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De duplos e estereoscópios: paralelismo e personificação nos cantos xamanísticos ameríndios * Pedro de Niemeyer Cesarino Pedro de Niemeyer Cesarino é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional UFRJ. E-mail: <[email protected] > RESUMO Este artigo apresenta um estudo de exemplares das artes verbais xamanísticas, em sua maioria provenientes da América do Sul, a partir de suas estruturações paralelísticas, isto é, dos efeitos de repetição e justaposição de imagens e versos. Pretende-se não apenas realizar uma revisão bibliográfica do assunto, mas também relacionar o fenômeno da repetição verbal em cantos e narrativas a certas considerações atuais da etnologia americanista, tais como as dinâmicas de personificação, agência sociocósmica e predação. O artigo pretende ainda oferecer pistas e contribuições para o estudo das estéticas transformacionais ameríndias a partir de uma análise comparativa sobre traços específicos da oralidade em performance ritual. Palavras-chave: Xamanismo, Oralidade, Paralelismo, Personificação, Poética ABSTRACT This article is a study of various examples of the shamanic verbal arts, the majority taken from South America. It takes as its starting point their parallelistic constructions – that is, the effects produced by repeating and juxtaposing images and verses. As well as providing a bibliographic survey of the topic, it also explores the relationship between the phenomenon of verbal repetition in chants and narratives, and various contemporary issues in Americanist anthropology, such as the dynamics of personification, sociocosmic agency and predation. The study also proposes a number of new

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De duplos e estereoscpios: paralelismo e personificao nos cantos xamansticos amerndios*

Pedro de Niemeyer CesarinoPedro de Niemeyer Cesarino doutorando no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional UFRJ. E-mail:

RESUMOEste artigo apresenta um estudo de exemplares das artes verbais xamansticas, em sua maioria provenientes da Amrica do Sul, a partir de suas estruturaes paralelsticas, isto , dos efeitos de repetio e justaposio de imagens e versos. Pretende-se no apenas realizar uma reviso bibliogrfica do assunto, mas tambm relacionar o fenmeno da repetio verbal em cantos e narrativas a certas consideraes atuais da etnologia americanista, tais como as dinmicas de personificao, agncia sociocsmica e predao. O artigo pretende ainda oferecer pistas e contribuies para o estudo das estticas transformacionais amerndias a partir de uma anlise comparativa sobre traos especficos da oralidade em performance ritual.

Palavras-chave:Xamanismo, Oralidade, Paralelismo, Personificao, Potica

ABSTRACTThis article is a study of various examples of the shamanic verbal arts, the majority taken from South America. It takes as its starting point their parallelistic constructions that is, the effects produced by repeating and juxtaposing images and verses. As well as providing a bibliographic survey of the topic, it also explores the relationship between the phenomenon of verbal repetition in chants and narratives, and various contemporary issues in Americanist anthropology, such as the dynamics of personification, sociocosmic agency and predation. The study also proposes a number of new directions in the study of Amerindian transformational aesthetics, based on the comparative analysis of specific traits of orality in ritual performance.

Key words:Shamanism, Orality, Parallelism, Personification, Poetics

Este um estudo sobre exemplares de artes verbais amerndias relacionados a dinmicas xamansticas provenientes principalmente da Amrica do Sul. De cantos e narrativas sero aqui enfocadas suas estruturaes paralelsticas, no exatamente via uma anlise dos traos formais, estilsticos ou retricos, mas sim de suas implicaes conceituais para a compreenso dos papis da reiterao, da justaposio e da repetio, envolvidas em relaes personificantes. Revisando algo do que tem sido dito sobre o paralelismo em tradies orais, o presente artigo dialoga tambm com certas consideraes recentes da etnologia americanista (como a noo de pessoa e de predao), e encaminha uma via possvel de estudo do paralelismo nas estticas transformacionais xamansticas.

Ver e ouvir dizerConsiderado por autores diversos, como Finnegan (1992), Zumthor (1983) e Lord (1985), como recurso essencial mnemotcnica, ao estilo e ao modo de composio em performance oral, o paralelismo encontra em certos estudos de Jakobson (1970; 1985) algumas de suas reflexes mais fundamentais. Revendo a vasta bibliografia dedicada antiga poesia chinesa, ao folclore russo e altaico, bem como aoparallelismus membrorumdos textos bblicos, o lingista ultrapassava diversos dos pressupostos e preconceitos outrora atribudos s repeties verbais. Suas investigaes sobreparalelismus membrorumisto , sobre o desdobramento de um s pensamento em dois membros paralelos do mesmo verso ou estrofe levavam-no idia de que a reiterao no apenas extrapola o limite dos versos isolados, como tambm o das prprias palavras. Assim dizia, citando Herder:

Herder atacou resolutamente a idia, bastante repetida, de que "o paralelismo montono e representa uma contnua tautologia" [] A sucinta resposta de Herder "Nunca viu uma dana?" seguida de uma comparao da poesia hebraica com uma dana, transferiu o paralelismo gramatical da classe da debilidade congnita e de seus remdios categoria apropriada do procedimento potico intencional (Jakobson 1985:287).

Por seus jogos de variao, recombinao e justaposio de temas, frmulas e padres, o paralelismo no deixa de se mostrar presente em reas to diversas como a dana, a msica, o cinema e mesmo na prpria dinmica transformacional dos mitos, como tanto se observa nasMitolgicasde Lvi-Strauss. Considerando o paralelismo a partir dos princpios de semelhana e contigidade, Jakobson, vale lembrar, unificava a compreenso dos nveis sintticos e semnticos da reiterao em sua noo deparalelismo gramatical(Fox 1977:70). No mais visto como uma expresso das "redundantes mentes primitivas" encarceradas na repetio, mas sim como essncia mesma do artifcio potico, o paralelismo engendra a "figura de gramtica" de que falava Gerard Manley Hopkins. Ultrapassando a idia do verso isolado, Jakobson o inseria no "ambiente verbal prximo e distante" e em sua "rede de mltiplas afinidades vinculantes" (Jakobson 1985:294): a repetio paralelstica, j dizia Sapir, mobiliza duas sentenas justapostas que nada mais so do que uma e a mesma, "diferindo apenas pelo revestimento material" (citado por Jakobson 1970:69). A viso binocular criada pela sobreposio de duas imagens, assim como a prpria sensao estereoscpica fornecida por tal justaposio, conduzia Jakobson a aproximaes com a montagem cinematogrfica. Bem a propsito, dizia o autor:

a justaposio de conceitos gramaticais contrastantes pode ser comparada ao chamado corte dinmico, um tipo de corte em que, na definio de Spottiswoode, por exemplo, a justaposio de tomadas ou seqncias contrastantes utilizada para suscitar idias na mente do espectador, idias estas que no so veiculadas por cada tomada ou seqncia em si (Jakobson 1970:74).

Artes verbais amerndias em especial as relacionadas ao xamanismo em muito utilizam tal princpio: cada linha nada mais do que fragmento de uma imagem maior em que vemos a pessoa do cantador se deslocar por posies outras do cosmos. Analisando um canto dos Nenets siberianos, coletado em meados do sculo XIX, Simoncsics (1978) observou a estarem o paralelismo e a forma musical a servio "dos propsitos davisualizao, e no danarrao", pois "embora o encantamento seja sobre uma viagem, a viagem do xam, ele no narra a viagem, mas antes a visualiza" via a estrutura paralelstica que o compe (Simoncsics 1978:402). Muito embora no pensemos ser tal apelo visual um critrio suficiente para a aproximao dos cantos xamansticos1a alguma espcie de lrica, como sugeria Simoncsics (1978:402), os paralelismos e as montagens parecem de fato prestar-se visualizao dos eventos paralelos que a pessoa cindida do xam/cantador experiencia. Partido entre o que constantemente traduzimos por seu aspecto corporal e seu(s) outro(s) aspecto(s), almas, duplos ou princpios vitais, o locutor de cantos xamansticos freqentemente relata, reporta e torna visveis seus trajetos, visitas, dilogos e sobreposies a mirades de subjetividades ou pontos de vista (Viveiros de Castro 2002b).

