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Minha vida foi marcada pra sempre no dia que, ainda criança assisti o clássico Dunyayi Kurtaran Adam de Çetin İnanç, mais conhecido como Turkish Star Wars e em uma das cenas mais memoráveis do filme, o herói coloca fogo em um cérebro de ouro, uma espada de ouro em formato de raio, todos queimando em um jarro de barro, e ao transformar o ouro em liquido, ele mergulha as mãos na lava e ganha uma luva dourada com super poderes místicos. Por anos e anos essa cena me seguiu e nunca deixou de me impressionar. Vendo The Kingdom of Shadows essa cena novamente me veio a mente na figura do alquimista e suas mãos ardentes. Creio que esse filme não é a inspiração direta de vocês, mas imagino que as inspirações alquímicas venham de lugares parecidos. Vocês poderiam falar um pouco desta cena em especial e da figura do alquimista? O nosso interesse por alquimia começou em 2013, quando começamos a estudar os nossos sonhos intensivamente. Durante dois anos, começávamos todos os dias por registar e discutir os sonhos que tínhamos tido, com o tempo fomos encontrando muitas ligações entre as imagens que nos surgiam em sonhos e imagens que existem em mitologia, contos de fadas, na história da pintura e também em manuscritos alquímicos. O que mais nos impressionou nos alquimistas foi a beleza estranha e o mis- tério das imagens que eles usavam para simbolizar o seu trabalho. Através dos escritos de Carl Jung e Marie Louise Von Franz começámos a entender o trabalho do alquimista como um de transformação interior, transformação espiritual e uma busca pelo auto-conhecimento. Isto é exactamente o que queremos que os nossos filmes sejam, cada filme é um receptáculo onde nos colocamos a nós próprios como prima materia, os nossos pensamentos, emoções, obsessões pessoais, medos, manias, memórias, tudo o que nós somos, e deixamos a ferver. Deixamo-nos decompor, viajamos através das várias dimensões que existem em nós e procuramos sarar, conhecermo-nos mais profundamente e deixar-nos ser transformados. O Alquimista no The Kingdom Of Shadows (interpretado por Kai Fiáin) representa este trabalho, o acto de se colocar a si mesmo na cozedura, ele é ao mesmo tempo o material que está a ser trabalhado e uma testemunha desse trabalho, no final ele transforma-se, mas transforma-se naquilo que sempre foi, ele torna-se ele mesmo totalmente manifesto! 1 DANIEL FAWCETT & CLARA PAIS ENTREVISTADOS POR GURCIUS GEWDNER / RISCO CINEMA RISCO Cinema vai apresentar a estreia sul-americana do nosso filme The Kingdom Of Shadows na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no dia 17 de Março, às 17 horas. Detalhes do evento estão aqui: https://tinyurl.com/ybrqq8nu A sessão vai ser seguida por uma conversa sobre o filme, com o nosso querido amigo e cineasta Gurcius Gewdner. Em pre- paração para a apresentação, Gurcius entrevistou-nos sobre a criação do filme e os nossos outros projectos, que partilhamos em baixo. Um grande obrigado a Lucas Murari, Luiz Garcia, Gurcius Gewdner e todos envolvidos em Risco Cinema pelo seu tra- balho e por organizarem esse evento.

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Minha vida foi marcada pra sempre no dia que, ainda criança assisti o clássico Dunyayi Kurtaran Adam de Çetin İnanç, mais conhecido como Turkish Star Wars e em uma das cenas mais memoráveis do filme, o herói coloca fogo em um cérebro de ouro, uma espada de ouro em formato de raio, todos queimando em um jarro de barro, e ao transformar o ouro em liquido, ele mergulha as mãos na lava e ganha uma luva dourada com super poderes místicos. Por anos e anos essa cena me seguiu e nunca deixou de me impressionar. Vendo The Kingdom of Shadows essa cena novamente me veio a mente na figura do alquimista e suas mãos ardentes. Creio que esse filme não é a inspiração direta de vocês, mas imagino que as inspirações alquímicas venham de lugares parecidos. Vocês poderiam falar um pouco desta cena em especial e da figura do alquimista?

