de medeiros marcato

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O sujeito no documentário torna-se o sujeito do documentário: um estudo sobre a autobiografia em Santiago Tais de Medeiros Marcato Resumen: Na contemporaneidade com a valorização e o resgate da memória o surgimento do “eu” desloca o significado do “outro” que passa a ser o sujeito narrador em diversas áreas, como no cinema. Na ultima década do século XX, surge nos Estados Unidos um movimento chamado autoetnografia, em que os cineastas começam a falar de si, da sua condição. Mais do que se mostrar indiretamente no modo de estruturar o discurso, o documentarista documenta a si mesmo. É o seu outro. É o que documenta e o que está sendo documentado. O presente trabalho visa refletir sobre a autobiografia no documentário Santiago, problematizando a mudança de significado do deslocamento. Palabras clave: cinema, documentário, autobiografia, Santiago, Philippe Lejeune. O deslocamento do documentarista para um mundo diferente do seu a fim de contar a história do “outro” está na origem do documentário. Flaherty em Nanook, o esquimó (1922) retrata aquilo que é radicalmente diferente dele, a rotina de uma família esquimó. Com isso, ele inaugura o documentário e vai buscar aquilo que é dessemelhante, aquilo que é espetacular. Grierson, representante do cinema social inglês, filma os marginalizados na década de 1930, ou seja, o homem que está com fome, que está doente, que não tem casa. Assim os cineastas introduzem no documentário a representação daquilo que é diferente e espetacular ou miserável. Sempre há a ideia de uma viagem, de um deslocamento. O documentarista sai do seu mundo e vai para um outro contar a história que não é a dele. Sabemos que uma das características básicas do documentário é a de representar um fragmento do mundo histórico. O espaço documental é histórico e o realizador se situa como parte integrante desse mundo. Nesse sentido, “o ponto de partida do realizador está sempre referido a alguém, a um grupo de pessoas, instituição, a um lugar ou manifestação cultural” (YAKHNI, 2001, p.03). Um registro da singularidade do realizador na sua relação com o “outro” e com o mundo. Mas o que acontece quando o cineasta além de documentar o “outro” passa a falar de si, da sua condição, ser o que documenta e o que está sendo documentado, ser o seu “outro”? A crescente produção do documentário cinematográfico encontra um campo fértil nas biografias. Prova disso é o grande número de documentários biográficos e autobiográficos realizados nos últimos anos. O aumento dessa produção coincide com o crescimento das publicações literárias sobre o gênero. A edição de biografias cresceu 55% nos últimos anos da década passada, de acordo com o Catálogo Brasileiro de Publicações, da Editora Nobel. 1 Encontramos construções biográficas e autobiográficas em documentários nacionais tanto sobre personagens anônimos, quanto sobre pessoas famosas, este segundo com destaque para o grande número de produções sobre artistas da cena musical. Nesse cenário de documentários biográficos, podemos citar: Um certo Dorival Caymmi (1998), de Aluízio Didier, Passaporte Húngaro (2002), de Sandra Kogut, Estamira (2004), de Marcos Prado, A pessoa é para o que nasce (2004), de Roberto Berliner e Leonardo Domingues, Santiago (2007), de João Moreira Salles, Cartola – Música para os olhos (2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, Titãs: A vida 1 Fonte: DAMASCENO, Diana. Entre múltiplos eus: os espaços das complexidades. Tese de Doutorado em Letras. PUC- Rio. 1999. p. 97, apud PENA, Felipe. Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. 439

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  • O sujeito no documentrio torna-se o sujeito do documentrio: um estudo sobre a autobiografia em SantiagoTais de Medeiros Marcato

    Resumen:

    Na contemporaneidade com a valorizao e o resgate da memria o surgimento do eu desloca o significado

    do outro que passa a ser o sujeito narrador em diversas reas, como no cinema. Na ultima dcada do sculo XX, surge nos Estados Unidos um movimento chamado autoetnografia, em que os cineastas comeam a

    falar de si, da sua condio. Mais do que se mostrar indiretamente no modo de estruturar o discurso, o documentarista documenta a si mesmo. o seu outro. o que documenta e o que est sendo documentado. O presente trabalho visa refletir sobre a autobiografia no documentrio Santiago, problematizando a mudana de significado do deslocamento.

