daniela xavier haj mussi - repositorio da producao cientifica … · 2018. 8. 28. · universidade...

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DANIELA XAVIER HAJ MUSSI INTELECTUAIS REBELDES POLÍTICA E CULTURA EM ANTONIO GRAMSCI E PIERO GOBETTI CAMPINAS 2015

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  • DANIELA XAVIER HAJ MUSSI

    INTELECTUAIS REBELDES

    POLÍTICA E CULTURA EM ANTONIO GRAMSCI E PIERO GOBETTI

    CAMPINAS

    2015

  • FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

    A COMISSÃO JULGADORA DO TRABALHOS DE DEFESA DE TESE DE DOUTORADO COMPOSTA PELOS PROFESSORES DOUTORES A SEGUIR DESCRITOS, EM SESSÃO PÚBLICA REALIZADA EM 29 DE SETEMBRO DE 2015 CONSIDEROU A CANDIDATA DANIELA XAVIER HAJ MUSSI APROVADA.

    Profa. Dra. Walquíria Gertrudes Domingues Leão Rego (orientadora)

    Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

    Universidade Estadual de Campinas

    Prof. Dr. Bernardo Ricupero

    Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)

    Universidade de São Paulo

    Prof. Dr. Luis Felipe Miguel

    Instituto de Ciência Política (ICP)

    Universidade de Brasília

    Prof. Dr. Luigi Biondi

    Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH)

    Universidade Federal de São Paulo

    Profa. Dra. Maria Betania Amoroso

    Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

    Universidade Estadual de Campinas

    A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Julgadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

  • Intelectuais rebeldes: política e cultura em Antonio Gramsci e Piero Gobetti

    Resumo: A tese investiga o tema da política e da cultura no pensamento de dois intelectuais italianos, o socialista Antonio Gramsci e o liberal Piero Gobetti, no primeiro pós-guerra. Procura-se reconstruir o ambiente político e cultural a partir do qual estes dois intelectuais se formaram e atuaram, especialmente na cidade de Turim, e os contornos das principais polêmicas nas quais se envolveram nos anos que antecederam a ascensão do fascismo. Em especial, a tese busca identificar, na vida editorial e jornalística que mantiveram, o ritmo de pensamento de ambos, destacando como cada um interpretou o desenvolvimento da cultura e política neoidealista e socialista na Itália, assim como reagiram ao avanço das lutas populares, na Itália e internacionalmente, especialmente depois de 1917. Com isso, propõe caminhos possíveis para compreensão de uma contraditória e viva relação intelectual entre Gramsci e Gobetti, na qual as diferenças se convertem muitas vezes em complementaridade e mesmo autorreconhecimento. Recupera, por fim, o complexo percurso destes dois intelectuais rebeldes, que compartilharam tanto a rejeição à tradição intelectual italiana como à acomodação política, dois componentes fundamentais do regime fascista que se conformaria em seguida.

    Palavras-chave: Antonio Gramsci. Piero Gobetti. Política. Cultura.

  • Rebel intellectuals: politics and culture in Antonio Gramsci e Piero Gobetti

    Abstract: This dissertation investigates the issue of politics and culture in the political thought of two Italian intellectuals, the socialist Antonio Gramsci and the liberal Piero Gobetti, in the first post World War period. It rebuilds the political and cultural environment where these two intellectuals were educated and acted politically, especially in the city of Turin, and the contours of the main controversies in which they were involved in the years before the rise of fascism. In particular, the dissertation seeks to identify, in their editorial and journalistic life, the rhythm of thought that highlights how each of them interpreted the development of politics and culture of the neoidealist and socialist movements in Italy, as well as how they reacted to the advance of popular struggles in Italy and internationally, especially after 1917. Thus, proposes possible ways of understanding the live and contradictory intellectual relationship between Gramsci and Gobetti, in which the differences often become complementarity and even self-recognition. Discusses the complex journey of these two rebel intellectuals, who both shared the rejection of the Italian intellectual tradition as well as its political accommodation, two key components of the fascist regime that would settle next.

    Keywords: Antonio Gramsci. Piero Gobetti. Politics. Culture.

  • SUMÁRIO

    Gramsci-Gobetti: “É possível ir além da lenda?” .................................................. 13

    1. Retratos de interlocutores incomuns ................................................................... 23 Benedetto Croce: o ponto de partida ................................................................... 23 Piero Gobetti: o “ponto de dissolução” ................................................................ 35 Antonio Gramsci: o “profeta” .............................................................................. 43

    2. Política e cultura na Itália do início do século XX .............................................. 51 A política como cultura ......................................................................................... 51 A cultura como política ......................................................................................... 58 A crise da cultura no pré-guerra .......................................................................... 64

    3. Antonio Gramsci e os socialistas .......................................................................... 72 “A fusão perfeita entre o velho e o novo” ............................................................ 80 “Tudo é claro para quem tem olhos puros” ........................................................ 86 “Aquilo que apenas pode ser” .............................................................................. 92

    4. Piero Gobetti e os liberais ................................................................................... 104 “Um sinal de despertar” ...................................................................................... 109 “Uma tendência liberal concreta” ...................................................................... 119 “Morre nossa revistinha para que possam viver nossas ideias” ..................... 126

    5. Socialismo e idealismo ......................................................................................... 139 “Tutto il mondo è paese” ..................................................................................... 139 “A guerra e o futuro” .......................................................................................... 151 “O dissídio socialista” .......................................................................................... 158

    6. Bolchevismo e liberalismo ................................................................................... 172 Novas energias, nova ordem ............................................................................... 172 “Vencer é muito urgente” ................................................................................... 180 A crise da unidade ............................................................................................... 191

    Conclusão ................................................................................................................. 199 Referências Bibliográficas ...................................................................................... 203

  • Ao meu querido sobrinho,

    sopro de vida nova,

    Martin.

  • AGRADECIMENTOS

    O presente texto é resultado da pesquisa de doutorado levada a cabo entre 2011 e 2015

    no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas

    (Unicamp), sob a orientação da Prof. Dra. Walquíria Leão Rêgo e financiada pela Fundação

    de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Ao longo destes cinco anos de

    trabalho, a realização desta tese seria impossível sem a contribuição e solidariedade de muitos

    colegas, professores(as), amigos(as) e de minha família. Este breve registro deve servir

    principalmente para destacar e agradecer a estas pessoas, sem as quais esta estudante de

    doutorado não conseguiria ir adiante.

    A pesquisa contou com o apoio ativo de meus professores e professoras do

    Departamento de Ciência Política (DCP), bem como dos competentes funcionários e

    funcionárias do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Em especial, gostaria

    de lembrar a professora Luciana Tatagiba, então coordenadora do Programa de Pós-

    Graduação em Ciência Política quando fui aprovada na seleção para o Doutorado. Em seu

    nome, agradeço a todos os membros do DCP, excelentes pesquisadores(as) e professores(as)

    com quem tive a oportunidade de aprender muito. Importante destacar, ainda, o papel do

    Centro de Estudos Marxistas da Unicamp (Cemarx), no qual tive oportunidade de atuar como

    diretora associada entre 2011 e 2014 ao lado do professor Armando Boito Jr., da colega

    Nathália Oliveira, bem como de muitos outros pesquisadores e pesquisadoras marxistas.

    Agradeço aos amigos e amigas do Grupo de Pesquisa Marxismo e Pensamento

    Político (GPMPP), do qual faço parte desde 2008, coordenado pelos professores Alvaro

    Bianchi, da Unicamp, e Rodrigo Passos, da Unesp/Marília. No GPMPP pude aprender o

    sentido da solidariedade intelectual necessária para qualquer trabalho intelectual. Sem Camila

    Góes, minha amiga, companheira de caminhada intelectual e revisora técnica desta tese, sem

    Sabrina Areco, Erika Amusquivar, Renato Cesar Fernandes, Isabella Meucci e Sydnei Melo

    não haveria Gramsci, não haveria Gobetti: não haveria pesquisa. Agradeço a leitura e

    comentários valiosos de Anita Schlesener (UTP), pesquisadora que ajudou a introduzir o

    estudo dos escritos pré-carcerários de Gramsci no Brasil. Junto à eles, agradeço aos

    professores e pesquisadores gramscianos Marcos Del Roio (Unesp/Marília), Edmundo Dias

    (in memorian) e Carlos Nelson Coutinho (in memorian).

    Não haveria pesquisa, tampouco, sem o acompanhamento dedicado e paciente de

    minha orientadora, a professora Walquíria Leão Rego e, por extensão, da professora Nadia

  • Urbinati, com quem tive oportunidade de trabalhar ao longo do ano que estive como

    pesquisadora visitante na Universidade de Columbia (Estados Unidos) em 2013.

    Este é um trabalho sobre o pensamento político italiano, portanto não poderia não

    contar com o apoio seminal de um conjunto de intelectuais italianos, os quais não posso

    deixar de mencionar: Giuseppe Vacca, presidente da Fondazione Istituto Gramsci (Itália),

    disponibilizou toda a estrutura necessária para o contato com documentos essenciais para esta

    pesquisa em Roma. Fabio Frosini, professor da Universidade de Urbino (Itália), ofereceu

    comentários e críticas ao trabalho desde o projeto inicial, instigando suas hipóteses e

    encorajando sua realização. Guido Liguori, da International Gramsci Society (Itália), além de

    argutas observações, ofereceu sua amizade e o incentivo a seguir sempre a pista gramsciana

    no engajamento entre as ideias e a luta política. Angelo D’Orsi, professor da Universidade de

    Turim (Itália), ministrou um excelente curso sobre o pensamento político italiano nas

    primeiras décadas do século XX, na Unicamp em 2012, que muito contribuiu para ampliar o

    horizonte cultural deste trabalho.

    Ao lado destes, um conjunto internacional de pesquisadores de ponta dos estudos

    gramscianos contribuiu muito para o trabalho quando tive a oportunidade de participar da

    Ghilarza Summer School (Sardenha, Itália) em 2014: Giancarlo Schirru, Gianni Francioni,

    Giovanni Semeraro, Giuseppe Cospito, Peter Thomas, Marcus Green e Cosimo Zene.