Se aqui comentamos o paralelismo, no o fazemos para encontrar mais um caso particular de fenmenos gerais da oralidade: a inquietao de Jullien a respeito do paralelismo na China , de certa forma, tambm a nossa para o caso amerndio. "Ao ler Tu Fu", escreve Jullien (1989:8), "o sinlogo nutre o sentimento de que o emparelhamento a funciona de modo distinto do que alhures", a despeito da "vocao generalista que os lingistas exercem com mais comodidade do que outros". Mas ser isso, segue o autor, uma "queda, pela estreiteza da especializao, nas iluses de uma especificidade?"(Jullien 1989:8). Se na China (mas tambm nas Amricas) o paralelismo um procedimento textual (Jullien 1989:9), nem por isso ao texto se reduz2. Na China "existe um elo essencial entre, por um lado, a lgica do emparelhamento e, por outro [...], os efeitos do paralelismo que caracterizam a sua expresso" (Jullien 1989b:50). justamente "o jogo do paralelismo no seio do texto que permite articular a dualidade", por exemplo, da relao entreyineyang,caracterstica de fenmenos como a adivinhao, a poesia escrita, a filosofia e as especulaes cosmolgicas.

Definir tecnicamente o paralelismo por exemplo, do modo proposto por Finnegan (1992:98), como "uma espcie de repetio (em geral em um padro binrio) na qual um elemento trocado e o outro (em geral a prpria estrutura sinttica) permanece constante" no deve, portanto, nos fazer desviar de nossa questo: nos discursos xamansticos, o paralelismo est a servio de que configurao (cosmoprtica) dos fenmenos de repetio e justaposio? Ao se utilizar disso que concebemos como um recurso lingstico (o paralelismo), de que podem estar falando as poticas xamansticas? A seguinte constatao de Walton sobre os Navajo significativa: "de fato, a composio dos cantos Navajo muito similar aos seus velhos cobertores, nos quais a linha colorida de uma de suas extremidades equilibra a linha do outro extremo, em geral da mesma cor" (citado por Finnegan 1992:100).

Diversas so as formas de paralelismo observveis nas verses escritas de cantos e narrativas com que trabalharemos aqui: o paralelismo interno aos prprios constituintes de um verso ou uma sentena (chamado de "microparalelismo"); a "oposio de dois termos colocados no seio de uma estrutura repetida identicamente" (Becquelin-Monod 1986:8), como no caso dos dsticos Maya; a repetio exaustiva de versos idnticos (como no caso Palikur [Miranda 2005:165] ou Ojibwa [Severi 2004:179]) na qual, quando muito, uma palavra apenas varia em algum instante da composio; a ligao entre linhas ou versos por meio de um elo (chain paralellism, nos termos de Finnegan [1992])3, entre diversas outras variaes de linhas dentro de estrofes (quando as h), de estrofes entre si e destas estrofes e linhas dentro de blocos que, tambm articulados em relaes de variao e repetio, constituem o que chamamos de "macroparalelismo".

comum que a posio de tais blocos, versos e estrofes seja recombinada pelo cantador em performance, tendo em vista no apenas a rpida composio imediata do canto via um procedimento mnemotcnico, como a demarcao de um regime especial de enunciao (a separao entre o discurso ordinrio e ritual4) e, veremos aqui, tambm o uso propriamente agentivo das repeties e das variaes, como no caso dos cantos de cura. A diversidade dos paralelismos (bem como sua tradutibilidade entre diversos domnios semiticos) pode assim ser compreendida como fruto de uma "alternncia entre variao e constncia", como recentemente definiu Severi (2004:146) ao aliar o estudo de cantos xamansticos s tradies pictogrficas amerndias, compreendidas pelo autor como uma mnemotcnica figurada (Severi 2004:184) reveladora, diga-se de passagem, docarter visualdo paralelismo, cujo sentido para a agncia ritual xamanstica estamos perseguindo.

O cantosmbadabtssiberiano de que falvamos antes encaminhar nosso ponto. Tal canto, dizamos, no uma narrativa mtica: a descrio das viagens do xam (tadyebya) no nos fala de um passado remoto rememorado pela narrao. Tratando das aes realizadas "alhures" pelo xam, na tentativa de solucionar "aqui" um parto difcil, o canto justape dilogos e imagens de suas visitas, via uma estruturao paralelstica repleta de inverses e simetrias que "no se presta apenas a conectar duas linhas ou sintagmas, desempenhando tambm um papel decisivo na construo da composio lingstica como um todo" (Simoncsics 1978:388-390). No apenas de tal composio, diramos, mas tambm dacenapor ela veiculada. o que nos mostra o seguinte fragmento, em que vemos o cantador dialogar com entes outros, bem como estancar certo rio de sangue:

(Simoncsics 1978:388-389)5Vemos a como a oscilao dos pronomes pessoais (ns oculto nos versos 12 e 13, eu nos versos 31 e 32) indica estar o cantador em companhia de gentes outras, em um trajeto visualizado pelo encadeamento das imagens. Tal economia discursiva e imagtica de artes verbais xamansticas, vale frisar, no a doouvir dizernarrativo, mas a daevidncia diretadas aes excorporadas do cantador (Taylor 1993; Viveiros de Castro 1986; Cesarino 2003): se, nas narrativas, a visualizao encontra-se subsumida pela autoridade mediatizada de algum narrador, nos cantos parece ocorrer o contrrio. antes a prpria visualizao que transmite a evidncia e constitui a fonte primeira de carga epistmica da palavra que se quer verdadeira, no por remeter sua competncia a uma fonte ancestral, mas por ser justamente o prprio locutor a autoridade e a fonte imediata do que comunica, bem como o depositrio das expectativas de eficcia de seus feitos6.

Tomemos o exemplo dasakinh ekugu, as "histrias verdadeiras" dos Kuikuro do alto Xingu (Franchetto 2002a). A dinmica das enunciaes, das reiteraes e das montagens de blocos a encontrada parece ser de outra natureza que a envolvida no uso do paralelismo em cantos ligados a prticas xamansticas. Os Kuikuro utilizam o termootohongo o mesmo-outro, ou o outro-mesmo (Franchetto 2002a:30) para definir a duplicidade produtora da derivao, da sinonmia e da repetio paralelstica de suas narrativas (Franchetto 2002a:3). Alm de encontrada na prpria estrutura gramatical da lngua, tal repetio evidencia tambm a lgica dos duplos ttulos dasakinh: a de que extramos um curto fragmento recebe, por exemplo, o nome aruakJamugikumalu("hiper-fmeas") e karibito kweg etinkipg("transformadas em hiper-fmeas"). Por meio de complexas combinaes da estrutura macro (entre grandes blocos ou cenas da narrao) e microparalelstica (interna aos blocos), aakinhnarra as relaes diferenciais entre os seresekugue os seres "hiper", ositseke(Franchetto 2002a:15). A articulao dos blocos promove, nota Franchetto, "umcrescendodramtico" (Franchetto 2002a:15) que enfatiza a transformao dos homens distantes que esto da aldeia em virtude de uma expedio de caa em seresitseke,"hiper queixadas" no caso. Os blocos macroparalelsticos da metamorfose masculina so colocados em oposio aos blocos macroparalelsticos da metamorfose das mulheres, que aguardam na aldeia pelo retorno dos homens. Ao descobrirem que seus maridos esto se transformando alhures emitseke,as mulheres transformam-se elas prprias em hiper-fmeas. No mito, o jovem Kamatahigagi assim se dirigia sua me, relatando a transformao dos homens por ele testemunhada:

A disposio paralelstica, observa Franchetto, no a gratuita e muito menos redundante: antes oferece "salincia cognitiva" ao contedo de rito e mito, bem como ao antagonismo cosmolgico entre os gneros, que evidenciado na narrativa pela relao meta-paralelstica entre os blocos de metamorfoses (Franchetto 2002a:20). Em cantos voltados para a agncia xamanstica, porm, tal "salincia cognitiva" desencadeada por montagens de eventos est a servio de outros fins que aqueles envolvidos na economia discursiva das narrativas. Os cantos relacionados agncia ritual veiculam no arememoraoe amediaoque constituem o evento narrativo, mas aao imediatae atual da pessoa mltipla do cantador/especialista. Casos diversos existem, evidentemente, em que narrativas e cantos xamansticos se entrecruzam8; mais ainda, as ditas narraes "mticas" no apenas desenvolvem situaes propriamente "xamansticas" (como no caso das transformaes acima descritas pelaakinh), como o fazem de modo performativo (donde a compreenso do narrar como umevento, de acordo com o que diremos mais abaixo). Ainda assim, as performances xamansticas mobilizam a reiterao e o prolongamento de imagens (semelhantes s que encontramos, por exemplo, nasakinhKuikuro) de modo a salientar o carter imediato, a agncia e a necessidade de eficcia em face das situaes visualizadas, nas quais o ponto de vista do locutor est em relao direta com os participantes dos eventos (isto , as pessoas/interlocutoras outras [mortos, divindades ou espritos], freqentemente entrelaadas complexas metafricas e embutimentos enunciativos). Os cantoshuni mukados Kaxinaw (Guimares 2002:212-ss.) em muito ilustram tais especificidades do paralelismo mobilizado por artes verbais ligadas a prticas xamansticas. Referentes aos usos e aos rituais donixi pae(ou ayahuasca [Banisteriopsis caapi]), oshuni mukaso propriamentecaminhos. Osdami, suas imagens, representaes ou transformaes visionrias so os caminhos (bai) abertos pelonixi paecapazes de colocarem o cantador em relao aosyuxin("espritos") ali presentes, ou ao "povo donixi pae", aqueles que realmente compreendem as palavras especiais do canto composto na lngua dos antigos (shenipabu htxa). Ohuni mukasobrepe/comunica ohuni,a pessoa que canta, aYube,a sucuri ancestral hipstase do cip, bem como o prprio cip-homem (pois a ayahuasca uma pessoa para os Kaxinaw e tantos outros povos amaznicos).

Longos e reiterativos, tais cantos possuem um tom recitativo e uma curva meldica pouco acentuada; perto de seu fim, tendem a "adquirir um ritmo vertiginoso de elocuo, reforado pelostaccatodas slabas regulares e pelo carter reiterativo dos versos" (Guimares 2002:211). Acompanhados de estribilhos, oshuni mukaso dotados de uma cadncia encantatria, cujo ritmo "serve como um dinamizador das imagens que vo sendo impulsionadas parattica e paralelisticamente, em uma montagem que oscila, dialeticamente, entre a quebra e a continuidade" (Guimares 2002:214-215). Seus estribilhos dizem muito tambm da sinestesia, outra caracterstica notvel de certas imagticas xamansticas9:

Cada som [do estribilho] tem uma luz diferente, uma luz ou ento daquelas foras. Tem vrias luzes, cores: azul, vermelho, brilhoso. E tem vrios nomes de cip diferente: baka, pati, shawa, shane [...] o pati verde, bem macio; o baka bem leve e brilhoso, branco como escama de peixe; shawa daqueles vermelhos, tipo sangue quando pega mesmo, voc v sangue igual chuva; tem shane que azul, um pssaro bem azul. Cada cip tem sua cor e suas msicas (Norberto Sales Tene citado por Guimares 2002:211-212).

Na msica dohuni muka,o cantador joga com um conjunto razoavelmente fixo de versos, combinando "indefinidamente e com grande liberdade seqncias inteiras do canto, alternando versos e repetindo-os ao sabor da sua ou dealheia inspirao" (Guimares 2002:214). Um esquema de tal combinao apresentado abaixo, acompanhando o original emshenipabu htxa(a lngua dos antigos), a fim de esclarecer ao leitor algo do jogo das reiteraes e das estruturas paralelsticas dos versos, estrofes e cenas em questo (Guimares 2002:216-217)10.

(1) Na mo imensa da ona(2) A fora moendo moendo(3) O corpo inteiro seguindo(4) O homem lenho estalando(5) Sobre ti, agora, caindo(6) O homem lenho rachando(7) Fasca quente chegando(8) Fasca quente chegando(9) O homem gomo esticado(10) Esticado o talo nascendo(11) O homem gomo esticado(12) Esticado o talo nascendo(13) O corpo inteiro seguindo(14) Na mo imensa da ona(15) A fora moendo moendo(16) O homem lenho estalando(17) Sobre ti, agora, caindo(18) Fasca quente chegando(19) O homem lenho rachando(20) Sobre ti, agora, caindo(21) O homem gomo esticado(22) Esticado o talo nascendo(23) Com o encanto guardado(24) Jibia ba de encantos(25) Jibia ba de encantos(26) Jibia branca fez de ponte(27) Jibia branca cara a cara(28) Jibia branca cara a cara(29) Jibia branca fez de ponte(30) Com ela parada no meio(31) Parada dentro da passagem(32) Com ela parada no meio(33) Gameleira cheia de frutas(34) Zoando levou embora(35) Nuvem de curica branca(36) Com ela parada no meio(37) Gameleira cheia de frutas(38) Nuvem de curica branca(39) Zoando levou embora(40) Paxiba cheia de frutas(41) Nuvem de queixada branca(42)Tan-tanqueixo batendo(43) Paxiba cheia de frutas(44) Nuvem de queixada branca(45)Tantanqueixo batendo(46) O cacho apoiado no esteio(47) Ouvindo primeiro subindo(48) O cacho apoiado no esteio(49) Ouvindo primeiro subindo(50) Jabuti esticando a lngua(51) Ouvindo primeiro subindo(52) Com ela parada no meio(53) Jibia ba de encantos(54) Jibia branca fez de ponte(55) Jibia branca cara a cara(56) Com ela parada no meio(57) Jibia ba de encantos(58) Jibia branca fez de ponte(59) Jibia branca cara a cara(60) Ouvindo primeiro subindo(61) O cacho apoiado no esteio

O canto justape e recombina as unidades verbais at criar o efeito da cena total trazida pelonixi pae. A sobreposio da pessoa do cantador do cip-gente, bem como o encontro subseqente comYubee osyuxin("espritos", "almas", "pessoas outras") deixam suas marcas na estrutura do canto, acima dividido segundo as unidades consagradas por Hymes (1992) em seu estudo das narrativas chinook. So elas aslinhas(cujas palavras esto acima indicadas por letras e numerais minsculos), asestrofes(indicadas em letras maisculas e numerais) e ascenas(em algarismos romanos). A primeira cena11(compreendendo as estrofes A1, A2, B1, B2, B3) aquela em que se visualiza a condio ambivalente dohuni, como nos diz a prpria expresso "huni karu" (linha 4), ao justapor "lenha (karu) do cip/homem" a "lenha do homem". Sobrepondo o preparo da bebida alucingena "ao preparo dos prprios homens, [convertidos em] lenha moda, sovada, e que acaba revelando o ncleo ou gomo onde guarda sua fora" (Guimares 2002:218), a cena inicial do canto mostra ohunideslocado pelanixi pae. Assim tomado pela experincia visionria pelos passeios do aspecto excorporado de sua pessoa, de sua "alma do olho", obedu yuxin(Kensinger 1995; Lagrou 1998) ohuni levado a posies outras: os desenhos ou padres (kene) que iniciam a experincia donixi paese convertem aos poucos emYube, dona de todos os padres e tambm xam primordial, que em seguida devorar a pessoa.

Entramos ento na cena II (estrofes C1, C2, D1, D2, E1, E2, F1, F2), na qual o canto justape a visualizao deYube dosyuxin(os "espritos" ou as "pessoas" donixi pae) caracterizados pela cor branca (hushu). So eles a prpriayube hushu,otxere hushu(o pssaro curica branca, que a forma adquirida pelobedu yuxinao se desgarrar da pessoa em estados limiares) eyawa hushu(a queixada branca). O que mostra, portanto, estehuni muka? A combinao de imagens, o efeito estereoscpico da sobreposio de cenas, nota Guimares (2002:222), compem "uma imagem do prprio esprito do olho em sua viagem pelos caminhos da mirao". Imagem, porm, que corresponde experinciaimediatado cantador/locutor, isto , de seubedu yuxin, e no experinciamediatizadade ouvintes submetidos a transmisses narrativas como a dasakinhxinguanas: as queixadas-itsekeda narrativaJamugikumalu, presentes na virtualidade memorial do mito, no so as mesmas que as queixadas-yuxindeste canto Kaxinaw, presentesenquanto taispara a alma do olho.