    Palabras clave: cinema, documentrio, autobiografia, Santiago, Philippe Lejeune.

    O deslocamento do documentarista para um mundo diferente do seu a fim de contar a histria do outro

    est na origem do documentrio. Flaherty em Nanook, o esquim (1922) retrata aquilo que radicalmente diferente dele, a rotina de uma famlia esquim. Com isso, ele inaugura o documentrio e vai buscar aquilo que dessemelhante, aquilo que espetacular. Grierson, representante do cinema social ingls, filma os

    marginalizados na dcada de 1930, ou seja, o homem que est com fome, que est doente, que no tem casa. Assim os cineastas introduzem no documentrio a representao daquilo que diferente e espetacular ou miservel. Sempre h a ideia de uma viagem, de um deslocamento. O documentarista sai do seu mundo e vai

    para um outro contar a histria que no a dele.Sabemos que uma das caractersticas bsicas do documentrio a de representar um fragmento do mundo

    histrico. O espao documental histrico e o realizador se situa como parte integrante desse mundo. Nesse sentido, o ponto de partida do realizador est sempre referido a algum, a um grupo de pessoas, instituio, a um lugar ou manifestao cultural (YAKHNI, 2001, p.03). Um registro da singularidade do realizador na sua relao com o outro e com o mundo. Mas o que acontece quando o cineasta alm de documentar o outro passa a falar de si, da sua condio, ser o que documenta e o que est sendo documentado, ser o seu outro?A crescente produo do documentrio cinematogrfico encontra um campo frtil nas biografias. Prova disso

    o grande nmero de documentrios biogrficos e autobiogrficos realizados nos ltimos anos. O aumento

    dessa produo coincide com o crescimento das publicaes literrias sobre o gnero. A edio de biografias

    cresceu 55% nos ltimos anos da dcada passada, de acordo com o Catlogo Brasileiro de Publicaes, da

    Editora Nobel.1

    Encontramos construes biogrficas e autobiogrficas em documentrios nacionais tanto sobre personagens

    annimos, quanto sobre pessoas famosas, este segundo com destaque para o grande nmero de produes sobre artistas da cena musical. Nesse cenrio de documentrios biogrficos, podemos citar: Um certo Dorival Caymmi (1998), de Aluzio Didier, Passaporte Hngaro (2002), de Sandra Kogut, Estamira (2004), de Marcos Prado, A pessoa para o que nasce (2004), de Roberto Berliner e Leonardo Domingues, Santiago (2007), de Joo Moreira Salles, Cartola Msica para os olhos (2007), de Lrio Ferreira e Hilton Lacerda, Tits: A vida

    1 Fonte: DAMASCENO, Diana. Entre mltiplos eus: os espaos das complexidades. Tese de Doutorado em Letras. PUC-Rio. 1999. p. 97, apud PENA, Felipe. Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

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  • at parece uma festa (2009), de Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves e Ktia (2012), de Karla Holanda e Elena (2012), de Petra Costa.As biografias permitem ao pblico uma viagem a outros contextos histricos e culturais atravs de um relato

    de uma vida em sua singularidade, um registro histrico da memria pessoal e coletiva de um indivduo. Mas nem sempre foi assim.At meados de 1980, verificamos o predomnio de uma abordagem geral nos documentrios brasileiros, onde o

    tema era tratado de forma abrangente pelos cineastas, com foco nas questes coletivas e os personagens como representantes de classes ou grupos sociais como se pode observar nos filmes Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), Maioria absoluta (Leon Hirszman, 1964) e Viramundo (Geraldo Sarno, 1965). Maioria Absoluta, por exemplo, retrata o cotidiano dos trabalhadores rurais analfabetos do Nordeste que vivem na extrema

    misria. O analfabeto sertanejo no tem uma histria individualizada, ele representa a massa homogeneizada na coletividade. nesse contexto que surge o tipo sociolgico, definido por Jean Claude Bernardet. Segundo o autor, esse

    tipo construdo a partir do mecanismo particular/geral, que justifica a presena do indivduo particularizado

    no filme somente a servio da representao de um modelo sociolgico.