O nosso interesse por alquimia começou em 2013, quando começamos a estudar os nossos sonhos intensivamente. Durante dois anos, começávamos todos os dias por registar e discutir os sonhos que tínhamos tido, com o tempo fomos encontrando muitas ligações entre as imagens que nos surgiam em sonhos e imagens que existem em mitologia, contos de fadas, na história da pintura e também em manuscritos alquímicos. O que mais nos impressionou nos alquimistas foi a beleza estranha e o mis-tério das imagens que eles usavam para simbolizar o seu trabalho. Através dos escritos de Carl Jung e Marie Louise Von Franz começámos a entender o trabalho do alquimista como um de transformação interior, transformação espiritual e uma busca pelo auto-conhecimento. Isto é exactamente o que queremos que os nossos filmes sejam, cada filme é um receptáculo onde nos colocamos a nós próprios como prima materia, os nossos pensamentos, emoções, obsessões pessoais, medos, manias, memórias, tudo o que nós somos, e deixamos a ferver. Deixamo-nos decompor, viajamos através das várias dimensões que existem em nós e procuramos sarar, conhecermo-nos mais profundamente e deixar-nos ser transformados. O Alquimista no The Kingdom Of Shadows (interpretado por Kai Fiáin) representa este trabalho, o acto de se colocar a si mesmo na cozedura, ele é ao mesmo tempo o material que está a ser trabalhado e uma testemunha desse trabalho, no final ele transforma-se, mas transforma-se naquilo que sempre foi, ele torna-se ele mesmo totalmente manifesto!

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DANIEL FAWCETT & CLARA PAIS ENTREVISTADOS PORGURCIUS GEWDNER / RISCO CINEMA

RISCO Cinema vai apresentar a estreia sul-americana do nosso filme The Kingdom Of Shadows na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no dia 17 de Março, às 17 horas.

Detalhes do evento estão aqui: https://tinyurl.com/ybrqq8nu

A sessão vai ser seguida por uma conversa sobre o filme, com o nosso querido amigo e cineasta Gurcius Gewdner. Em pre-paração para a apresentação, Gurcius entrevistou-nos sobre a criação do filme e os nossos outros projectos, que partilhamos em baixo.

Um grande obrigado a Lucas Murari, Luiz Garcia, Gurcius Gewdner e todos envolvidos em Risco Cinema pelo seu tra-balho e por organizarem esse evento.

E que outros símbolos o filme carrega? Li uma review de uma pessoa não familiarizada com mitos religiosos ocidentais e achei muito interessante a maneira que ele tentou ler as imagens desprovido de conhecimentos da bíblia. Que outras misturas místicas podemos encontrar no filme?

The Kingdom Of Shadows cresceu a partir do material que fomos recolhendo dos nossos sonhos, começou a sua vida como um filme sobre as nossas famílias, não necessariamente as nossas famílias como elas são externamente mas como elas existem nos nossos sonhos ou dentro de nós como símbolos. Queríamos fazer um filme que sarasse as feridas e sofrimento dos nossos an-tepassados de uma forma muito real, precisávamos de nos libertar da influência que o passado tem sobre nós para podermos estar em paz e viver as nossas próprias vidas e não a vida que é ditada pelo passado. Isto levou-nos a pensar sobre como funcio-na o legado da ascendência, como os nós psicológicos são passados de geração em geração. O grande nó mitológico que existe no coração da nossa cultura é representado pelo homem e mulher arquetípicos Adão e Eva. Nós queríamos desatar esse nó e transformar essas imagens, com este filme queríamos curar Adão e Eva! Nos nossos estudos de alquimia encontramos a figura do Rebis, uma figura andrógina metade homem e metade mulher, uma figura em que os opostos estão unidos. Esta unidade e divisão estão representados várias vezes no The Kingdom Of Shadows, no Alquimista, nos Amantes (Adão & Eva), e também na filha e no Caim. Isto não é sobre a dinâmica heteronormativa de uma relação mas sobre a reunião de energias opostas, também se poderiam chamar luz e escuridão ou sol e lua, qualquer símbolo de dualidade... na verdade, é sobre as forças masculinas e femininas que existem em cada um de nós.