Observemos que a diviso em estrofes e cenas acima sugerida, se segue o modelo de Hymes apenas a ttulo ilustrativo, no deve deixar de ser acompanhada de uma ressalva feita por Tedlock (1983) em seu estudo sobre narrativas Zui e Quich: o arranjo das unidades do canto no instante da performance visualiza algo mais afim a umaao dramtica(como, alis, bem notou Franchetto para asakinhKuikuro) do que rgida estruturao das formas. Pois a "poesia" a presente, acompanhando Tedlock e o poeta Charles Olson 1997 [1950], deve ser compreendida para alm da limitao do verso ao discurso mtrico, a fim de consider-lo enquanto instnciaabertaouprojetivacapaz de comportar toda a carga do drama e das possibilidades da respirao: cantos comoeventos,portanto, se vale a aproximao com certa poesia contempornea ocidental. Eventos ouarenasque, no entanto, nada dizem de um sujeito lrico ou da criao artstica auto-centrada, mas sim das aes e das experincias de cantadores que tm sua pessoa partida em mltiplos aspectos (tais como obedu yuxindos Kaxinaw), e assim submetidas s variaes posicionais do visvel e do invisvel (Viveiros de Castro 1986; 2002b). O que a imagtica de cantos como ohuni mukanos traz justamente aquilo que apenas cantadorescindidosem sua pessoa podem ver: o que o mitonarrae rememora do invisvel, cantos tais como oshuni muka, por sua vez,mostram(eagemsobre).

Duplos e trajetosO efeito estereoscpico aqui examinado muito diz sobre o rendimento especial que a repetio e a ambivalncia visual recebem nas cosmologias xamansticas. Nosso caso, entretanto, no parece se esgotar nos modos pelos quais o paralelismo tem sido compreendido, seja por sua funo mnemotcnica, por suas estratgias de captura da ateno da audincia, ou mesmo por seu papel na categorizao do mundo social (Lord 1985; Becquelin-Monod 1986; Sherzer 1983; Urban & Sherzer 1988; Boyer 1990; Severi 1996). As estticas xamansticas, "seqestrando" as variaes e as reiteraes para diversas de suas expresses (mitologias, grafismos, artes verbais, coreografias, entre tantas outras), as fazem reverberar nos dilemas agentivos, cosmoprticos e relacionais em que se encontram envolvidos os cantadores.

O "xamanismo" aqui considerado, unindo contextos etnogrficos e histricos distintos (como no caso de exemplos amaznicos e meso-americanos), refere-se s dinmicastransformacionais, entendidas como ponto possvel de comparao das expresses estticas relacionadas s cosmologias perspectivas e suas pessoas partidas entre mltiplos aspectos (ver Viveiros de Castro 2002a, 2002b; Gow 2001). Assim sendo, cantos como osmarakArawet (Viveiros de Castro 2002b), referentes ao complexo do homicdio guerreiro (e apenas aparentemente afastados do xamanismo), so tambm significativos. No pequenomarakaabaixo citado,vemoso matador (moropn) Arawet cantar/reportar o ponto de vista do esprito de um inimigo Parakan morto via uma imagtica que alude ao estado putrefato do cadver. Canta a, dessa forma, um outro: "durante a dana que encerra a recluso domoropne celebra a morte do inimigo, o esprito deste dito postar-se imediatamente s costas do matador, que tambm o cantador da cerimnia. O inimigo", segue Viveiros de Castro, " seu professor de canto (marak memoo-h), soprando-lhe ao ouvido as palavras da cano que ele deve proferir" (Viveiros de Castro 2002b:274). No apenas os versos se engajam em elos paralelos, mas as prprias pessoas do matador e de seu inimigo encontram-se justapostas, como assinala o emprego polifnico da primeira pessoa do plural inclusivo no ltimo verso (Viveiros de Castro 1986:589):

(1)Npa araman(2)Araman ika-ika(3)Npa mam(4)ane woko reEis estes besouros-aramanOsaramandependurados,Eis estas mamangabas,Pendentes de nossos longos cabelos.

Outrosso assim no apenas inimigos colados s costas do homicida, mas tambmos prprios cantadoresde exemplares tais como ohuni mukaKaxinaw ou o canto Nenets: uma coisa o corpo/suporte vocal queaquicanta, outra coisa seu aspecto viajante, quelest a citar palavras alheias e a mostrar distintas posies. Na tentativa de resgatar certa alma/princpio vital raptada de seu dono doente, o canto de um xam zinacanteca vincula a reiterao imagtica fornecida pela composio em dsticos a referncias espaciais ambivalentes, notveis pelo uso especial dos diticos (Haviland 2000:22):

(1)mu xaxhayk lokel/(2)mu xatenik lokel(3)yutux amokik un/No afugenteNo expulseQue ela possa ficar em sua cerca

(4)yutuk akoralik un(5)avilojik li' svokoilik/(6)avilojik li' yiktitavalabe/(7)tanichnab une kajvalem seu curralvoc viu o sofrimentoa misria de sua criade seu rebento

(Haviland 2000:22)12O xam a dirige sua fala a divindades, pedindo que mantenham o doente em seu curral. O curral das divindades, entretanto, est sobreposto no evento do canto ao da vila em que reza o xam. O canto, diz Haviland, faz "uso de uma gama de verbos de movimento que vinculam as configuraes topolgicas com as perspectivas e os vetores deiticamente ancorados" (Haviland 2000:21): a estrutura gramatical e a polifonia apontam para a srie de eventos paralelos evidenciados pelas rezas, dos quais o xam o eixo, e seu canto/evento um ndice dos caminhos percorridos. As rezas zinacanteca, cantos/caminhos envolvidos nos trajetos e nas tarefas sociocsmicas, em muito ecoam os trajetos do cantador Nenets, ou mesmo osbaidos cantos Kaxinaw (e de tantos outros grupos falantes de Pano, alis). Mostram-se abaixo os transportes e as companhias do cantador (Haviland 2000:20):

(1)x 'elan ti kunen kope(2)ti kunen ti 'e(3)ti bu chixanave(4)ti bu chibeine(5)jchi 'uk jchamele(6)jchi 'uk i jlajele(7)ja 'no la yech sta ta yu lave 'eb

(8)ta yu lavuchebAssim em minha pequena palavraassim em minha pequena falaOnde andoonde viajoCom a pessoa doentecom a pessoa feridaApenas assim ela encontrou seu lugarde comerseu lugar de beber

(Haviland 2000:20)13O rendimento da idia de caminho para o xamanismo no desconhecido pela etnografia americanista: os estudos de Gallois (1996) sobre os Waypi da Amaznia oriental e de Townsley (1993) sobre os Yaminawa do Peru so exemplares. Na mesma direo, o termo kunaikarrevela seu amplo rendimento conceitual:ikarsignifica, simultaneamente, um caminho propriamente dito (como os que se encontram na selva, nas plantaes e em todo o cosmos, ligando suas gentes diversas), mas tambm um hbito, um costume ou experincia pessoal e, por fim, oprprio cantoentoado14na performance ritual (Sherzer 1983:60-61). De longa durao, os cantosikarso marcados por um gradiente de formalizao que acompanha a passagem da lngua ordinria s falas rituais (como no caso da "lngua dos antigos" Kaxinaw), de que o paralelismo um ndice significativo. Os diversos nveis de paralelismo, alm de servirem como critrio para marcao de linhas, prestam-se tambm ao alongamento da performance ritual, a ela conferindo certaregularidade encantatria,de papel essencial para a eficcia da estereoscopia xamanstica, e muito comum a cantos relacionados s atividades de cura.