    Para Karla Holanda, a primeira grande alterao desse panorama se d com Eduardo Coutinho. Ela acredita

    que a partir de Cabra marcado para morrer (1984) que o tratamento geral cede espao ao particular.

    Esse filme no s revela aspectos do regime militar institudo no Brasil em 1964 e as consequncias de suas aes impostas ao destino de muitos brasileiros, como tambm apresenta a histria de uma mulher brasileira chamada Elizabeth, viva de Joo Pedro, me de Abrao, que sofreu juntamente com sua famlia, as consequncias das aes desse regime, ou seja, um ponto de vista da histria por intermdio de uma abordagem particularizada. E essa particularizao vai alm, pois chega a ser igualmente a histria do prprio documentarista em busca de uma famlia dispersa em consequncia do mesmo regime (HOLANDA, 2006, p.3).

    Os assuntos do cotidiano substituem os grandes temas sociais e polticos. Privilegiam-se os modos de vida, as

    crenas pessoais, as relaes de parentesco e vizinhana.2

    Conforme Holanda (2006), a opo pela abordagem particularizada parece ser cada vez mais consciente entre os documentaristas brasileiros e sua presena percebida com mais nitidez. O documentarista Joo Moreira Salles defende a abordagem particularizada em sua obra por oferecer mais subsdios de interpretao para o

    espectador. Ao discorrer sobre a trajetria de sua carreira, iniciada com a srie China O imprio do centro (1987) e depois com Amrica (1989), diz:

    Vou me aproximando do Brasil aos poucos e ao mesmo tempo vou perdendo uma coisa que muito bom ter perdido: uma certa ambio desmesurada de explicar tudo. [...] Na medida em que vou caminhando, de alguma maneira eu vou me aproximando cada vez mais do meu pas. Depois do pas, da minha cidade. Depois da minha cidade, de alguns fenmenos isolados da minha cidade: a Igreja Evanglica, a violncia, etc e tal. Cada vez explicando menos... E quando voc explica menos voc faz coisas mais ambguas, mais polissmicas. Voc no est conduzindo o espectador pela mo e dizendo: olhe para isso, entenda dessa maneira, eu ofereo aqui a explicao (Cinemais. n. 25, mar./abr. 2000, p. 18 apudFnix Revista de Histria e Estudos Culturais. N. 1 (Jan.- Mar. de 2006). Vol. 3 Ano III).

    Joo Moreira Salles continuou se aproximando das histrias particularizadas e individuais e em 2007 finalizou

    Santiago, baseado na vida do mordomo da casa da sua famlia. As imagens foram rodadas em 1992, mas permaneceram intocadas por mais de 13 anos. Alm de contar a histria de Santiago, o diretor revela momentos

    da sua histria e da histria da sua famlia. Uma relao de memria se configura entre o personagem e o

    documentarista. Por trs do objetivo do cineasta em registrar e expor Santiago esconde-se um desejo de

    reviver suas lembranas. Ser o que documenta e o que est sendo documentado, ser o seu outro.

    Na contemporaneidade, com a valorizao e o resgate da memria, a afirmao do eu desloca o significado 2 Disponvel em: http://carmattos.com/2013/09/10/docs-uma-questao-de-foco.

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  • do outro que passa a ser o sujeito narrador em diversas reas, como no cinema. Para Rondelli e Herschmann

    (2000) a busca pelo resgate da memria e do passado pode representar uma compensao ao ritmo acelerado das mudanas; uma forma de resistncia dissoluo dos antigos modos de viver a experincia social. Dentre

    essas ncoras temporais, as que se apoiam no biogrfico, talvez, sejam as que chamam mais a ateno.

    Eles destacam a avidez pela leitura de biografias e autobiografias e a produo para as telas da TV e do cinema:

    Do mesmo modo, a televiso tem se exercitado na produo de documentrios e entrevistas que vo ao encontro de tal curiosidade, como tambm o cinema tem oferecido filmes sobre algum personagem real, cuja trajetria de vida se presta ficcionalizao na tela (RONDELLI & HERSCHMANN apud SCHMIDT, 2000, p. 281).

