a sociedade do espetáculo guy debord

132
01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 1/132 eBookLibris

Upload: francisco-araujo

Post on 18-Dec-2014

287 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 1/132

eBookLibris

Page 2: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 2/132

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

Guy Debord(1931-1994)

Projeto Periferia

Page 3: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 3/132

A Sociedade do EspetáculoGuy Debord (1931-1994)

Tradução em português:www.terravista.pt/IlhadoMel/1540

Paráfrase em português do Brasil:Railton Sousa Guedes

Coletivo Periferiawww.geocities.com/projetoperiferia

Editorações, tradução do prefácio e versão para eBookeBooksBrasil.org

Fonte Digital baseDigitalização da edição em pdf originária de

www.geocities.com/projetoperiferia

©2003 — Guy Debord

Page 4: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 4/132

Índice

Nota importantePrólogo para a terceira edição francesaA SOCIEDADE DO ESPETÁCULOCapítulo I – A separação consolidadaCapítulo II – A mercadoria como espetáculoCapítulo III – Unidade e divisão na aparênciaCapítulo IV – O proletariado como sujeito e comorepresentaçãoCapítulo V – Tempo e históriaCapítulo VI – O Tempo espetacularCapítulo VII – A Ordenação do territórioCapítulo VIII – A Negação e o consumo da culturaCapítulo IX – A Ideologia materializadaNotas

Page 5: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 5/132

Nota Importante

O que vem a seguir, é uma paráfrase desenvolvidaem português do Brasil, baseada em uma traduçãopublicada na rede em 1997 em português de Portugal.

Para quem faz questão da precisão absoluta daspalavras escritas por Debord, é fortemente recomendadobeber da fonte original, em francês — também publicadoem eBook pela eBooksBrasil.org

Page 6: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 6/132

“A teoria revolucionária é, agora, inimiga de toda aideologia revolucionária e sabe que o é.”

Page 7: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 7/132

Guy Debord

A Sociedade do Espetáculo

Page 8: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 8/132

Prólogo para a terceira edição francesa

A Sociedade do Espetáculo foi publicado pelaprimeira vez em novembro de 1967, em Paris, por Buhet-Chastel. Os tumultos de 1968 o tornaram conhecido. Olivro, no qual jamais mudei uma só palavra, foi reeditadoseguidamente a partir de 1971 pelas Éditions Champ Libreque tomaram o nome de Gérard Lebovici em 1984, após oassassinato do editor. A série de reimpressões sucederam-seaí regularmente até 1991. A presente edição, ela também,permaneceu rigorosamente idêntica à de 1967. A mesmaregra norteará aliás, muito naturalmente, a reedição detodos os meus livros na Gallimard. Não sou destes que secorrigem.

Uma teoria crítica como esta não tem que sermudada; não enquanto não tiverem sido destruídas ascondições gerais do longo período da história de que estateoria terá sido a primeira a definir com exatidão. Acontinuação do desenvolvimento do período não fez senãoconfirmar e ilustrar a teoria do espectáculo cuja exposição,aqui reiterada, pode também ser considerada como históricaem uma acepção menos elevada: testemunha o que foi aposição mais extremada por ocasião das disputas de 1968 e,portanto do que já era possível saber em 1968. Os maisequivocados desta época puderam aprender a partir deentão, pelas desilusões de toda sua existência, o quesignificavam a «negação da vida que se tornou visível», «aperda da qualidade» ligada à forma-mercadoria e à«proletarização do mundo».

De resto, acrescentei a seu tempo outrasobservações a respeito das mais notáveis novidades que ocurso ulterior do mesmo processo fizeram aparecer. Em

Page 9: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 9/132

1979, por ocasião de um prefácio destinado a uma novatradução italiana, tratei das transformações efetivas nanatureza mesma da produção industrial, como nas técnicasde governo, que começava a autorizar o uso da forçaespectacular. Em 1988, os Comentários sobre a sociedadedo espectáculo estabeleceram claramente que a precedente«divisão mundial das tarefas espectaculares» entre os reinosrivais do «espectacular concentrado» e do «espectaculardifuso» havia de agora em diante acabado em benefício desua fusão na forma comum do «espectacular integrado».

Esta fusão pode ser sumariamente resumidacorrigindo-se a tese 105 que, referindo-se ao que se passaraantes de 1967, distinguia ainda as duas formas anterioressegundo certas práticas opostas. O Grande Cisma do poderde classe tendo terminado em reconciliação, é preciso dizerque a prática unificada do espectacular integrado, hoje,«transformou economicamente o mundo», ao mesmo tempoque «transformou policialmente a percepção» (A polícia nocaso é mesmo novidade completa).

É unicamente porque esta fusão já se tinhaproduzido na realidade económico-política do mundointeiro, que o mundo podia enfim proclamar-se oficialmenteunificado. É também porque a situação a que chegarauniversalmente o poder separado é tão grave que essemundo tinha necessidade de ser unificado o mais cedopossível; de participar como um único bloco na mesmaorganização consensual do mercado mundial, falsificado egarantido espetacularmente. E ele não se unificará,finalmente.

A burocracia totalitária, «classe dominante desubstituição para a economia mercantil», nunca acreditou osuficiente em seu destino. Sabia ser «formasubdesenvolvida de classe dominante», e queria ser mais. Atese 58 tinha há tempos estabelecido o seguinte axioma: «A

Page 10: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 10/132

raiz do espetáculo está no terreno da economia tornadaabundante, e é de lá que vêm os frutos que tendemfinalmente a dominar o mercado espetacular».

É esta vontade de modernização e unificação doespetáculo, ligada a todos os outros aspectos dasimplificação da sociedade, que conduziu a burocracia russaa se converter repentinamente, como um só homem, àpresente ideologia da democracia: isto é, à liberdadeditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dosDireitos do homem espectador. Ninguém no Ocidente fez omenor comentário sobre o significado e as consequênciasde tão extraordinário acontecimento mediático. O progressoda técnica espetacular fica provado. Só se teve que registrarà semelhança de uma espécie de abalo geológico. Data-se ofenômeno, e imagina-se tê-lo compreendido bem,contentando-se na repetição de um sinal muito simples — aqueda-do-muro-de-Berlim —, tão indiscutível quanto osoutros sinais democráticos.

Em 1991, os primeiros efeitos da modernizaçãoapareceram com a dissolução completa da Rússia. Aí seexpressa, mais abertamente ainda que no Ocidente, oresultado desastroso da evolução geral da economia. Adesordem é apenas sua conseqüência. Por toda parte secolocará a mesma pergunta aterradora, que ronda o mundohá dois séculos: como fazer trabalhar os pobres, ali onde ailusão se dissipou e toda força foi abatida?

A tese 111, reconhecendo os primeiros sintomas deum declínio russo do qual acabamos de ver a explosão final,e antevisando o desaparecimento próximo de umasociedade mundial que, como se pode dizer agora, apagar-se-á da memória do computador, enunciava estejulgamento cuja justeza será fácil perceber: «adecomposição mundial da aliança da mistificaçãoburocrática é, em última análise, o fator mais desfavorável

Page 11: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 11/132

para o desenvolvimento atual da sociedade capitalista».

É preciso ler este livro considerando que ele foideliberadamente escrito na intenção de se opor à sociedadeespetacular. Nunca é demais dizê-lo.

30 de junho de 1992 GUY DEBORD

Page 12: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 12/132

A SOCIEDADEDO ESPETÁCULO

Guy Debord(1931-1994)

Page 13: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 13/132

As idéias se aperfeiçoam. O sentido daspalavras também. O plagiato é necessário.O avanço implica-o. Ele acerca-seestreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expressões, suprime uma idéiafalsa, substitui-a pela idéia justa — GuyDebord

Page 14: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 14/132

Guy DebordA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

CAPÍTULO IA SEPARAÇÃO CONSOLIDADA

Nosso tempo, sem dúvida... prefere a imagem àcoisa, a cópia ao original, a representação àrealidade, a aparência ao ser... O que é sagradopara ele, não passa de ilusão, pois a verdadeestá no profano. Ou seja, à medida quedecresce a verdade a ilusão aumenta, e osagrado cresce a seus olhos de forma que ocúmulo da ilusão é também o cúmulo dosagrado.

Feuerbach — Prefácio à segunda edição de AEssência do Cristianismo

1

Toda a vida das sociedades nas quais reinam ascondições modernas de produção se anuncia como umaimensa acumulação de espetáculos. Tudo o que eradiretamente vivido se esvai na fumaça da representação.

2

As imagens fluem desligadas de cada aspecto davida e fundem-se num curso comum, de forma que aunidade da vida não mais pode ser restabelecida. Arealidade considerada parcialmente reflete em sua própria

Page 15: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 15/132

unidade geral um pseudo mundo à parte, objeto de puracontemplação. A especialização das imagens do mundoacaba numa imagem autonomizada, onde o mentirosomente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversãoconcreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.

3

O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade,a própria sociedade e seu instrumento de unificação.Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todoo olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é ofoco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificaçãoque realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial daseparação generalizada.

4

O espetáculo não é um conjunto de imagens, masuma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.

5

O espetáculo não pode ser compreendido comoabuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusãomassiva de imagens. Ele é a expressão de umaWeltanschauung, materialmente traduzida. É uma visãocristalizada do mundo.

6

O espetáculo, compreendido na sua totalidade, ésimultaneamente o resultado e o projeto do modo deprodução existente. Ele não é um complemento ao mundoreal, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade dasociedade real. Sob todas as suas formas particulares deinformação ou propaganda, publicidade ou consumo diretodo entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presenteda vida socialmente dominante. Ele é a afirmaçãoonipresente da escolha já feita na produção, e no seu

Page 16: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 16/132

corolário — o consumo. A forma e o conteúdo doespetáculo são a justificação total das condições e dos finsdo sistema existente. O espetáculo é também a presençapermanente desta justificação, enquanto ocupação principaldo tempo vivido fora da produção moderna.

7

A própria separação faz parte da unidade do mundo,da práxis social global que se cindiu em realidade e imagem.A prática social, diante da qual surge o espetáculoautônomo, é também a totalidade real que contém oespetáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao pontode apresentar o espetáculo como sua finalidade. Alinguagem do espetáculo é constituída por signos daprodução reinante, que são ao mesmo tempo o princípio e afinalidade última da produção.

8

Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo àatividade social efetiva; este desdobramento está elepróprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real éproduzido de forma que a realidade vivida acabamaterialmente invadida pela contemplação do espetáculo,refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesãopositiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados.O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge noespetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíprocaé a essência e o sustento da sociedade existente.

9

No mundo realmente invertido, o verdadeiro é ummomento do falso.

10

O conceito de espetáculo unifica e explica umagrande diversidade de fenômenos aparentes. As suas

Page 17: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 17/132

diversidades e contrastes são as aparências organizadassocialmente, que devem, elas próprias, serem reconhecidasna sua verdade geral. Considerado segundo os seus própriostermos, o espetáculo é a afirmação da aparência e aafirmação de toda a vida humana, socialmente falando,como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdadedo espetáculo descobre-o como a negação visível da vida;uma negação da vida que se tornou visível.

11

Para descrever o espetáculo, a sua formação, assuas funções e as forças que tendem para sua dissolução, épreciso distinguir seus elementos artificialmenteinseparáveis. Ao analisar o espetáculo, fala-se em certamedida a própria linguagem do espetacular, no sentido deque se pisa no terreno metodológico desta sociedade que seexprime no espetáculo. Mas o espetáculo não significaoutra coisa senão o sentido da prática total da formaçãoeconômico-social, o seu emprego do tempo. É o momentohistórico que nos contém.

12

O espetáculo apresenta-se como algo grandioso,positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é«o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude queele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, naverdade, ele já obteve na medida em que aparece semréplica, pelo seu monopólio da aparência.

13

O caráter fundamentalmente tautológico doespetáculo decorre do simples fato dos seus meios serem aomesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tempoente no império da passividade moderna. Recobre toda asuperfície do mundo e banha-se indefinidamente na suaprópria glória.

Page 18: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 18/132

14

A sociedade que repousa sobre a indústria modernanão é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela éfundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagemda economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimentoé tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão asi mesmo.

15

Na forma do indispensável adorno dos objetos hojeproduzidos, na forma da exposição geral da racionalidadedo sistema, e na forma de setor econômico avançado quemodela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedadeatual.

16

O espetáculo submete para si os homens vivos, namedida em que a economia já os submeteu totalmente. Elenão é nada mais do que a economia desenvolvendo-se parasi própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e aobjetivação infiel dos produtores.

17

A primeira fase da dominação da economia sobre avida social levou, na definição de toda a realização humana,a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presenteda ocupação total da vida social em busca da acumulaçãode resultados econômicos conduz a uma busca generalizadado ter e do parecer, de forma que todo o «ter» efetivoperde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim,toda a realidade individual se tornou social e diretamentedependente do poderio social obtido. Somente naquilo queela não é, lhe é permitido aparecer.

18

Onde o mundo real se converte em simples imagens,

Page 19: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 19/132

estas simples imagens tornam-se seres reais e motivaçõeseficientes típicas de um comportamento hipnótico. Oespetáculo, como tendência para fazer ver por diferentesmediações especializadas o mundo que já não é diretamenteapreensível, encontra normalmente na visão o sentidohumano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão,o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde àabstração generalizada da sociedade atual. Mas oespetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmocombinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividadedos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É ocontrário do diálogo. Em toda a parte onde hárepresentação independente, o espetáculo reconstitui-se.

19

O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza doprojeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão daatividade dominada pelas categorias do ver; assim como sebaseia no incessante alargamento da racionalidade técnicaprecisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza afilosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todosque se degradou em universo especulativo.

20

A filosofia, enquanto poder do pensamentoseparado, e pensamento do poder separado, nunca pode porsi própria superar a teologia. O espetáculo é a reconstruçãomaterial da ilusão religiosa. A técnica espetacular nãodissipou as nuvens religiosas onde os homens tinhamcolocado os seus próprios poderes desligados de si: elaligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a maisterrestre das vidas que se toma opaca e irrespirável. Ela jánão reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusaabsoluta, o seu falacioso paraíso. O espetáculo é arealização técnica do exílio dos poderes humanos num

Page 20: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 20/132

além; a cisão acabada no interior do homem.

21

À medida que a necessidade se encontrasocialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. Oespetáculo é o mau sonho da sociedade modernaacorrentada, que ao cabo não exprime senão o seu desejode dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.

22

Destituída de seu poder prático, e permeada peloimpério independente no espetáculo, a sociedade modernapermanece atomizada e em contradição consigo mesma.

23

Mas é a especialização do poder, a mais velhaespecialização social, que está na raiz do espetáculo. Oespetáculo é, assim, uma atividade especializada que falapelo conjunto das outras. É a representação diplomática dasociedade hierárquica perante si própria, onde qualqueroutra palavra é banida, onde o mais moderno é também omais arcaico.

24

O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordempresente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É oauto-retrato do poder no momento da sua gestão totalitáriadas condições de existência. A aparência fetichista de puraobjetividade nas relações espetaculares esconde o seucaráter de relação entre homens e entre classes: umasegunda natureza parece dominar o nosso meio ambientecom as suas leis fatais. Mas o espetáculo não énecessariamente um produto do desenvolvimento técnicodo ponto de vista do desenvolvimento natural. A sociedadedo espetáculo é, pelo contrário, uma formulação queescolhe o seu próprio conteúdo técnico. O espetáculo,

Page 21: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 21/132

considerado sob o aspecto restrito dos «meios decomunicação de massa» — sua manifestação superficialmais esmagadora — que aparentemente invade a sociedadecomo simples instrumentação, está longe da neutralidade, éa instrumentação mais conveniente ao seu automovimentototal. As necessidades sociais da época em que sedesenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfaçãosenão pela sua mediação. A administração desta sociedadee todo o contato entre os homens já não podem serexercidos senão por intermédio deste poder decomunicação instantâneo, é por isso que tal «comunicação»é essencialmente unilateral; sua concentração se traduzacumulando nas mãos da administração do sistemaexistente os meios que lhe permitem prosseguiradministrando. A cisão generalizada do espetáculo éinseparável do Estado moderno, a forma geral da cisão nasociedade, o produto da divisão do trabalho social e o órgãoda dominação de classe.

25

A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. Ainstitucionalização da divisão social do trabalho, a formaçãodas classes, constituiu a primeira contemplação sagrada, aordem mítica em que todo o poder se envolve desde aorigem. O sagrado justificou a ordenação cósmica eontológica que correspondia aos interesses dos Senhores,ele explicou e embelezou o que a sociedade não podiafazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas aadesão de todos a uma tal imagem imóvel não significavasenão o reconhecimento comum de um prolongamentoimaginário para a pobreza da atividade social real, aindalargamente ressentida como uma condição unitária. Oespetáculo moderno exprime, pelo contrário, o que asociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitidoopõe-se absolutamente ao possível. O espetáculo é a

Page 22: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 22/132

conservação da inconsciência na modificação prática dascondições de existência. Ele é o seu próprio produto, e elepróprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostrao que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmono crescimento da produtividade por intermédio dorefinamento incessante da divisão do trabalho naparcelarização dos gestos, desde então dominados pelomovimento independente das máquinas; e trabalhando paraum mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade etodo o sentido crítico se dissolveram ao longo destemovimento, no qual as forças que puderam crescer,separando-se, ainda não se reencontraram.

26

Com a separação generalizada do trabalhadordaquilo que ele produz perde-se todo ponto de vista unitáriosobre a atividade realizada, perde-se toda a comunicaçãopessoal direta entre os produtores. Na senda do progressoda acumulação dos produtos separados, e da concentraçãodo processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se atribuições exclusivas da direção do sistema. O êxito dosistema econômico da separação significa a proletarizaçãodo mundo.

27

O próprio êxito da produção separada enquantoprodução do separado, experiência fundamental ligada àssociedades primitivas, desloca-se, no pólo dodesenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, para ainatividade. Mas esta inatividade não é em nada liberta daatividade produtiva: depende desta, uma submissão inquietae contemplativa às necessidades e aos resultados daprodução; ela própria é um produto da sua racionalidade.Nela não pode haver liberdade fora da atividade. No quadrodo espetáculo toda a atividade é negada, exatamente pela

Page 23: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 23/132

atividade real ter sido integralmente captada para aedificação global resultante. Assim, a atual «libertação dotrabalho», o aumento dos tempos livres, não é de modoalgum libertação no trabalho, nem libertação de um mundomoldado por este trabalho. Nada da atividade roubada notrabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.

28

O sistema econômico fundado no isolamento é umaprodução circular do isolamento. O isolamentofundamenta a técnica, e, em retorno, o processo técnicoisola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionadospelo sistema espetacular são também as suas armas para oreforço constante das condições de isolamento das«multidões solitárias». O espetáculo reencontra cada vezmais concretamente os seus próprios pressupostos.

29

A origem do espetáculo é a perda da unidade domundo, e a expansão gigantesca do espetáculo modernoexprime a totalidade desta perda: a abstração de todo otrabalho particular e a abstração geral da produção doconjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujomodo de ser concreto é justamente a abstração. Noespetáculo, uma parte do mundo representa-se perante omundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que alinguagem comum desta separação. O que une osespectadores não é mais do que uma relação irreversívelcom o próprio centro que mantém o seu isolamento. Oespetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquantoseparado.

30

A alienação do espectador em proveito do objetocontemplado (que é o resultado da sua própria atividadeinconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla,

Page 24: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 24/132

menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagensdominantes da necessidade, menos ele compreende a suaprópria existência e o seu próprio desejo. A exterioridadedo espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto,os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outroque lhos apresenta.

Eis porque o espectador não se sente em casa emparte alguma, porque o espetáculo está em toda a parte.

31

O trabalhador não produz para si próprio, ele produzpara um poder independente. O sucesso desta produção, asua abundância, regressa ao produtor como abundância dadespossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo selhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtosalienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapaque recobre exatamente o seu território. As próprias forçasque nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.

32

O espetáculo na sociedade representaconcretamente uma fabricação de alienação. A expansãoeconômica é principalmente a expansão da produçãoindustrial. O crescimento econômico, que cresce para simesmo, não é outra coisa senão a alienação que constituiseu núcleo original.

33

O homem alienado daquilo que produz, mesmocriando os detalhes do seu mundo, está separado dele.Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais sesepara dela.

34

O espetáculo é o capital a um tal grau deacumulação que se toma imagem.

Page 25: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 25/132

CAPÍTULO IIA MERCADORIA COMO ESPETÁCULO

A mercadoria pode ser compreendida na suaessência apenas como categoria universal doser social total. É apenas neste contexto que areificação [o momento, dentro do processo dealienação, em que a característica de ser umacoisa se torna típica da realidade objetiva]surgida da relação mercantil adquire umasignificação decisiva, tanto pela evoluçãoobjetiva da sociedade como pela atitude doshomens em relação a ela, na submissão da suaconsciência às formas nas quais esta reificaçãose exprime... Esta submissão acresce-se aindado fato de que quanto mais a racionalização e amecanização do processo de trabalhoaumentam, mais a atividade do trabalhadorperde o seu caráter de atividade, tornando-seuma atitude meramente contemplativa.

Lukács — História e consciência de classe

35

Neste movimento essencial do espetáculo — queconsiste em ingerir tudo o que existe na atividade humanaem estado fluido para depois vomitá-lo em estadocoagulado, para que as coisas assumam seu valorexclusivamente pela formulação em negativo do valorvivido — nós reconhecemos a nossa velha inimiga queembora pareça trivial à primeira vista é intensamentecomplexa e cheia de sutilezas metafísicas, a mercadoria.

Page 26: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 26/132

36

É pelo princípio do fetichismo da mercadoria, asociedade sendo dominada por «coisas supra-sensíveisembora sensíveis», que o espetáculo se realizaabsolutamente. O mundo sensível é substituído por umaseleção de imagens que existem acima dele, ao mesmotempo em que se faz reconhecer como o sensível porexcelência.

37

O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que oespetáculo apresenta é o mundo da mercadoria dominandotudo o que é vivido. O mundo da mercadoria é mostradocomo ele é, com seu movimento idêntico ao afastamentodos homens entre si, diante de seu produto global.

38

A perda da qualidade — tão evidente em todos osníveis da linguagem espetacular — dos objetos que louva edas condutas que regula, não faz outra coisa senão traduziras características fundamentais da produção real, querepudiam a realidade: a forma-mercadoria é de uma ponta aoutra a igualdade consigo mesma, a categoria doquantitativo. É o quantitativo que ela desenvolve, e ela nãose pode desenvolver senão nele.

