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de volta ao fim

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Marcos Siscar

de volta ao fim O “fim das vanguardas” como questão

da poesia contemporânea

apoio

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Sumário

Prefácio 9

o fim das vanguardas

O tombeau das vanguardas: a “pluralização das poéticas possíveis” como paradigma crítico contemporâneo 19

A alavanca da crise: a poesia “pós-utópica” de Haroldo de Campos 42

Do fundo de um naufrágio: estados da poesia contemporânea 67

Quando a vanguarda tira o chapéu 76

A miragem dos fatos 89

A história como múmia: sobre a poesia de Bruno Tolentino 93

Ana C. aos pés da letra 104

outras crises de verso

A “poesia pura” como paradigma da tradição 137

Figuras de prosa: a ideia da “prosa” como questão de poesia 159

Intensificar a questão poética: o partido do contra em Jean-Marie Gleize 174

Poesia e sinistro 188

A crise como política 191

A suspeita e a cisma 197

Duas palavras sobre política e poesia 206

O que termina apenas começou: Michel Deguy e a poética da ecologia 215

sobre os textos 235

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macbeth (aside) Glamis, and thane of Cawdor!

The greatest is behind. (to ROSS and ANGUS) Thanks for your pains.(aside to BANQUO) Do you not hope your children shall be kings,

When those that gave the thane of Cawdor to mePromised no less to them?

banquo

That, trusted home,Might yet enkindle you unto the crown,

Besides the thane of Cawdor. But ’tis strange.And oftentimes, to win us to our harm,

The instruments of darkness tell us truths,Win us with honest trifles, to betray ’s

In deepest consequence.(to ROSS and ANGUS) Cousins, a word, I pray you.

(w. shakespeare, Macbeth)

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Prefácio

Suponhamos que quando dizemos o “fim das vanguardas” não esteja-mos nos referindo a um conteúdo de verdade histórica, algo verificável em determinado momento da segunda metade do século XX, mas que este-jamos nomeando uma operação crítica e discursiva – presente em textos ensaísticos, literários, jornalísticos – ela mesma produtora de história. Neste caso, teríamos que ouvir a hoje afamada expressão “o fim das vanguardas” sempre entre aspas, independentemente do uso do sinal gráfico, como uma espécie de citação. A hipótese deste livro é que a análise do enunciado do fim das vanguardas e das variantes da ideia de fim (a consumação, a crise, o sinistro) oferece um ponto de partida particularmente esclarecedor para a compreensão daquilo que está em jogo no “contemporâneo”, ou melhor, na visão que nossa época vem construindo sobre si mesma, de modo não necessariamente homogêneo, não necessariamente harmonioso.

Meu interesse, portanto, não é o de submeter a expressão “o fim das vanguardas” a um teste de adequação à realidade. Não se trata de reiterar a visão de história à qual ela se refere, nem tampouco contradizer seus pontos de referência, a fim de promover a volta a uma narrativa mais ori-ginal e mais autêntica, da qual teríamos nos desviado. Pela mesma razão, não se trata de lamentar o descalabro e a penúria que teriam se seguido ao suposto aniquilamento do espírito crítico, ou seja, ao declínio das diversas soluções dadas pela poesia a seu mal-estar, ao longo do século XX, como expressão artística ou como fato social. Dessa mesma perspectiva, mas por outro lado, não me parece haver interesse crítico em simplesmente reiterar o estado de eventual satisfação (aliás, o mais das vezes matizado) por meio de uma atitude politicamente mais acolhedora: a aceitação da ideia de uma pluralidade desreprimida e pacificada. Tais lugares de fala são igual-mente parte do problema, quando reforçam a lógica da mera substituição histórica, como se nossa relação com o passado e com o presente fosse um processo destituído de conflitos, de recalques e de estratégias.

