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29dossiê | apresentação

de peito aberto

Organização Cezar Bartholomeu eNatália Quinderé

Qual o papel do jovem crítico de arte? Quais suas vinculações com a produção,

o circuito, a academia? Que práticas, ideias e ideologias constroem e legitimam

seus discursos?

o dossiê desta edição tem como ponto de parti-

da tais inquietações, revisitadas pela equipe edi-

torial ao longo de dois meses de avaliações dos

textos de jovens críticos que aceitaram participar

de nossa chamada. dos 54 avaliados, convidamos

21 críticos de idades, formações e localizações ge-

ográficas distintas para escrever sobre o trabalho

de um artista ou coletivo que ele acompanhasse.

Esse desafio foi respondido por 19 críticos. Além

da qualidade de seus textos, era de interesse ex-

trapolar o eixo rio-são paulo, forjando um espaço

difuso da crítica recente de arte brasileira.

Curiosamente, apesar de nenhum artista escolhido ter sido analisado por mais de um crítico – o que revela

a complexidade do cenário artístico atual –, inúmeras referências teóricas, temas e leituras encontram-se

sobrepostos nesse conjunto. Do ponto de vista teórico, os postulados referentes a uma falência do projeto

moderno atravessam implícita ou explicitamente todos os textos. Dissertam os autores sobre a crise da his-

tória, sobre o significado da representação nas práticas artísticas e sua relação com o real, e a importância

da dissolução do conceito de obra de arte enquanto crítica ao sistema capitalista. No âmbito dessa aber-

tura de sentido, percebemos ainda a importância dada a dois temas que perpassam vários textos: corpo e

cidade. Corpo e cidade, como campos de problemas da arte contemporânea indicam, ao mesmo tempo,

uma relação com a arte mundial, e a persistência de questões relacionadas à tradição da arte brasileira.

1 Coletivo Cadeira branca, projeto apartamento, são paulo, 2006 2 Guy Veloso, Iemanjá, Auto do Círio, espetáculo teatral ao ar livre, evento não oficial do Círio de Nazaré, Belém, PA, 2013; foto digital3 Filipe acácio, Stranger You; fotografia 10 x 15cm4 Gabriel Gimmler Netto Estudo de Amplitude 5, 2009, grafite sobre papel vegetal, 80 x 100cmFoto Carolina Veiga5 ana Fraga, Escombros II, performance. Foto tatiele souza6 adriano Costa, Morena#bronze#G I A N T, 2013, concreto, bronze e tênis, 73,5 x 79 x 42cm. Cortesia Mendes Wood dM, são paulo

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After a careful selection conducted by the editorial team, which took more than two months of discussion, 19 young art critics were chosen to write about a work of an artist or a contemporary collective. this compilation of texts represents, in a certain way, our effort to understand what is the role of the young art critics today, how they are related with production, art circuit and Academy and, finally, what practices, ideas and ideologies support their analyses.| contemporary art Brazilian critic art criticism

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31dossiê | diego Moreira Matos

sobre uM Futuro que nunCa CheGa

Diego Moreira Matos

Acerca de um contexto

Dentro do complexo universo da produção contemporânea brasileira, especialmente de seus últimos 15

anos, viu-se nascer nos vários contextos urbanos – mesmo distantes fisicamente do eixo Rio-São Paulo

− uma geração de artistas polissêmica tanto em termos de linguagem como em termos dos temas abor-

dados. Até aqui, nenhuma novidade. São, entretanto, sujeitos profundamente implicados nas mudanças

viscerais ocorridas nas cidades brasileiras desde os anos 80, mudanças que promoveram ambiguamente

em seus espaços conflituosos a reiteração de um projeto moderno inacabado, contraposto aos valores de

mercado supranacionais maquiados por novos valores culturais que a ação publicitária fomenta.

E tal relação conflituosa se demonstra de forma exacerbada em centros regionais, como, por exemplo, Por-

to alegre (rs), Fortaleza (Ce) e recife (pe). Guardando suas devidas proporções, essas cidades manifestam

em seus espaços construídos e “experienciados” realidades próximas quanto a seus espaços de conflito.

Em Porto Alegre, por exemplo, nota-se a presença de um grupo de artistas em seus 30 e poucos anos

contaminados por essa dinâmica macroestrutural. Se no início dos anos 2000 verifica-se o exercício crítico

coletivo de intervenções urbanas de natureza experimental e com grande interesse em retomar a lógica

produtiva das experiências de uma neovanguarda brasileira, que floresceu ao longo dos anos 60 e 70, a

instrumentalização desses artistas nessa estrutura conceitual permitiu o florescimento posterior de postu-

ras mais específicas e pessoais. No caso particular do contexto em questão, alguns artistas gaúchos nos

chamam a atenção. São eles: Cristiano Lenhardt (Itaara, 1975), Letícia Ramos (Santo Antonio da Patrulha,

1976), Michel Zózimo (Santa Maria, 1977) e Luiz Roque (Cachoeira do Sul, 1979).1 O trabalho deste último

será o fio condutor da análise.

Cada um deles, em menor ou maior grau, estabelece processos sedutores de invenção, que são alimen-

tados primeiramente por ambiguidade do espaço construído, e traz para seus contextos os paradoxos

ficcionais do universo científico. Todos eles constroem também paisagens insólitas através de mídias

distintas, usufruindo do repertório imagético de impressos, da televisão, do cinema e das ficções literá-

rias. Desse modo, em um emaranhado de referências ainda pré-universo da internet, esses artistas nos

oferecem um campo visual que investe em um futuro que ainda não chegou e que no brasil talvez nunca

venha a chegar. num movimento de iminência sempre em primeiro plano talvez resida o caráter sedutor

de seus trabalhos.

Luiz Roque, The Triumph, 2011, vídeo 3’; projeção realizada na exposição “Da próxima vez eu fazia tudo diferente” (Copan, 2012); na ocasião, foi criado um contexto solene de projeção, dando ao filme caráter quase oficial de apresentação da Coreia como potência; o trabalho foi resultado da residência do artista no país Foto Marcelo da Costa

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32 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

Um possível fio condutor pela obra de

Luiz Roque

A produção artística de Luiz Roque traz dois as-

pectos gerais interpostos que nos são muito ca-

ros: a composição cinematográfica e o apuro de

seus recursos materiais, bem como da invenção

de futuros que nos desorientam em relação a

tempo e espaço, promovendo desconstruções pa-

radigmáticas da história da arte e geopolíticas das

noções mais comuns de território, pertencimento

e poder econômico. O artista questiona também a

validação das arquiteturas personificadas em pai-

sagens das mais singulares, como, por exemplo, o

universo coreano ou a paisagem paulistana quase

fantástica e absurda, presentes em dois trabalhos

que aqui compõem o ponto estrutural da investi-

gação. The Triumph (2011), uma narrativa fílmica

de três minutos, e ITOUFO (2010), um retrato fil-

mado, resenham ao espectador de forma aguda

o que a arquitetura desses lugares – Coreia e são

Paulo – manifesta em termos de ambiguidade e

descompasso com outras realidades, especial-

mente do velho mundo.

Nesse sentido, apesar da distância geográfica

abissal, esses dois trabalhos retratam paisagens in-

sólitas, reverberando ao exterior de seus territórios

suas condições geopolíticas no mundo e, em suas

realidades internas, a permanente construção de

uma tradição moderna que nunca finda. Ademais,

sugerem também questões de cunho identitário e

comportamental em seus contextos urbanos.

Como é recorrente nas exposições do artista, os

trabalhos se condicionam ao espaço expositivo e

dele se apropriam, oferecendo reorientações de

significados dos conteúdos ali presentes. Assim,

traça-se, na composição entre o Triunfo (projeta-

do em parede) e o ITOUFO (apresentado em tV),

Luiz Roque, ITOUFO, 2012, superoito transferido para vídeo, loop Fotomontagem do artista

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33dossiê | diego Moreira Matos

a narrativa de futuro, exercício crítico permanente

do artista. são na verdade exercícios de proposi-

ção de futuros possíveis, mas que hoje, em termos

reais e construtivos (simbólica e materialmente) se

mostram inviáveis. Além das condições técnicas

ou geopolíticas, existe uma lógica que é colocada

no nível do absurdo, na mesma medida em que

são escancaradas as mais incríveis incongruências

de um espaço quase ficcional, como as paisagens

encontradas em são paulo, cidade em que o artis-

ta atualmente reside.

É como se ele promovesse uma personificação

da arquitetura em analogia às questões con-

temporâneas do comportamento humano. A

produção do artista, especialmente nesse mo-

mento, parece buscar no dado ambíguo desses

objetos arquitetônicos elementos de valoração

muito distantes da usabilidade promovida pela

prática moderna. descortina-se, por exemplo,

aquilo que o arquiteto e teórico suíço bernard

tschumi2 identifica como a ideia de uma “desne-

cessidade arquitetônica”: “em vez de um obscuro

‘suplemento artístico’ ou uma justificativa cultu-

ral para manipulações financeiras, a arquitetura

lembra o exemplo dos fogos de artifício”. Trata-se

da produção de um prazer, indiferente aos ciclos

produtivos pelos quais a arquitetura se insere

no capital, dado que comparece de forma pre-

cisa no trabalho fotográfico The Golden Tower

(2012), peça produzida no mesmo período em

que realizava o filme The Triumph na Coreia.

Tal percepção de caráter metafórico conflui assim

para a construção de sentimentos de dor e prazer,

uma relação de estranhamento quase alieníge-

na, ou aquilo que a ficção científica narra como

“contatos imediatos de terceiro grau”.3 em vez de

falarmos apenas de um dado excêntrico da arqui-

tetura, portanto, é a capacidade de, em situação

Luiz Roque, Geometria Descritiva, 2012, vídeo, loop Frame de vídeo (tela)

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adversa e em contato físico e sensorial com o ob-

jeto edificado, perceber ali elementos que analo-

gamente nos remetem à ordem dos conflitos in-

terpessoais nos espaços urbanos.

The Triumph retrata a unificação das Coreias. Colo-

ca essa nova nação como potência esportiva, fato

ritualizado por uma coreografia de ginastas. O fil-

me é disposto de forma a constituir um pequeno

auditório de celebração de uma nova realidade

geopolítica de mãos dadas com um crescimento

econômico típico de Terceiro Mundo; uma eterna

busca da zona fronteiriça do extremamente novo.

as ginastas que aparecem no vídeo incorporam a

coreografia à ocupação do pavilhão arquitetôni-

co projetado pelo artista e arquiteto Vito acconci,

coincidentemente um dos ícones do modernismo

mais tardio. se de um lado temos a representação

de poder por meio de uma situação quase aliení-

gena ou quase “ficção científica”, do outro nos de-

paramos com as arquiteturas quase ficcionais de

Luiz Roque apropriadas do contexto de São Paulo.

portanto, em ITOUFO a presença de um monóli-

to arquitetônico de feições pós-modernas, cujas

cores berrantes o personificam enquanto figura

alienígena, corrompe a paisagem apaziguadora

do verde e do azul da natureza. ao mesmo tempo

interfere pela contaminação da cor refletida em

toda a vizinhança. Destacando-se em cota bem su-

perior ao caótico mundo urbano ao rés-do-chão,

o edifício enquadrado plasticamente pelo artista

cria uma suspensão de tempo desconfortável. a

mesma suspensão que é dada na tentativa de se

falar do avanço e do brilhantismo da América La-

tina que cresce economicamente, estabelecendo

ríspidas intervenções materiais na paisagem urba-

na. São Paulo, filha de uma euforia moderna na

primeira metade do século XX, parece viver agora

de um acúmulo de iniciativas desorientadas de

demonstração de riqueza e progresso, mas que

não avista ainda a condição de imagem de primei-

ro mundo, organizado e redentor.

Luiz Roque, The Golden Tower (Torre Dourada), 2012; ampliação fotográfica a partir de filme positivo superoito Foto do artista

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35dossiê | diego Moreira Matos

Por uma perspectiva em aberto

em Geometria descritiva (2012), um vídeo em loop,

Luiz Roque parece querer enunciar formalmente a

constatação de uma ruptura, ou melhor, de um tal

momento de suspensão e abertura para o futuro.

defronte a uma paisagem idílica, quase irreal, um

vidro retangular é interceptado por uma esfera es-

cura e opaca. ao alcançar a peça em vidro e pro-

vocar seu estilhaçamento, o filme entra em loop

e suspende a ideia de quebra, retornando ao mo-

vimento anterior de aproximação da esfera. esse

movimento cíclico, exacerbado pela trilha sonora

impregnante, parece anunciar sedutoramente um

porvir, a iminência do desconhecido e a ambigui-

dade entre a dor e o prazer − situação análoga à

vivenciada pela cultura contemporânea no Brasil.

historicamente, encontra-se indiretamente em

sua obra filiação à produção audiovisual brasileira

que floresceu no final dos anos 60. Tal condição é

evidenciada ao se debruçar sobre a exposição ex-

perimental expoprojeção, realizada em são paulo

em 1973.4 Nela figuravam artistas como Antonio

Dias (1944) e Cildo Meireles (1948), cujas paisa-

gens sonoras se conectam à natureza espacial da

obra de Luiz Roque. Mencionem-se os vinis Mebs/

Caráxia (1970/1971), de Meireles, e Record: the

space between (1971), de Dias.

Enquanto esses artistas problematizavam concei-

tualmente os avanços da ciência contemporânea,

Luiz Roque se apropria desse conhecimento já no

campo da ficção. Como alerta Hannah Arendt5

em seu ensaio a conquista do espaço e a estatura

humana, de 1963, a inegável revolução científi-

ca moderna colocou o sujeito e a possibilidade

de compreensão humana do leigo em segundo

plano. a arte, especialmente na segunda meta-

de do século 20, tentou reaproximar esse sujeito,

deixando-o implicado, à medida que relativizava

as certezas científicas.

talvez seja esse o ponto de convergência que co-

necta essas duas gerações de artistas. a escolha

de um universo estético que se alimenta de so-

fisticadas referências à ficção científica torna-se

instrumento potente na construção de narrativas

que questionam nossas relações espaçotemporais,

em eternos descompassos entre o real e o desejo.

NOtAs

1 segundo Zózimo, esses artistas “habitam, assim, as finas camadas de uma consciência fora do plano”, o que nutre suas práticas discursivas encontradas de forma parcial e inventiva na publicação organizada pelo mesmo artista, intitulada Assim que for editado, lhe envio (Zózimo, Michel. Assim que for editado, lhe envio. Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 2013: 11).

2 Tschumi, Bernard. O prazer da arquitetura. In: Nes-bitt, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetu-ra, antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006: 578.

3 Título do filme de ficção científica dirigido por Ste-ven Spielberg e lançado em 1977, justamente quan-do esse gênero literário e cinematográfico tornava-se consumo de massa em escala global.

4 Com o título Expoprojeção (1973-2013), essa ex-posição foi parcialmente remontada e atualizada sob curadoria da própria aracy amaral e do pesquisador Roberto Moreira S. Cruz, no Sesc-Pinheiros em São Paulo (Amaral, Aracy; Cruz, Roberto Moreira S. Expo-projeção 1973-2013. São Paulo: Sesc, 2013).

5 arendt, hannah. Entre o passado e o futuro. são Paulo: Perspectiva, 2011: 330.

Diego Moreira Matos é pesquisador e curador.

Formado em arquitetura e urbanismo pela Uni-

versidade Federal do Ceará (1998-2004), mestre

(2006-2009) pela FAU/USP, onde atualmente cur-

sa seu doutorado (2010-2014).

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FRAGMENTOS DA PALAvRA COMO LUGAR: das escrituras, desleituras e leitorias de Jorge Menna barreto

Galciani Neves

Jorge Menna barreto situa a palavra no espaço – físico, afetivo, intersticial – que a ele se mescla em

múltiplos modos de ser, percebidos como o espaço da obra, o espaço do outro, o espaço do mover-se.

Convivendo com esses espaços, que logo se fazem lugares, e com seus agentes, a palavra amplia-se no

dentro-fora de uma razão imprecisa, sem realizar qualquer equivalência, mas constituindo margens das

quais se pode largar, partir, inventar: alusividade sem fim por todos a tudo. É conjugando atitudes da pa-

lavra e extravasando suas tarefas que o artista constitui tensões entre ideia, materialidade e espacialidade

que ressoam avessos, justaposições, alargamentos.

Preâmbulo: breve ambientação ao fazer

em uma trajetória que se alastra por ações artísticas, pesquisas acadêmicas, projetos educativos e

experimentações críticas e curatoriais, Jorge Menna Barreto participou da Bienal de Havana (2000); do

Rumos Itaú Cultural (2002); da Bienal do Mercosul (2001 e 2009); do Panorama da Arte Brasileira (2011)

e expôs individualmente no torreão em porto alegre (2000), no Centro Cultural são paulo (2004), no paço

das Artes (2007) e em outras instituições e galerias. Foi membro do grupo de críticos de arte do Centro

Cultural São Paulo. Coordenou o educativo do Paço das Artes. Realizou curadorias, como Sobrepostas,

permeáveis e intercambiáveis (2009), de vitor Cesar. E desde 2001 passou a atuar como professor. São

práticas visuais e discursivas no campo da arte em intenso fluxo criativo de procedimentos de um artista-

etc, como propõe Ricardo Basbaum:1 seus pensamentos e ações “questionam a natureza e a função de artista”,

enquanto se inscreve com maleabilidade por entre brechas no circuito, em que, traçando conexões (empáticas),

engaja-se conferindo complexidade aos fazeres. Mais que combinação de perspectivas para encarar distintos

projetos, revela uma espécie de imbricação de competências que se instaura nas dinâmicas entre arte e vida,

provocando e também contaminando-se com as audiências, com o espaço, com as faturas em questão.

nesse sentido, parece ser improvável (e inconsistente) apontar um eixo único e alinhavante ou mesmo

um conjunto de ações autocontidas que abarque a diversidade de seus trabalhos. Assim, pretende-se

abordar um recorte do percurso de Jorge Menna barreto a partir de um olhar que vasculha contiguidades,

desdobramentos que insistem por entre noções de espaço e que partilham intencionalidades que

esboçam a palavra como meio, como substância, como lócus em si e no outro. O artista flexiona a

palavra, enquanto provável unidade mínima da comunicação, em inquieta e permanente abertura às

expectativas de seus leitores e desacordos com seus significados prévios. Essa abordagem crítica opta por

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37dossiê | Galciani neves

Jorge Menna barreto, Concreto (protótipo), 2012

adentrar as potências da palavra em seu momento/

onde – sugestão temporária e em diálogo com a

produção de Jorge, a fim de perscrutar os afetos

e os deslimites entre visualidade e palavra, entre

práxis artística e visual, entre arte e escritura,

visto que a mobilização desses conteúdos não

ousa estancar-se em oposições que regularmente

ficcionam tais exercícios. Adianta-se que a

escritura ou o exercício da palavra do artista não

é conteúdo que se articula por sua materialidade

impressa, textual ou destinada unicamente à

leitura, mas como uma experiência no espaço

e entre-espaços, e, sim, também como silêncio,

como indeterminação, como ilegibilidade.

Dos verbetes e suas temáticas

os títulos a seguir recorrem a palavras inventa-

das por Jorge Menna barreto que constituem a

obra Desleituras. Essas palavras híbridas trazem

um tanto de sua tarefa original: dispositivos de

mediação a obras expostas no 32o panorama da

arte brasileira (2011) com o intuito de potenciali-

zar discursos. atuam aqui com um pequeno des-

locamento: como uma espécie de borda crítica ao

trabalho do artista e como possibilidade para se

desenhar uma leitura que se apropria de princí-

pios dos quais ele próprio se valeu em processos

de criação de suas obras. Os títulos aqui visua-

lizados são constituídos como descreve theodor

Adorno:2 uma espécie de território pouco definido

e mais caracterizado por sua permeabilidade, que

pensamentos vêm habitar para dali se dissolver

novamente nas dinâmicas perceptivas de quem os

acessa. e os textos que os acompanham são como

pequenos verbetes de um glossário propenso a

atualizações e variações que se organiza insufla-

do pela densidade do trabalho do artista. Apon-

tam para uma dupla busca: a de estabelecer-se

como paisagem crítica e a de expandir em tarefa

tradutória as experiências de alguns trabalhos do

artista. Além disso, traça vínculos ou, antes, “fios

soltos” entre seus trabalhos, aproximando-os e

conferindo atritos para além de uma trajetória

cronológica, linear ou classificatória.

espenso

Exigem-se do pensamento: uma planaridade

aos limites da razão, uma atenção aos contro-

les do aqui-agora e aos cálculos para conter-se e

adequar-se como coisa, um espaço inteligível de

atuação. em Massa, Jorge inspira essas tensões

e delas extrai uma espécie de perplexidade ativa

que interroga e responde à iminência das invisua-

lidades que agem por entre os espaços, às linhas

de força que delineiam tangentes e desencontros,

aos escapes, separações, vibrações e fricções en-

tre aqueles que ocupam e constituem o espaço.

Massa é uma ação acumulativa de diálogos com

o público e com o espaço. E teve início na Bie-

nal de havana (2000). da tentativa de captar a

densidade dos espaços, o artista soma desde lá

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38 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

os pesos individuais do público das exposições

em que o trabalho é apresentado. Jorge carim-

ba cada resultado em uma sacola de papel que

pode ser levada pelos participantes. e assim os

pesos vão-se somando de cidade em cidade: Ha-

vana, belo horizonte, são paulo e Fortaleza. esse

procedimento de religar, reunir e fazer reencon-

trarem-se os fatos e os atores que convivem nos

espaços para além da unidade geometricamente

compartimentada sustenta um caráter de acaso

e de identidade oscilante, migratória e inquieta

das divisões que cotidianamente se tecem entre

espaço, matéria, gesto e gente. O artista sutura

esses rasgos, enquanto cada um dos participan-

tes leva um tanto desse espaço. trata-se de um

processo de construção da obra em diálogo com

o espaço de exibição.

escrítica/desleitura

É uma operação de dissecção para novamente

recompor em outro. E o tema é, por assim dizer, a

imersão para tentar fazer-se presente nas incertezas

empíricas quando se pode atravessar algo e deste

algo partir para outros empreendimentos. nesse

verbete, fazem-se necessários outros dois, seus

agentes de ação – o Caro feitor e o tradutor-

autor-artista – , para quem vale o esclarecimento

de Octavio Paz: “o artista é o tradutor universal”.

Concreto é outra existência de That which joins

and that which divides is one and the same, de

Ian Hamilton Finlay. A transcriação de Jorge é

Aquilo que une e aquilo que separa é uma mesma

coisa só.3 Repare no final não correspondente.

Cada palavra em inglês ocorre em placas de

vidro montadas em tijolos de bronze em que

Jorge Menna barreto, Massa; Instalação apresentada na Séptima Bienal de la Habana, Centro de Arte Contemporáneo Wilfredo Lam, Cuba, 2000; na exposição coletiva Arte: Sistemas e Redes, dentro do Programa Rumos Itaú Cultural Artes visuais 2001/2003(são paulo, belo horizonte e Fortaleza)

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39dossiê | Galciani neves

estão grafadas as palavras em português. não

há também equivalência espacial entre inglês e

português. as duas frases ocorrem esfaceladas,

reinventadas e subvertidas e não se restrigem à

ordem original. Jorge as reespacializa em outra

operação tradutória que recorre aos Cavaletes de

vidro (1968), de Lina Bo Bardi. Para o artista, “é um

estilhaçamento de uma frase em palavras”, suas

unidades, em uma não linearidade de sentidos.

assim, torna-se outro a partir de “uma forma

atenta de ler”, como sugere Julio plaza,4 pois o

tradutor-autor-artista, aqui em questão, engaja-

se em um consumo de informações “produtiva” e

criativamente. e tal como o ator faz-se em outros,

ainda que sendo ele mesmo, o tradutor-autor-

artista cria um duplo do texto, um outro. não há

paradoxo: é metacriação, prática lúdica e lúcida,

crítico-criativa, “como diálogo de signos, como

um outro nas diferenças (…) como trânsito de

sentidos, como transcriação de formas”.5

multiplicidão

qualidade ou efeito de transcrever-se, de repetir-

-se com ausências e adições. Assim, não se é o

mesmo, mas um outro que de si carrega um pou-

co, não tudo. Um movimento ambíguo, incons-

tante, um tanto incoerente de fazer-se, tal como

a capacidade de captar o vazio, materializar o ide-

al, construir o acaso. daquilo que poderia surgir

como doação, gratificação a um leitor imaginário,

mas lhe sugere incongruências, complexidades,

Jorge Menna barreto, Concreto (protótipo), 2012

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40 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

inexatidões. Com Belongingness (2003), pode-se

pensar como verdade o que intuía Mallarmé – que

tudo existe a fim de ser livro um dia, ainda que

não traga em si nada de livro.6 Jorge registrou

palavras em placas de rua, camisetas, outdoors,

letreiros de lojas e em tudo que nos cega a infor-

mação. Daí, subtraiu letras que fazem parte da

palavra belongingness que pode ser compreendi-

da como uma necessidade humana de pertenci-

mento. trata-se de um processamento da palavra

às avessas. Jorge desnaturaliza as palavras, deixa

lacunas em suas estruturas, buracos incontorná-

veis para propor um sentido não óbvio, não dado

e talvez não alcançável de pertencimento. parece

mesmo um ensaio sobre as impropriedades da

palavra em seu contexto, que, por vezes, se asse-

melha com o que leva a crer que é, satisfazendo o

leitor, em um jogo de metáforas, metonímias, pis-

tas, com um instante de apaziguamento em que

espécies de teoremas demonstram-se na matéria.

Contrariamente, leva à superação da dependên-

cia ou equivalência da palavra enquanto legenda,

formato explicativo ou interpretativo daquilo que

se vê. A palavra se abre para além de seu esque-

ma inicial, como “opacidade”, esclarece o artista,

e propõe um exercício crítico de “leiturabilidade”

que se encontra nitidamente potencializado pela

afetividade – capacidade de afetar-se e afetar.

Postscriptum

em uma tentativa de implicar-se com as vontades

e espessuras dos contextos de ação e criação de

Jorge Menna Barreto, é mesmo possível questionar,

assim como Barthes:7 “quem fala? quem escreve?

Falta-nos ainda uma sociologia da palavra.” e

Jorge Menna barreto, Belongingness, 2003Subtração das letras que formam a palavra “belongingness” de fotos tiradas em 2003 na cidade de Atlanta, EUA; expostas na artspot Gallery na mesma cidade

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41dossiê | Galciani neves

dessa inquietude que atravessa algumas das

experiências poéticas do artista, pode-se pensar:

a palavra para Jorge não é bem um instrumento,

nem veículo, mas quem sabe uma espécie de

presentificação no mundo que não é apenas o

seu pretexto: ali e aqui, onde a palavra ocorre e

se altera na frase do outro, onde as percepções

acontecem e ressoam no espaço, é onde

habitam suas obras em arritmias e porosidades

com o público. O que o artista dá a quem lê

não é um sentido, mas uma infidelidade ou uma

“infixibilidade”, um propósito de continuidade,

de leitoria – leitura e autoria.

NOtAs

1 Basbaum, Ricardo. Manual do artista-etc. rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013: 67.

2 adorno, theodor W. Notas de Literatura I. são pau-lo: Duas Cidades/Editora 34, 2003.

3 barreto, Jorge Menna. Exercícios de Leitoria. tese de doutorado defendida na usp. 2012.

4 plaza, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

5 Plaza, op. cit.: 209.

6 http://jorgemennabarreto.blogspot.com.br/ . Últi-mo acesso: 24/01/2014.

7 barthes, roland. Crítica e verdade. São Paulo: Edi-tora Perspectiva, 1982: 31.

Galciani Neves é curadora e professora. Possui

mestrado e doutorado em comunicação e semió-

tica pela puC-sp.

