centro do mundo. Assim pro-cedendo, descobre-se capaz de condenar o mundo sem nem mesmo querer ouvir seus discursos enganosos. É preciso apenas de-marcar as fronteiras precisas que inevitavel-mente limitam essa autoridade: seu próprio lugar no decorrer do tempo e na sociedade; o

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GUY DEBORD l i

que fez e o que conheceu; suas paixões do-minantes. "Quem pode escrever a verdade senão aqueles que a sentiram?" O autor das mais belas Memórias escritas no século XVII, que não escapou da inepta crítica de ter fa-lado de sua conduta sem manter as aparên-cias da mais fria objetividade, fizera a res-peito dela essa oportuna observação, que sustentava citando a opinião do presidente de Thou, segundo a qual "apenas são verda-deiras as histórias escritas por homens sin-ceros o suficiente para contar a verdade a respeito de si mesmos".

Talvez alguém se espante por eu pare-cer implicitamente me comparar, aqui e ali, a respeito de algum pormenor, a tal ou qual grande espírito do passado ou simplesmen-te a personalidades historicamente notáveis. Cometerá um erro. Não pretendo me asse-melhar a quem quer que seja e, ademais, considero que a época atual é muito pouco comparável ao passado. Mas diversos per-sonagens do passado, muito diferentes en-tre si, ainda são comumente bastante co-nhecidos. Eles concentram uma significação instantaneamente comunicável a respeito das condutas ou inclinações humanas. Quem ignore o que eles tenham sido poderá

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verificá-lo facilmente. E fazer-se compreen-der é sempre um mérito para quem escreve.

Deverei empregar um grande número de citações. Jamais, acredito, para conferir autoridade a uma demonstração qualquer, mas apenas para fazer sentir do que terão sido urdidos, em profundidade, esta aventu-ra e eu mesmo. As citações são úteis nos períodos de ignorância ou de crenças obscu-rantistas. As alusões sem aspas a outros tex-tos que se sabe muito célebres, como vemos na poesia clássica chinesa, em Shakespeare ou em Lautréamont, devem ser reservadas a tem-pos mais abundantes em cérebros capazes de reconhecer a frase original bem como a perspectiva que sua nova aplicação introdu-ziu. Atualmente, quando até mesmo a ironia passa, com freqüência, despercebida, corre-se o risco de ver a expressão ser-nos abusiva-mente atribuída e, com a mesma precipita-ção, ser reproduzida em termos errados. A deselegãncia do antigo procedimento das ci-tações exatas será compensada, espero, pela qualidade de sua seleção. Elas surgirão na-turalmente no transcorrer deste relato: com-putador nenhum poderia me fornecer essa pertinente variedade.

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Aqueles que querem escrever às pres-sas, de forma despropositada, o que nin-guém lerá uma só vez até o fim, nos jornais ou nos livros, exaltam com multa convicção o estilo da linguagem falada, porque a con-sideram muito mais moderna, direta, fácil. Mas eles mesmos não sabem falar. Seus lei-tores tampouco, pois a linguagem efetiva-mente falada nas modernas condições de vida se encontra socialmente reduzida à sua representação, eleita indiretamente pelo sufrágio da mídia, composta por cerca de seis ou oito expressões fastidiosamente re-petidas e menos de duas centenas de vocá-bulos, a maioria dos quais, neologismos, estando esse conjunto sujeito à renovação de um terço a cada seis meses. Tudo isso favorece uma forma de empatia ligeira. Ao contrário, eu por minha parte vou escrever sem esforço e sem cansaço, como a coisa mais natural e mais cômoda do mundo, a língua que aprendi e, na maior parte das circuns-tâncias, falei. Não cabe a mim modificá-la. Os ciganos consideram, com razão, que so-mente devemos dizer a verdade em nossa própria língua; na do inimigo, a mentira deve reinar. Outra vantagem: fazendo referência ao vasto corpus de textos clássicos publica-dos em francês ao longo dos cinco séculos

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anteriores ao meu nascimento, sobretudo nos dois últimos, será sempre fácil traduzir-me convenientemente em qualquer idioma do futuro, mesmo quando o francês já tiver se tornado uma língua morta.

Quem poderia ignorar, em nosso sé-culo, que aquele que se descobre interessa-do em afirmar instantaneamente não impor-ta o quê vai dizê-lo sempre não importa como? O imenso crescimento dos meios da dominação moderna marcou de tal modo o estilo de seus enunciados que, se a com-preensão acerca do desenvolvimento dos obscuros raciocínios do poder fora, por muito tempo, um privilégio de pessoas real-mente inteligentes, agora ela se tornou for-çosamente familiar até para os espíritos mais vagarosos. É nesse sentido que é lícito pen-sar que a veracidade desta narrativa sobre meu tempo será satisfatoriamente compro-vada por seu estilo. O próprio tom deste re-lato será garantia suficiente, pois todos com-preenderão que somente à força de ter vivido desta maneira pode-se alcançar a excelên-cia neste gênero de exposição.

Sabemos, com toda certeza, que a guer-ra do Peloponeso ocorreu. Mas é somente

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por intermédio de Tucídides que se conhece seu desenrolar implacável e suas lições. Nenhuma revisão é possível; mais que isso, nenhuma seria útil, porque tanto a veraci-dade dos fatos quanto a coerência do pen-samento tão bem se impuseram aos con-temporâneos e à posteridade próxima que qualquer outro testemunho se sentiu desen-corajado diante da dificuldade de apresen-tar uma interpretação diferente dos aconte-cimentos ou mesmo de fazer chicana acerca de algum pormenor.

E creio que se deverá proceder do mes-mo modo em relação à história que vou con-tar agora. Porque ninguém, durante muito tempo, terá a audácia de tentar demonstrar, não importa em relação a qual aspecto das coisas, o contrário do que eu tenha dito; quer procurando encontrar o menor elemento ine-xato nos fatos, quer sustentando outro ponto de vista em relação a eles.

Por mais convencional que se possa considerar o procedimento, penso não ser inútil esboçar aqui, em primeiro lugar e cla-ramente, a origem de tudo: a data e as con-dições gerais às quais remonta uma narra-tiva que, na seqüência, não deixarei de

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abandonar a toda confusão que é exigida por seu tema. É razoável supor que muitas coisas surgem na juventude e nos acompa-nham por muito tempo. Nasci em 1931, em Paris. A fortuna da minha família estava, desde então, muito abalada pelas conse-qüências da crise econômica mundial que, pouco antes, havia se iniciado nos Estados Unidos. O que restava dela não parecia po-der durar muito além da minha maiorida-de, o que, de fato, veio a suceder. Portanto, nasci virtualmente arruinado. Para ser exa-to, eu não ignorava que não devia esperar uma herança que, finalmente, não recebi. Mas, simplesmente, eu não dava a mínima importância a essas questões, tão abstra-tas, relativas ao futuro. Assim, durante todo o transcurso de minha adolescência, desli-zei lenta mas inevitavelmente para uma vida de aventuras, com os olhos abertos. Se, to-davia, pode-se dizer que eu tinha os olhos abertos a respeito dessa questão, eu os ti-nha igualmente abertos a respeito da maior parte das outras. Eu não podia sequer pen-sar em aprender uma única dessas sábias qualificações que conduzem a ocupar os em-pregos porque elas me pareciam completa-mente estranhas a minhas inclinações ou contrárias a minhas opiniões. As pessoas

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que eu admirava mais que ninguém no mun-do eram Arthur Cravan e Lautréamont, e eu sabia perfeitamente que, se tivesse con-sentido em prosseguir estudos universitá-rios, todos os seus amigos teriam me des-prezado, tanto quanto se eu estivesse resignado a exercer alguma atividade artís-tica; e se eu não tivesse podido contar com esses amigos certamente eu não admitiria me consolar com outros. Doutor em nada, eu me mantive firmemente afastado de toda aparência de participação nos meios que então se passavam por intelectuais ou ar-tísticos. Confesso que, nesse caso, meu mérito se encontrava bem temperado por minha soberba preguiça, como também por minhas escassas capacidades para enfren-tar os trabalhos de semelhantes carreiras.