E o misticismo cinematográfico? Eu vejo Shuji Terayama, Guy Maddin, Maya Deren, Richard Kern, Jack Smith e muitos outros. Mas me pergunto até que ponto sou eu que vejo estes cineastas em tudo e como eles contaminam com sua força cada imagem nova que me surge em frente. Quem são os gurus fílmicos e ritualísticos que trouxeram inspiração para a criação das imagens e narrativa do filme?

Junto a nós durante o processo de criar todos os nossos filmes estão os espíritos de Derek Jarman, Jeff Keen, Vera Chytilova, Alejandro Jodorowsky, Raul Ruiz, Sergei Parajanov, Jan Svankmajer e muitos outros, nós adoramos tantos tipos de filmes, todo o cinema é uma inspiração para nós! De certa forma, as influências específicas de The Kingdom Of Shadows são as mesmas que os nossos outros filmes mas junto à mistura pensámos muito sobre as técnicas do cinema mudo, particularmente o uso de tableaux e cenas compostas em planos maiores, mas é um cinema mudo via a Czech New Wave. Na altura também pensamos muito sobre performance e a linguagem do gesto, seguindo sugestões do trabalho de Meredith Monk mas também, de forma menos óbvia, de Laurel & Hardy e Buster Keaton, mas suponho que dando às nossas performances uma inflexão mais expres-sionista em vez de cómica. Tudo isto está lá misturado, e também uma grande influência de pintura europeia, em especial pintura renascentista italiana e iluminuras medievais, principalmente as maravilhosas ilustrações alquímicas do Splendor Solis.

Se algumas das imagens são re-interpretações dos sonhos e a sua re-interpretação altera o significado das lembranças e imagens, como escapar do looping interminável, de filmar sempre o mesmo sonho, re-interpretando ele de maneira diferente todas as vezes que for refilmado?

Por um lado suspeitamos que estamos sempre a fazer o mesmo filme uma e outra vez, há um conjunto principal de temas e imagens que parece que não somos capazes de escapar, talvez sejam coisas que são tão fundamentais ao nosso próprio ser que serão sempre centrais à nossa tarefa como artistas. Recentemente ao reconsiderar os filmes que fizemos até agora apercebemo-nos que de certa forma todos eles poderiam ser vistos como mitos de criação, esta questão do papel do artista/criador e a na-tureza da criatividade é investigada e revirada uma e outra vez tanto a nível pessoal como mitológico.

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Um dos factos incríveis sobre sonhos é que não podem ser controlados, eles trazem do inconsciente um número infinito de imagens surpreendentes que nunca conseguiríamos conceber de forma consciente. Sonhos têm a habilidade impressionante de ser ao mesmo tempo completamente desconcertantes e manter a sensação de que são absolutamente certos e como de-vem ser. Nós usamos muito cenas e imagens que nos aparecem em sonhos mas nunca nos preocupamos com tentar recriá-las fielmente nas cenas dos filmes, as imagens transformam-se continuamente durante o processo de criação. O que procuramos é criar um cinema que funciona para os espectadores da mesma forma que um sonho, que os filmes possam desconcertar e surpreender e ao mesmo tempo passar a sensação de que tudo é tal como deve ser, abrindo portas para novas dimensões de sentimento, pensamento e compreensão de cada um.

O que é a The Phantom Film Band? Alguns trechos vocais me lembram músicas de Diamanda Galas e Iva Bittova e a edição de som muitas vezes me lembra apresentações de musica que assisti onde se fazia música com bater de garfos, microfones instalados em facas e comida sendo triturada e mastigada em altos decibéis. Como é a experiência de lidar com trilha e som em um filme totalmente sem diálogos? Qual a importância de trabalhar com diferentes textura de sons? Me identifico com a liberdade de filmar sem preocupações diretas com o som geral, e recriar ele do zero no mo-mento da edição.