Jorge Menna barreto, Belongingness, 2003Subtração das letras que formam a palavra “belongingness” de fotos tiradas em 2003 na cidade de Atlanta, EUA; expostas na artspot Gallery na mesma cidade

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42 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

esCoMbros de todos nós

Dilson Midlej

de um texto crítico, ensaístico ou qualquer que seja sua natureza, espera-se clareza e informação. e,

se enfocar arte, essa exigência aumenta substancialmente, sobretudo porque em geral nele se busca o

entendimento dos sentidos de muitas criações artísticas. E de artistas contemporâneos? o que esperar?

seguramente clareza não seria a resposta correta, ainda que isso logo nos venha à mente. a resposta a

essa questão, ou melhor, uma resposta das muitas possíveis, foi dada por ana Fraga, artista nascida e re-

sidente na ensolarada São Félix, no Recôncavo da Bahia, em individual apresentada na Galeria Cañizares,

em Salvador, de primeiro a 15 de novembro de 2013, intitulada Escombros.

performer de trajetória coerente e sólida, ana Fraga destacou-se com várias premiações em certames

competitivos estaduais, sempre apresentando obras que aliavam a performance às tradições culturais de

sua região de nascença e a sua condição e sensibilidade femininas.

O título Escombros escolhido pela artista não poderia ser mais adequado, pois o conjunto de obras fala

da degradação sensível do ser, das tensões entre sua existência e inadequações aos papéis sociais infli-

gidos pela sociedade e pelos poderes constituídos, cujas manifestações são investidas de legalidade no

papel, mas nocivas na prática e na ética, tais como a conveniente manipulação política de uma alegada

“alegria baiana”, ou de um selo de “baianidade”, do qual a pasteurização e generalização do carnaval

como imposição de comportamentos seria a mola mestra. assim, a alusão à maior festa popular da

capital baiana serviria como pretexto para encobrir as mazelas de décadas de ausência dos poderes

públicos e manipulação de dados estatísticos dos índices de violência que tão mal soam às propagandas

eleitoreiras e às estratégias de atração de turistas, e que, enfim, comprometeriam a confiante “econo-

mia estável”. poderia esse desencantado cenário político-existencial ser apresentado na forma de arte

e, ainda assim, despertar interesse ou mesmo fazer algum sentido? ana Fraga responde, e a resposta

− comentada e constituída visual e conceitualmente em suas obras −, é tão desconcertante quanto os

recorrentes escândalos políticos nacionais.

na performance Escombros, apresentada pela artista, registrada em vídeo e exibindo os resquícios da

ação no ambiente da galeria, a realidade foi antropofágica e literalmente engolida, e a síntese desse bolo

alimentar era... confetes. sim, confetes. a artista “engole” confetes e os regurgita em incômoda cena

cujo vômito refluxa junto a nossa indignidade. Os confetes são confeccionados com páginas do diário da

artista, ali mesmo, no espaço da galeria, diante do público. A intimidade dos registros e comentários co-

tidianos do diário, convenhamos, a principio só interessariam à própria artista, da mesma maneira como

em geral não nos interessamos pelas outras pessoas, uma vez que nosso individualismo nos basta. Pior

ainda se o diário contemplar poesia. Mas eis que, pela formulação artística, estranhamente essa nova

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dossiê | dilson Midlej 43

ana Fraga, Escombros, performanceFoto eduardo oliveira

natureza nos atrai, exige nossa atenção e passa

a nos interessar, pois se evidencia uma situação

óbvia que até então ignorávamos: o diário não

seria apenas dela. seria de todos nós. por conse-

guinte, a ação contínua do engolir e do vomitar e

o engasgo de confetes também é de todos nós,

homens ou mulheres, brancos, índios ou pretos,

baianos ou cariocas, ostentando ou não abadás.

Assim, aprendemos (e a arte é incomodamente

uma professora exemplar) que a artista não trata

de questões pessoais e sim de anseios existen-

ciais comuns ao ser humano, de questionamen-

tos a imposições de condutas sociais, de tristezas

inconfessas e cicatrizes profundas que não apa-

recem na mídia e que os pobres brancos, índios

ou pretos (com ou sem abadás) se apressam em

deixar trancafiados em seus guarda-roupas ad-

quiridos a prazo quando vão brincar o carnaval.

O hedonismo do carnaval em Ana Fraga é inter-

pretado pelo viés do mal-estar, do corpo que faz pular para fora um multicor vômito de minúsculos confetes feitos a partir das folhas de seu diário, reestruturado em nova e fragmentada existência que dá voz, ou melhor, dá visibilidade às angús-tias existenciais. Uma poética do desassossego em que não se vê o rumo da bala, mas se sabe a quem ela se destina e onde certeiramente atinge.

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44 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

A natureza das angústias dos outros já sabemos e,

como se exercita diariamente, não nos interessa,

pois, reiteramos, prezamos nosso individualismo

e a ele somos evangelicamente fiéis: o individua-

lismo é fiel.

nessa mostra que teve a curadoria da experiente

artista e professora sônia rangel, ana Fraga ali-

nhavou o universo temático de suas performances

e acomodou seus (e nossos) escombros a partir de

três núcleos: o diário, a linha e a tesoura.

Advém das tradições culturais de sua região de

nascença e de sua condição feminina não apenas

a escolha dos materiais − cuja síntese, por meio

de ações performáticas, ressignificam os sentidos

dos usos de diário, da linha e da tesoura em bor-

dados e costuras −, como evidencia o contraste

dessa memória afetiva com os escombros coti-

dianos e contemporâneos. Assim, a sensibilidade

migra dos registros de diários íntimos e se tra-

veste de forçada “alegria” aludida pelos confetes

engolidos e regurgitados, subvertendo o sentido

do uso festivo daquele material e que constituiu

tanto a performance Escombros mencionada,

quanto a obra Escombros série I. esta última con-

centra confetes hermeticamente lacrados em cai-

xas de vidro de variadas dimensões e dispostas no

chão, enquanto na parede três martelos pendura-

dos indicam a ação e o esforço necessários para se

experimentar a alegria aludida pelos confetes ao

custo do uso da força pelo golpear do martelo e

do risco do corte pelos cacos dos vidros fragmen-

tados. uma explosão de suposta alegria se anun-

cia ao custo de um risco real de esforço e dor.

Já a linha vai gerar ações registradas em fotogra-

fias que compõem as obras Escombros nós itine-

rante e que consistem na confecção de mais de

dois milhões de nós feitos manualmente pela artis-

ta de janeiro de 2012 a fevereiro de 2014, ora com

a artista e seu rolo de turbante a bordo de uma

canoa à deriva, a qual desliza indecisa pelas águas

do Paraguaçu − rio que banha a cidade natal da

artista − ao sabor da correnteza, ora sentada no

ana Fraga, Escombros nós itinerante, performanceFoto Marcio santana e darlan dhouro

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dossiê | dilson Midlej 45

minadouro d’água da nascente daquele rio, na re-

gião de barra da estiva. os nós dessas ações são

finalmente depositados na sala da galeria, espécie

de escultura/registro da tradição e do sofrimento

cotidiano “amarrados” e ensimesmados que, tal

como os confetes, têm seu significado subverti-

do uma vez que o bordado gerado resulta em

um monte de nós sem utilidade prática, mas im-

pregnado pela via artística de peso existencial e

de sentidos.

E por fim, a tesoura, instrumento do cortar tecidos

e do costurar, é utilizada pela artista para “extrair”

flores de uma camada de tecido estampado que

cuidadosamente reveste seu colo na performance

Escombros II. a ação se dá mediante interrupção

parcial de um corredor de pedestres da ponte d.

pedro ii, centenária estrutura de ferro que se esten-

de sobre o rio Paraguaçu unindo São Félix à cidade

histórica de Cachoeira. a intimidade às avessas do

ato da costura da artista sentada em um pequeno

banco em espaço público é contaminada pelo fre-

quente passar da população que, curiosa, ou igno-

ra a ambiência intimista da ação ou responde de

alguma maneira, como ilustra o fato de algumas

pessoas apanharem as “flores” caídas no chão. Os

buracos abertos no tecido anunciam a operação

cirúrgica e esvaziam a padronagem decorativa,

adicionando eloquentes e incômodos espaços va-

zios, destacados ainda mais pelo contraste com o

negro da roupa da artista e o significativo rolar ao

chão das “flores”. Espécie de colheita cirúrgica

de espaços vazios, a ação discorre sobre inver-

sões de valores, escombros da perda de poesia

e de sentidos. Enfim, ao mesmo tempo silenciosa e

alarmadamente, as flores perdem seus significados.

O público sanfelista ou cachoeirano não é total-

mente alheio às manifestações performáticas,

uma vez que a cada dois anos acontece a bienal

do Recôncavo em São Félix e performances são

regular e publicamente apresentadas desde sua

ana Fraga, Escombros nós itinerante, performance Foto otaviano Filho

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46 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

primeira edição. isso naturalmente não garante

o entendimento das propostas artísticas. todavia,

arrisco afirmar que a familiaridade do sanfelista

em relação aos objetos cotidianos utilizados por

Ana Fraga e seus consequentes usos subvertidos

pode favorecer um viés de possibilidades de lei-

turas e mesmo a participação, involuntária (assis-

tindo à ação ou esgueirando-se para passar pelo

corredor de pedestres da ponte obstruída pela

artista) ou participativa (colhendo “flores” recor-

tadas no chão); ao mesmo tempo em que cria

conformidades, extensões e desdobramentos do

trabalho performático, também indica a vitalida-

de dessa forma de expressão e reforça que é com

a participação do outro que se completa e atinge

sua significação plena, sem necessariamente pas-

sar por uma formulação racional de juízo de valor.

A significação é construída sensivelmente por to-

dos, artista estimulador e público receptor (partí-

cipe involuntário ou cooptado), em fragmentos,

paulatinamente, a cada nó, a cada flor extirpada

ana Fraga, Escombros II, performance Foto tatiele souza

e caída, a cada punhado de confetes engolido, a

cada respiração, e o decorrer do tempo de reali-

zação das ações, em conjunto com a participação

do público, propõe uma troca de experiências em

que a clareza da proposta ou seu significado não

são necessariamente percebidos de maneira fácil

ou assumem maior relevância. Assim, no que toca

à clareza aludida no início deste texto, você, lei-

tor, pode agora se perguntar: mas de que mesmo

trata este texto que leio? E antes que impropérios

firam o ar, apresso-me em responder: este texto

trata de ana Fraga, uma artista que felizmente

está atenta aos escombros de todos nós.

Dilson Midlej é professor-assistente de história

da arte do Centro de Artes, Humanidades e Le-

tras da uFrb, em Cachoeira, ba e doutorando

do ppGaV-eba uFba. É pesquisador associado da

Anpap, mestre em artes visuais (2008), especializa-

do em crítica de arte (1984) e graduado em artes

plásticas (1982), os três títulos fornecidos pela UFBA.

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47dossiê | Fernanda Pequeno

poeira, pipoCa, poeira, pipa, poeira

Fernanda Pequeno

A poeira que se deposita sobre objetos e em ambientes diz respeito não apenas ao cotidiano prosaico.

Ela também lembra as coisas esquecidas, os resíduos que indicam a ação do tempo ou a falta de im-

portância de determinadas posses, que ficam um período sem uso ou no mesmo lugar. Pode, ainda, ser

simbolicamente associada à ruína cuja “sujeira” é gerada por catástrofes naturais, reformas ou simples-

mente pela passagem de dias, anos ou séculos.

a poeira forma-se por micropartículas de terra ou areia que, levadas pelo ar, se depositam nas superfí-

cies. Essas partículas desprendem-se também das paredes que se dilatam pela ação do sol ou do calor, do

cigarro queimado, dos carros, das indústrias, ou seja, é impossível viver sem gerar resíduos. Se, porém,

em pouca quantidade, a poeira é quase imperceptível, acumulada sugere repulsa, porque se confunde

com resquícios maiores que geram o lixo.

Em sua busca de assepsia, o homem foi cada vez mais excluindo as camadas de tempo que se adensam.

Não apenas porque elas causam doenças, mas também porque ao pó foi-se associando uma ideia nega-

tiva de falta de cuidado. se, em sua maioria, os homens querem afastar a “sujeira” que causa alergia ou

denota melancolia e outros males, o que propõe bete esteves, ao criar máquinas que captam e acumu-

lam a poeira da casa, do ateliê ou do espaço expositivo?

a artista se interessa pela inutilidade positiva que a relação entre arte e engenharia proporciona.

produz “quimeras maquínicas”1 que nada mais são do que traquitanas inventivas, esculturas-máqui-

nas, cujo funcionamento só é utilitário poeticamente.

bete esteves vem desenvolvendo a pesquisa com poeira desde que passou a dividir um ateliê localizado

no interior de uma fábrica têxtil, no Rio Comprido, Zona Norte do Rio de Janeiro. Pelo viaduto e pelo

túnel que cortam o bairro passam diariamente carros e ônibus em grandes quantidades, o que faz com

que os objetos do ateliê fiquem cobertos por camadas espessas de pó. A artista resolveu tirar partido

desse ambiente “insalubre”, passando a criar esculturas que adensam os resíduos depositados.

Dust printer, como sugere o título, funciona como uma impressora de poeira. um carrinho de acrílico se

movimenta no chão, sendo acionado por um circuito eletrônico e um sensor de movimento. nele estão

depositadas uma folha de papel e uma máscara de acrílico em formato estelar, que lembra um ralo. Após

o período de captação, na folha imprime-se a imagem de uma estrela que, ao se acumular com outras

impressões, gera constelações pueris.

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48 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

bete esteves, Puerile, 2012, 100 x 20 x 20mm Objeto escultórico composto de caixa de acrílico, cooler e papel

Puerile registra e grafa as partículas dispersas pelo

ambiente. As esculturas (uma vertical e uma ho-

rizontal) são individualmente formadas por uma

caixa de acrílico dotada de ventoinha, que impri-

me sobre folhas de papel a poeira captada no es-

paço circundante. aqui não se formam imagens,

mas acúmulos de partículas que se adensam com

o passar do tempo.

Há também uma instalação com livros, na qual a

poeira age como uma película que reveste a parte

superior das publicações. O verso “fica um pou-

co”, do poema “resíduo”, de Carlos drummond

de Andrade, é impresso através de uma másca-

ra posicionada sobre os livros, que são antigos e

escolhidos pelos títulos que se relacionam com a

solidão e as coisas esquecidas.

essa parte da produção artística de bete esteves

dialoga com séries de trabalhos de Sean Miller, vik

Muniz e Xu Bing. Em obras fotográficas ou insta-

lativas, esses artistas acionam a poeira para criar

trabalhos de arte contemporânea que a utilizam

como material e ponto de partida conceitual.

A poética de Bete Esteves também se relaciona

com a filosofia de Georges Bataille. Em um peque-

no texto de 1929, publicado no dicionário Crítico

da revista Documents, o autor não forneceu uma

definição clássica de poeira, descrevendo-a da se-

guinte maneira:

Os contadores de histórias ainda não

perceberam que a Bela Adormecida teria

despertado sob espessa camada de poeira,

nem têm previstas teias da aranha sinistra

que teriam sido dilaceradas no primeiro

movimento de seus cabelos vermelhos.

Enquanto isso, as folhas sombrias de poeira

invadem constantemente moradas terrenas e

uniformemente as contaminam: como se fosse

uma questão de preparar sótãos e salas antigas

para a ocupação imanente das obsessões,

fantasmas, espectros que o odor decadente da

antiga poeira nutre e intoxica.

Quando as jovens meninas rechonchudas, ‘da-

mas de todo trabalho’, armam-se todas as ma-

nhãs com um grande espanador ou mesmo um

aspirador de pó, elas não estão, talvez, com-

pletamente cientes de que estão contribuindo,

cada qual com seu bocado, tanto quanto o

mais positivista dos cientistas para dissipar os

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49dossiê | Fernanda Pequeno

fantasmas prejudiciais que a limpeza e a lógi-

ca abominam. Um dia ou outro, é verdade,

a poeira, supondo que ela persista, prova-

velmente começará a ganhar vantagem sobre

empregadas domésticas, invadindo as ruínas

imensas das construções abandonadas, estaleiros

desertos; e, naquela época distante, nada restará

para afastar terrores noturnos, por falta de que

nós nos tornamos tão grandes guarda-livros...2

a origem humana e sua relação com o pó (“do

pó viestes e ao pó voltarás”) parecem, entretanto,

não assustar bataille ou mesmo lhe provocar para-

lisia ou uma postura melancólica diante da transi-

toriedade da vida. É desse modo que a produção

de bete esteves se aproxima do pensamento do

autor. Ambos tratam desse lado não purista, utili-

tário ou limpo do ser humano.

Se, em sua filosofia, o francês valorizou a inutilida-

de da arte, em sua pesquisa bete esteves vem-se

debruçando sobre o escangalhar da máquina e

sobre o viés menos pragmático do ser humano,

sua porção lúdica.

usualmente, o homem adulto deposita no es-

quecimento as coisas “sem importância” da in-

fância. É dessa maneira que Bete Esteves vem re-

cuperando o muito grande e o muito pequeno,

brincando com escalas de tamanho, de valor e

de complexidade.

para criar máquinas desfuncionais, a artista faz

uso de projetos detalhados, que exigem pesqui-

sa, o domínio técnico e a utilização de mão de

obra especializada, acionando diferentes campos

de saber. Recupera, então, através de suas enge-

nhocas, a inventividade e a capacidade infantil

de maravilhar-se.

E também não podemos deixar de indicar a iro-

nia que a artista opera. pois se tradicionalmente à

poeira se associa o velho, o superado (“a arte em-

poeirada”), bete esteves, ao contrário, propõe o

uso de máquinas contemporâneas que adensam

essas partículas, em um movimento de captação

do que é invisível.

É dessa forma que sua operação artística é dupla,

pois desfuncionaliza essas máquinas (afinal, quão

utilitária é uma escultura que imprime poeira?) e

torna positivo seu uso. redesperta no homem, as-

sim, suas capacidades de sorrir e de jogar que, se-

gundo Bataille, possibilitaram que a arte nascesse.

ao propor essa espaço-temporalidade não

pragmática do jogo, da brincadeira e da arte,

bete esteves criou uma pipoqueira formada por

uma bicicleta invertida e um dispositivo sonoro.

Como se fora a concretização de um sonho de

bete esteves, Claras em Neve I, 2013still de vídeo

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50 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

criança, ao girar o pedal, ouve-se o barulho dos

milhos estourando e é como se sentíssemos o

cheiro da pipoca.

as leituras não param por aí, em função da rela-

ção que estabelecemos com Marcel Duchamp e

de a bicicleta mais importante da história da arte

não deixar de estar presente. tal fato amplia a

ideia de jogo acionada por bete esteves, utilizan-

do-o também como estratégia e linguagem.

A artista também criou frágeis pontes de pali-

tos cuja complexa engenharia e demorada cons-

trução tem única e exclusivamente a função de

transpor poças d’água formadas durante ou

após a chuva. bete esteves traz para o dia a dia,

assim, a engenhosidade de uma obra nada tri-

vial, mas fantasiosa.

na instalação Leve, três vídeos de animação foca-

lizam o desaparecimento e o reaparecimento de

pipas presas em fios de eletricidade. Projetados

em dispositivos eletrônicos dentro de monóculos,

duas temporalidades se impõem: a arcaica desses

objetos fadados ao desaparecimento e a atualida-

de dos tablets que exibem os vídeos.

brincando com a situação prosaica de pipas que

se prendem em condutores elétricos, a artista as

retira do esquecimento. evidencia, assim, o imper-

ceptível dessas cafifas, para as quais normalmente

não antentamos ou não damos importância.

na mesma direção, os vídeos Claras em neve I e

II transformam luminárias públicas em hastes de

batedeira e as nuvens do céu nas claras em neve

do título. novamente jogando com o poder ima-

ginativo do espectador, a artista deflagra outros

olhares para o cotidiano.

despertando outros sentidos, como olfato e

paladar, bete esteves aguça no espectador a

capacidade inventiva que as crianças e o artista

possuem. Acionando a fantasia e a fabulação,

que costumam ser pouco valorizadas no homem

adulto, com suas traquitanas a artista se reencan-

ta e reencanta o mundo a seu redor.

É assim que as engrenagens de bete esteves pro-

porcionam um olhar mais sensível para o cotidia-

no. suas máquinas, assim como os humanos, es-

cangalham, enferrujam, quebram. E é justamente

aí que reside sua poesia. de seus dispositivos

emanam sons, odores e sabores, ficando deles um

pouco em nós e de nós um pouco neles.

Ainda bem que de tudo fica um pouco. É a partir

desses resíduos que constituem a vida que bete

Esteves produz os seus trabalhos. No lugar da lo-

ção, para abafar o insuportável perfume de mofo,

bete esteves, Leve, 2013 Animação de três minutos em looping, tablet de 7 polegadas e monóculo de acrílico com tripé sobre rodízio

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51dossiê | Fernanda Pequeno

riamos, toquemos, espirremos e sintamos os chei-

ros da poeira, da pipoca, da poeira, da pipa, da

poeira e continuemos brincando com o trava-lín-

guas. Antes de recomeçar, porém, é preciso parar

e perguntar: você já olhou para o céu hoje?

NOtAs

1 A artista define sua produção escultórica como quimera maquínica, numa confluência de monta-gens e desmontagens de arranjos desfuncionais da arte com a engenharia reversa, a biologia e a ele-trônica. unindo sonho, fantasia e ciência, as máqui-nas quiméricas de Bete Esteves não são mecânicas. Poderiam figurar no inventário de Jorge Luis Borges d’O Livro dos seres imaginários, já que fundem ho-mem, objetos, animais e ferramentas. Nas palavras da artista: “imprevisíveis e temperamentais, [elas] re-jeitam a produção normalizada e apresentam aspec-tos conturbados. Muitas destas quimeras invocam, além do desarranjo, a circularidade, o mito de Sísifo, a mágica, o truque, o riso e o divertimento”.

2 “Poussière”. In: Georges Bataille. Oeuvres com-plètes I. Paris: Galimard, 1970: 195.

Fernanda Pequeno atua como crítica de arte e

curadora independente. autora de Lygia Pape e Hélio

Oiticica: conversações e fricções poéticas (apicuri,

2013), tem publicado textos críticos em folders,

catálogos de exposição e revistas. É coordenadora

de artes Visuais do instituto de aplicação Fernando

rodrigues da silveira da universidade do estado

do Rio de Janeiro (CAp/Uerj), onde atua como

professora-assistente de artes visuais e de história

da arte. doutora pelo programa de pós-graduação

em Artes visuais (EBA / UFRJ), realizou o estágio

de doutorado PDEE (bolsa sanduíche Faperj) no

Chelsea College of Art & Design, Londres, em

2012. Co-orienta no rio de Janeiro o Observatório:

produção e reflexão em arte contemporânea, grupo

de discussão teórico-prática, com foco na produção

recente da arte contemporânea.

bete esteves, Sem Título, 2013 Livros de formatos variados, máscara vinílica e poeira

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52 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

outros teMpos soMbrios

Ana Luisa Lima

Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente;

nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era

em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no

momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi

recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo

sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes

oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas,

explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações.

Hannah Arendt, em Homens em tempos sombrios

A cada dia se demonstra mais claro que o marxismo ortodoxo falhou em prever o fim do capitalismo e que,

quando vislumbrou uma comunidade global socialista, não soube reconhecer a potência da individualida-

de nessa construção. nada há de tardio nesse sistema do capital que parece tomar novo fôlego depois de

cada crise. Em sua forma atual, com sinais fracos das antigas ideologias, nos tornamos simplificados como

elementos de dois conjuntos: com dinheiro e sem dinheiro, e isso sem garantia alguma de permanência

em um e outro. Trata-se de esmagamento sem precedentes do sujeito/subjetividade que tem-nos levado a

perder todo e qualquer parâmetro de pertencimento. Quase já não há conjunções simbólicas que nos con-

tornem, primeiro, como coletividade; segundo, como indivíduos. Massa informe, homogeneizada, ainda

que seja através dos discursos de singularidade, somos parte da grande engrenagem de manutenção do

sistema no qual cada desejo mais íntimo é transformado em commodities – vide o facebook.

Os sinais de fracasso que fizeram celebrar a morte do autor, o fim da história e das utopias têm-nos

feito caminhar para o auge de uma era que passei a chamar de Finus lato sensu, porque o fim de todos

os parâmetros nos parece ser uma finalidade em si mesmo, e esse sem finalidade nos coloca numa

perspectiva de looping, de um ‘sem fim’. Eram os sintomas de fim de uma situação que possibilitava a

demarcação de tempo como também a possibilidade de amanhecerem novas tomadas de posição. Ao

contrário disso, esse modo contemporâneo de percepção, de ser e estar no mundo, parece mesmo se

afirmar como existência condensada de espaço-tempo numa aceleração exacerbada, criando tempora-

lidade sem esquinas.

O campo da arte é espelho dessa condição. Ninguém está imune, nenhum de seus agentes (independentes

ou institucionais), está fora de viver sob a recorrente necessidade de adaptação e de manejos retóricos ao

sabor caprichoso do mercado. Há muito se colocaram em marcha ações que sutilmente tornaram privadas

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53dossiê | AnA LuisA L imA

Luísa Nóbrega, esse é meu corpo. esse é meu sangue. dípticoframe de vídeo, 2013

as experiências coletivas. Em nome da profissiona-

lização do campo, já não há, em grande escala,

qualquer proposição artística em que o coletivo ve-

nha antes do privado. sintomas disso, são cada vez

mais legitimadas as feiras de arte e as exposições

espetaculares em que o consumo toma o lugar da

fruição. O consumo não é outra coisa senão a volta

de uma percepção meramente retiniana da obra.

Como haver produção de diálogos, criação de sub-

jetividades, sem essa possibilidade da experiência

estética pelo corpo? Não é a possibilidade dialó-

gica, criadora e criativa que há nas experiências

estéticas que faz a arte ser eventualmente imaginá-

rio coletivo? respondidas essas perguntas, talvez,

possamos dar-nos conta desse perigoso processo

que tem feito a arte perder seu valor simbólico para

ganhar cada vez mais apenas valor de mercado.

política e sujeito são temas constantes na arte

contemporânea. Tais verbetes, contudo, são invo-

cados nos eventos1 de artes, menos para ser discu-

tidos, questionados, ampliados, e mais para servir

de justificativa enquanto “qualidade filosófica” de

tais eventos. É preciso uma nova subjetividade que

acenda a discussão da necessidade de (re)pensar

os valores da obra de arte enquanto construção

de um imaginário simbólico coletivo. Um modo de

assegurar a preponderância da experiência estética

em si mesma, no lugar de (re)naturalizar a aura

do caráter objetual da obra. O conceito de nova

subjetividade (que cito na Tatuí 72) ainda é algo

em construção cuja base se encontra no legado

da Nova Objetividade, que segundo Oiticica se es-

trutura a partir das seguintes ideias:

1. vontade construtiva geral;

2. tendência para o objeto ao ser negado e

superado o quadro de cavalete;

3. participação do espectador (corporal, táctil,

visual, semântica, etc.);

4. abordagem e tomada de posição em rela-

ção a problemas políticos, sociais e éticos;

5. tendência para proposições coletivas e

consequente abolição dos “ismos” caracte-

rísticos da primeira metade do século na arte

de hoje (tendência esta que pode ser englo-

bada no conceito de “arte-pós-moderna” de

Mário Pedrosa);

6. ressurgimento e novas formulações do con-

ceito de antiarte.

Penso que, embora Oiticica tenha conseguido es-

clarecer bem os termos daquela produção artísti-

ca como “um estado típico de arte brasileira”, ain-

da assim, hoje, quando pensam aquele momento,

o fazem cada vez mais sob termos formalistas e

menos políticos. acredito que manifestações ar-

tísticas atuais estão profundamente entranhadas

do legado deixado pela Nova Objetividade, ainda

que o ponto de partida não seja mais um desejo

de objetividade, mas de subjetividade.

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54

A esse respeito, proponho um olhar sobre a atual

arte contemporânea brasileira. Ao meu ver, não

existe ruptura entre aquele momento histórico e

o atual. apenas os modos de criação parecem to-

mar agora sentidos inversos aos daqueles, ainda

que permaneçam, no fim, numa mesma direção.

Ora, na Nova Objetividade era o substrato social,

coletivo, que acionava a criação, e a forma encon-

trava singularidade em cada artista. hoje, pensan-

do na maioria dos trabalhos que se veem, tanto

quanto nos discursos dos artistas, o substrato que

impulsiona a criação é assunto individual, particu-

lar, subjetivo, mas encontra na forma um modo

de se tornar assunto que diz respeito ao coletivo.