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Não me escapa que o espírito crítico e autocrítico (frequentemente, “contrapoético”), inquieto, contestatório, seja uma das contribuições que a tradição de vanguarda do século XX trouxe à poesia e à própria postura do artista diante de seu presente. Essa tradição estética e crítica ajudou a constituir uma relação ativa com o contemporâneo que nos define ainda hoje; e, sem que precisemos ver nela um horizonte intransponível, é pos-sível dizer que acabou por estabelecer um modo específico de entendi-mento dessa modernidade, no qual se incluem violências e processos de totalização de que nos ressentimos ainda hoje. Mais do que isso, conve-nientemente para a crítica e para a história literária, a vanguarda foi, em muitos momentos, produtora do seu próprio sentido histórico e crítico. Os sucessivos manifestos e declarações de princípio, a reconstrução de genea-logias, seus diagnósticos e projetos, certa didática da intervenção estética e política acabaram nos habituando com uma dinâmica na qual determina-das declarações da vida literária tornam-se mais do que meros dados em um conjunto a ser analisado: elas tendem a se transformar, graças à sua força descritiva e prescritiva, em fatos, isto é, no sentido da vida literária propriamente dita. Quando esse amparo lhe é subtraído, compreende-se o relativo desalento (a sensação de que “nada está acontecendo”) carac-terístico(a) da crítica e da história literária, em especial no Brasil, onde a “tradição da ruptura” (na conhecida expressão de Octávio Paz) tem um peso considerável. A poesia brasileira do século XX é um campo dentro do qual a vanguarda ou a questão da vanguarda são mais do que simples episódios: elas fazem parte de seu modo de existência.

Constatar o caráter não apenas incisivo desses gestos, mas também a sua força legitimadora é, portanto, um modo de relançar a compreensão histórica que podemos ter sobre o contemporâneo. O que está em jogo não é exatamente um conjunto de valores e critérios que sucede àqueles da vanguarda mas é, a meu ver, especificamente, um outro modo de relação com esses mesmos valores e critérios. A vanguarda é (ou continua a ser) nosso problema exatamente porque superá-la é aquilo que desejamos.

O mesmo movimento interpretativo nos permite realizar um outro tipo de percurso, que caracteriza a segunda parte deste livro. Trata-se de reavaliar a relação que a crítica e a história literária do século XX, não apenas no Brasil, estabeleceram com o passado, sobretudo se levarmos em conta que a construção do espírito crítico vanguardista baseou-se

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frequentemente em uma simplificação excessiva da poesia da segunda metade do século XIX. Na medida em que o “passado” foi identificado, pelos primeiros movimentos de ruptura do século XX, com o “passadismo”, a possibilidade de ler a poesia anterior como fenômeno relacionado a seu próprio tempo, como inserção estratégica em seu presente, questionadora do seu contemporâneo, foi praticamente aniquilada. Recontextualizar o movimento geral que instaurou determinadas interpretações do passado e entender o sentido dos projetos que o reeditam ainda hoje (como é o caso da discussão francesa sobre a “pós-poesia”) são tarefas críticas e historio-gráficas colocadas pelas demandas específicas de nosso tempo, as quais deveriam abrir espaço para outras possibilidades de leitura da tradição. Não deixa de ser significativo que a releitura historicamente mais atenta dos autores do período anterior às vanguardas (dentre os quais Mallarmé permanece como caso paradigmático) apenas tenha sido possível, apenas tenha parecido necessária, recentemente, a partir do momento em que os critérios de vanguarda passaram a ser questionados.