The Phantom Film Band é o nome que usamos quando a música foi criada totalmente por nós ou foi fortemente dirigida por nós em colaboração com alguns músicos, por oposição a quando trabalhamos com um compositor. Para The Kingdom Of Shadows nós criamos a música e escolhemos os músicos da mesma forma que seleccionamos os actores, encontramos pessoas que sabiam usar o instrumento certo ou criar determinado som e dirigimo-los em sessões improvisadas num estúdio de som. Depois levamos todas as gravações e começamos a editar, processando e re-combinando para construir o som final. Alguns dos instrumentos foram tocados por nós, alguns por pessoas que não são músicas, e outros por músicos profissionais, mas puxados para usarem o instrumento de forma mais experimental ou em desafio do seu treino profissional. Queríamos criar um som que fosse outra personagem do filme, tinha de dar a sensação que estaria a assombrar o filme, que não seria apenas uma ilustração da cena no écrã mas antes um elemento activo em si mesmo. É a trilha sonora que realmente dá vida ao filme. Como já apontaste, o filme foi filmado completamente mudo e todos os sons, cada passo, cada rangido, respiração, brisa e tosse, todos foram gravados em estúdio e adicionados depois da montagem estar completa. Nós trabalhamos sempre assim, não queremos que os filmes tenham um som naturalista, não estamos interessados em que as coisas sejam realísticas mas sim em criar uma experiência sensorial em que cada elemento seja imbuído com um universo inteiro!

Que tipo de musica influencia vocês a pensar cinema?

Conheces o álbum The Hangman’s Beautiful Daughter dos The Incredible String Band? Ou Hounds Of Love da Kate Bush? Gos-taríamos que os nossos filmes fossem como estes álbuns, mundos inteiros com diferentes estados de espírito e personagens, diferentes épocas e dimensões todas colidindo e existindo numa só forma, que cada vez que se ouve podem-se descobrir coisas novas, que se transformam e evoluem à medida que tu também mudas. Se pudéssemos fazer filmes assim, que melhoram e se tornam mais complexos cada vez que são vistos, então ficaríamos muito felizes!

Lembranças familiares, literatura, o que mais pode ser combustível?

Tudo pode ser combustível para a criatividade, o corpo é importante e muito pouco falado em relação a como funciona a cria-tividade mas o cinema e toda a arte tem origem no corpo. Filmes são extensões do corpo, são os nossos membros fantasma. As relações entre os nossos orgãos, a nossa dieta e ambiente em que vivemos, tudo tem influencia na nossa criatividade. Os nos-sos pensamentos, emoções e todas estas coisas estão presentes nos nossos filmes. Se nos cortasses e fosses numa viagem pelo interior dos nossos corpos encontrarias por lá os nossos filmes, talvez The Kingdom Of Shadows embrenhado nos intestinos, In Search Of The Exile na garganta, Cine-Rebis por baixo das nossas pálpebras e Savage Witches no nosso sangue!

Voltando ao passado: Como vocês se conheceram e em que momento se decidiu criar o The Underground Film Studio?

Nós conhecemo-nos no final de 2010 em Brighton, no Reino Unido, no evento de lançamento do quinto número da One+One Filmmakers Journal, uma publicação que o Daniel fundou e que dirigia na altura, para a qual a Clara contribuiu um artigo sobre Stan Brakhage. Estávamos ambos à procura de uma forma de fazer cinema que fosse profundamente significativa, pessoal e verdadeiramente independente da mentalidade e processos industriais que tinham contaminado a cena do cinema “independ-ente”. Queríamos ambos dedicar-nos totalmente a um processo exploratório, experimental e pessoal de criação de filmes e investigar todas as infinitas possibilidades do que o cinema pode ser!

Umas semanas após nos conhecermos começámos logo a criar a nossa primeira longa metragem juntos, Savage Witches. Esse filme foi criado durante 18 meses de trabalho diário intenso, filmando, editando, animando, filmando de novo, despedaçando tudo e começando de novo. Foi durante este período que a dinâmica da nossa colaboração se formou, em que articulamos a nossa missão em conjunto e fundamos o Underground Film Studio, como a bandeira para criar e distribuir todos os nossos projectos.