Nunca dei mais que pouquíssima aten-ção às questões monetárias e absolutamente nenhum lugar à ambição de vir a ocupar alguma brilhante função na sociedade. É um traço tão raro entre meus contemporâneos que, por vezes, será, sem dúvida, conside-rado como inacreditável, mesmo em meu caso. No entanto, ele é verdadeiro e pôde ser verificado tão constante e duradoura-mente que o público terá de se acostumar

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com isso. Imagino que a causa tenha sido minha educação negligente, ministrada num terreno favorável. Nunca vi os burgueses trabalhando, com a vilania que forçosamente comporta seu gênero especial de trabalho. Quem sabe por essa razão, pude aprender nessa indiferença alguma coisa de bom a respeito da vida, mas, enfim, somente por ausência e privação. O momento da deca-dência de qualquer forma de superioridade social tem, certamente, alguma coisa de mais atraente do que seus vulgares pri-mordios. Fiquei apegado a essa preferência, que muito cedo comecei a sentir, e posso dizer que a pobreza me concedeu, princi-palmente, grandes períodos de ócio, por não ter de administrar bens arruinados e nem sonhar em recuperá-los participando da gestão do Estado. É verdade que saboreei prazeres pouco conhecidos das pessoas que seguiram as lamentáveis leis dessa época. É verdade, também, que cumpri rigorosa-mente numerosas obrigações de cuja exis-tência essas pessoas não fazem nem idéia. "Porque de nossa vida, enunciava cruamente em sua época a Règle du Temple, não vedes senão a aparência que está por fora... mas nada sabéis dos imperiosos mandamentos que estão por dentro." Devo ainda ressal-

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tar, para citar a totalidade das influências favoráveis que encontrei por lá, o fato evi-dente de então ter tido a oportunidade de ler numerosos bons livros, a partir dos quais sempre é possível chegar por si mesmo a todos os outros e até escrever os que ainda estiverem faltando. A síntese, bastante com-pleta, ficará por aqui.

Vi terminar, antes dos 20 anos, essa parte tranqüila da minha juventude. E mi-nha única obrigação era seguir sem freios todas as minhas inclinações, embora em condições difíceis. De início, voltei-me para um círculo muito atraente em que um niilismo extremado não queria mais saber de nada e muito menos prosseguir com o que tinha sido anteriormente admitido como o emprego da vida ou das artes. Sem difi-culdade, esse meio me reconheceu como um dos seus. Ali se extinguiram minhas últi-mas possibilidades de um dia voltar ao cur-so normal da existência. Assim pensei, e o que se seguiu o comprovou.

Eu devo ter menos propensão que ou-tros para calcular por que essa escolha tão abrupta, que tanto me comprometeu, foi espontânea, produto de uma irreflexão da

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qual jamais me arrependi e que, mais tar-de, após ter tido a oportunidade de mensurar detidamente as conseqüências, jamais la-mentei. Pode-se bem dizer, pensando em termos de riqueza ou reputação, que eu não tinha nada a perder, mas acontece que tam-bém não tinha nada a ganhar.

Mais claramente do que estiveram seus precursores de duas ou três gerações pre-cedentes, esse meio dos empreendedores de demolições, estava, na época, inteiramente entrelaçado com as classes perigosas. Ao se viver com elas leva-se, em grande parte, a mesma vida. Isso, evidentemente, deixa marcas duradouras. Mais da metade das pessoas que, ao longo dos anos, conheci de perto tinha estado uma ou várias vezes em prisões de diversos países; muitas, sem dú-vida, por razões políticas, mas a grande maioria por delitos ou crimes de direito co-mum. Portanto, conheci sobretudo os rebel-des e os pobres. Vi à minha volta, em gran-de quantidade, indivíduos que morriam jovens e nem sempre por suicídio, fato co-mum naquela época. Sobre essa questão da morte violenta, ressalto, sem poder avançar uma explicação plenamente racional do fe-nômeno, que o número de meus amigos que

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foram mortos à bala constitui uma porcen-tagem bastante inusitada, fora de operações militares, bem entendido.

Nossas únicas manifestações, manten-do-se raras e breves nos primeiros anos, pretendiam ser completamente inaceitáveis; de início sobretudo por sua forma e, mais tarde, ao se aprofundarem, sobretudo por seu conteúdo. E elas não foram aceitas. "A destruição foi minha Beatriz", escrevia Malarmé, que, em pessoa, havia sido o guia de alguns outros em explorações muito ar-riscadas. Para quem se dedica exclusiva-mente a fazer tais demonstrações históri-cas e, portanto, fora disso recusa o trabalho existente, é indispensável saber viver sobre-pujando o sistema do país. Eu tratarei do assunto mais adiante, de maneira bem de-talhada. Aqui, apenas para expor a questão em suas linhas gerais, eu diria que tão-so-mente me limitava a dar a vaga impressão de possuir grandes qualidades intelectuais e mesmo artísticas, das quais eu preferi pri-var minha época, que não me parecia mere-cer o seu emprego. Sempre encontrei gente para lamentar meu afastamento e, parado-xalmente, disposta a me ajudar a mantê-lo. Mas isso só pôde ser levado a bom termo

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porque nunca fui procurar ninguém onde quer que fosse. Meu entourage sempre foi composto apenas por aqueles que vieram por si mesmos e souberam se fazer aceitar. Ig-noro se um único outro ousou se conduzir como eu, nessa época. É preciso convir, tam-bém, que a degradação de todas as condi-ções existentes emergiu justamente naque-le momento, como que dando razão à minha singular loucura.

Devo admitir da mesma forma - por-que nada pode permanecer puramente inal-terável no decurso do tempo -, que cerca de vinte anos depois, ou pouco mais, uma fração avançada de um público especializa-do pareceu começar a não mais rejeitar a idéia de que eu bem pudesse ter vários ta-lentos verdadeiros, que se sobressaíam, sobretudo, em comparação com a grande pobreza das descobertas e das repetições enfadonhas que por muito tempo eles acre-ditaram ter a obrigação de admirar. E isso apesar de o único emprego discernível de meus dons dever ser encarado como com-pletamente nefasto. E então, naturalmen-te, fui eu que, de todas as maneiras, me recusei a reconhecer a existência dessa gente que, por assim dizer, começava a re-

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conhecer alguma coisa da minha. É verda-de que eles não estavam prontos a aceitar tudo, e eu sempre dizia com franqueza que seria tudo ou nada, colocando-me, assim, definitivamente fora do alcance de suas eventuais concessões. Minhas preferências e minhas idéias não mudaram, mantendo-se rigorosamente opostas ao que a socie-dade era, bem como a tudo aquilo em que ela anunciava querer se transformar.

O leopardo morre com suas manchas, e eu nunca me propus nem me acreditei capaz de melhorar. Realmente, eu jamais me considerei como tendo algum tipo de virtu-de, salvo, talvez, a de haver pensado que só alguns crimes, de um gênero novo, que cer-tamente não se ouviu nem citar no passa-do, poderiam não ser indignos de mim; e a de não ter mudado depois de um começo tão ruim. Num instante crítico dos tumul-tos da Fronda, Gondi, que deu de si gran-des provas de capacidade na direção dos negócios humanos e, notadamente, em seu papel favorito de perturbador do sossego público, com muita felicidade improvisou perante o Parlamento de Paris uma bela ci-tação atribuída a autor antigo, cujo nome todos procuraram em vão, mas que poderia

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ser aplicada com perfeição a seu próprio panegírico: "In difficillimis Reipublicae temporibus, urbem non deserui; in prosperis nihil de publico delibavi; in desperatis, nihil timui". Ele próprio a traduziu assim: "Nos tempos ruins não abandonei a cidade; nos bons, não me beneficiei; nos desesperados, nada tenho a temer".

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'Tais foram os acontecimentos deste inverno e as-sim se completa o segundo ano da guerra cuja his-tória Tucídides escreveu."

Tucídides Guerra do Peloponeso

No bairro da perdição aonde veio parar minha juventude, como que para terminar de se instruir, parecia que haviam marcado encontro os sinais precursores de um próxi-mo desmoronamento de todo o edifício da civilização. Ali permanentemente se encon-travam indivíduos que só poderiam ser defi-nidos negativamente, pela boa razão de não terem nenhuma profissão, não se ocuparem com nenhum tipo de estudo e não pratica-rem arte alguma. Grande número deles ha-via participado das guerras recém-ocorridas, engajados nos vários exércitos que estiveram

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disputando o continente: o alemão, o fran-cês, o russo, o exército dos Estados Unidos, os dois exércitos espanhóis e ainda numero-sos outros. As pessoas restantes, cinco ou seis anos mais jovens, tinham ido diretamen-te para lá porque o conceito de família havia começado a se dissolver, como todos os ou-tros. Nenhuma doutrina reconhecida mode-rava a conduta de ninguém e, mais que isso, nenhuma vinha propor àquelas existências alguma ilusória finalidade. Diversas práticas de um instante estavam sempre prontas a expressar, à luz da evidência, sua tranqüila defesa. O niilismo é talhado para moralizar assim que é tocado pela idéia de se justifi-car: um roubava os bancos e se glorificava por não roubar os pobres; outro nunca ha-via matado ninguém quando não estava en-furecido. Apesar de toda essa eloqüência dis-ponível, eram as pessoas mais imprevisíveis e, por vezes, muito perigosas. Foi o fato de ter passado por tal meio que me permitiu, depois, dizer algumas vezes, com a mesma imponência do demagogo dos Cavaleiros de Aristófanes: "Cresci nas ruas, eu também!"