39

Este desenvolvimento exclui o qualitativoestancando, enquanto desenvolvimento, a passagemqualitativa: o espetáculo significa que ele transpôs o limiarda sua própria abundância; isto ainda não é verdadeirolocalmente senão em alguns pontos, mas já é verdadeiro emescala universal, que é a referência original da mercadoria,referência que o seu movimento prático confirmou,definindo a terra como mercado mundial.

40

Page 27: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 27/132

O desenvolvimento das forças produtivas foi ahistória real inconsciente que construiu e modificou ascondições de existência dos grupos humanos, enquantocondições de sobrevivência, e alargamento destascondições: a base econômica de todos os seusempreendimentos. O setor da mercadoria foi, no interior daeconomia natural, a constituição de um excedente desobrevivência. A produção das mercadorias, que implica atroca de produtos variados entre produtores independentes,pode permanecer durante muito tempo artesanal, contidanuma função econômica marginal onde a sua verdadequantitativa estava ainda encoberta. No entanto, ondeencontrou as condições sociais do grande comércio e daacumulação dos capitais, ela apoderou-se do domínio totalda economia. A economia inteira tornou-se então o que amercadoria tinha mostrado ser no decurso desta conquista:um processo de desenvolvimento quantitativo. Oalargamento incessante do poderio econômico sob a formada mercadoria, que transfigurou o trabalho humano emtrabalho-mercadoria, em salariado, conduzcumulativamente a uma abundância na qual a questãoprimeira da sobrevivência está sem dúvida resolvida, masde um tal modo que ela deve sempre reencontrar-se; ela é,cada vez, colocada de novo a um grau superior. Ocrescimento econômico liberta as sociedades da pressãonatural que exigia a sua luta imediata pela sobrevivência,mas é então do seu libertador que elas não estão libertas. Aindependência da mercadoria estendeu-se ao conjunto daeconomia sobre a qual ela reina. A economia transforma omundo, mas transforma-o somente em mundo da economia.A pseudonatureza na qual o trabalho humano se alienouexige prosseguir ao infinito o seu serviço e este serviço, nãosendo julgado e absolvido senão por ele próprio, obtendo,de fato, a totalidade dos esforços e dos projetos socialmentelícitos, como seus servidores. A abundância das

Page 28: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 28/132

mercadorias, isto é, da relação mercantil, não pode ser maisdo que a sobrevivência aumentada.

41

A dominação da mercadoria sobre a economiaexerceu-se, antes de mais nada de uma maneira oculta. Amercadoria, enquanto base material da vida social,permaneceu desapercebida e incompreendida, como oparente que apesar de sua condição não é conhecido. Numasociedade em que a mercadoria concreta permanece rara ouminoritária, a dominação aparente do dinheiro se apresentacomo um emissário munido de plenos poderes que fala emnome de uma potência desconhecida. Com a revoluçãoindustrial, a divisão do trabalho e a produção maciça para omercado mundial, a mercadoria aparece efetivamente comouma potência que vem realmente ocupar a vida social. É aíque se constitui a economia política como ciênciadominante e como ciência da dominação.

42

O espetáculo é o momento em que a mercadoriachega à ocupação total da vida social. Tudo isso éperfeitamente visível com relação à mercadoria, pois nadamais se vê senão ela: o mundo visível é o seu mundo. Aprodução econômica moderna estende a sua ditaduraextensiva e intensivamente. Até mesmo nos lugares menosindustrializados, o seu reino já se faz presente com algumasmercadorias-vedetas, com a dominação imperialistacomandando o desenvolvimento da produtividade. Nestaszonas avançadas, o espaço social é invadido por umasobreposição contínua de camadas geológicas demercadorias. Neste ponto da «segunda revoluçãoindustrial», o consumo alienado torna-se para as massas umdever suplementar à produção alienada. É todo o trabalhovendido de uma sociedade, que se torna globalmente

Page 29: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 29/132

mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir. Para o fazer, épreciso que esta mercadoria total regressefragmentariamente ao indivíduo fragmentário,absolutamente separado das forças produtivas e operandocomo um conjunto. Assim, portanto, a ciência especializadada dominação se especializa: fragmentando tudo, emsociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia, etc.,velando pela auto-regulação de todos os níveis do processo.

43

Embora na fase primitiva da acumulação capitalista«a economia política não visse no proletário senão ooperário» que deveria receber o mínimo indispensável paraa conservação da sua força de trabalho, sem nunca serconsiderado «nos seus lazeres, na sua humanidade», estaposição de ideias da classe dominante inverte-se assim queo grau de abundância atingido na produção das mercadoriasexige um excedente de colaboração do operário. Esteoperário, completamente desprezado diante de todas asmodalidades de organização e vigilância da produção, vê asi mesmo, a cada dia, do lado de fora, mas é aparentementetratado como uma grande pessoa, com uma delicadezaobsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Então ohumanismo da mercadoria toma a cargo os «lazeres ehumanidade» do trabalhador, muito simplesmente porque aeconomia política pode e deve dominar, agora, tambémestas esferas, enquanto economia política. Assim, «anegação da humanidade» é agora a negação da totalidadeda existência humana.

44

O espetáculo é uma permanente guerra do ópio paraconfundir bem com mercadoria; satisfação comsobrevivência, regulando tudo segundo as suas próprias leis.Se o consumo da sobrevivência é algo que deve crescer

Page 30: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 30/132

sempre, é porque a privação nunca deve ser contida. E seele não é contido, nem estancado, é porque ele não estápara além da privação, é a própria privação enriquecida.

45

A automação é o setor mais avançado da indústriamoderna e ao mesmo tempo o modelo que define suaprática. Mas é necessário que o mundo da mercadoriasupere esta contradição: a instrumentação técnica quesuprime objetivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo,conservar o trabalho como mercadoria, e manter otrabalho como a única instância de nascimento damercadoria. Para que a automação, ou qualquer outraforma menos extrema de aumento da produtividade dotrabalho, não diminua efetivamente o tempo de trabalhosocial necessário à escala de sociedade, é indispensávelcriar novos empregos. O setor terciário — os serviços — éo imenso prolongamento das linhas e etapas do exército dadistribuição e do elogio das mercadorias atuais; pelamobilização de forças supletivas que encontraoportunamente na própria facticidade das necessidadesrelativas de tais mercadorias, a necessária organização daretaguarda do trabalho.

46

O valor da troca não pode formar-se senão comoagente do valor de uso, mas a sua vitória pelas suas própriasarmas criou as condições da sua dominação autônoma.Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se domonopólio da sua satisfação, ela acabou por dirigir o uso.O processo de troca identificou-se a todo o uso possível ereduziu-o à sua mercê. O valor de troca é o condottiere dovalor de uso, que acaba por conduzir a guerra por suaprópria conta.

47

Page 31: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 31/132

Esta constante da economia capitalista, que é abaixa tendencial do valor de uso, desenvolve uma novaforma de privação no interior da sobrevivência aumentada,a qual não está, por isso, mais liberta da antiga penúria,visto que exige a participação da grande maioria doshomens, como trabalhadores assalariados, noprosseguimento infinito do seu esforço; e que cada qualsabe que é necessário submeter-se-lhe ou morrer. É arealidade desta chantagem, o fato do uso sob a sua formamais pobre (comer, habitar) já não existir senão aprisionadona riqueza ilusória da sobrevivência aumentada, que é abase real da aceitação da ilusão em geral no consumo dasmercadorias modernas. O consumidor real toma-se umconsumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusãoefetivamente real, e o espetáculo a sua manifestação geral.

48

O valor de uso, que estava implicitamentecompreendido no valor de troca, deve estar agoraexplicitamente proclamado na realidade invertida doespetáculo, justamente porque a sua realidade efetiva écorroída pela economia mercantil superdesenvolvida; eporque uma pseudojustificação se torna necessária à falsavida.

49

O espetáculo é a outra face do dinheiro: oequivalente geral abstrato de todas as mercadorias. Mas seo dinheiro dominou a sociedade enquanto representação daequivalência central, isto é, do carácter permutável dosbens múltiplos cujo uso permanecia incomparável, oespetáculo é o seu complemento moderno desenvolvido,onde a totalidade do mundo mercantil aparece em blococomo uma equivalência geral ao que o conjunto dasociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que se

Page 32: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 32/132

olha somente, pois nele é já a totalidade do uso que setrocou com a totalidade da representação abstrata. Oespetáculo não é somente o servidor do pseudo-uso, é já,em si próprio, o pseudo-uso da vida.

50

O resultado concentrado do trabalho social, omomento da abundância econômica, torna-se aparente esubmete toda a realidade à aparência, que é agora seuproduto. O capital não é apenas o centro invisível que dirigeo modo de produção: a sua acumulação estende-o até àperiferia, sob a forma de objetos sensíveis. Toda a vastidãoda sociedade é o seu retrato.

51

A vitória da economia autônoma representa, aomesmo tempo, a sua derrota. As forças desencadeadas porela suprimem a necessidade econômica que foi a baseimutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pelanecessidade do desenvolvimento econômico infinito, elanão pode fazer outra coisa a não ser substituir a satisfaçãodas primeiras necessidades, sumariamente reconhecidas,por uma fabricação ininterrupta de pseudo-necessidadesque se reduzem à única pseudo-necessidade da manutençãodo seu reino. A economia autônoma separa-se para sempreda necessidade profunda, na própria medida em que sai doinconsciente social que dela dependia sem o saber. «Tudo oque é consciente se usa. O que é inconsciente permaneceinalterável. Mas uma vez liberto, não cai por sua vez emruínas?» (Freud).

52

Quando a sociedade descobre que ela depende daeconomia, a economia, de fato, depende dela. Esta potênciasubterrânea, que cresceu até aparecer soberanamente,também perdeu o seu poderio. Lá onde estava o ça(1)

Page 33: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 33/132

econômico deve vir o je(1) . O sujeito não pode emergirsenão da sociedade, isto é, da luta que está nela própria. Asua existência possível está suspensa nos resultados da lutade classes, que se revela como o produto e a produtora dafundação econômica da história.

53

A consciência do desejo e o desejo da consciênciasão um mesmo projeto que, sob a sua forma negativa, quera abolição das classes, isto é, a posse direta pelostrabalhadores de todos os momentos da sua atividade. O seucontrário é a sociedade do espetáculo onde a mercadoria secontempla a si mesma num mundo que ela criou.

Page 34: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 34/132

CAPÍTULO IIIUNIDADE E DIVISÃO NA APARÊNCIA

Na frente filosófica, desenrola-se no país umanova e animada polêmica a propósito dosconceitos «um divide-se em dois» e «doisfundem-se em um». Este debate é uma lutaentre os que são a favor e os que são contra adialética materialista, uma luta entre duasconcepções de mundo: a concepção proletária ea concepção burguesa. Os que sustentam que«um divide-se em dois» é a lei fundamental dascoisas, mantêm-se do lado da dialéticamaterialista; os que sustentam que a leifundamental das coisas é que «dois fundem-seem um», são contra a dialética materialista. Osdois lados traçaram entre si uma nítida linha dedemarcação e seus argumentos sãodiametralmente opostos. Esta polêmica reflete,no plano ideológico, a aguda e complexa luta declasses que se desenrola na China e no mundo.

— Bandeira Vermelha, Pequim, 21 deSetembro de 1964

54

O espetáculo, da mesma forma que a modernasociedade, está ao mesmo tempo unido e dividido. Eleedifica a sua unidade sobre o dilaceramento. A contradição,quando emerge no espetáculo, é contradita pela inversão doseu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária,enquanto que a unidade mostrada está dividida.

Page 35: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 35/132

55

A luta de poderes, que se constituíram para a gestãodo mesmo sistema socio-econômico, se desenrola como acontradição oficial, mas que pertence de fato à unidadereal; tanto em escala mundial como no interior de cadanação.

56

As falsas lutas espetaculares das formas rivais dopoder separado são, ao mesmo tempo, reais no que dizrespeito ao desenvolvimento desigual e conflitual dosistema, aos interesses relativamente contraditórios dasclasses ou subdivisões de classes que reconhecem osistema, e definem sua própria participação no seu poder. Odesenvolvimento da economia mais avançada constitui oafrontamento de certas prioridades com outras. A gestãototalitária da economia por uma burocracia de Estado e acondição dos países que se encontraram colocados naesfera de colonização ou da semicolonização sãoconsideravel e particularmente definidas por modalidadesda produção e do poder. Estas diversas aposições podemexprimir-se no espetáculo, segundo critérios completamentediferentes, como formas de sociedades absolutamentedistintas. Mas segundo sua realidade efetiva de setoresparticulares, a verdade da sua particularidade reside nosistema universal que as contém: no movimento único quefaz do planeta seu campo, o capitalismo.

57

Não é somente pela sua hegemonia econômica que asociedade portadora do espetáculo domina as regiõessubdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade doespetáculo. Lá onde a base material ainda está ausente, asociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfíciesocial de cada continente. Ela define o programa de umaclasse dirigente e preside sua constituição. Do mesmo modo

Page 36: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 36/132

que apresenta os pseudobens a cobiçar, ela oferece aosrevolucionários locais os falsos modelos de revolução. Opróprio espetáculo do poder burocrático, que detêm algunsdos países industriais, faz precisamente parte do espetáculototal, como sua pseudonegacão geral e seu suporte. Se oespetáculo, olhado nas suas diversas localizações, revelaespecializações totalitárias da palavra e da administraçãosociais, estas acabam por fundir-se, ao nível dofuncionamento global do sistema, numa divisão mundialdas tarefas espetaculares.

58

A divisão das tarefas espetaculares, que conserva ageneralidade da ordem existente, conserva principalmente opólo dominante do seu desenvolvimento. A raiz doespetáculo está no terreno da economia tornada abundante,e é de lá que vêm os frutos que tendem finalmente adominar o mercado espetacular, apesar das barreirasprotecionistas ideológico-policiais, e de qualquer espetáculolocal com pretensão autárquica.

59

O movimento de banalização que, sob as diversõescambiantes do espetáculo, domina mundialmente asociedade moderna, domina-a também em cada um dospontos onde o consumo desenvolvido das mercadoriasmultiplicou na aparência os papéis a desempenhar e osobjetos a escolher. As sobrevivência da religião e da família— que permanece a forma principal da herança do poder declasse —, e, portanto, da repressão moral que elasasseguram, podem combinar-se como uma mesma e únicacoisa, com a afirmação redundante do gozo deste mundo,este mundo não sendo justamente produzido senão comopseudogozo que traz consigo a repressão. A aceitação beatadaquilo que existe pode juntar-se como uma mesma e única

Page 37: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 37/132

coisa à revolta puramente espetacular: pelo simples fato deque a própria insatisfação se tornou uma mercadoria desdeque a abundância econômica se achou capaz de estendersua produção tratando de tal matéria-prima.

60

Ao concentrar na vedeta, a imagem de um possívelpapel a desempenhar, a representação espetacular dohomem vivo, concentra, pois, esta banalidade. A condiçãode vedeta é a especialização do viver aparente, o objeto daidentificação com a vida aparente sem profundidade, quedeve compensar as infinitas subdivisões das especializaçõesprodutivas efetivamente vividas. As vedetas existem parafigurar tipos variados de estilos de vida e de estilos decompreensão da sociedade, livres de se exerceremglobalmente. Elas encarnam o resultado inacessível dotrabalho social, ao arremedar subprodutos deste trabalhoque são magicamente transferidos acima dele como suafinalidade: o poder e as férias, a decisão e o consumo, queestão no começo e no fim de um processo indiscutido. Lá, éo poder governamental que se personaliza empseudovedeta; aqui, é a vedeta do consumo que se fazplebiscitar inserindo pseudopoder sobre o vivido. Mas,assim como estas atividades da vedeta não são realmenteglobais, elas não são variadas.

61

O agente do espetáculo posto em cena como vedetaé o contrário do indivíduo, o inimigo do indivíduo, tanto emsi próprio como, evidentemente, nos outros. Passando noespetáculo como modelo de identificação, renunciou a todaa qualidade autônoma, para ele próprio se identificar com alei geral da obediência ao curso das coisas. A vedeta doconsumo, mesmo sendo exteriormente a representação dediferentes tipos de personalidade, mostra cada um destes

Page 38: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 38/132

tipos como tendo igualmente acesso à totalidade doconsumo e encontrando aí, de igual modo, a sua felicidade.A vedeta da decisão deve possuir o stock completo daquiloque foi admitido como qualidades humanas. Assim, entreestas, as divergências oficiais são anuladas pela semelhançaoficial, que é o pressuposto da sua excelência em tudo.Khruchtchev tornara-se general para decidir a batalha deKursk, não no campo de batalha, mas no vigésimoaniversário, quando ele se achava senhor do Estado.Kennedy permanecera orador, ao ponto de pronunciar seuelogio sobre o próprio túmulo, visto que Théodore Sorensencontinuava, nesse momento, a redigir para o sucessor osdiscursos naquele estilo que tanto tinha concorrido parafazer reconhecer a personalidade do desaparecido. Aspessoas admiráveis nas quais o sistema se personifica sãobem conhecidas por não serem aquilo que são; tornaram-segrandes homens ao descer abaixo da realidade da maispequena vida individual, e cada qual o sabe.

62

A falsa escolha na abundância espetacular, escolhaque reside na justaposição de espetáculos concorrenciais esolidários, como na justaposição dos papéis a desempenhar(principalmente significados e trazidos por objetos), é aomesmo tempo exclusiva e imbricada, desenvolve-se numaluta de qualidades fantasmagóricas destinadas a apaixonar aadesão à trivialidade quantitativa. Assim renascem falsasaposições arcaicas, regionalismos ou racismos encarregadosde transfigurar em fantástica superioridade ontológica avulgaridade dos lugares hierárquicos no consumo. Destemodo, recompõe-se a interminável série dos afrontamentosirrisórios, mobilizando um interesse sublúdico, que vaidesde desporto competitivo até as eleições. Lá onde seinstalou o consumo abundante, uma oposição espetacularprincipal entre a juventude e os adultos vem no primeiro

Page 39: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 39/132

plano dos papéis falaciosos: porque em parte alguma existeo adulto senhor da sua vida, e a juventude, a mudança doque existe, não é de modo nenhum propriedade desteshomens, que são agora jovens, mas do sistema econômico,o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e quesão jovens; que se deitam fora e se substituem a si próprias.

63

É a unidade da miséria que se esconde sob asaposições espetaculares. Se formas diversas da mesmaalienação se combatem sob as máscaras da escolha total, éporque elas estão todas identificadas com contradições reaisrecalcadas. Conforme as necessidades do estado particularda miséria, que ele desmente e mantém, o espetáculo existesob uma forma concentrada ou sob uma forma difusa. Nosdois casos, ele não é mais do que uma imagem deunificação feliz, cercada de desolação e de pavor, no centrotranquilo da infelicidade.

64

O espetacular concentrado pertence essencialmenteao capitalismo burocrático, embora possa ser importadocomo técnica do poder estatal sobre economias mistas maisatrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismoavançado. A própria propriedade burocrática éefetivamente concentrada, no sentido de que o burocrataindividual não tem relações com a posse da economiaglobal a não ser por intermédio da comunidade burocrática,a não ser enquanto membro desta comunidade. Além disso,a produção menos desenvolvida das mercadorias apresenta-se, também, sob uma forma concentrada: a mercadoria quea burocracia detém é o trabalho social total, e o que elarevende à sociedade é a sua sobrevivência em bloco. Aditadura da economia burocrática não pode deixar àsmassas exploradas nenhuma margem notável de escolha,

Page 40: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 40/132

visto que ela teve de escolher tudo por si própria, e quetoda outra escolha exterior, quer diga respeito àalimentação ou à música, é já a escolha da sua destruiçãocompleta. Ela deve acompanhar-se de uma violênciapermanente. A imagem imposta do bem, no seu espetáculo,recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra-se normalmente num único homem, que é a garantia da suacoesão totalitária. Com esta vedeta absoluta, deve cada umidentificar-se magicamente, ou desaparecer. Pois trata-se dosenhor do seu não-consumo, e da imagem heróica de umsentido aceitável para a exploração absoluta, que é narealidade a acumulação primitiva acelerada pelo terror. Namedida em que cada chinês deve aprender Mao, e assim serMao, ele não tem mais nada para ser. Lá onde domina oespetacular concentrado domina também a polícia.

65

O espetacular difuso acompanha a abundância dasmercadorias, o desenvolvimento não perturbado docapitalismo moderno. Aqui, cada mercadoria consideradaisoladamente está justificada em nome da grandeza daprodução da totalidade dos objetos, de que o espetáculo éum catálogo apologético. Afirmações inconciliáveisamontoam-se na cena do espetáculo unificado da economiaabundante; do mesmo modo que diferentes mercadorias-vedetas sustentam, simultaneamente, os seus projetoscontraditórios de ordenação da sociedade, onde oespetáculo dos automóveis implica uma circulação perfeita,que destrói a parte velha da cidade, enquanto o espetáculoda própria cidade tem necessidade de bairros-museus.Portanto, a satisfação já problemática, que é reputadapertencer ao consumo do conjunto, está imediatamentefalsificada pelo fato do consumidor real não poder receberdiretamente mais do que uma sucessão de fragmentos destafelicidade mercantil, fragmentos dos quais a qualidade

Page 41: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 41/132

atribuída ao conjunto está evidentemente ausente.

66

Cada mercadoria determinada luta para si própria,não pode reconhecer as outras, pretende impor-se em todaa parte como se fosse a única. O espetáculo é, então, ocanto épico deste afrontamento, que a queda de nenhumaÍlion poderia concluir. O espetáculo não canta os homens eas suas armas, mas as mercadorias e as suas paixões. Énesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão,realiza, de fato, na inconsciência algo de mais elevado: odevir-mundo da mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astúcia da razãomercantil o particular da mercadoria gasta-se ao combater,enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realizaçãoabsoluta.