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É possível dividir as funções técnicas e criativas de maneira racional quando se cria um filme em dupla? Quando que trabalhar como um duo se torna tortuoso e quando ele se torna prazer total?

Nós somos um artista dividido em dois corpos, é sempre um prazer total criar filmes juntos, não existe nenhuma divisão ou separação no trabalho e também não há nenhuma fórmula fixa. Num filme pode ser que um de nós opere a câmara e o outro trabalhe mais com os actores, e noutro filme pode ser o contrário, a maior parte do tempo ambos fazemos um pouco de tudo. Trabalhamos sempre com muitas pessoas mas muito raramente temos uma equipa técnica por isso acabamos por fazer tudo nós próprios. A forma como trabalhamos é muito intuitiva e é possível pelo facto de que estamos sempre em constante diálogo entre filmagens, o nosso tempo é passado a escrever, pesquisar e experimentar por isso quando estamos em filmagem muito pouca discussão é necessária e podemos trabalhar muito rápido e facilmente. Em geral, ambos achamos comunicação verbal algo frustrante mas durante as filmagens muitas vezes acontece que acabamos por ter a mesma ideia ao mesmo tempo e ap-enas um gesto ou uma palavra são precisas para continuar as coisas.

Como as vivências e lembranças pessoais se misturam na hora de criar um trabalho em duo?

Tudo é posto em cima da mesa e misturado junto, na nossa colaboração. De alguma forma tudo o que fazemos é profunda-mente pessoal e também nada pessoal, é como se disséssemos ‘Aqui está o meu coração e a minha alma mas não é nada pes-soal’. Os dois somos muito individualistas mas quando estamos a criar a nossa arte estamos ambos em serviço, nunca somos donos ou mestres. Claro que temos egos como toda a gente mas talvez sendo dois ensinou-nos a habilidade de desligar o ego nos momentos em que realmente conta. É algo muito estranho, é provavelmente por isso que nunca discutimos, nunca senti-mos que temos de impor a nossa vontade, é mais como se ambos tentássemos sintonizar com o filme em si e compreender o que o filme quer fazer, como quer ser, e fazemos o melhor que podemos para lhe dar vida.

Como se define autoria em um filme criado a quatro mãos e aberto a todos os tipos de improvisos com a câmera e com os atores? Vocês filmam abertos ao improviso ou um planejamento detalhado sempre se impõe?

Temos sempre um plano muito claro mas o plano está aberto a ser modificado a qualquer momento. Nós vemo-nos como medi-uns ou protectores do filme, o filme fala através de nós e por isso somos os autores da realização do filme que toma certa forma por se materializar através das nossas condições individuais, mas lá no fundo sabemos que o filme é um conjunto de imagens e ideias que tem de vir à consciência, nós somos apenas um canal por onde sai. Talvez o mesmo filme manifestar-se-ia por outra pessoa com um estilo, ritmo e forma diferentes, mas seria a mesma alma num corpo diferente.

Para o The Kingdom Of Shadows, começamos com um roteiro de quatro páginas que consistia em notas para cenas e algumas imagens de referência. Tínhamos acesso ao espaço principal, a casa dos avós da Clara que estava fechada há vários anos desde que o seu avó faleceu, e tínhamos um elenco de várias pessoas que seleccionamos por instinto e intuição, nenhum deles é actor profissional mas todos são artistas em diferentes áreas, cineastas, bailarinos, fotógrafos, artistas de banda desenhada e músicos. Experimentamos com a criação das suas performances através de improvisação, não houve nenhum ensaio anterior, a maior parte das pessoas chegaram às filmagens só com uma vaga ideia do que os esperava, começamos com um exercício de visu-alização que criou o ambiente que queríamos invocar para o filme e deitamo-nos ao trabalho! Aconteceu tudo muito rápido, a filmagem principal na casa levou dois dias e o resto aconteceu em sessões de duas ou três horas durante mais alguns dias, em que trabalhamos apenas com um ou dois performers. A maneira como os dirigimos foi ligeiramente diferente com cada um, dependendo da personalidade e tipo de personagem que cada um tinha. Uma das razões para filmarmos sem som sincronizado

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é porque a nossa forma de dirigir é muito semelhante à dos realizadores de cinema mudo, nós guiamos os actores a cada mo-mento pelas várias acções da cena. Mas o nosso processo é muito colaborativo e requere confiança dos dois lados, nós damos direcções claras mas o performer também traz muito, tudo cresce desse encontro entre a nossa imaginação e a fisicalidade e criatividade deles.