Afinal de contas, foi a poesia moderna, existindo há cem anos, que nos conduzira para lá. Éramos um punhado querendo apli-

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car seu programa na realidade e, em qual-quer caso, não fazer mais nada. Às vezes alguém se surpreende, a bem da verdade a partir de uma data muito recente, ao des-cobrir a atmosfera de ódio e maldição que constantemente me cercou e, tanto quanto possível, encobriu. Alguns pensam que se-ria por causa da grave responsabilidade que não poucas vezes me é atribuída pelas ori-gens ou até mesmo pelo comando da revol-ta de maio de 1968. Acredito, em vez disso, que o que pesou contra mim de modo dura-douro foi o que fiz em 1952. Certa feita, uma enfurecida rainha da França lembrava ao mais sedicioso de seus súditos: "Sentimos revolta só de imaginar que alguém possa se revoltar".

Foi justamente o que aconteceu. Em tempos passados, um outro desprezador do mundo, que dizia ter sido rei em Jerusa-lém, havia evocado o fundo do problema, quase com estas palavras: O espírito se vol-ta para todas as direções e regressa a si mesmo por meio de longos circuitos. Todas as revoluções entram para a história, mas a história não transborda de revoluções. Os rios das revoluções retornam ao ponto de partida para continuar correndo.

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Sempre existiram artistas ou poetas capazes de viver em meio à violência. O im-paciente Marlowe morreu de faca na mão discutindo por causa de uma conta. Admi-te-se, em geral, que Shakespeare pensava no sumiço de seu rival quando, sem se preo-cupar muito com críticas pela grosseria, in-cluiu esta zombaria em Como Você Quiser. "Isso deita por terra um homem mais morto do que conta alta em casa de má fama". O fenômeno - que desta vez era absolutamen-te novo e, naturalmente, deixou poucos ves-tígios - é que o único princípio aceito por todos era, justamente, que não podia mais existir nem poesia nem arte, e que tínha-mos que encontrar coisa melhor.

Tínhamos muitos traços de semelhança com outros partidários da vida perigosa que, exatamente quinhentos anos antes, passaram seu tempo na mesma cidade e do mesmo lado do rio. Não posso, evidentemente, ser compa-rado a alguém que tenha dominado sua arte como François Villon. Nem me engajei tão ir-remediavelmente quanto ele no grande ban-ditismo. Enfim, também não fiz tão bons es-tudos universitários. Mas entre meus amigos havia esse "nobre homem", que se mostrou o perfeito equivalente de Régnier de Montigny,

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e muitos outros rebeldes destinados a maus fins. Também desfrutamos o prazer e o es-plendor dessas jovens perdidas que tão boa companhia nos davam em nossos botequins e que não deviam andar longe das que os ou-tros conheceram sob os nomes de Marión 1'Idole ou Catherine, Biétrix e Bellet. O que éramos então, eu o direi na gíria dos cúmpli-ces de Villon que, com certeza, há muito dei-xou de ser uma impenetrável linguagem se-creta. Pelo contrário, ela é bastante acessível às pessoas informadas. Dessa maneira, po-rém, acabarei por apresentar a inevitável di-mensão criminológica a partir de uma tranqüi-lizadora distância filológica.

J'y ai connu quelques sues que rebignait le marieux, froarts et envoyeurs; tres süres louches comme assoses, n'étant à jue pour aruer à ruel; souvent greffis par les anges de la marine, mais longs pouvant babigner jusqu'á les blanchir. C'est là que j'ai appris comment être beau soyant, à ce point qu'encore icicaille, sur de telles questions, je préfère rester ferme en la mauhe. Nos hurteries et nos gaudies sur la dure se sont embrouées. Pourtant, mes contres sans caire qui entervaient si bien ce monde gailleur, je me souviens vivement d'eux: quand nous étions à la mathe, sur la tarde à Parouart.1

1. Tradução livre do original escrito na linguagem dos Coquillards (século XV), associação da qual teria

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Quanto a isso, eu tenho o orgulho de nada ter esquecido, nem aprendido. Havia as ruas frias e a neve, e as cheias do rio: "Na metade do leito - o rio é profundo". Aque-las estudantes fugiam da escola, com seus olhos atrevidos e seus lábios doces. A polí-cia realizava freqüentes buscas. O tempo passava com um rumor de catarata. "Nun-ca mais beberemos tão jovens."

Pode-se dizer que sempre gostei das es-trangeiras. Elas vinham da Hungria e da Espanha, da China e da Alemanha, da Rússia e da Itália, e encheram de alegrias minha juventude. Mais tarde, quando já estava de cabelos brancos, perdi, por uma

feito parte o poeta François Villon: "Lá conheci cabe-ças aguardadas pelo carrasco: ladrões e assassinos. Podia-se contar com eles como cúmplices porque nunca hesitavam quando tinham de recorrer à força. Estavam sempre sendo presos, mas eram hábeis em fingir inocência até conseguir enganar os policiais. Foi aí que aprendi como é importante iludir quem o interroga, de modo que muito tempo depois, e ainda agora, prefiro manter a boca fechada sobre esse tipo de coisa. Nossas violências e nossas farras terrenas já estão distantes. Mas ainda me lembro vivamente dos meus camaradas sem um tostão, que tão bem entendiam este mundo ilusório, quando nos encon-trávamos em nossos pontos habituais, nas noites de Paris". (N.T.)

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garota de Córdoba, o pouco de razão que, a duras penas, o longo fluxo do tempo talvez houvera conseguido me incutir. Ornar Khayyam, depois de muita ponderação, teve de admitir: "De fato, os ídolos que por tanto tempo venerei / muito me depreciaram aos olhos dos homens. / Afoguei minha glória numa taça pouco profunda / e vendi minha reputação por uma canção". Quem, melhor do que eu, poderia sentir a justeza dessa observação? Mas também quem, como eu, teria desprezado a totalidade das opiniões correntes em minha época, bem como as reputações que ela propiciou? A continua-ção estava já contida no início desta viagem.

Isso se situa entre o outono de 1952 e a primavera de 1953, em Paris, ao sul do Rio Sena e ao norte da Rua de Vaugirard, a leste do cruzamento da Cruz Vermelha e a oeste da Rua Dauphine. Arquíloco escreveu: "Dá-nos o que beber. / Verte o vinho tinto sem revolver a borra. / Porque sóbrios nes-te posto não podemos ficar".

Entre a Rua do Four e a de Buci, onde nossa juventude tão completamente se per-deu, bebendo alguns copos, podia-se com toda certeza sentir que jamais faríamos coi-sa melhor.

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"Eu tenho observado que a maior parte dos que deixaram Memórias só mostra claramente suas más tendências ou ações quando, por acaso, as tomou por proezas ou bons instintos, o que, por vezes, aconteceu."

Alexis de Tocqueville Souuenirs

Depois das circunstâncias que acabo de rememorar, o que sem sombra de dúvida marcou minha vida inteira foi o hábito de beber, muito cedo adquirido. Os vinhos, os destilados e as cervejas; os momentos em que alguns destes se impunham e os momentos em que simplesmente apareciam foram deli-neando o curso principal e os meandros dos dias, das semanas, dos anos. Duas ou três outras paixões, que vou revelar, ocuparam de modo quase tão permanente um lugar importante na minha vida. Mas a bebida foi

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a mais constante e a mais presente. No re-duzido número de coisas que me agradaram e que eu soube fazer bem, o que seguramen-te fiz melhor foi beber. Mesmo que tenha lido muito, bebi ainda mais. Escrevi muito me-nos do que a maioria das pessoas que escre-vem; mas bebi muito mais do que a maioria das pessoas que bebem. Eu bem posso me incluir entre aqueles de quem Baltasar Gracián, pensando em uma elite que ele se-lecionava somente entre os alemães - neste ponto muito injusto para com os franceses, como julgo ter demonstrado -, pôde dizer: "Há os que se embriagam uma única vez, e assim permanecem por toda a vida".