67

A satisfação, que a mercadoria abundante já nãopode fornecer pelo uso, acaba sendo procurada noreconhecimento do seu valor enquanto mercadoria: com ouso da mercadoria bastando-se a si mesmo; e, para oconsumidor, basta a efusão religiosa para com a liberdadesoberana da mercadoria. As ondas de entusiasmo por umdado produto, apoiado e relançado por todos os meios deformação, propagam-se, assim, a grande velocidade. Umestilo de roupa surge de um filme; uma revista lança clubesque por sua vez lançam panóplias diversas. O gadget(2) exprime os fatos de tal forma que, no momento em que amassa das mercadorias cai na aberração, o próprioaberrante se tornar uma mercadoria especial. Nos porta-chaves publicitários, por exemplo, que não mais sãocomprados, há dons suplementares que acompanham osobjetos de prestigio vendidos ou resultantes da troca em suaprópria esfera. Nestes penduricalhos pode-se reconhecer a

Page 42: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 42/132

manifestação do abandono místico à transcendência damercadoria. Aquele que coleciona porta-chaves queacabam de ser fabricados para colecionadores acumula asindulgências da mercadoria, um sinal glorioso da suapresença real entre os seus fiéis. O homem reificadoproclama a prova da sua intimidade com a mercadoria.Como nos arrebatamentos dos convulsionários oumiraculados do velho fetichismo religioso, o fetichismo damercadoria atinge momentos de excitação fervente. Oúnico uso que ainda se exprime aqui é o uso fundamental dasubmissão.

68

Sem dúvida, a pseudo-necessidade imposta noconsumo moderno não se opõe a nenhuma necessidade oudesejo autêntico, que não seja, ele próprio, modelado pelasociedade e pela sua história. Mas a mercadoria abundanteestá lá como a ruptura absoluta de um desenvolvimentoorgânico das necessidades sociais. A sua acumulaçãomecânica liberta um artificial ilimitado, perante o qual odesejo vivo fica desarmado. A potência cumulativa de umartificial independente conduz em toda parte à falsificaçãoda vida social.

69

Na imagem da unificação feliz da sociedade peloconsumo, a divisão real está apenas suspensa até à próximanão-completa realização no consumível. Cada produtoparticular que deve representar a esperança de um atalhofulgurante para aceder, enfim, à terra prometida doconsumo total, é, por sua vez, apresentadocerimoniosamente como a singularidade decisiva. Mascomo no caso da difusão instantânea das modas de nomesaparentemente aristocráticos que se vão encontrar usadospor quase todos os indivíduos da mesma idade, o objeto do

Page 43: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 43/132

qual se espera um poder singular não pôde ser proposto àdevoção das massas senão porque ele foi tirado de umnúmero de exemplares suficientemente grande para serconsumido massivamente. O carácter prestigioso destequalquer produto não lhe vem senão de ter sido colocadopor um momento no centro da vida social, como o mistériorevelado da finalidade da produção. O objeto, que eraprestigioso no espetáculo, torna-se vulgar no instante emque entra na casa do consumidor ao mesmo tempo que nacasa de todos os outros. Ele revela demasiado tarde a suapobreza essencial, que retira da miséria da sua produção.Mas é já um outro objeto que traz a justificação do sistemae a exigência de ser reconhecido.

70

A própria impostura da satisfação deve denunciar-seao substituir-se ao seguir a mudança dos produtos e dascondições gerais da produção. Aquilo que afirmou, com omais perfeito descaramento, a sua própria excelênciadefinitiva muda não só no espetáculo difuso, mas tambémno espetáculo concentrado, onde apenas o sistema devecontinuar: Estaline, enquanto mercadoria fora de moda, édenunciado por aqueles mesmos que o impuseram. Cadanova mentira da publicidade é também a confissão da suamentira precedente. Cada derrocada de uma figura dopoder totalitário revela a comunidade ilusória que aaprovava unanimemente e que não era mais do que umaglomerado de solidões sem ilusões.

71

O que o espetáculo apresenta como perpétuo éfundado sobre a mudança, e deve mudar com a sua base. Oespetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo,não pode levar a nenhum dogma sólido. Para ele nada pára;é o estado que lhe é natural e, todavia, o mais contrário à

Page 44: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 44/132

sua inclinação.

72

A unidade irreal que o espetáculo proclama é amáscara da divisão de classe sobre a qual repousa a unidadereal do modo de produção capitalista. O que obriga osprodutores a participar na edificação do mundo é também oque disso os afasta. A mesma coisa que relaciona oshomens libertos nas suas limitações locais e nacionais étambém aquilo que os distancia. O que obriga aoaprofundamento do racional é também o que alimenta oracional da exploração hierárquica e da repressão. O queconstitui o poder abstrato da sociedade constitui a sua não-liberdade concreta.

Page 45: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 45/132

CAPÍTULO IVO PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO

REPRESENTAÇÃO

Direito igual a todos os bens e aos gozos destemundo, destruição de toda a autoridade,negação de todo freio moral, essas coisasforam, no fundo, a razão de ser da insurreiçãode 18 de março e a carta magna da temívelassociação que lhe forneceu um exército.

Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18de Março

73

O movimento real, que suprime as condições acima,governa a sociedade desde a vitória econômica daburguesia, e de forma visível desde que essa vitória setraduziu políticamente. O desenvolvimento das forçasprodutivas arrebentou com as antigas relações de produçãoe toda ordem estática se desfaz em pó. Tudo o que eraabsoluto tornou-se histórico.

74

Lançados na história, devendo participar notrabalho e nas lutas que a constituem, os homens se vêemobrigados a encarar suas relações de uma maneiradesiludida. Esta história não tem um objeto distinto daqueleque realiza por si mesma, embora a última visão metafísicainconsciente da época histórica tenha encarado o progressona produção, através do qual a história se desenrolou, comoo próprio objeto da história. O sujeito da história não pode

Page 46: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 46/132

ser senão o vivente produzindo-se a si mesmo, tomando-sesenhor e possuidor do seu mundo que é a história, e sendoconsciente de seu papel.

75

Como uma única corrente, a luta de classes sedesenvolveu ao longo da época revolucionária, inauguradapela ascensão da burguesia, e pelo pensamento da história,a dialética, o pensamento que não pára a procura do sentidodo sendo, mas que se eleva ao conhecimento da dissoluçãode tudo o que é; e no movimento dissolve toda a separação.

76

Hegel não interpreta o mundo, mas atransformação do mundo. Interpretando somente essatransformação, Hegel não é mais do que o acabamentofilosófico da filosofia. Ele quer compreender um mundoque se faz por si mesmo. Este pensamento histórico não éoutra coisa senão a consciência que sempre chega tardedemais, e que enuncia a justificação post festum. Assim, elanão ultrapassa a separação senão no pensamento. Oparadoxo, que consiste em restringir o sentido e a definiçãode toda a realidade ao seu acabamento histórico, resulta dosimples fato do pensador das revoluções burguesas dosséculos XVII e XVIII não ter procurado na sua filosofiaoutra coisa senão a reconciliação com seu resultado.«Mesmo enquanto filosofia da revolução burguesa, ela nãoexprime todo o processo desta revolução, mas somente suaúltima conclusão. Neste sentido, ela é uma filosofia não darevolução, mas da restauração» (Karl Korsch, Teses sobreHegel e a revolução). Hegel fez, em última instância, otrabalho do filósofo, «a glorificação do que existe», mas oque existia para ele já não podia ser outra coisa senão atotalidade do movimento histórico. A posição exterior dopensamento, sendo de fato mantida, não podia ser

Page 47: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 47/132

encoberta senão pela sua identificação a um projeto préviodo Espírito, herói absoluto que fez o que quis e que quis oque fez, e cuja plena realização coincide com o presente.Assim, a filosofia que morre no pensamento da história jánão pode glorificar seu mundo senão renegando-o, porquepara tomar a palavra é-lhe necessário supor acabada estahistória total à qual ela tudo reduziu, encerrando a sessãodo único tribunal onde pode ser pronunciada a sentença daverdade.

77

Quando o proletariado manifesta, pela sua própriaexistência em atos, que este pensamento da história não foiesquecido, o desmentido da conclusão é a confirmação dométodo.

78

O pensamento da história não pode ser salvo senãona forma de um pensamento prático; e a prática doproletariado como classe revolucionária não pode sermenos que sua consciência histórica operando sobre atotalidade do seu mundo. Todas as correntes teóricas domovimento operário revolucionário saíram de umafrontamento crítico com o pensamento de Hegel, de Marx,assim como de Stirner e Bakunine.

79

O caráter inseparável entre teoria de Marx e ométodo hegeliano é por si só inseparável do caráterrevolucionário desta teoria, isto é, da sua verdade. É nistoque esta primeira relação foi geralmente ignorada ou malcompreendida, ou ainda denunciada como o fraco daquiloque se tornava falaciosamente uma doutrina marxista.Bernstein, em Socialismo teórico e Social-democraciaprática, revela perfeitamente esta ligação do métododialético e da tomada de partido histórico ao deplorar as

Page 48: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 48/132

previsões pouco científicas do Manifesto de 1847 sobre aiminência da revolução proletária na Alemanha: «Esta auto-sugestão histórica, tão errada que qualquer visionáriopolítico que aparecesse poderia encontrar melhor, seriaincompreensível num Marx, que à época tinha jáseriamente estudado economia, se não se estivessepermeada pelo produto de um resto da dialética antitéticahegeliana, da qual Marx, tanto quanto Engels, nunca soubedesfazer-se completamente. Naqueles tempos deefervescência geral, isso foi-lhe ainda mais fatal».

80

A inversão que Marx efetua, através de um«salvamento por transferência» do pensamento dasrevoluções burguesas, não consiste em substituirtrivialmente pelo desenvolvimento materialista das forçasprodutivas o percurso do Espírito hegeliano, indo ao seupróprio encontro no tempo, a sua objetivação sendoidêntica à sua alienação, e as suas feridas históricas nãodeixando cicatrizes. A história tornada real já não tem fim.Marx arruinou a posição separada de Hegel perante o queacontece, e a contemplação dum agente supremo exterior,qualquer que ele seja. A teoria já não tem a conhecer senãoo que ela faz. É, pelo contrário, a contemplação domovimento da economia, no pensamento dominante dasociedade atual, que é a herança não-reivindicativa daparte não-dialética na tentativa hegeliana de um sistemacircular: é uma aprovação que perdeu a dimensão doconceito, e que já não tem necessidade dum hegelianismopara se justificar, porque o movimento que se trata delouvar já não é senão um setor sem pensamento do mundo,cujo desenvolvimento mecânico domina efetivamente otodo. O projeto de Marx é o de uma história consciente. Oquantitativo que sobrevêm ao desenvolvimento cego dasforças produtivas simplesmente econômicas deve

Page 49: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 49/132

transformar-se em apropriação histórica qualitativa. Acrítica da economia política é o primeiro ato deste fim depré-história: «De todos os instrumentos de produção, omaior poder produtivo é a própria classe revolucionária.»

81

O que liga estreitamente a teoria de Marx aopensamento científico é a compreensão racional das forçasque se exercem realmente na sociedade. Mas ela éfundamentalmente um além do pensamento científico, ondeeste não é conservado senão sendo superado: trata-se deuma compreensão da luta, e de nenhum modo da lei. «Nóssó conhecemos uma ciência: a ciência da história», diz AIdeologia Alemã.

82

A época burguesa, que pretende fundarcientificamente a história, negligencia o fato de que estaciência disponível teve, antes de mais nada, de ser elaprópria fundada historicamente com a economia.Inversamente, a história não depende radicalmente desteconhecimento senão enquanto esta história permanecehistória econômica. Quanto do papel da história na própriaeconomia — o processo global que modifica os seuspróprios dados científicos de base — pôde ser, aliás,neglicenciado pelo ponto de vista da observação científica,é o que mostra a vaidade dos cálculos socialistas queacreditavam ter estabelecido a periodicidade exata dascrises; e desde que a intervenção constante do Estadologrou compensar o efeito das tendências à crise, o mesmogênero de raciocínio vê neste equilíbrio uma harmoniaeconômica definitiva. O projeto de superar a economia, oprojeto de tomar posse da história, se ele deve conhecer —e trazer a si — a ciência da sociedade, não pode, elemesmo, ser científico. Nesse último movimento, que crê

Page 50: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 50/132

dominar a história presente através de um conhecimentocientífico, o ponto de vista revolucionário permaneceuburguês.

83

As correntes utópicas do socialismo, embora elaspróprias fundadas historicamente na crítica da organizaçãosocial existente, podem ser justamente qualificadas deutópicas na medida em que recusam a história — isto é, aluta real em curso, assim como o movimento do tempo paraalém da perfeição inalterável da sua imagem de sociedadefeliz —, mas não porque eles recusassem a ciência. Ospensadores utópicos são, pelo contrário, inteiramentedominados pelo pensamento científico, tal como ele setinha imposto nos séculos precedentes. Eles procuram oacabamento desse sistema racional geral: eles não seconsideram de nenhum modo profetas desarmados, porquecrêem no poder social da demonstrarão científica, e mesmo,no caso do saint-simonismo, na tomada do poder pelaciência. Como, diz Sombart, «quereriam eles arrancar pelaluta, aquilo que deveria ser provado?» Contudo, aconcepção científica dos utópicos não se estende aoconhecimento de que os grupos sociais têm interesses numasituação existente, que eles tem forças para mantê-la, e,igualmente, formas de falsa-consciência correspondentes atais posições. Ela permanece, portanto, muito aquém darealidade histórica do desenvolvimento da própria ciência,que se encontrou em grande parte orientada pela procurasocial resultante de tais fatores, que seleciona não só o quepode ser admitido, mas também o que pode ser procurado.Os socialistas utópicos, ao ficarem prisioneiros do modo deexposição da verdade científica, concebem esta verdadesegundo a sua pura imagem abstrata, tal como a tinha vistoimpor-se um estágio muito anterior da sociedade. Como onotava Sorel, é segundo o modelo da astronomia que os

Page 51: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 51/132

utópicos pensam descobrir e demonstrar as leis dasociedade. A harmonia por eles visada, hostil à história,decorre duma tentativa de aplicação à sociedade da ciênciamenos dependente da história. Ela tenta fazer-sereconhecer com a mesma inocência experimental donewtonismo, e o destino feliz, constantemente postulado,«desempenha na sua ciência social um papel análogo aoque cabe à inércia na mecânica racional» (Materiais parauma teoria do proletariado).

84

O lado determinista-científico no pensamento deMarx foi justamente a brecha pela qual penetrou o processode «ideologização», enquanto vivo, e ainda mais na herançateórica deixada ao movimento operário. A chegada dosujeito da história é ainda adiada, e é a ciência histórica porexcelência, a economia, que tende cada vez mais a garantira necessidade da sua própria negação futura. Mas, destemodo, é repelida para fora do campo da visão teórica aprática revolucionária que é a única verdade desta negação.Assim, importa estudar pacientemente o desenvolvimentoeconômico e nele admitir ainda, com uma tranquilidadehegeliana, a dor, o que no seu resultado permanece«cemitério das boas intenções». Descobre-se que agora,segundo a ciência das revoluções, a consciência chegasempre cedo demais, e deverá ser ensinada. «A história nãonos deu razão, a nós e a todos os que pensavam como nós.Ela mostrou claramente que o estado do desenvolvimentoeconômico do continente estava, então, ainda bem longe deestar amadurecido...», dirá Engels em 1895. Durante toda asua vida, Marx manteve o ponto de vista unitário da suateoria, mas o enunciado da sua teoria colocou-se no terrenodo pensamento dominante ao precisar-se, sob a forma decríticas de disciplinas particulares, principalmente a críticada ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia

Page 52: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 52/132

política. É esta mutilação, ulteriormente aceita comodefinitiva, que constitui o «marxismo».

85

A carência na teoria de Marx é naturalmente acarência da luta revolucionária do proletariado da suaépoca. A classe operária não decretou a revoluçãopermanente, na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencidapelo isolamento. A teoria revolucionária não pôde, pois,atingir ainda a sua própria existência total. Reduzir-se adefendê-la e a precisá-la na separação do trabalho douto,no British Museum, implicava uma perda na própria teoria.São precisamente as justificações científicas tiradas dofuturo do desenvolvimento da classe operária, e a práticaorganizacional combinada com estas justificações, que setornarão obstáculos à consciência proletária num estágiomais avançado.

86

Toda a insuficiência teórica na defesa cientifica darevolução proletária pode ser reduzida, tanto no conteúdoassim como na forma do enunciado, a uma identificação doproletariado com a burguesia, do ponto de vista da tomadarevolucionária do poder.

87

A tendência a fundar uma demonstração dalegalidade científica do poder proletário, com o argumentode experimentações repetidas do passado, obscurece, desdeo Manifesto, o pensamento histórico de Marx, ao fazê-losustentar uma imagem linear do desenvolvimento dosmodos de produção, impulsionando lutas de classes queterminariam, por sua vez, «numa transformaçãorevolucionária de toda sociedade ou pela mútua destruiçãodas classes em luta». Mas na realidade observável dahistória, do mesmo modo que o «modo de produção

Page 53: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 53/132

asiático», como Marx algures o constatava, conservou suaimobilidade apesar de todos os afrontamentos de classes. Asjacqueries de servos nunca venceram os barões, nem asrevoltas de escravos da Antiguidade foram vencidas peloshomens livres. O esquema linear perde de vista, antes detudo, o fato de que a burguesia é a única classerevolucionária que jamais venceu; ao mesmo tempo queela é a única para a qual o desenvolvimento da economiafoi causa e consequência do seu poder sobre a sociedade. Amesma simplificação conduziu Marx a negligenciar o papeleconômico do Estado na gestão de uma sociedade declasses. Se a burguesia ascendente pareceu franquear aeconomia do Estado, é somente na medida em que o Estadoantigo se confundia com o instrumento de uma opressão declasse numa economia estática. A burguesia desenvolveu oseu poderio econômico autônomo no período medieval deenfraquecimento do Estado, no momento de fragmentaçãofeudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que,pelo mercantilismo, começou a apoiar o desenvolvimentoda burguesia, e que finalmente se tornou o seu Estado nahora do «laisser faire, laisser passer», vai revelar-seulteriormente dotado de um poder central na gestãocalculada do processo econômico. Marx pôde, no entanto,descrever no bonapartismo este esboço da burocraciaestatal moderna, fusão do capital e do Estado, constituiçãode um «poder nacional do capital sobre o trabalho, de umaforça pública organizada para a sujeição social», onde aburguesia renuncia a toda a vida histórica que não seja asua redução à história econômica das coisas, e se presta a«ser condenada ao mesmo nada político que as outrasclasses». Aqui, estão já colocadas as bases sociopolíticas doespetáculo moderno, que, negativamente, define oproletariado como único pretendente à vida histórica.

88

Page 54: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 54/132

As duas únicas classes que correspondemefetivamente à teoria de Marx, as duas classes puras àsquais leva toda a análise no Capital, a burguesia e oproletariado, são igualmente as duas únicas classesrevolucionárias da história, mas a títulos diferentes: arevolução burguesa está feita; a revolução proletária é umprojeto, nascido na base da precedente revolução, mas deladiferindo qualitativamente. Ao negligenciar a originalidadedo papel histórico da burguesia encobre-se a originalidadeconcreta deste projeto proletário, que nada pode atingirsenão ostentando as suas próprias cores e conhecendo «aimensidade das suas tarefas». A burguesia veio ao poderporque é a classe da economia em desenvolvimento. Oproletariado não pode ele próprio ser o poder, senãotornando-se a classe da consciência. O amadurecimentodas forças produtivas não pode garantir um tal poder,mesmo pelo desvio da despossessão crescente que trazconsigo. A tomada jacobina do Estado não pode ser uminstrumento seu. Nenhuma ideologia lhe pode servir paradisfarçar fins parciais em fins gerais, porque ele não podeconservar nenhuma realidade parcial que seja efetivamentesua.

89

Se Marx, num período determinado da suaparticipação na luta do proletariado, esperou demasiado daprevisão científica, ao ponto de criar a base intelectual dasilusões do economismo, sabe-se que a tal não sucumbiupessoalmente. Numa carta bem conhecida, de 7 deDezembro de 1867, acompanhando um artigo onde elepróprio critica O Capital, artigo que Engels devia fazerpassar na Imprensa como se emanasse de um adversário,Marx expôs claramente o limite da sua própria ciência: «...A tendência subjetiva do autor (que lhe impunham talvez asua posição política e o seu passado), isto é, a maneira

Page 55: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 55/132

como ele apresenta aos outros o resultado último domovimento atual, do processo social atual, não temnenhuma relação com a sua análise real.» Assim Marx, aodenunciar ele próprio as «conclusões tendenciosas» da suaanálise objetiva, e pela ironia do «talvez» relativo àsescolhas extracientíficas que se lhe teriam imposto, mostraao mesmo tempo a chave metodológica da fusão dos doisaspectos.

90

É na própria luta histórica que é preciso realizar afusão do conhecimento e da ação, de tal modo que cada umdestes termos coloque no outro a garantia da sua verdade.A constituição da classe proletária em sujeito é aorganização das lutas revolucionárias e a organização dasociedade no momento revolucionário: é aqui que devemexistir as condições práticas da consciência, nas quais ateoria da práxis se confirma tomando-se teoria prática.Contudo, esta questão central da organização foi a menosconsiderada pela teoria revolucionária na época em que sefundava o movimento operário, isto é, quando esta teoriapossuía ainda o carácter unitário vindo do pensamento dahistória (e que ela se tinha justamente dado por tarefadesenvolver até uma prática histórica unitária). É, pelocontrário, o lugar da inconsequência para esta teoria, aoadmitir o retomar de métodos de aplicação estatais ehierárquicos copiados da revolução burguesa. As formas deorganização do movimento operário desenvolvidas sobreesta renúncia da teoria tenderam por sua vez a interditar amanutenção de uma teoria unitária, dissolvendo-a emdiversos conhecimentos especializados e parcelares. Estaalienação ideológica da teoria já não pode, então,reconhecer a verificação prática do pensamento históricounitário que ela traiu, quando uma tal verificação surge naluta espontânea dos operários; ela pode somente concorrer

Page 56: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 56/132

para reprimir-lhe a manifestação e a memória. Todavia,estas formas históricas aparecidas na luta são justamente omeio prático que faltava à teoria para que ela fosseverdadeira. Elas são uma exigência da teoria, mas que nãotinha sido formulada teoricamente. O soviete não era umadescoberta da teoria. E a mais alta verdade teórica daAssociação Internacional dos Trabalhadores, era já a suaprópria existência na prática.