Luísa Nóbrega é pouco conhecida no Brasil, mas

tem passagens pela Ucrânia, Lituânia, Rússia, Es-

panha, entre outros sítios; há pouco mais de seis

anos a artista e escritora paulistana tem mergu-

lhado numa escritura de narrativas que posicio-

nam ‘o sujeito’ num lugar de vulnerabilidade.

Foi a partir de assuntos, dúvidas, limitações que

a moviam e que via em si mesma que deu iní-

cio a uma série de investigações que se abrem

em duas frentes: uma da ordem da percepção,

a outra, das construções ideológicas. a formação

da artista é em filosofia, teatro e dança, e seus

trabalhos encontram no corpo – não só em sua

prefiguração encarnada-matérica, mas também

em sua condição de ser canal de percepção e co-

municação daquilo que não se vê e que podemos

chamar de imaterial – seu início, meio e fim com-

positivos. Nóbrega tem desenvolvido trabalhos em

áudio e audiovisual, mas é na ação performativa

que sua escrita se desenrola em inúmeros capítu-

los. o corpo da artista em cena, de maneira nun-

ca óbvia, metaforiza situações das (des)venturas

humanas. essa metaforização em si mesma traz

à tona um corpo político. Politizar o corpo não é

apenas colocá-lo em exposição, mas fazê-lo capaz

de conscientizar-se do todo, sobretudo daqueles

discursos por trás dos discursos próprios da trivia-

lidade. as narrativas que propõe fazem, às vezes

de maneira positiva, às vezes de modo negativo,

o corpo consciente (de si e do todo) e o põem em

movimento crítico-reflexivo. Estão sempre em jogo

as situações-limite da fala e do silêncio, do cansa-

ço e do apaziguamento, do excesso e da sutileza.

Parte de seus trabalhos estão voltados para as

investigações de vocalização, emissão de som,

comunicação que se dá para além da fala. Em

degredo, ou porque nunca aprendi a falar, de

2011, ela extrapola sua condição de portadora

de limitação auditiva e passa a usar tampões em

Luísa Nóbrega, degredo, ou porque não aprendi a falar, registro de performance, 2011

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55dossiê | AnA LuisA L imA

vez de seus aparelhos auditivos; durante seis dias

fica sem falar, vivendo normalmente em comuni-

dade, e no sétimo dia se isola, num pedaço de

floresta, à imposição de ininterrupta verborragia

de 24 horas, sem dormir. ao alterar um disposi-

tivo tão simples, de comunicação através da fala,

a artista consegue rearticular entre aqueles com

quem convivia outra forma de comunicação que

punha em xeque essa fala que é muleta de uma

afetividade emudecida pelo excesso. Ao estabele-

cer uma economia da linguagem, ela traz à tona

a consciência de um corpo afetivo e afetável às

mais singelas e sutis maneira de estar junto. se

por um lado esse trabalho faz saber a afetividade

atrofiada das pessoas diante de alguém limitado

em um modo de percepção (auditivo), por outro

também protagoniza a história de muitos que

dentro de uma coletividade civil são postos à mar-

gem de muitas narrativas cotidianas em função

dessa limitação.

Numa série de trabalhos desenvolvidos em 2013

– pesquisa impulsionada pelo desejo particular de

investigar os modos de vocalização e gestualidade

–, Nóbrega com ética e delicadeza põe em visi-

bilidade virtudes e contradições de comunidades

evangélicas da denominação “Deus é amor” com

as quais conviveu em Fortaleza-CE e Bagé-RS. Em

dois períodos de residência, a artista procurou vi-

ver com toda a inteireza os ritos e liturgias que

lhe eram ensinados durante sua presença assídua

nos cultos. sem dúvidas, tal engajamento levou-a

a questionamentos daquele modo de vida. Mas

é sem moralismos e respostas assertivas que seus

trabalham dão voz às questões filosóficas trazidas

pelo atrito entre um doutrinamento dogmático e

a realidade cotidiana, como nos vídeos o vermelho

não existe e esse é meu corpo. Esse é meu sangue.

Mas é num conjunto de trabalhos iniciado em

2012 que sua escritura demonstra outras dobras

de complexidade. entre a realidade e o fantástico,

na série de vídeos intitulada ventríloquo, a procu-

ra da ‘voz’ ganha tantos tons, que não se pode

afirmar apenas uma narrativa possível. A partir

de uma mesma imagem podemos nos conduzir

Luísa Nóbrega, ventríloquo. estudo número um, frame de vídeo, 2012

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56 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

a enredos diversos: de delicadeza, de letargia, de

fantasmagoria, de condição vulnerável, de afeti-

vidade, etc. Tal é a sofisticação da linguagem que

coube em composições tão simples. São traba-

lhos como esses que nos põem em estados ine-

vitáveis de imaginação criativa. pôr o corpo em

fruição a uma experiência estética dessa natureza

reclama necessária subjetividade. Uma relação

que, em um só tempo, é ativa e afetável. É nesses

estados de afetação que os contornos de confi-

gurações simbólicas, ainda que transparentes e

transmutáveis, nos delineiam: primeiro como in-

divíduo, depois como coletividade. em outras pa-

lavras, o artista é um produtor simbólico criador

de um vocabulário estético que pode ser também

político − se for possível uma construção dialética

que flexione as desinências de acordo com os ra-

dicais produzidos pelos artistas. Fica a pergunta: é

possível a construção de configurações simbólicas

coletivas com as experiências estéticas cada vez

mais privatizadas?

NOtAs

1 Nessa ideia de evento cabem os mais diversos tipos

de exposições: em instituições, galerias comerciais,

bienais, feiras de arte; tanto quanto festivais de per-

formance, audiovisual, etc.

2 O texto referido se chama “Nova subjetividade: o

esboço de uma possibilidade”, publicado na Tatuí

7, em setembro de 2009, que trazia o tema “Algu-

mas organizações e outras arrumações sociais da

arte de agora”.

Ana Luisa Lima é crítica de arte e pesquisadora do

tema literatura e artes visuais – imagem e narrati-

va. Foi cocuradora do projeto poemas aos homens

do nosso tempo – hilda hilst em diálogo, progra-

ma Rede Nacional Funarte 9a edição. editora da

revista Tatuí (pe) desde 2006, atualmente faz parte

do grupo de crítica do Centro Cultural são paulo.

+ www.analuisalima.wordpress.com

Luísa Nóbrega, ventríloquo. estudo número três, frame de vídeo, 2012

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dossiê | Lara VasconceLos 57

breVíssiMo ensaio sobre o risCo

Lara Vasconcelos

Pra onde vão os trens, meu pai? Para Mahal Tami, Cam rí, espaços no

mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir

e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti.

Hilda Hilst

E há também o arriscado jogo de abrir as palavras. Espiar sua origem escondida, umbigo etimológico.

Daí descobrir que perigo e experiência dividem o mesmo radical. E que também estão ligadas, de algum

modo, a palavras que nos contam sobre travessias, percursos, passagens, limites.1

A noção de experiência, tão recorrente nos discursos de artistas e críticos de arte, parece nos dizer, sobre-

tudo e de modo até simples, do que em nós se inscreve, do que nos acontece em detrimento do que sim-

plesmente acontece. É sobre uma certa permanência disso que “nos acontece”, sobre a forma como esses

acontecimentos nos reordenam, nos defasam de nós mesmos, que tal noção parece contar. o sujeito da

experiência como um território de passagem, como “uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta

de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”.2

E a suspeita aqui é de que algumas coisas só nos acontecem porque nos movemos e nos implicamos, por-

que nos deitamos ao perigo do (des)encontro, saímos de um lugar para outro de nós, atravessando as linhas

invisíveis do tempo. É justo o risco, o perigo da implicação, de colocar o próprio corpo e seus afetos em jogo,

que me move a pensar o trabalho do jovem artista cearense Filipe Acácio.

O arriscar-se, na obra de Filipe, vem às vezes como um perigo que ameaça a integridade física, o corpo

do artista em jogo, como em Nada machuca, em que ele se lança repetidas vezes sobre um colchão

posto no chão, sendo que, a cada novo salto, afasta-se mais para pular, até que o corpo não encontra

o colchão, mas o chão.

Outras vezes o risco vem como algo abstrato, o não saber que outro de si pode surgir quando no encon-

tro com o “estranho-você”. ou ainda o risco como recurso formal, gesto. o lápis que risca a superfície,

o gesso que risca o chão.

Neste texto, me dedicarei a pensar, de forma breve, sobre dois trabalhos de Filipe Acácio, artista cujo

percurso venho acompanhando há cerca de dois anos. o que me guia na escrita destas duas notas

é o desejo de entender em que medida essas obras nos contam da simultaneidade da invenção de

si e do mundo.

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58 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

Filipe acácio, Estria, performance, CCbnb, exposição Caminhando, Fortaleza (CE), abril de 2013Foto rodrigo patrocínio

Nota 1 – stranger You

as imagens, por mais especulares que às vezes

possam parecer, não são meros espelhos do real.

não. barthes talvez estivesse um tanto equivo-

cado quanto a sua ideia de imagem como “isso

foi”.3 E enquanto ele dormia, como na fábula dos

brinquedos que criam vida à noite, elas saíam

para dançar e seguir em suas sobrevivências.

Do embate criativo entre nós e as imagens, nin-

guém sai ileso. trata-se de experimentar em si um

deslocamento do ponto de vista: deslocar a pró-

pria posição do sujeito, a fim de oferecer meios

para deslocar a definição do objeto. É o que pa-

rece nos apontar Stranger You, obra exposta em

2012 na mostra coletiva Casa Aberta.4

Movido por desejos que, pelo menos inicialmente,

não pareciam contar exatamente da vontade de

fazer arte, Filipe ingressou na rede social Manrou-

lette, sistema de video chats destinado exclusiva-

mente para encontro de homens. o dispositivo

do site permite que cada usuário mantenha com

outro uma conversa em vídeo por vez. os pares

são formados de modo aleatório. O usuário é

quem decide até quando permanecer na conversa

ou passar rapidamente para outra sala de vídeo.

basta um clique.

Como a maioria dos usuários do Manroulette, Fi-

lipe mantinha relações sexuais virtuais com outros

rapazes da rede. depois de certo tempo, passou

a “fotografar” – através do botão Print Screen do

computador – as diversas situações que experi-

mentava naquele espaço. parte dessas imagens

foi enquadrada em porta-retratos com molduras

diversas e instalada em um corredor da galeria

Dança no Andar de Cima, criando a impressão de

que se estava diante de uma daquelas tradicionais

paredes de retrato de família, não fosse o conteú-

do das fotografias.

A maioria das imagens que o artista coletava exibia

recortes de corpos masculinos nus, cujos pênis ge-

ralmente ocupavam o centro das imagens. Captu-

rava também frames de quartos e cadeiras vazios

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dossiê | Lara VasconceLos 59

ou de grandes borrões de pixels. Foram principal-

mente essas imagens que começaram a inquietar

o artista quanto ao que estava realmente fazendo

ali, naquele espaço virtual. pois se para Filipe as ca-

deiras vazias com frequência contavam sobre uma

situação pós-coito (já que apareciam quando os

homens do outro lado da tela se ausentavam para

limpar-se) também pareciam abrir clareiras no re-

gime de imagem estabelecido naquele lugar.

Stranger You não nos conta sobre um procedi-

mento artístico que se propõe a representar, nar-

rar ou recordar o que se vive. É uma obra que

acontece junto ao que se vive e porque se vive, de

modo que se torna impossível definir as fronteiras

entre os fluxos da vida e os da arte. As imagens

que a compõem nos confrontam com uma ideia

de humano que parece questionar aquela moder-

na, de sujeitos constituídos, que têm na premissa

de existir como tais a condição sine qua non da ex-

periência e do conhecimento do mundo. o artista

não preexiste ao que se passa consigo. seu siste-

ma cognitivo não é um palco de representações

de um mundo preexistente, mas “configura um

mundo ao mesmo tempo em que se autoproduz,

sempre num movimento de coengendramento”.5

É pensar que o que está em jogo não é a mera

apresentação de uma obra, mas a presentificação

de outro mundo. Um mundo que devém na pró-

pria experiência que a obra funda. e daí pensar

que o próprio gesto de criação está defasando o

criador de si mesmo, continuamente. E é nesse

processo de defasagem que as próprias obras en-

contram seus devires, seus movimentos internos

de diferenciação, de outramento. e nós seguimos

com elas, brincando de se estranhar.

Nota 2 – Estria

sobre uma placa branca de gesso o lápis grafi-

te desliza em um barulho desconfortável. Linhas

paralelas verticais ensaiam a perfeição que fica

mais longe a cada movimento do pulso. o ar-

tista repete o mesmo gesto de traçar até que já

não haja superfície. E então levanta, caminha até

algum ponto entre as outras obras e as pessoas

presentes, e deixa a placa escorregar das mãos e

encontrar o piso num estrondo insuportavelmen-

te incômodo. o artista então vira as costas e volta

para a mesa de trabalho. Recomeça.

No chão, os blocos brancos se espalham em

centenas de pedaços irregulares. as linhas, an-

tes paralelas, agora formam geografias impro-

váveis e transitórias, já que a cada passo dado

os cacos sob os pés se partem em outros meno-

res, mudam de lugar. os garçons que servem o

coquetel da abertura da exposição tentam en-

contrar os caminhos que ainda estão livres, para

não tropeçar no entulho. se os corpos presentes

se distraem brevemente, em poucos minutos se

sobressaltam outra vez com o golpe da placa

contra o chão.

É esse o modo que Filipe acácio encontra para

nos implicar. A cada passo dado sobre o gesso,

somos subitamente indiciados naquela cartogra-

fia branca que se forma na sala de exposições.

Os sapatos sujos de pó, o corpo em sobressalto a

cada placa que cai.

a primeira realização da performance Estria acon-

teceu na exposição Caminhando,6 quando o gru-

po de curadores convidou Filipe a pensar uma

proposição que viesse compor com as questões

propostas pela mostra, que se ocuparia do pro-

blema do corpo na arte contemporânea a partir

de obras que compunham o acervo do Centro

Cultural banco do nordeste.

o contexto dessa exposição, no entanto, não era

habitual. Ela seria talvez a última a ser realizada

no prédio então ocupado pelo CCBNB, que teve

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60 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

de mudar de sede depois que a Justiça Federal,

que dividia o edifício com o Centro Cultural, com-

prou os quatro andares usados pelo Centro e

pediu a desocupação do espaço. Estria aparece,

assim, em um tempo de incertezas. um dos es-

paços culturais mais importantes da cidade ficaria

sem sede, e ainda enfrentávamos o fantasma da

possibilidade de ele simplesmente deixar de existir,

medo corroborado por outros eventos que envol-

viam (e continuam envolvendo) o banco do nor-

deste em grandes polêmicas.

A situação que se cria na ocasião da abertura da

exposição, quando o barulho das placas que se

espatifavam pelo chão se confundia com o ba-

rulho da reforma do terceiro andar, que já tinha

sido entregue à Justiça Federal, parece contar so-

bre uma provocação sutil gerada pelo incômodo

que a performance causava naquela circunstância

festiva. É como se, a cada placa que jogava no

chão, Filipe nos perguntasse: “E nós, de que for-

ma nos implicamos com o que está acontecendo

aqui, neste espaço, nesta cidade?”

o que a semana que se seguiu à realização da

performance revelou foi ainda mais inquietante.

aos poucos a administração do Centro Cultural

foi abrindo um caminho no chão coberto de ges-

so para que as pessoas chegassem até a sala de

teatro sem se queixar do percurso. depois, todos

os cacos foram juntados em um grande monte,

deixando a maior parte da sala ‘limpa’ para que o

público pudesse ver as outras obras sem maiores

incômodos. Por fim, a exposição foi fechada antes

do previsto, devido à poeira que a obra soltava.

Estria é um pouco mais do que um risco superficial

numa superfície branca. É um sulco, rasgo em um

espaço liso, de consenso. ao implicar nossos cor-

pos, ao nos implicar politicamente, essa obra nos

possibilita ver a breve luz de um comum possível.

Filipe acácio, Nada machuca, performance, alpendre Casa das Artes, Fortaleza (CE), exposição Adesgraçadalebre Pina

bausch, agosto de 2012Foto aline belfort

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dossiê | Lara VasconceLos 61

NOtAs

1 “a palavra experiência vem do latim experiri, pro-var (experimentar).A experiência é em primeiro lu-gar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. a raiz indo-europeia é per, com a qual se relaciona an-tes de tudo a ideia de travessia, e secundariamente a ideia de prova. (...) o sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessan-do um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião.”(Bondía, Jorge Larrosa. Notas sobre a expe-riência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n.19, jan.-abr. 2002.)

2 Bondía, op. cit.: 24.

3 ideia defendida pelo autor no livro A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

4 Mostra realizada em janeiro de 2012 no espaço dança no andar de Cima. Fortaleza, Ce.

5 Kastrup, virginia. Enatuar. In: Fonseca, Tania Mara Galli; Nascimento, Maria Livia do; Maraschin, Cleci. Pes-quisar na diferença. Porto Alegre: Sulina, 2012: 85.

6 exposição resultante dos encontros do Grupo de es-tudos Processos de Curadoria do CCBNB − Fortaleza.

Lara Vasconcelos é mestranda no Programa de

pós-Graduação em Comunicação da universidade

Federal do Ceará. tem-se dedicado à investigação

nas áreas de crítica e de curadoria em artes visuais

e cinema. Hoje compõe o Laboratório de Artes vi-

suais do porto iracema das artes com a pesquisa

piratas do desvio.

Filipe acácio, Estria, performance, CCbnb, exposição Caminhando, Fortaleza (CE), abril de 2013Foto Juliane peixoto

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62 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

desenho e risCo – A poética de Gabriel Gimmler Netto

João Cícero

Desenhar como quem luta contra o desenho − eis a premissa poética do trabalho artístico de Gabriel

Gimmler Netto. O artista gaúcho é designer desde muito jovem. E sua produção plástica propõe uma ne-

gatividade com o campo do design. tal negação não deve ser entendida como simplória. a paixão criativa

do artista plástico não é menor do que a do designer. Há muitas concepções para esse campo nos dias de

hoje, e o negativo produzido por netto nasce da luta contra uma concepção hegemônica de que o design

e o desenho são instrumentos projetuais portadores de grandes ideias.

pode-se dizer que a concepção tradicional de design está ancorada num sentido intelectual do desenho

presente no gótico, e, mais propriamente, no Renascimento. Essa concepção afirma a potência intelec-

tiva do desenho de conhecer o mundo. Desenhar é conhecer. E, consequentemente, conhecer é saber. E

saber é ter o poder de inventar novas ideias e formas − espaços ‘utópicos’ (“imagens”).1 Logo, o dese-

nho analisa. depois, constrói novos espaços a partir de projetos.

Tal função cognitiva do desenho é invertida na obra de Gabriel Netto. Em parte, desenhar é des-conhe-

cer. É, fundamentalmente, experimentar o rastro do mundo, isto é, buscar os índices não gestálticos,

cruzando, assim, o sentido da visão ao tátil. ver é tocar. Mas tocar é também ver.

Há, desse modo, no trabalho do artista, uma pedagogia. Essa é formulada a cada processo, porque a

experiência tátil e óptica de desenhar deve experimentar a resistência dos materiais: tecido, madeira, pa-

pel, tronco de árvores secas, entre outros. e o artista experimenta o desenho como risco em superfícies

precárias e densas, captando a resistência dessa materialidade residual do mundo – o que esse descarta

ou está prestes a descartar.

Essa pedagogia subverte a relação cognitiva do desenho porque se origina de uma crítica ao axioma

mimético modelo-cópia, no qual o desenho no Ocidente ficou aprisionado. Não se trata de subsumir

formas perfeitas de um modelo e projetar numa superfície plana. nem de captar realisticamente os tra-

ços sensíveis de um corpo/objeto. Mas de intensificar a própria experiência sensível do traço, alcançando

uma energética do desenhar e não uma mecânica da cópia.

Há, de fato, uma tradição pedagógica de ‘desaprender’ nas artes visuais (desenho, pintura e escultura),

praticada por uma série de artistas modernos (como Pablo Picasso, Henri Matisse, Jackson Pollock, Willem

De Kooning etc.). Desaprender é buscar a singularidade da arte contrariando o mundo dos fazeres reifica-

dos. Nesse sentido, a matriz pedagógica do trabalho de Gabriel Netto é moderna. Contudo, ela se constrói

imersa numa ética da arte contemporânea: a de abarcar a promiscuidade do mundo em sua diferença

temporal e espacial.

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63dossiê | João CíCero

Gabriel Gimmler Netto, Desenho Instalado 6, 2012grafite sobre tecido, dimensões variadasmontagem EAv Parque Lage, Rio de Janeiro, Foto Carolina Veiga

A definição de desenho para Gabriel Netto passa

a ser, portanto, existencial e não essencial. dese-

nhar não é representar símbolos universais, e sim

imprimir gestos numa superfície. daí o fato de os

processos serem criados a partir de uma relação

performática com os materiais.

Desde 2003, Gabriel Netto vem construindo

uma pesquisa de três séries que se retroalimen-

tam. Cabe, pois, comentar cada uma delas a fim

de que se compreenda o trabalho poético do

artista. de imediato, a relação seriada nos leva

a atentar para o investimento de netto de acen-

tuar o aspecto inacabado do trabalho. Cada série

se edifica a partir de um movimento diante do

desenho, ou seja, a construção de uma proposi-

ção performática.

A série intitulada Estudo de Amplitude tem como

premissa expandir o traço do grafite na superfí-

cie do papel vegetal. Gabriel Netto diz que são

desenhos de grandes dimensões gerados pela

repetição gestual de esticar e dobrar os braços.

Entretanto se observa o quanto essa gestualidade

do desenhista não está desligada de uma orga-

nização óptica. evidentemente, não se vê um es-

paço tridimensional ilusório. e sim a presença de

uma sensibilidade tátil e óptica que se atravessam

mutuamente.

tal atravessamento ocorre exatamente por conta

desse processo negativo perante a técnica. A pro-

posta (pedagógica), portanto, é a de experimen-

tar apenas a repetição gestual do braço sobre a

superfície de papel vegetal. Contudo, há no corpo

do artista uma memória óptica do espaço. e essa

memória é vista na superfície das telas: a presen-

ça de centros espaciais como eixos de irradiações

do grafite, expondo sua frequência energética – a

vibração atlética dos gestos de Gabriel Netto em

linhas de chegada e de partida.

Estudo de Amplitude # 1 é feito a partir de riscos

de grafite no papel vegetal. Tais traços se indefi-

nem entre o centrípeto e o centrífugo. ora eles

nos mostram a presença de uma profundidade

que indica o centro do desenho. ora nos adver-

tem acerca da planaridade do fora da própria

tela. isso porque o papel vegetal repleto do ne-

gror do grafite armazena essa oscilante ordem

óptica gerada pelo caos dos gestos. revelando,

assim, o quanto de visão há no braço do dese-

nhista (e o inverso também vale) – apesar de ele

estar submetido a intensa gestualidade.

em Estudo de Amplitude # 2 a convergência centrí-

peta ganha força. nota-se na montagem das seis te-

las o cerne das direções do grafite. Mas esse núcleo

de alinhamento de energia, marcado pelo grafitado

negro, ganha uma flutuação no espaço, produzi-

da pelas bordas brancas das telas, que sugerem

a relação figura-fundo. Há o jogo entre o branco

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64

transparente do papel e o preto vibrante do grafite

que estabelece a necessidade de um olhar pictóri-

co à tela. Mas a presença visual dessa insistência

do gesto performático de fundir linhas sobre linhas

alude à presença de uma forma quase geométrica

suscitada pelo vértice desses riscados, insinuando a

presença de um objeto concreto no espaço. Nem

mancha pictórica. Nem forma geométrica. Mas o

jogo indiciático da incompletude de ambos.

Estudo de amplitude # 3 e Estudo de Amplitude

# 6 apresentam a pesquisa de movimentos opos-

tos entre si. O terceiro estudo registra a pregnân-

cia de linhas retas que marcam a superfície dos

dois papéis vegetais pelo amassado do gesto de

riscar de Gabriel Netto, enquanto o quarto estu-

do expõe a coordenação apolínea de movimentos

circulares em duas superfícies que se complemen-

tam na montagem dos quadros. retas e círculos

amplos exibem o sentido da direção corpórea do

movimento do desenhista-performer em vai e

vem. do mesmo modo, os dois estudos se unem

com as outras duas séries de Gabriel Netto: De-

senho Instalado e Coreográficos. A vontade de

estudar a amplitude do desenho provocou a cons-

trução de ambientes, instalações. E a dança dos

gestos alude a uma coreografia. Por isso, as séries

formam um circuito criativo de pesquisa artística.

Cada uma delas apenas radicaliza um aspecto da

investigação de netto.

Desenho Instalado é a série que estabelece relação

direta entre o desenho e o ambiente da sala de ex-

posição. Nessa série, o desenho acaba por trans-

formar-se no próprio conceito plástico, porque

ele não é mais entendido como apenas o produto

do grafite. Tal conceito de desenho inclui em si

mesmo as superfícies diversas nas quais os riscos

marcam sua presença, visto que elas propõem

formas a contemplar no espaço. desenha-se

com ripas de madeira, tecidos ondulantes e

com papéis que preenchem a extensão espacial.

Nota-se aí a ética contemporânea do trabalho de

Gabriel Netto, uma vez que não há a determina-

ção de gêneros (escultura, pintura e desenho). ri-

pas são desenhos porque elas cortam o espaço,

demarcam cantos e eixos. assim sendo, o próprio

espaço vazio da galeria passa a ser redesenhado

pela série, do mesmo modo como as ripas trazem

a impressão do desenho do artista.

Em Coreográficos, Gabriel Netto entra em con-

tato com uma das matrizes importantes de seu

trabalho: a dança. O jazz aleatório das tintas de

Jackson Pollock criando ambientes e não quadros,

como disse Allan Kaprow, inspira, certamente, a

mudez ampla do grafite coreográfico de Netto.

se desenhar e pintar era no passado a expressão

de uma relação estática do artista com o mundo,

hoje a experiência corporal que se opõe a isso é a

do bailarino. Há uma óptica/ética do movimento

do bailarino que se contrasta com a do pintor e

a do desenhista tradicional. O trabalho de Gabriel

Netto almeja tocar nessa problemática do dese-

nho sem o maniqueísmo com que certos setores

da arte contemporânea acabaram por produzir

um fascismo contra o desenho.

Gabriel Gimmler Netto, Estudo de Amplitude 2, 2004, grafite sobre papel vegetal, 600 x 200cm (dimensão total)

Foto Carolina Veiga

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65dossiê | João CíCero

e a luta contra o sentido de desenho tradicio-

nal solicita do artista uma amplitude do próprio

conceito do gesto de desenhar, unindo em sua

poética a performance e a instalação como pro-

cedimentos do próprio desenho. se o desenho e

o design (vistos por um ângulo tradicional) estão

acorrentados a uma lógica metafísica do projeto,

vale pensá-los em relação com o aqui agora vivo

da performance e o corte espacial da instalação

não para que se criem ideias a partir deles, e sim

para que eles se reflitam conceitualmente.

a pesquisa de netto se relaciona com o coletivo de

artistas de seu ateliê Subterrânea em Porto Alegre,

RS (Gabriel Netto, Guilherme Dable, James Zortéa,

Lilian Maus, Túlio Pinto). Tais artistas produziram

uma exposição chamada Instâncias do Desenho

com a curadoria de Felipe scovino. nela havia o

intuito de se pensar o desenho na contemporanei-

dade. E cada um dos membros do coletivo trouxe

uma resposta e uma tensão entre o desenho e ou-

tras sensibilidades plásticas. A relação da cor e da

mancha pictórica se vê com bastante intensidade

no trabalho de Lilian Maus. Já o desequilíbrio pro-

posital e criativo entre formas geométricas e man-

chas é apresentado pelos quadros de Guilherme

Dable. Nas obras de Zortéa nota-se uma espécie

de hiper-realismo decorativo de figuras em tensão

com o fundo planar do quadro. há no artista um

diálogo satírico com a cultura Kitsch. Já o traba-

lho de túlio pinto pensa o desenho pela disposi-

ção dos objetos no espaço. Objetos que sugerem

a dramaticidade da queda ou que intensificam

uma descontinuidade sensível da percepção. a di-

ferença poética do grupo solicita mais do que um

comentário ligeiro, e sim um olhar analítico sobre

as obras, que, infelizmente, não será possível cons-

truir aqui. É, pois, relevante o fato de que a pesqui-

sa de netto se dá em diálogo com esses artistas.