Sou apaixonado por cine-manifestos, o que torna tanto a leitura quanto o ato de assistir The Quest for the Cine-Rebis uma experiência muito prazerosa para mim. Me faz pensar nos escritos sobre cinema dos Irmãos Kuchar e também no livro Manifesto Canibal do meu amigo Petter Baiestorf. Todos esses escritos celebram um coração eternamente aberto ao ato de criar e fazer cinema, e apesar de terem divisões determinadas, tem em comum o fato de quem basicamente faz as regras é o artista e elas sempre estarão em constante mutação. Qual a motivação de escrever um manifesto?

O nosso manifesto começou como uma pilha de notas que se ia acumulando nas nossas secretárias durante anos, que contin-ham pensamentos sobre cinema, criatividade, o papel do artista e outros tópicos como sonhos, mitologia, alquimia, tarot etc. Inicialmente estávamos a planear escrever um livro sobre cinema que seria uma parte autobiografia, uma parte investigação dos nossos filmes e filmes que amamos, e outra parte uma filosofia pessoal do cinema. E depois em 2015 quando fizemos o crowdfunding para The Kingdom of Shadows e Black Sun, começamos a criar pequenos filmes para os nossos patrocinadores como forma de dizer obrigado pelo apoio, e vários fragmentos das nossas notas para a secção de ‘filosofia do cinema’ acabaram por ser usadas como voice-over nestes filmes. Ao longo de duas semanas fizemos 27 curtas numa explosão maníaca de activi-dade e ao final disso era claro que tínhamos de fazer algo mais com estas pequenas peças, que pareciam exprimir tão bem em imagens aquilo tínhamos tentado pôr em palavras, por isso começamos a criar o filme e manifesto escrito, que resumem as nos-sas ideias. Era importante para nós que se era para termos um manifesto teria de ser pelo menos uma parte um filme porque o que estamos a discutir nunca pode ser completamente expressado em palavras. Ainda temos em mente publicar o nosso livro um dia.

Como não enlouquecer pensando em todas as possibilidades infindáveis de se criar e re-criar imagens e filmes diante da brevidade da vida?

Nós enlouquecemos mesmo a pensar nisso! Se tu soubesses como isso nos persegue e nos leva a hiperactividade constante e por vezes comportamentos totalmente irracionais!! Mas aí temos de nos acalmar e ir de momento a momento, e não esquecer de nos divertirmos também! Todos os dias acordamos e começamos o trabalho e tentamos fazer com que cada momento conte. É incrível estar vivo, viver num corpo e experienciar todas estas imagens e histórias fabulosas que voam pelas nossas mentes. Tentamos organizar a nossa vida de maneira a minimizar o tempo dispensado em actividades que não são importantes para nós e maximizar o tempo que damos ao nosso trabalho. Acreditamos muito em disciplina e competência e tentamos criar em nós mesmos as melhores condições para criar arte, é absolutamente importante fazer dedicar-nos a isto todos os dias, nós temos propensão para nos distrairmos facilmente por isso temos de impor algumas rotinas a nós próprios. Claro que é impossível ao longo de uma curta vida criar todos os filmes que queremos mas ainda assim vamos tentar!