A essa avaliação geral é preciso associar tópicos particulares de enten-dimento da poesia moderna, que ganharam notoriedade graças a deter-minadas obras de teoria e história literária, tendo transformado a noção de “esteticismo”, por exemplo, em apoio básico para diferentes projetos de compreensão da poesia moderna. A tradição de leitura de Hugo Friedrich me parece bastante reveladora, nesse sentido. Apesar de recusada por diferentes autores, já há mais de meio século, a perspectiva de Friedrich sobre alguns poetas modernos, especialmente franceses, continua sendo uma referência decisiva para as reelaborações contemporâneas. O que a crítica vem contestando no romanista alemão não é exatamente suas teses sobre a tradição poética, mas as escolhas que faz, os autores que toma como referências básicas da poesia moderna. Sintomaticamente, suas propostas continuam sendo usadas pelos mais ferrenhos detratores, quer seja como contraponto seguro da tentativa de resgatar o tônus de realidade ou de rea-lismo da poesia (o que permitiria atribuir autoridade histórica a outro tipo de cânone moderno), quer seja como parte estratégica de uma crítica à ambição moderna da “autonomia” poética, a fim de dar destaque a visões não totalizantes (baseadas numa determinação em bloco do moderno como espaço monológico, a ser superado pela injunção do hibridismo). Parece-me claro que, do ponto de vista do discurso crítico e historiográfico,

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a dependência à interpretação de Friedrich é um dos aspectos mais revela-dores do estado contemporâneo da discussão sobre poesia.

Se elaborar a maneira pela qual parecemos suceder à época das van-guardas é uma tarefa de nosso tempo, ela requer também o cuidado de não se promover uma oposição pura e simples às narrativas de vanguarda, a fim de resgatar, por exemplo, o elemento mais original ou mais autêntico. Não há narrativa mestra, da qual a vanguarda seria um desvio. A negação da perspectiva de vanguarda, que recorre ao universo das poéticas ditas “neoclássicas” ou antivanguardistas, não advém apenas de um espírito de reforma baseado na denegação, na oposição e na re-hierarquização dos diferentes matizes da modernidade; quando destituída do tratamento crí-tico exigido pelas dissonâncias de seu próprio descentramento, torna-se rapidamente uma avaliação inconsistente, em especial em relação ao modo de reagir ao contemporâneo. Por essa razão, embora tenhamos atualmente razões de sobra para desconfiar de termos como “novo”, “invenção”, “mili-tância”, “subversão”, “revolução” (que supõem totalidades e que, na condi-ção de palavras de ordem, costumam objetivar a produção de anacronis-mos), por outro lado, me parece ainda mais problemático o gesto que não integra nesse movimento o impacto de sua própria extemporaneidade.

Por razões semelhantes, a leitura que proponho do discurso sobre o fim das vanguardas não se destina a criar instrumentos para desvanguar-dizar a história da poesia. Não há propriamente “retorno” à modernidade, uma vez que a ideia de modernidade, também ela, é uma construção com valor histórico. Se a história é caracteristicamente constituída de contra-dições, violências e exclusões, tenho dúvidas de que a melhor solução seja a de operar apagamentos, perdendo a clareza sobre aquilo que teve lugar.

Como ficará claro nos ensaios deste livro, a melhor resposta que podemos dar a essas questões é contextualizar a formulação do “fim das vanguardas”, dando-lhe o estatuto de acontecimento estético-crítico, ou seja, analisando seu modo particular de transformar-se em presente. Indagar-se a respeito do contexto, nesse caso, não é nada mais do que uma tentativa de entender os fenômenos dentro de um espaço que havia sido apagado ou esvaziado pelo gesto de adesão; é enriquecer o sentido desses fenômenos por meio do reconhecimento e do embate com seus limites. Esse movimento, que não pode pressupor uma história acabada e linear, mas aberta a reinscrições e cruzamentos discursivos, solicita não apenas a

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problematização das narrativas instituídas, mas também a consciência de que a descrição de um novo contexto, qualquer que seja, nunca é saturável: ao delimitar um espaço de análise, estamos novamente aumentando sua complexidade, fazendo-o transbordar, reabrindo-o a outras perspectivas, deslocando-o necessariamente.