    Gostaria de agradecer ao jovem e excepcional arquivista florentino Francesco Galantini, da

    Universidade de Estudos de Firenze, sem o qual seria impossível ter acesso a documentos de

    enorme valor para esta pesquisa; e ao João Vitor Kanufre Xavier da Silveira, pela pesquisa

    documental feita para esta tese na Associazione Nazionale per gli Interessi del Mezzogiorno

    d’Italia (Roma). Agradeço, ainda, a atenção recebida pelos responsáveis do Centro Studi Piero

    Gobetti (Turim), da Biblioteca Angelica (Roma) e da Biblioteca Gino Bianco – Fondazione

    Alfred Lewin (Forlí).

    Amigos e amigas cujo carinho e paciência foram vitais e resistiram às intempéries

    deste longo caminho: Alfi Bianchi Vivern, Marília Cintra, Letícia Faria, Marcos Vinicius

    Silva, Eric Gil, Alisson Martins, Adriano del Duca e Nelson Silva. Gostaria de agradecer,

    finalmente, aos meus pais, Nelson e Ana Rita, e minhas irmãs, Sabrina e Marcela, pelo

    companheirismo e amor de uma vida toda.

  • “O documento e a crítica, a vida e o pensamento, são as verdadeiras fontes da história”

    BENEDETTO CROCE

  • LISTA DE ABREVIATURAS NAS CITAÇÕES Escritos de Antonio Gramsci

    CF La Città futura, 1917-1918. Torino: Giulio Einaudi, 1982.

    E Epistolario I. Gen. 1906 - Dic. 1922. Roma: Treccani, 2009.

    ON Opere di Antonio Gramsci. L'Ordine Nuovo 1919-1920. Torino: Giulio

    Einaudi, 1954.

    CT Cronache Torinesi (1913-1917). Torino: Einaudi, 1980.

    SF Opere di Antonio Gramsci, Socialismo e Fascismo. L’Ordine Nuovo: 1921-

    1922. Torino: Giulio Einaudi, 1966.

    NM Il nostro Marx. Torino: Giulio Einaudi, 1984.

    SM Sotto la Mole: 1916-1920. Torino: Giulio Einaudi, 1960.

    QdC Quaderni del carcere. Torino: Giulio Einaudi, 1975. 4v.

    LdC Lettere dal carcere. Palermo: Sellerio, 1996.

    CTE Cronache teatrali. 1915-1920. Torino: Nino Aragone, 2010.

    SDL Scritti della libertà (1910-1926). Torino: Einaudi, 2012.

    Escritos de Piero Gobetti

    Ntbe Nella tua breve esistenza. Lettere 1918- 1926. Torino: Einaudi, 1991 (com

    cartas de Piero e Ada Gobetti).

    C Carteggio 1918-1922. Torino: Giulio Einaudi, 2003.

    ST Opere complete di Piero Gobetti. Scritti di critica teatrale. Torino: Giulio

    Einaudi, 1974, v. 3.

    SSFL Opere complete di Piero Gobetti. Scritti storici, letterari e filosofici. Torino:

    Giulio Einaudi, 1969, v. 2.

    SP Opere complete di Piero Gobetti. Scritti Politici. Torino: Giulio Einaudi, 1960,

    v. 1.

    EI L'editore ideale. Frammenti autobiografici con iconografia. Milano:

    All'insegna del pesce d'oro, 1966.

  • 13

    Gramsci-Gobetti: “É possível ir além da lenda?”

    A relação entre Antonio Gramsci e Piero Gobetti constituiu um interessante capítulo

    da história do pensamento político italiano na segunda metade do século XX. O interesse

    neste encontro foi reacendido após o fim da II Guerra Mundial e fez parte do imaginário de

    organizações, ativistas e intelectuais comprometidos com o estudo e a luta contra o fascismo

    italiano. Com o fim da guerra e a derrota do fascismo, a construção de uma memória nacional

    sobre este período contou com um importante processo de elaboração simbólica, no qual o

    sacrifício individual, a autonomia política e a contribuição intelectual de Gramsci e Gobetti

    para a crítica do regime serviriam de insumo para a cristalização destes como legítimos

    representantes do antifascismo.

    Um primeiro modelo interpretativo, que predominou nos estudos da relação entre

    Gramsci e Gobetti realizados no imediato segundo pós-guerra, foi o que orientou os chamados

    “ensaios históricos”,1 que reconstruíam a figura dos dois intelectuais como mártires e

    testemunhas da luta contra o fascismo (SPRIANO, 1976, p.69). Este modelo, que podemos

    chamar por martirológico, orientou a elaboração de narrativas sobre o papel político

    desempenhado por ambos, sem a necessidade de um apego rigoroso à investigação

    documental e análise filológica de seu pensamento. Nelas, emergia a imagem de uma Turim

    “lendária e heroica”, na qual Gramsci e Gobetti eram retratados por seu valor político (como

    mártires, profetas e testemunhas) e a “continuidade” entre ambos era destacada, como

    metáfora para pensar a própria nação italiana, unida pela vitória antifascista.

    Um exemplo interessante deste momento intelectual é uma carta de março 1947,

    enviada por Palmiro Togliatti – líder do Partido Comunista Italiano recém retornado ao país –

    a um editor, comentando a iniciativa de publicar as obras de Guido Dorso, um antigo

    colaborador de Gobetti recém falecido. Nesta, Togliatti descreveu Dorso e Gobetti como

    representantes “da mensagem cultural mais significativa e inteligente da burguesia italiana

    contemporânea”, falou da “íntima continuidade” entre esta “tradição nacional da burguesia e o

    proletariado italiano”, e de Gramsci como seu “continuador mais verdadeiro” (TOGLIATTI,

    2014, p.287-288). 1 O filósofo piemontês Norberto Bobbio descreveu uma tipologia para as pesquisas a respeito de Gobetti ao longo do século XX, e que pode ter alguma validade também para os ciclos de pesquisas sobre Gramsci: a literatura de testemunho (entrevistas, testemunhos, cartas e diários de ambos e de colaboradores e companheiros); os ensaios históricos realizados a partir de 1950 pela geração pós-liberação; e uma “novíssima geração” de pesquisas surgidas a partir dos anos 1960, no interior dos debates ao redor da crise e revisão da história oficial do fascismo e antifascismo (BOBBIO, 1984, p.5-6).

  • 14

    Dado o seu caráter imediatamente ideológico – muitas vezes pessoal –, o modelo

    “martirológico” alimentou não apenas a interpretação “comunista” sobre a relação Gramsci-

    Gobetti, mas abriu espaço para outras formas de interpretação, mais inclinadas a “sublinhar,

    por meio de um confronto direto, os limites idealistas ou moralistas, ou mesmo reformistas”

    de ambos, e propor “outros símbolos revolucionários, outras indicações e paternidades

    ideológicas” (SPRIANO, 1976, p.70). 2 Ao longo dos anos 1960, esta ambiguidade

    interpretativa começaria a ser confrontada por meio publicações de vários volumes dos

    escritos de juventude de Gramsci, bem como das obras completas de Gobetti. Estas iniciativas

    editoriais permitiriam um novo ciclo de estudos e pesquisas, e encontraram em Paolo Spriano,

    importante historiador ligado ao PCI,3 um importante curador e intérprete.

    Em 1977, Spriano publicou o livro Gramsci e Gobetti. Introduzione alla vita e alle

    opere [Gramsci e Gobetti. Introdução à vida e obras] (id., 1977). O livro reuniu cinco ensaios

    escritos entre 1967 e 1976, e foi apresentado por seu autor como resultado do esforço de “ir

    além da lenda” no estudo da relação entre Gramsci e Gobetti. Os primeiros ensaios sobre os

    mártires do fascismo possuíam, a seu ver, o efeito positivo de divulgar o pensamento

    profundamente engajado e crítico ao fascismo de “duas personalidades singulares em um

    realidade de luta de classes” (id., 1976, p.70). Porém, as novas publicações de escritos de

    Gramsci e Gobetti, organizadas de maneira mais sistemática, permitiam a realização de novas

    investigações sobre o tema, capazes de ultrapassar o velho modo de citação de artigos,

    exclusivamente concentrado no período de 1921-1926 (ibid., p.70).

    O livro de Spriano foi composto por quatro ensaios intercalados – dedicados ao perfil

    biográfico e intelectual de Gramsci e Gobetti –, precedidos por um ensaio introdutório geral

    sobre a relação entre eles. Nesta introdução, Spriano anunciou que o livro abordaria as

    trajetórias dos “dois jovens intelectuais revolucionários” desde a Primeira Guerra Mundial,

    cuja unidade poderia ser encontrada em um “núcleo duro” comum à personalidade de ambos:

    2 Um exemplo interessante deste contexto intelectual são os escritos de Giuseppe Prezzolini sobre o pensamento de Gobetti. Incomodado com a apropriação comunista da trajetória do intelectual liberal, Prezzolini declarou que a estima e admiração de muitos intérpretes os haviam impedido de assinalar as contradições e erros de Gobetti, a começar pelo uso idiossincrático do termo “revolução liberal”. Em sentido diametralmente oposto – e, portanto, nutrido pelo mesmo modelo de julgamento político e busca de um parentesco ideológico – Prezzolini acusou em Gobetti a aproximação e valorização das lutas operárias de Turim nos anos 1920 como “ilusão provinciana de um jovem que nunca havia deixado o país”, como fantasiosa “exaltação estudantil” (PREZZOLINI, 1964, p.57 e ss.). 3 Nascido em Turim, Paolo Spriano (1925-1988) foi partigiano do movimento Giustizia e Libertà durante a luta de libertação italiana do fascismo e, depois da guerra, filiou-se ao PCI. Foi redator do jornal comunista L’Unità até 1964 e assumiu a organização, no início dos anos 1970, da publicação de uma edição dos escritos pré-carcerários de Antonio Gramsci, bem como das obras completas de Piero Gobetti. Foi autor de algumas das mais importantes pesquisas sobre a história da classe operária de Turim e italiana e de suas organizações, bem como de uma longa história do Partido Comunista Italiano, publicada em cinco volumes entre 1967 e 1975.