    Num momento em que as categorias responsveis pela relao de confiana que o indivduo estabelece com o

    mundo (religio, famlia, tradio cultural) esto em processo de enfraquecimento, outras categorias surgem para preencher esse vazio (REZENDE, 2009, p.54). Da emergem as narrativas de si como importantes modalidades de afirmao desse sujeito em crise, pertencente a um mundo edificado sobre a frmula do ser =

    aparecer, ou seja, em que para existirmos precisamos nos tornar visveis.

    A palavra autobiografia surgiu a partir do sculo 19, quando uma srie de fenmenos incentivou a leitura

    personalizante, que buscava, por detrs da variedade e dos desvios das manifestaes superficiais, o eu

    profundo do autor. Philippe Lejeune, autor que tem se dedicado, desde os anos 1970, ao estudo do gnero

    autobiogrfico em suas diversas formas, define a autobiografia como:

    Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focaliza sua histria individual, em particular a histria de sua personalidade (...) autor = narrador e autor = personagem, donde se deduz que narrador = personagem, mesmo se o narrador permanecer implcito(LEJEUNE, 2008, p. 15).

    Seria uma oportunidade ou uma desvantagem, para um texto, o fato de ser compreendido como autobiogrfico?

    Para Lejeune, o lado negativo seria um sinal de falta de imaginao, ausncia do gnio criador, narcisismo que

    no leva em conta a demanda e o prazer do leitor. J o sinal de autenticidade, profundidade e exigncia seria

    seu lado positivo. Pensando no cinema, como seria a autobiografia no documentrio?

    Para entender esses filmes em sua fora expressiva, necessrio tambm encar-los em conjunto e observar

    certas caractersticas compartilhadas por eles. A primeira e mais fundamental de todas a reunio dos papis de narrador, protagonista e diretor numa mesma pessoa (REZENDE, 2009). Alm disso, possvel notar o predomnio de umalinguagem subjetiva, a encenao como forma de reinventar a si mesmo, o uso do discurso em primeira pessoa, a narrao em off pessoalizada, a ironia e o humor, a utilizao de imagens de arquivo, dentre outros. Segundo Julieta Roitman, de uma forma geral, so filmes que trabalham com o risco e que

    colocam em evidncia o passado desses cineastas:

    () os dois riscos presentes nos documentrios subjetivos so, por um lado, a ameaa do narcisismo e, por outro lado, a do fracasso, trabalhando as impossibilidades como ponto de partida impossibilidade de se lembrar de tudo, de se representar, de lidar com suas perdas, de se encarar como personagem. O autor, para o bem ou para o mal, o centro de referncia e questo desses filmes, e se mostra a partir de sua prpria experincia de autorreflexo (ROITMAN, 2007, p. 13).

    Apesar desse trabalho comear com uma proposio terica para depois finalizar com a anlise de filme,

    o processo de pesquisa se deu justamente ao contrrio. Selecionei primeiramente o filme com o qual me

    interessei em trabalhar, para a partir dele buscar referncias em textos tericos. Foi ento que Santiago (2007), de Joo Moreira Salles, obra em que o cineasta alm de documentar o outro fala de si, me levou a querer

    compreender melhor duas questes neste documentrio. Primeiro, investigar a relao entre a dicotomia

    441

  • bigrafo/biografado e os limites da tica, medida em que envolvem pessoas prximas ou familiares em um

    filme biogrfico/autobiogrfico. A diferena no est em pensar o discurso do outro subordinado viso do

    diretor, pois isso se coloca em qualquer documentrio, mas sim em pensar esse outro como ente prximo,

    uma me, um irmo, um antigo mordomo, relaes em que o acesso histria dessas pessoas j estaria garantida de antemo, como parte do prprio passado do diretor. E segundo, identificar o modo de representao o qual

    o filme pertence, uma vez que alm da tematizao de si, o cineasta demonstra uma vontade de descoberta

    da vida do outro como forma de se relacionar consigo mesmo. Tomando como referncia a definio dos

    seis modos de representao estabelecidos pelo pesquisador Bill Nichols (2012) que funcionariam, a seu ver, como subgneros do gnero: potico, expositivo, participativo, observacional, reflexivo e performtico, para organizar as diversas formas de dizer do documentrio. importante ressaltar que o recorte proposto sobre a relao entre bigrafo/biografado e os limites da ticae o modo de representao muito especfico dentre os vrios caminhos possveis para se pensar a narrativa de si

    construda atravs de imagens e sons, uma vez considerada suas mltiplas vertentes e influncias.