91

Os primeiros sucessos da luta da Internacionallevavam-na a libertar-se das influências confusas daideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e arepressão que ela cedo encontrará fizeram passar aoprimeiro plano um conflito entre duas concepções darevolução proletária, ambas contendo uma dimensãoautoritária, pela qual a auto-emancipação consciente daclasse é abandonada. Com efeito, a querela tornadairreconciliável entre os marxistas e os bakuninistas eradupla, tendo ao mesmo tempo por objeto o poder nasociedade revolucionária e a organização presente domovimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, asposições dos adversários invertem-se. Bakunine combatia ailusão de uma abolição das classes pelo uso autoritário dopoder estatal, prevendo a reconstituição de uma classedominante burocrática e a ditadura dos mais sábios, ou dosque serão reputados como tal. Marx, que acreditava que umamadurecimento inseparável das contradições econômicas eda educação democrática dos operários reduziria o papel deum Estado proletário a uma simples fase de legalização denovas relações sociais, impondo-se objetivamente,denunciava em Bakunine e seus partidários o autoritarismoduma elite conspirativa que se tinha deliberadamentecolocado acima da Internacional, e que formulava oextravagante desígnio de impor à sociedade a ditadura

Page 57: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 57/132

irresponsável dos mais revolucionários, ou dos que seteriam a si próprios designado como tal. Bakunine recrutavaefetivamente os seus partidários sob tal perspectiva:«Pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, nósdevemos dirigi-la, não por um poder ostensivo mas peladitadura coletiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa,sem título, sem direito oficial, e quanto mais poderosamenos terá aparências de poder». Assim se opuseram duasideologias da revolução operária, contendo cada uma delasuma crítica parcialmente verdadeira, mas perdendo aunidade do pensamento da história e instituindo-se, a sipróprias, em autoridades ideológicas. Organizaçõespoderosas, como a social-democracia alemã e a FederaçãoAnarquista Ibérica, serviram fielmente uma e outra destasideologias; e em toda parte o resultado foi grandementediferente do que era desejado.

92

O fato de olhar a finalidade da revolução proletáriacomo algo imediatamente presente constitui, ao mesmotempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real(porque nas suas variantes individualistas, as pretensões doanarquismo permanecem irrisórias). Do ponto de vista dopensamento histórico da moderna luta de classes, oanarquismo coletivista retém unicamente sua conclusão, esua exigência absoluta desta conclusão traduz-seigualmente no seu desprezo deliberado pelo método. Assim,sua crítica da luta política permaneceu abstrata, enquantosua escolha da luta econômica não se afirmou, ela própria,senão em função da ilusão de uma solução definitivaarrancada de uma só vez nesse terreno, no dia da grevegeral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal arealizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica doEstado e das classes, isto é, das próprias condições sociaisda ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que

Page 58: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 58/132

iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Esteponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deuao anarquismo o mérito de representar a recusa dascondições existentes no conjunto da vida, e não em tornode uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão,ao ser considerada no absoluto, segundo o caprichoindividual, antes da sua realização efetiva condenoutambém o anarquismo a uma incoerência demasiado fácilde constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e arepor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total,porque esta primeira conclusão era desde a origemidentificada com a concretização integral do movimento.Bakunine podia pois escrever em 1873, ao abandonar aFederação do Jura: «Nos últimos nove anos desenvolvemosno seio da Internacional mais ideias do que o necessáriopara salvar o mundo, [como] se as ideias por elas mesmaspudessem salvá-lo, e desafio quem quer que seja a inventaruma nova. O tempo já não está para ideias, mas para fatos eatos». Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamentohistórico do proletariado a certeza de que as ideias devemtornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico aosupor que as formas adequadas a esta passagem à prática jáestão encontradas e não variarão mais.

93

Os anarquistas, que se distinguem explicitamente doconjunto do movimento operário pela sua convicçãoideológica, vão reproduzir entre si esta separação dascompetências, ao fornecer um terreno favorável àdominação informal, sobre toda a organização anarquista,pelos propagandistas e defensores da sua própria ideologia,especialistas, via de regra, medíocres na medida em que suaatividade intelectual se reduz principalmente à repetição dealgumas verdades definitivas. O respeito ideológico daunanimidade na decisão favoreceu antes de mais nada a

Page 59: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 59/132

autoridade incontrolada, na própria organização, dosespecialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionárioespera do povo liberto o mesmo gênero de unanimidade,obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa deconsiderar a oposição das condições entre uma minoriaagrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livresalimentou uma permanente separação dos anarquistas nomomento da decisão comum, como o mostra o exemplo deuma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha,limitadas e esmagadas no plano local.

94

A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamenteno anarquismo autêntico, é a iminência permanente de umarevolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo deorganização prático derivado da ideologia, ao realizar-seinstantaneamente. O anarquismo conduziu realmente, em1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado detodos os tempos, de um poder proletário. Nestacircunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que osinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelopronunciamento do exército. Por outro lado, na medida emque esta revolução não se concluiu nos primeiros dias, pelaexistência de um poder franquista em metade do país,apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que oresto do movimento proletário internacional já estavavencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou deoutros partidos operários estatalistas no campo daRepública, o movimento anarquista organizado mostrou-seincapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e atémesmo de defendê-las. Os seus reconhecidos chefestornaram-se ministros e reféns do Estado burguês quedestruía a revolução para perder a guerra civil.

95

Page 60: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 60/132

O «marxismo ortodoxo» da II Internacional é aideologia científica da revolução socialista, que identificatoda sua verdade ao processo objetivo na economia e aoprogresso dum reconhecimento desta necessidade na classeoperária educada pela organização. Esta ideologiareencontra a confiança na demonstração pedagógica quetinha caracterizado o socialismo utópico, mas dotado deuma referência contemplativa do curso da história: porém,tal atitude perdeu tanto a dimensão hegeliana de umahistória total como perdeu a imagem imóvel da totalidadepresente na crítica utópica (no mais alto grau, em Fourier).

É de tal atitude científica, que não podia fazer maisque relançar simetricamente escolhas éticas, que procedemas tolices de Hilferding quando este afirma que o fato dereconhecer a necessidade do socialismo não dá uma«indicação sobre qual atitude prática adotar. Porque umacoisa é reconhecer uma necessidade, e outra é pôr-se aoserviço desta necessidade» (Capital financeiro). Aquelesque não reconheceram que o pensamento unitário dahistória, para Marx e para o proletariado revolucionário,não era em nada distinto de uma atitude prática a adotar,deviam normalmente ser vítimas da prática que tinhamsimultaneamente adotado.

96

A ideologia da organização social-democratasubmetia-a ao poder dos professores que educavam aclasse operária, e a forma de organização adotada era aforma adequada a esta aprendizagem passiva. Aparticipação dos socialistas da II Internacional nas lutaspolíticas e econômicas era certamente concreta, masprofundamente não crítica. Ela era conduzida, em nome dailusão revolucionária, segundo uma práticamanifestamente reformista. Assim, a ideologiarevolucionária devia ser despedaçada pelo próprio sucesso

Page 61: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 61/132

daqueles que consigo a traziam. A separação dos deputadose dos jornalistas no movimento arrastava para o modo devida burguês aqueles mesmos que eram recrutados entre osintelectuais burgueses. A burocracia sindical constituíacorretores da força de trabalho, vendendo como mercadoriaao seu justo preço aqueles mesmos que eram recrutados apartir das lutas dos operários industriais e deles extraídos.Para que a atividade de todos eles conservasse algo derevolucionário, teria sido necessário que o capitalismo seencontrasse oportunamente incapaz de suportareconomicamente este reformismo que politicamente eletolerava na sua agitação legalista. A incompatibilidade quea sua ciência garantia era a cada instante desmentida pelahistória.

97

Esta contradição, cuja realidade Bernstein, por ser osocial-democrata mais afastado da ideologia política e omais francamente ligado à metodologia da ciência burguesa,teve a honestidade de querer mostrar — e o movimentoreformista dos operários ingleses, ao prescindir da ideologiarevolucionária, tinha-o mostrado também — não devia,contudo, ser demonstrada sem réplica senão pelo própriodesenvolvimento histórico. Bernstein, embora cheio deilusões quanto ao resto, tinha negado que uma crise daprodução capitalista viesse miraculosamente obrigar ossocialistas ao poder que não queriam herdar da revoluçãosenão por esta legítima sagração. O momento de profundaperturbação social que surgiu com a primeira guerramundial, embora tivesse sido fértil em tomada deconsciência, demonstrou duplamente que a hierarquiasocial-democrata não tinha de modo algum tornadoteóricos os operários alemães: de início, quando a grandemaioria do partido aderiu à guerra imperialista, em seguida,quando na derrota ela esmagou os revolucionários

Page 62: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 62/132

spartakistas. O ex-operário Ebert acreditava ainda nopecado, porque confessava odiar a revolução «como opecado». E o mesmo dirigente mostrou-se bom precursor darepresentação socialista que devia, pouco depois, opor-secomo inimigo absoluto ao proletariado da Rússia e dealgures, ao formular o programa exato desta novaalienação: «Socialismo quer dizer trabalhar muito.»

98

Lenine não foi, como pensador, marxista, outracoisa senão um Kautskista fiel e consequente, que aplicavaa ideologia revolucionária deste «marxismo ortodoxo» nascondições russas, condições que não permitiam a práticareformista que a II Internacional seguia em contrapartida. Adireção exterior do proletariado, agindo por intermédio deum partido clandestino disciplinado, submetido aosintelectuais que se tornaram «revolucionáriosprofissionais», constitui aqui uma profissão que não querpactuar com nenhuma profissão dirigente da sociedadecapitalista (o regime czarista sendo, de resto, incapaz deoferecer uma tal abertura, cuja base é um estágio avançadodo poder da burguesia). Ela assume, assim, a profissão dadireção absoluta da sociedade.

99

O radicalismo ideológico autoritário dosbolcheviques estendeu-se, em escala mundial, com a guerrae com o desmoronamento da social-democraciainternacional perante a guerra. O fim sangrento das ilusõesdemocráticas do movimento operário tinha feito do mundointeiro uma Rússia, e o bolchevismo, reinando sobre aprimeira ruptura revolucionária que esta época de crisetinha trazido, oferecia ao proletariado de todos os países oseu modelo hierárquico e ideológico, para «falar em russo»à classe dominante. Lenine não criticou o marxismo da II

Page 63: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 63/132

Internacional de ser uma ideologia revolucionária, mas deter deixado de ser.

100

O mesmo momento histórico, em que o bolchevismotriunfou para si mesmo na Rússia, e onde a social-democracia combateu vitoriosamente para o velho mundo,marca o nascimento acabado de uma ordem de coisas queestá no coração da dominação do espetáculo moderno: arepresentação operária opôs-se radicalmente à classeoperária.

101

«Em todas as revoluções anteriores, escrevia RosaLuxemburgo na Rote Fahne de 21 de Dezembro de 1918,os combatentes afrontavam-se de cara descoberta: classecontra classe, programa contra programa. Na presenterevolução, as tropas de proteção da antiga ordem nãointervêm sob a insígnia das classes dirigentes, mas sob abandeira de um "partido social-democrata". Se a questãocentral da revolução estivesse posta aberta e honestamente,capitalismo ou socialismo, nenhuma dúvida, nenhumahesitação seriam hoje possíveis na grande massa doproletariado.» Assim, alguns dias antes da sua destruição, acorrente radical do proletariado alemão descobria o segredodas novas condições que todo o processo anterior haviacriado (para o qual a representação operária tinhagrandemente contribuído): a organização espetacular dadefesa da ordem existente, o reino central das aparênciasonde nenhuma «questão central» pode jamais ser colocada«aberta e honestamente». A representação revolucionáriado proletariado neste estágio tinha-se tornado, ao mesmotempo, o fator principal e o resultado central da falsificaçãogeral da sociedade.

102

Page 64: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 64/132

A organização do proletariado segundo o modelobolchevique, que tinha nascido do atraso russo e dademissão do movimento operário dos países avançadosquanto à luta revolucionária, encontrou, também no atrasorusso, todas as condições que levavam esta forma deorganização à inversão contra-revolucionária que elainconscientemente continha no seu germe original; ademissão reiterada da massa do movimento operárioeuropeu perante o Hic Rhodus, hic salta do período de1918-1920, demissão que incluía a destruição violenta dasua minoria radical, favoreceu o desenvolvimento completodo processo e dele deixou o resultado mentiroso, perante omundo, como a única solução proletária. O apoderar-se domonopólio estatal da representação e da defesa do poderdos operários, que o partido bolchevique justificou, fê-lotornar-se o que ele era: o partido dos proprietários doproletariado, eliminando no essencial as formasprecedentes de propriedade.

103

Todas as condições da liquidação do czarismo,encaradas no debate teórico sempre insatisfatório dasdiversas tendências da social-democracia russa, havia vinteanos — fraqueza da burguesia, peso da maioria camponesa,papel decisivo de um proletariado concentrado ecombativo, mas extremamente minoritário no país —revelaram, afinal, na prática a sua solução, através de umdado que não estava presente nas hipóteses: a burocraciarevolucionária que dirigia o proletariado, ao apoderar-se doEstado, deu à sociedade uma nova dominação de classe. Arevolução estritamente burguesa era impossível; a «ditadurademocrática dos operários e dos camponeses» era vazia desentido; o poder proletário dos sovietes não podia manter-se, ao mesmo tempo, contra a classe dos camponesesproprietários, a reação branca nacional e internacional, e a

Page 65: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 65/132

sua própria representação exteriorizada e alienada, empartido operário dos senhores absolutos do Estado, daeconomia, da expressão, e dentro em breve do pensamento.A teoria da revolução permanente de Trotsky e Parvus, àqual Lenine aderiu efetivamente em abril de 1917, era aúnica a tomar-se verdadeira para os países atrasados emrelação ao desenvolvimento social da burguesia, mas sódepois da introdução deste fator desconhecido que era opoder de classe da burocracia. A concentração da ditaduranas mãos da representação suprema da ideologia foidefendida da maneira mais consequente por Lenine, nosnumerosos afrontamentos da direção bolchevique. Leninetinha cada vez mais razão contra os seus adversáriosnaquilo que ele sustentava ser a solução implicada pelasescolhas precedentes do poder absoluto minoritário: ademocracia, recusada estatalmente aos camponeses, deviasê-lo aos operários, o que levava a recusá-la aos dirigentescomunistas dos sindicatos, em todo o partido, e finalmenteaté ao topo do partido hierárquico. No X Congresso, nomomento em que o soviete de Kronstadt era abatido pelasarmas e enterrado sob a calúnia, Lenine pronunciava contraos burocratas esquerdistas, organizados em «OposiçãoOperária», a conclusão de que Estaline iria alargar a lógicaaté uma perfeita divisão do mundo: «Aqui ou ali com umaespingarda, mas não com a oposição... Estamos fartos deoposição.»

104

A burocracia, ficando única proprietária de umcapitalismo de Estado, assegurou, antes de mais nada, o seupoder no interior através de uma aliança temporária com ocampesinato, após Kronstadt, por ocasião da «nova políticaeconômica», tal como o defendeu no exterior, utilizando osoperários arregimentados nos partidos burocráticos da IIIInternacional como força de apoio da diplomacia russa,

Page 66: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 66/132

para sabotar todo o movimento revolucionário e sustentargovernos burgueses de que ela esperava um apoio empolítica internacional (O poder do Kuo-Ming-Tang naChina de 1925-1927, a Frente Popular na Espanha e naFrança, etc.). Mas a sociedade burocrática devia prosseguiro seu próprio acabamento pelo terror exercido sobre ocampesinato para realizar a acumulação capitalistaprimitiva mais brutal da história. Esta industrialização daépoca estalinista revela a realidade última da burocracia:ela é a continuação do poder da economia, a salvação doessencial da sociedade mercantil mantendo o trabalho-mercadoria. É prova da economia independente que dominaa sociedade ao ponto de recriar para os seus próprios fins adominação de classe que lhe é necessária: o que se resumeem dizer que a burguesia criou um poder autônomo que,enquanto subsistir esta autonomia, pode até mesmoprescindir de uma burguesia. A burocracia totalitária não é«a última classe proprietária da história» no sentido deBruno Rizzi, mas somente uma classe dominante desubstituição para a economia mercantil. A propriedadeprivada capitalista desfalecente é substituída por umsubproduto simplificado, menos diversificado, concentradoem propriedade coletiva da classe burocrática. Esta formasubdesenvolvida de classe dominante é também a expressãodo subdesenvolvimento econômico; e não tem outraperspectiva senão a de recuperar o atraso destedesenvolvimento em certas regiões do mundo. É o partidooperário, organizado segundo o modelo burguês daseparação, que forneceu o quadro hierárquico-estatal a estaedição suplementar da classe dominante. Anton Ciliganotava, numa prisão de Estaline, que «as questões técnicasde organização revelavam-se ser questões sociais» (Leninee a revolução).

105

Page 67: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 67/132

A ideologia revolucionária, a coerência doseparado na qual o leninismo constitui o mais alto esforçovoluntarista, ao deter a gestão de uma realidade que arejeita, com o estalinismo voltará à sua verdade naincoerência. Nesse momento, a ideologia já não é umaarma, mas um fim. A mentira que não é mais desmentidatorna-se loucura. A realidade, assim como a finalidade, sãodissolvidas na proclamação ideológica totalitária: tudo oque ela diz é tudo o que é. É um primitivismo local doespetáculo, cujo papel é, todavia, essencial nodesenvolvimento do espetáculo mundial. A ideologia que sematerializa aqui não transformou economicamente omundo, como o capitalismo chegando ao estágio daabundância; ela só transformou policialmente a percepção.

106

A classe ideológica totalitária no poder é o poder deum mundo reinvertido: quanto mais ela é forte, mais elaafirma que não existe, e a sua força serve-lhe acima de tudopara afirmar a sua inexistência. Ela é modesta nesse únicoponto, porque a sua inexistência oficial deve tambémcoincidir com o nec plus ultra do desenvolvimentohistórico, que simultaneamente se deveria ao seu infalívelcomando. Exposta por toda a parte a burocracia deve ser aclasse invisível para a consciência, de forma que toda avida social se torna demente. A organização social damentira absoluta decorre desta contradição fundamental.

107

O estalinismo foi o reino do terror na própria classeburocrática. O terrorismo que funda o poder desta classedeve também atingir esta classe, porque ela não possuinenhuma garantia jurídica, nenhuma existência reconhecidaenquanto classe proprietária que ela poderia alargar a cadaum dos seus membros. A sua propriedade real está

Page 68: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 68/132

dissimulada, e ela não se tomou proprietária senão pela viada falsa consciência. A falsa consciência não mantém o seupoder absoluto senão pelo terror absoluto, onde todo overdadeiro motivo acaba por perder-se. Os membros daclasse burocrática no poder não têm o direito de possesobre a sociedade senão coletivamente, enquantoparticipantes numa mentira fundamental: é preciso que elesdesempenhem o papel do proletariado dirigindo umasociedade socialista; que sejam os atores fiéis ao texto dainfidelidade ideológica. Mas a participação efetiva neste sermentiroso deve, ela própria, ver-se reconhecida como umaparticipação verídica. Nenhum burocrata pode sustentarindividualmente o seu direito ao poder, pois provar que éum proletário socialista seria manifestar-se como ocontrário de um burocrata; e provar que é um burocrata éimpossível, uma vez que a verdade oficial da burocracia é ade não ser. Assim, cada burocrata está na dependênciaabsoluta de uma garantia central da ideologia, quereconhece uma participação coletiva ao seu «podersocialista» de todos os burocratas que ela não aniquila. Seos burocratas, considerados no seu conjunto, decidem detudo, a coesão da sua própria classe não pode serassegurada senão pela concentração do seu poder terroristanuma só pessoa. Nesta pessoa reside a única verdadeprática da mentira no poder: a fixação indiscutível da suafronteira sempre retificada. Estaline decide sem apelo quemé finalmente burocrata possuidor; isto é, quem deve serchamado «proletário no poder» ou então «traidor a soldo doMikado e de Wall Street». Os átomos burocráticos nãoencontram a essência comum do seu direito senão napessoa de Estaline. Estaline é esse soberano do mundo quese sabe deste modo a pessoa absoluta, para a consciência daqual não existe espírito mais alto. «O soberano do mundopossui a consciência efetiva do que ele é — o poderuniversal da efetividade — na violência destrutiva que

Page 69: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 69/132

exerce contra o Soi(3) dos seus sujeitos fazendo-lhecontraste.» Ao mesmo tempo que é o poder que define oterreno da dominação, ele é «o poder devastando esseterreno».

108

Quando a ideologia, tornada absoluta pela posse dopoder absoluto, se transforma de um conhecimento parcelarnuma mentira totalitária, o pensamento da história foi tãoperfeitamente aniquilado que a própria história, ao nível doconhecimento mais empírico, já não pode existir. Asociedade burocrática totalitária vive num presenteperpétuo, onde tudo o que sobreveio existe somente paraela como um espaço acessível à sua polícia. O projeto, jáformulado por Napoleão, de «dirigir monarquicamente aenergia das recordações» encontrou a sua concretizaçãototal numa manipulação permanente do passado, não só nossignificados mas também nos fatos. Mas o preço destefranqueamento de toda a realidade histórica é a perda dereferência racional que é indispensável à sociedadehistórica do capitalismo. Sabe-se o que a aplicaçãocientífica da ideologia esquecida pôde custar à economiarussa, quanto mais não seja com a impostura de Lyssenko.Esta contradição da burocracia totalitária administrandouma sociedade industrializada, colhida entre a suanecessidade do racional e a sua recusa do racional, constituitambém uma das deficiências principais face aodesenvolvimento capitalista normal. Do mesmo modo que aburocracia não pode resolver, como este, a questão daagricultura, ela é-lhe finalmente inferior na produçãoindustrial, planificada autoritariamente na base doirrealismo e da mentira generalizada.

109

O movimento operário revolucionário entre as duas

Page 70: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 70/132

guerras foi aniquilado pela ação conjugada da burocraciaestalinista e do totalitarismo fascista que tinha copiado asua forma de organização do partido totalitárioexperimentado na Rússia. O fascismo foi uma defesaextremista da economia burguesa, ameaçada pela crise epela subversão proletária, o estado de sitio na sociedadecapitalista, pelo qual esta sociedade se salva e se dota deuma primeira racionalização de urgência, fazendo intervirmaciçamente o Estado na sua gestão. Mas uma talracionalização é, ela própria, agravada pela imensairracionalidade do seu meio. Se o fascismo se lança nadefesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornadaconservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, anação), reunindo a pequena burguesia e os desempregadosdesnorteados pela crise ou desiludidos pela impotência darevolução socialista, ele próprio não é fundamentalmenteideológico. Ele apresenta-se como aquilo que é: umaressurreição violenta do mito, que exige a participaçãonuma comunidade definida por pseudovalores arcaicos: araça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmotecnicamente equipado. O seu ersatz decomposto do mito éretomado no contexto espetacular moderno, do mesmomodo que a sua parte na destruição do antigo movimentooperário faz dele uma das potências fundadoras dasociedade presente; mas como também acontece que ofascismo é a forma mais dispendiosa da manutenção daordem capitalista, ele devia normalmente abandonar a bocada cena que ocupam os grandes papéis desempenhadospelos Estados capitalistas, eliminado por formas maisracionais e mais fortes desta ordem.