A questão não se resolve, portanto, com o relance da visão historicista, disposta a corrigir seus passos pregressos, abonando ou contradizendo suas teses fundadoras. Ela envolve antes de tudo o desafio de trabalhar com os dilemas que essa reavaliação nos impõe, os conflitos e o inacabamento de nossa maneira de entender a poesia. Quando se coloca em primeiro plano movimentos de denegação, fantasmas ou reinscrições voluntariosas, o que acaba por ganhar o primeiro plano é a própria condição de nossa fala. Se não somos exatamente pós-vanguardistas ou pós-utópicos, não é porque não temos singularidades e diferenças em relação à vanguarda e à afirmação utópica, outras formas de relação com a história: não somos exa-tamente pós-vanguardistas porque os impasses que reconhecemos como constitutivos desse lugar histórico e discursivo nos expropriam do sentido linear e totalizante de nosso presente. Ou seja, um dos problemas a resolver é justamente a (im)possibilidade de sermos contemporâneos de nós mes-mos. Creio que reconhecer esse movimento de expropriação é uma das tarefas relacionadas ao desafio de responder ao contemporâneo.

Apesar da visão circunscrita que essa tradição poética e crítica tem a respeito do papel da poesia e da arte, devo dizer que não vejo interesse em simplesmente abandonar a inquietude característica do pensamento de vanguarda. A disposição questionadora e investigadora em relação ao presente é, de fato, um de seus predicados mais salientes. E talvez continue sendo o ponto com o qual nos debatamos, quer seja no momento em que lamentamos o fim de uma época de “heroísmo” do poeta e da poesia, quer seja no momento em que aceitamos muito rapidamente a pulverização da ideia de poesia em situações culturais e estéticas por demais inespecí-ficas. O que está aí em jogo é o estatuto da poesia (o que ainda nos ocorre chamar por esse nome) e da poética (como tradição e disciplina de pen-samento) entendidas como lugares possíveis de relação com o presente.

Se, por um lado, é preciso desarmar o discurso da crise como instru-mento político de desmobilização ou de desmonte da tradição poética e literária (o que creio ser o caso mais urgente no Brasil), por outro lado é

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preciso também reconsiderar a noção de crise como parte de uma atitude crítica que tem também uma dimensão propositiva, imaginativa de certo modo, destinada ao espaço comum da interlocução. É na perspectiva dessa dupla tarefa que acrescento aos ensaios mais longos deste livro, resultados de pesquisa universitária (em especial, desde o projeto “Imagens do fim”, desenvolvido com bolsa PQ/CNPq, a partir de 2011), alguns textos ditos “de intervenção”, escritos mais breves, originalmente destinados a revistas e jornais. Creio que, da mesma maneira que não faltam a estes últimos ele-mentos argumentativos, também não faltam aos primeiros a explicitação dos problemas mais amplos e mais urgentes com os quais dialogam.

À discussão sobre o fim das vanguardas – e sobre aspectos que, em autores bem diferentes, remetem à questão do contemporâneo pela via da superação ou da denegação da tradição de vanguarda – este livro acres-centa alguns textos que abordam diretamente o valor crítico da própria ideia do “fim”, do “naufrágio”, do “sinistro”, da consumação (inclusive eco-lógica) de nossa capacidade de “mundo”. Dessa perspectiva não simples-mente mais genérica, e sim mais tensa, me parece importante suspender momentaneamente o anúncio do fim das vanguardas – tantas vezes iden-tificado com o esgotamento da própria poesia – de forma a tornar mais sensíveis as forças e as tensões que vêm modulando nossa reflexão sobre o assunto. Arrisco-me a propor, em um dos textos, que o anúncio do fim das vanguardas não deixa de constituir-se como um manifesto, bem ao gosto daquilo que o século XX nos habitou a considerar como modo inci-sivo de irrupção do poeta na história. Mas manifestar, em especial numa época que recusa a legitimidade do gênero “manifesto”, não pode mais ser entendido como ato de fixar determinados princípios, coerentes consigo mesmos e com sua recepção; manifestar nada mais é do que explicitar o desejo de dar sentido, ou seja, um modo de se debater com a questão do sentido. Aventurar-se nesse impasse produtivo é um modo de responder ao contemporâneo.