    A relao entre bigrafo/biografado e os limites da tica

    O problema da tica nas produes literrias biogrficas surgiu no incio da crtica biogrfica, no final do sculo

    18. Desde ento, autores, crticos e cineastas se veem s voltas com a questo: que responsabilidade tm os

    cineastas pelos efeitos de seus atos na vida daqueles que so filmados? Quanto daquilo que foi investigado e

    consequentemente descoberto deveria ser tornado pblico? Ao selecionar as informaes como no falsear a realidade, correndo-se o risco de se criar um personagem distante da pessoa biografada?

    A construo de um personagem em uma biografia esbarra, necessariamente, na questo tica, como explica

    a pesquisadora Graziela Cruz:

    Diferentemente da fico, em um documentrio biogrfico, no qual se reconstri um personagem e uma vida real, a manipulao das imagens, o jogo de emoes, a exposio de sentimentos e pensamentos encontram o limite estabelecido pelo compromisso moral e tico que o cineasta tem com seus personagens, pessoas reais. A realizao de um documentrio sugere o registro de uma vida, como se ela acontecesse independentemente da presena da cmera (CRUZ, 2011, p. 23).

    Joo Moreira Salles enfatiza essa questo, afirmando que o peso da tica se avalia antes de tudo pelo fato

    to simples quanto evidente de que pessoas filmadas para um documentrio continuaro a viver suas vidas

    depois que o filme ficar pronto (DA-RIN, 2006, p. 7). Quando se trata de um filme biogrfico, que narra sobre

    algum que no est mais vivo, como Santiago, a questo tica assume outra dimenso, tambm delicada, pois

    o cineasta lida diretamente com a memria, com a herana de uma vida.O mordomo argentino trabalhou para a famlia Salles durante 30 anos, viveu na casa da Gvea, onde Joo

    Moreira Salles morou at os 20 anos e que hoje abriga o Instituto Moreira Salles. No sabemos como foi a

    relao entre bigrafo e biografado nesse perodo, mas no documentrio a relao de poder entre o filho do

    patro e o empregado explcita. O autoritarismo do diretor aflora no meio do filme quando manda Santiago

    repetir incansavelmente algumas frases, controlando todos os seus gestos. Esses excessos de controle talvez o

    impediram de capturar a essncia do personagem. Homem culto e viajado, Santiago costumava rezar em latim e vestia fraque para tocar Beethoven ao piano.

    poca da primeira filmagem, Santiago tinha 80 anos, estava aposentado e vivia sozinho em um pequeno

    apartamento no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. Dedicava-se a uma obsessiva pesquisa sobre as

    aristocracias de todo o mundo nas horas vagas, transcreveu 30 mil pginas de histrias da nobreza de todos os tempos pesquisadas em bibliotecas ao longo de mais de meio sculo. Uma tentativa quase insana de impedir

    442

  • que aquelas vidas desaparecessem da memria.Poliglota, ele anotava em lnguas diferentes os detalhes sobre

    as dinastias, como amores frustrados, assassinatos e compls. Entre os aristocratas histricos, Santiago tinha

    como preferidos os Mdicis de Florena, alm de uma simpatia especial por Lucrcia Brgia, que julgava

    injustiada pela fama de sanguinria que a acompanha nos livros de histria. Nesse sentido, o encontro do diretor no apenas com seu antigo mordomo, mas tambm com os escritos e com as histrias que ele conta.Apesar de assumir o papel de biografado, Santiago ao mergulhar em fatos, traos da personalidade, segredos

    revelados, palavras e imagens sobre a vida dos personagens da aristocracia, e transcrever para o papel as histrias que mais lhe interessam, acrescidas de comentrios prprios, est tambm exercendo a funo de

    bigrafo. O meio audiovisual utilizado pelo diretor, e o papel e a palavra escrita de Santiago definem a construo

    biogrfica a partir de diferentes suportes de linguagem que refletem suas formas de compreenso e entendimento

    com o mundo (HAAS, 2011).