  • 15

    aquele de uma “ética laica” em polêmica aberta com “a cultura ou meia cultura do socialismo

    italiano e a tradição positivista determinista” (id., 1976, p.71-72). Ganhava destaque, em seu

    livro, o esforço “ético” compartilhado de Gramsci e Gobetti em “prestar contas com uma

    grande tradição da cultura italiana” (ibid., p.71-72).

    Escrito no formato de vida e obra paralelas, justificado como forma de respeitar a não

    simultaneidade do desenvolvimento intelectual de cada um e evitar um argumento forçado em

    relação ao pensamento de ambos, a pesquisa de Spriano se desenvolveu a partir de premissas

    gerais que merecem atenção (BOBBIO, 1984, p.6; SPRIANO, 1976, p.90). A primeira delas,

    de caráter psicológico, partia do pressuposto de que a relação Gramsci-Gobetti deveria ser

    pensada por meio da chave do “amadurecimento” e da “autolibertação” de ambos em relação

    à tradição cultural positivista. Esta autonomia, porém, não teria sido conquistada de maneira

    igual pelos dois intelectuais: o discurso de Gramsci teria se tornado “mais articulado e

    profundo” depois de 1917, ao passo que o de Gobetti teria mantido um caráter “mais sutil”,

    “teatral” (SPRIANO, 1976, p.73). Esta premissa reforçava a divisão dos capítulos por Spriano

    entre “Gramsci dirigente político” e “Gobetti historiador e iluminista” (id., 1977).

    De acordo com Spriano, já em 1919 seria possível contrastar o “organizador” e

    “dirigente” ao “rapaz incerto entre o empenho político e uma tendência natural à continuar os

    estudos literários e filosóficos” (id., 1976, p.74). Deste contraste entre Gramsci político e

    Gobetti intelectual da cultura se desdobrava um conjunto de argumento importantes no livro

    Spriano. O primeiro deles dizia respeito à tendência a considerar os pontos comuns entre os

    dois intelectuais como resultado da “influência de Gramsci”, bem como a interpretar

    diferentes referências de Gobetti – feitas em cartas privadas e artigos – ao socialista sardo

    como evidências explícitas desta influência (ibid., p.80).

    Outro aspecto interessante da atitude de Spriano foi a associação direta e recorrente do

    pensamento de Gramsci, desde 1917, ao de Palmiro Togliatti. É possível perceber, nos

    ensaios do historiador piemontês, o esforço em afirmar Togliatti como “herdeiro” da relação

    Gramsci-Gobetti, continuidade que se expressaria na “política cultural” do dirigente

    comunista depois da Segunda Guerra Mundial, em sua “relação com as tradições culturais

    italianas, entendidas como o terreno natural da criação do novo Príncipe, para oferecer uma

    hegemonia cultural para a classe operária” (ibid., p.74). Um efeito prático desta orientação é

    uma menor atenção de Spriano aos primeiros anos de Antonio Gramsci em Turim e dos

  • 16

    primeiros passos deste no movimento socialista local.4 A pesquisa das publicações da

    juventude socialista, como o jornal L’Avanguardia, e das cartas de Gramsci entre 1912 e

    1916, documentos não explorados por Spriano, são um exemplo de como se pode proceder a

    reconstrução de um ambiente intelectual bastante complexo no momento do début de Gramsci

    na capital do Piemonte.

    A política cultural da qual Togliatti seria herdeiro pressupunha como ponto comum ao

    pensamento de Gramsci e Gobetti no pós-guerra a valorização do “significado da renovação

    cultural do idealismo crociano como liberação definitiva de qualquer incrustação positivista”

    (ibid., p.75). Para dar coerência a este argumento, a pesquisa de Spriano diferenciava o

    pensamento de Gramsci em dois momentos, aquele “do construtor do partido comunista” e

    aquele “dos Cadernos do Cárcere” (ibid., p.83). O primeiro momento era pressuposto como

    aquele da afirmação das ideias de Benedetto Croce e Giovanni Gentile contra o positivismo

    determinista imperante no pensamento socialista; o segundo como prestação de contas e

    superação do próprio neoidealismo crociano por meio do contato de Gramsci com o

    pensamento científico de Karl Marx quando prisioneiro do fascismo (ibid., p.76).

    Se, por um lado, o neoidealismo foi uma referência explícita5 para Gramsci e muitos

    de seus companheiros em Turim, o esforço de aproximação com o marxismo a partir de 1917

    também é notável. A partir daí, ainda que o léxico permanecesse ancorado em uma referência

    neoidealista, é perceptível a apropriação criativa que Gramsci faz de suas ideias e conceitos

    para tentar combina-las organicamente a uma análise em que as relações de classe e de

    produção adquiriam centralidade. Assim, não parece suficiente, como faz Spriano, identificar

    de maneira retrospectiva as iniciativas intelectuais levadas a cabo em Turim neste período de

    “crocianismo militante” como pura e simples ausência das ideias econômicas do marxismo.

    Interessa mais perceber justamente o desenvolvimento e a especificidade das discussões

    travadas, seu contraste com as experiências neoidealistas como as de La Voce e de L’Unità,

    que se expressou, por exemplo, na mudança de perspectiva de Gramsci a respeito do

    liberismo a partir de fins de 1918. Por uma via não comum, o socialista sardo chegou a

    4 Sobre este ponto é curioso assinalar o erro de interpretação de um artigo no qual Gramsci relata o início de sua vida como socialista em Turim – “saíamos em grupo das reuniões do partido, circundando aquele que era nosso líder” (CT, p.89. Grifos adicionados). Spriano sustentou que o “líder” ao qual Gramsci aludia se tratava de Benito Mussolini, então líder socialista; outros afirmaram que era Giacinto Menotti Serrati (AMBROSOLI, 1950, p.707; SPRIANO, 1960, p.91). O olhar mais atento a este artigo em seu contexto, acompanhado da leitura de testemunhos da época, não deixam dúvidas de que o líder citado era o jovem socialista Angelo Tasca (cf. RAPONE, 2011, p.32; TERRACINI, 1976, p.249-250). Essa correção é importante pois levanta dúvidas sobre o rigor com que Spriano justapõe Gramsci e Togliatti neste período. 5 Uma referência que não se restringia ao ambiente cultural italiano. Para a influência do pensamento neoidealista francês sobre as ideias de Gramsci ver Gervasoni (1998).

  • 17

    conclusões próprias e a aproximação com o pensamento de Marx expressou justamente um

    momento da conquista de sua autonomia intelectual já neste período.

    A pesquisa de Spriano para Gramsci e Gobetti é robusta na reconstrução de um

    ambiente italiano em franca crise, no contexto da Revolução Russa e da derrota de Caporetto.6

    Mas sua tese generaliza este processo e o assume de maneira linear a partir da interpretação

    que faz de seu principal resultado – a formação do Partido Comunista Italiano (PCI) em 1921.

    Com isso, perde de vista tanto as inquietudes e hesitações de Gramsci, como as intuições e

    iniciativas criativas de Gobetti, que a presente pesquisa procura recuperar. A conquista da

    autonomia intelectual e política é pressuposta de maneira abstrata, deslocando o pressuposto

    do conflito e do contraste no desenvolvimento do pensamento de ambos.

    A escolha de Spriano em caracterizar o pensamento de Gobetti a partir da ideia de um

    processo de autocorreções e revisões ao longo de sua experiência em Turim, e apresentar o

    pensamento de Gramsci a partir da premissa da tendência ao acerto e superação dos

    adversários, tem implicações (D’ORSI, 2012, p.661). Uma delas é justamente a

    impossibilidade de superar o “paralelismo” com que é tratado o pensamento de ambos, ou

    seja, o aspecto abstrato da comparação impera sobre a reconstrução do ritmo do pensamento

    de cada um e dos conflitos que os aproximam. A narrativa dos pontos de contato é construída

    de maneira artificial, já que a afirmação dos permanentes acertos de Gramsci ou das revisões

    de Gobetti exigem constante digressão e mediação argumentativa abstrata para preencher o

    vácuo deixado pela impossibilidade de lançar mão da reconstrução do ritmo de pensamento de

    ambos para tal.

    Outra implicação diz respeito à rigidez com que Spriano aborda a relação entre

    Gramsci e Gobetti do ponto de vista da atividade militante desses. Em sua pesquisa sobre a

    “vida e obra” de ambos, é o segundo termo que de fato se impõe, ou seja, a experiência

    política é considerada como algo externo ao processo de elaboração do texto. O caminho entre

    um artigo e outro de Gramsci e de Gobetti é traçado sem investigar as intenções subjacentes

    ao seu momento de escrita. Esta escolha metodológica é decorrente do fato de Spriano parecer

    partir de pressuposições analíticas elaboradas antecipadamente – as quais a leitura dos artigos

    apenas corroboram – e que justapõem conjunturas intencionais distintas, que deveriam ao

    contrário serem remetidas ao estudo do que faziam Gramsci e Gobetti ao escreverem em cada 6 A derrota para a Alemanha e o Império Austro-Húngaro nesta batalha custou ao exército italiano 13 mil mortos, 30 mil feridos e mais de 260 mil prisioneiros de guerra. Contemporânea à Revolução Russa, esta derrota estabeleceu uma profunda crise moral e política no senso comum interventista sobre a participação na guerra. Outubro de 1917 significava a derrota tanto no front interno, como no externo, no qual a queda do general Luigi Cadorna (1850-1928), “homem símbolo” do projeto político nacionalista, foi um ponto marcante (D’ORSI, 2011, p.142 e ss.).

  • 18

    momento. Esta decisão analítica de Spriano pode ter sido tomada para que a noção de um

    pensamento coerente e (progressivamente) sistemático em Gramsci pudesse se sobressair e se

    afirmar como polo positivo diante do suposto pensamento permeado de incertezas e

    inquietudes de Gobetti. O problema é que esta decisão sacrifica justamente o pressuposto

    gramsciano de que vida e obra, história e pensamento, não se separam.

    Como consequência, a pesquisa de Spriano sobre a relação entre Gramsci e Gobetti

    narra como significativos apenas os eventos e artigos que contribuem com a harmonia desta

    interpretação polarizada, cujo equilíbrio está na sobreposição definitiva de uma das partes

    sobre a outra. Sua tese pode ser melhor compreendida justamente se inserida no contexto de

    uma “política cultural” mais geral, levada a cabo pelo PCI no pós-guerra em seu litígio pela

    herança simbólica, cultural e política da resistência, luta e vitória contra o fascismo.