110

Quando a burocracia russa consegue enfimdesfazer-se dos traços da propriedade burguesa queentravavam o seu reino sobre a economia, e desenvolvê-la

Page 71: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 71/132

para o seu próprio uso, e ser reconhecida no exterior entreas grandes potências, ela quis desfrutar calmamente do seupróprio mundo, suprimindo esta porção de arbitrário que seexercia sobre si própria: ela denuncia o estalinismo da suaorigem. Mas uma tal denúncia permanece estalinista,arbitrária, inexplicada e incessantemente corrigida, porquea mentira ideológica da sua origem nunca pode serrevelada. Assim, a burocracia não pode liberalizar-se nemculturalmente nem politicamente porque a sua existênciacomo classe depende do seu monopólio ideológico que,com toda a sua grosseria, é o seu único título depropriedade. A ideologia perdeu certamente a paixão da suaafirmação positiva, mas o que dela subsiste de trivialidadeindiferente tem ainda esta função repressiva de interditar amínima concorrência, de manter cativa a totalidade dopensamento. A burocracia está, assim, ligada a umaideologia em que já ninguém acredita. O que era terroristatornou-se irrisório, mas esta mesma irrisão não podemanter-se senão conservando em segundo plano oterrorismo de que ela queria desfazer-se. Assim, no própriomomento em que a burocracia quer demonstrar a suasuperioridade no terreno do capitalismo, ela confessa-se umparente pobre do capitalismo. Do mesmo modo que a suahistória efetiva está em contradição com o seu direito, e asua ignorância grosseiramente mantida em contradição comas suas pretensões cientificas, o seu projeto de rivalizar coma burguesia na produção duma abundância mercantil éentravado pelo fato de uma tal abundância trazer em simesma a sua ideologia implícita, e reveste-se normalmenteduma liberdade indefinidamente extensa de falsas escolhasespetaculares, pseudoliberdade que permaneceinconciliável com a ideologia burocrática.

111

Neste momento do desenvolvimento, o título de

Page 72: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 72/132

propriedade ideológica da burocracia já se desmorona emescala internacional. O poder, que se tinha estabelecidonacionalmente enquanto modelo fundamentalmenteinternacionalista, deve admitir que já não pode pretendermanter a sua coesão mentirosa para além de cada fronteiranacional. O desigual desenvolvimento econômico queconhecem as burocracias, de interesses concorrentes, queconseguiram possuir o seu «socialismo» fora dum só país,conduziu ao afrontamento público e completo da mentirarussa e da mentira chinesa. A partir deste ponto, cadaburocracia no poder, ou cada partido totalitário candidatoao poder deixado pelo período estalinista em algumasclasses operárias nacionais, deve seguir a sua própria via.Juntando-se às manifestações de negação interior quecomeçaram a afirmar-se perante o mundo com a revoltaoperária de Berlim-Leste, opondo aos burocratas a suaexigência de «um governo de metalúrgicos» e que já umavez foram até ao poder dos conselhos operários da Hungria,a decomposição mundial da aliança da mistificaçãoburocrática é, em última análise, o fator mais desfavorávelpara o desenvolvimento atual da sociedade capitalista. Aburguesia está em vias de perder o adversário que asustentava objetivamente ao unificar ilusoriamente toda anegação da ordem existente. Uma tal divisão do trabalhoespetacular vê o seu fim quando o papel pseudo-revolucionário se divide por sua vez. O elementoespetacular da dissolução do movimento operário vai ser elepróprio dissolvido.

112

A ilusão leninista já não tem outra base atual senãonas diversas tendências trotskistas, onde a identificação doprojeto proletário a uma organização hierárquica daideologia sobrevive inabalavelmente à experiência de todosos seus resultados. A distância que separa o trotskismo da

Page 73: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 73/132

crítica revolucionaria da sociedade presente, permitetambém a distância respeitosa que ele observa em relação aposições que eram já falsas quando foram usadas numcombate real. Trotsky permaneceu até 1927fundamentalmente solidário da alta burocracia, procurandomesmo apoderar-se dela para lhe fazer retomar uma açãorealmente bolchevique no exterior (sabe-se que, nessemomento, para ajudar a dissimular o famoso «testamento deLenine», ele foi ao ponto de desmentir caluniosamente oseu partidário Max Eastman, que o tinha divulgado).Trotsky foi condenado pela sua perspectiva fundamental,porque no momento em que a burocracia se conhece a siprópria no seu resultado como classe contra-revolucionáriano interior, ela deve escolher também ser efetivamentecontra-revolucionária no exterior, em nome da revolução,como em sua casa. A luta ulterior de Trotsky por uma IVinternacional contém a mesma inconsequência. Ele recusoutoda a sua vida reconhecer na burocracia o poder de umaclasse separada, porque ele se tinha tornado durante asegunda revolução russa o partidário incondicional daforma bolchevique de organização. Quando Lukács, em1923, mostrava nesta forma a mediação enfim encontradaentre a teoria e a prática, onde os proletários deixam de ser«espectadores» dos acontecimentos ocorridos na suaorganização para conscientemente os escolherem eviverem, ele descrevia como méritos efetivos do partidobolchevique tudo o que o partido bolchevique não era.Lukács era ainda, a par do seu profundo trabalho teórico,um ideólogo, falando em nome do poder mais vulgarmenteexterior ao movimento proletário, crendo e fazendo crerque ele próprio se reconhecia, com a sua personalidadetotal, nesse poder como no seu próprio. Porquanto oseguimento manifestasse de que maneira esse poderdesmente e suprime os seus lacaios, Lukács, desmentindo-se a si mesmo sem fim, fez ver com uma nitidez caricatural

Page 74: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 74/132

aquilo a que se tinha exatamente identificado: ao contráriode si-mesmo, e do que ele tinha defendido na História eConsciência de Classe. Lukács verifica o melhor possível aregra fundamental que julga todos os intelectuais desteséculo: o que eles respeitam mede exatamente a sua própriarealidade desprezível. Lenine não tinha, no entanto,lisonjeado muito este gênero de ilusões sobre a suaatividade, ele que convinha que «um partido político nãopode examinar os seus membros para ver se hácontradições entre a filosofia destes e o programa dopartido». O partido real, de que Lukács tinha apresentadofora do tempo o retrato sonhado, não era coerente senãopara uma tarefa precisa e parcial: apoderar-se do poder noEstado.

113

A ilusão neoleninista do trotskismo atual, porque é acada momento desmentida pela realidade da sociedadecapitalista moderna, tanto burguesa como burocrática,encontra naturalmente um campo de aplicação privilegiadonos países «subdesenvolvidos» formalmente independentes,onde a ilusão de uma qualquer variante de socialismoestatal e burocrático é conscientemente manipulada como asimples ideologia do desenvolvimento econômico, pelasclasses dirigentes locais. A composição híbrida destasclasses relaciona-se mais ou menos nitidamente com umadegradação sobre o espectro burguesia-burocracia. O seujogo, em escala internacional entre estes dois pólos dopoder capitalista existente, assim como os seuscompromissos ideológicos — sabidamente com o islamismo— exprimindo a realidade híbrida da sua base social,acabam por retirar a este último subproduto do socialismoideológico toda a seriedade, salvo a policial. Umaburocracia pôde formar-se enquadrando a luta nacional e arevolta agrária dos camponeses: ela tende então, como na

Page 75: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 75/132

China, a aplicar o modelo estalinista de industrializaçãonuma sociedade menos desenvolvida que a Rússia de 1917.Uma burocracia capaz de industrializar a nação podeformar-se a partir da pequena burguesia, dos quadros doexército tomando o poder, como o mostra o exemplo doEgito. Em certos pontos, como a Argélia no fim da suaguerra de independência, a burocracia, que se constituiucomo direção para-estatal durante a luta, procura um pontode equilíbrio de um compromisso para se fundir com umafraca burguesia nacional. Enfim, nas antigas colônias daÁfrica negra que continuam abertamente ligadas àburguesia ocidental, americana ou europeia, uma burguesiaconstitui-se — a maior parte das vezes a partir do poder doschefes tradicionais do tribalismo — pela posse do Estado:nestes países onde o imperialismo estrangeiro permanece overdadeiro senhor da economia, chegou um estágio onde oscompradores(4) receberam, em compensação da sua vendados produtos indígenas, a propriedade de um Estadoindígena, independente face às massas locais mas não faceao imperialismo. Neste caso, trata-se de uma burguesiaartificial que não é capaz de acumular, mas quesimplesmente delapida, tanto a parte de mais valia dotrabalho local que lhe cabe, como os subsídios estrangeirosdos Estados ou monopólios que são seus protetores. Aevidência da incapacidade destas classes burguesas adesempenhar a função econômica normal da burguesiaergue perante cada uma delas uma subversão segundo omodelo burocrático mais ou menos adaptado àsparticularidades locais que quer apoderar-se da suaherança. Mas o próprio êxito de uma burocracia no seuprojeto fundamental de industrialização contémnecessariamente a perspectiva do seu revés histórico: aoacumular o capital ela acumula o proletariado, e cria o seupróprio desmentido, num país onde ele ainda não existia.

Page 76: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 76/132

114

Neste desenvolvimento complexo e terrível, quearrastou a época das lutas de classes para novas condições,o proletariado dos países industrializados perdeucompletamente a afirmação da sua perspectiva autônoma e,em última análise, as suas ilusões, mas não o seu ser. Elenão foi suprimido. Permanece irredutivelmente existente naalienação intensificada do capitalismo moderno: ele é aimensa maioria dos trabalhadores que perderam todo opoder sobre o emprego da sua vida, e que, desde que osabem, se redefinem como o proletariado, o negativo emmarcha nesta sociedade. Este proletariado é, objetivamente,reforçado pelo movimento do desaparecimento docampesinato, como pela extensão da lógica do trabalho nafábrica, que se aplica a uma grande parte dos «serviços» edas profissões intelectuais. É subjetivamente que esteproletariado está ainda afastado da sua consciência práticade classe, não só nos empregados, mas também nosoperários que ainda não descobriram senão a impotência e amistificação da velha política. Porém, quando oproletariado descobre que a sua própria força exteriorizadaconcorre para o reforço permanente da sociedadecapitalista, já não só sob a forma de trabalho seu, mastambém sob a forma dos sindicatos, dos partidos ou dopoder estatal que ele tinha constituído para se emancipar,descobre também pela experiência histórica concreta queele é a classe totalmente inimiga de toda a exteriorizaçãopetrificada e de toda a especialização do poder. Ele traz arevolução que não pode deixar nada no exterior de siprópria, a exigência da dominação permanente do presentesobre o passado, e a crítica total da separação; e é disto queele deve encontrar a forma adequada na ação. Nenhumamelhoria quantitativa da sua miséria, nenhuma ilusão deintegração hierárquica é um remédio durável para a suainsatisfação, porque o proletariado não pode reconhecer-se

Page 77: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 77/132

veridicamente num dano particular que teria sofrido, nem,portanto, na reparação de um dano particular, nem de umgrande número desses danos, mas somente no danoabsoluto de estar posto à margem da vida.

115

Aos novos sinais de negação, incompreendidos efalsificados pela ordenação espetacular, que se multiplicamnos países mais avançados economicamente, pode-se játirar a conclusão de que uma nova época está aberta: depoisda primeira tentativa de subversão operária, é agora aabundância capitalista que falhou. Quando as lutas anti-sindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiroque tudo pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadasda juventude lançam um primeiro protesto informe, no qual,porém a recusa da antiga política especializada, da arte e davida quotidiana, está imediatamente implicada, estão aí asduas faces de uma nova luta espontânea que começa sob oaspecto criminal. São os sinais precursores do segundoassalto proletário contra a sociedade de classe. Quando osenfants perdus(5) deste exército ainda imóvel reaparecemnesse terreno que se tornou outro e permaneceu o mesmo,eles seguem um novo «general Ludd», que desta vez oslança na destruição das máquinas do consumo permitido.

116

«A forma política enfim descoberta, sob a qual aemancipação econômica do trabalho podia ser realizada»,tomou neste século uma nítida forma nos Conselhosoperários revolucionários, concentrando neles todas asfunções de decisão e de execução, e federando-se porintermédio de delegados responsáveis perante a base erevogáveis a todo o instante. A sua existência efetiva aindanão foi senão um breve esboço, imediatamente combatido evencido por diferentes forças de defesa da sociedade de

Page 78: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 78/132

classe, entre as quais é necessário muitas vezes contar coma sua própria falsa consciência. Pannekoek insistiajustamente no fato de que a escolha de um poder dosConselhos operários «propõe problemas» mais do que trazuma solução. Mas este poder é precisamente o lugar ondeos problemas da revolução do proletariado podem encontrara sua verdadeira solução. É o lugar onde as condiçõesobjetivas da consciência histórica estão reunidas; arealização da comunicação direta ativa, onde acabam aespecialização, a hierarquia e a separação, onde ascondições existentes foram transformadas «em condiçõesde unidade». Aqui, o sujeito proletário pode emergir da sualuta contra a contemplação: a sua consciência é igual àorganização prática de que ela se dotou, porque estaconsciência é inseparável da intervenção coerente nahistória.

117

No poder dos Conselhos, que deve suplantarinternacionalmente qualquer outro poder, o movimentoproletário é o seu próprio produto, e este produto é opróprio produtor. Ele é para si mesmo a sua própriafinalidade. Somente lá a negação espetacular da vida éefetiva.

118

A aparição dos Conselhos foi a mais alta realidadedo movimento proletário no primeiro quarto do século,realidade que passou despercebida ou disfarçada porque eladesaparecia com o resto do movimento que o conjunto daexperiência histórica de então desmentia e eliminava. Nonovo momento da crítica proletária, este resultado regressacomo o único ponto invicto do movimento vencido. Aconsciência histórica, que sabe ter em si o seu único lugarde existência, pode agora reconhecê-lo, não mais na

Page 79: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 79/132

periferia do que reflui, mas no centro do que sobe.

119

Uma organização revolucionária existente antes dopoder dos Conselhos — que deve encontrar sua própriaforma na luta — sabe, por todas essas razões históricas, quenão representa a classe. Deve apenas reconhecer-se a siprópria como radicalmente saparada do mundo daseparação.

120

A organização revolucionária é a expressãocoerente da teoria da práxis entrando em comunicação não-unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoriaprática. A sua própria prática é a generalização dacomunicação e da coerência nestas lutas. No momentorevolucionário da dissolução da separação social, estaorganização deve reconhecer a sua própria dissoluçãoenquanto organização separada.

121

A organização revolucionária não pode ser senão acrítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que nãopactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhumponto do mundo, e uma crítica pronunciada globalmentecontra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta daorganização revolucionária contra a sociedade de classes asarmas não são outra coisa senão a essência dos próprioscombates: a organização revolucionária não podereproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia quesão as da sociedade dominante. Ela deve lutarpermanentemente contra a sua deformação no espetáculoreinante. O único limite da participação na democracia totalda organização revolucionária é o reconhecimento e a auto-apropriacão efetiva, por todos os seus membros, dacoerência da sua crítica, coerência que deve provar-se na

Page 80: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 80/132

teoria crítica propriamente dita, e na relação entre esta e aatividade prática.

122

Quando o avanço cada vez mais poderoso daalienação capitalista, em todos os níveis, torna cada vezmais difícil aos trabalhadores reconhecer e identificar suaprópria miséria, isso os coloca na alternativa do tudo ounada, ou seja, de recusar a totalidade da sua miséria ounada. A organização revolucionária aprende que ela nãopode combater a alienação sob formas alienadas.

123

A revolução proletária depende inteiramente destanecessidade que, acima de tudo, representa a teoria naforma da inteligência da prática humana que deve serreconhecida e vivida pelas massas. Ela exige que osoperários se tornem dialéticos e traduzam seu pensamentona prática; assim, ela pede aos homens sem qualidade bemmais do que a revolução burguesa pedia aos homensqualificados que ela delegava para seus empreendimentos:porque a consciência ideológica parcial edificada por umaparte da classe burguesa tinha por base essa parte centralda vida social, a economia, onde esta classe detinha opoder. O próprio desenvolvimento da sociedade de classesaté à organização espetacular da não-vida leva, pois, oprojeto revolucionário a tornar-se visivelmente o que ele jáera essencialmente.

124

A teoria revolucionária é, agora, inimiga de toda aideologia revolucionária e sabe que o é.

Page 81: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 81/132

CAPÍTULO VTEMPO E HISTÓRIA

Ó gentis-homens, a vida é curta.Se vivemos, vivamos para

marchar sobre a cabeça dos reis.

Shakespeare, Henrique IV

125

O homem, «o ser negativo que é unicamente namedida em que suprime o Ser», é idêntico ao tempo. Aapropriação pelo homem da sua própria natureza é, de igualmodo, o apoderar-se do desenvolvimento do universo. «Aprópria história é uma parte real da história natural, datransformação da natureza em homem» (Marx).Inversamente, esta «história natural» não tem outraexistência efetiva senão através do processo de uma históriahumana, da única parte que reencontra este todo histórico,como o telescópio moderno cujo alcance recupera no tempoa fuga das nebulosas na periferia do universo. A históriaexistiu sempre, mas não sempre sob a sua forma histórica.A tempo-realização do homem, tal como ela se efetua pelamediação de uma sociedade, é igual a uma humanização dotempo. O movimento inconsciente do tempo manifesta-se etoma-se verdadeiro na consciência histórica.

126

O movimento propriamente histórico, embora aindaescondido, começa na lenta e insensível formação da«natureza real do homem», esta «natureza que nasce nahistória humana — no ato gerador da sociedade humana»,

Page 82: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 82/132

mas a sociedade que então dominou uma técnica e umalinguagem, se é já o produto da sua própria história, não temconsciência senão de um presente perpétuo. Todo oconhecimento, limitado à memória dos mais velhos, ésempre aí levado pelos vivos. Nem a morte nem aprocriação são compreendidas como uma lei do tempo. Otempo permanece imóvel como um espaço fechado.Quando uma sociedade mais complexa acaba por tomarconsciência do tempo, o seu trabalho é bem mais o denegar, porque ela vê no tempo não o que passa, mas o queregressa. A sociedade estática organiza o tempo segundo asua experiência imediata da natureza, sob o modelo dotempo cíclico.

127

O tempo cíclico é já dominante na experiência dospovos nômades, porque são as mesmas condições que sereencontram perante eles a cada momento da sua passagem:Hegel nota que «a errância dos nômades é somente formal,porque está limitada a espaços uniformes». A sociedade,que ao fixar-se localmente dá ao espaço um conteúdo pelaordenação dos lugares individualizados, encontra-se porisso mesmo encerrada no interior desta localização. Oregresso temporal a lugares semelhantes é, agora, o puroregresso do tempo num mesmo lugar, a repetição de umasérie de gestos. A passagem do nomadismo pastoril àagricultura sedentária é o fim da liberdade ociosa e semconteúdo, o princípio do labor. O modo de produção agrárioem geral, dominado pelo ritmo das estacões, é a base dotempo cíclico plenamente constituído. A eternidade é-lheinterior: é aqui em baixo o regresso do mesmo. O mito é aconstrução unitária do pensamento, que garante toda aordem cósmica em volta da ordem que esta sociedade járealizou, de fato, dentro das suas fronteiras.

128

Page 83: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 83/132

A apropriação social do tempo, a produção dohomem pelo trabalho humano, desenvolvem-se numasociedade dividida em classes. O poder que sê constituiusobre a penúria da sociedade do tempo cíclico, a classe, queorganiza este trabalho social e se apropria da mais-valialimitada, apropria-se igualmente da mais-valia temporal dasua organização do tempo social: ela possui só para si otempo irreversível do vivo. A única riqueza que pode existirconcentrada no setor do poder, para ser materialmentedispendida em festa sumtuária, encontra-se tambémdespendida aí enquanto delapidação de um tempo históricoda superfície da sociedade. Os proprietários da mais-valiahistórica detêm o conhecimento e o gozo dosacontecimentos vividos. Este tempo, separado daorganização coletiva do tempo que predomina com aprodução repetitiva da base da vida social, corre acima dasua própria comunidade estática. É o tempo da aventura eda guerra, em que os senhores da sociedade cíclicapercorrem a sua história pessoal; e é igualmente o tempoque aparece no choque das comunidades estranhas, aalteração da ordem imutável da sociedade. A históriasobrevem, pois, perante os homens como um fator estranho,como aquilo que eles não quiseram e do qual se julgavamabrigados. Mas por este rodeio regressa também ainquietação negativa do humano que tinha estado naprópria origem de todo o desenvolvimento que adormecera.

129

Tempo cíclico e, em si mesmo, o tempo semconflito. Mas nesta infância do tempo o conflito estáinstalado: a história luta, antes do mais, para ser a históriana atividade prática dos Senhores. Esta história criasuperficialmente o irreversível; o seu movimento constitui opróprio tempo que ela esgota, no interior do tempoinesgotável da sociedade cíclica.

Page 84: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 84/132

130

As «sociedades frias» são aquelas que reduziram aoextremo a sua parte de história; que mantiveram numequilíbrio constante a sua oposição ao meio ambientenatural e humano, e as suas oposições internas. Se aextrema diversidade das instituições estabelecidas para estefim testemunha a plasticidade da autocriação da naturezahumana, este testemunho não aparece evidentemente senãopara o observador exterior, para o etnólogo vindo do tempohistórico. Em cada uma destas sociedades, umaestruturação definitiva excluiu a mudança. O conformismoabsoluto das práticas sociais existentes, às quais seencontram para sempre identificadas todas as possibilidadeshumanas, já não tem outro limite exterior senão o receio detornar a cair na animalidade sem forma. Aqui, paracontinuar no humano, os homens devem permanecer osmesmos.

131

O nascimento do poder político, que parece estarem relação com as últimas grandes revoluções da técnica,como a fundição do ferro, no limiar de um período que jánão conhecerá perturbações em profundidade até àaparição da indústria, é também o momento que começa adissolver os laços da consanguinidade. Desde então, asucessão das gerações sai da esfera do puro cíclico naturalpara se tornar acontecimento orientado, sucessão depoderes. O tempo irreversível é o tempo daquele que reina;e as dinastias são a sua primeira medida. A escrita é a suaarma. Na escrita, a linguagem atinge a sua plena realidade,independente da mediação entre consciências. Mas estaindependência é idêntica à independência geral do poderseparado, como mediação que constitui a sociedade. Com aescrita aparece uma consciência que já não é trazida etransmitida na relação imediata dos viventes: uma memória

Page 85: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 85/132

impessoal, que é a da administração da sociedade. «Osescritos são os pensamentos do Estado; os arquivos a suamemória» (Novalis).