Um caso exemplar, cheio de complicações subliminares, vem da pluma de um velho vanguardista, Haroldo de Campos, no momento em que este procura justamente dar nome a um novo estado de coisas. Não me parece ser a situação mais característica, mas decerto ela é bastante reveladora a respeito do fato de que a passagem para fora das vanguardas não é, de modo algum, uma passagem para além da crise. Pelo contrário,

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é um passo na direção de um novo lugar de expropriação e de conflito, no qual valores e critérios de vanguarda não deixam de marcar presença, justamente pela falta que parecem fazer ou, ainda, pelo fato de serem reci-clados em vista de outros interesses, outros tipos de demanda histórica.

Continuando a reflexão que propus em Poesia e crise (Ed. Unicamp, 2010), a ideia deste livro é mostrar como o discurso sobre o fim da van-guarda (mas também sobre o fim da poesia, o fim da arte e, eventualmente, o fim do mundo) constitui-se como um deslocamento, isto é, como uma metamorfose do espírito crítico associado à tradição poética moderna. Se não há um “após” às vanguardas, à arte, ao mundo, é porque não há “fim” propriamente dito, independentemente da linguagem na qual esse fim é enunciado. Não há um após o fim, um após a finitude, uma “época” de posteridade ou uma “consciência” de posteridade, a partir dos quais poderíamos simplesmente constatar o fim, nomeá-lo, historiá-lo, ativá-lo a nosso favor. Estamos incessantemente de volta ao fim, ou seja, às voltas com o fim, em conflito sobre que nome dar àquilo que teria acabado, sobre o que significa de fato chegar ao fim.

Em outras palavras, estamos o tempo todo reinventando nosso lugar, um lugar no qual a visão da catástrofe não faz nenhum sentido, a não ser na medida em que nos permite imaginar outros tipos de começo.

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o fim das vanguardas

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O tombeau das vanguardas: a “pluralização das poéticas possíveis” como paradigma crítico contemporâneo

a diversidade como problema crítico

Começo por uma constatação: a situação da poesia contemporânea é a da diversidade pacífica de tendências e de projetos. A constatação não é minha, mas é suficientemente prestigiada na universidade e na mídia para dispensar ilustração. Ela tem relação, cada vez mais, com as políticas aplicadas à educação e à cultura, tanto da parte de associações privadas quanto de organizações de estado.1 Onde quer que a situação da poesia como um todo se coloque (e não apenas da poesia, mas da arte de modo geral), essa chave de compreensão tem sido repetida, com alívio ou com empenho, com melancolia ou com repulsa, a tal ponto que parece ter se tornado o discurso dominante sobre a paisagem contemporânea, não apenas no Brasil. Antologistas franceses, buscando um panorama “o mais diversificado possível”, esclarecem que acompanham “uma constatação sobre a qual todos estão de acordo: a poesia francesa é hoje menos feita de escolas exclusivas umas em relação às outras do que da coexistência de personalidades singulares” (DEGUY et al., 2001, p. 47). A diversidade,

1 Um exemplo que me cai nas mãos é o da Curadoria de Literatura e Poesia (coordenada por Claudio Daniel) do Centro Cultural São Paulo que, em seu folheto de dezembro de 2012, define sua tarefa como a de realizar “ações culturais periódicas voltadas à difusão de autores brasileiros e internacionais, apostando na diversidade com qualidade e abrindo espaço para diferentes formas de expressão, desde as tradicionais até as inovadoras. Nossa estratégia parte da percepção do espaço público como um local democrático e plural, como é a pró-pria comunidade”. A continuidade entre a política de cultura e a forma atual do discurso democrático é imediata e dispensa considerações sobre os problemas específicos da lite-ratura contemporânea. É importante observar, no contexto deste ensaio, que a proposta coloca como princípio orientador “o conceito da ‘pluralidade de poéticas possíveis’”, formu-lado por Haroldo de Campos.