Diálogo, como se observa, repleto de dissensão.

Gabriel Gimmler Netto, Estudo de Amplitude 1, 2013, grafite sobre papel vegetal, 200 x 100cm Gabriel Gimmler Netto, Coreográfico 1, 2010, grafite sobre papel,150 x 100cmGabriel Gimmler Netto, Coreográfico 2, 2010, grafite sobre papel,100 x 40cmGabriel Gimmler Netto, Coreográfico 3, 2010, grafite sobre papel, 200 x 80cmColeção particularFotos Carolina Veiga

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66 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

esse contraste entre os artistas nos põe em con-

tato com um aspecto da delicada e, ao mesmo

tempo, áspera obra de Gabriel Netto. Essa delica-

deza se vê pela constância das linhas que, mesmo

quando grossas, como na série Estudo de Ampli-

tude, ou inconstantes e nervosas, como em Co-

reográficos, mostram uma polidez do gesto do

performer – sua vontade de se manter distante

do mundo espetacular dos insights do campo do

design. Mas é a aspereza do risco que produz a

crítica ao virtuosismo do desenho, almejando

uma ‘pré-história’ do desenho. Mesmo que essa

‘pré-história’ reflita a busca de um traço impossí-

vel e desaprendido, em que o desenhista nega seu

próprio desenho pela emergência do risco.

NOtA

1 Refiro-me à concepção que delimita o campo do design pela função de criador de imagens de produtos.

João Cícero é crítico e teórico de arte e teatro, dra-

maturgo e escritor. Formado em teoria do teatro

pela unirio, é mestre em artes cênicas pela unirio

e doutorando em história social da cultura pela

PUC-Rio. Desde 2007, leciona estética e histó-

ria da arte no bacharelado de Artes visuais do

senai-Cetiqt.

Gabriel Gimmler Netto, Desenho Instalado 2, grafite sobre papel vegetal e decalques em fita adesiva, dimensões variadasmontagem paço imperial, rio de Janeiro, 2010Foto Carolina Veiga

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67dossiê | osvaldo Carvalho

VoCê está Vendo o que eu estou Vendo?A homenagem à cor de Julio Leite

Osvaldo Carvalho

Quando aprendemos que “a cor não tem existência material, é apenas sensação produzida por certas

organizações nervosas sob a ação da luz – mais precisamente, é a sensação provocada pela ação da luz

sobre o órgão da visão”,1 podemos inferir que as coisas, tal e qual as vemos, dependem, antes, de nossa

vivência. Logo, nenhuma pessoa vê o mundo de modo igual ao de outra. E, por conseguinte, talvez nin-

guém reconheça o mundo como ele realmente é, e só o perceba do seu ponto de vista ou quando muito

somado às experiências alheias. Porém, longe de ser demérito, esse fato poderia servir de suporte para o

entendimento das particularidades e das diversidades humanas, uma vez que objetivamente precisamos

que alguém dê suporte àquilo que nosso cérebro está refinando conceitualmente. Por isso, não raro,

perguntamos ao outro: você está vendo o que eu estou vendo?

•Conheci o trabalho de Julio Leite numa exposição coletiva em que participávamos pela Funarte de Brasília

no programa de exposições Atos visuais, em 2006. De imediato veio à mente aquela brincadeira de testar o

cérebro pedindo a alguém que fale a cor que vê na palavra escrita, por exemplo, escreve-se azul em verme-

lho, amarelo em roxo, laranja em verde, etc. A tensão que esse teste cria decorre do conflito que há entre

os hemisférios do cérebro, em que o direito puxa pela cor e o esquerdo busca a palavra, cada qual tentando

fazer prevalecer sua razão. A série que ele apresentava, intitulada Croma, era um desenvolvimento bem

encaminhado desde 2000 e que tinha surgido de uma experimentação pictórica utilizando letras e palavras

no intuito de compor um sistema de imagens em suportes variados, da gravura ao vídeo passando pela

fotografia, instalação, pintura, etc. No caso em questão eram duas instalações de parede compostas cada

uma de um painel em grande formato. Em um painel lia-se HOMENAGEM AO AZUL e, no outro, HOMENA-

GEM AO vERMELHO. O primeiro era uma pintura bicolor com fundo verde e letras garrafais em vermelho;

o segundo com fundo amarelo e letras garrafais em azul. o vigor de sua execução nos cartazes, feitos à

mão livre, era patente; nada ali indicava haver uma prévia organização material ou espacial, senão pela au-

sência objetiva do homenageado. Em sua arquitetura metalinguística, Julio Leite propunha ao observador

uma plena convicção de admiração a uma determinada cor, mas, subvertendo os alicerces desse cerimonial

ao deixar de lado sua presença, tornava-a uma memória que deveria ser resgatada individualmente pelos

presentes. Nesse momento tínhamos a antecipação de uma pequena tragédia coletiva, posto que se cada

indivíduo fizesse aflorar seu matiz de azul ou vermelho (num espectro exponencial) a obra ganharia contor-

nos que extrapolariam sua mera existência física.

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68 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

Julio Leite, Sem título, série CROMA, 2006, Funarte, brasília Foto Marina Camargo

•paradigmático das intenções de Magritte o qua-

dro A traição das imagens (Ceci n´est pas une

pipe) ilustra bem o colapso das correspondências

habituais entre o objeto, sua imagem e sua defini-

ção verbal, lançando as bases das pesquisas futu-

ras no âmbito da arte conceitual em que Kosuth,

em um processo metalinguístico na série Arte

Como ideia, encerra a obra no seu próprio círculo:

não diz mais do que o que já está implícito no

que ela é, ou seja, uma demonstração da cate-

goria lógica da arte. “A obra não tem qualquer

pretensão de narrar o mundo, mas – de acordo com as premissas filosóficas de que provém – con-firma sua presença no próprio gesto que a cria”2. encontramo-nos, por conseguinte, perante um ato desprovido de ambições subjetivas, liberto de qualquer presumível ligação com a realidade ex-terior, e cujos enunciados acabam, precisamente

por isso, sendo totalmente verificáveis. A obra de

Kosuth coloca-se assim na esteira das pesquisas

semiológicas de Magritte, centradas no problema

do confronto entre sistemas diferentes de repre-

sentação e, portanto, de “nomeação” da realidade.

“Kosuth radicaliza o método de Magritte, torna-o

mais frio até converter em mera análise laboratorial

da linguagem e do seu funcionamento”.3

O ponto principal, entretanto, vem a ser a liberda-

de que se conquista a partir desse momento em

que a escrita ganha novo alento remontando, por

exemplo, sua importância à escrita egípcia como

símbolo de um padrão estético cujo valor se liga

ao transcendental.

•Em sua poética visual Julio Leite não se afasta das

prerrogativas que o antecedem historicamente

nem tampouco ignora a imprescindível necessi-

dade de se arriscar conjugando de maneira aus-

tera, mas não simplista, permanência e experi-

mentação. Croma é um significativo desafio em

que ele, com desenvoltura, transita entre polos

longínquos sob o pragmatismo que muitas vezes

escapa ao artista contemporâneo. Passando por

todas as teorias e sistemas de cor desde as for-

muladas por Leonardo da vinci, Isaac Newton,

Goethe até as mais recentes como as de Wilhelm

Ostwald, Albert Munsell e Alvy Ray Smith, para

citar alguns, fica evidente a compreensão que

possui de que cor não é um fenômeno físico,

mas fisiológico, consequentemente, de caráter

subjetivo e pessoal. Ao render homenagem ao

vermelho, por exemplo, sem que fisicamente o

incorpore à obra, propõe que sejamos cúmplices

daquele entendimento e sejamos capazes de con-

viver com as diferentes acepções de cor. Mais do

que radicalizar, seu feito amplia possibilidades,

traz a oportunidade de refletir sobre o que consi-

deramos cor no lugar daquilo que passivamente

aceitamos ser cor. sua homenagem estende-se

como um convite à tolerância.

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69dossiê | osvaldo Carvalho

Dissecando as potências inerentes das cores até

os veios do olhar e indispondo suas regras bási-

cas por intermédio de uma práxis antipedagógica,

mais próxima da filosofia marxista que do existen-

cialismo sartriano, o artista intenta transformar o

modo como vemos o mundo, como nos relacio-

namos com o incômodo, sem nenhum didatismo

à vista, apenas o referencial escrito que funciona

consoante um pavio relativo4 a instar o observador

para que reflita, especialmente sobre suas próprias

ilusões. ao ler As palavras e as coisas, de Michel

Foucault, de imediato me chamou a atenção esta

frase na capa do livro: “Livre da relação, a repre-

sentação pode se dar como pura apresentação.”5

Distanciada de seu contexto ela é impactante e

expande nossos horizontes e poderia, com efeito,

servir ao arcabouço mental para as pesquisas de-

senvolvidas por todo artista tão bem apropriada

que é em si. Todavia, logo no início da leitura do

livro a frase inspiradora se revela dessemelhante,

alterada por que razões? “E livre, enfim, dessa re-

lação que a acorrentava, a representação pode se

dar como pura representação.”6 Esse é o trecho

final do estudo que o filósofo faz sobre a pintura

Las Meninas, de Velásquez, em seu capítulo i. a

disparidade, a princípio, não me pareceu passível

de qualquer ponderação uma vez que deslocava

abruptamente uma linha de raciocínio minuciosa

e criteriosamente exposta e estaria sugerindo um

amplo enfoque de aplicação relativamente frágil

diante da magnitude empenhada pelo autor. por

outro lado, ipso facto, como ignorar as tantas fra-

ses soltas que encontramos todos os dias espa-

lhadas pelas ruas derivadas ou oriundas de fontes

improváveis – bíblias, internet, para-choque de

caminhão, banheiro público – e que simplesmen-

te acabam estampadas, em destaque, nos mais

diversos suportes? Eis a cultura massificada que

Julio Leite não deixou escapar em sua fatura cien-

te dos imperativos publicitários e dos mecanismos

metalinguísticos culminando com a tentativa de

fazer o observador ter um determinado compor-

tamento tanto quanto eu fui levado a simpatizar

com aquele livro pela frase (de efeito) que vinha

estampada em sua capa junto ao retrato do au-

tor. esse consenso informal gerado pelas mídias

está nas fundações da pesquisa do artista sendo

análogo ao mote de questionamentos de nossas

certezas, cuja dinâmica intrínseca é essencialmen-

te engajada em transpor as barreiras do que foi

convencionado em demanda do que é inaudito,

de sorte que podemos auferir dos trabalhos de Ju-

lio Leite aquilo que Merleau-Ponty assertivamente

captou em Baudelaire: “a obra consumada não é,

portanto, aquela que existe em si como uma coi-

sa, mas aquela que atinge seu espectador, convi-

da-o a recomeçar o gesto que a criou”.7 o convite

que nos faz é incontornável, e sentimos ainda por

certo período ecoar em nossas cabeças o chama-

mento pela cor que se estende para além de nos-

sa passagem pela obra, e ficamos a completá-la

mentalmente em devaneio, o que exorta a outro

Julio Leite, Sem título, série CROMA, 2012, intervenção nas ruas de natal

Foto Julio Leite

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70 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

tema caro nos dias atuais ao artista contemporâ-

neo − o vazio de sua produção, tema esmiuçado

em diferentes áreas como na literatura, por Alber-

to Moravia, na filosofia por Gilles Lipovetsky, e na

crítica de arte, por Avelina Lésper; e que a fatura

do artista empenha-se por refinar seus meios na

mesma ordem que persiste na fundação de um

paradigma quase que obsessivo – o incessante

propósito de homenagear a cor.

São esses canais adjacentes abertos ao escrutínio

público que definirão um dia em que medida es-

teve o artista diante da banalização ou da singula-

ridade artística. Julio Leite está ciente da comple-

xa relação que há no legado com que trabalha e

manipula suas próprias inquietações; não lhe foge

a circunstância da estrutura burocrática em que

está imersa a arte, contudo também está cônscio

de que é preciso tempo, o sagrado remédio de

todos nós, para que se possa afirmar que isto ou

aquilo é arte.

NOtAs

1 pedrosa, israel. Da cor à cor inexistente. rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial ltda, 2003: 17.

2 Segundo Kosuth toda obra, na sua qualidade ino-vadora individual, não é mais do que uma (nova) manifestação do conceito de arte. por conseguin-te, a obra de arte é uma tautologia posto que uma apresentação das intenções do artista: ele afirma que essa obra particular é arte, o que implica, sendo as-sim, que é uma definição da arte.

3 sproccati, sandro (org.). Guia de história da arte. Lisboa, 1997: 244.

4 se pensarmos a linguagem de acordo com os cri-térios de Wittgenstein, sendo sua função descrever a realidade porque em rigor nada pode ser dado fora da linguagem, também teremos que considerar seu outro lado, que é justamente o limite da linguagem quando nada mais se pode falar.

5 Foucault, Michel. As palavras e as coisas. são pau-lo: Martins Fontes, 2007: capa.

6 Foucault, op. cit.: 21.

7 Merleau-ponty, Maurice. O olho e o espírito. são Paulo: Cosac & Naify, 2004: 81

Osvaldo Carvalho é artista visual e mestre em

poéticas visuais pela ECA-USP, atua como curador

independente e desde 2011 curador da Galeria

de Arte Meninos de Luz nas comunidades do

pavão-pavãozinho e Cantagalo, no rio de Janeiro.

Julio Leite, Sem título, série CROMA, 2008, Sesi-SP, Mogi das Cruzes Foto autor desconhecido

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dossiê | Heldilene Guerreiro reale 71

GUY vELOSO: um fotógrafo peregrino entre roteiros de fé

Heldilene Guerreiro Reale

o envolvimento de Guy Veloso1 com o universo das artes visuais não se deu em um único momento;

desde sua infância a proximidade com referências artísticas por meio da própria família estimulou esse

encontro. as vivências experimentadas naquele período foram norteando esse caminho. a memória de

ter visitado uma exposição do fotógrafo Luiz Braga, na Galeria Ângelus, na época localizada no Teatro

da Paz em Belém do Pará, faz parte do acervo de suas lembranças.

Aos 18 anos, quando iniciava o curso de direito, sentiu que faltava algo que viesse de encontro ao for-

malismo acadêmico do curso que havia escolhido. Foi então que começou o percurso de enlace com a

fotografia, iniciando essa busca em um curso com o paulistano Fernando Del Pretti. A fotografia come-

ça assim a se manifestar em sua vida não só como espelhamento da obra de fotógrafos como Flávya

Mutran, Paulo Amorim, Paula Sampaio, Paulo Santos, Miguel Chikaoka, Luiz Braga, entre outros, mas

através do contato pessoal e trocas de experiências com esses fotógrafos.

A partir desse momento, passa a compreender que a fotografia era um meio que lhe possibilitava expres-

sar-se através da visualidade, já que, desde cedo, a reflexão e o contato com as artes visuais o instigavam.

Nesse contexto, Silva dialoga com as artes visuais caracterizando-a como um dispositivo de reflexões em

que “moldes, identitários sempre foram e continuam sendo produzidos. se o homem atua em sua cons-

tante interpretação do mundo, esse processo de leitura é guiado por uma gramática das formas que é,

em grande parte, gerada pelas artes”.2

para o autor, a arte gera um processo de constante interpretação do mundo, revelando identidades de

sujeitos, culturas e lugares. A partir do momento em que Guy veloso percebeu que podia trazer sua

identificação com a religiosidade para o universo fotográfico dá início a seu processo de peregrinações.

O caminho das memórias de suas peregrinações inicia-se em 1993, aos 23 anos quando conclui o curso

de direito. Guy veloso parte rumo à Espanha com o desejo de caminhar até Santiago de Compostela. Em

seu percurso peregrino a câmera fotográfica começa a ser sua companheira inseparável, que estabiliza o

olhar do fotógrafo documentando a imagem que o vê e que por ele é vista nos povoados que percorre.

No Brasil começa a desenvolver fotografias no cenário da arte contemporânea paraense a partir de uma

rede de interesses com o tema da religiosidade e da cultura popular. temas que estimulam o fotógrafo

ao armazenando de uma rede de informações e de informantes no país.

De acordo com essas informações o artista traça um roteiro anual, que contenha as especificações de

procissões, festas e eventos que fazem parte da cultura religiosa e popular do brasil, realizando longa

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72 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

Guy Veloso, Promesseiro. trasladação, procissão que antecede o Círio de Nazaré, Belém, PA, 2010; slide

pesquisa na internet, em livros, com historiado-

res e folcloristas. segundo Guy, por questões de

tempo e de financiamento, não consegue seguir

totalmente esse roteiro. ainda assim, tem feito

ao longo de sua trajetória roteiros contínuos nas

principais romarias, como o Círio de Nazaré, em

Belém, PA (documentado desde 1991), a Romaria

de Finados, em Juazeiro do norte, Ce (documen-

tada desde 1998), e o Projeto Penitentes, reali-

zado durante o período quaresmal, ininterrupta-

mente desde 2002 nas cinco regiões do país (até

agora, 141 grupos em dez estados).

Além desses percursos, há oito anos o historiador

e fotógrafo Michel pinho levou Guy Veloso a co-

nhecer os rituais de matriz africana. desde 2010,

Guy vem documentando as cerimônias com mais

frequência. Em 2012, recebeu convite do XXX

salão arte pará, curado por paulo herkenhoff e

armando queiroz, para expor parte desse mate-

rial na igreja Jesuíta de santo alexandre,3 exibin-

do fotos de rituais de candomblé e umbanda em

um espaço de herança católica, algo nunca antes

ocorrido, tornando evidente no campo material

característica sempre presente no trabalho de Guy

veloso: negociação e diálogo inter-religioso.

em especial no projeto penitentes e os cultos

de matriz afrodescendente, Guy Veloso realiza

cuidadosa negociação prévia, pois só consegue

fotografar sentindo-se aceito pela comunidade.

Em seus trabalhos autorais utiliza apenas lentes

35mm, pois pretende chegar bem perto das pes-

soas envolvidas, conhecendo de maneira íntima

o fato por trás da lente. para que isso ocorra, cria

um canal de negociação com os sujeitos envolvi-

dos, estabelecendo assim nesse percurso a estéti-

ca relacional. presente na esfera das relações hu-

manas, a estética relacional, pode ser entendida a

partir do processo de criação artística:

a forma só assume sua consistência (e adquire

uma existência real) quando coloca em jogo

interações humanas; a forma de uma obra de

arte nasce de uma negociação com o inteligível

que nos coube. Através dela o artista inicia um

diálogo. A essência da prática artística residiria,

assim, na invenção de relações entre sujeitos.

Cada obra de arte particular seria a proposta

de habitar um mundo em comum, enquanto

o trabalho de cada artista comporia um feixe

de relações com o mundo, que geraria outras

relações, e assim por diante, até o infinito.4

Muitas vezes durante as pesquisas no sertão nor-

destino, o fotógrafo viajava pela manhã ao local

da cerimônia noturna dos penitentes, a enco-

mendação das almas, restando-lhe, durante a

tarde, algum tempo ocioso, o que gera a ideia

de comprar uma filmadora e começar a gravar de-

poimentos dos líderes dessas confrarias. isso es-

treitou ainda mais os vínculos com essas pessoas

e com o assunto, totalizando mais de 100 horas

de arquivos. dessa forma, o artista lança mão da

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dossiê | Heldilene Guerreiro reale 73

história oral para a obtenção do acervo da memó-

ria desses sujeitos que fazem parte desses roteiros

peregrinados pelo fotógrafo.

Nos registros filmados por Guy, a história é con-

tada num contexto de vivências individuais e co-

letivas, que nos possibilitam o acesso a falas de

sujeitos que vivenciam diretamente o contexto

religioso e popular registrado. a questão da me-

mória é apresentada por meio da história oral do

sujeito que faz parte da cena; assim,

A essencialidade do indivíduo é salientada pelo

fato da história oral dizer respeito a versões do

passado, ou seja, a memória. Ainda que esta

seja sempre moldada de diversas formas pelo

meio social, em última análise o ato e a arte de

lembrar jamais deixam de ser profundamente

pessoais. A memória pode existir em

elaborações socialmente estruturadas,

mas apenas os seres humanos são capazes

de guardar lembranças. A memória é um

processo individual, que ocorre em um meio

social dinâmico, valendo-se de instrumentos

socialmente criados e compartilhados. Em vista

disso as recordações podem ser semelhantes,

contraditórias ou sobrepostas.5

O universo dos registros de Guy gera possibilida-

des de estudos de memórias sociais em seu cam-

po artístico, e “o estudo da memória social é um

dos meios fundamentais de abordar os problemas

do tempo e da história, relativamente ao qual a

memória está ora em retraimento, ora em trans-

bordamento”.6 assim a memória “cresce na his-

tória, que por sua vez a alimenta, procura salvar

o passado, para servir ao presente e ao futuro”.7

as imagens capturadas nessa atmosfera religiosa

e popular, segundo o artista, repercutem a memó-

ria de um acervo de registros que levará “à pos-

teridade informações sobre algo que tende a se

modificar com os anos. Falo em especial de várias

tradições religiosas que estão por vias de terminar.

quero resguardar esta memória”.8

segundo sarlo,

A relação entre memória e esquecimento

pode-se objetivar num discurso, mas, para

que a relação exista, deve também existir o

documento capaz de dar à memória pelo

menos a mesma força do esquecimento:

o documento que se imponha como pilar

da memória e que a memória tende,

inevitavelmente a rejeitar.9

Além dos arquivos em fotos e filmagens, o fotó-

grafo também armazena arquivos de documen-

tos relacionados a seu tema penitentes, que inclui

registros fonográficos, blocos de anotações, uma

biblioteca específica e uma coleção formada por

aproximadamente 250 objetos originais entre

mantos, matracas,10 disciplinas,11 amuletos, car-

tas, colares, ex-votos, imagens de santos etc., que

pertenceram a irmandades de penitentes de diver-

sas regiões do país − a maioria presenteada pelos

decuriões, nome dado aos chefes das ordens na

Região Nordeste, geralmente em retribuição às

fotografias que Guy veloso sempre faz questão

de enviar aos retratados. Todo o material é datado

e contextualizado. Há mesmo objetos de grupos

já extintos.

o processo de criação segundo salles parte de um

percurso contínuo em permanente mobilidade e

transformação, que reflete o olhar do artista para

todos os elementos que possam gerar seu inte-

resse em criar sua imagem. assim, ao olhar para

a fotografia de Guy veloso, além das conexões

religiosas que as expressões e lugares capturados

manifestam, o indivíduo contempla, também, “o

resultado de intermináveis transações com a sub-

jetividade dos outros”.12

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74 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

Pode-se identificar nas fotografias de Guy veloso

a imagem documental produtora de um inventá-

rio que destaca a sensibilidade, o gesto, a suavida-

de dos tecidos, a intensidade das cores, a vibração

da luz, a inquietação do movimento, transforma

as manifestações religiosas e populares, em bra-

sis que entoam emoções a cada passo do ano,

no enquadramento documentado na beleza e no

respeito do encontro do peregrino e suas pere-

grinações, na busca das marcas que só a fé pode

deixar, independente do credo e da religião em

que ela se insere; são 35mm de uma lente que se

aproxima do olhar e do ato, ao encontro da per-

manência da memória de gestos da fé.

REFERÊNCIAs

DIEHL, Astor Antônio. Memória e Identidade:

perspectivas para a história. In: Cultura historio-

gráfica: memória, identidade e representação.

Bauru, SP: Edusc, 2002, p. 111-136.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: uma

nova introdução. Fundamentos dos estudos ge-

néticos sobre o processo de criação artística. 2.

ed. São Paulo: Educ, 2000.

NOtAs

1 Em seu currículo destaca-se a participação na XXIX Bienal Internacional de São Paulo/2010. Curadoria da Fotografia Contemporânea Brasileira na 29a bienal europalia Arts Festival, Bruxelas, Bélgica, 2011/12. Compõe os acervos Essex Collection of Art from La-tin America, Colchester, Inglaterra; Coleção Nacional de Fotografia, Centro Português de Fotografia, Porto, Portugal; Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ; Mu-seu da Fotografia de Curitiba, PR; banco de dados itaú Cultural – Projeto Rumos; Museu de Arte de Belém; Museu de Arte do Rio; Coleção Joaquim Paiva/Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; MaM-sp e Pirelli/Masp. em 2005 fez parte do livro Fotografia no Brasil, um olhar das origens ao contemporâneo, de angela Magalhães e Nadja Peregrino. Em 2007 expôs indivi-dualmente em solms, alemanha. em 2011 participou

Guy Veloso, Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, da série Penitentes; Confraria de Encomendação das Almas, grupo de dona Jesulene Ribeiro, Juazeiro, BA, 2013; foto digital

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da mostra Geração 00 – a nova fotografia brasileira, com curadoria de Eder Chiodetto. Em 2012 é cata-logado no livro dos 150 anos da fotografia no país, Um olhar sobre o Brasil: a fotografia na construção da imagem da nação, de Boris Kossoy e Lilia Schwarcz. Em 2012 a convite do XXX Salão Arte Pará expôs indi-vidualmente na igreja de santo alexandre. disponível em: http://www.fotografiadocumental.com.br/

2 silva, Márcio seligmann. Estética e política, memó-ria e esquecimento: novos desafios na era do mal de arquivo. 9 ed. São Paulo: Cultura Crítica 2010: 8.

3 Localizada no Museu de Artes Sacras em Belém do pará.

4 bourriaud, nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009: 30-31.

5 portelli, alessandro. tentando aprender um pou-quinho. Algumas reflexões sobre ética e história oral. Projeto História, 15. São Paulo: Educ, 1997: 16.

6 Le Goff, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003: 422.

7 Le Goff, op. cit.: 471.

8 Guy veloso em entrevista virtual realizada em 7 jan. 2014.

9 sarlo, beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp, 2005: 41.

10 instrumento percussivo de madeira e grilhões de ferro.

11 Chicotes de cordão de couro e extremidades de ferro usadas para cerimônias de autoflagelação.

12 Bourriaud, op. cit.: 30

Heldilene Guerreiro Reale é pesquisadora e professora do Curso de artes Visuais e tecnologia da imagem da universidade da amazônia. Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura (Unama), graduada no Curso de artes Visuais e tecnologia da imagem (unama) e no Curso de turismo da

universidade Federal do pará.

Guy Veloso, Ritual de umbanda, Belém, PA, 2013; foto digital

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76 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

DEBORAH ENGEL – alegorias, maneiras de ver, por uma teoria da imagem

Fabiana de Moraes

Ver não é apenas simples gesto orgânico, mas complexa operação, em

que está em jogo a capacidade de cada um de se separar, de se pensar

separado daquilo que vê, de saber que é visto por outro olhar

Marie-José Mondzain

Os trabalhos resultantes da investigação de Deborah Engel remetem justamente a aspectos da re-

flexão de Marie-José Mondzain acerca da imagem e de seu estatuto na atualidade. Para a filósofa

francesa, a imagem é lugar de encontro, “em que o olhar deve encontrar hospitalidade para o

pensamento e não repouso para o olhar”.1 de fato, diante das imagens propostas por engel, antes

do exercício do pensamento, somos tomados, rapidamente, pelo estado de entre dois – aquele mo-

mento em que o sentido ainda não acontece e em que a sensação se instala e interroga, provoca

e conjuga estranhamento, incômodo e desejo –, estado bastante característico na recepção de tra-

balhos contemporâneos, que reviram, vasculham, desconstroem e transformam referências visuais,

estéticas, culturais, sociais.

o percurso da artista, que inclui formação em história da arte e em psicologia, traça-se em meio à

poética: nesta, são recorrentes operações que interrogam a formação do olhar (pela história), assim

como o olhar como objeto e função intimamente relacionada ao desejo (como indica a psicanálise).