132

A crônica é a expressão do tempo irreversível dopoder, e também o instrumento que mantém a progressãovoluntarista deste tempo a partir do seu traçado anterior,porque esta orientação do tempo deve desmoronar-se com aforça de cada poder particular; voltando a cair noesquecimento indiferente do único tempo cíclico conhecidopelas massas camponesas que, na derrocada dos impérios edas suas cronologias, nunca mudam. Os possuidores dahistória puseram no tempo um sentido: uma direção que étambém uma significação. Mas esta história desenvolve-se esucumbe à parte; ela deixa imutável a sociedade profunda,porque ela é justamente o que permanece separado darealidade comum. É no que a história dos impérios doOriente se reduz para nós à história das religiões: estascronologias caídas em ruínas não deixaram mais do que ahistória aparentemente autônoma das ilusões que asenvolviam. Os Senhores que detêm a propriedade privadada história, sob a proteção do mito, detêm-na eles próprios,antes de mais nada, sob o modo da ilusão: na China e noEgito, eles tiveram durante muito tempo o monopólio daimortalidade da alma; como as suas primeiras dinastiasreconhecidas são a reorganização imaginária do passado.Mas esta posse ilusória dos Senhores é também toda a possepossível, nesse momento, de uma história comum e da suaprópria história. O alargamento do seu poder históricoefetivo vai a par com uma vulgarização da possessão míticailusória. Tudo isto deriva do simples fato de que é naprópria medida em que os Senhores se encarregaram degarantir miticamente a permanência do tempo cíclico, comonos ritos das estações dos imperadores chineses, que eles

Page 86: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 86/132

próprios dele se libertaram relativamente.

133

Quando a seca cronologia, sem explicação, do poderdivinizado falando aos seus servidores, que não quer sercompreendida senão como execução terrestre dosmandamentos do mito, pode ser superada e se torna históriaconsciente, tornou-se necessário que a participação real nahistória tivesse sido vivida por grupos extensos. Destacomunicação prática entre aqueles que se reconheceramcomo os possuidores de um presente singular, que sentirama riqueza qualitativa dos acontecimentos assim como a suaatividade e o lugar onde habitavam — a sua época —,nasce a linguagem geral da comunicação histórica. Aquelespara quem o tempo irreversível existiu descobrem aomesmo tempo nele o memorável e a ameaça doesquecimento: «Hérodoto de Halicarnasso apresenta aqui osresultados do seu inquérito, para que o tempo não possaabolir os trabalhos dos homens...»

134

O raciocínio sobre a história é inseparavelmenteraciocínio sobre o poder. A Grécia foi esse momento emque o poder e a sua mudança se discutem e secompreendem, a democracia dos Senhores da sociedade.Lá, era o inverso das condições conhecidas pelo Estadodespótico, onde o poder nunca ajusta as suas contas senãoconsigo próprio, na inacessível obscuridade do seu pontomais concentrado: pela revolução de palácio, que o êxitoou o revés põe igualmente fora de discussão. Porém, opoder partilhado das comunidades gregas não existia senãono dispêndio de uma vida social em que a produçãocontinuava separada e estática na classe servil. Só aquelesque não trabalham, vivem. Na divisão das comunidadesgregas e na luta pela exploração das cidades estrangeiras,

Page 87: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 87/132

estava exteriorizado o princípio da separação que fundavainteriormente cada uma delas. A Grécia, que tinha sonhadoa história universal, não conseguiu unir-se face à invasão;nem sequer a unificar os calendários das suas cidadesindependentes. Na Grécia, o tempo histórico tornou-seconsciente, mas não ainda consciente de si mesmo.

135

Depois do desaparecimento das condiçõeslocalmente favoráveis que tinham conhecido ascomunidades gregas, a regressão do pensamento históricoocidental não foi acompanhada de uma reconstituição dasantigas organizações míticas. No choque dos povos doMediterrâneo, na formação e derrocada do Estado romano,apareceram religiões semi-históricas que se tornavamfatores: fundamentais da nova consciência do tempo e anova armadura do poder separado.

136

As religiões monoteístas foram um compromissoentre o mito e a história, entre o tempo cíclico dominandoainda a produção e o tempo irreversível em que seafrontavam e se recompunham os povos. As religiões saídasdo judaísmo são o reconhecimento universal abstrato dotempo irreversível que se encontra democratizado, aberto atodos, mas no ilusório. O tempo é inteiramente orientadopara um único acontecimento final: «O reino de Deus estápróximo». Estas religiões nasceram no solo da história, enele se estabeleceram. Mas mesmo aí, elas mantêm-se emoposição radical à história. A religião semi-históricaestabelece um ponto de partida qualitativo no tempo, onascimento de Cristo, a fuga de Maomé, mas o seu tempoirreversível — introduzindo uma acumulação efetiva quepoderá, no Islã, tomar a forma de uma conquista, ou, nocristianismo da Reforma, a de um acréscimo do capital —

Page 88: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 88/132

está de fato invertido no pensamento religioso como umacontagem inversa: a espera no tempo que diminui, doacesso ao outro mundo verdadeiro, a espera do Juízo Final.A eternidade saiu do tempo cíclico. É o seu além. Ela é oelemento que rebaixa a irreversibilidade do tempo, quesuprime a história na própria história, colocando-se, comoum puro elemento pontual em que o tempo cíclico entrou ese aboliu, do outro lado do tempo irreversível. Bossuet diráainda: «E por intermédio do tempo que passa, nós entramosna eternidade que não passa.»

137

A Idade Média, esse mundo mítico inacabado quetinha a sua perfeição fora de si, é o momento em que otempo cíclico, que regula ainda a parte principal daprodução, é realmente corroído pela história. Uma certatemporalidade irreversível é reconhecida individualmente atodos, na sucessão das épocas da vida, na vida consideradacomo uma viagem, uma passagem sem regresso num mundocujo sentido está algures: o peregrino é o homem que saidesse tempo cíclico para ser efetivamente esse viajante quecada um é enquanto signo. A vida histórica pessoalencontra sempre a sua plena realização na esfera do poder,na participação das lutas conduzidas pelo poder e nas lutaspela disputa do poder; mas o tempo irreversível do poderestá partilhado ao infinito, sob a unificação geral do tempoorientado da era cristã, num mundo de confiança armada,em que o jogo dos Senhores gira à volta da fidelidade e dacontestação da fidelidade devida. Esta sociedade feudal,nascida do encontro da «estrutura organizacional doexército conquistador tal como ela se desenvolveu durantea conquista» e das «forças produtivas encontradas no paísconquistado» (Ideologia alemã) — e é preciso contar, naorganização destas forças produtivas, com a sua linguagemreligiosa — dividiu a dominação da sociedade entre a Igreja

Page 89: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 89/132

e o poder estatal, por sua vez subdividido nas complexasrelações de suserania e de vassalagem dos domíniosterritoriais e das comunas urbanas. Nesta diversidade davida histórica possível, o tempo irreversível que a sociedadeprofunda levava consigo inconscientemente, o tempo vividopela burguesia na produção das mercadorias, a fundação e aexpansão das cidades, a descoberta comercial da Terra — aexperimentação prática que destrói para sempre toda aorganização mítica do cosmos — revelou-se lentamentecomo o trabalho desconhecido da época, quando o grandeempreendimento histórico oficial desse mundo se malogroucom as Cruzadas.

138

No declínio da Idade Média, o tempo irreversívelque invade a sociedade é ressentido pela consciência ligadaà antiga ordem, sob a forma de uma obsessão da morte. É amelancolia da dissolução de um mundo, o último em que asegurança do mito equilibrava ainda a história; e para estamelancolia, toda a coisa terrestre se encaminha somentepara a sua corrupção. As grandes revoltas dos camponesesda Europa são também a sua tentativa de resposta àhistória que os arrancava violentamente ao sono patriarcalque a tutela feudal tinha garantido. É a utopia milenaristada realização terrestre do paraíso, que volta ao primeiroplano o que estava na origem da religião semi-histórica,quando as comunidades cristãs, como o messianismojudaico de que elas provinham, respondiam às perturbaçõese à infelicidade da época, e esperavam a iminenterealização do reino de Deus, acrescentando um fator deinquietação e de subversão à sociedade antiga. Ocristianismo, tendo vindo a partilhar o poder no império,tinha desmentido no momento oportuno, como simplessuperstição, o que subsistia desta esperança: tal é o sentidoda afirmação agostiniana, arquétipo de todos os satisfecit

Page 90: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 90/132

da ideologia moderna, segundo a qual, a Igreja instalada erajá desde há muito tempo este reino de que se falava. Arevolta social do campesinato milenarista define-senaturalmente, antes de tudo, como uma vontade dedestruição da Igreja. Mas o milenarismo desenrola-se nomundo histórico, e não no terreno do mito. Não são, comocrê mostrar Norman Cohn em La Poursuite du Millénium,as esperanças revolucionárias modernas que são osprolongamentos irracionais da paixão religiosa domilenarismo. Bem pelo contrário, é o milenarismo, luta declasse revolucionária falando pela última vez a língua dareligião, que é já uma tendência revolucionária moderna, àqual falta ainda a consciência de não ser senão histórica.Os milenaristas deviam perder porque não podiamreconhecer a revolução como sua própria operação. O fatodeles esperarem agir sob um sinal exterior da decisão deDeus é a tradução, em pensamento, de uma prática na qualos camponeses insurgidos seguem chefes escolhidos foradeles próprios. A classe camponesa não podia atingir umaconsciência justa do funcionamento da sociedade, e damaneira de conduzir a sua própria luta: é porque ela tinhafalta destas condições de unidade na sua ação e na suaconsciência, que ela exprimiu o seu projeto e conduziu assuas guerras segundo a imagética do paraíso terrestre.

139

A nova posse da vida histórica, a Renascença, queencontra na Antiguidade o seu passado e o seu direito, trazem si a alegre ruptura com a eternidade. O seu tempoirreversível é o da acumulação infinita dos conhecimentos,e a consciência histórica, saída da experiência dascomunidades democráticas e das forças que as arruinam,vai retomar, com Maquiavel, o raciocínio sobre o poderdessacralizado, isto é, o indizível do Estado. Na vidaexuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida

Page 91: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 91/132

conhece-se como um gozo da passagem do tempo. Mas estegozo da passagem devia ele próprio ser passageiro. Acanção de Lourenço de Médicis, que Burckhardt consideracomo a expressão do «próprio espírito da Renascença», é oelogio que esta frágil festa da história pronunciou sobre siprópria: «Como é bela a juventude — que parte tãodepressa.»

140

O movimento constante de monopolização da vidahistórica pelo Estado da monarquia absoluta, forma detransição para a completa dominação da classe burguesa,faz aparecer na sua verdade o que é o novo tempoirreversível da burguesia. É ao tempo do trabalho, pelaprimeira vez liberto do cíclico, que a burguesia está ligada.O trabalho tomou-se, com a burguesia, trabalho quetransforma as condições históricas. A burguesia é aprimeira classe dominante para quem o trabalho é um valor.E a burguesia que suprime todo o privilégio, que nãoreconhece nenhum valor que não derive da exploração dotrabalho, identificou, justamente ao trabalho, o seu própriovalor como classe dominante e faz do progresso do trabalhoo seu próprio progresso. A classe que acumula asmercadorias e o capital modifica continuamente a naturezaao modificar o próprio trabalho, ao desencadear a suaprodutividade. Toda a vida social se concentrou já napobreza ornamental da Corte, adorno da fria administraçãoestatal que culmina no «ofício de rei»; e toda a liberdadehistórica particular teve de consentir na sua perda. Aliberdade do jogo temporal irreversível dos feudaisconsumiu-se nas suas últimas batalhas perdidas com asguerras da Fronda ou a sublevação dos Escoceses porCarlos Eduardo. O mundo mudou de base.

141

Page 92: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 92/132

A vitória da burguesia é a vitória do tempoprofundamente histórico, porque ele é o tempo daprodução econômica que transforma a sociedade, empermanência e de cima a baixo. Durante todo o tempo emque a produção agrária permanece o trabalho principal, otempo cíclico, que continua presente no fundo dasociedade, alimenta as forças coligadas da tradição, quevão travar o movimento. Mas o tempo irreversível daeconomia burguesa extirpa essas sobrevivências em toda avastidão do mundo. A história, que tinha aparecido até aícomo o único movimento dos indivíduos da classedominante, e portanto escrita como história fatológica, éagora compreendida como um movimento geral, e nestemovimento severo, os indivíduos são sacrificados. Ahistória que descobre a sua base na economia política sabeagora da existência daquilo que era o seu inconsciente, masque, no entanto, permanece ainda o inconsciente que elanão pode trazer à luz do dia. É somente esta pré-históriacega, uma nova fatalidade que ninguém domina, que aeconomia mercantil democratizou.

142

A história que está presente em toda a profundidadeda sociedade tende a perder-se na superfície. O triunfo dotempo irreversível é também a sua metamorfose em tempodas coisas, porque a arma da sua vitória foi precisamente aprodução em série dos objetos, segundo as leis damercadoria. O principal produto que o desenvolvimentoeconômico fez passar da raridade luxuosa ao consumocorrente é, pois, a história, mas somente enquanto históriado movimento abstrato das coisas que domina todo o usoqualitativo da vida. Enquanto o tempo cíclico anterior tinhasuportado uma parte crescente de tempo histórico vividopor indivíduos e grupos, a dominação do tempo irreversívelda produção vai tender a eliminar socialmente este tempo

Page 93: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 93/132

vivido.

143

Assim, a burguesia fez conhecer e impôs àsociedade um tempo histórico irreversível, mas recusa-lhe autilização. «Houve história, mas já não há mais», porque aclasse dos possuidores da economia, que não deve rompercom a história econômica, deve recalcar assim como umaameaça imediata qualquer outro emprego irreversível dotempo. A classe dominante, feita de especialistas dapossessão das coisas, que por isso são eles próprios umapossessão das coisas, deve ligar a sua sorte à manutençãodesta história reificada, à permanência de uma novaimobilidade na história.Pela primeira vez o trabalhador, nabase da sociedade, não é materialmente estranho à história,porque é agora pela sua base que a sociedade se moveirreversivelmente. Na reivindicação de viver o tempohistórico que ele faz, o proletariado encontra o simplescentro inesquecível do seu projeto revolucionário; e cadauma das tentativas, até aqui goradas, de execução desteprojeto marca um ponto de partida possível da nova vidahistórica.

144

O tempo irreversível da burguesia, senhora dopoder, apresentou-se, antes de mais nada, sob o seu próprionome, como uma origem absoluta, no ano I da República.Mas a ideologia revolucionária da liberdade geral que tinhaabatido os últimos restos de organização mítica dos valores,e toda a regulamentação tradicional da sociedade, deixavajá ver a vontade real que ela tinha vestido à romana: aliberdade do comércio generalizada. A sociedade damercadoria, descobrindo então que devia reconstruir apassividade que lhe tinha sido necessário abalar,fundamentalmente para estabelecer o seu próprio reino

Page 94: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 94/132

puro, «encontra no cristianismo com o seu culto do homemabstrato... o complemento religioso mais adequado» (OCapital). A burguesia concluiu, então, com esta religião umcompromisso que se exprime também na apresentação dotempo: o seu próprio calendário abandonado, o seu tempoirreversível voltou a moldar-se na era cristã, de que elecontinua a sucessão.

145

Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempoirreversível é unificado mundialmente. A história universaltoma-se uma realidade, por que o mundo inteiro estáreunido sob o desenvolvimento deste tempo. Mas estahistória, que em toda a parte é ao mesmo tempo a mesma,ainda não é mais do que a recusa intra-histórica da história.É o tempo da produção econômica, dividido em fragmentosabstratos iguais, que se manifesta em todo o planeta como omesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do mercadomundial, e corolariamente o do espetáculo mundial.

146

O tempo irreversível da produção é, antes de tudo, amedida das mercadorias. Assim, pois, o tempo que seafirma oficialmente em toda a extensão do mundo como otempo geral da sociedade, não significa mais do queinteresses especializados que o constituem, não é senão umtempo particular.

Page 95: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 95/132

CAPÍTULO VIO TEMPO ESPETACULAR

Nada de nosso temos senão o tempo, de quegozam justamente aqueles que não têmparadeiro.

Baltasar Gracián — O Oráculo Manual

147

O tempo da produção, o tempo-mercadoria, é umaacumulação infinita de espaços equivalentes. É a abstraçãodo tempo irreversível, de que todos os segmentos devemprovar ao cronômetro a sua única igualdade quantitativa.Este tempo é, em toda a sua realidade efetiva, o que ele éno seu caráter permutável. É nesta dominação social dotempo-mercadoria que «o tempo é tudo, o homem não énada: é quando muito a carcaça do tempo» (Miséria daFilosofia). É o tempo desvalorizado, a inversão completado tempo como «campo de desenvolvimento humano».

148

O tempo geral do não desenvolvimento humanoexiste também sob o aspecto complementar de um tempoconsumível que regressa à vida quotidiana da sociedade, apartir desta produção determinada, como um tempopseudocíclico.

149

O tempo pseudocíclico não é outra coisa senão odisfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Elecontém as características essenciais de unidadeshomogêneas permutáveis e da supressão da dimensão

Page 96: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 96/132

qualitativa. Mas ao ser o subproduto deste tempo destinadoao atraso da vida quotidiana concreta — e à manutençãodeste atraso —, ele deve estar carregado depseudovalorizações e aparecer numa sucessão de momentosfalsamente individualizados.

150

O tempo pseudocíclico é o do consumo dasobrevivência econômica moderna, a sobrevivênciaaumentada, em que o vivido quotidiano continua privado dedecisão e submetido, não à ordem natural, mas àpseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; e,portanto, este tempo reencontra muito naturalmente ovelho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência dassociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico apoia-seao mesmo tempo nos traços naturais do tempo cíclico, edele compõe novas combinações homólogas: o dia e a noite,o trabalho e o repouso semanais, o retomo dos períodos deférias.

151

O tempo pseudocíclico é um tempo que foitransformado pela indústria. O tempo que tem a sua basena produção de mercadorias é ele próprio uma mercadoriaconsumível que reúne tudo o que anteriormente sedepartamentalizava — quando da fase da dissolução davelha sociedade unitária — em vida privada, vidaeconômica, vida política. Todo o tempo consumível dasociedade moderna acaba sendo tratado como matéria-prima de novos produtos diversificados, que se impõem nomercado como empregos do tempo socialmenteorganizados. «Um produto que já existe sob uma forma queo torna apropriado ao consumo pode, no entanto, tornar-sepor sua vez matéria-prima de um outro produto» (OCapital).

Page 97: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 97/132

152

Em seu setor mais avançado, a concentraçãocapitalista orienta-se para a venda de blocos de tempo«totalmente equipados», cada um deles constituindo umaúnica mercadoria unificada que integrou um certo númerode mercadorias diversas. É assim que pode aparecer, naeconomia em expansão dos «serviços» e das recriações, amodalidade do pagamento calculado «tudo incluído», parao habitat espetacular, as pseudo-deslocações coletivas deférias, o abonamento ao consumo cultural e a venda daprópria sociabilidade em «conversas apaixonantes» e«encontros de personalidades». Esta espécie de mercadoriaespetacular, que evidentemente não pode ter lugar senãoem função da penúria aumentada das realidadescorrespondentes, figura, evidentemente, também entre osartigos-pilotos da modernização das vendas ao poderem serpagas a crédito.

153

O tempo pseudocíclico consumível é o tempoespetacular, em sentido restrito, tempo de consumo deimagens, em sentido amplo, imagem do consumo do tempo.O tempo de consumo das imagens, médium de todas asmercadorias, é o campo onde atuam em toda sua plenitudeos instrumentos do espetáculo e a finalidade que estesapresentam globalmente, como lugar e como figura centralde todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhosde tempo constantemente procurados pela sociedademoderna — quer se trate da velocidade dos transportes ouda utilização de sopas em pacotes — se traduzempositivamente para a população dos Estados Unidos nestefato: de que só a contemplação da televisão a ocupa emmédia três a seis horas por dia. A imagem social doconsumo do tempo, por seu lado, é exclusivamentedominada pelos momentos de ócio e de férias, momentos

Page 98: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 98/132

representados à distancia e desejáveis, por postulado, comotoda a mercadoria espetacular. Esta mercadoria é aquiexplicitamente dada como o momento da vida real de quese trata esperar o regresso cíclico. Mas mesmo nestesmomentos destinados à vida, é ainda o espetáculo que se dáa ver e a reproduzir, atingindo um grau mais intenso. O quefoi representado como vida real, revela-se simplesmentecomo a vida mais realmente espetacular.

154

Esta época, que se mostra a si própria o seu tempocomo sendo essencialmente um regresso precipitado demúltiplas festividades, é realmente uma época sem festa. Oque era, no tempo cíclico, o momento da participação deuma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, éimpossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo.Suas pseudofestas vulgarizadas, paródias do diálogo e dodom, movimentando um excedente de dispêndioeconômico, não trazem outra coisa senão a decepçãosempre compensada pela promessa de uma nova decepção.O tempo da sobrevivência moderna, no espetáculo, gaba-setanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduz. Arealidade do tempo foi substituída pela publicidade dotempo.

155

O consumo do tempo cíclico das sociedades antigasestava de acordo com o trabalho real dessas sociedades,mas o consumo pseudocíclico da economia desenvolvidaencontra-se em contradição com o tempo irreversívelabstrato da sua produção. O tempo cíclico era o tempo dailusão imóvel, realmente vivido, ao passo que o tempoespetacular é o tempo da realidade que se transforma,vivido ilusoriamente.

156

Page 99: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 99/132

O que é sempre novo no processo da produção dascoisas não se reencontra no consumo, que permanece umregresso ampliado do mesmo. Porque o trabalho mortocontinua a dominar o trabalho vivo, no tempo espetacular opassado domina o presente.

157

Como outro aspecto da deficiência da vida históricageral, a vida individual não tem ainda história. Os pseudo-acontecimentos que se amontoam na dramatizaçãoespetacular não foram vividos pelos que deles sãoinformados e, além disso, perdem-se na inflação da suasubstituição precipitada a cada pulsão da maquinariaespetacular. Por outro lado, o que foi realmente vivido estásem relação com o tempo irreversível oficial da sociedade eem oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subprodutoconsumível desse tempo. Este vivido individual da vidaquotidiana separada permanece sem linguagem, semconceito, sem acesso crítico ao seu próprio passado, quenão está consignado em nenhum lado. Ele não se comunica.Está incompreendido e esquecido em proveito da falsamemória espetacular do não-memorável.