Alguns diretores do Exploitation se sentem orgulhosos de declarar que filmam apenas por dinheiro, mesmo produz-indo peças próximas do art-house, muitas vezes involuntariamente. Muitas vezes o fracasso comercial faz esses dire-tores mudarem de direção, criando filmografias de extremos opostos. Como é a experiência de arrecadar dinheiro para vocês? Existe possibilidade de lucro e distribuição após a produção de um filme? Ou os esforços para conseguir dinheiro sempre levam a criação de outro filme, que por sua vez patrocinará outro filme e assim por diante no looping eterno da loucura que é fazer filmes sem a sorte de ser milionário?

Todos os dias nos perguntamos se algum dia seremos bem sucedidos o suficiente para viver com o luxo de um ordenado mínimo!

Nunca tivemos muita sorte a angariar fundos, sendo algo tímidos e introvertidos significa que não temos muito jeito para che-gar à beira de alguém e convencê-los a darem-nos o seu apoio. Dizendo isso, o que temos é algum talento para juntar grupos de artistas talentosos e com ideias semelhantes e transformar limitações em dádivas criativas, mas também sentimos que temos de fazer algumas mudanças de forma a poder explorar novas áreas nos nossos filmes. De momento estamos a planear alguns projectos mais ambiciosos que vão precisar de uma equipa maior e certamente de alguma ajuda em termos de organização e produção, e estamos a ver se aparecem os colaboradores certos para fazer isto acontecer.

Em termos de lucros dos filmes, não sabemos mesmo, talvez esse sistema tenha já chegado ao fim, especialmente para peque-nas produções. Já ninguém paga realmente para ver filmes e talvez isso não seja mau, não temos uma solução para como o artista pode sobreviver, mas não devemos deixar isso ser uma desculpa para nos agarrarmos a sistemas moribundos. Temos de continuar a explorar, investigar novas estruturas de produção e sistemas de apoio.

Li um desabafo de vocês sobre todas as dificuldades de conseguir tela de exibição, arrecadar dinheiro e angariar aten-ção crítica para seus filmes e o quanto isso pode ser frustrante muitas vezes. O mínimo de retorno que as vezes vem de 100, 200 correspondências diferentes, simplesmente tentando fazer o próprio filme existir. Me identifico e ao tornar

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esse desabafo público ficou claro que muita gente se identifica também. Sei que essa sensação de frustração se torna pequena quando as noticias boas acontecem, mas tem momentos onde tudo parece ser totalmente em vão. Como essa sensação bate no peito agora?

As frustrações ainda são as mesmas, estamos sempre a tentar encontrar maneiras de lidar com estas coisas de forma a ajudar os nossos filmes a alcançar maior público mas também certificando-nos que são apresentados da maneira certa, e ao mesmo tem-po tentando proteger-nos e à nossa energia, que realmente só queremos dedicar a boas relações e ao nosso trabalho criativo. É isso que tentamos fazer sempre. Encontramos uma grande fonte de inspiração e energia ao unir forças com outras cineastas, organizando apresentações dos seus filmes no Reino Unido e em Portugal e eles organizando apresentações dos nossos filmes também. Colaboração e comunidade é a chave para nós, é que nos mantém à tona e é um meio de sobrevivência! Quando es-tamos no papel de programadores fazemos tudo ao nosso alcance para servir os filmes e os cineastas, para apresentar os filmes com as melhores condições técnicas possíveis, respeitando o trabalho e o artistas, mantendo boa comunicação e partilhando o nosso entusiasmo com o público. Para nós os filmes são sempre prioridade, celebrar o trabalho e fazer tudo para que o encontro mágico entre o artista, o filme e o público possa existir da melhor forma.

O baixo orçamento é uma vantagem? Cansa filmar com poucos recursos? Às vezes me sinto cansado e realmente gos-taria de filmar com orçamentos maiores, para entender como o uso de mais dinheiro poderiam dar asas a minha im-aginação e equipe. Ao mesmo tempo me vejo agradecido pelo clima de cumplicidade entre amigos que talvez só seja possível com baixos recursos? Dito isso, como vocês enxergam o futuro do seu próprio cinema? Vale a pena?