    Independente de avaliar o mérito desta operação cultural, e sem desconsiderar o caráter

    central dos livros e artigos de Spriano para a história das lutas e organizações populares

    italianas, as considerações feitas até aqui tem por objetivo contribuir para pensar em que

    medida é possível avançar na caminhada “para além da lenda” evocada pelo historiador

    comunista.

    É também com este objetivo que se propõe uma retomada da pesquisa sobre a relação

    Gramsci-Gobetti. Os resultados desta nova investigação não pretendem esgotar o tema ou

    propor um conjunto de argumentos integralmente antagônicos ao que já foi afirmado por

    Spriano e outros, mas avançar onde considera possível a partir de uma relação crítica com

    essa bibliografia. Em especial, procura se desvencilhar dos fortes apriorismos da interpretação

    oferecida por Spriano e da falsa polarização analítica que parece sustentar sua pesquisa sobre

    estes dois intelectuais. Para isso, busca resgatar, por meio reconstrução dos debates e do

    léxico político do meio em que Gramsci e Gobetti atuaram, o universo intencional que ajuda a

    compor uma leitura mais orgânica do ritmo de pensamento de cada um, bem como de uma

    relação complexa e por vezes contraditória estabelecida entre ambos. Este parece ser um bom

    caminho para a profanação da lenda e para a redescoberta profana do mito.

    •••

    A presente pesquisa procurou, inicialmente, percorrer e evidenciar os principais

    aspectos do movimento neoidealista que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, por meio do

    estudo da conformação das revistas florentinas La Voce e L’Unità. O resultado mostra o

  • 19

    desenvolvimento de um complexo movimento político-cultural em guarda contra o

    positivismo, mas não homogêneo. A direção cultural de Benedetto Croce era o ponto que

    dava liga ao movimento neoidealista, mas em seu interior se desenvolveram posições bastante

    distintas e muitas vezes polêmicas. Em geral, politicamente este movimento se caracterizou

    por seu conteúdo fortemente antigiolittista e antirreformista. A intervenção de Croce neste

    debate mais conjuntural e político foi localizada, focada na crítica à mentalidade maçônica e

    na afirmação da morte do socialismo.

    No plano cultural, a direção oficial do PSI – aliada aos seus líderes sindicais e

    parlamentares – historicamente professava a adesão ao positivismo e a uma forma de

    marxismo economicista. Politicamente, suas posições se tornavam mais e mais moderadas,

    dentro de um processo de absorção pelo Estado e governos italianos no início do século XX.

    Nos anos que antecederam a guerra, a adaptação do PSI ao governo Giolitti passou por um

    processo de duro questionamento interno e, neste contexto, muitos dos intelectuais

    animadores das revistas neoidealistas encontraram dentro do movimento socialista aliados e

    admiradores, principalmente na ala mais radical e entre os jovens socialistas, críticos da

    relação de seu partido com o governo.

    As polêmicas sobre a entrada ou não da Itália na guerra são cruciais para entender

    como este processo se desenrola. Croce, assim como a direção do PSI, se colocou contra a

    entrada da Itália na guerra e apoiou a posição do governo. Tanto no interior do movimento

    socialista, como entre os intelectuais das revistas neoidealistas, houve importantes divisões

    sobre o tema, que culminaram no desmantelamento da ala radical do PSI depois da expulsão

    de Benito Mussolini do partido e no processo de desarticulação do ativismo neoidealista. O

    imediato pós-guerra – contexto do encontro entre Gramsci e Gobetti – foi, portanto, aquele da

    derrota tanto dos socialistas rebelados contra a oficialidade socialista, como do movimento

    político-cultural neoidealista. Perceber isso é de fundamental importância para compreender

    por que e como esta “relação” se tornou possível e significativa para os dois.

    A cidade de Turim, neste momento, combinava justamente o lócus da renovação da

    classe trabalhadora italiana – depois de mais de uma década de expansão industrial – e o

    esgotamento da matriz cultural positivista, expresso na crescente cisão entre uma cultura

    acadêmica catedrática tradicional e um crescente engajamento cívico e interesse humanístico

    entre estudantes e professores (D'ORSI, 2000, p.3-4). Não por acaso, a Universidade de Turim

    se converteu em um ambiente de passagem para boa parte da geração de intelectuais e

    ativistas da qual Gramsci e Gobetti fizeram parte. Foi também neste contexto local que a

  • 20

    pesquisa investigou as redes de colaboração de Gramsci e Gobetti ao longo de sua atividade

    intelectual e política.

    Para o socialista sardo, esta rede se desenvolveu a partir da seção socialista de Turim

    desde pouco antes da guerra. É relevante, aqui, o caráter particular da juventude socialista da

    capital do Piemonte, então sob a direção “culturalista” de Angelo Tasca, por quem Gramsci

    nutria admiração e um sentimento de proximidade intelectual e política. O nascimento de sua

    atividade como articulista na imprensa socialista local foi combinado ao progressivo

    envolvimento com atividades de propaganda, que Gramsci tinha em grande consideração. E

    aqui, não por acaso, figuravam em sua lista para educação partidária os ensaios e livros de

    intelectuais vinculados à geração de intelectuais neoidealistas do pré-guerra, que Gramsci

    acompanhava a distância e lia com interesse.

    No início de 1917, Gramsci parecia convencido de que a única forma de avançar na

    política e programa socialistas seria pela tomada de consciência e enfrentamento de sua

    subalternidade diante da alta cultura italiana. Esta tarefa se colocava de maneira mais aguda

    no final deste ano quando, ao olhar para a Revolução de Outubro, o socialista sardo sentiu a

    necessidade iminente de conformar um polo educativo capaz de estimular no seio das classes

    populares o desenvolvimento autônomo de suas capacidades e da consciência de seus fins.

    Estava em jogo a superação orgânica dos limites da cultura socialista oficial, não por meio de

    sua negação absoluta, mas pela elevação desta a um novo patamar.

    Quando, em 1918, Gobetti fundou Energie Nove com alguns colegas da Universidade

    e do liceu, era também a necessidade de renovação cultural que o interessava. Alcançar novas

    gerações era, como em Gramsci, seu principal objetivo. Seu ponto de vista, porém, se

    desenvolveu no interior do que sobrara do ambiente intelectual ativista neoidealista. Aqueles

    que para Gramsci haviam se convertido em parte importante de uma literatura afinada ao

    projeto de conquista da autonomia a ser desenvolvido entre os trabalhadores, para Gobetti se

    apresentavam como mestres e líderes. Esta organicidade possibilitou o trânsito e colaboração

    direta do jovem liberal com alguns dos mais destacados intelectuais italianos. Energie Nove se

    converteu, rapidamente, em um polo de atração para outros intelectuais comprometidos em

    reanimar o projeto de conformação de uma nova classe dirigente para o país.

    Apesar da polêmica aberta e do sentimento de superioridade em relação aos

    socialistas, as expectativas militantes de Gobetti – expressas em sua vontade decisiva de que o

    movimento político-cultural ao redor da revista L’Unità se convertesse em um partido político

    para disputar as eleições – foram rapidamente frustradas pelo absoluto desinteresse

    organizativo e pela falta de clareza e unidade política de grande parte de seus membros.

  • 21

    Gobetti assistiu temeroso ao caráter despolitizado com que muitos unitaristas tratavam os

    problemas políticos do país. Aos poucos, percebeu também a impossibilidade de retomar a

    cultura neoidealista nos marcos exclusivos do “combatentismo” italiano. O tratamento

    setorizado do problema da renovação cultural italiana levava, na prática, ao fortalecimento do

    nacionalismo no interior do movimento unitarista.

    Como para Gramsci, a primeira interpretação de Gobetti sobre a Revolução Russa foi

    de natureza antijacobina mas, ao contrário do socialista, para o editor de Energie Nove esta

    interpretação assumia um caráter negativo, muito associado às críticas dos intelectuais e

    literatos russos à tomada do poder pelos bolcheviques. Em 1919, porém, o contato com os

    protestos e greves de massas em Turim – em contraste com as desilusões com o movimento

    unitarista – deram o tom de uma mudança significativa de avaliação em relação a este

    assunto. Gobetti não “aderiu” à interpretação e orientação socialista ou comunista com relação

    à Revolução Russa, mas procurou traduzir sua novidade no interior do movimento político-

    cultural do qual fazia parte. De uma leitura própria da atuação de Vladimir Lenin e Leon

    Trotsky como grandes dirigentes políticos de processo de fundação de um novo Estado,

    nasceu a ideia da Revolução Russa como uma revolução liberal.

    Foi também em meados de 1919 que Gramsci, Tasca e os socialistas Palmiro Togliatti

    e Umberto Terracini, lançaram mão da revista de cultura socialista L’Ordine Nuovo. Voltada

    inicialmente ao desafio do aprofundamento e expansão da formação socialista, aproximação

    desta com o que se passava na Rússia soviética, e em polêmica com o determinismo

    economicista difundido no interior do PSI, o periódico se assemelhava em alguns pontos à

    Energie Nove. Os dois periódicos buscavam a novidade que se materializaria na combinação

    entre o “lugar para discussão, estudos e pesquisas sobre os problemas da vida nacional e

    internacional” e a intervenção política imediata de caráter antiestatal e antirreformista

    (TASCA, 1919, p.1). Assim como para a geração cultural neoidealista de La Voce e L’Unità,

    este engajamento se alimentava da crítica ao abstencionismo dos intelectuais e era a base para

    um programa editorial orientado para “publicar coisas vivas”, “promover uma onda fresca de

    espiritualidade em nossa cultura medíocre de hoje” (GOBETTI, 1918c, p.2).