158

O espetáculo, como organização social presente daparalisia da história e da memória, do abandono da históriaque se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsaconsciência do tempo.

159

Para rebaixar os trabalhadores à condição deprodutores e consumidores «livres» do tempo-mercadoria, acondição prévia foi a expropriação violenta do seu tempo.O regresso espetacular do tempo não se tornou possívelsenão a partir desta primeira despossessão do produtor.

Page 100: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 100/132

160

A parte irredutivelmente biológica que continuapresente no trabalho, tanto na dependência do cícliconatural da vigília e do sono como na evidência do tempoirreversível individual do uso de uma vida, não são mais doque acessórios face à produção moderna; e como tais, esteselementos são negligenciados nas proclamações oficiais domovimento da produção e dos trofeus consumíveis, que sãoa tradução acessível desta incessante vitória. Imobilizada nocentro falsificado do movimento do seu mundo, aconsciência espectadora não conhece na sua vida outracoisa senão uma passagem para a sua realização e para asua morte. A publicidade dos seguros de vida insinua que érepreensível morrer sem assegurar a regulação do sistemadepois desta perda econômica; o american way of death(6) insiste sobre a sua capacidade de manter neste encontro amaior parte das aparências da vida. Do ponto de vista dafrente do bombardeamento publicitário é terminantementeproibido envelhecer. Tratar-se de poupar, em cada qual, um«capital-juventude» que, por ter sido mediocrementeempregado, não pode pretender adquirir a realidade durávele cumulativa do capital financeiro. Esta ausência social damorte é idêntica à ausência social da vida.

161

O tempo é a alienação necessária, como o mostravaHegel, o meio pelo qual o sujeito se realiza perdendo-se,tornando-se outro para se tornar a verdade de si mesmo.Mas o seu contrário é justamente a alienação dominante,que é suportada pelo produtor de um presente estranho.Nesta alienação espacial, a sociedade que separa na raiz osujeito e a atividade que ela lhe furta, separa-o antes detudo do seu próprio tempo. A alienação social superável éjustamente aquela que interditou e petrificou aspossibilidades e os riscos de alienação viva no tempo.

Page 101: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 101/132

162

Sob os modos aparentes que se anulam e serecompõem à superfície fútil do tempo pseudocíclicocontemplado, o grande estilo da época está sempre no queé orientado pela necessidade evidente e secreta darevolução.

163

A base natural do tempo, o dado sensível do correrdo tempo, torna-se humana e social ao existir para ohomem. É o estado acanhado da prática humana, o trabalhoem diferentes estágios. Que até aqui humanizou edesumanizou também o tempo, como tempo cíclico e temposeparado e irreversível da produção econômica. O projetorevolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vidahistórica generalizada, é o projeto de uma extensãoprogressiva da medida social do tempo em proveito de ummodelo Iúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dosgrupos, modelo no qual estão simultaneamente presentestempos independentes federados. É o programa de umarealização total no meio do tempo, do comunismo quesuprime «tudo o que existe independentemente dosindivíduos»

164

O mundo já possui o sonho de um tempo que eledeve possuir agora, e a consciência para o viver realmente.

Page 102: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 102/132

CAPÍTULO VIIA ORDENAÇÃO DO TERRITÓRIO

E quem se torna senhor de uma cidadehabituada a viver livre, se não destruí-la,acabará sendo destruído por ela, porque ela, emsuas rebeliões, sempre terá refúgio na expressãoda liberdade e nos seus velhos costumes, osquais nem pela vastidão dos tempos nem pornenhuma mercê jamais serão esquecidos. E pormais que se faça ou precavenha, se nãoexpulsar ou dispersar seus habitantes, elesjamais esquecerão essa expressão nem essescostumes...

Maquiavel — O Príncipe

165

A produção capitalista unificou o espaço, que não émais limitado pelas sociedades exteriores. Esta unificação é,ao mesmo tempo, um processo extensivo e intensivo debanalização. A acumulação das mercadorias produzidas emsérie para o espaço abstrato do mercado, do mesmo modoque quebrou todas as barreiras regionais, legais, e todas asrestrições corporativas da Idade Média que mantinham aqualidade da produção artesanal, também dissolveu aautonomia e a qualidade dos lugares. Este poder dehomogeneização foi semelhante à artilharia pesada quederrubou todas as muralhas da China.

166

Tornando-se cada vez mais idêntico a si mesmo, e

Page 103: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 103/132

aproximando-se o máximo possível da monotonia imóvel, oespaço livre da mercadoria é a cada instante modificado ereconstruído.

167

Esta sociedade que suprime a distância geográfica,amplia a distância interior, na forma de uma separaçãoespetacular.

168

Subproduto da circulação das mercadorias, acirculação humana considerada como consumo, o turismo,reduz-se fundamentalmente à distração de ir ver o que já setornou banal. A ordenação econômica dos frequentadoresde lugares diferentes é por si só a garantia da suapasteurização. A mesma modernização que retirou daviagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço.

169

Essa sociedade que modela tudo o que a rodeiaedifica sua técnica especial trabalhando a base concretadeste conjunto de tarefas: o seu próprio território. Ourbanismo é a tomada do meio ambiente natural e humanopelo capitalismo que, ao desenvolver-se em sua lógica dedominação absoluta, refaz a totalidade do espaço como seupróprio cenário.

170

A necessidade capitalista satisfeita no urbanismo,enquanto glaciação visível da vida, exprime-se —empregando termos hegelianos — enquanto predominânciaabsoluta da «plácida coexistência do espaço» sobre «oinquieto devir na sucessão do tempo».

171

Todas as forças técnicas da economia capitalistadevem ser compreendidas como agentes de separação, o

Page 104: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 104/132

urbanismo é o equipamento da sua base geral, que preparao solo que convém ao seu desenvolvimento; a própriatécnica da separação.

172

O urbanismo é a concretização moderna da tarefaininterrupta que salvaguarda o poder de classe: amanutenção da pulverização dos trabalhadores que ascondições urbanas de produção tinham perigosamentereunido. A luta constante que teve de ser levada a cabocontra todos os aspectos desta possibilidade de encontrodescobre no urbanismo o seu campo privilegiado. O esforçode todos os poderes estabelecidos desde as experiências daRevolução francesa, para aperfeiçoar os meios de manter aordem na rua, culmina finalmente na supressão da rua.«Com os meios de comunicação de massa a grandedistância, o isolamento da população torna-se um meio decontrole bastante eficaz», constata Lewis Mumford em ACidade Através da História, ao descrever um «mundodoravante único». Mas o movimento geral do isolamento,que é a realidade do urbanismo, deve também conter umareintegração controlada dos trabalhadores, segundo asnecessidades planificáveis da produção e do consumo. Aintegração no sistema deve apoderar-se dos indivíduosisolados em conjunto: fábricas, casas da cultura, colôniasde férias, todas essas coisas devem funcionar como«grandes conjuntos habitacionais», especialmenteorganizados para os fins desta pseudocoletividade queacompanha também o indivíduo isolado na célula familiar:o emprego generalizado dos receptores da mensagemespetacular faz com que o seu isolamento se encontrepovoado pelas imagens dominantes, imagens que somenteatravés deste isolamento adquirem seu pleno poderio.

173

Page 105: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 105/132

Pela primeira vez, aquela nova arquitetura que nopassado era reservada à satisfação das classes dominantes,encontra-se diretamente destinada aos pobres. A misériaformal e a extensão gigantesca desta nova experiência dehabitat provêm em conjunto do seu caráter de massa, queestá implícito, ao mesmo tempo, na sua destinação e pelascondições modernas de construção. A decisão autoritária,que ordena abstratamente o território em território daabstração, está, evidentemente, no centro destas condiçõesmodernas de construção. A mesma arquitetura aparece portoda parte no processo de industrialização dos paísesatrasados, o terreno adequado ao novo gênero de existênciasocial que se pretende implantar. Tão nitidamente como nasquestões do armamento termonuclear ou da natalidade —que já alcançou a possibilidade de uma manipulaçãohereditaria — o limiar transposto pelo crescimento do podermaterial da sociedade e o atraso da dominação conscientedeste poder estão expostos no urbanismo.

174

O momento presente é o momento do autofagismodo meio urbano. O rebentar das cidades sobre camposrecobertos de «massas informes de resíduos urbanos»(Lewis Mumford) é, de um modo imediato, presidido pelosimperativos do consumo. A ditadura do automóvel,produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil,estabeleceu-se na terra com a prevalescência da auto-estrada, que desloca os antigos centros e exige umadispersão cada vez maior. Ao passo que os momentos dereorganização incompleta do tecido urbano polarizam-sepassageiramente em torno das «fábricas de distribuição»que são os gigantescos supermercados(7) , geralmenteedificados em terreno aberto e cercados por umestacionamento(7) ; e estes templos de consumoprecipitado estão, eles próprios, em fuga num movimento

Page 106: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 106/132

centrífugo, que os repele à medida que eles se tornam, porsua vez, centros secundários sobrecarregados, porquetrouxeram consigo uma recomposição parcial daaglomeração. Mas a organização técnica do consumo não éoutra coisa senão o arquétipo da dissolução geral queconduziu a cidade a consumir-se a si própria.

175

A história econômica, que se desenvolveuintensamente em torno da oposição cidade-campo, chegoua um tal gráu de sucesso que anula ao mesmo tempo os doistermos. A paralisia atual do desenvolvimento históricototal, em proveito da exclusiva continuação do movimentoindependente da economia, faz do momento em quecomeçam a desaparecer a cidade e o campo, não omomento de superação da sua cisão, mas o momento deseu desmoronamento simultâneo. A autofagia recíproca dacidade e do campo, produto do desfalecimento domovimento histórico pelo qual a realidade urbana existentedeveria ser superada, aparece na mistura eclética dos seuselementos decompostos que recobre as zonas maisavançadas na industrialização.

176

A história universal nasceu nas cidades e atinge amaioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobreo campo. Marx considerava este fato como um dos maioresméritos revolucionários da burguesia: «ela submeteu ocampo à cidade» cujo ar emancipa. Mas se a história dacidade é a história da liberdade, ela é também a da tirania,da administração estatal que controla o campo e a própriacidade. A cidade é o campo de batalha da liberdadehistórica, não sua posse. A cidade é o meio da história,porque ela é ao mesmo tempo concentração do podersocial, que torna possível a empresa histórica, e consciência

Page 107: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 107/132

do passado. A tendência presente à liquidação da cidadenão faz, pois, senão exprimir de um outro modo o atraso deuma subordinação da economia à consciência histórica, deuma unificação da sociedade reassenhorando-se dospoderes que dela se tinham desligado.

177

«O campo mostra justamente o fato contrário, oisolamento e a separação» (Ideologia alemã). O urbanismoque destrói as cidades, reconstrói um pseudocampo, no qualestão perdidas tanto as relações naturais do antigo campocomo as relações sociais diretas da cidade histórica,diretamente postas em questão. É um novo campesinatofictício, recriado pelas condições de habitat e de controleespetacular no atual «território ordenado»: a dispersão noespaço e a mentalidade acanhada, que sempre impediram ocampesinato de empreender uma ação independente e de seafirmar como potência histórica criadora, retornando àcondição de produtores — o movimento de um mundo queeles próprios fabricam, ficando tão completamente fora doseu alcance como quanto o ritmo natural dos trabalhos paraa sociedade agrária. Mas este campesinato, outrora ainabalável base do «despotismo oriental», cujo próprioestilhaçamento provocou a centralização burocrática,reaparece como resultado das condições de aumento daburocratizarão estatal moderna, a sua apatia teve de seragora historicamente fabricada e alimentada; a ignorâncianatural cedeu o lugar ao espetáculo organizado do erro. As«cidades novas» do pseudocampesinato tecnológicoinscrevem claramente a ruptura com o tempo históricosobre o qual são construídas; seu lema bem que podia ser:«Aqui não aconteceu nada, nem nunca acontecerá».Porque a história da necessidade de libertar as cidadesainda não foi desencadeada. As forças da ausênciahistórica começam a compor a sua própria e exclusiva

Page 108: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 108/132

paisagem.

178

A história que ameaça este mundo crepuscular étambém a força que pode submeter o espaço ao tempovivido. A revolução proletária é a crítica da geografiahumana, através da qual os indivíduos e as comunidadesconstróem os lugares e os acontecimentos na medida emque se apropriam deles, não apenas pelo seu trabalho, maspela sua história total. Neste espaço dinâmico do jogo, e dasvariações livremente escolhidas das regras do jogo, aautonomia do lugar pode reencontrar-se sem reintroduziruma afeição exclusiva à terra, restabelecendo a realidade deuma viagem que tem em si própria todo o seu sentido.

179

A idéia mais revolucionária a respeito do urbanismonão é nem urbanística, nem tecnológica, nem estética. É adecisão de reconstruir integralmente o território segundo asnecessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, daditadura anti-estatal do proletariado, do diálogoexecutório. E o poder dos Conselhos não pode ser efetivosenão transformando a totalidade das condições existentes,não poderá atribuir-se-lhes uma tarefa menor do que serreconhecido e reconhecer-se a si mesmo no seu mundo.

Page 109: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 109/132

CAPÍTULO VIIIA NEGAÇÃO E O CONSUMO NA CULTURA

Viveremos o suficiente para ver uma revoluçãopolítica? Nós, contemporâneos destes alemães?Meu amigo, você crê o que deseja... Observe aAlemanha do ponto de vista de sua históriarecente, e concordará comigo que toda estahistória está falsificada e que toda a vidapública atual não representa a realidade dopovo. Leia os jornais que quizer, eles não vãoparar de celebrar a liberdade e a felicidadenacional, a censura não vai impedir ninguém defazer isso...

Ruge — Carta a Marx, Março de 1844

180

A cultura é a esfera geral do conhecimento e dasrepresentações da vivência na sociedade histórica divididaem classes; o que significa dizer que ela é o poder degeneralização existente à parte, cisão entre o trabalhointelectual e trabalho intelectual dividido. A culturadesligou-se da unidade da sociedade do mito, «quando opoder da unificação desaparece da vida do homem, oscontrários perdem sua relação, sua interação viva, eadquirem autonomia...» (Diferença entre os sistemas deFichte e de Schelling). Ao ganhar sua independência, acultura inaugura um movimento imperialista deenriquecimento, que é, ao mesmo tempo, o declínio da suaindependência. A história, que cria a autonomia relativa dacultura e as ilusões ideológicas desta autonomia, exprime-se

Page 110: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 110/132

também como história da cultura. E toda a históriaconquistadora da cultura pode ser compreendida como ahistória da revelação da sua insuficiência, como umamarcha para a sua auto-supressão. A cultura é o lugar daprocura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, acultura como esfera separada representa sua próprianegação.

181

A luta entre a tradição e a inovação, que é oprincípio do desenvolvimento interno da cultura dassociedades históricas, não pode ter andamento senãoatravés da vitória permanente da inovação. A inovação nacultura, porém, não vem senão trazida pelo movimentohistórico total que, ao tomar consciência da sua totalidade,tende à superação dos seus próprios pressupostos culturais ecaminha para a supressão de toda a separação.

182

O progresso dos conhecimentos da sociedade, quecontem a compreensão da história como o coração dacultura, adquire por si próprio um conhecimento semretorno que é expresso pela destruição de Deus. Mas esta«condição primeira de toda a crítica» é de igual modo aobrigação primeira de uma crítica infinita. Lá ondenenhuma regra de conduta pode manter-se, cada resultadoda cultura a faz avançar para a sua dissolução. Como afilosofia no instante em que conquistou a sua plenaautonomia, toda a disciplina tornada autônoma devedesmoronar-se, inicialmente enquanto pretensão deexplicação coerente da totalidade social, e, finalmente,enquanto instrumentação parcelar utilizável dentro das suaspróprias fronteiras. A falta de racionalidade da culturaseparada é o elemento que a condena a desaparecer,porque, nela, a vitória do racional está já presente como

Page 111: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 111/132

exigência.

183

A cultura emanada da história que dissolveu ogênero de vida do velho mundo, enquanto esfera separada,é a inteligência e a comunicação sensível que continuamparciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é osentido de um mundo bem pouco sensato.

184

O fim da história da cultura manifesta-se em doisaspectos opostos: o projeto da sua superação na históriatotal e a organização da sua manutenção enquanto objetomorto na contemplação espetacular. No primeiro caso ligaseu destino à crítica social e no outro à defesa do poder declasse.

185

Cada um dos dois aspectos do fim da cultura existede um modo unitário, não apenas em todos os aspectos doconhecimento, mas também em todos os aspectos darepresentação sensível — ou seja, arte no sentido maisgeral. No primeiro caso, opõe-se a acumulação deconhecimentos fragmentários que se tornam inuteis, porquea aprovação das condições existentes deve finalmenterenunciar aos seus próprios conhecimentos. Assim, ateoria da práxis detém sozinha toda a verdade e o segredoda sua utilização. No segundo caso, opõe-se àautodestruição crítica da antiga linguagem comum dasociedade e à sua recomposição artificial no espetáculomercantil, a representação ilusória do não vivido.

186

Quando a sociedade perde a comunidade do mito,perde também todas as referências de uma linguagemrealmente comum no momento em que a cisão da

Page 112: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 112/132

comunidade inativa é superada pelo acesso à comunidadehistórica real. A arte, que foi essa linguagem comum dainação social, no momento em que ela se constitui em arteindependente no sentido moderno, emerge do seu primeirouniverso religioso e torna-se produção individual de obrasseparadas, a saber, o movimento que domina a história doconjunto da cultura separada. A sua afirmaçãoindependente é o começo da sua dissolução.

187

A perda da linguagem da comunicação exprimepositivamente o movimento de decomposição moderna detoda arte, o seu aniquilamento formal. O que estemovimento exprime negativamente é o fato de que umalinguagem comum deve ser reencontrada, não mais naconclusão unilateral de que a arte da sociedade históricachegava sempre demasiado tarde. Essa arte falava a outrosaquilo que foi vivido sem diálogo real, admitindo estadeficiência da vida, embora ela reencontre na práxis a uniãoentre a atividade direta e a sua linguagem. Trata-se depossuir efetivamente a comunidade do diálogo e de atuarcom o tempo, representados na obra poético-artística.

188

Quando a arte tornada independente representa oseu mundo com cores resplandecentes, o momento da vidaenvelhece e não rejuvenesce com as cores resplandecentes.Ele deixa-se somente evocar na recordação. A grandeza daarte não começa a aparecer senão no poente da vida.

189

O tempo histórico que invade a arte exprime-seantes de tudo na própria esfera da arte, a partir do barroco.O barroco é a arte de um mundo que perdeu seu centro: aúltima ordem mítica reconhecida pela Idade Média, nocosmos e no governo terrestre — a unidade da Cristandade

Page 113: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 113/132

e o fantasma do Império — caem por terra. A arte damudança deve trazer em si o princípio efêmero que eladescobre no mundo. Ela escolheu, conforme diz Eugêniod'Ors, «a vida contra a eternidade». O teatro e a festa, afesta teatral, são os momentos dominantes da realizaçãobarroca, na qual toda expressão artística particular não temsentido senão pela sua referência ao décor de um lugarconstruído, uma construção que deve ser para si própria ocentro de unificação; e este centro é a passagem que estáinscrita como um equilíbrio ameaçado na desordemdinâmica de tudo. A importância, por vezes excessiva,adquirida pelo conceito de barroco na discussão estéticacontemporânea traduz a tomada de consciência naimpossibilidade dum classicismo artístico: os esforços afavor dum classicismo ou neoclassicismo normativos, desdehá três séculos, não foram senão breves construçõesfictícias falando a linguagem exterior do Estado, damonarquia absoluta ou da burguesia revolucionária vestidaà romana. Do romantismo ao cubismo, é uma arte cada vezmais individualizada da negação, renovando-seperpetuamente até sua redução a migalhas e sua negaçãoacabada da esfera artística que seguiu o curso geral dobarroco. O desaparecimento da arte histórica, que estavaligada à comunicação interna duma elite, que tinha a suabase social semi-independente nas condições parcialmentelúdicas ainda vividas pelas últimas aristocracias, traduztambém este fato: o capitalismo conhece o primeiro poderde classe que se confessa despojado de qualquer qualidadeontológica. A raiz do poder na simples gestão da economiaé igualmente a perda de toda a maestria humana. Oconjunto barroco, que para a criação artística é, em sipróprio, uma unidade há muito tempo perdida, reencontra-se de algum modo no consumo atual da totalidade dopassado artístico. O conhecimento e o reconhecimentohistóricos de toda arte do passado, retrospectivamente

Page 114: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 114/132

constituída em arte mundial, relativizam-na numa desordemglobal que constitui, por sua vez, um edifício barroco a umnível mais elevado, edifício no qual devem fundir-se aprópria produção de uma arte barroca e todos os seusressurgimentos. As artes de todas as civilizações e de todasas épocas podem, pela primeira vez, ser todas conhecidas eadmiradas em conjunto. É uma «coleção das recordações»da história da arte que, ao tornar-se possível, é de igualmodo o fim do mundo da arte. É nesta época dos museus,quando nenhuma comunicação artística pode mais existir,que todos os momentos antigos da arte podem serigualmente admitidos, porque nenhum deles padece mais daperda das suas condições de comunicação em geral.

190

A arte na sua época de dissolução, enquantomovimento negativo que prossegue a superação da artenuma sociedade histórica em que a história não foi aindavivida é ao mesmo tempo uma arte da mudança e aexpressão pura da mudança impossível. Quanto mais a suaexigência é grandiosa, mais a sua verdadeira realização estápara além dela. Esta arte é forçosamente de vanguarda, enão é. A sua vanguarda é o seu desaparecimento.

191

O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntesque marcaram o fim da arte moderna. Elas foramcontemporâneas do último grande assalto do movimentorevolucionário proletário; contudo, o revés destemovimento confinou-as no mesmo campo artístico queproclamaram sua caducidade, o que constituiu a razãofundamental da sua imobilização. Tanto o dadaísmo como osurrealismo estão historicamente ligados e ao mesmotempoem oposição um ao outro. Nesta oposição, queconstitui para ambos a parte mais consequente e radical da

Page 115: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 115/132

sua contribuição, aparece a insuficiência interna da suacrítica, desenvolvida unilateralmente tanto por uma comopor outra. O dadaísmo quis suprimir a arte sem a realizar;e o surrealismo quis realizar a arte sem a suprimir. Aposição crítica elaborada posteriormente pelossituacionistas mostrou que a supressão e a realização daarte são aspectos inseparáveis de uma mesma superação daarte.