Aliás, eu, que com tanta freqüência fui obrigado a ler a meu respeito as calúnias mais extravagantes ou críticas extremamente in-justas, estou um pouco surpreso ao verificar que se escoaram cerca de trinta anos, ou até mais, sem que nenhum detrator tivesse se utilizado da minha embriaguez como argu-mento, nem mesmo implícito, contra minhas idéias escandalosas. A única exceção, ade-mais tardia, é um escrito de alguns jovens drogados na Inglaterra, que revelava, por volta de 1980, que dali em diante eu estava embrutecido pelo álcool e, por isso, havia

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deixado de ser nocivo. Nem por um instante sonhei em dissimular esse aspecto talvez questionável da minha personalidade e que esteve fora de dúvida para todos os que me encontraram mais de uma ou duas vezes. Posso mesmo ressaltar que, em todas as oca-siões, me bastaram poucos dias para ser enormemente estimado tanto em Veneza quanto em Cádiz, e em Hamburgo como em Lisboa, por pessoas que conheci tão-somen-te por freqüentar certos cafés.

Comecei por apreciar, como todo mun-do, o efeito da ligeira embriaguez para de-pois, muito rapidamente, passar a gostar daquela que está para além da bebedeira violenta, quando transpomos esse estado: uma paz magnífica e terrível, o autêntico sa-bor da passagem do tempo. Embora deixan-do transparecer, talvez, durante as primei-ras décadas, apenas sinais ligeiros, uma ou duas vezes por semana, o fato é que eu esti-ve permanentemente de porre por períodos inteiros de vários meses; e no restante do tempo ainda bebia muito.

Um ar de desordem, na grande varie-dade de garrafas esvaziadas, mesmo assim ainda é suscetível de uma classificação a

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posteriori. Posso começar por distinguir entre as bebidas que bebi em seu país de origem e aquelas que tomei em Paris; mas podia-se encontrar quase tudo que existia para beber na Paris da metade do século. Todos os lugares podem se subdividir, sim-plesmente, entre o que eu bebia em casa e na casa de amigos, nos cafés, adegas, ba-res, restaurantes ou nas ruas, principal-mente nas mesas colocadas nas calçadas defronte aos cafés.

As horas e suas condições variáveis exercem, quase sempre, um papel deter-minante na necessária renovação dos mo-mentos de uma bebedeira; e cada uma de-las contribui com sua sensata preferência entre as possibilidades que se oferecem. Há o que se bebe pela manhã, e por muito tem-po esse foi o momento das cervejas. Em Boêmios Errantes, um personagem que logo verificamos ser um conhecedor, sustenta: "Pela manhã, não há nada melhor que a cerveja". Mas muitas vezes precisei, ao des-pertar, da vodca da Rússia. Há o que se bebe às refeições e durante as tardes que se estendem entre elas. Há o vinho das noites, com seus destilados; e depois deles as cervejas ainda são agradáveis porque,

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então, a cerveja dá sede. Há o que se bebe no fim das noites, no momento em que o dia recomeça. É fácil imaginar que tudo isso me deixou bem pouco tempo para escrever e é justamente o que convém: a escrita deve permanecer rara, pois para atingir a exce-lência é preciso beber por muito tempo.

Vaguei bastante por inúmeras grandes cidades da Europa e apreciei tudo o que o merecia ser apreciado. Nesse caso, a lista poderia ser vasta: as cervejas da Inglaterra, onde se misturavam as suaves com as for-tes na caneca; os canecões de chope de Munique; as irlandesas; a cerveja Pilsen tcheca, a mais clássica; e o admirável barroquismo da Gueuze, nos arredores de Bruxelas, quando ela ainda tinha um sabor distinto em cada cervejaria artesanal e não tolerava ser transportada para longe; os li-cores de frutas da Alsácia; o rum da Jamai-ca; os ponches; a aquavita de Aalborg e a grapa de Turim; o conhaque, os coquetéis; o incomparável mescal do México; todos os vinhos da França, os melhores oriundos da Borgonha; os vinhos da Itália e, sobretudo, o Barolo de Langhe, os Chianti da Toscana; os vinhos da Espanha, os Rioja de Cas tilla-la-Vieja ou o Jumilla de Múrcia.

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Eu teria tido bem poucas doenças se, ao longo do tempo, o álcool não tivesse me apre-sentado a algumas: da insônia às vertigens, passando pela gota. "Belo como o tremor das mãos no alcoolismo", disse Lautréamont. Há manhãs comoventes, mas difíceis.

"Melhor esconder sua loucura, mas é difícil na devassidão e na bebedeira", podia pensar Heráclito. No entanto, Maquiavel escreveu a Francesco Vettori: "Quem visse nossas cartas... a princípio pareceria que somos gente séria, inteiramente dedicada a afazeres importantes, que nossos corações só podem conceber pensamentos honrados e grandiosos. Mas, em seguida, virando a página, pareceríamos gente ligeira, incons-tante, luxuriosa, inteiramente voltada a fu-tilidades. E, se alguém julga indigna essa maneira de ser, eu a considero louvável por-que imitamos a natureza, que é inconstan-te". Vauvenargues formulou um preceito com muita freqüência esquecido: "Um au-tor se contradiz se é impossível conciliá-lo consigo mesmo".

Além disso, alguns dos meus motivos para beber são respeitáveis. Posso bem exteriorizar minha satisfação como Li Po:

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"Há trinta anos eu escondo minha fama nas tavernas".

A maioria dos vinhos, quase todos os destilados e a totalidade das cervejas cuja lembrança aqui evoquei perderam hoje em dia inteiramente seus sabores, de início no mercado mundial e depois localmente, com o progresso da indústria e também com o movimento de desaparecimento ou reedu-cação econômica das classes sociais que, por muito tempo, haviam permanecido indepen-dentes da grande produção industrial; e, em conseqüência, graças ã aplicação dos diver-sos regulamentos estatais que, doravante, proíbem quase tudo que não seja fabricado industrialmente. As garrafas, para continuar sendo vendidas, conservam fielmente seus rótulos, e essa exatidão fornece a garantia de que nós podemos fotografá-las como elas eram, mas não bebê-las.

Nem eu nem as pessoas que beberam comigo nos sentimos em algum momento incomodados em virtude de nossos exces-sos. "No banquete da vida", ao menos aí bons convivas, estivemos sentados sem pensar, nem por um instante, que tudo o que bebía-mos com tamanha prodigalidade não seria

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ulteriormente reposto para os que viessem depois de nós. Até onde remonta a memoria dos ébrios, nunca se imaginou que seria possível ver as bebidas desaparecerem do mundo antes do bebedor.

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"É verdade que Júlio César escreveu ele próprio a história de suas proezas: mas a modéstia desse herói nos seus Comentários se iguala a seu valor; parece até que ele empreendeu essa obra apenas para ti-rar à adulação toda esperança de, nos séculos fu-turos, se impor sobre sua história."

Baltasar Gracián El Hombre Universal

Portanto, conheci muito bem o mundo, sua história e sua geografia, seus ambientes e aqueles que os povoavam, suas diversas práticas e especialmente "o que é a sobera-nia, quantas espécies dela existem, como alcançá-la, como mantê-la, como perdê-la".

Eu não tinha necessidade de viajar para muito longe, mas considerava as coi-sas com um certo rigor, atribuindo-lhes em cada ocasião a plena medida dos meses ou

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anos que elas me parecessem valer. Na pri-meira parte da vida, morei quase todo o tem-po em Paris, precisamente no interior de um triângulo definido pelas intersecções da Rua Saint-Jacques com a Royer-Collard; da Rua Saint-Martin com a Greneta; da Rua du Bac com a Commailles. E efetivamente passei meus dias e noites dentro desse espaço res-trito e também na estreita margem fron-teiriça que é seu prolongamento imediato; com mais freqüência no seu lado leste e menos no lado noroeste.

Nunca, ou raramente, eu teria deixa-do essa região, perfeita para minhas conve-niências, se algumas necessidades históri-cas não houvessem inúmeras vezes me obrigado a sair de lá. Sempre por breves períodos durante minha juventude, quan-do sentia necessidade de arriscar algumas curtas incursões ao estrangeiro para esten-der a perturbação para mais longe, mas depois muito mais prolongadamente, quan-do a cidade foi saqueada e integralmente destruído o gênero de vida que nós leváva-mos. Isso aconteceu a partir de 1970.