    As fortes lutas operárias do período de 1919-1920, também conhecido por biennio

    rosso [biênio vermelho], principalmente em Turim, representaram o ponto culminante do

    ciclo de protestos abertos em agosto de 1917 pelo fim da guerra. Estas lutas foram acolhidas e

    vivenciadas com grande entusiasmo por Gramsci e Gobetti, cujas análises deste processo

    buscavam extrair todos os elementos possíveis para compreensão do que consideravam ser

    um novo momento da vida política do país, protagonizado pelos operários. Justamente por

  • 22

    isso, a derrota do movimento de ocupações de fábrica em 1920 impulsionou em ambos a

    análise de seus limites. No entanto, as respostas oferecidas para este problema não foram as

    mesmas.

    Por um lado, estes anos de intensa atuação política levavam à necessidade de

    pesquisar a história moderna italiana e europeia, em especial do desenvolvimento de suas

    classes e grupos sociais. Por outro, sincronicamente, a renovação cultural promovida pelo

    pensamento neoidealista na Itália, há mais de duas décadas, sob a liderança de Croce, criara

    bases incontornáveis para uma agenda de pesquisa elaborada sobre a participação dos

    intelectuais na história da vida nacional e internacional. O conceito de cultura crociano

    emergia como nexo-chave de uma historiografia a partir da qual a definição relacional do

    objeto e do sujeito de estudo histórico se vinculava estreitamente à ideia de “expressividade”

    ou eficácia em sentido estético, da atividade intelectual.

    Neste anos, L’Ordine Nuovo e Energie Nove compartilharam o novo sopro de

    esperança que provinha do movimento de massas europeu, registrando e participando da

    elaboração dos diferentes caminhos interpretativos e de organização que buscavam se impor.

    O periódico socialista sob a direção de Gramsci aos poucos se aproximou diretamente das

    lutas operárias massivas de Turim e para o estudo e divulgação da Revolução Russa e da

    experiência dos sovietes. Gobetti direcionou sua revista para a construção de uma organização

    político-cultural, a “liga unitária”, movida por intelectuais liberal-democráticos, voltada aos

    interesses camponeses e meridionais e também ao estudo mais detido da Revolução.

    As derrotas operária e unitária no biennio rosso, esmagadas entre o reformismo

    burocrático das direções socialistas, a inércia dos intelectuais profissionais, a reorganização

    eleitoral católica e o avanço do movimento nacionalista e fascista, explicitaram os limites dos

    dois projetos político-editoriais e a necessidade de avançar em uma compreensão estratégica

    mais ampla do que significaria a fundação de um novo Estado italiano. Tanto para Gramsci,

    como para Gobetti, a dimensão político-organizativa da cultura ganharia mais destaque neste

    novo momento de reflexão sobre a revolução italiana e seus protagonistas, mas também sobre

    a ação capaz de acumular forças e ganhar terreno em um contexto político e cultural que

    revelava a capacidade “criativa” das classes dominantes e dirigentes em resistir às mudanças.

  • 23

    1. Retratos de interlocutores incomuns

    Benedetto Croce: o ponto de partida

    Para compreender a premissa ou o ponto de partida que Antonio Gramsci e Piero

    Gobetti assumiram para pensar a cultura e sua relação com a política, é imprescindível

    compreender como estes termos eram tratados pelo intelectual italiano mais importante do

    início do século XX, o filósofo napolitano Benedetto Croce. Em sintonia com as principais

    polêmicas filosóficas europeias, desde 1890 Croce se lançava ao objetivo de “combater a

    absorção que as ciências naturais tentavam fazer da história” e do pensamento filosófico com

    suas leis causais, bem como de afirmar o caráter teórico e a seriedade da cultura “que o

    positivismo dominante tentava considerar como fato hedonista” e supérfluo (CROCE, 1909b,

    p.226). O projeto intelectual do filósofo visava, portanto, reabilitar o mundo “concreto” da

    história e da cultura no interior do pensamento teórico e filosófico,7 promovendo o reencontro

    entre a historicidade, a estética e o pensamento (ibid., p.226).

    Na Itália, o desenvolvimento de uma “consciência do pensamento filosófico”

    promovida por Croce deveria fazer parte de um processo “lento e cansativo” de uma geração

    intelectual, até então subordinada ao pensamento positivista, para libertar-se de todo

    transcendentalismo e afirmar a vitalidade plena da imanência e do historicismo (ibid., p.226).

    Com a publicação dos três volumes de sua filosofia do espírito, Estetica come scienza

    dell’espressione e linguistica generale (1901), Logica come scienza del concetto puro (1908),

    Filosofia della pratica: Economia ed Etica (1908), o filósofo napolitano consolidou este

    esforço em avançar na formulação da identidade entre a filosofia e a história no interior de um

    projeto ambicioso de concepção do espírito, no qual a cultura funcionava como parte de um

    processo expressivo mais amplo e profundo (ibid., p.226).

    Desde sua Estetica (1900), Croce não compreendia a teoria e a história como

    “sistemas de forças” determinados de maneira exterior e por isso buscava expandir e habilitar

    os novos temas para o estudo e pensamento filosófico – como a linguagem e as artes – e,

    consequentemente, os sujeitos deste estudo e pensamento, reconhecendo a pertinência de todo

    um conjunto de intelectuais até então desprezados pelo ambiente filosófico tradicional

    7 Para tal, Croce iniciou seu percurso afirmando que a história poderia ser reduzida, dada sua “concretude”, “ao conceito geral de arte”, no ensaio La Storia ridotta sotto il concetto generale dell’Arte, de1893, ideia que foi corrigida em seguida, para dar a espaço ao estudo das “formas do espírito”: o conceito de história como filosofia e de arte como intuição (CROCE, 1909b, p.226).

  • 24

    europeu. É importante situar que o desenvolvimento do pensamento de Croce coincidia com a

    tentativa de absorver e adaptar em sua filosofia dos distintos o materialismo histórico.8 Nos

    anos 1890, Croce estudara a “doutrina histórica”9 de Karl Marx – cujo melhor representante

    na Itália era, a seu ver, o filósofo Antonio Labriola –10 a qual considerava uma iniciativa

    importante no sentido de superar a “filosofia da história” – a redução conceitual do curso da

    história – imposta pelo pensamento positivista (id., 1921, p.2-3).

    A principal contribuição de Marx11 ao pensamento filosófico, na leitura de Croce desta

    época, era justamente a valorização da crítica à externalidade ou transcendência, nascida de

    seu confronto com as ideias de Hegel: “história [para Marx] não é um processo da Ideia, ou

    seja, resultado de uma transcendente realidade racional, mas um sistema de forças” (ibid.,

    p.5). A riqueza do pensamento de Marx, a seu ver, estava justamente em retirar de um plano

    determinista o estudo de temas que, até então, eram vistos predominantemente como

    “conectivos”, de “essência meramente econômica”, tal como o “Estado, direito, religião, para

    não falar da ciência e das artes” (ibid., p.5). As ideias de Marx funcionavam, para Croce,

    como um ponto de partida para a revalorização destes temas e, por que não, da cultura em

    sentido amplo.

    A identidade entre história e filosofia para Croce não era concebida para ajustar o

    pensamento a uma determinação causal, definida racionalmente a priori. A principal

    implicação desta identidade seria a modernização imediata da cultura italiana, a aproximação

    da vida cultural concreta, nacional e continental, do pensamento filosófico. Para Croce, Marx

    buscara esta modernização ao apontar o esgotamento da filosofia e a emergência da luta de

    8 Já no início dos anos 1930, ao comentar nos Quaderni del Carcere o trabalho de sistematização e aprofundamento das ideias de Croce na Teoria e storia della storiografia, Gramsci afirmou: “O mais significativo da biografia científica de Croce é que ele continua a considerar-se líder intelectual dos revisionistas [do materialismo histórico] e sua elaboração posterior da teoria historiográfica é conduzida com esta preocupação” (QdC, p.1214). 9 A “concepção histórica vivifica toda a obra de Marx e foi por ele plasmada em alguns opúsculos narrativos, singularmente importantes, como o 18 Brumário de Luis Bonaparte e as duas série de artigos sobre a Luta de classes na França, e a Revolução na Alemanha em 1848-1849” (CROCE, 1921, p.26) 10 “O materialismo histórico, como se apresenta em Antonio Labriola, abandonou de fato qualquer pretensão de estabelecer a lei da história, de reencontrar o conceito ao qual os fatos históricos podem ser reduzidos” (CROCE, 1921, p.4). 11 No início dos anos 1900 Croce reconheceu, também, a singular contribuição política dos estudos sobre o marxismo para sua “cultura filosófica”, mas também para a formação de “uma convicção política”, que de “plena persuasão das teses e previsões de Marx se modificou em um liberalismo e radicalismo democrático” (CROCE apud GARIN, 1974, p.10). Esta aproximação seria contrastada com a constatação de Croce em 1911 – contexto de grave crise interna do Partido Socialista Italiano – da falência histórica do “experimento do socialismo”, inclusive em sua versão marxista. Depois, em momentos-chave da Grande Guerra, em 1915 e 1917, a relação com o marxismo seria evocada mais uma vez como a força “da paixão e fé política” (ibid., p.10). Esta relação oscilante revela a dimensão política do revisionismo de Croce, sua disposição para realizar sempre que necessário o ciclo de depuração e compatibilização do pensamento de Marx no interior de sua filosofia.

  • 25

    classes no século XIX,12 mas em sua opinião era necessário trilhar um caminho alternativo

    para a filosofia, reformando e depurando este pensamento de todo apriorismo e

    transcendentalismo. A emergência e predomínio da luta de classes sobre o pensamento

    filosófico, concebidos por Marx, eram interpretados por Croce como afirmação de um sistema

    de forças limitado ao aspecto sociológico das sociedades modernas. 13 O pensamento

    filosófico renovado, ao contrário, permaneceria livre de qualquer constrangimento ou

    orientação canônica exterior – como consciência, em permanente elaboração, tanto da nova

    experiência histórica, como das passadas.

    Poucos anos antes da guerra de 1914, Croce julgava que seu projeto filosófico havia

    amadurecido, mesmo que constantemente impedido em seu desenvolvimento pela emergência

    de intervir no debate público italiano, em um contexto de crescente agitação no qual

    predominava a indiferença e mesmo inexpressividade dos filósofos diante da vida política,

    combinadas à fraqueza cultural do principais debates políticos nacionais.14 A consciência

    desta necessidade e contraste se expressou de maneira interessante na publicação, em 1914,

    do volume Cultura e Vita Morale. Intermezzi Polemici [Cultura e vida moral. Intervalos

    polêmicos], no qual Croce reuniu os “pequenos escritos (...) compostos (...) sob o estímulo de

    várias situações nas quais eu saí, quase de má vontade, do campo dos estudos nos qual

    trabalhava” (id., 1914, p.7).