192

O consumo espetacular que conserva a antigacultura congelada, compreendendo nela a repetiçãoremendada das suas manifestações negativas, torna-seabertamente no aspecto cultural o que ele implicitamente éna sua totalidade: a comunicação do incomunicável. Adestruição extrema da linguagem pode encontrar-se aíinsipidamente reconhecida como um valor positivo oficial,pois trata-se de apregoar uma reconciliação com o estadodominante das coisas, no qual toda a comunicação éalegremente proclamada ausente. A verdade crítica destadestruição, enquanto vida real da poesia e arte modernas,está evidentemente escondida, porque o espetáculo, quetem a função de fazer esquecer a história na cultura,aplica na pseudonovidade dos seus meios modernistas aprópria estratégia que o constitui em profundidade. Assim,uma escola de neoliteratura tida como nova, simplesmenteauto-contempla seus escritos. Aliás, ao lado da simplesproclamação da beleza suficiente da dissolução docomunicável, a tendência mais moderna da culturaespetacular — e a mais ligada à prática repressiva daorganização geral da sociedade — procura recompor,através de «trabalhos de conjunto», um meio neo-artísticocomplexo a partir dos elementos decompostos; procurandointegrar detritos ou híbridos estético-técnicos no urbanismo.Traduzindo, no plano da pseudo-cultura espetacular, o

Page 116: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 116/132

projeto geral do capitalismo desenvolvido que visa ocupar-se do trabalhador pulverizado como «personalidade bemintegrada no grupo», tendência descrita pelos recentessociólogos americanos (Riesman, Whyte, etc.). Trata-se, emtoda a parte, do mesmo projeto — uma reestruturação semcomunidade.

193

A cultura tida integralmente como mercadoria devetomar-se também a mercadoria vedete da sociedadeespetacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançadosdesta tendência, calculou que o complexo processo deprodução, distribuição e consumo dos conhecimentos,açambarca anualmente 29% do produto nacional nosEstados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar nasegunda metade deste século o papel motor nodesenvolvimento da economia, como o automóvel o foi nasua primeira metade, e as ferrovias na segunda metade doséculo precedente.

194

O conjunto dos conhecimentos, que continua adesenvolver-se atualmente como pensamento doespetáculo, deve justificar uma sociedade injustificável, econstituir-se em ciência geral da falsa-consciência,inteiramente condicionada pelo fato de não poder nemmesmo querer pensar na sua própria base material nosistema espetacular.

195

O próprio pensamento da organização social daaparência está obscurecido pela subcomunicaçãogeneralizada que ele defende. Ele não sabe que o conflitoestá na origem de todas as coisas do seu mundo. Osespecialistas do poder do espetáculo, poder absoluto nointerior do seu sistema de linguagem mão única, estão

Page 117: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 117/132

absolutamente corrompidos pela sua experiência dodesprezo e do êxito do desprezo; porque reencontram o seudesprezo confirmado pelo conhecimento do homemdesprezível que é realmente o espectador.

196

No pensamento especializado do sistemaespetacular opera-se uma nova divisão das tarefas namedida em que o próprio aperfeiçoamento deste sistemasitua os novos problemas: por um lado, a críticaespetacular do espetáculo é empreendida pela sociologiamoderna, que estuda a separação com o auxílio de seusinstrumentos conceituais e materiais da separação; poroutro lado, a apologia do espetáculo constitui-se empensamento do não-pensamento, em esquecimentoregistrado da prática histórica, nas diversas disciplinasonde se enraíza o estruturalismo. Porém, o falso desesperoda crítica não dialética e o falso otimismo da purapublicidade do sistema são idênticos enquanto pensamentosubmisso.

197

A sociologia que começou a questionar, inicialmentenos Estados Unidos, as condições resultantes do atualdesenvolvimento, embora tenha apresentado muitos dadosempíricos, nunca conheceu a verdade do seu próprioobjeto, porque não encontrou no mesmo a crítica que lhe éimanente. Assim, a tendência francamente reformista destasociologia não se apoia senão na moral, no senso comum, eem apelos à moderação completamente fora de propósito.Tal maneira de criticar, desconhecendo o negativo que estáno coração do seu mundo, nada faz senão insistir nadescrição de uma espécie de excedente negativo que omantém deploravelmente na superfície, como umaproliferação parasitária irracional. Esta boa vontade

Page 118: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 118/132

indignada, que mesmo enquanto tal não consegue vituperarsenão as consequências exteriores do sistema, emborajulgue-se crítica, esquece o caráter essencialmenteapologético dos seus pressupostos e do seu método.

198

Aqueles que denunciam o absurdo ou os perigos doincitamento à dissipação na sociedade da abundânciaeconômica, não sabem para que serve a dissipação. Elesacusam de ingratidão, em nome da racionalidadeeconômica, os bons guardas irracionais sem os quais opoder desta racionalidade econômica se desmoronaria.Boorstin, por exemplo, que descreve em A Imagem oconsumo mercantil do espetáculo americano, nunca atingeo conceito de espetáculo, por achar poder deixar a vidaprivada do lado de fora, em sua noção de «mercadoriahonesta». Não compreende que a própria mercadoria fez asleis cuja aplicação «honesta» contamina tanto a realidadeda vida privada como a sua conquista ulterior pelo consumosocial das imagens.

199

Boorstin descreve os excessos de um mundo que setornou estranho para nós, excessos estranhos ao nossomundo. Mas a base «normal» da vida social a que ele serefere implicitamente quando qualifica o reino superficialdas imagens — em termos de julgamento psicológico emoral e como produto das «nossas extravagantespretensões» — não é real nem no seu livro nem na suaépoca. A vida humana real mencionada por Boorstin estápara ele no passado, inclusive no passado da resignaçãoreligiosa, de forma que não pode compreender toda aprofundidade da sociedade da imagem. A verdade destasociedade não é mais do que a negação desta sociedade.

200

Page 119: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 119/132

A sociologia, que julga poder extrair do conjunto davida social uma racionalidade industrial funcionando àparte, apenas extrai do movimento industrial global astécnicas de reprodução e transmissão. Assim, Boorstin tomacomo causa dos resultados que descreve, o encontro infeliz,quase fortuito, do gigantesco aparelho técnico de difusão deimagens e da gigantesca propensão dos homens da nossaépoca ao pseudo-sensacional. Assim, o espetáculo surgedevido ao fato do homem moderno ser demasiadoespectador. Boorstin não compreende que a proliferaçãodos «pseudo-acontecimentos» pré-fabricados que eledenuncia deriva deste simples fato: que os próprios homens,na realidade concreta da atual vida social, não vivem osacontecimentos. O fato da história perseguir a sociedademoderna como um espectro, resulta em uma pseudo-históriaconstruída em todos os níveis do consumo da vida, parapreservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado.

201

A afirmação da estabilidade definitiva de um curtoperíodo de congelamento do tempo histórico é a baseinegável, inconsciente e conscientemente proclamada, daatual tendência a uma sistematização estruturalista. Oponto de vista em que se coloca o pensamento anti-histórico do estruturalismo é o da eterna presença de umsistema que nunca foi criado e que nunca acabará. O sonhoda ditadura de uma estrutura prévia inconsciente sobre todaa práxis social pôde ser abusivamente tirada dos modelos deestruturas elaborados pela linguística e pela etnologia (emesmo pela análise do funcionamento do capitalismo),modelos já abusivamente compreendidos nessascircunstâncias, simplesmente porque um pensamentouniversitário de quadros médios, rapidamente satisfeitos,pensamento integralmente submerso no elogio maravilhadodo sistema existente, reduz à vulgaridade toda a realidade

Page 120: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 120/132

em torno da existência do sistema.

202

Como em qualquer ciência social histórica, é precisoter sempre em vista, para a compreensão das categorias«estruturalistas», o fato de que tais categorias exprimemformas de existência e condições de existência. Assim comonão se aprecia o valor de um homem pela concepção queele tem de si próprio, não se pode apreciar e admirardeterminada sociedade aceitando como indiscutivelmenteverídica a concepção que ela tem de si mesma. «Não sepode apreciar épocas de transformação pela consciênciaque essas épocas tiveram dessa transformação; pelocontrário, a consciência deve ser explicada com a ajuda dascontradições da vida material...». A estrutura é filha dopoder presente. O estruturalismo é o pensamento garantidopelo Estado, que pensa as condições presentes da«comunicação» espetacular como um absoluto. Suamaneira de estudar o código das mensagens não é outracoisa senão o produto e o reconhecimento duma sociedadeem que a comunicação existe sob a forma duma cascata desinais hierárquicos. Assim, o estruturalismo não prova avalidade trans-histórica da sociedade do espetáculo; pelocontrário, é a sociedade do espetáculo, impondo-se comorealidade concreta, que serve para provar o sonho frio doestruturalismo.

203

Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo podetambém ser vulgarizado numa fórmula oca qualquer deretórica sociológica-política para explicar e denunciar tudoabstratamente e, assim, servir para a defesa do sistemaespetacular. Porque é evidente que nenhuma ideia podeconduzir para além do espetáculo, mas somente para alémdas ideias existentes sobre o espetáculo. Para destruir

Page 121: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 121/132

efetivamente a sociedade do espetáculo, são necessárioshomens pondo em ação uma força prática. A teoria críticado espetáculo não é verdadeira senão unida à correnteprática da negação na sociedade, e esta negação, o retomarda luta de classe revolucionária, terá consciencia de siprópria ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é ateoria das suas condições reais, das condições práticas daopressão atual, desvendando o segredo daquilo que elapode ser. Esta teoria não espera milagres da classe operária.Ela encara a nova formulação e a realização das exigênciasproletárias como uma tarefa de grande alento. Paradistinguir luta teórica e luta prática na base aqui definida, aprópria constituição e a comunicação de tal teoria não podeser concebida sem uma prática rigorosa. O percursoobscuro e difícil da teoria crítica deverá também ser oâmago do movimento prático, atuando em escala desociedade.

204

A teoria crítica deve comunicar-se na sua próprialinguagem. É a linguagem da contradição, que deve serdialética na sua forma como o é no seu conteúdo. Ela é acrítica da totalidade e a crítica histórica. Não é um «grauzero da escrita» mas o seu contrário. Não é uma negação doestilo, mas o estilo da negação.

205

Mesmo no seu estilo, a exposição da teoria dialéticaé um escândalo e uma abominação segundo as regras dalinguagem dominante, e também para o gosto que elaseducaram, porque no emprego positivo dos conceitosexistentes ela inclui ao mesmo tempo a inteligência da suafluidez reencontrada, e da sua destruição necessária.

206

Este estilo, que contém a sua própria crítica, deve

Page 122: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 122/132

exprimir a dominação da crítica presente sobre todo o seupassado. Por ele, o modo de exposição da teoria dialética étestemunha do espírito negativo que nela reside. «Averdade não é como o produto no qual não se encontra otraço do instrumento» (Hegel). Esta consciência teórica domovimento, na qual o próprio traço do movimento deveestar presente, manifesta-se pela inversão das relaçõesestabelecidas entre os conceitos e pelo desvio de todas asaquisições da crítica anterior. A inversão do genitivo é aexpressão das revoluções históricas, consignada na formado pensamento, que foi considerada como o estiloepigramático de Hegel. O jovem Marx, ao preconizar,conforme o uso sistemático que dela tinha feito Feuerbach,a substituição do sujeito pelo predicado, atingiu o empregomais consequente desse estilo insurreicional que, dafilosofia da miséria, tira a miséria da filosofia. O desviosubmete à subversão as conclusões críticas passadas queforam petrificadas em verdades respeitáveis, isto é,transformadas em mentiras. Kierkegaard já tinha feitodeliberadamente uso disto, ao associar-lhe a sua própriadenúncia: «Mas não obstante as voltas e reviravoltas, namedida em que o doce volta sempre para o armário, tuacabas sempre por introduzir uma pequena palavra que nãoé tua e que perturba pela recordação que desperta»(Migalhas filosóficas). É a obrigação da distancia paracom o que foi falsificado em verdade oficial que determinaeste emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaardno mesmo livro: «Um único reparo visa censurar o que foidito, emprestar expressões. Não nego nem escondo que issofoi voluntário e que na continuação desta brochura, sealgum dia a escrever, chamarei o objeto pelo seu verdadeironome e revestirei o problema com um traje histórico».

207

As idéias se aperfeiçoam. O sentido das palavras

Page 123: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 123/132

também. O plagiato é necessário. O avanço implica-o. Eleacerca-se estreitamente da frase de um autor, serve-se dassuas expressões, suprime uma idéia falsa, substitui-a pelaidéia justa.

208

O desvio é o contrário da citação. A autoridadeteórica sempre é falsificada no momento em que ela setorna citação; fragmento arrancado do seu contexto, do seumovimento, e, finalmente, de sua época, enquantoreferência global e opção precisa que ela constituía nointerior desta referência. O desvio é a linguagem fluida daanti-ideologia. Ele aparece na comunicação sem garantirnada por si mesmo e definitivamente. Ele é a linguagem quenenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. Éa sua própria coerência, para consigo e para com os fatospraticáveis, que procura confirmar o antigo núcleo deverdade que carrega consigo. O desvio não funda a suacausa sobre nada externo à sua própria verdade enquantocrítica presente.

209

Aquilo que, na formulação teórica, se apresentaabertamente como desviado, ao desmentir toda a autonomiadurável da esfera da expressão teórica, desencadeia, poresta violência, a ação que perturba e varre toda a ordemexistente, faz lembrar que esta existência do teórico não énada em si mesma, e não se faz conhecer senão pela açãohistórica, e pela correção histórica que é a sua verdadeirafidelidade.

210

A negação real da cultura é a única coisa que lheconserva o sentido. Ela já não pode ser cultural. Assim, elaé aquilo que permanece de algum modo ao nível da cultura,embora numa acepção totalmente diferente.

Page 124: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 124/132

211

Na linguagem da contradição, a crítica da culturaapresenta-se unificada: enquanto dominar o todo da cultura— tanto seu conhecimento como sua poesia — e não seseparar da crítica da totalidade social, é somente estacrítica teórica unificada que vai ao encontro da práticasocial unificada.

Page 125: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 125/132

CAPÍTULO IXA IDEOLOGIA MATERIALIZADA

A auto-consciência existe em si e para siquando e porque ela existe em si e para si parauma outra auto-consciência; ou seja, ela nãoexiste enquanto não for reconhecida.

Hegel — Fenomenologia do Espírito

212

A ideologia é a base do pensamento duma sociedadede classes, no curso conflitual da história. Os fatosideológicos não foram nunca simples quimeras, mas aconsciência deformada das realidades, e, enquanto tais,fatores reais exercendo, por sua vez, uma real açãodeformada; na medida em que a materialização daideologia na forma do espetáculo, que arrasta consigo oêxito concreto da produção econômica autonomizada, seconfunde com a realidade social, essa ideologia que podetalhar todo o real segundo o seu modelo.

213

Quando a ideologia, que é a vontade abstrata douniversal, e a sua ilusão, se legitima pela abstraçãouniversal e pela ditadura efetiva da ilusão na sociedademoderna, ela já não é a luta voluntarista do parcelar, mas oseu triunfo. Daí a pretensão ideológica adquire uma espéciede fastidiosa exatidão positivista: ela já não é uma escolhahistórica, mas uma evidência. Numa tal afirmação, osnomes particulares das ideologias desvanecem-se. Mesmo aparte operante propriamente ideológica ao serviço do

Page 126: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 126/132

sistema já não se concebe senão enquanto uma «baseepistemológica» que se pretende além de qualquerfenômeno ideológico. A própria ideologia materializada nãotem nome, da mesma forma que não tem qualquer programahistórico enunciável. Ou seja, a história das ideologiasinexiste.

214

A ideologia, que toda a sua lógica interna conduzia à«ideologia total», no sentido de Mannheim, o despotismo dofragmento que se impõe como pseudo-saber dum todopetrificado, a visão totalitária, é agora realizada noespetáculo imobilizado da não-história. A sua realização étambém a sua dissolução no conjunto da sociedade. Com adissolução prática desta sociedade deve desaparecer aideologia, o último contra-senso que bloqueia o acesso àvida histórica.

215

O espetáculo é a ideologia por excelência, porqueexpõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquersistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e anegação da vida real. O espetáculo é, materialmente, «aexpressão da separação e do afastamento entre o homem eo homem». O «novo poderio do embuste» que seconcentrou aí tem a sua base na produção onde surge «coma massa crescente de objetos... um novo domínio de seresestranhos aos quais o homem se submete». É grau supremoduma expansão que necessariamente se coloca contra avida. «A necessidade de dinheiro é portanto a verdadeiranecessidade produzida pela economia política, e a únicanecessidade que ela produz» (Manuscritos econômico-filosóficos). O espetáculo estende por toda a vida social oprincípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebequanto ao dinheiro; é «a vida do que está morto movendo-

Page 127: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 127/132

se em si própria» .

216

Ao contrário do projeto resumido nas Teses sobreFeuerbach (a realização da filosofia na práxis que supera aoposição entre o idealismo e o materialismo), o espetáculoconserva ao mesmo tempo, e impõe no pseudoconcreto doseu universo, os caracteres ideológicos do materialismo e doidealismo. O aspecto contemplativo do velho materialismo,que concebe o mundo como representação e não comoatividade, e que finalmente idealiza a matéria, está realizadono espetáculo, onde as coisas concretas sãoautomaticamente senhoras da vida social. Reciprocamente,a atividade sonhada do idealismo realiza-se igualmente noespetáculo pela mediação técnica de signos e de sinais, quefinalmente materializam um ideal abstrato.

217

O paralelismo entre a ideologia e a esquizofreniaestabelecido por Gabel (A Falsa Consciência) deve serinserido neste processo econômico de materialização daideologia. O que a ideologia era, a sociedade acabou sendo.A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialéticaque a acompanha, eis o que é imposto a cada hora da vidaquotidiana submetida ao espetáculo; que deve sercompreendido como a organização sistemática do«desfalecimento da faculdade de encontro» que ésubstituido por um fato alucinatório social: a falsaconsciência do encontro, a «ilusão do encontro». Numasociedade em que ninguém pode mais ser reconhecidopelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecersua própria realidade. A ideologia está em casa; a separaçãoconstruiu o seu mundo.

218

«Nos quadros clínicos da esquizofrenia», diz Gabel,

Page 128: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 128/132

«a decadência da dialética da totalidade (tendo como formaextrema a dissociação) e a decadência da dialética do devir(tendo como forma extrema a catatonia) parecem bemsolidárias». A consciência espectadora, prisioneira dumuniverso estreito, limitada pelo écran do espetáculo, paraonde sua vida foi deportada, não conhece mais do queinterlocutores fictícios que lhe falam unilateralmente da suamercadoria e da política da sua mercadoria. O espetáculo,em toda a sua extensão, é seu «sinal do espelho». Aqui sepõe em cena a falsa saída num autismo generalizado.

219

O espetáculo que é a extinção dos limites do moi edo mundo pelo esmagamento do moi(8) que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão doslimites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda averdade vivida sob a presença real da falsidade que aorganização da aparência assegura. Aquele que sofrepassivamente a sua sorte quotidianamente estranha é, pois,levado a uma loucura que reage ilusoriamente a essa sorte,ao recorrer a técnicas mágicas. O reconhecimento e oconsumo das mercadorias estão no centro desta pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta. A necessidadede imitação que o consumidor sente é precisamente umanecessidade infantil, condicionada por todos os aspectos dasua despossessão fundamental. Segundo os termos queGabel aplica a este nível patológico completamentediferente, a necessidade anormal de representaçãocompensa o sentimento torturante de estar à margem daexistência.

220

Se a lógica da falsa consciência não podereconhecer-se veridicamente a si mesma, a procura daverdade crítica sobre o espetáculo deve ser também uma

Page 129: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 129/132

crítica verdadeira. É-lhe necessário lutar entre os inimigosirreconciliáveis do espetáculo e admitir estar ausente láonde eles estão ausentes. São as leis do pensamentodominante, do ponto de vista exclusivo da atualidade, quereconhecem a vontade abstrata da eficácia imediata,quando ela se lança nos compromissos do reformismo ou daação comum dos resquícios pseudo-revolucionários. Aí, odelírio reconstitui-se na própria posição que pretendecombatê-lo. A crítica que vai além do espetáculo devesaber esperar.

221

Emancipar-se das bases materiais da verdadeinvertida, eis no que consiste a auto-emancipacão da nossaépoca. A «missão histórica de instaurar a verdade nomundo», nem o indivíduo isolado, nem a multidãoatomizada, submetida às manipulações, a pode realizar, masa classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes,ao reduzir todo o poder à forma desalienante da democraciarealizada, o Conselho, é a instância onde a teoria prática secontrola a si própria e vê sua ação. É lá, somente, onde osindivíduos estão «diretamente ligados à história universal»;É lá, somente, onde o diálogo se estabelece para fazervencer as suas próprias condições.

* * *

Page 130: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 130/132

Notas

(1) – Mantém-se o original para referenciar o conceitoutilizado por Freud (N.T.)(2) – Em inglês no original (N. T.).(3) – Mantém-se o original para não alterar a dimensãoconferida por Hegel (N. T.)(4) – Em português, no original. (N. T.)(5) – Gíria militar francesa designando extrema vanguarda(Guerra dos Trinta Anos). (N. T.)(6) – Em inglês no original (N. T.).(7) – Em inglês no original (N. T.).(8) – Mantém-se o original para não alterar a referênciaanalítica donde provém (N.T.).Nota Editorial: As notas da fonte digital foram renumeradase colocadas no final do livro, para uma melhor leitura –[N.E.]

Page 131: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 131/132

Versão eletrônica produzida pelo Coletivo Periferiahttp://www.geocities.com/projetoperiferia

[email protected] 08050-710 — caixa postal 52550 — São Paulo — SP

— Brasil

Page 132: A sociedade do espetáculo   guy debord

01/08/13 A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord

www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html 132/132

© 2003 — Guy Debord

Versão para eBookeBooksBrasil.org

__________________Maio 2003

eBookLibris© 2003 eBooksBrasil.org

Proibido todo e qualquer uso comercial.Se você pagou por esse livro

VOCÊ FOI ROUBADO!Você tem este e muitos outros títulos

GRÁTISdireto na fonte:

eBooksBrasil.org