A alegoria, elemento que serve de princípio estético para muitas propostas artísticas atuais, também

estrutura a “escrita” de Engel. Andre Rouillé2 destaca a função da alegoria, mecanismo que consiste em

duplicar um texto (ou uma imagem) com outras, em ler essas imagens por meio de outras. uma ale-

goria adiciona e substitui um significado por outro. Essa definição do conceito de alegoria é uma das

peças-chave da poética de Engel, que adiciona e substitui imagens em um jogo infinito de multiplicação

de sentidos e modos de ver.

Aqui, a fotografia é objeto, é material e, de certo modo, libera-se do referente. Ao distanciar-se da

função de “documento”, se aproxima da ambiguidade, própria ao recurso alegórico. O referente,

entretanto, não desaparece no trabalho de Engel: ele serve de contexto, ou mesmo de fundo, para

operações particulares.

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77dossiê | Fabiana de Moraes

Maneiras de ver: “eu me vejo te ver” como constatação da pós-modernidade

Deborah Engel indaga e propõe maneiras de ver – a arte, a fotografia, o mundo, a subjetividade contemporânea. Aqui, o suporte fotográfico serve de base, mas também é matéria plástica: quando retirado de uma reportagem de revista (Paisagens Possíveis, 2010); ao servir de complemento de um título (Um belo dia, Quando de repente, Felizes para Sempre, 2012); quando recortado e sobreposto, de modo a construir superfícies/relevos, perspectivas vertiginosas por repetição (Loco in Loco, 2013); sob a forma de adesivo distribuído a pessoas que o inserem em contextos, criando uma segunda fotografia (Olho no olho, livro de artista, 2010). em relação a este último trabalho, a artista informava a cada um sobre o procedimento a ser seguido por aquele que recebia o adesivo-olho: “Cole o adesivo em local onde você vá com frequência. assim, meu olho passa a olhar seus olhos”.

É interessante o paralelo que se pode traçar entre

a preocupação de engel, durante o projeto de

Olho no olho e a célebre frase “eu me vejo me

ver”, do poema La Jeune Parque, de Paul valéry.3

a tomada de consciência (essencialmente moder-

nista) de valéry é aqui revista e reformulada (in-

voluntariamente) por engel, em uma tomada de

consciência pós-moderna: “Seu olhar sobre meu

olhar poderá ser visto por novos olhares”. Ou seja:

eu me vejo te ver, eu te vejo me fixar, me inse-

rir em uma paisagem pertencente a seu mundo,

a sua história. eu me vejo circular, seguindo um

fluxo afetivo e geográfico de pessoas que estão

pelo mundo. No final do percurso do olho-adesi-

vo (que tudo vê e por todos é visto), um mesmo

suporte, um livro de artista, acolhe os pontos do

deslocamento dessa mesma imagem – pontos de

desdobramento dessa mesma imagem, que afinal

não mais é mesma, mas alteridade.

Deborah Engel, Loco in loco, 2013, jato de tinta sobre papel algodão, 73 x 110cm

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78 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

não estaria a artista se referindo, aqui, às condições

de existência de toda imagem; considerando as

relações da imagem com os registros do dizível

e do visível, com os conceitos de semelhança e

alteridade? Afinal, como se opera a revolução

do olhar? e como essa mudança paradigmática

faz-se sentir na produção e, sobretudo, na

recepção artísticas? ainda nas palavras de Marie-

José Mondzain, “aquele que olha e se constrói,

constrói sua palavra a partir de seu olhar”; “o

sujeito que vê é um sujeito falante” – a imagem

é construída a partir de uma exigência do olhar e

dessa relação surge a palavra.4

engel aponta para a extrema fragilidade dessa

operação estruturante que é a imagem. Tão

logo surge, desaparece. Tão logo é composta,

se desdobra em sentidos, em discursos, cessa

de ser imagem, cala-se enquanto imagem. todo

movimento de construção da imagem e, por

conseguinte, da palavra, encontra-se no regis-

tro do passageiro, do transitório – um regime

aberto e em constante renovação, atualização.

Essa dinâmica espelha muito bem um mundo

de fluxos, de aceleração, de velocidade, da cir-

culação de informação.

Deborah Engel, Paisagens Possíveis – hazda, 2010, jato de tinta de pigmento mineral sobre papel fotográfico, 45 x 60cm

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79dossiê | Fabiana de Moraes

Janela na janela

No final de 2013, a artista passou os três me-

ses do outono francês em residência artística na

Cité Internationale de Arts, em Paris. No café

Saint Régis, na Île Saint Louis – lugar eleito por

ela (“ambiente parisiense”) para passar as ma-

nhãs, entre jornais e textos de filosofia –, En-

gel parece ter encontrado a atmosfera propícia

para uma nova experiência com e a partir da

fotografia. Com efeito, as paisagens de outono

tornaram-se contexto para a série Sobre Pai-

sagens, que reúne muitos dos elementos que

fazem da investigação dessa artista uma verda-

deira teoria da imagem.

Sobre a floresta e Sobre cabana (ambas da série

Sobre Paisagens), Engel posiciona uma moldura

no interior da “janela”, do enquadramento. essa

interrupção (ou irrupção) – a janela no interior da

janela – interfere igualmente na leitura da ima-

gem, operando um segundo recorte no interior

daquilo que já se supunha recorte (do real). a

artista coloca em questão a pertinência do en-

quadramento e o próprio ato fotográfico. Além

disso, a moldura sugere/evoca o espaço pictórico

– aquele lugar sacralizado durante séculos de his-

tória e de uma relação de servidão das artes. tudo

é pintura, uma vez que tudo é representação?

o que existe dentro do cadre5 é pintura; o que da

moldura transborda é excesso. O que foge à deli-

mitação é legítimo? Qual é o lugar do excesso na

arte? Aqui, o que sobra é tão importante quan-

to aquilo que a moldura delimita. O que sobra é

aquela primeira imagem, uma primeira pele, uma

base. E a sensação de que a imagem “sobra” só

persiste porque nossos olhos (ainda hoje!) pare-

cem estar condenados e condicionados a enxer-

gar pintura (ou, simplesmente, sagrado, legítimo)

no interior de toda e qualquer moldura.

a palavra sobre, presente no título da série, pode

referir-se a um referente: “sobre a cabana”. Mas

também indicar uma operação de sobreposição.

A moldura, por exemplo, destaca a cabana (ou a

floresta), duplicando-a, retirando-a de seu fundo

e da relação com a imagem referente. existiria aí,

no interior da imagem, uma segunda imagem,

possível graças a uma dupla operação de enqua-

dramento – pela câmera e pelo posicionamento

da moldura. A cabana, quando apreendida pela

moldura, é o outro da cabana.

Como em Olho no olho e em Paisagens possíveis,

o corpo da artista entra em cena, fragmentado.

em Sobre Paisagens, o corpo que ocupa parte da

imagem – antebraço ou mão que segura a mol-

dura –, nos coloca diante de um impasse. quais os

limites da imagem? onde posicionar o recorte que

determina a composição, que destaca, que dupli-

ca? ao mesmo tempo, a mão que segura a moldu-

ra afirma que dentro (da foto) nada é permanente,

que o recorte é aleatório, momentâneo, indicando

um percurso possível do olhar. Recorte é uma se-

gunda janela – uma janela dentro da outra.

o conjunto de imagens propostas por engel

compõe escritas – resultantes de um movimento

incessante da artista, no trabalho de apreensão,

captura e composição, mas também de descons-

trução, deformação, subversão das visibilidades.

Trata-se aqui de uma pesquisa sobre a imagem,

mas também de um movimento que antecipa e

desconstrói aquilo que poderia ter sido. o “que

poderia ter sido”, opõe-se ao ça a été descrito por

roland barthes, em A câmera clara.6 se a foto-

grafia, algum dia, foi certificado da presença do

referente (ça a été), hoje ela pode dele se liberar:

de fato, a imagem da cabana, aquela primeira

imagem, que se origina no enquadramento da

câmera, “poderia ter sido” uma primeira e única

solução, uma única imagem. Mas, ao sofrer a in-

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80 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

tervenção da artista, que lhe impõe a moldura,

aquela primeira solução já não é. Mas se insinua,

permanece possível. a artista desconstrói a possi-

bilidade de uma única solução e nos deixa diante

dos dois caminhos possíveis. o referente ainda

está ali e a fotografia de paisagem poderia ter,

de fato, permanecido como única solução. entre-

tanto, o referente, hoje, é mera “imagem”. E, en-

quanto imagem, pode ser fundo, pode duplicar-se.

Enquanto imagem, aquele referente (cabana na

paisagem ou caminho na floresta) pode ser desta-

cado pelo gesto da artista.

Deborah Engel joga com os possíveis da imagem

e com os possíveis de uma estética da fotografia.

provocadora e instigante, a artista coloca à prova

nossa maneira de observar, nosso posicionamento

diante do fotográfico, enquanto campo de explo-

ração para a arte contemporânea.

NOtAs

1 Conferência de Marie-José Mondzain no Rencon-tres d’Arles, em julho de 2013, na França. Disponível

em: http://www.dailymotion.com/video/x131nm3_conference-de-marie-jose-mondzain-les-rencontres d-arles-2013_creation.

2 Rouille, André. La photographie – entre document et art contemporain. Paris: Gallimard, 2005.

3 O poema foi escrito por Paul valéry em 1917.

4 Conferência citada, jul. 2013.

5 Moldura, em francês.

6 barthes, roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 2000.

Fabiana de Moraes é curadora independente

e professora de arte brasileira e mercado de

arte na École des métiers de la culture (Groupe

EAC), em Paris; doutora em comunicação e cul-

tura (ECO/UFRJ), mestre em estética e ciências

da arte (Université Paris I Panthéon-Sorbonne);

curadora associada ao projeto ArtMaZone – Pla-

taforma para as artes visuais (www.artmazone.

org). vive e trabalha em Paris e no Rio.

Deborah Engel, Sobre a Floresta, 2013, jato de tinta sobre papel algodão, 110 x 74cm

Deborah Engel, Sobre Cabana (série Sobre Paisagens), 2013, jato de tinta sobre papel algodão, 73 x 110cm

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81dossiê | Renan aRaUJo

ADRIANO COSTA: Farrapos

Renan Araujo

“A escultura deve nascer do chão, como uma planta.”

Franz Weissmann

Planos tortos, cores desbotadas, materiais descartados e objetos provenientes de contextos geográficos

distintos são organizados de maneira a provocar um embate entre elementos formais carregados de sig-

nificados e situações marginais. Não deve chegar a dez anos de produção o recente corpo de trabalho

de Adriano Costa (1975-), artista brasileiro baseado na cidade de São Paulo, cujos interesses perpassam a

pintura, a escultura e outras técnicas que se fundem em colagens e apropriações.

O artista costuma dizer que seus trabalhos são pré-esculturas; eles existem em momento anterior ao

instante de tornar-se alguma coisa. um dado importante para entender o raciocínio e organização dos

projetos é esse momento de transição do trabalho − há o instante em que os objetos passam de utilitá-

rios a estetizados, podendo esse instante ter a possibilidade de retorno e tornar-se novamente um objeto

com funções específicas dentro de uma casa ou em algum contexto outro. Ora é um objeto do mundo

e ora torna-se parte de uma obra.

Depois que a obra é exibida, é possível que partes desse mesmo trabalho se desloquem para integrar

outro projeto em uma segunda montagem. Partes pululam de um lado a outro, há uma fluidez que não

deixa estático o objeto em sua condição de trabalho finalizado, havendo a possibilidade de tornar-se

outra coisa no instante da convocação do artista. Na série Tapetes, os objetos são rearranjados por jun-

ções ou apenas exibidos sem interferências externas, subindo pelas paredes e pregados com fita-crepe,

quase recebem a classificação de tridimensionais, por pouco não criam um corpo a ocupar o espaço

cúbico. Espacialmente distribuídos, seguem harmonia orquestrada pelo artista, e o que era para ser uma

estrutura dissonante logo se põe em elegância, a seu modo, com seus elementos forma-cor espalhados

pelo ambiente. Fica evidente o caráter doméstico dos materiais elegidos: ganhados, roubados, achados,

comprados. um caminho de mesa de crochê, uma toalha de rosto do Corinthians e outras criando a

forma de uma cobra, flanelas sobrepostas, cobertores dobrados, carpetes em tom terroso, tapetes de

lojas de R$ 1,99, panos de chão e pedaços de outros tecidos e camisetas são alguns exemplos dos ma-

teriais. Alguns dos tapetes apropriados são trançados com restos de tecidos e posteriormente recebem

uma serigrafia com a figura de animais; tais tapetes são facilmente encontrados em lojas populares a

preços acessíveis, sendo muito comprados justamente por seu baixo valor e uso diversificado. Algumas

formas que aparecem nas composições habitam um leque de símbolos históricos reconhecíveis, como

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82 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

cruz e suástica; outros pedem ao espectador um

repertório específico de interesse para ser identi-

ficados, por exemplo, o símbolo usado por uma

banda punk. Todos esses símbolos são impregna-

dos de caráter místico e ideológico. Os tecidos/pa-

nos carregam caráter emocional em suas escolhas

– ao se apropriar de uma toalha de rosto usada

por algum amigo, é também capturada a memó-

ria existente no objeto e transposta ao trabalho;

há uma carga de sentimento em cada pedaço

que constitui Tapetes. Aqui é possível identificar

a noção de coleção, que está diretamente ligada

ao caráter emocional: a métrica ao apresentar os

trabalhos, o aparecimento repetido de um tipo de

objeto, a disposição espacial e as relações afetivas

presentes nas escolhas, tudo está ligado ao ato

de colecionar. Costa coleciona coisas cuja guar-

da normalmente é do interesse de poucos. valora

objetos destituídos de valor.

há uma escolha kitsch de determinados materiais

que se contrapõem a outros, de caráter nobre e

tradicionais na história da arte, como o bronze,

que na produção de adriano pode aparecer em

diversas formas: cana-de-açúcar, embalagens ou

bacias; em Community, por exemplo, toda a ele-

gância do material é perdida pela adição de urina

seca a uma bacia de bronze; e com isso há um

retorno forçado do objeto ao mundo. Sua posi-

ção torna-se inferior, anulando a nobreza do ma-

terial e assim o aproximando dos outros usados

por Adriano. Tentativa equivalente de atribuir aura

de importância a objetos sem “classe” é observa-

da quando o artista pinta de dourado os objetos,

como em Straight from the house of trophy −

Ouro Velho; uma variada quantidade de tapetes

e plásticos é alçada enganosamente a uma classe

superior apenas pela nova cor-brilho que recebem.

dourados, agora se impõem no espaço.

seguindo os materiais dotados de tradição histó-

rica, há na produção do artista o aparecimento de

colagens e objetos que trazem o gênero natureza-

morta, tradicionalmente considerado o mais baixo

dentro da pintura acadêmica. adriano se vale des-

se escopo. Nesses trabalhos, além dos materiais

já presentes nas composições anteriores, temos o

surgimento de elementos orgânicos: frutas e legu-

mes que, em seu breve tempo de vida, reagem de

forma diferente aos demais materiais presentes em

outros rearranjos. Aqui é possível aproximar-se das

vanitas não apenas de forma representativa, mas

com os próprios elementos efêmeros característi-

cos do estilo. as frutas e legumes não aparecem

apenas como objetos representativos, mas como

parte da ocupação espacial. o gênero natureza-

morta ganha uma mudança em sua abordagem

e uma valoração na pintura moderna com os tra-

balhos de Cézanne e Morandi. Este último é en-

contrável como referencial nas peças de adriano,

tanto em Greve, em que a disposição dos obje-

tos (embalagens feitas de bronze, pátina e urina)

adriano Costa, Flamingo, 2012, técnica mista, 75 x 24 x 24cmCortesia Mendes Wood dM, são paulo

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alude às pinturas de Giorgio Morandi, quanto em

To Morandi with Love, em que essa alusão está

explícita no título. há certa proximidade entre os

dois artistas, principalmente na escolha de obje-

tos domésticos e sem grande importância. Mário

Pedrosa escreve nos anos 40 sobre Morandi: “Ele

aparece antes como o junco pensante de pascal

a curvar-se ante o mistério das coisas humildes e

sem grandeza”.1 os elementos prosaicos detêm

influência sobre o interesse de Adriano.

A base de uma escultura tradicionalmente é usa-

da para elevar o objeto a seu posto; para Adriano

a base é usada de outra forma; não há separação

entre obra e base − ora a base é a própria escultura,

ora é integrada ao objeto. Podemos pensar em pro-

cedimento semelhante, sem dúvida em outro con-

texto e época, realizado por Lygia Clark ao retirar a

moldura das obras tornando-as, como colocado por

Ferreira Gullar,2 parte integrante do mundo:

Os quadros de Lygia Clark não têm

moldura de qualquer espécie, não estão

separados do espaço, não são objetos

fechados dentro do espaço: estão abertos

para o espaço que neles penetra e neles

se dá incessante e recente: tempo.

ou pintando as molduras para torná-las parte do

trabalho, como observa o mesmo autor:

A moldura é precisamente um meio-termo,

uma zona neutra que nasce com a obra, onde

todo conflito entre o espaço virtual e o espaço

real, entre o trabalho ‘gratuito’ e o mundo

prático-burguês se apaga. O quadro − essa

superfície plana coberta de cores organizadas

de certo modo e protegida por uma moldura

− é pois, em sua aparente simplicidade, uma

soma de compromissos a que o artista não

pode fugir e que lhe condiciona a atividade

criadora. Quando Lygia Clark tenta, em

1954, ‘incluir’ a moldura no quadro, ela

começa a inverter toda essa ordem de valores

e compromissos, e reclama para o artista,

implicitamente uma nova situação no mundo.3

igual procedimento acontece com a ação de adria-

no de integrar a base à obra ou descartar seu uso

como mediadora entre obra e espaço munda-

no. Temos como exemplo os trabalhos Flamingo,

morena#bronze#G I A N T , o trabalho mole, Tête

de Femme, Red Marble – Monumento e Cidades

Cinza/Belos Museus, que são como monumentos

ou projetos de monumentos a personagens dados

como obsoletos: meia, pé-de-cabra, machadinha,

queijos em bronze, tênis etc., mas que aqui repre-

sentam importantes símbolos e heróis escultóricos.

Totêmicos. Um dos trabalhos é construído por um

pedaço de arame farpado pintado de vermelho; tal

objeto é estruturado para que sua base fique em

cima de um pano e seu corpo em diagonal com a

parede; uma imagem banal, um monumento ao

próprio objeto em questão.

É possível verificar que os trabalhos carregam hu-

mor, principalmente em seus títulos e também na

adriano Costa, Greve, 2012, bronze, pátina e urina, 30 x 18 x 16cmCortesia Mendes Wood dM, são paulo

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84 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

forma de apresentar seus materiais para o espec-

tador – um emaranhado de cuecas causa certo

riso e estranhamento e, de primeira instância, re-

presenta uma estratégia para se posicionar frente

ao sistema asséptico dos espaços da arte contem-

porânea: museus ou galerias. Seus materiais, mais

uma vez, advém de fora, das ruas. Sabemos que

lá fora é que mora a realidade, e a arte apenas

representa algo ou no máximo mimetiza o real.

adriano traz para o espaço da arte os elementos

externos e aborda com isso situações históricas,

em maior escala quando é visível a citação de ele-

mentos da história da arte – para se aproximar

ou negar – e em menor escala com a captura da

memória existente nos objetos apropriados. Tam-

bém questiona o valor das coisas que existem em

campos distintos de atuação: o espaço da arte e o

espaço doméstico.

As composições reorganizadas do artista recebem

certa importância depois de exibidas. Adriano ao

mesmo tempo que prescinde do espaço de exi-

bição, quase ironizando a sacralização da arte –

usando materiais descartados ou sem acabamento

– volta-se para o espaço expositivo a fim de legiti-

mar os trabalhos, então objetos dotados de plas-

ticidade e com lugar próprio como arte. É nesse

momento de transição que os trabalhos passam

a ter potência e, mesmo confortáveis e domes-

ticados dentro do cubo branco, não são puros e

inocentes.

NOtAs

1 arantes, otília b. Fiori (org.). Modernidade: cá e lá: textos escolhidos IV/ Mário Pedrosa. São Paulo: editora da universidade de são paulo, 2000.

2 Gullar, Ferreira. Uma experiência radical. In: Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.

3 Idem, ibidem.

Renan Araujo é curador independente e graduan-

do em comunicação social, publicidade e propa-

ganda pela Universidade de Ribeirão Preto.

adriano Costa, Tapetes Panos de chão, 2008-2013, 600 x 600cmCortesia Mendes Wood dM, são paulo

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85dossiê | Marisa Mokarzel

EXPEDIÇÃO ELZA LIMA: imagens e lendas de um real construído

Marisa Mokarzel

Há mais de 25 anos Elza Lima1 percorre os rios da amazônia e sai em pequenas expedições fotografando

paisagens, pessoas, o ambiente que se apresenta – um ambiente em mutação. Transforma em imagem

o que vê, sem compromisso com o real; são imagens construídas a partir da realidade, elaboradas por

um olhar que inventa. Sua fotografia “fabrica o mundo, ela o faz acontecer”. Para André Rouillé “a

fotografia cria o real!”, assertiva que desestabiliza modelos definidores do ato fotográfico como ato

que documenta a realidade. trata-se de procedimento que o autor denomina antirrepresentativo, uma

vez que “tenta não sacrificar as imagens em função dos referentes, e de reconhecer a capacidade das

fotografias de inventar mundos”.2 A Amazônia criada por Elza Lima, em parte, vem-se constituindo com

uma “rota d’água”3 pela qual navega.

As viagens realizadas são muitas vezes fruto de projetos, de bolsas de pesquisa com que é contemplada.

Em 1996 viajou pelo rio Trombetas com a finalidade de fotografar os quilombolas. Três anos depois, ao

receber a bolsa vitae de Artes/Fotografia partiu em expedição rumo ao rio Cuminá, tendo como objetivo

refazer, 100 anos depois, a viagem daquela que foi a primeira mulher a fotografar a Amazônia: Otille

Coudreau. Elza Lima é formada em história, mas desde a década de 1980 optou pela fotografia. O

apego aos documentos não existe, a fidelidade dos fatos não é algo que a preocupe, mas é perceptível

sua atração por narrativas, seu fascínio pelas histórias contadas, inventadas ou reais. em muitos de seus

trabalhos também se nota a recorrência de figuras femininas fortes e determinadas. Daí seu interesse

pelos relatos sobre as viagens empreendidas por Otille Coudreau.

Em 2003, Elza Lima é contemplada com uma bolsa de pesquisa do Instituto de Artes do Pará (IAP),

para realizar o projeto viagem às amazonas, cuja proposta é viajar pelo rio Nhamundá, por onde

teria passado Francisco orellana que dali teria avistado as amazonas. a intenção era fotografar as

mulheres que ali habitam e exercem, na luta cotidiana, a função de arrimo de família. Como o projeto

era amplo, desdobra-o e, em 2010, elabora O Lago da Lua ou Yaci Uaruá − as amazonas do rio mar;

pela segunda vez recebe o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia e parte em um barco, iniciando

a viagem por Santarém.

nessa segunda parte do projeto, ao retornar à região das amazonas, mergulha novamente na força do

mito, nas narrativas advindas das habitantes do Nhamundá, mas dessa vez uma surpresa: depara-se com

paisagem muito diferente da que costumava encontrar em suas viagens: em vez dos rios abundantes,

defronta-se com a seca. Formara-se no lugar do rio um agreste de fendas no qual se presenciava a

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86 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

aspereza do solo pedregoso, desprovido de vege-

tação. as mulheres guerreiras limpavam os cintu-

rões para entrar em nova guerra. o inimigo era

desconhecido nessas terras até então sempre mo-

lhadas por rios e chuvas. estavam prestes a perder

o el dorado.

as lendárias riquezas foram vetadas às novas ama-

zonas. Gregas ou amazônicas? de onde vieram as

primeiras mulheres guerreiras, que com seus cava-

los e flechas enfrentaram nativos e estrangeiros?

ao retroceder no tempo, pode-se deparar com o

escrivão espanhol Frey Gaspar de Carvajal, que,

em 1542, relatou a viagem empreendida sob o

comando de Francisco de Orellana, desbravador

que veio para as terras do norte com intuito de

comandar a busca de riquezas não encontradas.

Daí o mirabolante relato para justificar a frustrada

missão e convencer o rei de espanha de que os in-

vestimentos valeram à pena. a partir desse episó-

dio duas culturas distintas passam a compartilhar

a mesma história, que adquire inúmeras variantes.

Junito de souza brandão, pesquisador da mitolo-

gia grega, revela que as amazonas teriam nascido

na Trácia, e a autoridade que lhe é atribuída talvez

esteja representada pelo cinturão de hipólita, a

rainha das amazonas. de acordo com brandão, o

cinturão, que fica “atado em torno dos rins, por

ocasião do nascimento, religa o um ao todo, ao

mesmo tempo que liga o indivíduo”.4 sua sim-

bologia é ambivalente e resume-se a dois verbos,

ligar e religar. traduz a força e o poder de seu por-

tador. Elza Lima, em seus projetos, utiliza como

referência as amazonas originárias da Grécia, mas

se detém na narrativa do desbravador que no sé-

culo 16 aportou no nhamundá. Vale-se da hipo-

tética pergunta: “se Orellana descobrisse nos dias

de hoje o rio mar que tipo de amazonas ele en-

contraria?”.5 À fotógrafa o que interessa é o en-

trecruzar de ficção e realidade, é o cotidiano que

perpassa essas novas guerreiras que, sozinhas,

sustentam a família, seguem as trilhas das águas.

A intenção é materializar o sonho não do El Dora-

do, mas da expedição fotográfica permeada pelo

real e ficcional. As imagens são conseguidas por

trancelim proveniente de narrativas orais e escri-

tas que se transformam em nova narrativa, cons-

truída, dessa vez, com fotografias resultantes de

precisa e sensível percepção de quem conhece a

amazônia, seus mitos e suas duras verdades. ao

se definir como fotógrafa que sonha e ao afirmar

“quero apreender a amazônia não como história,

mas como invenção”, Elza Lima nos coloca diante

de imagens inventadas, do sonho que se tece com

os fios entrelaçados entre as amazonas quinhen-

tistas e as do século 21.

A série de imagens das novas amazonas pode re-

velar um ser feminino que se conjuga à natureza

Elza Lima, Perfil da mulher e do pássaro em paisagem amazônica, foto da série O Lago da Lua ou Yaci Uaruá, 2010

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87dossiê | Marisa Mokarzel

e deixa o corpo submergir na água, para que o

perfil da mulher se afine ao do pássaro e cada pla-

no contenha a estética representativa do possível

voo, anunciado na paisagem. Da mesma série, a

imagem da mulher cavalgando se sobrepõe não à

água, mas à terra áspera, coberta de fendas, por

onde um dia passou o rio. Guerreiras e integra-

das à cena amazônica, partem, chegam com os

movimentos do úmido corpo exposto ao vento.

Segundo Rouillé,6

A imagem fotográfica não é um corte nem

uma captura nem o registro direto, automático

e analógico de um real preexistente. Ao

contrário, ela é a produção de um novo real

(fotográfico), no decorrer de um processo

conjunto de registro e de transformação, de

alguma coisa do real dado; mas de modo

algum assimilável ao real.

O novo real fotográfico, trazido por Elza Lima, re-

gistra o cotidiano das amazonas transformado por

seu modo de ver e sentir a realidade. Mais do que

reproduzir, a fotógrafa produziu, criou imagens.