    Escritos entre 1911 e 1913, como “intervalos polêmicos” aos estudos filosóficos, os

    artigos de Croce eram “feitos para a vida cotidiana e destinados, por isso mesmo, a

    rapidamente perderem significado e eficácia” (ibid., p.8). Em sua maioria, os artigos

    discutiam os problemas da cultura italiana e a “retomada filosófica”: a filosofia idealista e

    positivista, a filosofia na escola, a falta de livros sobre filosofia na Itália, a relação entre os

    intelectuais e a filosofia, etc. Destoavam um pouco do conjunto as “duas conversas” de Croce

    12 Recebendo de Croce, justamente por isso, a identificação de “Maquiavel do proletariado” (CROCE, 1921, p.112). 13 Para Croce, a filosofia deveria manter seu posto como única capaz de ocupar o “vazio do pensamento lógico”. Caso contrário, “o vazio do pensamento lógico é ocupado imediatamente pela práxis ou, como se diz, pelo sentimento que, refratando-se teoricamente, se aproxima da poesia” (CROCE, 1920, p.58). Aqui, percebe-se claramente o eco das ideias de Georges Sorel, as quais Croce ajudou a introduzir criticamente no ambiente italiano (id., 1926). O que para Sorel era assumido como aspecto central e positivo da vida cultural e política – sua dimensão poética e intuitiva cristalizada na ideia de mito – Croce tratava como momento parcial do pensamento, passivo de depuração e coordenação à medida em que o pensamento pudesse se desenvolver. 14 Esta preocupação de Croce ganharia contornos bem precisos na vida italiana durante a guerra, com a criação do Servizio P em janeiro de 1918, dois meses depois da derrota da batalha de Caporetto para a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. O Servizio P consistia em uma organização especializada em propaganda, assistência e vigilância das tropas italianas no front, criado para tratar o descontentamento que se difundia entre os soldados com o avanço da Guerra. Importantes intelectuais identificados com o pensamento crociano participaram do Servizio P, como Piero Calamandrei, Giuseppe Lombardo-Radice, Giuseppe Prezzolini, Ardengo Soffici e Gioacchino Volpe.

  • 26

    sobre a “mentalidade maçônica” e “a morte do socialismo” italiano, bem como um artigo

    sobre o partido político, “como juízo e como preconceito” (ibid., p.223-224).

    Em comum, estes três artigos buscavam apresentar de maneira delimitada um campo

    de atuação política consumido historicamente por “superstições”. Este nascera com o

    “enciclopedismo e jacobinismo do século XVII” como “mentalidade maçônica” “abstrata e

    simplista” (ibid., p.161, p.163, p.164). Em seguida, esta mentalidade simplificadora teria

    encontrado sua oposição no advento do socialismo, “nascido da filosofia hegeliana, nutrido de

    realidade histórica, violento, sarcástico, avesso aos sentimentalismos e fraternidades” (ibid.,

    p.167). Vivido e “incorporado nos fatos”, o socialismo teria morrido, junto com a falência de

    seus modelos, e agregado “nada ou muito pouco à história do pensamento e da literatura,

    porque sua expressão era medíocre” (ibid., p.171).

    Por fim, Croce extraía a conclusão de que os partidos políticos deveriam ser pensados

    como “mecanismos”, por meio dos quais “o homem político concretiza seu ímpeto volitivo

    entre os homens e em condições dadas” e, por isso, não deveriam nunca ser tomados como a

    “origem” da ação (ibid., p.217). Partidos políticos nascem e morrem, sendo que o que

    permanecia era o ímpeto volitivo do “homem de boa vontade”, que deseja “viver melhor, ou

    seja, cada vez mais dignamente, conquistar uma maior luz ao intelecto, mais liberdade à

    vontade, erguer monumentos para séculos, acrescentar algo ao patrimônio da humanidade”

    (ibid., p.216). A natureza da política seria, portanto, aquilo que ela é capaz de agregar, como

    atividade prática, à cultura, ao pensamento.

    Para abordar o partido político, Croce lançava mão da metáfora cultural, em particular

    da atividade do poeta, para o qual o mais importante não deveria nunca ser a procura por um

    “gênero” poético, uma “forma estabelecida”, mas sim o “trabalho escrupuloso e tenaz”

    fomentado pela inspiração. A verdadeira ação política, portanto, seria aquela em que fosse

    possível “retirar-se dos partidos para definir, acima destes, unicamente, a saúde da pátria”;

    este retirar-se seria “a única forma de dar vida a um novo partido ou manter saudáveis aqueles

    existentes” (ibid., p.222).

    Quando Croce escreveu este conjunto de artigos, encontrou neles a maneira de

    expressar o que entendia como “as razões de certos fatos, e também para colocar em guarda

    outros” e ele mesmo “diante de alguns perigos” (ibid., p.7). Sua iniciativa política imediata

    visava intervir para aprofundar a crise que o PSI vivia, em especial depois das rupturas de

    1911, que envolveu um conjunto importante de intelectuais identificados com a filosofia

    neoidealista e que se colocavam, agora, questões referentes ao sentido do socialismo e da

  • 27

    democracia (ibid., p.222)15. O perigo ao qual Croce se referia, aqui, era a algo mais “grave”

    que as superstições partidárias usuais – dizia respeito à “persistência do conceito de luta de

    classes”, introduzido “pelos filósofos socialistas alemães”, na vida política do país e seu efeito

    destruidor da “consciência da unidade social” (ibid., p.220). Croce anunciava sua intenção,

    aquilo que o movia em direção a esta intervenção “ética”: Esta consciência da unidade social, ausente da longa conformação da ideologia socialista, urge, na minha opinião (...) restaurar. E, para restaurá-la de maneira eficaz, é preciso remover todas as pequenas raízes, que podem nascer em nosso ânimo como mato, desta ideologia (ibid, p.220).

    Aquilo que o filósofo apresentava como “impedimentos”, sua “passagem da análise

    lógica para aquela ética”, era na verdade a descoberta de uma crise e de uma oportunidade

    para traduzir em orientação política aquilo que vinha se desenvolvendo apenas no plano

    filosófico como revisão do materialismo histórico e resgate do primado da filosofia sobre o

    conflito político. Croce anunciou isso como o momento em que percebeu “que os contrastes

    sociais e políticos nasciam da pouca clareza e dos preconceitos teóricos” que o haviam

    permitido, frutiferamente, “passar novamente da analise ética para a lógica” (ibid., p.7).

    Este sentimento de oportunidade pode ser observado a seguir quando, em meados de

    maio de 1916, Croce concluiu o manuscrito da edição italiana de sua Teoria e Storia della

    Storiografia [Teoria e história da historiografia], composta a partir de artigos publicados no

    período de 1912-1913, com alguns ensaios posteriores inseridos como apêndice em 1915 (id.,

    1920, p.v).16 No apêndice do livro, “Filosofia e metodologia”, Croce avançou sobre a ideia de

    que a hora dos filósofos havia chegado, que estes deveriam “sair do cerco teológico-

    metafísico no qual continuam fechados, mesmo quando não querem mais falar e ouvir sobre

    teologia e metafísica” (ibid., p.147-148). O programa destes deveria ser o “avanço substantivo

    da cultura filosófica” combinado com a transformação de estudiosos “de coisas humanas” da

    cultura e história – juristas, economistas, literatos, etc. – em “filósofos conscientes e

    disciplinados” (ibid., p.145).

    A operação crociana de reforma cultural era ambiciosa e buscava traduzir aspectos da

    tradição idealista alemã para o pensamento italiano – em especial a partir das ideias de Kant e

    Hegel –, para a qual a revisão das ideias de Marx cumpriu um papel importante na elaboração

    15 Em particular aqueles ligados ao historiador Gaetano Salvemini e a recém fundada revista L’Unità. Ver adiante. 16 Este livro foi apresentado por Croce como obra de “aprofundamento e ampliação” da “teoria da historiografia” desenvolvida no terceiro volume de sua filosofia do espírito, intitulado Logica [Lógica], publicado em 1909. A primeira edição de Teoria e Storia della Storiografia, composta apenas pelos artigos de 1912 e 1913, foi publicada em 1915 em alemão, sob o título Zar Theorie und Geschichte der Historiographie (CROCE, 1920, p.v).

  • 28

    de um sofisticado conceito de cultura. Esta iniciativa foi bem sucedida à medida que os

    argumentos de Croce passaram a ser absorvidos, em seguida, já nos primeiros anos do século

    XX, por parte importante dos intelectuais italianos, como ponto de partida e base das próprias

    reflexões. Concebida como superação dos “valores do sentimento” em “valores do

    pensamento”, a cultura representava um “ato do espírito” inalienável, a condição primordial

    para o desenvolvimento da história e da filosofia (ibid., p.28). A cultura, aqui, não poderia ser

    resumida a um objeto ou sujeito estático, mas nascia como o movimento de superação das

    “condições psicológicas que discriminam bons e maus, progressivos e regressivos”, como a

    atitude de questionamento do lugar que os acontecimentos possuem no desenvolvimento de

    uma época (ibid., p.78).

    Nos primórdios de sua atividade revisionista, Croce substituíra o dualismo positivista,

    que concebia sujeito e objeto como duas coisas estanques no pensamento, pela dialética na

    qual sujeito e objeto passam a ser concebidos como extensão um do outro – o homem

    “conhece as coisas por que é as coisas que conhece” (id., 1904, p.152). Esta atitude de

    “superação” não poderia ser confundida com o estabelecimento de uma relação racional-

    abstrata com os “fatos práticos”, mas como a afirmação da cultura como exercício de

    elaboração intelectual em sentido amplo (sentimento, imaginação, pensamento e fala) em

    relação ao passado e presente (id., 1903, p.134). Agora, esta se apresentava como proposição

    de um conceito de cultura forte e de longo alcance, que Croce anunciava por meio da ideia de

    ritmo de pensamento. Esquecer um aspecto da história passada e relembrar outro não é senão o ritmo mesmo da vida do espírito, o qual atua determinando-se e individualizando-se, e indeterminando e desindividualizando sempre as determinações e individuações anteriores para criar outras, mais ricas (id., 1920, p.16, grifo adicionado).