Executados pelos especialistas rituaisnelecom a ajuda dos bonecos de madeirasuar nuchukana(espritos auxiliares dosnele), osikar, assim como as rezas Zinacanteca, so eventos de resgate das "almas-princpios vitais" perdidas ou seqestradas pelas diversas gentes que habitam os tambm diversos domnios (kalu) do cosmos Kuna. Tais cantos esto associados a vrios outros gneros verbais, dentre os quais os encantamentossekretto, que combinam palavras de vrias lnguas "sem contedo referencial, evocando, entretanto, uma imagem mstica atravs de suas rimas e ritmos" (Sherzer 1983:117), cuja funo informar o esprito em questo de que oneleconhece sua origem e est assim apto a control-lo. Esteticamente apreciados pelos espritos os verdadeiros destinatrios das palavras e das aes do especialista osikarvisualizam uma ao que, mais uma vez, ocorre simultaneamente "l" e "aqui": est onelesentado beira da rede onde jaz o corpo enfermo // est a viajar com seus espritos auxiliares peloskalue suas gentes diversas15. Abaixo seguem citados trechos de umkaeti(ou "agarrador" [grabber], outra variante dosikar), cujo particular uso do paralelismo nos mostra como a reiterao encantatria empregada nas artes verbais xamansticas faz o papel de umrecurso perspectivoutilizado pelo xam para cativar o esprito antagnico de seu interlocutor. O texto refere-se ao momento em que onelepercebe em sua roa a presena do esprito da serpente,Maci oloaktikunappi nele. Enunciado em terceira pessoa, o seguinteikar dotado de outra das intrigantes caractersticas das artes verbais xamansticas, aqui apenas anunciada. Descrevendo no apenas a cena visvel no canto, mas citando a si mesmo no interior da cena da qual ele o prprio enunciador, o xam/cantador descortina uma construo em abismo (Sherzer 1990:264-ss.)16:

(1)ipetiniki purwikanitimienaittikineye(2)ipetiniki purwikanosamakkenaittikineye(3)Maci oloaktikunappi nele nekaipekue(...)(4)Maci oloaktikunappi nele tarkolesikwisaye

(5)"pule pan kalu saklati nuewisirpatipaye."(6)Maci oloaktikunappi tar kolesi(7)apisuati Maci oloaktikunappiuanaeye(8)"na pe kalu saklatiwisikusakupinne.(9)na pe kalu saklapa totoketanikki.

(10)na pe kalu sakla epiryetanikki

(...)(12)"apisuati pe purpati wisikusarpa"(13)kana tar sokekwiciye.(14)"pe purpati palamisaye."(15)kan apisu tar sokekwici.(16)ipeakselewalapillipaliye.(17)katili mokimakkenaiye.

(18)kali piknimakkenaikusaye.

(19)Maci oloaktikunappiti tarkolekuiniye.(20)"ani kan apisuati ani purpatiwisikusarpa", sokekuiniye.](...)(23)"ani kana apisuati iki anisatotipa ani kunnuktotipaye."]

(...)(26)"kati na pe kunnukkewaliye?patto aya nueti na satepinnemalaye.]

(27)kati na pe kunnukkewaliye."(28)maci oloaktikunappi uanae.Enquanto ele corta pequenos arbustos

Enquanto ele elimina pequenosarbustosMaci oloaktikunappinele est presente

Maci oloaktikunappinele chama.

"Como voc conhece o lar de minhaorigem?"Maci oloaktikunappiest chamando.O especialista aconselhaMacioloaktikunappi." mesmo, j conheo o lar de suaorigem." mesmo, eu vim brincar no lar de suaorigem mesmo, eu vim cercar o lar de suaorigem."

"O especialista conhece bem suapurpaO especialista est dizendo."Ele capturou a suapurpa"O especialista est dizendo.Em sua mo.O cip est se arrastando[pendurado]O cip est se revirando[pendurado]Maci oloaktikunappichama.

"Meu especialista, voc conhecebem minhapurpa, ele diz.](...)"Meu especialista, seja l o quevoc for fazer comigo voc memataria?"]

"Como eu poderia te matar? Nsacabamos de nos tornar bonsamigos.]Como eu poderia te matar?"Ele aconselhaMacioloaktikunappi.

(Sherzer 1990:264-ss.)17A construo em abismo aponta para o dilema da pessoa partida entre seus aspectos: cindido entre a posio imediata da performance e a posio outra em que estMaci oloaktikunappi nele, o especialista Kuna mas tambm o matador Arawet ou o cantador Kaxinaw pessoa paralela a si mesma. Alongando sua performance pela reiterao paralelstica (muito alm do que podemos citar aqui), o xam visa "cercar" seu oponente, fazendo com que aos poucos seja capturada apurpa(alma, princpio vital...) deMaci Oloaktikunnapi nele,e no a sua prpria, em uma indesejada inverso de posies. s voltas com questes similares parece estar o especialistaahituma arotu, o "mestre das dores" dos Warao (Briggs 1994), que se dedica a curar males causados por animais, como arraias, serpentes venenosas, aranhas, escorpies e vermes. Tais animais possuem duplos: uma mordida ou ferroada leva inoculao de uma entidade invisvel no interior do corpo do doente, chamada deanahe("o veneno do animal"),anorio("sua dor"),ahaka("seu vento") ouaimahana("sua sombra"). Todos estes termos, nota Briggs, partilham do prefixo genitivoa-, indicando que "a dor sentida pelo paciente no simplesmente propriedade de seu estado corporal, mas um signo sinedquico da presena invisvel do ser estranho" (Briggs 1994:142). Enquanto realiza a performance, aqui tambm permanece o xam distante do corpo do paciente, e canta o seguinteahitemoi, cujos fragmentos se referem a uma dentre as quatro partes de mesma estrutura e contedo semntico que o compem (de modo similar aos blocos de paralelismo dasakinhKuikuro), intercaladas no alongamento reiterativo da performance. A diviso em linhas segue o padro musical (Briggs 1994:143-ss.):

1 aBawar sibar

bbawar sibar

cbawar sibarArraia, a que se move no rio com amar altaArraia, a que se move no rio com amar altaArraia, a que se move no rio com amar alta

taisi anahe seben]seu veneno abunda]

dtaisi anahe sebenetaisi anahe seben(...)4 aTaisi anahemok, anahe taisi

btaisi anahemok, mokna

ctaisi anahemok, mokna

dtaisi anahemok, mokna

etaisi anahemok, mok, mokna

(...)7aBawar sibar, taisi hitan

btaisi hitan, taisi anahe bomon

ctaisi anahe bomondtaisi anahe bomoneanah bom, bom, bomon

(...)15aOtonomar hoaba, hoaba buru

bhoaba bur sakancsakana hoaba burdhoaba buru tatuka, hiomu kobeseu veneno abundaseu veneno abunda

Esta aqui, seu pequeno veneno (cria),o veneno desta aqui.Esta aqui, seus pequenos venenos,seus pequenosEsta aqui, seus pequenos venenos,seus pequenosEsta aqui, seus pequenos venenos,seus pequenosEsta aqui, seus pequenos venenos,seus pequenos

Arraia, a que se move no rio com amar alta, a espinha sentadadesta aquia espinha sentada desta aqui (dasurge) este veneno delgadoeste veneno delgadoeste veneno delgadoeste veneno delgado

Esprito curador, encha a perna, a pernadeste homemencha da perna ao pencha do p pernaencha sua perna bem aqui, at a peleda sola de seu p,

horo tatukar]no a (que ele foiferido)?]

(...)69aHinorio namukaraebhinorio namukaraechinorio namukaraeSeu veneno, eu o encerrarei.Seu veneno, eu o encerrarei.Seu veneno, eu o encerrarei.

(Briggs 1994:143-ss.)18Tal como noikarKuna, o canto parece dispor a reiterao paralelstica para capturar o ponto de vista do esprito agressor aos poucos familiarizado pelo especialista, que expressa seu conhecimento sobre a origem do duplo da arraia. No toa que onelepassa a empregar (nas linhas 17 e 18) uma metfora coloquial para serpente (cip,kali),ao invs do nome do esprito (Maci Oloaktikunnapi nele), assim indicando ter apaziguado sua ameaa (Sherzer 1990). O xam Warao, por sua vez, utiliza para "arraia" nohue, o nome ordinrio de tal animal, masbawar sibar, cuja semntica especial denota "a gua que flui atravs de uma seo estreita do rio" (Briggs 1994:148). Mais uma vez mostra estar o especialista informado sobre omodus vivendide seu oponente, no caso, a arraia causadora do mal, isto , a arraia visvel sobreposta a seu aspecto invisvel que lacera o p do paciente. Para Briggs, "o canto cria, nos termos de Peirce, um cone diagramtico cuja srie de cones individuais se arranjam de modo a estabelecer modelos paralelos dos dois fenmenos" (Briggs 1994:148).