Do preexistente constituiu seu universo imagético.

no navegar constante foi tramando caminhos que

tiveram as guerreiras como protagonistas. assim,

fechou-se o ciclo das amazonas, ao completar 10

anos. o fechamento ocorreu com o projeto À de-

riva, com o qual recebeu a bolsa de pesquisa con-

cedida pelo IAP, em 2013. O término das etapas

foi aparentemente sombrio uma vez que a figura

humana se ausentou, e as protagonistas surgiram

nos vestígios deixados na terra e nos rios. devido à

ação do fogo e à água que se foi, o craquelê ficou

exposto sem poder ser restaurado.

navegante dos grandes rios, íntima da paisa-

gem de uma região em que o verde predomina e

abundantes águas fluem, como a fotógrafa pôde

conviver com a ausência de vida que transformou

o cenário amazônico em árida terra, distante das

cenas descritas pelos viajantes, por aquele que

habita o lugar e, nele, dele sobrevive? Elza Lima

expressa o que os olhos veem, mas no que custam

a acreditar. Contadora e ouvinte de histórias que

se tecem no convívio ribeirinho, no registro ima-

gético, sempre em construção, Lima passa a não

ouvir o canto dos pássaros e começa a escutar o

silêncio da água parada, o ruído da queimada a

estalar no solo, no contato da casca da árvore que

se transforma em carvão.

Testemunhar o desequilíbrio ambiental afetou

radicalmente a percepção de quem estava habi-

tuada a percorrer os rios. A fotografia que passa

a ser expressa ganha caráter denunciatório sem

esquecer os elementos constitutivos da lingua-

gem fotográfica. Tecida com a água e o fogo, a

imagem atravessa os elementos que compõem a

natureza e devolve-nos a escolha de construir ou

destruir o que agora se apresenta. no lugar do

perfil da mulher e do pássaro, afinados com a pai-

sagem, surgem as cabeças de javali carbonizadas,

expostas como máscaras de uma vida que finda.

Elza Lima, Cabeças de javali, foto da série À Deriva, 2013

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88 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

a materialidade do universo está diante dos olhos

ao alcance das mãos. “imagens são mediações

entre o homem e o mundo.”7

Elza Lima é aquela que absorve a região amazô-

nica, assim como poderia absorver outra região,

outro continente; o importante é que interpreta

o mundo e vai além do simples registro, não se

restringindo a uma região geográfica. São viagens

e mais viagens, quilômetros de andanças, trilhas

de terras férteis, de terras secas. Tempo e espaço

navegados, na obsessão de reter e transformar o

que vê. Fotógrafa, historiadora, cidadã do mundo,

exerce múltiplos papéis, percebe o outro em sua

diversidade identitária. Com a máquina em punho

Lima conjuga e alia-se a diferentes paisagens, reti-

ra da ação repentina e aparentemente impensada

as imagens autorais. Captações infindáveis que

atravessam o olho intermediado pela lente, pelo

enquadramento e pela luz, na tradução de uma

estética pessoal, proveniente da ponte construída

entre imaginário e realidade.

NOtAs

1 Fotógrafa paraense, bolsista residente do Kunst-museum des Kantons Thurgau, Suíça (1995), con-templada com o prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (1996 e 2010); a bolsa vitae de Artes/Fotografia (1999); a bolsa pesquisa Criação e Exper-imentação artística do instituto de artes do pará – IAP (2003 e 2013).

2 As citações desse parágrafo são de Rouillé, An-dré. A fotografia: entre documento e arte con-temporânea. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009: 72.

3 Nome atribuído por Elza Lima ao projeto sobre os quilombolas que ganhou o Prêmio Funarte Marc Fer-rez em 1996.

4 brandão, Junito de souza. Mitologia grega, v. iii. Petrópolis: vozes, 1987: 107.

5 Essa pergunta é de Elza Lima e consta do projeto com o qual foi contemplada com o XI Prêmio Funar-te Marc Ferrez de Fotografia, em 2010.

6 Rouillé, op.cit.: 77. Para formular seu pensamento, o autor recorreu a Bruno Latour, La clef de Berlim et autres leçons d’un amateur de sciences. Paris: La Dècouverte, 1993.

7 Flusser, vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Re-lume Dumará, 2002: 9.

Marisa Mokarzel é doutora em sociologia pelo

programa de pós-graduação em sociologia da

UFC; mestre em história da arte pelo Programa

de pós-graduação em artes Visuais da escola de

belas artes da uFrJ, professora do mestrado em

comunicação, linguagens e cultura e dos cur-

sos de artes visuais e moda da universidade da

amazônia – unama.

Elza Lima, A amazona do século 21, cavalgando sobre o rio que secou, foto da série O Lago da Lua ou Yaci Uaruá, 2010

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89dossiê | Manoel Fr iques

istMos

Manoel Friques

A batalha da arte é com a construção de sistemas

Robert Nisbet1

Os últimos trabalhos de Ícaro Lira apresentam, salvaguardadas diferenças e especificidades pontuais, um roteiro comum. Em geral, o artista cearense participa de residências e/ou traça percursos em locais rurais e periféricos ao circuito artístico, durante os quais coleta imagens e objetos de diferentes naturezas, dispostos, por fim, no espaço expositivo. Desterro (Galeria Ibeu, 2013), Náufrago (Atelier Subterrânea, 2013), Istmo (Galeria A Gentil Carioca, 2013), Romaria | Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem (Galeria Sesc-Crato, CE, 2012) exemplificam tal estratégia, sendo essas exposições – posto que tais trabalhos furtam-se a ser denominados obras de arte – o ponto de partida desta reflexão.

Não que aventuras e viagens sejam a novidade trazida por Lira para o ambiente da arte. Recordem-se os artistas-cronistas viajantes que desembarcaram na América Latina no século 19, como Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas; mais recentemente, os itinerários de artistas-etnógrafos ou, ainda, antropologia-filos (para utilizar o estranho neologismo de Thierry Dufrêne2) que buscam o conhecimento do fato humano em suas relações com as outras espécies, com a natureza e com o ambiente urbano, interessando-lhes as diferenças e semelhanças culturais. Aquilo que chama atenção no gesto de Lira não é a viagem nem mesmo o relato; é, antes de tudo, a maneira como o artista enfrenta a crise da história e a emergência da antropologia sem cair na tentação de criar sistemas etnográficos que substituam o enquadramento historiográfico.

tome-se, por exemplo, Istmo, constituído por objetos variados: uma rede de pesca; uma caixa de charu-tos cubanos – Flor de Tabacos, de Partagas (Havana); uma sacola de plástico azul com um punhado de folhas secas, ostras e conchas do mar; o negativo de uma mulher de braços abertos em primeiro plano, seus olhos cortados, ausentes do enquadramento. em segundo plano, talvez um homem, não se pode ver nitidamente; quatro fotografias: um cachorro morto em uma estrada de terra; um osso, sobre uma folha branca, pousado em uma mesa; Lira criança de gravata borboleta e conjunto azul, de pé em um sofá estampado vermelho: bocas abertas, mão babada, dentes crescendo; uma mulher na paisagem agreste, nela quase se camuflando. Um cartão-postal (caçadores terrestres que habitavam o pampa chileno terra del Fuego, o chamado Fim do Mundo), um saco de soja, anzóis e pregos completam o conjunto de objetos.

Se tal descrição parece conduzir mais a uma desordem do que a um esclarecimento do trabalho, talvez seja por não haver um sistema unívoco – tal qual um quebra-cabeça – que os reúna. O que se deve notar é

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a diferença radical entre os objetos e sua justapo-sição que esconde, na realidade, abismos e saltos. nesse sentido, o espaço expositivo, incluindo aí as paredes, atua de modo a ilhar as coisas, em uma espécie de nivelamento operado por isolamento (isso não acontecia, por exemplo, na assembla-gem que o artista apresentou no Parque Lage em 2012 – ali, havia uma densidade de objetos que, nos trabalhos posteriores, se rarefez). O espaço, com isso, não funda uma unidade visual, mas um campo de vetores semânticos assistemáticos. Nele, os elementos naturais e registros urbanos, em geral diminutos e fragmentados, são coleta-dos segundo um mesmo impulso que descarta a diferença entre o objeto etnográfico e o objeto artístico, entre natureza e cultura. Se os objetos que ícaro leva ao espaço expositivo são, em sua maioria, usados, antigos e descartados, o tem-po os atravessa conferindo-lhes visível desgaste. Nada é novo; tudo possui sua história invisível e se impõe como enigma semiológico. isolada tempo-ralmente, cada coisa abriga-se espacialmente em relação às demais. e aqui devemos nos perguntar

qual a natureza da relação entre os elementos que Lira elege para o espaço expositivo. Como se asso-ciam essas unidades, essas ilhas sígnicas?

O artista diz que as fotografias, as caixas e os de-

mais fragmentos selvagens se associam por mon-

tagem. e, desse modo, estaríamos em terreno ci-

nematográfico. A desconfiança, porém, é de que

seja também uma composição. Na realidade, há

uma tensão entre montagem – enquanto encadea-

mento temporal – e composição – entendida como

inter-relação espacial. tal intensidade surge justa-

mente na decisão de ícaro de tornar visível espa-

cialmente o isolamento temporal a que os objetos

estão submetidos, isto é, seu caráter obsoleto, o

desgaste operado pelo tempo. Cada coisa exposta

então apresenta uma condição temporal própria, e

a montagem-composição que o artista realiza no

espaço expositivo lhe impede a unificação. Ocor-

re, com isso, uma multiplicação das possibilidades

narrativas, surgidas das combinações entre os di-

versos elementos. Institui-se a impossibilidade de

se delinear lógica sistemática que circunscreva uma

interpretação unidirecional do mundo (lembre-se

sempre de que os conflitos possuem variadas ver-

sões – em contraposição às histórias oficiais).

Mais acima, afirmou-se que a potência da obra

de Ícaro reside em seu embate com a crise da his-

tória, sem que ele se renda aos sistemas etnográ-

ficos. Esclareçamos. Não é novidade o processo

curioso que caracteriza a arte contemporânea

a partir da década de 1960, distinto por duplo

movimento inversamente proporcional: à medida

que a história da arte – enquanto disciplina orga-

nizada em torno de uma narrativa mestra – enfra-

quece devido a sua incapacidade de adequar-se

ao experimentalismo artístico, suas áreas irmãs,

em especial a antropologia e a sociologia, emer-

gem como práticas a ser exploradas intensamente

por criadores e teóricos. o fato de que o discurso

Ícaro Lira, Istmo, galeria a Gentil Carioca, rio de Janeiro, rJ, jan. 2013

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91dossiê | Manoel Fr iques

do fim da história funcione ele mesmo como uma

narrativa hegemônica da arte contemporânea tor-

na tal processo ainda mais ambivalente.

se a crise do enquadramento (tanto dentro quan-

to fora da obra de arte) é imperativo imposto

pela prática artística, não deixa de soar também

contraditório o fato de muitos criadores, diante

desse fato, formularem suas poéticas tendo por

base sistemas ainda totalizantes. Nos ambientes

das bienais, em que essas práticas parecem multi-

plicar-se tanto formal quanto tematicamente em

retorno ao desejo enciclopédico, a incongruência

salta aos olhos, seja na 30a bienal de são paulo

(2012), em que artistas como o holandês hans

Eijkelboom ou o alemão Hans-Peter Feldman utili-

zam práticas antropológicas (fotografias que evi-

denciam padrões de comportamento em muitas

cidades do mundo e coleções de roupas de mu-

lher ou a exposição de todos os objetos que se

encontram em bolsas femininas, respectivamente)

em obras marcadas pela nostalgia de um ordena-

mento totalizador e redutor; ou na 55a bienal de

veneza (2013), na qual a norte-americana Sarah

sze propõe uma instalação em que refaz o univer-

so a partir de um conjunto numeroso de objetos

organizados no espaço expositivo. tais práticas,

em especial as duas primeiras, parecem apresen-

tar um narcisismo etnográfico que Hal Foster3 em

importante ensaio soube indicar.

Sob outra perspectiva, o trabalho de Ícaro Lira,

assim como os dos brasileiros Fernanda Gomes,

Luciana Paiva e Rodrigo Braga, parece enfrentar a

crise da história, sem, no entanto, sublinhar o ím-

peto sistematizador por meio da prática etnográfi-

ca. Se Lira viaja por muitos municípios, não deseja

documentar as comunidades pelas quais passa

em um suposto trabalho de campo pautado pela

distância entre sujeito-analista e objeto analisado.

ao deslocar-se por cidades que estão fora do eixo

artístico, Ícaro propõe um embate com a narrati-

va histórica oficial, colocando-se ao lado, ou além

dela, como o etnógrafo desconfiado das intepre-

tações historiográficas evolucionistas do mundo.

Sob esse prisma, a deriva do artista assemelha-se

à incapacidade do antropólogo de sentir-se em

casa, de abrigar-se em algum terreno, até mesmo

sua casa. Tal impossibilidade marca não apenas a

figura aqui mencionada, mas, de fato, impõe-se

como impulso espiritual transversal a muitos pen-

sadores e artistas, e que susan sontag4 denomina

intelectual homelessness. esse impulso resulta de

uma sensibilidade moderna nauseada pelas ace-

leradas transformações tecnológicas derivadas de

um demônio chamado história.

Com a publicação de Tristes trópicos em 1955, Lévi-

strauss inventava o antropólogo como ocupação

total, aquela que envolve um compromisso

Ícaro Lira, Istmo, galeria a Gentil Carioca, rio de Janeiro, rJ, jan. 2013

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92 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

espiritual semelhante ao do artista e do

aventureiro. uma compreensão dessa invenção

passa necessariamente pelo fato de, até as

vésperas da guerra, a etnologia francesa ser realizada

por antropólogos de gabinete, que organizavam

considerável massa de dados à disposição, a fim de

resolver um problema ou explicar uma instituição.

Enquanto Marcel Mauss integra este grupo, Lévi-

strauss, por sua vez, atualiza a função por meio da

centralidade concedida ao trabalho etnográfico, sob

o prisma estrutural. se o artista pode ser considerado

etnógrafo, é porque este último, em sua reinvenção

operada por Lévi-Strauss, assemelha-se àquele em

seus mergulho e entrega ao trabalho de campo.

Ambas as figuras convergem em sua condição

humana de exilados; condição que independe do

local em que se encontram e que permeia o trabalho

de Ícaro Lira, explicitada em seus títulos.

Há uma atmosfera característica em seus traba-

lhos, nítida por meio dos nomes que os batizam;

eles anunciam, sem maiores floreios, a condição

errante do imaginário do artista. instiga o fato de

Ícaro pouco acumular os elementos; ele não é um

colecionador. Os objetos expostos na galeria podem

desaparecer na mesma velocidade em que nessa

situação foram colocados. Não há obra pronta, fe-

chada, apenas um salvamento temporário do ob-

jeto de seu pleno esquecimento; tudo é transitório

e se abre para as ações do tempo. Se estamos cer-

tos, ocorre então uma identificação entre artista e

objeto: ambos estão expatriados e se movem, nô-

Ícaro Lira, Desterro, Galeria IBEU, Rio de Janeiro, RJ, abr. 2013

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93dossiê | Manoel Fr iques

mades, por estradas, portos, aeroportos e espaços

expositivos. A condição do criador é a mesma da

criatura. Abandonados de seus contextos natais,

artista e objetos estabelecem frágeis relações entre

si – istmos – que os obrigam a navegar pelo mar

(ou deserto) cultural a fim não de achar um abrigo,

mas de confirmar a sina do caminhar.

NOtAs

1 Nisbet, R. A. A sociologia como forma de arte. Plu-ral, São Paulo, 7, primeiro sem. 2000: 111-130.

2 dufrêne, thierry. art contemporain et antropolo-gie. Anais do XXXII Colóquio CBHA (Comitê brasileiro de história da arte). direções e sentidos da história da arte. Campinas, 2012.

3 Foster, hal. The return of real: the avant-garde at the end of the century. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, October, 1996.

4 sontag, susan. Against interpretation and other essays. New York: Picador/Farrar, Straus and Giroux, 2001.

Manoel Friques é teórico do teatro (Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro − UniRio) e

engenheiro de produção (uFrJ). doutorando no

Programa de História Social da PUC-Rio, é mestre

em artes cênicas pela UniRio, em que é professor

de engenharia de produção com ênfase em pro-

dução cultural.

Ícaro Lira, Istmo, galeria a Gentil Carioca, rio de Janeiro, rJ, jan. 2013

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94 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

REORGANIZANDO A IMAGEM DA CIDADE

André Leal

As grandes metrópoles apresentam-se a seus habitantes como entidades quase autônomas que crescem

orgânica e espontaneamente. Mesmo as obras que interferem em nossos deslocamentos diários parecem

fazer parte desse crescimento espontâneo, quando na verdade são fruto de projetos elaborados pelo po-

der público e executados segundo diversos interesses que escapam aos cidadãos. Edward Dimendberg,

em seu texto The will to motorization: cinema, highways, and modernity, aponta como se estabeleceu

no imaginário popular – e no espaço – a ideologia do automóvel individual como vetor de liberdade e

como forma de o cidadão comum tomar posse da velocidade crescente dos tempos modernos. Ele busca

assim desconstruir a “suposta vocação utilitarista [das autoestradas que] é imaginada como produto de

engenheiros de tráfego e planejadores de transportes desinteressados”.1

O rodoviarismo que marca uma cidade como São Paulo com certeza não é algo ‘natural’, mas resultado de

demandas impostas pelo capital sobre seu espaço. Sua construção é fruto de um não projeto norteador

dessa forma de cidade que se reproduz pelo mundo e o transforma cada vez mais em uma grande rede

urbana. As avenidas paulistanas não são resultado de projetos previamente definidos, mas sim respostas

– sempre ‘urgentes’ – à proliferação de automóveis despejados pela indústria e aos imperativos de

circulação desimpedida que eles exigem.

Durante o século 20 diversos artistas tomaram as cidades, ou mesmo a experiência urbana, como ma-

téria de suas obras. Podemos, inclusive, inferir que os principais movimentos vanguardistas são fruto da

condição urbana que se impôs na sociedade industrial. As apresentações dadaístas, por exemplo, são

emblemáticas da tentativa de emular a condição fragmentária das cidades modernas em um contexto

artístico, assim como os readymades de Marcel duchamp não poderiam ter surgido senão nas lojas de

ferragens de uma cidade já moderna. No começo do século 21 a cidade capitalista é mais fragmentária

do que nunca, e suas contradições, especialmente em países ‘periféricos’ como o Brasil, se apresentam

aos transeuntes a cada esquina.

Para uma geração de artistas nascidos nas últimas décadas do século 20 a cidade se apresenta como um

campo para experimentações das mais variadas. uma paisagem tomada por edifícios e viadutos pixados

ou grafitados, estruturas abandonadas antes de serem concluídas e terrenos baldios em meio à cidade

consolidada está aberta para diversas abordagens artísticas e sociais, que assim são capazes de apontar

para tais contradições e de ressignificá-la, indicando maneiras mais imediatas de relação. São muitos os

artistas que atuam sobre esse cenário, mas tratarei aqui de um grupo de quatro jovens, cujas trajetórias

se confundem com a minha própria, e para tanto irei realizar uma breve digressão autobiográfica.

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95dossiê | André LeAL

o recuo temporal que proponho nos leva a julho

de 2006, quando um estudante de artes plásti-

cas convidou um grupo de amigos para levar

para a estrutura de um edifício em construção

abandonado um sofá, um colchão, uma mesa e

uma televisão quebrada – todos encontrados em

caçambas da cidade. Montamos assim, na beira

do abismo do prédio inacabado, um singelo si-

mulacro de apartamento familiar que aos poucos

foi ganhando mais móveis encontrados pelas ruas

de São Paulo. O grupo cresceu e acabou envol-

vendo outros colegas estudantes universitários de

diferentes disciplinas.2 nos reuníamos frequente-

mente naquele ‘apartamento’ que logo se tornou

um espaço de convívio e repouso para todos. em

poucos meses, porém, as obras no edifício foram

retomadas, e a experiência, para a qual já haviam

sido elaborados ambiciosos planos, foi subita-

mente interrompida.

esse convívio nos marcou de tal forma que conti-

nuamos nos encontrando regularmente e chega-

mos a estabelecer um coletivo artístico que durou

poucos meses e realizou poucas ações, pois as

rotinas individuais acabaram apresentando outras

exigências. apenas quando tive de redigir meu

trabalho final de graduação voltei a pensar nessa

produção artística, dessa vez a partir de um olhar

crítico e teórico. Foi assim que decidi reunir o gru-

po de jovens artistas paulistanos que acompanho

desde então e para os quais já propus provoca-

ções teóricas e projetos curatoriais.

Daniel Nogueira de Lima, Pique a.k.a. Carango Sá,

Jan nehring e raphael Franco apresentam ao pú-

blico olhares sobre a cidade que interrompem a

lógica à qual estamos acostumados no cotidiano.

de diferentes maneiras eles dialogam com esse

espaço, seja intervindo diretamente nele, seja

emulando em ambientes expositivos a experiên-

cia da vida na metrópole, e assim reconfiguram

a representação que temos do abstrato termo

‘cidade’. A fragmentação urbana atual e os flu-

xos do capital que produzem seu espaço – como

pulsões incontroláveis que nos atravessam – fa-

zem com que seja mais necessário do que nunca

dimensionar o espaço urbano e a lógica que rege

sua produção. É a reflexão sobre ele que os artis-

tas levam para as artes visuais, sempre dirigindo

nosso olhar para pontos obscurecidos da realida-

de que nos circunda.

As estratégias empregadas por esses artistas são

bastante diversas, mas algumas características co-

muns podem ser destacadas. A primeira delas é a

#cx3e20 – arte e cidade depois das barricadas de junho, instalação coletiva, vista parcial; Passagem Literária da Consolação, São Paulo, 2013Foto André Leal

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96 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

forma como encaram a própria representação da

cidade. Poucas vezes as cidades contemporâneas

apresentam uma imagem una de si, algo que em

São Paulo é amplificado pela falta de referências

geográficas marcantes. Ao mesmo tempo, porém,

os meios de comunicação e os governos buscam a

todo custo elaborar uma imagem para ser vendi-

da de algum modo.3 intervir nessa representação,

portanto, serve para abalar e aprofundar a frag-

mentação urbana, dela destacando as contradi-

ções sociais subjacentes à imagem do espetáculo.

uma das maneiras de desconstruir essa imagem

ocorre nas intervenções urbanas feitas por Pique

a.k.a. Carango Sá. O artista se apropria de blocos

de concreto utilizados pela prefeitura para lacrar

imóveis irregulares e os transforma em locais

de convívio para os transeuntes, ressignificando

imediatamente aquele espaço no qual intervém.

do mesmo modo, raphael Franco se apropria

de caçambas nas ruas da cidade e realiza tarefas

domésticas nelas, devolvendo ao público uma

imagem perturbadora da intimidade e do modo

de produção da cidade capitalista.

Os dois artistas também usam mapas em alguns

trabalhos, mas de maneira bastante diferente.

pique produz colagens com mapas de diferentes

cidades e sobre eles introduz outros elementos

desestabilizadores tais como notas de dinheiro an-

tigo, frascos vazios e desenhos. ele produz, assim,

mapas que são de fato para se perder, revertendo

o exercício de gentileza urbana que realizava nos

blocos de concreto em favor de uma reconstrução,

no público, da ideia da representação espacial. Já o

trabalho com mapas de Raphael se dá de maneira

direta no espaço, por meio da repetição exaustiva

de um trajeto de bicicleta na cidade que é registra-

do diretamente em um mapa com um aplicativo

para celulares. Raphael parece querer absorver a

cidade de todas as maneiras possíveis, e quem

sabe, fazer um mapa em escala 1:1, que apenas

serviria para demonstrar a própria impossibilidade

de uma representação cartográfica precisa.

Daniel Nogueira de Lima, LE – Estudo de escada, 2013, zinco, cabo de aço, lâmpada fluorescente, aprox. 8m2

Foto edouard Fraipont

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97dossiê | André LeAL

daniel nogueira, por sua vez, leva ao espaço ex-

positivo emulações de urbanidade que constrói

com canos de cobre e lâmpadas fluorescentes.

apresenta assim reinterpretações da imagem

da cidade – e da ligação corporal que tem com

ela – por meio de pinturas, desenhos e maque-

tes fantásticas. Por fim, Jan Nehring leva para a

galeria os próprios despojos de uma cidade em

contínua transformação. ele coleta pelas ruas

seus dejetos e os organiza em esculturas de va-

riadas dimensões no espaço expositivo, ‘literal-

mente’ reordenando o espaço urbano no qual

vivemos. Assim, o artista demonstra ao público

que a cidade está em constante transformação

e que ela nada tem de natural.

Desses elementos brevemente indicados até aqui,

teve origem a exposição #cx3e20 – arte e cidade

depois das barricadas de junho, realizada pelos

quatro artistas e o curador que ora escreve, na

Passagem Literária da Consolação, em São Paulo,

ao longo do mês de setembro de 2013. Ao pensar

na ocupação de uma vitrina com quase 30 metros

de comprimento buscamos aproximar a produ-

ção de cada um dos envolvidos em uma insta-

lação que fizesse sentido naquele emblemático

espaço de circulação em pleno coração da metró-

pole paulista, na esquina da avenida paulista com

a rua da Consolação. a emulação de uma imagem

de cidade já estava sendo definida, e caixas de pa-

pelão e páginas de jornais já eram consideradas

para ocupar tal espaço. durante o processo de

desenvolvimento da instalação, porém, eclodiram

as ‘jornadas de junho’, que tiveram como um dos

principais palcos aquela encruzilhada paulistana.

Foi em cima da passagem que a pM de são paulo

reprimiu brutalmente os manifestantes no dia 13

de junho, gerando uma repercussão nacional que

deu voz às insatisfações de uma classe média em

busca de visibilidade social mais do que apenas

econômica e que reivindicava mais do que somen-

te a redução do preço da passagem de ônibus.

Não era possível ignorar tal simbologia, já que as

Jan nehring, Gratidão, 2011, instalação, técnica mista, dimensões variadas Foto do artista

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98 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

‘jornadas de junho’ – e seus refluxos e permanên-

cias – podem ser consideradas um dos maiores

movimentos pelo direito à cidade que o brasil já

viu, pois, no fundo, o que estava em pauta era

o acesso da população aos benefícios oferecidos

pela cidade. Outro elemento que também surgiu

no rastro das manifestações foi a distância entre

o discurso de uma velha mídia empoleirada em

suas redações e um jornalismo-ativista realizado

em tempo real nas ruas, sem edição nem cortes

pré-programados.

Aí já estavam os dados que buscamos traduzir na

instalação apresentada na passagem, reunindo

fragmentos das produções de cada um, diluídas

em um todo cuja autoria foi de fato coletiva.

Manchetes de jornais colidem com mapas de

São Paulo recortados e ‘pixados’, uma topografia

fantástica emerge na vitrina e aponta para

a fragilidade das manchetes ampliadas, que

pouco significam frente à realidade das ruas.

não há mais discurso único que podemos extrair

desses elementos, bem como não há discurso

único nas ruas – somos todos plurais e as vozes

das ruas são múltiplas. Organizá-las é a tarefa

que cabe para um futuro próximo se alguma

política efetiva quiser ser erigida a partir dos

escombros de nossa democracia representativa.

no entanto, a implosão de tais discursos faz

parte do presente, apontando para um futuro

menos amarrado. E essa tarefa cabe também

aos artistas, principalmente em um momento

no qual os rumos são difíceis de ser apontados.

Colidir os discursos e as representações no seio do

ambiente urbano é uma das possíveis maneiras de

ressignificarmos as experiências fragmentárias da

vida citadina no alvorecer do século 21, e a arte

está especialmente preparada para isso.

NOtAs

1 Dimendberg, Edward. The will to motorization:

cinema, highways, and modernity. October, n.73,

verão 1995: 93. No texto o autor discorre sobre a

construção do imaginário rodoviarista promovida

pelo cinema na primeira metade do século 20.

2 Quando a experiência se consolidava éramos dois

estudantes de artes plásticas, dois de geografia, um

de arquitetura (que já tinha uma incipiente produção

artística) e um de rádio e televisão.