    As ideias que orientavam esta reforma cultural de Croce tiveram enorme difusão no

    início do século XX, sendo absorvidas e discutidas, direta ou indiretamente, no contexto

    intelectual europeu (GARIN, 1974, p.355). Na Itália, sua obra constituiu a base para a

    formação de gerações inteiras de intelectuais, interessados na crítica ao positivismo e na

    afirmação de uma relação orgânica entre história e filosofia, entre cultura e pensamento. Entre

    os jovens que tomavam contato com este movimento neoidealista nos anos 1910 e

    especialmente no contexto da guerra, estas ideias não poderiam não ser também um convite a

    um tipo de engajamento político-cultural, um estímulo para a fundação de círculos de debates,

    periódicos e para a inserção nos debates nacionais e internacionais.

    Contraditoriamente, as ideias crocianas desprovincializavam a cultura italiana,

    inserindo-as definitivamente no contexto europeu, como uma força de atração que se traduzia

  • 29

    entre os crocianos, de maneira desigual, como crítica ao positivismo filosófico, ao

    determinismo econômico, ao reformismo político e, também, ao socialismo (ibid., p.355-356).

    A hegemonia cultural exercida pelas ideias de Croce significou um processo rico e complexo,

    no qual seus argumentos estimulavam e inquietavam muitos intelectuais em formação (cf.

    BIANCHI, 2007; GARIN, 1974, p.3). Afinal, o princípio crociano de que o pensamento não

    poderia reduzir o estudo da cultura a uma lei causal gerava outro princípio, aquele no qual a

    vida cultural deveria ser encarada como um campo de forças permanente e progressivamente

    mais amplo e contraditório em sua composição e caráter.

    Este é o contexto no qual Antonio Gramsci e Piero Gobetti se formaram e atuaram, em

    especial no ambiente urbano e industrializante de Turim, no qual ambos viveram e estudaram.

    Este meio era bastante marcado pela filosofia e ciência positivista no âmbito cultural e

    científico, nas revistas e na Universidade, que lhes parecia atrasado e hostil aos ideais da

    vontade, ação e autoafirmação presentes no pensamento neoidealista (LUCARINI, 2008,

    p.220). Ambos compartilhavam do nascente movimento de ruptura “contra a tradição (...) que

    caracterizou a atitude de muitos jovens intelectuais italianos e europeus nas primeiras décadas

    do século XX” (GUIDA, 2008, p.685). Este ambiente os levou a um movimento duplo – de

    absorção das ideias do movimento crítico ao positivismo, “o mais árido, seco, estéril,

    desconsoladamente estéril pensamento do século XIX”, mas também de crítica e

    distanciamento em relação à corrente neoidealista, ainda que de maneira frágil (SF, p.13).

    Gramsci e Gobetti partiram do conceito crociano de cultura como ato de pensamento

    amplo, capaz de “fazer história, história verdadeira” e “desfazer mitos e ídolos” (CROCE,

    1920, p.31, p.105).17 Justamente por isso compartilhavam a ideia de que nenhum movimento

    ou ação política poderia se justificar, ou usar da autoridade de alguma orientação filosófica

    específica, para se desenvolver (SF, p.13). Era preciso elaborar uma relação autônoma com o

    pensamento, bem como estimular e fortalecer o ambiente no qual esta atitude de autonomia

    pudesse ser compartilhada.18 Por isso buscaram inspiração no movimento crítico e engajado,

    encorajado pelo convite intelectual modernizante das ideias de Croce, que germinara antes da

    17 “À filosofia do ‘problema fundamental’ correspondia, em resumo, uma história da filosofia esquemática: à filosofia como metodologia deve corresponder uma história da filosofia muito mais rica e variada, que considere como filosofia não apenas aquilo que se atém ao problema da imanência e da transcendência, do mundo e do outro mundo, mas tudo aquilo que é válido acrescentar ao patrimônio dos conceitos diretivos, à inteligência da história efetiva e para formar a realidade do pensamento na qual vivemos” (CROCE, 1920, p.148). 18 Para Gramsci, esta era a clara intenção em março de 1914, quando da criação, em Turim, do Gruppo studentesco socialista di cultura [Grupo estudantil socialista de cultura] (E, p.160-161). O mesmo sentido era conferido por Gobetti em 1918, quando organizou a publicação de Energie Nove e as reuniões da Lega Democratica, impulsionada pela revista L’Unità, em Turim. Ver adiante.

  • 30

    guerra nas páginas de revistas como La Voce e L’Unità, e agora cedia espaço a um novo ciclo

    político-cultural.

    A reforma da tradição estava no horizonte de Piero Gobetti quando, ao final da guerra,

    em novembro de 1918, saiu em defesa de Croce contra os “palhaços da cultura” que o

    acusavam de antipatriotismo em virtude de seus estudos sobre a filosofia alemã. Gobetti

    afirmou a filosofia do espírito como “a obra mais italiana (ou seja, mais séria) que oferecemos

    [os italianos] à civilização nos últimos anos” (GOBETTI, 1918b, p.26; id., 1960, p.17-20). A

    revista Energie Nove havia apenas iniciado sua publicação e o jovem estudante de direito da

    Universidade de Turim já evidenciava a dificuldade em promover a cultura neste ambiente

    intelectualmente “atrasado”, “rígido”, “professoral”, influência do pensamento positivista (SP,

    p.29; Ntbe, p.75). O pensamento de Croce – assim como o de Giovanni Gentile19 – aparecia

    como o antídoto a “esta morta Turim”, que permitiria o desenvolvimento de um “idealismo

    militante” entre os jovens (C, p.3, p.5).

    Gobetti pertencia à geração de “jovens formados por Croce”, “amadurecida pela

    guerra e que se preparava com novo vigor (...) para a crise do Estado” (BOBBIO, 1986,

    p.207). Como a geração anterior, vociana, a nova geração era crítica ao positivismo e ao

    reformismo e fortemente atraída por uma proposta de pensamento em que a história pudesse

    substituir a filosofia abstrata. Gobetti admirava Croce, mas não queria ser confundido com

    “os crocianos”, “professores sem qualquer originalidade, pedantes”, que decoravam os

    escritos do filósofo para ficar repetindo mecanicamente como se fossem “um novo

    Evangelho” (SP, p.46). Em sua opinião, o “sistema crociano” deveria ser pensado “como

    instrumento de trabalho, como ponto de partida para novas pesquisas” e não como algo

    hermético (ibid., p.46).

    Gobetti rejeitava os “seguidores” de Croce, dispostos a reproduzir acriticamente

    qualquer coisa que este dissesse ou escrevesse, mas valorizava o papel desempenhado pelo

    filósofo napolitano na Itália antes e durante a guerra, como criador “do movimento filosófico

    novo que está na dianteira do movimento mundial”, “formador de consciência” e crítico

    19 Em cartas trocadas entre 1918 e 1919 com Ada Prospero, Gobetti sinalizou sua preferência pelas ideias de Gentile em alguns temas filosóficos. A relação com o pensamento de Gentile se deterioraria em seguida, no contexto da adesão deste ao fascismo italiano (cf. Ntbe). Ver adiante.

  • 31

    implacável do que chamava de “mentalidade maçônica” (Ntbe, p.97).20 Toda simplificação e

    mecanismo do pensamento deveriam ser substituídas pelo “momento metodológico da

    historiografia”, ao qual Croce acenara em sua Teoria e Storia della Storiografia, no qual o

    argumento sobre a relação entre cultura e teoria, exposto na Estetica, ganhava contornos mais

    precisos (CROCE, 1920, p.136). Gobetti assumiu este “núcleo essencial do pensamento

    crociano” como base imprescindível das próprias elaborações, mas não o fez de maneira

    acrítica (BOBBIO, 1986, p.208).

    Para Croce, a filosofia era a “metodologia da historiografia” na medida em que se

    apresentava como processo de “elucidação das categorias constitutivas dos juízos históricos”,

    ou seja, como justa compreensão da forma e conteúdo da cultura em seus diversos momentos.

    No contrabalanço entre filosofia e cultura, a primeira se mantinha predominante e a segunda

    era assumida como uma forma de controle da arbitrariedade do pensamento filosófico

    (CROCE, 1920, p.136-137). Depois de estudar justamente a Estetica e a Teoria e Storia,

    Gobetti intuiu que o equilíbrio elaborado por Croce para esses dois conceitos era instável,

    permeado por uma forte contradição interna. Em uma carta de agosto de 1919 para Ada

    Prospero, o estudante de direito afirmou a necessidade de repensar o conceito crociano de

    intuição – basilar em sua elaboração da ideia de cultura –, o qual lhe parecia “abstrato”,

    “considerado quase objetivamente”, como categoria psicológica (Ntbe, p.75).

    A intuição, reelaborou, deveria ser entendida como “a consciência de um estado de

    ânimo”, enquanto o conceito, ao contrário, seria “a consciência do processo através do qual

    nós adquirimos consciência” (ibid., p.76). Neste caso, a diferença entre intuição e conceito

    seria apenas uma questão de dimensões (consciência “individual” e consciência “universal”),

    não podendo ser assumida como objetiva e tampouco como cronológica. A cultura seria,

    portanto, parte orgânica da filosofia, entendida como “tomada de consciência das formas nas

    quais a própria consciência se desenvolve”, contendo em si tanto o aspecto intuitivo

    (individual) como o conceitual (universal). A leitura que Gobetti promovia do pensamento de

    Croce em 1919 radicalizava a unidade entre conceito e intuição, entre filosofia e cultura,

    afirmando esta como parte orgânica daquela.