Mais ainda: as distintas relaes estabelecidas com o limite corporal pelo xam Warao e por seu doente so anlogas diferena entre a audincia imediata e os destinatrios invisveis da elocuo xamanstica, indicando a defasagem das referncias sobrepostas pelos cantos. "Enquanto o paciente apenas enxerga a picada e a descolorao superficial, sentindo a dor," escreve Briggs, "oahituma arotuv o movimento contnuo da arraia dentro do p, a contnua lacerao produzida por seu ferro, e o movimento das arraias-beb no corpo invisvel da primeira arraia na panturrilha" (Briggs 1994:149-150). Sobrepondo as posies paralelas em que se situa o cantador, o canto visualiza ocaminhodo duplo invisvel da arraia, que percorre a carne do doente antes de voltar a seu dono, a arraia visvel: o termo warao para tal trajeto anaruque, diga-se de passagem, designa tambm a estrutura linear do cantoahitemoi(Briggs 1994:154).

Sujeitos e fantasmasComo compreender a re-configurao posicional engendrada pela reiterao paralelstica? Vendo a cobra como gente "Como eu poderia te matar? Ns acabamos de nos tornar bons amigos", dizia oneleaMaci Oloaktikunnapi oikarkuna, entre tantos cantos, desencadeia o efeito perspectivo atravs do "terceiro termo" sobressado da justaposio. Terceiro termo ou, em outras palavras, a cena geral em que vemos cantadores sobrepostos a seus outros, tais como o inimigo parakan, o esprito da serpente, osyuxinou os duplos-bebs da arraia. Cantos como oahitemoiwarao, ohuni mukakaxinaw e oikarkuna permitem observar no prolongamento paralelstico no apenas a repetio extensiva dos versos tendo em vista algum efeito estilstico ou mnemotcnico, mas tambm o aumento do gradienteintensivo,capaz de fazer saltar aos olhos a relao personificante.

No se trata evidentemente de negar a importncia da extenso no paralelismo xamanstico, mas apenas de apontar para o importante papel da intensidade na configurao perceptiva desencadeada pela montagem de cenas. Ecoando as consideraes de Deleuze (1988 [1968]),emDiferena e Repetio, Fontanille e Zilberberg assim colocam a questo (1998:95-96, grifo meu):

A visada [vise] consiste em suma na intensidade da tenso que ela instaura entre seus dois extremos, o sujeito e o objeto, ao passo que a preenso [saisie] procede pela delimitao de um extenso, cercando o domnio para a circunscrever o objeto. Nesta perspectiva, arrestar significa fazer coincidir a extenso de um domnio fechado com o campo no qual se exerce a intensidade da percepo: em um campo assim circunscrito, a intensidade e a extensidade perceptivas evoluem de maneira inversamente proporcional: quanto mais significativo for o nmero de objetos apreendidos, mais se admite que a percepo intensa. Em contrapartida, visar selecionar em um extenso aberto a zona na qual se exercer a percepo mais intensa; implica em renunciar ao extenso e ao nmero de objetos em detrimento da salincia perceptiva de alguns ou de apenas um.

O efeito intensivo da estereoscopia no se reduz portanto a umefeito de discurso: no estamos diante de manipulaes dologospor algumaepidixisperformativa, to cara a sofistas e oradores (Cassin 1995)19. Aqui, a intensidade parece salientar um locutor privilegiado a partir do pano de fundo das subjetividades virtualmente replicadas (Viveiros de Castro 2002b): necessrio que, em um dado momento da performance, salte vista um sujeito destacado da extenso, a ser controlado ou familiarizado pelo agente do canto (tal como oneledo canto Kuna). Os Candoshi da Amaznia peruana, escreve Surralls, no se interessam por saber "se os seres com os quais no se comunicam possuem ou no uma forma devani" ("alma", "princpio vital", ou algo assim). O que importa aos Candoshi a perspectiva de realidade dos seres com os quais se comunicam "e, conseqentemente, saber se h ou no como estabelecer relaes interativas com tais entidades, ou seja, se a intensidade que elas manifestam as fazem dotadas de uma presena significativa" (Surralls 2003:47). Aspectos como ovanidos Candoshi no se fixam ao interior, mesmo que vinculados a uma pessoa determinada: "duplo, sombra, imagem, essas conotaes implicariam que a alma no tanto o que est dentro quanto o que se projeta fora", diz Coelho de Souza sobre oskar/karon/garondos povos J (2002:540). No devemos dessa maneira tratar tais "aspectos", "duplos" ou "almas" "como uma questo de doutrina, mas como algo aberto inspeo emprica", assim denotando "no uma substncia, mas um modo de ao", completa a autora (Coelho de Souza 2002:536).

Cativando o ponto de vista de duplos e espritos oponentes, a reiterao prolongada, se algo tem de encantatria, no ser pelos efeitos de alguma projeo animista sobre o mundo exterior, de alguma antropomorfizao acaso produzida pela "imaginao literria Kuna", como quer Sherzer (1990:242). O uso propriamenteagentivodas repeties parece ser algo mais afim tenso entre alteridade e familiarizao a que tem se dedicado certa etnologia americanista recente (Fausto 2002; Viveiros de Castro 2002b) do que a questes deinputeoutput. porque o cantador se espelha em cobras e arraias; porque aspectos de pessoas replicadas se desgarram em posies diversas; porque entidades vrias se lanam a um ponto de vista que elas devem ser seduzidas, tornadas prximas ou refns de mim, a fim de que no se d o inverso. A diferena intensiva desencadeada pelo prolongamento das repeties , dessa maneira, um modo de subjetivao:

A relao criada precisamente pela supresso de um de seus termos, que introjetado pelo outro; a dependncia recproca que liga e constitui os sujeitos da troca atinge aqui seu ponto de fuso a fuso dos pontos de vista onde a distncia extensiva e extrnseca entre as partes converte-se em diferena intensiva, imanente a uma singularidade dividida. A relao de predao constitui-se em modo de subjetivao (Viveiros de Castro 2002b:293).

As consideraes de Viveiros de Castro, a referentes ao canibalismo Tupi, parecem tambm adequadas s dinmicas personificantes de que tratamos: estas, enquanto modos de subjetivaco, tambm convertem a "distncia extensiva e extrnseca entre as partes em diferena intensiva". Tal o caso do emprego agentivo do paralelismo, cuja dinmica mtua de cativao (e eficcia) s ocorre entre dois sujeitos distribudos em suas respectivas posies, e no entre um enunciador e seus personagens imaginativos. O efeito desencadeado pela progresso reiterativa permite que se selecione, a partir do pano de fundo personificado, o sujeito/interlocutor a ser familiarizado/predado/agarrado/controlado, garantindo a ao (teraputica, cosmoprtica) xamanstica sobre o ponto de vista concorrente. Mas preciso que a pessoa seja uma singularidade dividida (ou partida)20para que a relao seja intensiva, isto , para que o outro surja no campo de viso desencadeado pelo canto no como uma personagem, mas como um sujeito, fazendo com que tenda ao abismo o evento e a estrutura enunciativa; fazendo com que o carter paralelo da camada verbal (a estruturao paralelstica) seja uma expresso da ubiqidade ou multiposicionalidade dos eventos cantados. Veculos de alterao e transporte tal como bancos ou indumentrias (Viveiros de Castro 2002b), certos cantos xamansticos lanam mo da reiterao para expressar ou cumprir as demandas de umaeficcia perspectivaimposta pela sobreposio de referncias.

"Nossos olhos seguem um caminho acidentado e irregular at o seu fundo: trata-se de um conjunto de zonas locais de tridimensionalidade, zonas imbudas de uma claridade alucinatria, mas que, tomadas juntas, nunca se unem em um campo homogneo", escrevia Crary (1992:126) sobre os estereoscpios do sculo XIX. A estereoscopia de que falamos no , entretanto, como a moderna: no xamanismo amerndio, no se trata de produzir mecanicamente a iluso desejada pela fantasmagoria dos entretenimentos solipsistas, mas sim de fazer com que a disparidade destaque no objetos ilusrios de uma extenso, mas ossujeitossuspensos na virtualidade personificada.

Dizendo ser a esttica melansia sobre a eficcia, sobre a capacidade de cumprir tarefas, e no imediatamente sobre beleza, Strathern (1988:94) em muito ilumina nosso ponto. Ressoando as consideraes de Gell sobre osetuapolinsios (1998), a autora notava ser o "simbolismo melansio" no uma representao, mas umconhecimentoou apreenso de "capacidade e poder animado das coisas" (Strathern 1988:177). O esprito da serpente no fruto da imaginao literria kuna, como tampoucoYubeou o inimigo que canta pela boca do homicida Arawet; a proliferao de pessoas dos cosmos amerndios no se compreende por alguma criao autoral, enraizada em nossos pressupostos modernos21.