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como vemos, é um múltiplo de singularidades, cujo espaço é o da coexis-tência, da proximidade contígua. O crítico de arte Boris Groys (2008) fala, de modo mais abrangente, de um verdadeiro “dogma” da pluralidade ou do pluralismo no contemporâneo.

Mencionarei, na sequência, o estado da questão no Brasil, mas acho importante, de imediato, lembrar que, se a constatação da diversidade dis-pensa ilustração, o sentido dos afetos que ela provoca (alívio ou empe-nho, melancolia ou repulsa), ao contrário, exige alguma atenção crítica. A defesa enfática da “biodiversidade” poética, que faz o saldo positivo da boa qualidade média da poesia contemporânea, assim como, por outro lado, a resistência àquilo que determinados críticos chamam de “democratismo” sem critérios, que resulta em um “mar de coisa escrita”, são apenas dois tipos de pulsão que dão um perfil característico à vida literária de nossa época.2 Da atenção a essas posturas (que poderiam, também, ser nomea-das “políticas”, e que prefiro aqui chamar de “afetos”) depende não apenas a clareza sobre o valor crítico da noção de diversidade, mas também, por essa via, uma compreensão mais apurada dos desafios da poesia nas últi-mas décadas.

Para abordar o assunto, retomo-o do modo como o deixei, em artigo publicado em 2005,3 quando chamava a atenção para a existência de uma “hipótese da diversidade” na crítica brasileira de poesia. Essa hipótese car-rega a tarefa de dar nome à época que se segue ao chamado “fim das van-guardas”, e baseia-se na ideia da desaparição dos antagonismos, na convi-vência de projetos individuais, na pluralidade de opções e de propostas, por oposição à estrutura bipolarizada que definia nossa vida cultural até meados da década de 1980.4

Não custa reforçar a função historiográfica que tem essa avaliação. E, para isso, remeto rapidamente ao último espasmo de polêmica antiga

2 “Mar de coisa escrita” é uma expressão de Alcir Pécora (2005), representativa de uma posi-ção bastante comum sobre o contemporâneo. Um debate recente, no qual encontramos essas manifestações de entusiasmo ou de antipatia – estabelecidas, naturalmente, a partir de argumentos e avaliações objetivos –, opôs Alcir Pécora e Beatriz Rezende em conversa veiculada pela internet (debate organizado pela revista Serrote (IMS). Blog do IMS, 4/4/2011).

3 “A cisma da poesia brasileira”, publicado inicialmente pela revista Europe (“Le souci de la poé-sie brésilienne”, v. 919/20, 2005) e republicado no Brasil pelas revistas Sibila e Germina. O texto foi incluído no livro Poesia e crise (Campinas: Editora da Unicamp, 2010).

4 Tais noções aparecem, para citar apenas um exemplo, no trabalho de Heloísa Buarque de Hollanda, em especial no prefácio à antologia Esses poetas: uma antologia dos anos 90 (1998).

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que opôs, em 2012, as posições de Roberto Schwarz e Caetano Veloso. A propósito da leitura que o primeiro faz do livro Verdade tropical (lançado em 1997), o segundo, em resposta publicada por meio de entrevista com Paulo Werneck (2014), defende a ideia de que a postura de sua geração foi a de recusar os automatismos das opções estéticas e ideológicas da época, uma delas identificada com o crítico uspiano. Poderíamos pensar que o chamado “fim das vanguardas” corresponderia, sobretudo, ao fim desse automatismo, à recusa de herdar um tipo de discussão e um tipo de distribuição do espaço ideológico. A ideia se confirma hoje na pos-tura e no discurso de muitos poetas, assim como no discurso da crítica, e uma das consequências indiretas de seu aprofundamento é a tentativa de construção de valor crítico em torno daquilo que recusa as fronteiras reconhecidas como “dominantes” e, até mesmo, os “lugares demarcados”.5 Outra consequência, esta de ordem pedagógica, poderia ser encontrada no “variacionismo”,6 ou seja, uma permutabilidade generalizada dos obje-tos oferecidos, cujo efeito seria o achatamento da profundidade cultural e da criatividade.