3 Bom exemplo disso é a ponte estaiada sobre o rio

Pinheiros, na Zona Sul de São Paulo, construída pela

prefeitura e que serve de fundo para os jornais locais

da Rede Globo

André Leal é arquiteto e urbanista formado pela

Fauusp e mestrando em Linguagens visuais no PP-

GAv/EBA. É curador independente e apresentou

trabalhos sobre artes plásticas e arquitetura em

congressos internacionais e revistas especializadas.

raphael Franco, Experimento n. 01, biella, itália, sistema de absorção da paisagem, 2011, vídeo digital, 3 min

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99dossiê | Tal iTha Bueno MoTTer

JANELAS: da passagem do tempo ao cotidiano compartilhado1

talitha Bueno Motter

Através de muitas janelas

Janela, derivada do latim Januella, o diminutivo de Janua, de porta de entrada, é ,assim, uma pequena

porta. E por esse formato reduzido, habitualmente, não está designada a travessia do corpo do homem,

mas a de seu olhar, como coloca a artista Letícia Lampert,2 “pois é da natureza da janela deixar que

olhem através dela, é para isto que ela existe”.3 A janela é ainda recorte, enquadramento de uma vista,

portanto é formadora de paisagens. Porque, assim como em uma pintura ilusionista (que também janela

é), o que se vê não são as coisas isoladamente, “mas o elo entre elas, ou seja, uma paisagem”.4

e o que acontece quando a janela estiver fechada? e se a ela for composta por vidro canelado? nesse

caso, a translucidez do vidro é perdida a ponto de não se poder mais definir bem o que está do outro

lado ou de quem está de fora não poder ver com clareza o que existe no interior. e aqui, entre o opaco

e o translúcido, percebe-se outro ponto importante: a janela possui duas faces, a que olha para dentro e

a que olha para fora. Contam que do porteiro do céu, Jano, a pequena porta herdou essa característica.

Mesmo quando não se consegue tangenciar com precisão as formas do exterior, entretanto, pode-se

perceber a formação de paisagens, aquelas pintadas pelo tempo. É o que mostra a série Escala de Cor do

Tempo, na qual a artista, diante da janela de seu banheiro, registrou fotograficamente, durante o perío-

do de um ano, as cores dos dias. O enquadramento fixo da janela, que se tornou também o da câmera

fotográfica, testemunhava o transcurso do tempo pelas variações de tonalidades, nunca iguais, vindas de

fora. novamente, há a relação com o deus romano, que, com suas duas faces, presenciava o passado e

o futuro. em escala a face da frente é sempre um novo começo, um novo dia, um novo céu, mas a que

se volta para trás fixa os instantes de cor a partir do registro atento da artista.

O conjunto de 144 fotografias obtidas, 12 para cada mês do ano, materializa-se em três trabalhos,

sendo dois livros de artista, os quais apresentam as fotografias com a indicação da hora em que foram

captadas, e uma instalação com a totalidade das imagens, Escala de Cor do Tempo − Para o Ano que

Passou, permitindo montagens variadas.

Em seus trabalhos Letícia Lampert parte da fotografia como um “meio eficiente”,5 o qual lhe possibi-

lita trazer de forma mais direta a visualidade das coisas. Além disso, como se pode perceber na série

comentada, a fotografia permite inúmeras composições, alterações e inserções posteriores à captação

da imagem. De acordo com a artista, “um dos maiores desafios de um projeto em fotografia é definir

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100 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

como será sua apresentação. A fotografia, como

meio, deixa a forma física do trabalho latente”.6

É o que define François Soulages7 a partir da no-

ção de fotograficidade – que articula o irreversí-

vel, inerente à impossibilidade de se retornar ao

instante do ato fotográfico, e o inacabável, que

remete às possibilidades infinitas, e aqui sempre

reversíveis, de manipulação do registro obtido.

Se Escala é nitidamente demonstrativa da ordem

do inacabável, também o é do irreversível. Pois a

artista, ao fotografar sempre da mesma posição,

repetindo as condições iniciais de enquadramento,

deixa que o tempo se revele a partir de suas cores,

demonstrando que a primeira foto nunca poderia

ser repetida.

Da janela particular, íntima, de Letícia Lampert,

parte-se para as muitas que enchem de olhos a

cidade contemporânea. Em (des)construções,

esse elemento arquitetônico assume outros signi-

ficados. São composições criadas a partir da co-

lagem digital de fragmentos de casas e edifícios,

que não desejam omitir as justaposições das fo-

tos. as janelas e mesmo varandas, elementos que,

repetidos no eixo vertical, indicam quantos níveis

uma determinada construção possui, tornam-se,

então, unidade de medida, além de possibilitar a

compreensão de que esses (im)prováveis corpos

arquitetônicos são possuidores de interioridade.

Habitá-los também parece possível, pois, algumas

vezes, seus moradores se revelam através dessas

áreas de transição entre o público e o privado.

tais construções referem-se conceitualmente ao

modo fragmentado da cidade contemporânea,

“cidade esta que não pode ser mais representa-

da como algo visível e ordenado, mas fragmen-

tado como uma montagem social”, conforme

Gladys neves da silva.8 É no agregar de partes

díspares, no compor descompondo que a cida-

de parece estar sendo permanentemente remo-

delada, fazendo com que as vistas das janelas

sejam constantemente transformadas.

Cecília Meireles na crônica a Casa revela o amor en-

tre ela e uma casa fechada de esquina. de suas al-

tas varandas ficava observando: “E sobre ela pensei

algumas vezes, deslizando como pequena mosca

pelas suas vidraças insondáveis, aventurando-me

como esbeltos gatos pelos ângulos do seu telha-

do, farejando o desenho secular e pueril de suas

cornijas”.9 A autora conta sobre o seu amor pelas

casas e, nesse interesse em apreender arquiteturas,

remete à atitude de Letícia Lampert em percorrer

ruas da cidade, retirando um pequeno pedaço de

casas e edifícios que não são os seus, para depois

os recompor poeticamente, como em (des)cons-

truções ou no projeto Conhecidos de Vista.

Letícia Lampert, des(construções) #1, 2007, fotografia colagem digital, 98 x 92cm

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101dossiê | Tal iTha Bueno MoTTer

Conhecidos de Vista

O último trabalho a ser discutido é a instalação

audiovisual Conhecidos de Vista, que traz as re-

lações que ocorrem “entre muros de cimento”,10

possibilitadas pelas varandas e janelas dos edifí-

cios. em trajetórias errantes por ruas estreitas de

porto alegre, a artista visitou cerca de 40 aparta-

mentos para fotografar o interior de um cômodo

e através da janela o fragmento da fachada do

edifício em frente. Nessa circunstância de proxi-

midade imposta pela construção de prédios com

pouquíssima distância entre si, com fachadas que

quase se encostam, abrir a janela é praticamente

estar dentro da casa do outro.

na instalação, que utiliza parte das imagens cap-

tadas no projeto homônimo, mostram-se sequen-

cialmente, e de forma simultânea, imagens dos

interiores e da paisagem de cada janela, acom-

panhadas de um relato sobre os moradores que

residem no prédio em frente ao apartamento fo-

tografado. A fotografia do cômodo traz, a partir

de seus objetos, do modo de dispô-los, das cores

da parede, a forma de habitar daquele morador.

E é a sua voz que relata, permitindo que se visite

também o interior do edifício logo em frente, que

se reflita sobre as relações possíveis nos interstí-

cios da cidade. Quem conta é alguém autorizado

a falar, o vizinho de frente, que já observa há mais

tempo, por querer ou sem querer. no entanto,

“quando a nossa vista é uma outra janela, passa-

mos a ser, consequentemente e de forma simultâ-

nea, a vista de alguém”.11

e o que está oculto tem o poder de aguçar a curio-

sidade; quer-se olhá-lo para entender. Na verdade,

Áudio: “Eu abro a janela de manhã e eu fico olhando se o vizinho já abriu a veneziana dele, se está iluminado, se ele já abriu as janelas ou só a porta da sacada... Isto me traz um conforto porque eu tenho uma relação com ele assim, só de ver, eu não sei nem quem é... É alguém que mora naquele edifício... por que eu moro sozinha então eu tenho uma relação com ele assim, de olhar pela janela... Ele nem sabe que eu existo, eu imagino... Mas eu me relaciono com ele, a distância, de olhar... de namorar a janela dele e a sacada...”

Letícia Lampert, Conhecidos de Vista, 2013, instalação audiovisual, 14min, fragmento

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102 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

parece que um pouco de cada um está escondido

atrás das fachadas dos edifícios pelos quais cruza-

mos, apressados, no dia a dia. Mas, nesse corre-

-corre, nem sempre os transeuntes percebem o que

existe por trás das muradas, como Cecília Meireles

expressou, quando a Casa por ela enamorada tirou

suas telhas e se mostrou internamente: “Lá embai-

xo, os transeuntes se moviam absolutamente ce-

gos, com esses passos tontos que os homens têm,

vistos de longe”,12 e nada perceberam.

Vistas finais

Os trabalhos de Letícia Lampert aqui apresenta-

dos trazem múltiplos sentidos ao elemento arqui-

tetônico janela. Além do mais, com essa proprie-

dade de enquadrar uma determinada região do

entorno, a janela guarda algum parentesco com a

fotografia, já que “é uma dupla exposição, é um

duplo enquadramento”.13 Portanto, a fotografia

surge como um meio coerente para se observa-

rem questões sobre janela. Em Escala, é a partir

dela que tudo acontece, é ela que filtra a luz ex-

terior, é ela que embaralha a paisagem externa,

tornando-a apenas cor. em (des)construções,

torna-se elemento de medida e demonstra a habi-

tabilidade das estruturas. Por último, a instalação

audiovisual Conhecidos de Vista recupera o valor

de observatório da janela do primeiro trabalho,

elemento que dá a ver o cotidiano alheio, mas

que também revela o interior de quem a possui.

enaltece, ainda, as relações possíveis entre janelas.

NOtAs

1 todas as imagens aqui apresentadas foram gentil-mente cedidas pela artista Letícia Lampert.

2 Letícia Lampert é formada em design − programa-ção visual pela Ulbra, e em artes visuais – fotografia pela UFRGS. Concluiu mestrado em Poéticas visuais

no PPGAv da UFRGS em 2013. No mesmo ano foi vencedora do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre verger na categoria Trabalhos de Inovação e Expe-rimentação e do iii prêmio itamaraty de arte Con-temporânea.

3 Lampert, Letícia. Conhecidos de Vista: A cidade re-velada através de olhares, janelas e fotografias. porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013: 13.

4 Cauquelin, Anne. A questão da pintura. In: ______. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007: 85.

5 Lampert, Letícia. Entrevista por videoconferência. 8 jan. 2014. entrevista concedida a talitha bueno Motter.

6 Lampert, 2013, op. cit.: 99.

7 Soulages, François. O objeto fotográfico: a fotografi-cidade. In: ______. Estética da fotografia: perda e per-manência. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.

8 silva, Gladys neves da. Collages arquitetônicas. Ar-quitextos, São Paulo, ano 9, n.102.07, nov. 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/re-vistas/read/arquitextos/09.102/98>. Acesso em: 12 jan. 2014.

9 Meireles, Cecília. A Casa. Letras e Arte: suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, ano 2, n.46, 29 jun. 1947: 1 e 6. Disponível em: < http://hemerotecadigi-tal.bn.br/>. Acesso em: 12 jan. 2014.: p.1.

10 Meireles, op. cit.: p.1.

11 Lampert, 2013, op. cit.:.11.

12 Meireles, op. cit.: 1.

13 Lampert, 2014, op. cit.

talitha Bueno Motter é mestranda na linha de

história e Crítica de arte pelo ppGaV da uFrJ e

é editora da revista digital Arte ConTexto. des-

de 2011 dedica-se à crítica de arte, com textos

voltados, principalmente, para a produção de

jovens artistas.

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103dossiê | Vânia LeaL Machado

ILHA DO COMBU: entre o rio e a cidade a arte acontece

Vânia Leal Machado

O ambiente de contradições cotidianas na Amazônia forma uma rede de pesquisa para os artistas locais, que atravessam no olhar a superação das fronteiras legais. Na urbana Belém amazônica, convivem se-dimentações identitárias como índios, ribeirinhos, quilombolas, caboclos e outros grupos sociais. Essas diferenças formam, na dinâmica cotidiana, a convivência com o rio e, ao mesmo tempo, convergem, contraditoriamente, para um ambiente complexo, em que o cotidiano simples se contrapõe, drastica-mente, ao cotidiano acelerado construído no Centro da cidade.

Esses ambientes demandam relação com desenvolvimento, sustentabilidade, ciclo da madeira, fatores geopolíticos e outras bases de conflito que inscrevem a produção na Amazônia aliada ao valor simbólico do povo florestânico.

Nessa confluência está a ilha do Combu, conformada entre os inúmeros espaços insulares do município de Belém, e, conforme o barco vai navegando, o silêncio nas águas do rio anuncia essa distância e uma nova dimensão se apresenta: o barulho da cidade vai ficando para trás.

O caboclo ribeirinho da ilha do Combu, de lá, observa a “cidade grande” e nos convoca nas teias das relações da modernidade com os recursos naturais, com o rio, restaurantes, energia elétrica, turistas e um fluxo dinâmico de barcos que circulam pelas águas a forjar novas relações com a natureza.

o entorno aparente da ilha, a mata e o rio à frente, com os trapiches de madeira em que aportam os barcos que chegam, configuram relações que se estabelecem com e nas comunidades do Combu.

É nesse contexto que o arte pará,1 por meio da proposta do curador paulo herkenhoff,2 reuniu quatro artistas que se deslocam em fluxo que permite a expansão das relações estabelecidas em uma dinâmica cultural formada por vários pontos de contato no mundo.

assim, paula sampaio, alexandre sequeira, Jorane Castro e thiago Castanho reuniram na quadra do Adrisom a comunidade da ilha do Combu e do entorno, mais os convidados de Belém, para a exposição Tem Arte Pará no Combu. O objetivo foi celebrar a arte no outro lado do rio.

Ao entrarmos na embarcação, a fotógrafa Paula Sampaio nos convidou ao “Embarque”, projeto criado pelo pensamento de seguir variados percursos, pelos quais acompanhamos a artista nos espaços exposi-tivos do arte pará e nas muitas rotas de sua criação.

Agora, seria segui-la num pôpôpô, que é o nome dado aos pequenos barcos que, por aqui, navegam em alusão onomatopaica ao ruído que fazem seus motores.

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104 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

a artista seguia hasteando ao vento a Fotoinstala-ção-Árvore para ser libertada mais adiante. E, de longe, podíamos observá-la numa imersão sim-biótica com o vasto rio; que trazia o barulho da embarcação, seguida de trilha sonora produzida por Paula e tocando no barco em que estávamos.

O início ocorreu com a batida de um sino, segui-da pelas músicas que compassavam com o barco grande e o pô-pô-pô que seguia na nossa frente. algumas vezes, desviava-se para os lados, mas a rota se cumpria e nos prendia num tempo que nos desnorteava para dentro e para fora; orques-trando o grafo da artista, ali sozinha, a esmo, nas ondas da maré.

Imaginei os embarques por outras rotas da Ama-zônia, fosse por moto, caminhão, barcos e outros meios de transporte. Afinal, ela atravessou a rodo-via transamazônica, ao longo de 20 anos, com a câmera fotográfica.

a imagem impressa de um tronco de árvore que ela fotografou no “Lago do Esquecimento” traz a edição de um vídeo para a primeira etapa do pro-jeto de documentação fotográfica sobre o lago de Tucuruí, no Pará, o segundo maior lago artifi-cial do brasil, onde a artista se deparou com um cemitério de árvores e um refúgio para as pessoas

que não foram indenizadas e moram no topo das

ilhas em torno de tucuruí. essas questões colo-

cam-nos diante de um desafio no Arte Pará.

o que fazemos diante de tanta incongruência na

amazônia? esse lago precisou morrer para gerar

energia? Fato é que, morrendo com ele, estão-se

esvaindo vidas e tudo o que foi perdido para sua

formação: áreas indígenas, cidades e inúmeras es-

pécies de animais e vegetais.

A artista nos diz: “Há 30 anos, e nada mudou.

Mas temos que nos rebelar de algum jeito para

provocar as discussões, nem que seja por meio de

umas fotinhas.”

naquele cair da tarde paula nos fez sair das ex-

pectativas habituais e nos colocou em situação

de vertigem, como um convite necessário para a

reflexão. Quando o barco ancorou na ilha, ela já

tinha libertado o “tronco amarrado às margens

do lago, no cemitério das árvores”, impresso nas

bandeiras. Agora, o tronco está livre naquele rio.

Na arte é possível libertar os seres.

na ilha, fomos direto para a quadra do adrisom

para ver a exposição fotográfica de Alexandre Se-

queira, com a série Meu Mundo Teu, com a qual

o artista promoveu o conhecimento de dois ado-

lescentes por cartas e fotografias − Tayana Wan-

zeler, moradora do bairro do Guamá, na cidade

de Belém, e Jefferson Oliveira, morador da ilha do

Combu, descrevem a própria vida em detalhes,

por meio da troca de cartas e imagens realizadas

através da experimentação de registros fotográfi-

cos com câmeras artesanais de um e dois orifícios;

além de câmeras convencionais com dupla expo-

sição, resultando em testes fotográficos diversos,

com imagens sobrepostas dos dois mundos: o do

bairro do Guamá e o da ilha do Combu e da propo-

sição de alexandre, que coloca tayana e Jefferson

como coautores das imagens reveladas.

paula sampaio, Fotoinstalação-árvore, 2012, baía de Guajará

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105dossiê | Vânia LeaL Machado

as imagens propostas e conduzidas por sequeira

resultam na construção de narrativas entrelaça-

das dos dois jovens, por meio da interatividade

e das relações afetivas que se estabelecem com

seus lugares, através dos elementos simbólicos

que animam esse convívio da percepção, que

transmitem a dimensão do acontecido.

quando estávamos montando a exposição na

quadra, as senhoras aldelina, raimunda, Maria

de Fátima e patrícia acompanhavam atentamen-

te as imagens e se reconheciam na fusão delas,

desprovidas de qualquer conceito da arte.

a senhora raimunda comentou, comovida, que

reconhecia a cozinha da casa antiga, que ela ha-

via demolido. “o professor alexandre trouxe nos-

sa casa de volta.” Aquele momento confirmava o

objetivo do trabalho de Alexandre, na sua forma

final, que é a de uma história para contar conver-

tendo-se em possibilidades poéticas.

a noite caía na ilha, e era grande o movimento

dos barcos que chegavam das comunidades pró-

ximas. era a hora do cinema, e a cineasta Jorane

Castro faria o lançamento oficial do filme Ribei-

rinhos do asfalto. O curta percorreu mais de 30

festivais nacionais e internacionais. Exibir o filme

para a comunidade na qual ele foi inspirado foi

um momento singular.

Gravado em locais tradicionais de Belém, como

Ananindeua, Marituba, ilha do Combu e o mer-

cado ver-o-Peso, o filme revela a presença dos

personagens pela interação e familiaridade do

contexto da ilha. Jorane capta essa essência na

Amazônia, ao trazer para a reflexão a vida das

pessoas e as relações com os outros.

O cinema na ilha, a céu aberto, criou um espaço

de realização do filme, pois, é pensado como o lu-

gar do encontro de “observadores” e “observados”

que se ligam, se juntam, e a troca é estabelecida,

e sobre ela recai o foco da paisagem interna dos

personagens.

Ao final da sessão de cinema, a celebração foi por

conta dos chefs thiago e Felipe Castanho, da co-

zinha paraense, que figuram nas cenas nacional

e internacional, legitimando nossa gastronomia.

Juntamente com as cozinheiras da ilha, criaram

um cardápio com os ingredientes amazônicos.

Para Thiago a experiência na ilha confirma um

retorno ao lugar de onde vem a motivação pra-

zerosa de seu trabalho. Seus pais começaram a

história com a criação do restaurante remanso do

peixe, que guarda o maneirismo da relação inti-

mista com a natureza vivenciada em seus lugares

de origem, no interior do estado.

Thiago diz que cresceu observando essas nuan-

ças no restaurante da família, na cidade de be-

lém. Sua memória afetiva naturalmente constrói

o conceito de seu trabalho. Com a comunidade

do Combu expande a pesquisa sobre a farinha,

o chocolate, e, principalmente, faz do ir e vir da

cidade para a ilha inspiração para os pratos que

nos tocam pelos sentidos.

assim, artistas convidados, professores, patro-

cinadores do arte pará, moradores da ilha e

arredores, equipe da Fundação romulo Maio-

rana degustaram mingau de banana-da-terra

paula sampaio, Fotoinstalação-árvore, 2012, baía de Guajará

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106 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

com leite de coco, vatapá com cuscuz de farinha

d’água e, para sobremesa, bolo de macaxeira

com calda de maracujá e mousse de chocolate

do Combu. A ação na ilha do Combu provocou

uma verdadeira interação de todos ali presentes.

o evento suscitou uma percepção de deslo-

camento, desafiou a rotina dos sentidos, nos

alimentou de toda a sorte de coisas e, depois,

nos libertou para exercitar a imaginação, alar-

gando as fronteiras da criação de maneira livre

e intuitiva.

a arte aconteceu entre o rio e a cidade. o curador

paulo herkenhoff, ao dirigir essa ação, alinhou os

olhares dos quatro artistas e, convictamente, nos

fez sentir à vontade para contar nossa história

com a mesma paixão do idealizador. Fomos fe-

lizes em nossa travessia, com o desejo comum

de, por meio da arte, fazer da ilha do Combu um

lugar de encanto e confronto, um lugar que nos

coloca para pensar.

NOtAs

1 Projeto de arte contemporânea, o Arte Pará foi

criado em 1982 pela Fundação Romulo Maiorana;

acontece, portanto, há 33 anos consecutivamente.

Passou por várias modificações e adotou um sistema

regido pelo curador-geral.

2 Paulo Herkenhoff é crítico e curador, cujo olhar se

volta de maneira singular e cuidado especial para a

Região Norte. Há quase três décadas, quando esteve

à frente do instituto nacional de artes plásticas da

Fundação nacional de arte (Funarte) suscitou um de-

bate a partir da visualidade amazônica. De lá para cá,

a arte contemporânea conquistou espaço e, por in-

termédio de fluxos de artistas, críticos, articuladores

político-culturais e programações, passou a adquirir

visibilidade e maior potência. Herkenhoff está à fren-

te do Arte Pará há mais de uma década.

Vânia Leal Machado vive e trabalha em Belém.

Mestre em comunicação, linguagem e cultura, é

curadora educacional do projeto arte pará e res-

ponsável pela organização do catálogo do salão e

do encarte especial arte pará no jornal O Liberal.

atua na área de curadoria e pesquisa em artes,

tendo participado de comissões de seleção e pre-

miação, organizações de salões como o 9o salão

de Arte Contemporânea Sesc-Amapá. Foi curadora

de mapeamento da região norte no projeto ru-

mos itaú Cultural de artes Visuais, edição 2011.

alexandre sequeira, Girau e hot dog, 2007 thiago Castanho, Sabores do Combu, 2012, Belém, PA

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107dossiê | André ArçAri

UM REMIX DE PAISAGENS OU POR ENTRE paisaGens e situações

André Arçari

Uma parcela da vasta produção contemporânea se utiliza do eixo paisagem-horizonte para a realização de

seus trabalhos, seja como meio ou fim. Alguns artistas brasileiros formulam sua produção na relação com

o ambiente, e muitos dos trabalhos criados chegam até nós por meio da visualidade contida na imagem.

na investigação intitulada Estudo da Paisagem (2010), de Sofia Borges, o conteúdo pode ser visto através

de uma suposta nitidez. Uma falsa busca de representação na imagem, portanto, uma simulação da

paisagem. A existência dessa simulação questiona se a realidade identificável é palpável ou composta por

imagens falsas, criadas com o intuito de desfigurar o mundo que lhes serviu de base. Nesse contexto, o

signo se tornaria mais importante do que o fato.

Na lógica interna e hermética do trabalho de Sofia Borges, qual a conexão com a matéria-prima, a re-

presentação ou a captação? Essa dúvida torna-se mutável ao longo da assimilação da série. Isso porque

as paisagens não são fotografadas de modo direto,1 mas sim através de um filtro que acaba gerando

um simulacro, ou seja, uma cópia imperfeita, a qual traz indícios da realidade. Baudrillard afirma que o

mundo atual2 é construído sobre uma representação de representações. Sobre esse jogo, ele argumenta:

“Enquanto que a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a

simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro.”3

Isso ocorre porque Borges posiciona a câmera não no real, mas realiza os registros dentro do Museu

americano de história natural, em nova York.4 As imagens são recortes fotográficos dos dioramas do

museu, que ela relata terem sido feitas em um só dia, como turista que capta seus interesses nos espaços

de exposição. ela reposiciona o lugar paisagem das imagens que antes tinham a função primeira de re-

presentar algo no espaço. O estudo apresenta a paisagem através da fotografia e ao mesmo tempo exibe

uma metarepresentação. Sofia fala do ato fotográfico, da relação entre produção e recepção da imagem

como índice de fotografia, como bem analisou Dubois em seu ensaio O ato fotográfico.5 suas preocupa-

ções em questões como, por exemplo, cor, luz e sombra (para citar algumas delas) direciona o discurso

de sua pesquisa para um grau pictórico. De algum modo, é possível se perguntar: poderiam ser pinturas?

ignez Capovilla em sua (primeira) exposição individual, intitulada por novos horizontes,6 segue outro eixo

sobre paisagem, mas, assim como Borges, esse não é o único assunto, pois, inseridas no campo da arte,

as preocupações dessas artistas perpassam uma vasta história e uma extensa gama de problematizações.

de certa forma, Capovilla atua de modo inverso ao que borges propunha em seu estudo como turista

dentro de um museu. Como artista viajante, Capovilla busca o primitivo, e seu corpo vai ao encontro de

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108 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

uma paisagem real. ela se locomove de corpo e

mente até paisagens desejadas para sua pesquisa

e busca ver, com seus próprios olhos, o mundo

como ele é, a fim de analisá-lo e transfigurá-lo

para o campo da arte.

na pintura, o status da paisagem torna-a um

tema. Num olhar rasteiro para a série de Capo-

villa, me pergunto: de que modo essas paisagens

existem no mundo real? Respondo-me através do

tempo e dos diálogos travados com a artista. o

ser humano não está presente nas imagens, mas

é notável como pode ser percebido mediante in-

dícios contidos em momentos e espaços determi-

nantes. É verdade que se trata de uma presença

de ausência da figura humana.

a seleção de horizontes captados durante uma

viagem à bolívia exprime uma peregrinação em

que o deleite estético do corpo jogado no espa-

ço real torna-se o lugar ideal. associado a esse

fato, o lugar sagrado que ela buscou é uma jus-

taposição de seu eu interno e o mundo exterior.

Sua busca visa à imensidão da vida. Além disso,

para tal jornada ela parece mesmo questionar

o mito da pureza, como fez, de modo distinto

e utilizando outros artifícios e materiais, Hélio

oiticica, em Tropicália7 (discussão apropriada

para outro texto que não este, que escrevo para

você, caro leitor).

A falta de corpos na pesquisa de Capovilla é pre-

enchida por outros interesses. O trabalho expressa

sua missão solitária de encontro com as estruturas

terrestres. desse modo, o mundo dessas imagens

parece pertencer a um não tempo, um espaço

meditativo a ser sentido e vivido, mais do que ra-

cionalizado. A filosofia oriental é oportuna para

uma assimilação mais ampla do vazio de prédios e

multidões urbanas desses horizontes. Algo como

o Zazen (Apenas sentar), definido como a base

da prática zen-budista, na qual o praticante deve

libertar pensamentos, e/ou ainda o Wu Wei (Não

ação. Wu = não, nunca, sem, nada, vazio; Wei =

fazer, agir), um princípio prático central da filoso-

fia taoísta, poderia ser absorvido ao tempo e ao

espaço visual e conceitual das imagens.

os horizontes são captados e armazenados numa

câmera digital e não se bastam sem tal aparelho

tecnológico de base. É uma formulação oposta à

de Borges em termos, pois ambas são turistas (fo-

rasteiras nessas cidades distintas) e portam apara-

to semelhante, a câmera. Por isso tais naturezas

não se bastam sozinhas, elas pertencem à foto-

grafia, bem como a ideia do vazio representado

Sofia Borges, Estudo da Paisagem, 2010, jato de tinta sobre papel algodão, 40x 60cm (esquerda) 100 x 66cm (direita), ed. 5. imagem cortesia da galeria artur Fidalgo

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109dossiê | André ArçAri

por Capovilla. É uma aventura sobre um núcleo

que já se encontra construído em nossa memó-

ria, social e culturalmente. por exemplo, o cinema

ambienta cenas e tem a capacidade de construir

imagens em movimento, como a do vazio, através

da câmera filmadora, e por isso desde muito cedo

teve suas especificidades, sua grafia. Sua base,

nos primórdios, foi a fotografia, o frame. para de-

leuze o “cinema não apresenta só imagens, ele as

cerca com um mundo”.8 por esses e outros fato-

res, o vazio em si no trabalho de Capovilla é en-

cenado, bem como o movimento no cinema fora

uma ilusão da justaposição de imagens estáticas

gravadas na película.