Caractersticas como a sinestesia, o paralelismo e seu efeito estereoscpico apontam para o carter intertradutivo e transformacional das estticas xamansticas, irrestritas que so aos limites de "domnios" (cantos, desenhos, coreografias estaro assim de fato apartados?) ou a meros empregos do estilo22. Os fenmenos de sobreposio e repetio muito nos dizem de personificaes e replicaes, isto , de pessoas paralelas a si mesmas entre seus duplos e corpos, de imagens e padres duplicados que so eles prprios duplos, de cantos que so modos de ao sobre outros duplos partidos de seus corpos.

Notas1O que consideramos aqui por "cantos xamansticos" so apenas fices heursticas (certamente reais, pois seno no as comentaramos) que se prestam investigao de estticas personificantes atreladas ao xamanismo amerndio. A expresso "canto xamanstico" refere-se portanto a um vasto campo de expresses verbais cantadas ou entoadas, cuja estilizao e padronizao (sonoras, gramaticais, semnticas, rtmicas etc.) vm a destac-las do fluxo da linguagem cotidiana (ver, por exemplo, Taylor (1983) para osanentJvaro) para se engajar nas diversas situaes de empregos rituais vinculados s cosmopraxis xamansticas, associadas ou no figura de um especialista ritual, o dito xam. Vale notar que os exemplares (e suas anlises) apresentados encontram-se divorciados de seus contextos sonoros, rtmicos e musicais, o que evidentemente representa uma perda.

2Sem deixar de esquecer que, ademais, a noo detextono se reduz apenas a seu aspecto material, como sugerem certos estudiosos da semitica (ver Fontanille 1998:79-80).

3Os versos 15b e 15c do canto Warao citado abaixo so um exemplo.

4Ver Becquelin-Monod (1986).

5Then we found/ the mossy ridge, we found/ at the mossy ridges foot/ was a lawny hill/ the lawny hill was bored through/ bored through by seven lizards/ "Mother lizard, grandmother/ give a child/ give to my friend!"/ The lizard child, my friend,/ bored through my side./ We found the ice ridge,/ on the side of the ice ridge/ was a blood river,/ the blood river got going,/ the current got going,/ in the blood rivers current/ to be cut/ plaits of hair are floating./ I cut the blood river/ bare-handed I cut it,/ the blood river stopped/ the current stopped,/ we crossed the blood river.6O ponto preciso de distino entre a autoridade do narrador e de cantadores envolvidos em dinmicas xamansticas pode ser verificado pelas diferentes utilizaes das modalidades epistmicas, ou evidenciais (Palmer 1986) que comportam cada registro. Cantos xamansticos tendem a jogar com evidenciais de experincia imediata e mediada (hearsays), de modo a mostrar que o xam/cantador estele mesmodiante da cena reportada por suas palavras; narrativas (mticas, histricas) ancoram-se em contrapartida noshearsays, fazendo do narrador um porta-voz dos feitos dos outros (ver por exemplo Oakdale [1996]; Basso [1995]; Franchetto [2002b]). Mas, veja bem, o uso doshearsays essencialmente distinto em cada caso: nas narrativas, vem a respaldar a autoridade do falante diante do saber imemorial, do qual este porta-voz; nos cantos xamansticos, vem a ser utilizado pelo cantador para citar pessoas e entidadespresentesnos eventos-canto, entre as quais, muitas vezes,ele mesmo(o cantador),ou seuprprio duplo("alma", "princpio vital"), entre tantos. Tal uso especial doshearsaysem cantos xamansticos freqentemente o responsvel por enunciaes em abismo. Aprofundo tais questes em outro trabalho (Cesarino 2003), na esteira do que escreveu Viveiros de Castro sobre os cantos Arawet (1986).

7"...Mre, crois-moi, ce sont des tres comme a que nous attendons, ce sont les peres/ quand mme comme a ils voulaient me nourrir/ ils voulaient me nourrir/ les peres/ l-bas cest vrai, crois-moi, les pres sont en train de se transformer, maintenant/ leurs dents qui sortaient/ leurs poils sur eux/".

8Meus dados preliminares de pesquisa entre os Marubo (falantes de lngua Pano do Vale do Javari) indicam isso: muito freqentemente os cantos xamansticosinikise utilizam no apenas das mesmas frmulas presentes nas narrativas (yo van) e nos cantos mticos (saiti), mas tambm dos mesmos contedos: um episdio mtico pode ser reatualizado na circunstncia em que um cantoiniki performado por um espritoyov(cantando atravs do xamromya), neste momento utilizado, por exemplo, como ironia ou metfora dirigida aos ouvintes. Algo similar encontramos noskoshoitiYaminawa traduzidos por Townsley (1993): os cantos re-atualizam o mito de Lua para os fins agentivos da cura.

9Tambm os Shipibo dizem que seus padres grficos possuem uma "ondulao rtmica e ornamentao fragrante e luminosa, similar ao rpido folhear de um livro com muitos desenhos" (Gebhart-Sayer 1986:196). Aps ingerir ayahuasca, o xam Shipibo v os desenhos projetados por seus espritos auxiliares: os cantos por ele reportados "serpenteiam no ar" como um todo visualizado a partir das imagens isoladas, traadas pelos espritos.

10A esquematizao de tal estrutura paralelstica foi elaborada em conjunto com Daniel Guimares. O canto que aqui citamos foi traduzido por Guimares e falantes Kaxinaw bilnges; realizada a partir de parfrases e aproximaes dos sentidos da lngua especial, a traduo disponvel uma experincia (conjunta) de recriao. Vale notar que o esquema do paralelismo aqui mencionado no d conta do paralelismo interno (entre os constituintes das sentenas).

11As cenas do canto em questo no parecem (at onde vai o meu olhar) variar de acordo com demarcadores lexicais especficos um dos critrios mencionados por Hymes para as narrativas chinook. No entanto, a passagem de um bloco de estrofes a outro se justifica, no apenas pela introduo de um novo conjunto de palavras inexistente no bloco anterior, como pela prpria mudana da "estrutura de ao" (outro critrio de Hymes [1992:171]) visualizada pelo canto: da justaposio dohuniaohuni-cip justaposio dohuniaYubee aosyuxin.

12Do not drive out/ do not chase out/ May she stay inside your fence/ inside your corral/ you have seen the suffering/ The misery of your child/ of your offspring13Thus in my little word / thus in my little speech/ Where I walk/ where I travel / With the sick person/ with the hurt person/ Only thus has she found your eating place/ your drinking place14Osikarpodem sernamakke(entoados) ousumakke(falados): no contexto primrio de cura, so falados; nos contextos secundrios em festivais, como os ritos de puberdade femininos, ou ao serem ensinados ou executados por mero prazer costumam ser entoados, embora no haja consenso entre os Kuna sobre tal diviso, conforme nos diz Sherzer (1990:118-119).

15Eventos em paralelo (em geral decorrentes da ciso da pessoa entre seu "invlucro corporal" e suas "almas/duplos/princpios vitais") so comuns em diversos regimes sociocsmicos amerndios, como se v na caa s queixadas e na cauinagem com os mortos entre os Juruna (Lima 1995; 1996), ou na vida paralela dos vila Runa e dos mestres dos animais habitantes do vulco Sumaco (Kohn 2002), entre tantos outros casos.

16Uma anlise mais detida de tal ponto est em Cesarino (2003). Ver Viveiros de Castro (1986) para os Arawet, Taylor para os Jvaro (1993), Sherzer (1990) para os Kuna e Bringhurst (1999) para os Haida.