    Por trs do objetivo de Joo Moreira Salles em registrar e expor seu singular personagem, esconde-se um

    desejo de reviver suas lembranas da infncia, da sua famlia. Santiago assim um conector que possibilita ao

    diretor essa jornada de autoconhecimento e de resgate do passado.

    Modos de representao

    A partir das definies de modos de representao estruturados por Nichols e da relao entre bigrafo/

    biografado estabelecida anteriormente, pode-se proceder anlise de Santiago. importante ressaltar que tais categorias estabelecidas por Nichols, no limitam a anlise do documentrio, apenas referenciam certas caractersticas que ajudam na compreenso das opes de narrativas e linguagem cinematogrfica adotadas

    pelo realizador. A identificao de um filme com determinado modo de representao no precisa ser total. Ele pode ser hbrido,

    mesclando dois ou mais modos. Uma caracterstica pode ser dominante, mas um documentrio participativo, por exemplo, pode conter trechos de tomadas observativas. Santiago caracteriza-se pelo hibridismo na composio dos modos de representao participativo, expositivo e reflexivo. participativo uma vez que o cineasta faz parte do filme e coloca em prtica uma ideia que vinha defendendo com afinco nos ltimos anos: a produo de documentrios no Brasil deve se voltar para temas prximos

    vida dos diretores e no apenas filmar o outro pobres, desvalidos, marginalizados. Como explica Nichols,

    os documentaristas tambm vo a campo; tambm eles vivem entre os outros e falam de sua experincia

    ou representam o que experimentaram. No entanto, a prtica da observao participativa no se tornou um

    paradigma (NICHOLS, 2012, p. 153). Alm do documentarista a claquete e os retakes tambm esto presentes, como na sequncia em que Santiago fala sobre seus escritos biogrficos, o relgio toca e Joo Moreira Salles

    manda que o antigo mordomo continue a falar sobre a histria das dinastias da nobreza:

    [Joo] - Fala, fala deles.[Santiago] - Paro el relgio? No s se paro el...[Joo] - No, no, fala deles.[Santiago] - Paro el relgio?[Joo] - No, no, deixa rolar...[Santiago] - Pero despus no vai tocar ms![Joo] - Vai, vai tocar... Pode ir.[Santiago] - Se no est filmando...[Joo] - A gente est filmando, vai! (SANTIAGO, 2007, 24min42s)

    O outro modo de representao presente o expositivo, evidente na estrutura escolhida pelo diretor de ter como 443

  • fio condutor a voz do narrador, ou melhor, a voz de Deus. Nichols comenta, o modo expositivo dirige-se

    ao espectador diretamente, com legendas ou vozes que propem uma perspectiva, expem um argumento ou

    recontam a histria (NICHOLS, 2012, p. 142).A narrao em primeira pessoa no feita pelo cineasta mas

    por seu irmo. Em todo o filme h uma alternncia entre a fala de Santiago e a do diretor. O filme no mostra

    depoimentos de amigos e familiares. No h lugar para opinies alheias, exceto as ideias do biografo e as do

    biografado. Quer dizer, mais as opinies do cineasta que as do antigo empregado. O nico momento em que

    Santiago demostra vontade de confessar algo a Joo, ele o corta. O mistrio permanecer indecifrado. Como

    admite o cineasta, ele nunca foi capaz de romper a relao entre patro e empregado que contaminou tambm a filmagem e impediu que se aprofundasse o retrato do ex-mordomo.