Enquanto uma delas trabalha no urbano, no am-

biente interno de uma paisagem projetada pelo

homem com portas, paredes e afins, ou seja, o

museu (espaço arquitetado), a outra realiza um

furgere urben momentâneo para um local silen-

cioso e “infinito” a fim de encontrar-se com a

imensidão da natureza, expressando característi-

cas de uma geografia em que a terra aparenta se

bastar. Todavia, há que lembrar, o mundo captado

por ambas é uma ilusão, uma simulação.

Por Novos Horizontes é composto por sete

dípticos, em escala de 47x100cm (o trabalho é a

junção de duas imagens que sofrem um processo

da manipulação digital a fim de ser impressas jun-

tas) e um díptico impresso separadamente,9 que

mede 100x300cm (instalado no espaço com pou-

cos centímetros de afastamento).

As imagens possuem a largura de panorâmicas,

mas não trazem consigo o continuum tempo-espa-

ço de um só horizonte. todos os pares são capta-

ções distintas interligadas por uma linha. o traça-

do é nitidamente forjado, o que se dá, contudo,

porque ritmo, composição e problemas de ordem

cromática, presente nas imagens, são distintos.

Há a presentificação de momentos díspares entre

si. As situações dessemelhantes acabam por divi-

sar um risco vertical centralizado, o qual chama

de imediato o olhar. as cenas duplas são com-

postas através da manipulação digital, e por isso

mesmo um abismo se instaura. Em Horizonte 04,

elementos naturais distintos, água/terra, tentam

dialogar, e a composição é interligada por uma

região montanhosa. os caminhos, vistos no pri-

meiro plano, percorrem lados opostos, as bordas,

e parecem infinitos. Já Horizonte 03 carrega a

primazia do silêncio puro/translúcido, em razão

de seu lado esquerdo apresentar cristais de sal do

Salar de Uyuni e seu lado direito exibir a transpa-

ignez Capovilla, Horizonte 08, díptico, 2013, fotografia sobre papel, 100 x 300cm

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110 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

rente água do lago. em escala maior, Horizonte 08

é um composto terrulento/rochoso. No lado direito

há uma composição de texturas e cores terrosas e

uma região geográfica vista ao fundo desperta a

associação com os pináculos de uma catedral gó-

tica, reforçando assim uma verticalização espacial.

A esquerda, o céu branco e límpido se opõe ao lixo

por entre as pedras na parte inferior, o que pontua:

é um lugar turístico. Por fim, o cenário afirma que

o ser humano deixa mesmo rastros por onde passa.

Aliás, nós humanos é que projetamos as diferen-

ças no/do mundo, reestruturando as percepções a

partir do que absorvemos. Nossas compreensões

são mesmo múltiplas em inúmeros sentidos, bem

como nossas distinções físicas e intelectuais.

a paisagem incorpora o tempo em sua essência,

adere as transformações humanas, bem como as

naturais. se altera pelas catástrofes, sendo sujeito

protagonista. Torna-se objeto de estudo do hu-

mano pela geografia, problematizando questões

como as transformações topográficas em confor-

midade com o tempo.

o tempo, por sua vez, é efêmero, se faz e refaz

no aqui e no agora. É ininterrupto porque não

há possibilidade de ser pausado como um filme,

sendo, assim, paisagem de difícil apreensão por

ser incerto. Vive constantes reformulações, sendo

posto/sobreposto/justaposto a todo momento.

NOtAs

1 Nesse sentido argumento o fato de Sofia Borges registrar uma representação, um indício de uma pai-sagem real existente no planeta terra. ela não regis-tra uma paisagem real em si.

2 Refiro-me à atualidade que o teórico/filósofo analisa em seu livro publicado em 1991. Baudrillard, Jean. Si-mulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Agua, 1991.

3 Baudrillard, op. cit.: 13.

4 Informação obtida no texto de Clarissa Diniz, escri-to na ocasião da mostra estudo da paisagem (study of Landscape) realizada na Galeria arthur Fidalgo, em 2011. (diniz, Clarissa. Paisagem em falso. dispo-nível em <http://sofiaborges.carbonmade.com/pro-jects/3199427#1>. Acesso em 21 jan. 2014.)

5 Dubois publica esse e outros ensaios em livro inves-tigando a compreensão do processo que engloba a fotografia. Dubois, Philippe. O ato fotográfico e ou-tros ensaios. Tradução Maria Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993. (Série Ofício de Arte e Forma)

6 Mostra individual da artista que ocorre no espaço Cultural Memorial da paz na cidade de Vitória, es (Brasil), de 10 de dezembro de 2013 até 10 de março de 2014.

7 Exposta na mostra Nova Objetividade Brasileira, reali-zada no Museu de arte Moderna do rio de Janeiro, em abril de 1967, a obra pode ser descrita como um am-biente labiríntico composto de dois Penetráveis, PN2 (1966), Pureza É um Mito, e PN3 (1966-1967), Ima-gético, associados a plantas, areia, araras, poemas-ob-jetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão.

8 Deleuze pontua também que devido a esse fato o cinema procurou circuitos cada vez maiores, que unissem uma imagem atual a imagens-lembrança, imagens-sonho, imagens-mundo. deleuze, Gilles. A imagem-tempo. Tradução: Eloisa de Araujo Ribeiro; revisão filosófica Renato Janine Ribeiro. São Paulo: brasiliense, 2005 (Cinema2).

9 A solução de dividir tais imagens viabilizou o trans-porte. Caso fossem impressas juntas a largura limita-ria sua locomoção.

André Arçari é artista-pesquisador, teórico e críti-

co independente. Graduando finalista do curso de

artes Visuais pela ufes, atua na instituição como

pesquisador-CNPq nos grupos Poéticas Transdisci-

plinares nas Artes visuais e Laboratório de Pesqui-

sa em teorias da arte e processos em artes.

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111dossiê | Renata Gesomino

NO LIMIAR DE UM TROMPE-L’OEIL PóS-MODERNO:o confronto sociopolítico entre a pintura erudita e a arte urbana

Renata Gesomino

há um momento importante de transição ou passagem de nosso modernismo para o pós-modernismo

nas artes visuais, em que a visualidade dos meios plásticos, sobretudo, os meios da pintura começaram

a ser amplamente questionadas. Tais questionamentos podem ser exemplificados pelas experimentações

mais conceituais de Hélio Oiticica e Lygia Clark, por exemplo. Importa abordar alguns princípios teóricos

como os elaborados na Teoria do não objeto,1 de Ferreira Gullar. O crítico e poeta anunciou as modifi-

cações no campo pictórico por meio da “morte da pintura”, mais precisamente, da moldura enquanto

convenção ou de sua canonização nas amarras do cavalete. apelava-se para a mente e para os sentidos

na tentativa de apreensão das relações entre o observador e o “(não) objeto”, constituído em função do

espaço, em função do mundo.

A pintura e a escultura, sobretudo, tinham alguns de seus aspectos aplicados em obras que mais pa-

reciam híbridos de várias linguagens. É assim que Oiticica, por exemplo, chega às formulações de seus

Penetráveis, na busca de uma “simbologia geral do corpo”.

partindo-se de algumas considerações relacionadas à plasticidade e à perspectiva encontrada em estru-

turas geométricas − tais como as estruturas dos mencionados Penetráveis, de Oiticica, que remontam

a algumas obras dos artistas neoconcretos de maneira mais ampla −, percebe-se a projeção abrupta

das formas nas telas rumo à ocupação do espaço circundante. Nesse sentido, é possível tecer também

algumas considerações críticas entre as obras dos jovens artistas Rafael vicente e Mario Bands. O viés

principal da presente análise de obras, entretanto, concentra-se menos em questões estéticas e formais

do que nas questões atreladas ao desenvolvimento conceitual de uma identidade territorial.

Tanto Rafael vicente quanto Mario Bands possuem históricos bem distintos de inserção no meio de

arte estabelecido2 e percepção ou “visão de mundo” que pode ter influenciado a escolha de repertório

material3 singular quase oposto entre eles. Todavia, pode-se afirmar que ambos os artistas utilizam al-

guns princípios técnicos específicos do campo pictórico com o objetivo de transgredir uma perspectiva

passiva, projetando formas que se destacam principalmente através do uso de uma paleta intensa e

histriônica. esse jogo cromático provoca um salto para fora das estruturas que funcionam como suporte.

Apesar das semelhanças estéticas e formais encontradas em suas obras, destacam-se as diferenças em

relação às experiências adquiridas em função da vivência afetiva no entorno, gerando certo conflito na

apreensão das “identidades culturais pós-modernas”.4

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112 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

Rafael vicente é formado pela Escola de Belas Ar-

tes e trabalha com linguagem pictórica levando a

experiência perspéctica a seu limite, encontrando

a inspiração plástica na observação de elementos

brutos da construção civil. Desenvolveu, a partir

de um arcabouço técnico, artístico e teórico, uma

espécie de pintura a óleo abstrata, que exibe a

problemática da própria pós-modernidade ao cru-

zar os tempos pretéritos. É dessa maneira que po-

demos identificar em suas pinturas a presença de

um trompe-l’oeil5 rebuscado e deslocado de tem-

po e espaço. entre os múltiplos pontos de fuga

flutuam estruturas arquitetônicas que lembram a

dureza dos materiais costumeiros da área.

sua inserção no campo artístico se dá tangen-

ciando as poéticas visuais próprias do universo

pictórico. dessa maneira, como pintor, seu tra-

balho é reconhecido e legitimado, integrando-se

às galerias, coleções particulares, centros cultu-

rais e museus, entre outros. Vicente adentra o

que o sociólogo francês pierre bourdieu chama-

ria de campo da produção erudita,6 podendo ter

sua obra comparada aos movimentos abstratos

geométricos das vanguardas do século 20, muito

embora o atualize com paleta artificialmente ilu-

minada que remete à entropia visual das cidades

pós-modernas.

por outro lado, nas questões que tangem ao

confronto sociopolítico entre esse mesmo campo

da produção erudita e o campo da arte popular,

aqui compreendido como “arte urbana”, insere-se

a obra de Mario Bands, por vias tortuosas. Bands

é conhecido como artista urbano e também

pode ser classificado, não sem custos para o

reconhecimento do valor simbólico e estético de

seu trabalho, como “grafiteiro”. Atua, sobretudo,

desenvolvendo pinturas híbridas, uma vez que são

apresentadas em superfícies não convencionais,

ganhando características escultóricas. Suas obras

são feitas, em geral, com os materiais de “rua”,

como a tinta spray, pVa, restos de sucata recolhida

e apropriada, além de algumas inserções com

fotografia e ilustrações digitais impressas.

É um artista urbano, um “flâneur das duas

margens”,7 e sua arte emerge da observação

Rafael vicente, série Contaespaços, 2014, grafite, óleo e resinas sobre linho, 100 x 289cm

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113dossiê | Renata Gesomino

NOtAs

1 Segundo Ferreira Gullar, a primeira definição de

não objeto, encontrada na teoria homônima, seria

a seguinte: “É preciso primeiro saber o que entendo

aqui por objeto. Entendo aqui por objeto a coisa ma-

terial tal como se dá a nós, naturalmente, ligada às

de espaços que registram luta de classes, atrito

sociopolítico e cultural.

É assim que Bands, filho também das periferias do

Rio de Janeiro, tem seu olhar sensibilizado pelos

escombros sociais de áreas problemáticas nos su-

búrbios e favelas cariocas, onde desenvolveu seu

trabalho mais famoso. Criando um site-specific

no Complexo do alemão, Mario bands, ocupou,

com tinta spray e formas geométricas saltitantes,

toda a extensão de uma escadaria ou o que dela

sobrou, transformando o signo do abandono do

Estado em obra de arte efêmera.

na compreensão de uma lógica de mercado e

de funcionamento do circuito de arte, é possível

afirmar que a inserção de Bands tornou-se mais

restrita, num certo sentido, do que a de rafael Vi-

cente, embora, por um aspecto formal, a obra de

ambos goze de qualidade estética e visual seme-

lhante. nas lutas, jogos e disputas por legitimação

e pelo capital simbólico, as escolhas de Bands de

abordar a problemática sociopolítica das perife-

rias, com o agravante de partir de uma linguagem

artística ainda marginalizada como o graffiti, o

converteriam supostamente na “tendência heré-

tica”, ou seja, naquele artista que visa entrar no

campo da produção erudita, ainda que, preser-

vando as referências de um aparato simbólico

urbano e popular. Uma das estratégias utilizadas

pelo artista para transformar a efemeridade de

suas ações em work in progress mais palatável

para ocupar os espaços institucionais é conver-

tê-las em registro audiovisual e fotográfico.

Assim, desenvolvendo estratégias diversas tanto Bands quanto vicente dão uma contribuição com base na dicotomia entre identidade e alteridade na construção ulterior de uma visualidade da pin-tura pós-moderna brasileira; afinal, é dessa diver-sidade que vivemos.

Mario bands, Símbolo do Descaso, 2013, site specific, intervenção urbana no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, RJ 180x 120cm

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114 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013

designações e usos cotidianos: a borracha, o lápis, a

pera, o sapato, etc. Nessa condição o objeto se esgo-

ta na referência de uso e de sentido. por contradição,

podemos estabelecer uma primeira definição do não

objeto: o não objeto não se esgota nas referências de

uso e sentido porque não se insere na condição de útil

e da designação verbal. (Gullar, Ferreira. teoria do não

objeto. Suplemento Dominical do Jornal do Brasil como

contribuição à II Exposição Neoconcreta realizada de

21-11 a 20-12-1960, no Rio de Janeiro.)

2 expressão comumente utilizada por autores da

sociologia no esforço de apreender os fenômenos

sociais do campo artístico. É recorrente em autores

como howard becker, por exemplo. (becker, howard.

Mundos artísticos e tipos sociais. In: Arte e socieda-

de: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro:

Zahar. 1977.)

3 a expressão faz referência a alguns aspectos con-ceituais extraídos da semiótica moderna e da teoria da informação a partir da leitura dos textos semió-tica abstrata, Estados estéticos e Teoria geral do re-pertório, in bense, Max. Pequena estética. São Paulo: Perspectiva. 1998.

4 o antropólogo jamaicano stuart hall tem como uma de suas principais contribuições para os estu-dos pós-coloniais o desenvolvimento do conceito de “identidades culturais na pós-modernidade”, que ele assim descreve: “O sujeito assume identida-des diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coeren-te. dentro de nós há identidades contraditórias, em-purrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.

(...) A identidade plenamente unificada, completa, se-gura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à me-dida que os sistemas de unificação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identi-dades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (Hall,

stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 1998:13.)

5 Técnica artística pautada no uso na perspectiva ilu-sória por mais de um ponto de fuga, amplamente utilizada e descrita no tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum (em dois volumes, 1693–1700) pu-blicado pelo padre jesuíta Andrea Pozzo, no século 17. O trompe-l’oeil foi uma das principais caracterís-ticas da pintura religiosa barroca do período.

6 O sociólogo Pierre Bourdieu assim esclarece a defi-nição da lógica de funcionamento do campo da pro-dução erudita: o campo da produção propriamen-te dito deriva sua estrutura específica da oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo da produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumen-tos de apropriação desses bens) objetivamente des-tinados (ao menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais (Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas, São Paulo: Pers-pectiva, 2005:105.)

7 a expressão faz referência à homônima compilação de contos do poeta Guillaume apollinaire, em que o termo flâneur é desenvolvido a partir das elaboração de contos que relatam as andanças e observações dessa espécie de andarilho boêmio das metrópoles, enaltecendo sua relação poética com as ruas.

Renata Gesomino é doutoranda na linha de pes-quisa de história e Crítica da arte pelo ppGaV- uFrJ. Mestre em história e Crítica da arte pelo pp-GaV-uFrJ. tem experiência na área de artes visuais com ênfase em pintura. atualmente produz textos e resenhas críticas exercendo a atividade como crí-tica de arte e curadora independente especializada em arte e política.

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115dossiê | Luísa Kiefer

espaço, teMpo e seus desdobraMentos na OBRA DE RAFAEL PAGATINI

Luísa Kiefer

...a nossa experiência diária parece mostrar que nos constituímos como

seres que se deslocam pela vida, com a única certeza da incerteza do

caminho, carregando em nossos corpos e memórias as marcas do tempo

e de tantos outros deslocamentos.

Pagatini1

Rafael Pagatini é artista, professor e pesquisador. Pensa e escreve sobre o seu fazer e sobre os meios e

suportes que utiliza com o cuidado que prepara as imagens para imprimir suas gravuras. podemos ler,

com igual poesia e fluência, um quadro ou um texto seu. Reflexão e produção andam juntas, se cons-

troem a partir do seu olhar e pensar nas séries Brumas (2009-2012), Passagem (2012) e Conversas com

a paisagem (2013).

Independentemente do suporte escolhido, xilogravura, retícula de furos sobre tela de linho, ou a cons-

trução de uma narrativa em forma de livro, a produção de Pagatini tem o mesmo ponto de partida: o

registro fotográfico de uma paisagem. Esse registro marca não uma escolha aleatória, mas um espaço

que encerra, no instante fotográfico, um período de tempo. Em quase todas as suas séries essa escolha

está ligada também a suas memórias e afetos, àquilo que carrega consigo em seu imaginário. A foto-

grafia, para ele, “carrega em seu interior a relação entre a perda e a permanência como seu principal

paradigma”.2 ou, ainda, “acompanhando as transformações e rupturas presentes no pensamento artís-

tico, a fotografia apresenta-se como meio largamente utilizado pelas possiblidades de aglutinar vastas

significações e reflexões na poética do artista”.3

A imagem capturada – carregada de significados inerentes – é, então, tratada no computador. Uma retí-

cula é aplicada sobre ela, como forma de aproximar o olho do resultado final desejado. O próximo passo

se desdobra nos diversos suportes ou diversas formas de marcar, de gravar uma imagem utilizados pelo

artista. a transposição do computador para o suporte dá forma às gravuras, que muitas vezes tocam o

espectador, em um primeiro momento, por sua manualidade.

Quando nos aproximamos de uma de suas obras, vemos primeiramente esse esforço manual: os entalhes

da madeira (série Brumas) ou os furos da tela (série Passagem). A retícula criada por Pagatini nos per-

mite formar uma imagem nítida à medida que nos afastamos da obra, desvelando-a. vemos o instante

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registrado pelo artista e podemos ser transporta-

dos para essa paisagem, que nos coloca diante da

reflexão sobre o tempo e o espaço. Nesse contex-

to, é importante compreender como a poética do

artista mistura-se à voz que narra e escreve; à voz

que observa e registra através da gravura; e, mais

especialmente, à voz de quem lê ou contempla

uma de suas obras e com a do próprio autor.

tempo e espaço

Formado em artes visuais pela universidade do

rio Grande do sul, em porto alegre, com mestra-

do em Poéticas visuais pela mesma universidade,

Pagatini atualmente é professor da Faculdade de

artes da universidade Federal do espírito santo.

É natural de Caxias do sul, cidade localizada na

serra Gaúcha. Cresceu muito próximo ao ofício do

pai, que era marceneiro. a familiaridade com o

material lhe rendeu a trajetória pela xilogravura,

que logo se expandiu para as outras formas de

gravar imagens.

Pagatini mudou-se para Porto Alegre a fim de cur-

sar a faculdade. desse momento em diante passou

a se deslocar com frequência entre as duas cidades.

Logo outros deslocamentos também passaram a

fazer parte de sua rotina. “esses deslocamentos,

para mim, sempre me colocaram em contato com

o pensamento de como estas paisagens denotam

uma memória, a partir do que acontece nesses

espaços”.4 Ao andar entre cidades e perceber as

paisagens que se transformam, o artista cria sua

própria memória e seu próprio imaginário. suas

impressões ficam marcadas sobre uma paisagem

que se transforma com o passar do tempo, da

mesma forma que nos transformamos, como se-

res humanos, com o passar desse mesmo tempo.

Estamos imersos no tempo, em algo que foge

à nossa compreensão, e com a certeza de que

nascemos e nos direcionamos para algo que

transcende a barreira da nossa reflexão. Ali nos

encontramos com a origem e com o regresso

ao nada, ao vazio, à ideia de que passamos

pelo mundo e vamos paulatinamente nos

transformando.5

Através da sua produção, Pagatini compartilha com o espectador seu trajeto interno, narra sua reflexão, nos presenteando com suas observações sobre o transcorrer do tempo, sobre a formação do imaginário e sobre o tempo interno do silêncio e do sentir.

Minha produção plástica se estrutura a partir de estampas xilográficas que possuem, em seus procedimentos e processos, um amálgama de relações que sugerem temporalidade e movimento. Mas de que forma isso se materializa no trabalho? Como uma imagem estática pode indicar a percepção de um deslocamento? Refletir sobre o tempo, mais do que apontar formas de ordenarmos o processo de criação, promove a própria constituição do trabalho.6

De acordo com o artista, é através de imagens que incitam processos de transformação que ele busca criar relações com a percepção do tempo. o espa-ço aparece como o lugar em que ele transcorre, em que podemos perceber sua passagem. O tem-po, apesar de intangível, está sempre presente. nossa existência se dá em um período dentro de um tempo que não temos como medir. a única forma de mensurá-lo é submetendo-o a uma deli-mitação, a um espaço, como o artista faz ao cap-turar em um instante fotográfico uma paisagem: “o tempo como movimento físico dos corpos e o tempo através da ideia de “instante” imaginativo, onde ocorre uma suspensão do movimento”.7

Então, como perceber esse tempo, como marcar,

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como registrar, como passar e assimilar as mudan-

ças que ocorrem interna e externamente? onde

ficam estes registros e que forma eles têm? Como

o tempo ocupa esse espaço de deslocamento? a

transformação da paisagem, para Pagatini, é uma

das demonstrações da passagem do tempo. bem

como é também a marca da ação do homem,

do desenvolvimento, da mudança trazida pelas

transformações sociais. esses questionamentos

aparecem em sua obra não de forma clara ou ex-

plícita, mas de forma poética, traduzidos em ima-

gens, impressões das percepções do artista, que

ao mesmo tempo em que olha para si, olha para

fora. procura o eu a partir do outro.

Deslocamento e silêncio

Na série Passagem, realizada em 2012, a janela

do ônibus marca o lugar de onde o artista captura

o momento. nos insere no cenário em que está a

imagem que marca o deslocamento, trazendo à

tona nossas próprias lembranças. Já em Brumas,

série composta por xilogravuras de diferentes

paisagens de Caxias do sul, pagatini utiliza ma-

deira de demolição de casas que eram parte do

cenário de seus deslocamentos.

Deslocar-se significa ir de um ponto a outro. Percor-

rer pequenas ou grandes distâncias. Mover-se. Car-

regamo-nos de um lugar para outro. registramos

na memória as diferentes vistas, as diferentes luzes,

os diferentes momentos em que estivemos com

aquela paisagem, que assim como nós, também

sofre a ação do tempo e recebe a ação do homem.

Pode-se observar uma casa que desapareceu,

dando lugar a uma nova construção, um campo

em que nasceram árvores, uma plantação que

está em época de colheita ou que já foi colhida,

uma estrada com seus diferentes contornos. as

cores das estações mudam a paisagem, e com ela

mudam as nossas percepções. deslocar-se pelo

espaço nada mais é – e não precisa ser – do que

um profundo exercício de observação do tempo e

desse espaço dentro do tempo.

O olhar do artista traduz a memória e a reflexão

interna diante do observado. A imagem impressa

marca um tempo específico. Registra, imprime,

transpõe um momento preciso do registro da me-

mória sobre aquele deslocamento, gravado para

sempre no instante da fotografia.

O ato de observar costuma ser silencioso. O silên-

cio é o estado em que, paradoxalmente, nos per-

mitimos, ou nos entregamos, ao barulho interno:

Observar e descobrir oferece a possibilidade

da solidão oportuna, de identificar o silêncio

Rafael Pagatini, detalhe da série Passagem, 2012

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primordial escondido entre os escombros do

cotidiano e de sentir alívio ao perceber o quanto

somos insignificantes perante o todo deste

mundo, e de como, durante o mesmo tempo,

ainda resta o tudo dessa insignificância.8

em Conversas com a paisagem, projeto realiza-

do no âmbito da Bolsa de Estímulo à Produção

artística da Funarte, pagatini se propôs a cruzar

o brasil nas mais diferentes direções, sempre de

ônibus. Um exercício de observar e ouvir, os ou-

tros e a si mesmo, em relação ao que encontraria

pelo caminho.

o projeto deu origem a um livro homônimo, com-

posto por fotografias e textos reflexivos sobre o

percurso. os registros feitos por pagatini são silen-

ciosos. Carregam um momento de contemplação

que apenas o silêncio permite.

nos textos que fazem parte do livro, pagatini

compartilha com o leitor ou espectador justa-

mente esse silêncio interno. e o faz com ge-

nerosidade e sinceridade raras. Como transpor

o pensamento mais íntimo? A reflexão mais

pessoal a respeito de um lugar, do passar do

tempo, de uma história, da transformação da

paisagem? Como traduzir em palavras essa voz

interna que apenas aparece quando estamos

em silêncio? e aparece apenas de nós para nós

mesmos? Logo na primeira página, o artista

capta o leitor com uma escrita do pensamento.

uma história que começa a ser narrada e que

podemos lê-la em voz baixa, como se fosse a

voz de nossa própria consciência, de nosso pró-

prio pensamento falando:

Da janela redescubro momentos esquecidos,

mas que por alguns instantes emergem de

algum local incerto e são revividos com toda

a intensidade. Ao mesmo tempo, pequenos

traumas ressurgem, sinto a doce e amarga ad-

miração que me sobrevém quando relembro

dos tempos da adolescência e de como estou

envelhecendo. Através da janela, observo lem-

branças e escuto todas as vozes surdas que

povoam meus pensamentos.9

rafael pagatini, Neblina, 2010, xilogravura, 200 x 70cm, ed. 6

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119dossiê | Luísa Kiefer

A obra de Pagatini nos leva a mergulhar no uni-

verso particular da intimidade do pensamento do

artista. No entanto, aos poucos, descobre-se que

a sensação de intimidade é causada por encon-

trar em suas reflexões esse espaço do outro. Um

outro, que sou eu, que também se desloca, que

também percebe, que também grava, que tam-

bém cresce e envelhece.

NOtAs

1 pagatini, rafael. Marcas e transposições da memó-ria: reflexões sobre procedimentos utilizando a gra-vura. dissertação (Mestrado) universidade Federal do rio Grande do sul.porto alegre, 2012.

2 Pagatini, Rafael. A fotografia como alegoria do ou-tro. Revista-Valise, porto alegre, ano 1, v.1, n.2, dez. 2011: 135.

3 Idem, ibidem: 140.

4 pagatini, rafael. Conversas com a paisagem. Vitó-ria: Edufes, 2013.

5 Pagatini, 2012, op. cit.: 38.

6 Pagatini, 2012, op. cit.: 32-33.

7 Pagatini, 2012, op. cit.: 37.

8 Pagatini, 2013, op. cit.

9 Pagatini, 2013, op. cit.

Luísa Kiefer é mestre em história, teoria e crítica

de arte pela universidade Federal do rio Grande do

Sul. Dedica-se a pesquisar sobre a figura do jovem

artista no sistema das artes. Formada em jornalis-

mo pela PUCRS, colaborou, entre 2008 e 2013,

com revistas e sites de cultura e artes, como Aplau-

so, Dasartes, Urbe e PEK. Em 2013, foi assistente de

curadoria da 9a bienal do Mercosul, porto alegre.

rafael pagatini, Conversas com a paisagem, 2013, percurso entre Gandu e vitória