17While he is cutting small bushes./ While he is clearing small bushes./Maci oloaktikunappi neleis present./Maci oloaktikunappi nelecalls./ "How do you know the abode of my origin?"/Maci oloaktikunappiis calling./ The specialist counselsMaci oloaktikunappi./ "Indeed [I] know already the abode of your origin./ Indeed [I] have come to play in the abode of your origin./ Indeed [I] have come to encircle the abode of your origin/ "The specialist knows well yourpurpa" / The specialist is saying./ "He captured yourpurpa"/ The specialist is saying./ On his hand./ The vine is dragging [in hanging position]./ The vine is turning over [in hanging position]./Maci oloaktikunappicalls./ "My specialist [you] know well mypurpa,", he says.]/ "My specialist whatever will [you] do to me/ would [you] kill me?"] / "How indeed could [I] kill you? we have just/ indeed already become good friends.]/ How indeed could [I] kill you?"/ He counselsMaci oloaktikunappi.

18Stingray, the one who moves in the river with the incoming tide/ Stingray, the one who moves in the river with the incoming tide/ Stingray, the one who moves in the river with the incoming tide, its poison abounds]/ its poison abounds its poison abounds/ This one, its little poison (offspring), the poison of this one./ This one, its little poisons, its little ones/ This one, its little poisons, its little ones/ This one, its little poisons, its little ones/ This one, its little poisons, its little ones / Stingray, the one who moves in the river with the incoming tide, this ones sitting spine]/ this one sitting spine (from there emerges) this one elongated poison]/ this one elongated poison/ this one elongated poison/ this one elongated poison/ Healing spirit, fill the leg, the leg of this man/ fill it from the leg to the foot/ fill it form the foot to the leg/ fill its leg right there, down to the skin of the sole of your foot,/ isnt there (that he was wounded)?]/ Your poison, I shall encapsulate it./ Your poison, I shall encapsulate it./ Your poison, I shall encapsulate it.19Do ponto de vista da praxis enunciativa, parece entretanto que, dentre os quatro esquemas propostos por Fontanille (1998:107); Fontanille & Zilberberg (1998:133), aquele que mais se aproxima do nosso caso o esquema da amplificao, no qual "a elevao de informao e de desempenho cognitivo no provoca uma diminuio da intensidade"; pelo contrrio, indica Fontanille, o sensvel (intensivo) e o inteligvel (extensivo) crescem juntos, como em uma construo sinfnica, nas figuras retricas de amplificao ou na prpria nfase. a que nossos problemas com as generalizaes semiticas aparecem: de modo similar ao desconforto de Jullien que comentvamos antes, no cabe aqui fazer com que o discurso xamanstico seja um exemplo particular das esquematizaes de Fontanille, j que as sacrossantas dualidades (sensvel, intelegvel; sujeito, objeto; emoo, cognio etc.) sobre as quais repousam o programa de tal semitica, bem como seu impulso taxonmico, no parecem traduzir bem a replicao personificante do xamanismo. Complexificando o jogo entre os dois extremos, as consideraes de Deleuze nos esclarecem mais:" a intensidade, a diferena na intensidade que constitui o limite prprio da sensibilidade. Tem ela tambm o carter paradoxal desse limite: ela o insensvel, o que no pode ser sentido, porque est sempre recoberta por uma qualidade que a aliena ou que a contraria, distribuda num extenso que a reverte e a anula. Mas, de uma outra maneira, ela o que s pode ser sentido, aquilo que define o exerccio transcendente da sensibilidade, na medida em que ela faz sentir e, por isso, desperta a memria e fora o pensamento. Apreender a intensidade, independentemente do extenso ou, antes, da qualidade nos quais ela se desenvolve, o objeto de uma distoro dos sentidos" (Deleuze 1988 [1968]:378) No xamanismo, o prolongamento paralelstico parece jogar com tal apreenso: "experincias farmacodinmicas, ou experincias fsicas como as da vertigem aproximam-se disso: elas nos revelam esta diferena em si, esta profundidade em si, esta intensidade em si no momento original em que ela no mais qualificada nem extensa" (Deleuze 1988 [1968]:378). No parece ser por acaso, portanto, que o efeito estereoscpico envolva justamente essa antecedncia (e dependncia) do intensivo sobre o extensivo, como nota ainda Deleuze: "isto foi freqentemente observado no caso das imagens estereoscpicas; mais geralmente, todo campo de foras remete a uma energia potencial, toda oposio remete a uma disparao, e as oposies s so resolvidas no tempo e no extenso na medida em que os disparates tenham, primeiramente, inventado sua ordem de comunicao em profundidade e na medida em que tenham reencontrado esta dimenso em que eles se envolvem, traando caminhos intensivos que s podem ser reconhecidos no mundo ulterior do extenso qualificado" (Deleuze 1988 [1968]:377). As consideraes de Deleuze convergem com o perspectivismo amerndio, de acordo com a interpretao de Viveiros de Castro (2004:20): "tal como na viso estereoscpica, necessrio que os dois olhos no vejam amesmacoisa dada para queoutracoisa (a coisa real no campo de viso) se tornevisvel[]".

20O termo uma adaptao do adjetivo ingls "partible", usado por Strathern (1988) para caracterizar a pessoa melansia. Em sua tese de doutorado, Viveiros de Castro (1986:517) tambm dizia algo similar sobre a pessoa fendida ou divisvel Arawet. A aproximao com a Melansia, entretanto, deve ser feita com ressalvas: partida certamente, pessoa amerndia no parece ser marcante a "fisiologia da troca" (Descola 2001:112) caracterstica dos casos melansios, mas sim a "absoro da alteridade" (Descola 2001:112) que permeia as dinmicas de predao do perspectivismo amerndio. Aqui, a idia de pessoa se afasta do monadismo ocidental: transindividual, a pessoa amerndia virtualmente expandida para alm de qualquer limite colocado por um todo atmico, j que envolvida em uma "correlao entre intensidade e extenso", como notou Surralls (2003:48) para os Candoshi. Os cantos visualizam justamente os dilemas desencadeados por tal expanso. Entretanto, se so as "almas/duplos" que se deslocam, so os "corpos" que criam os pontos de vista, assim desencadeando os equvocos perspectivos com os quais joga o efeito estereoscpico (Viveiros de Castro 2004:20; ver tambm 2002b). Ainda que no seja possvel aprofundar aqui tais complexas questes, cabe lembrar rapidamente que estas supostas "almas" (por vezes glosadas como "duplos" ou "aspectos") mantm caractersticas "corporais" (as "almas" morrem, mantm relaes sexuais, possuem vnculos de parentesco etc.), tornando problemtico o uso do par corpo/alma para traduzir a pessoa amerndia (ver, por exemplo, o que j dizia Carneiro da Cunha [1978] sobre a pessoa Krah).

21Se resistem a equiparaes imediatas, tanto com nossa poesia moderna, quanto com agncias artsticas ocidentais (como pretendia Overing [1990] a partir do trabalho de Nelson Goodman), porque no parece ser a criatividade (dos cantadores em sua performance oral) exatamente o problema posto por tais expresses verbais (o que no quer dizer, de modo algum, que no haja a criao e inveno). Parece-nos que as visualizaes dos eventos pelos quais transitam/atuam pessoas partidas esto, antes, atreladas ao anseio da eficcia cosmoprtica, da diplomacia sociocsmica e dos espelhamentos personificantes em que se vem envolvidos os cantadores/especialistas. Sua problemtica possvel gira em torno, portanto, antes dos vetores voltados deforaparadentrodo que dos voltados dedentroparafora(ver Viveiros de Castro 1986, 2002b; Coelho de Souza 2002).

22Para uma considerao similar envolvendo a esttica Kaxinaw, ver Lagrou (2002).

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Recebido em 01. de outubro de 2004Aprovado em 03 de outubro de 2005

*O presente artigo adaptado de minha dissertao de mestrado (Cesarino 2003). Uma verso sua foi apresentada na V Reunio de Antropologia do Mercosul (2002), no grupo de trabalho "Arte e ritual em sociedades indgenas da Amrica do Sul". Agradeo a Bruna Franchetto, Daniel Bueno Guimares, Eduardo Viveiros de Castro e Elsje Lagrou pelas observaes feitas a verses preliminares deste texto. Os exemplos de cantos e narrativas que seguem, quando referentes a fontes do ingls e do francs, foram traduzidos para o portugus por mim e por Luiza Leite. O leitor interessado deve consultar os originais (nas notas de rodap) para maiores detalhes sobre os exemplos citados, j que so tradues de tradues, realizadas apenas para esta publicao. Todas as tradues de citaes que constem em lngua estrangeira na bibliografia so minhas.