Do ponto de vista da compreensão histórica que possamos ter do assunto, parece-me que a ideia da diversidade, tomada de modo abran-gente, como tem sido, corresponde a um subterfúgio usado para escapar à nomeação das forças estruturantes do presente, uma espécie de abdicação da história literária e, em certas condições, um desejo de pacificação do campo conflituoso do presente. Dizer que a realidade é plural é simples-mente reiterar a evidência de que o mundo não tem sentido por si pró-prio, de que o trabalho do pensamento é justamente o de dar clareza ou dramaticidade às forças internas que estruturam os diversos modos dessa pluralidade. Plural é o mundo. Tudo sempre é plural. As forças, os discur-sos ou as violências que organizam esse real é que mudam, suprimindo,

5 A valorização de espaços marginais ou minoritários da cultura é bem conhecida e tem lugar seguro no debate acerca da relação entre Estudos Literários e Estudos Culturais. Restaria estabelecer o tipo de relação que esse debate tem com a crítica à “nostalgia” do campo lite-rário autônomo e intransitivo. Flora Süssekind, por exemplo, destaca como representativas da melhor produção literária brasileira a obra de autores oriundos de espaços de fronteira entre as artes, “outros espaços de atuação, lugares não demarcados (retroativamente) pelo beletrismo redivivo” (2010).

6 Termo usado por Luis Augusto Fischer (2011), ao comentar as provas do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio).

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reprimindo, particularizando ou atraindo, de diferentes maneiras (às vezes mais organizadas, às vezes menos), as possibilidades que fazem parte do horizonte da época.

Abordarei, neste texto, um episódio importante no estabelecimento desse paradigma da diversidade, explicitando algumas de suas consequên-cias críticas e poéticas. Gostaria, com isso, de evidenciar que o diagnóstico da diversidade esconde os dramas da contradição (dramas que, entretanto, o animam ou, alternativamente, o desanimam). Para tanto, tomarei um exemplo da crítica de poesia, um dos mais conhecidos e, não por acaso, um dos mais prestigiados das últimas décadas. Trata-se do texto “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”, de Haroldo de Campos.

a declaração do fim das vanguardas

Apresentado em evento comemorativo aos 70 anos de Octavio Paz, no México, o ensaio “Poesia e modernidade” foi publicado no caderno Folhetim, da Folha de São Paulo, em 1984, e teve alguma circulação inter-nacional, sobretudo na Europa. Em 1997, passou a integrar o volume de ensaios O arco-íris branco.

Podemos encontrar aí uma declaração que fez fortuna na crítica bra-sileira: “Ao projeto totalizador da vanguarda que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis” (CAMPOS, 1997, p. 268), ou seja, a época do poema “pós-utópico”. Depois da época das totalizações (que teria sido a das vanguardas, segundo o texto) e, portanto, dos conflitos envolvendo diferentes projetos gerais, verdadeiras utopias de transformação do destino da nação ou da huma-nidade, entramos numa época de multiplicação, que abre caminho para uma pluralidade de alternativas estéticas.

Trata-se de uma formulação exemplar do discurso da diversidade a qual funciona, na nossa tradição recente, como uma espécie de aconteci-mento crítico, isto é, como interpretação que tem valor histórico. Haroldo não é o primeiro a falar sobre o esgotamento das vanguardas, mas a maneira como o faz, a meu ver, deflagra ou sintetiza exemplarmente aquilo que passamos a considerar como situação de época. Para lê-lo de maneira rigo-rosa, devemos levar em conta que esse “fim das vanguardas” não é apenas