    Ao lado dos modos participativo e expositivo, o modo que predomina na no fico o reflexivo, pela principal razo de ser um filme que reflete a maneira de filmar um documentrio. O modo reflexivo o modo de

    representao mais consciente de si mesmo e aquele que mais se questiona (NICHOLS, 2012, p. 166). Joo

    Moreira Salles afirma, em entrevista disponvel nos extras do DVD, que um documentarista no faz filme

    para mudar o mundo, mas sim mudar o documentrio. O processo do filme passa a fazer parte dele e aparece,

    sobretudo, como uma autocrtica ao seu modo de conduzir o filme em 1992. Santiago alm de ser um filme que fala sobre a vida do antigo mordomo e a do diretor, fala sobre como pensar (ou no pensar) um documentrio. Como na sequncia da piscina:

    [Narrador] - Essa a piscina de minha casa. Fiz vrios planos iguais a esse. No terceiro deles, uma folha cai no fundo de quadro. Visto agora, treze anos depois, a folha me pareceu uma boa coincidncia. Mas quais as chances de, logo no take seguinte, outra folha cair no meio da piscina? E mais uma, exatamente no mesmo lugar? Neste dia ventava realmente? Ou a gua da piscina foi agitada por uma mo fora de quadro? Ter sido o vento que balanou esses cabides? Ser que nesse quadro encontramos mesmo essas cadeiras cobertas por um pano branco? [...] Hoje, treze anos depois, difcil saber at onde amos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita. Interferamos a ponto de maquiar o boxeador? De exagerar o seu suor? Assistindo ao material bruto, fica claro que tudo deve ser visto com uma certa desconfiana (SANTIAGO, 2007,

    40min15s).

    Em Santiago, nota-se a presena de distintas formas de organizao do material disponvel em um mesmo filme. Mais uma constatao de que no existem frmulas pr-estabelecidas para a realizao de um documentrio

    cinematogrfico, biogrfico ou no. So as possibilidades oferecidas por recursos tcnicos, aliadas s opes

    criativas do cineasta e suas escolhas estticas, que definem o filme, como uma apropriao subjetiva da

    representao do real.

    Consideraes finais

    A arte de construir uma biografia no cinema permite ao cineasta experimentar um mergulho em outra vida,

    com todas as suas faces e arestas, para reconstru-la e oferec-la ao pblico, para que este tea sua prpria

    construo. O escritor argentino Jorge Luis Borges, lembra que o cinema j foi chamado de bigrafo. Na recuperao

    etimolgica de um vocbulo j em desuso, Borgeschama a ateno para as potencialidades da stima arte; sua capacidade de criar biografias e reinventar vidas na tela. Assim, a cmera funciona como um instrumento

    visual de escritas de vidas, transpondo, para a tela, rememoraes, afetos e sentimentos.3

    Na contemporaneidade, numa poca em que se fala sobre a proliferao das narrativas de si, nos mais variados suportes, o documentrio autobiogrfico se distingue do clssico ao quebrar o paradigma de observar o outro.

    3 O ensaio El cinematgrafo, el bigrafo foi publicado em La Prensa, em abril de 1929, e considerado o primeiro texto de Borges dedicado ao cinema.

    444

  • Em Santiago, uma vez que o cineasta se constri como personagem a partir da histria do outro (dicotomia bigrafo/ biografado) e produz sua prpria biografia, atravs de modos distintos de representao,estabelece-

    seum transplantamento do contedo e da forma de se fazer documentrio, em que o sujeito no documentrio torna-se o sujeito do documentrio.

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    Dissertao de Mestrado UNICAMP.

    Artigos consultados em site

    FUX, Jacques. As muitas artes de Santiago, de Joo Moreira Sales. In: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/viewFile/2175-7917.2012v17n1p156/22488 - Acesso em 10/10/2013.

    HASS, Guilherme Volkmann. Representaes de memria: a linguagem como ausncia em Santiago. In: http://www.razonypalabra.org.mx/N/N74/VARIA74/14VolkmannV74.pdf Acesso em 15/10/2013.

    Outras fontes

    Anotaes realizadas em sala de aula, durante a disciplina Estudos Avanados de imagem e som: histria e teoria, ministrada pelo Prof. Dr. Lus Alberto Rocha Melo, do Curso de Ps-Graduao em Artes, Cultura e linguagem da Universidade Federal de Juiz de Fora, de 03 de maio a 24 de julho de 2013.

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