Acredito que essa cidade foi devastada um pouco antes de todas as outras porque

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suas revoluções, sempre recomeçadas, ti-nham inquietado e chocado demais o mun-do; e porque infelizmente elas sempre ma-lograram. No fim, acabamos punidos por uma destruição tão completa quanto aque-la com que outrora nos haviam ameaçado o Manifesto de Brunswick ou o discurso do girondino Isnard: a fim de sepultar tantas lembranças temíveis e o grande nome de Paris. (O infame Isnard, presidindo a Con-venção, em maio de 1793, tinha tido já a ousadia de antecipadamente anunciar: "Se, em virtude dessas incessantes insurreições, chegar-se a ameaçar a representação nacio-nal, eu vos declaro, em nome de toda a Fran-ça, que Paris será aniquilada; brevemente haverá que se esquadrinhar as margens do Sena para saber se essa cidade existiu".)

Quem vê as margens do Sena vê nos-sas penas: não existe nada além de apressa-das colunas de um formigueiro de escravos motorizados. O historiador Guichardin, que vivenciou o fim da libertação de Florença, registrou em seu Memento: 'Todas as cida-des, todos os Estados, todos os reinos são mortais; todas as coisas, seja naturalmente seja por acidente, cedo ou tarde chegam ao seu limite e têm de acabar; de maneira que

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um cidadão que veja a derrocada de sua ter-ra não tem de se lamentar tanto pela infelici-dade dessa terra e pela desventura que, des-sa vez, ela encontrou; mas, em vez disso, deve chorar sua própria infelicidade; porque à ci-dade aconteceu o que forçosamente iria acon-tecer, e a verdadeira infelicidade foi nascer no momento em que tinha de se produzir ta-manho desastre".

Quase se poderia acreditar, apesar dos incontáveis testemunhos anteriores da his-tória e das artes, que eu tinha sido o único a amar Paris, pois a princípio vi-me sozinho reagindo sobre essa questão, nos repugnan-tes "anos 1970". Mas logo em seguida sou-be que Louis Chevalier, seu velho historia-dor, havia então publicado, sem grande repercussão, L'Assassinat de Paris. De modo que, naquele momento, éramos pelo menos dois justos na cidade. Eu não quis conti-nuar assistindo a esse declínio de Paris. Em geral, deve-se dar bem pouca importância à opinião dos que condenam alguma coisa sem fazer tudo quanto se imponha para des-truí-la; ou, pelo menos, para se mostrarem sempre tão alheios em relação a ela que haja, efetivamente, a possibilidade de o serem.

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Chateaubriand insistia, com muita exa-tidão, afinal de contas: "Entre os modernos autores franceses meus contemporâneos, sou também o único cuja vida se assemelha às obras". Em todo caso, eu seguramente vivi como disse que era preciso viver; isso talvez tenha sido ainda mais estranho entre meus contemporâneos, todos parecendo acreditar que tinham de viver conforme as instruções daqueles que atualmente detêm a produção econômica e o poder de comunicação com o qual ela se armou. Morei na Itália e na Espanha, particularmente em Florença e Sevilha - Babilônia, como se dizia no Sécu-lo do Ouro -, mas também em outras cida-des que ainda estavam vivas, e até mesmo no campo. Ganhei, assim, alguns agradá-veis anos. Bem mais tarde, quando a maré de destruições, poluições, falsificações se estendeu por toda a superfície do planeta, ao mesmo tempo em que nele penetrava pro-fundamente, eu pude voltar às ruínas que subsistiram de Paris, pois, então, não ha-via restado nada de melhor em outra par-te. Em um mundo unificado, não é possí-vel exilar-se.

O que fiz, então, nesse período? Não me preocupei muito em evitar encontros

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perigosos; pode-se dar como certo que, em alguns casos, eu os procurei friamente.

Na Itália, com certeza eu não era bem-visto por todos; mas felizmente eu pude co-nhecer as sfacciate dormefiorentine, na épo-ca em que vivi em Florença, no bairro de Oltrarno. Por lá andava aquela garota floren-tina, tão graciosa. Ao anoitecer, ela atraves-sava o rio para vir a San Frediano. Eu me apaixonei muito inesperadamente, talvez por causa de seu belo sorriso amargo. Em suma, eu lhe disse: "Não se cale porque estou dian-te de ti como um estrangeiro e um viajante. Conceda-me algum repouso antes que eu parta e não esteja mais aqui". Também na-quele instante, a Itália se perdia uma vez mais; foi preciso voltar a guardar uma pru-dente distância em relação a essas prisões onde acabaram aqueles que se demoraram em demasia nas festas de Florença.

Outrora, o jovem Musset chamou a atenção com sua pergunta irrefletida: "Vis-te tu, em Barcelona, / uma andaluza de seios bronzeados?" Ah, sim!, sou obrigado a dizer desde 1980. Vivi minha parte das loucuras da Espanha, e talvez essa, a maior. Mas foi em outra região que apareceu aque-

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la irremediável princesa, com sua beleza selvagem e sua voz. "Mira como vengo yo", dizia muito verdadeiramente a canção que ela cantava. Nesse dia, não a ouvimos mais. Amei essa andaluza por muito tempo. Quan-to? "Um tempo proporcional ã nossa dura-ção vã e mesquinha", disse Pascal.

Cheguei mesmo a ficar em uma inaces-sível casa circundada por bosques, afastada dos povoados, numa região extremamente estéril, de esgotadas terras de montanha, na parte mais longínqua de uma Auvergne aban-donada. Lá passei vários invernos. A neve caía por dias inteiros sem parar. O vento a carregava, amontoando-a em dunas. Barrei-ras mantinham a estrada desimpedida. Mas no pátio, apesar dos muros exteriores, a neve se acumulava. Muita lenha ardia na lareira.

A casa parecia se abrir diretamente sobre a Via Láctea. À noite, as estrelas pró-ximas, que num momento brilhavam inten-samente, no instante seguinte podiam ser apagadas pela passagem de uma névoa li-geira. Assim como nossas conversas e nos-sas festas, nossos encontros e nossas pai-xões tenazes.

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Era uma região de tempestades. Elas se aproximavam sem barulho, a princípio anunciadas pela rápida passagem de um vento que serpenteava sobre a relva ou por uma série de repentinos clarões no horizon-te. Depois desencadeavam trovões e raios que passavam a nos bombardear por muito tempo, de todos os lados, como numa forta-leza sitiada. Uma única vez, à noite, vi um raio cair perto de mim, do lado de fora: não se consegue nem ver o local que ele atinge; toda a paisagem é iluminada por igual no lapso de um instante surpreendente. Nada nas artes me pareceu proporcionar essa im-pressão de esplendor sem retorno, exceto a prosa que Lautréamont empregou na pro-gramática exposição a que ele chamou Poésies. Mas nada mais: nem a página em branco de Mallarmé, nem o quadrado bran-co sobre fundo branco de Malevitch, e nem mesmo os últimos quadros de Goya, em que o negro invade tudo, como Saturno devo-rando seus filhos.

As árvores eram sacudidas por ventos violentos que a todo instante podiam se le-vantar de três diferentes direções. As da charneca ao norte, mais dispersas, se cur-vavam e rangiam como navios surpreendi-

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dos, ancorados em uma enseada desprote-gida. As que guardavam a colina diante da casa, mais agrupadas, se apoiavam umas nas outras para resistir, a primeira linha refreando a investida logo renovada do ven-to oeste. Mais ao longe, o alinhamento dos bosques dispostos em quadrados, sobre todo o semicírculo de colinas, lembrava as tro-pas em formação enxadrezada, retratadas em certos quadros de batalhas do século XVIII. E as cargas da ventania, quase sem-pre vãs, algumas vezes abriam brechas aba-tendo uma fileira. Nuvens carregadas cru-zavam o céu, velozes. Com a mesma rapidez, uma mudança brusca do vento podia colocá-las em fuga; outras nuvens seriam lançadas em sua perseguição.

Também estavam lá, nas manhãs cal-mas, todos os pássaros da aurora, o fres-cor perfeito do ar e essa nuança deslum-brante do verde tenro que resplandecia sobre a copa das árvores, ao refletir a lumi-nosidade rasante do sol nascendo de fren-te para elas.