    20 Em novembro de 1918, Gobetti fez referência em um artigo da Energie Nove ao ensaio Mentalità massonica [Mentalidade maçônica], publicado em 1910 em La Voce e reunido, ao lado do artigo La morte del socialismo [A morte do socialismo], na rubrica Due Conversazioni do volume Cultura e Vita Morale publicado em 1914 (SP, p.20). Croce via a mentalidade maçônica como um grande perigo para a cultura italiana, dado seu caráter abstrato e simplista, uma mentalidade que “simplifica tudo”, “passa superficialmente por tudo, triunfalmente, em nome da razão da liberdade, da humanidade, da fraternidade, da tolerância” (CROCE, 1914, p.161). Uma forma de mentalidade que levava ora à ingenuidade, ora à hipocrisia, nascida das reverberações do enciclopedismo e do jacobinismo do século XVIII na Itália. Na opinião de Croce, no século XX, o socialismo passara a ser “invadido” por esta mentalidade, negando suas premissas originais.

  • 32

    Assim como Gobetti, Gramsci considerava Croce “o mais importante pensador da

    Europa” daquele momento e foi assim que o apresentou no opúsculo Città Futura, “dedicado

    aos jovens” e publicado no início de 1917 em nome da Federazione Giovanile Piemontese

    [Federação Jovem do Piemonte], ligada ao partido socialista (CF, p.3; p.21-22). Inteiramente

    composto por Gramsci, a pedido da organização socialista de juventude, Città Futura foi

    publicado com tiragem única e trazia uma passagem de um escrito de Croce21 entre os demais

    artigos (ibid., p.3; p.21-22). O objetivo do opúsculo era apresentar a finalidade educativa e

    formativa da organização dos jovens no movimento socialista, no sentido da promoção do

    máximo desenvolvimento de sua energia e inteligência (ibid., p.3). Apesar da guerra, a

    juventude socialista crescia e isso era uma consequência do engajamento de milhares de

    jovens movidos pelos dilemas do conflito.

    “Na história não existe nada de absoluto e rígido”, afirmava em sentido crociano, e o

    engajamento dos jovens no interior do movimento socialista era entendido como nada mais

    que o “ato de independência e liberação, contrário à indiferença” e inexpressividade que

    assolava a sociedade italiana mesmo no contexto da guerra (ibid., p.7, p.16). Gramsci via em

    Croce um adversário do socialismo mas, ao mesmo tempo, um “grande pensador” que seguia

    abordando de maneira verdadeira “os problemas últimos da existência”, inclusive aqueles que

    diziam respeito ao engajamento político e à sobrevivência do movimento socialista (ibid.,

    p.21).

    Em seu opúsculo, Gramsci retomou a máxima crociana – “o socialismo morreu” – do

    artigo de 1911 (CROCE, 1914, p.170). Croce avaliava a morte do socialismo na Itália a partir

    do fracasso em fazer seu programa uma realidade que pudesse superar sua história “anedótica

    e episódica” como corrente política. Isso porque tanto o partido socialista, como os

    sindicalistas revolucionários inspirados em Georges Sorel – as duas principais expressões do

    socialismo na península – acabaram por se adaptar à vida política do Estado burguês,

    abandonando os princípios da doutrina socialista (ibid., p.170-171). O “fantasma de sonho e

    poesia” criado por Marx, de elevação proletária e superação da burguesia, não se verificara

    em nenhum dos casos: o partido socialista se convertera em administrador estatal

    (“reformismo”), o sindicalismo proletário “existia, mas não existia” (“demagogismo”) e a

    vertente sindical intelectual se convertera em “crítica do estado moderno democrático,

    mafioso, explorador” (“democratismo”) (ibid., p.177).

    21 Se tratava de uma passagem de um dos Frammenti di Etica de Croce, publicado na La Critica em 1915, sobre a relação entre a religião e a filosofia. Nesta, Croce afirmava a validade e vitalidade da filosofia, entendida como concepção de mundo, diante das concepções religiosas tradicionais. Ver adiante.

  • 33

    Gramsci concordava com a avaliação crociana de que o socialismo havia construído

    “um mito para as massas”, que se dissolvera “no nada” (CF, p.25). Sua dissolução, porém,

    “era necessária”, já que a origem deste mito estava em uma “superstição científica” difundida

    nas massas, uma concepção que era, na verdade, “aridamente mecânica”, que tomava o

    homem de maneira genérica segundo supostas leis naturais (ibid., p.26). Para esta dissolução

    contribuíra de maneira decisiva a “renovação do proletariado”, promovida pela

    industrialização nos primeiros quinze anos do século XX e pelo próprio pensamento crociano,

    que se desenvolvera de maneira quase sincrônica a ela.

    O crescimento da massa de trabalhadores proletários industriais havia conduzido a

    uma nova concepção de mundo, mais resistente às ilusões políticas contidas nas concepções

    reformista, demagógica e democrática. Esta massa “refletia agora sobre as próprias forças e

    sobre quanta força seria necessária para alcançar seus fins”, ou seja, depois de sua expansão

    iniciara um processo de “interiorização”, refletindo sobre seu papel histórico (ibid., p.26).

    Gramsci falava de um “recomeço da tradição italiana”, que estava em curso justamente aí –

    uma verdadeira reforma cultural que deveria ser absorvida e fortalecida pelos socialistas

    (ibid., p.34). Ao contrário do que previra Croce, esta reforma lançava as bases não para um

    equilíbrio entre filosofia e cultura sob a hegemonia da primeira, mas sim para a absorção

    definitiva da filosofia pela cultura.

    Em todo caso, no início de 1917 a interpretação do problema da cultura a partir da

    contribuição de Croce estava apenas em seu primeiro desenrolar no pensamento de Gramsci,

    que em seus artigos lançava mais questões do que apontamentos conclusivos. De certa forma,

    isso explica também a necessidade de retomar as passagens crocianas de modo a estimular

    que o debate pudesse nascer dos termos em que o filósofo colocava o problema. A referência

    às ideias de Croce revelava o esforço do jovem socialista em argumentar contra o reformismo

    e o determinismo econômico que predominavam no ambiente socialista e, ao mesmo tempo,

    lidar com o que percebia como amarras intelectualistas da filosofia dos distintos.

    A noção crociana de cultura politizara a história e historiografia ao afirmar seu caráter

    imediatamente dinâmico e transitório, em contraste com o pensamento de tipo positivista.

    Esse conceito, elaborado e absorvido por importantes intelectuais engajados no início do

    século XX, se tornou um ponto de partida também para Gramsci e Gobetti. O estudo da

    cultura, aqui, significava principalmente o exercício de compreensão da tradição intelectual

    italiana e europeia, no qual a crítica do passado deveria se vincular invariavelmente à crítica

    do presente. No pensamento neoidealista promovido por Croce, a filosofia operava como

    ponto culminante, absoluto, do desenvolvimento da cultura. Este pressuposto da necessária

  • 34

    subordinação da cultura garantia o equilíbrio do “sistema” de pensamento no qual a ideia de

    distinção possuía centralidade. Filosofia e cultura poderiam se relacionar ao longo da história,

    assim como se relacionam os intelectuais e os “simples”, mas não poderiam nunca estabelecer

    alguma relação de identidade ou extensão. A relação de “unidade e distinção” entre os

    conceitos era concebida de maneira qualitativa e absoluta.

    Em Gobetti e Gramsci, porém, a distinção entre cultura e filosofia não poderia ser

    pensada de maneira absoluta, já que a dialética e o movimento eram as bases fundamentais

    para o enfrentamento da metodologia positivista, predominante em Turim, e do problema da

    mobilização política. Pensar a cultura não poderia não se integrar ao processo autorreflexivo e

    de experimentação política de cada um. A unidade dialética entre o estudo da cultura e o

    pensamento consciente foi o que permitiu a abertura de um canal direto de diálogo no qual a

    diferença e a distinção se converteram em combustível, inclusive, para um constante

    movimento autocrítico.

    As ideias crocianas sobre cultura formaram, portanto, um ponto de partida crítico para

    que Gobetti e Gramsci enfrentassem problemas diferentes. Em fevereiro de 1917, Gramsci

    refletia sobre os dilemas da sobrevivência socialista, além de questionar o sentido mais geral

    da renovação cultural proposto Croce, assinalando a potencial força da filosofia crociana

    como o produto não de uma genialidade individual, mas do desenvolvimento social da vida

    italiana e seus contornos europeus no início do século XX, ao qual o filósofo reagia. Não

    parecia evidente para Gramsci, neste período, a conexão entre o estudo do conceito crociano

    de cultura e a revisão que o filósofo realizava do pensamento de Marx. Apesar disto, o

    socialista se colocava justamente o problema do nexo “popular” e moderno do

    desenvolvimento do conceito crociano, ou seja, de entender sua relação com o processo no

    qual as massas trabalhadoras italianas se nacionalizavam e passavam a questionar seu lugar na

    história.22

    Gobetti, por sua vez, colocou no início de 1919 os dilemas da ampliação e

    desenvolvimento do movimento liberal democrático, “unitário”, na Itália. Foi neste contexto

    que sentiu a necessidade de questionar a rigidez com que Croce separava a consciência

    intuitiva daquela expressiva, a cultura da filosofia. Ao tensionar o argumento crociano

    internamente, propôs como solução a incorporação da cultura de maneira orgânica (não

    depurada) ao pensamento filosófico. Algum tempo depois, às vésperas da ascensão do 22 Mais tarde, nos Quaderni del Carcere, Gramsci abordaria novamente este problema afirmando justamente que Croce havia “andado para trás” ao negar a concepção de Marx da filosofia como “cultura de massas” e traduzir “em linguagem especulativa as conquistas da filosofia da práxis”, ainda que esta tradução fosse o “melhor do seu pensamento” (QdC, p.1271).

  • 35

    fascismo, retomaria a questão, em termos mais críticos: “Se filosofia é história, por que a

    filosofia?” (Ntbe, p.578).

    O conceito de cultura proposto por Croce introduzira, contraditoriamente, um nexo

    democrático no mundo intelectual italiano. Seja como produto das condições nacionais, mais

    “aptas” a recepcionar em algum grau esta novidade teórica, seja pelo esforço individual do

    filósofo em traduzir o ambiente cultural revisionista europeu internamente. Como “afinidade

    antagonista”, o conceito crociano se converteu em uma referência incontornável para Gramsci

    e Gobetti, permitindo um diálogo incomum entre os dois. Ao lu