As semanas passavam imperceptivel-mente. O ar matutino, um dia, anunciava o outono. Noutra vez, por um sabor de gran-

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de doçura desse mesmo ar, sensível na boca, se declarava, qual rápida promessa sempre mantida, "o sopro da primavera".

A propósito de alguém que tem sido, tão essencial e continuamente como eu, um homem das ruas e das cidades - com isso pode-se avaliar até que ponto minhas pre-ferências não virão falsear muito meus jul-gamentos -, convém ressaltar que o encan-to e a harmonia dessas poucas temporadas de grandioso isolamento não me passaram despercebidos. Era uma agradável e impres-sionante solidão. Mas, na verdade, eu não estava só: estava com Alice.

Nas noites de meados do inverno de 1988, no largo das Missões Estrangeiras, uma coruja repetia obstinadamente seus apelos, talvez enganada pelas desordens cli-máticas. E a insólita série desses encontros com o pássaro de Minerva, seu ar de sur-presa e indignação, de maneira nenhuma me pareceram constituir uma alusão à con-duta imprudente ou aos diferentes desva-rios de minha vida. Eu jamais compreendi em que ela poderia ter sido diferente, nem como se deveria justificá-la.

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"Sendo letrado, um homem realmente culto e, nes-se sentido, um gentleman, imagino que eu possa me considerar um membro indigno dessa mal de-finida categoria formada pelos gentlemen. Essa é a opinião de meus vizinhos. Em parte, talvez, pe-las razões que acabo de apresentar e em parte porque não me vêem exercer nenhuma profissão nem comércio."

Thomas de Quincey Corifissões de um Comedor de Ópio

Uma combinação de circunstâncias acabou por marcar quase tudo o que fiz com uma certa aura de conspiração. Exatamen-te naquela época, muitas profissões novas estavam sendo criadas, com muito investi-mento, unicamente para mostrar quanta beleza a sociedade tinha sido capaz de al-cançar nos últimos tempos e como ela racio-cinava com perfeição em todos os seus dis-

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cursos e projetos. Mas eu, sem salário, dava antes o exemplo de comportamentos total-mente opostos; obviamente, isso foi mal re-cebido. E também me levou a conhecer, em vários países, pessoas que com toda razão eram consideradas como perdidas. As polí-cias as vigiam. Esse pensamento especial, que podemos encarar como a forma de conheci-mento da polícia, se exprimia assim a meu respeito, em 1984, no Journal du Dimanche, de 18 de março: "Para muitos policiais, se-jam eles da área criminal, da D.S.T. ou de Informações Gerais, a pista mais séria leva ao círculo de Guy Debord... O mínimo que se pode dizer é que, fiel à sua lenda, Guy Debord não se mostra nem um pouco lo-quaz". E já antes disso, no Le Nouvel Observateur de 22 de maio de 1972: "O au-tor de A Sociedade do Espetáculo sempre foi tido como o cérebro, discreto mas incontes-tável... no centro da constelação mutante dos brilhantes conjurados subversivos da In-ternacional Situacionista, uma espécie de frio enxadrista, conduzindo com rigor... a partida da qual ele previu cada lance. Con-gregando à sua volta, com uma autoridade velada, talentos e boas vontades. Desagre-gando-os, depois, com o mesmo virtuosismo negligente, manobrando seus acólitos como

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peões ingênuos, desbravando o tabuleiro jo-gada após jogada, emergindo enfim como único mestre, e sempre dominando o jogo".

Diante de tais coisas, meu gênero de espírito me leva a uma reação inicial que é de espanto; mas há que se reconhecer que muitas experiências da vida não fazem mais que comprovar e ilustrar as idéias mais con-vencionais, que já tivéramos oportunidade de encontrar em numerosos livros mas sem lhes dar crédito. Ao lançar mão do que co-nhecemos por experiência própria, não há necessidade de investigar a observação nun-ca feita ou o surpreendente paradoxo. É nesses termos que, abem da verdade, devo registrar, depois de outros, que a polícia in-glesa me pareceu a mais desconfiada e a mais educada; a francesa, a mais perigosa-mente treinada na interpretação histórica; a italiana, a mais cínica; a belga, a mais rude; a alemã, a mais arrogante; e foi a polí-cia espanhola que ainda se mostrava a me-nos racional e a mais incapaz.

Para um autor que escreva com certa qualidade e saiba, em conseqüência, o que significa falar, geralmente é uma triste pro-vação ter de reler e consentir em assinar

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suas próprias respostas em um depoimen-to para a polícia. Para começar, o conjunto do texto é guiado pelas perguntas dos in-vestigadores, as quais, na maioria das ve-zes, não estão mencionadas; e elas não sur-gem inocentemente, como por vezes se dão ares, simples necessidades lógicas de uma informação precisa ou de uma compreen-são clara. As respostas que se é capaz de formular não são, de fato, muito melhores que seu resumo, ditado pelo mais graduado dos policiais e transcrito com grande dose de aparente inabilidade e numerosas impre-cisões. Naturalmente, embora muitos ino-centes o ignorem, se for imperioso fazer re-tificar com precisão todo detalhe que registre com deplorável infidelidade o pensamento que se tenhamos exprimido, depressa será preciso renunciar a mandar transcrevê-lo na forma conveniente e satisfatória, que antes havíamos espontaneamente emprega-do, porque, nesse caso, seríamos obrigados a duplicar o número dessas horas já fati-gantes. Isso retiraria do mais purista a von-tade de sê-lo a esse ponto. Por conseguinte, declaro aqui que minhas respostas às polí-cias não poderão mais tarde ser editadas como parte de minhas obras completas, por escrúpulos de forma, ainda que, quanto à

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veracidade do conteúdo, eu as tenha assi-nado sem tortura.

Tendo sem dúvida, graças a um dos raros traços positivos de minha primeira educação, o senso da discrição, vi-me por vezes na necessidade de dar provas de uma discrição ainda maior. Um número de hábi-tos úteis foi dessa maneira se tornando algo como uma segunda natureza para mim; eu o digo para nada ceder às más línguas que eventualmente seriam capazes de pretender que todos eles em nada se distinguem de minha própria natureza. Qualquer que fos-se o assunto, eu me empenhava em ser mais desinteressante quanto maiores fossem as chances de ser ouvido. Em alguns casos, também marquei encontros ou dei minha opinião por meio de cartas endereçadas pes-soalmente a amigos, e modestamente assi-nei-as com nomes pouco conhecidos que fi-guraram nos círculos de alguns poetas famosos: Colin Decayeux ou Guido Caval-canti, por exemplo. Mas é evidente que nun-ca me rebaixei publicando o que quer que fosse sob pseudônimo, apesar do que alguns caluniadores remunerados foram capazes, por vezes, de insinuar na imprensa, com uma extraordinária segurança, mas, ao mesmo

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tempo, limitando-se prudentemente à mais abstrata generalidade.

É permitido, mas não desejável, per-guntar-se aonde poderia positivamente con-duzir tamanha disposição para contradizer todas as autoridades. "Nunca buscamos as coisas, mas a busca das coisas", a certeza a esse respeito está há muito estabelecida. "Gostamos mais da caçada que da presa..."

Esta nossa época de tecnicistas empre-ga abundantemente um adjetivo substan-tivado - "profissional" - e parece acreditar que encontrou nele uma espécie de garan-tia. Não se levando em conta meus honorá-rios, evidentemente, mas somente minhas competências, ninguém pode duvidar que eu tenho sido um profissional muito bom. Mas de quê? Esse terá sido meu mistério, aos olhos de um mundo execrável.

Os senhores Blin, Chavanne e Drago, que publicaram em conjunto, em 1969, um Traité du Droit de la Presse, concluíram o capítulo relativo ao "Perigo das apologias" com autoridade e experiência tais que me dão a felicidade de acreditar que devemos lhes conceder grande crédito de confiança:

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"Fazer a apologia de um ato delituoso, apresentá-lo como glorioso, meritorio ou lí-cito pode ter considerável poder de persua-são. Os indivíduos de vontade fraca que vie-rem a ler tais apologias se sentirão não apenas absolvidos de antemão no caso de cometerem aqueles atos, mas, além disso, vislumbrarão em seu cometímento a oca-sião de se tornarem celebridades. O conhe-cimento da psicologia criminal mostra o pe-rigo das apologias".

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"E quando penso que todas essas pessoas mar-cham lado a lado, numa longa e penosa viagem, a fim de chegarem juntas a um mesmo lugar onde vão correr incontáveis riscos para alcançar um objetivo grandioso e nobre, essas reflexões dão a esta exposição um sentido que me comove pro-fundamente."

Cari von Clausewitz Carta de 18 setembro de 1806

Eu me interesso muito pela guerra, pelos teóricos da estratégia, pelas lembran-ças das batalhas e tantas outras rupturas que a história menciona, redemoinhos na superfície do rio por onde o tempo se escoa. Não ignoro ser a guerra o domínio do perigo e da decepção, talvez mais até que outras facetas da vida. Tal consideração, contudo, não diminui a atração que eu senti justa-mente por essa faceta.

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Estudei, portanto, a lógica da guerra. Mais que isso, consegui, já há muito, evi-denciar o essencial de seus movimentos a partir de um quadro muito simples: as for-ças que se enfrentam e as necessidades con-traditórias que vão se impondo às operações de cada uma das duas partes. Joguei esse jogo e, na conduta freqüentemente difícil de minha vida, utilizei alguns ensinamentos dele - para essa vida, eu também tinha fi-xado uma regra do jogo, e a segui. As sur-presas deste kriegspeil parecem inesgotá-veis; e esta pode bem ser a única de minhas obras, eu temo, à qual se ousará reconhe-cer algum valor. Quanto à questão de saber se fiz bom uso de tais ensinamentos, deixa-rei a decisão a outros.

É preciso admitir que nós, os que te-mos sido capazes de fazer maravilhas com a escrita, demos muitas vezes provas menores de capacidade no comando da guerra. Os desgostos e fracassos sofridos nesse terreno são incontáveis. O capitão Vauvenargues, na retirada de Praga, voltou-se penosamente, com tropas empurradas às pressas, para a única direção ainda aberta. "A fome e a de-sordem marcham sobre suas pegadas fugi-tivas; a noite envolve seus passos e a morte

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os segue em silêncio... Fogueiras acesas sobre o gelo iluminam seus últimos momen-tos; a terra é seu leito terrível." E Gondi vi-veu a desolação de ver mudar bruscamente de idéia, na ponte de Antony, o regimento que ele acabara de sublevar, além de ouvir comentarem essa debandada como a "Pri-meira aos Corintios". E, no infeliz ataque de Azincourte, Charles d'Orléans estava na vanguarda, crivada de flechas ao longo de todo o percurso, e no fim destroçada, onde se viu "sofrer uma derrota acachapante toda aquela cavalaria dos gentis e educados no-bres da França que, face aos ingleses, con-tavam bem dez contra um". Ele foi obrigado a permanecer 25 anos cativo na Inglaterra, pouco apreciando, ao regressar, os modos de uma outra geração ("O mundo está abor-recido comigo - e eu igualmente com ele"). E Tucídides, com a esquadra que comanda-va, chegou tristemente algumas horas atra-sado para impedir a queda de Anfípolis; res-tou-lhe apenas evitar uma das numerosas conseqüências do desastre lançando em Egione sua infantaria embarcada, que sal-va o lugar. O próprio tenente von Clausewitz, com o admirável exército em marcha sobre lena, estava longe de esperar pelo que lá vi-ria a suceder.

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Mas, do mesmo modo, o capitão Saint-Simon, na batalha de Neerwinden, em Royal-Roussillon, participou galantemente de cin-co cargas da cavalaria antes exposta, imóvel, ao fogo dos canhões inimigos, cujas balas varriam filas inteiras enquanto iam se realinhando as alas da "insolente nação". E Stendhal, subtenente do 62 Regimento de Dragões, na Itália, arrebatou uma bateria austríaca. Cervantes, durante a batalha marítima de Lepante, foi inabalável, à fren-te de doze homens, sustentando o último reduto de sua galera quando os turcos se lançaram à abordagem. Diz-se que Arquíloco era soldado de profissão. E o próprio Dante, quando os cavaleiros florentinos arremete-ram sobre Campaldino, também matou o seu e ainda teve prazer em evocá-lo no can-to cinco do Purgatório: "E eu lhe disse: qual força ou qual destino / tão longe te extra-viou em Campaldino / que teu corpo nunca foi encontrado?"

A história é comovente. Se, participan-do dessas lutas, os melhores autores às ve-zes se mostraram menos exímios do que em seus escritos, a história, em compensação, para nos comunicar suas paixões, jamais deixou de se servir de pessoas que tinham o

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senso da fórmula oportuna. "Não há mais Vendéia", escrevia o general Westermann à Convenção, em novembro de 1793, após sua vitória de Savenay. "Ela morreu sob nosso sabre, com suas mulheres e crianças. Aca-bo de enterrá-la nos pântanos e bosques de Savenay. Esmaguei as crianças sob os cas-cos de nossos cavalos, massacrei as mulhe-res que, pelo menos essas, não mais darão bandidos à luz. Não tenho nenhum prisio-neiro do qual me arrepender. Tudo extermi-nei. .. Não fazemos prisioneiros porque seria preciso lhes dar o pão da liberdade, e a pie-dade não é revolucionária." Alguns meses mais tarde, Westermann seria executado com os dantonistas, difamados com o epíteto de "Indulgentes". Poucos dias antes da in-surreição de 10 de agosto de 1792, também um oficial da guarda suíça, cujos soldados foram os derradeiros defensores da pessoa do monarca, tinha, em uma carta, expres-sado com exatidão o sentimento de seus ca-maradas: 'Todos nós garantimos que, se o pior acontecer ao rei e se não houver pelo menos seiscentos uniformes vermelhos es-tendidos ao pé de sua escada, estaremos desonrados". Um pouco mais de seiscentos guardas foram finalmente mortos quando o mesmo Westermann, que a princípio tenta-

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ra neutralizar os soldados avançando sozi-nho em meio a eles, na escadaria do rei, e dirigindo-lhes a palavra em alemão, com-preendeu, finalmente, que não havia outra coisa a fazer senão lançar o ataque.

Na Vendéia que ainda combatia, a can-ção "Chant de ralliement pour les Chouans en cas de déroute" dizia com a mesma obs-tinação: 'Temos somente uma vida para vi-ver / nós a devotamos à honra. / É seu es-tandarte que temos de seguir..." Durante a revolução mexicana, os partidários de Fran-cisco Villa cantavam: "Daquela famosa Di-visão do Norte / agora sobramos apenas al-guns / ainda atravessando as montanhas / em toda parte procurando com quem lutar". E os voluntários norte-americanos do bata-lhão Lincoln cantaram, em 1937: "Há na Espanha um vale que se chama Jarama. / É um lugar que todos nós conhecemos muito bem. / Foi lá que consumimos nossa juven-tude, / bem como a maior parte da nossa velhice". Uma canção dos alemães da Le-gião Estrangeira expressava uma melanco-lia mais destacada: "Ana Maria, aonde vais tu no mundo? / Vou à cidade onde os sol-dados estão". Montaigne tinha suas citações, eu tenho as minhas. Um passado marca os

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soldados, mas nenhum futuro. É por isso que suas canções podem nos sensibilizar.

Pierre Mac Orlan, em Villes, lembrou o ataque de Bouchavesne, entregue aos jovens vadios que serviam no exército francês, mandados pela lei aos batalhões de infan-taria ligeira da África: "Na estrada de Bapaume, não muito longe de Bouchavesne e de Rancourt, onde os Joyeux pagaram seus pecados em algumas horas, subindo as encostas e conquistando uma colina, a do bosque de Berlingots, avistava-se a Picardia e sua cobertura desfeita". Nas in-clinações opostas dessa frase, de uma ina-bilidade tão hábil que chega a pairar sobre aquela colina, se reconhece a memória e seus sentidos sobrepostos.

Heródoto relata que no desfiladeiro de Termopilas, onde as tropas comandadas por Leónidas foram aniquiladas no desfecho de sua útil ação de retardamento, ao lado das inscrições que lembram o combate sem es-perança dos "quatro mil homens vindos do Peloponeso" ou dos Trezentos que, fazem di-zer em Esparta, jazem aqui, "dóceis às suas ordens", o adivinho Megisto está glorificado em um epitafio especial: "Adivinho, ele sa-

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bia que a morte estava aqui / mas não acei-tou abandonar o chefe de Esparta". Não é preciso ser adivinho para saber que não existe uma posição tão boa que não possa ser flanqueada por forças muito superiores ou, até mesmo, ser suplantada por um ata-que frontal. Mas é bom ser indiferente a esse tipo de conhecimento em certos casos. O mundo da guerra apresenta ao menos essa vantagem de não deixar espaço para as ta-garelices idiotas do otimismo. Sabe-se mui-to bem que no fim todos vão morrer. Como mais ou menos diz Pascal, por melhor que seja a defesa e todo o resto, "o último ato é sangrento".

Qual descoberta ainda se poderia es-perar nesse domínio? O telegrama enviado pelo rei da Prússia à rainha Augusta, na noite da batalha de Saint-Privat, resume a maioria das guerras: "As tropas realizaram prodígios de valor contra um inimigo de igual bravura". É conhecido o breve texto da or-dem levianamente transmitida por um ofi-cial que enviou a Brigada Ligeira para a morte, em 25 de outubro de 1854, em Balaklava: "Lorde Raglan anseia ver a cava-laria avançar sem demora para o front e im-pedir o inimigo de retirar os canhões..." É

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verdade que a redação está um pouco im-precisa mas, seja como for, ela não é mais obscura nem mais errada que uma multi-dão de planos e ordens que conduziram as empreitadas históricas em direção a seus fins incertos ou a seu desenlace inevitavel-mente funesto. É engraçado ver a que ares de superioridade se dão as cabeças pen-santes do jornalismo e da universidade quando se trata de externar sua opinião a respeito de como se realizaram operações militares. Sendo o resultado conhecido, eles precisam ao menos de uma vitória no cam-po de batalha para se absterem de fazer chacotas e se limitarem, então, a observa-ções sobre o custo excessivo em sangue e o alcance relativo do êxito obtido, comparado a outros que, segundo eles, teriam sido pos-síveis naquele mesmo dia se medidas mais inteligentes houvessem sido adotadas. São os mesmos que sempre ouvem com muito respeito os piores nefelibatas da tecnologia e todas as quimeras da economia sem nem mesmo pensar em verificar os resultados.

Masséna estava com 57 anos quando declarou que o comando é desgastante, ao falar perante seu Estado-maior no momen-to em que tinha sido encarregado de dirigir

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a conquista de Portugal: "Não se vive duas vezes nesta nossa profissão, não mais do que sobre esta terra". O tempo não espera. Não se defende Gênova duas vezes; ninguém sublevou Paris duas vezes. Xerxes, no mo-mento em que seu numeroso exército cru-zava o Hellespont, formulou numa só frase talvez o axioma primeiro que está no fundo de todo o raciocínio estratégico quando, para explicar suas lágrimas, disse: "Estava pen-sando na duração tão curta da vida dos se-res humanos, pois, dessa multidão sob nos-sos olhos, nenhum homem estará vivo daqui a cem anos".

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"Mas se estas Memorias vêem algum dia a luz, eu não duvido que provoquem uma prodigiosa revol-ta... e como na época em que escrevi, sobretudo no período final, tudo se voltava para a decadên-cia, para a confusão, para o caos, que desde então só cresceu, enquanto estas Memórias não respi-ram outra coisa que não seja ordem, regra, verda-de, princípios indubitáveis e expõem abertamente tudo o que é contrário a isso e que a cada dia reina com mais ignorância e com a mais inflexível auto-ridade; a convulsão, portanto, há de ser geral con-tra este espelho de verdades."

Saint-Simon Mémoires

Uma descrição da vida rural na Ingla-terra, que Howitt publicou em 1840, podia se concluir tomada de um contentamento sem dúvida abusivamente generalizado: 'Todo homem que sabe apreciar os praze-res da vida deve agradecer aos Céus por te-

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rem-no permitido viver nesta terra e nesta época". A nossa época, ao contrário, não se arrisca a exprimir muito enfaticamente, em relação à vida que se vive nos dias de hoje, a repugnância geral e o terror que começam a se ressentir em tantos terrenos. Eles são res-sentidos mas nunca expressos antes das re-voltas sangrentas. As razões para isso são simples. Os prazeres da vida foram recente-mente redefinidos de forma autoritária: pri-meiro nas suas prioridades e em seguida na totalidade de sua substância. E as autorida-des que os redefiniam também podiam, a qualquer momento, sem obstáculos de qual-quer natureza, decidir qual modificação pode-ria mais lucrativamente se fazer introduzir nas técnicas de sua fabricação, inteiramen-te liberadas da necessidade de agradar. Pela primeira vez, os donos de tudo o que se faz são também os mestres de tudo o que a res-peito se diz. Assim, a demência "construiu sua casa nos altos da cidade".

Aos homens que não desfrutavam de uma autoridade tão indiscutível e univer-sal, foi proposto apenas, nessa questão de suas sensações dos prazeres da vida, que se submetessem sem fazer a mais leve ob-servação, do mesmo modo como eles já ti-

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nham eleito, em todas as demais questões, representantes de sua submissão. E ao se deixarem privar dessas trivialidades, que eram apontadas como indignas de sua aten-ção, mostraram a mesma bonomia queja ti-nham revelado ao olhar, a distância, esvaí-rem-se as poucas grandezas da vida. Quando "ser totalmente moderno" se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, o que o es-cravo honesto teme, acima de tudo, é que ele possa ser suspeito de saudosismo.

Mais sábios que eu já explicaram mui-tíssimo bem a origem do que sucedeu: "O valor de troca só pôde surgir como agente do valor de uso, mas ao vencer por suas próprias armas criou as condições para seu domínio autônomo. Mobilizando todo o cos-tume humano e apropriando-se do mono-pólio de sua satisfação, ele acabou por diri-gir o uso. O processo de troca se identificou a todo uso possível e o subjugou. O valor de troca é o condottiere do valor de uso, que acaba por empreender a guerra por conta própria".

"O mundo é só desilusão", resumiu Villon num único octossílabo ("Le monde n'est qu'ábusion" é um octossílabo, ainda

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que um diplomado dos dias de hoje prova-velmente não consiga reconhecer mais de seis sílabas nesse verso). A decadencia ge-ral é um meio a serviço do império da servi-dão, e é somente por ser esse meio que lhe é permitido fazer-se denominar progresso.

É preciso saber que doravante a servi-dão quer ser verdadeiramente amada por si mesma e não mais porque proporcionaria alguma vantagem extrínseca. Ela, que an-teriormente podia passar por uma proteção, já não protege mais nada. Agora, a servidão não procura se justificar pretendendo ter conservado, seja onde for, outro encanto que não o simples prazer de conhecê-la.

Mais à frente direi como se desenrola-ram certas fases de uma outra guerra pouco conhecida: entre a tendência geral da domi-nação social nesta época e o que, apesar de tudo, pôde vir a perturbá-la, como se sabe.

Ainda que eu seja um notável exemplo do que esta época não queria, saber o que ela quis talvez não me pareça suficiente para estabelecer minha superioridade. Swift dis-se, com grande dose de verdade, no primeiro capítulo de sua Histoire des quatre dernières

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anriées du règne de la reine Anne: "E eu não quero de modo nenhum misturar o panegí-rico ou a sátira com a história, tendo ape-nas a intenção de informar a posteridade e instruir aqueles dentre meus contemporâ-neos que sejam ignorantes ou tenham sido induzidos a erro. Porque os fatos exatamente relatados constituem os melhores elogios e as mais duráveis censuras". Ninguém me-lhor que Shakespeare soube como se passa a vida. Ele avalia que "nós somos urdidos do estofo com que se fazem os sonhos". Calderón concluiu a mesma coisa. Pelo que precede, eu estou seguro de, pelo menos, ter conseguido transmitir elementos que serão suficientes para que se faça compreen-der muito precisamente, sem que possa res-tar nenhum tipo de mistério ou de ilusão, tudo o que sou.

O autor pára aqui sua história verda-deira: perdoem-lhe seus erros.

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"O autor de A Sociedade do Espetá-culo sempre foi tido como o cére-bro, discreto mas incontestável... no centro da constelação mutante dos brilhantes conjurados subversivos da Internacional Situacionista, uma es-pécie de frio enxadrista, conduzindo com rigor... a partida da qual ele pre-viu cada lance.

Congregando à sua volta, com uma autoridade velada, talentos e boas vontades. Desagregando-os, depois, com o mesmo virtuosismo negligen-te, manobrando seus acólitos como peões ingênuos, desbravando o tabu-leiro jogada após jogada, emergindo enfim único mestre, e sempre domi-nando o jogo."

Le Nouvel Observateur, 22 de maio de 1972

® C O N R A D L I V R O S