Temos à volta de vinte e cinco argumentos que escrevemos durante os últimos sete anos que estão prontos a ser pegados, todos eles precisam de algum orçamento a vários níveis mas todos são incrivelmente baixos relativamente à maior parte das produções. Não precisamos de quantias exorbitantes, com pequenos valores sabemos que poderíamos criar visões lindas e únicas, estamos apenas à espera da oportunidade para lhes dar vida. Até agora fizemos oito longas-metragens e raramente elas excederam orçamentos de uma ou duas mil libras. Claro que há grandes benefícios ao trabalhar em produções tão pequenas e sabemos bem que a criatividade pode transformar as mais miseráveis condições em algo interessante e mágico mas isso também traz um grande nível de frustração. Às vezes sentimos que estamos presos a criar um certo tipo de filme, a usar de-terminados tipos de equipamento e sempre impossibilitados de pagar aos nossos performers, o que limita o tempo que eles podem dar ao projecto, e isto acaba por influenciar como trabalhamos com eles, se fazemos ensaios, takes múltiplos ou coisas elaboradas etc.

Às vezes estas limitações realmente transformam-se em milagres, The Kingdom Of Shadows foi feito com o mais escasso dos orçamentos, tínhamos apenas suficiente para pagar despesas de transporte e comida e era tudo. A maioria do filme foi rodado durante um fim de semana com algumas cenas filmadas durante mais uns dias aos fins de tarde, mas de certa forma esta limi-tação do tempo foi o que fez com que tudo funcionasse, toda a gente estava super concentrada e fez exactamente aquilo que era esperado de si e entregaram-se totalmente sabendo que só tínhamos uma oportunidade. Foi incrível, um ambiente fantás-tico, muito relaxado mas sério e motivado, e trabalhando de forma constante para atingir todos os objectivos.

Temos outro filme que estamos a preparar chamado The Cloud Of Unknowing, é um sci-fi-místico de quatro horas, um filme so-bre mistério que se desenrola na cidade do Porto em Portugal, alguns dos actores e personagens do The Kingdom Of Shadows voltam à cena. Este filme vai definitivamente precisar de algum dinheiro para ser feito, não muito mas suficiente para podermos ter o equipamento certo, ter acesso a alguns sítios específicos e outros itens especiais que são difíceis de arranjar sem orçamen-

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to como um hipopótamo, talvez um tigre e outros animais para uma cena, e também vai ter alguns efeitos especiais. Estamos determinados em fazer este filme, sabemos que vai ser o nosso melhor filme até agora, está a borbulhar bem do centro do nosso ser! Por isso teremos de encontrar algum dinheiro para isto, não vai poder ser feito sem nada.

Vejo vocês como excelentes arqueólogos do cinema, envolvidos em uma grande paixão por filmar, mas também en-volvidos em grande amor pelo cineclubismo e divulgar trabalhos não só de novas vozes, mas também sempre em con-stante esforço e alegria de celebrar os mestres. Nas páginas virtuais da FILM PANIC, além de divulgar o próprio trabalho, vocês celebram os ícones. Com a FILM PANIC impressa vocês celebram o novo, em um trabalho poético e dedicado que muitas vezes me re-conecta com a pesquisa e os escritos de Jairo Ferreira, autor do livro Cinema de Invenção, o mais belo livro que existe sobre o cinema brasileiro, sobre o tipo de cinema que mais me tira do chão e me faz querer ser um fazedor de filmes também. Vocês também exibem estes filmes, realizando um valioso serviço de descoberta e propa-gação de outros artistas. Não seria mais fácil apenas se concentrar no próprio trabalho? Vocês conseguem definir o que torna tão prazeroso divulgar e refletir sobre esses filmes de outros cineastas? Como todo esse esforço se comunica com o trabalho artístico de vocês?

As sessões e publicações e pesquisa em geral de filmes e cineastas é algo essencial para nós, é uma extensão do nosso trabalho e serve de alimento. Todos os cineastas que entrevistamos na Film Panic são inspirações para nós, todos eles abrem novas pos-sibilidades do que o cinema pode ser. Nós entrevistamo-los porque genuinamente queremos saber mais sobre eles e o seu trabalho e sentimo-nos motivados a partilhar essa pesquisa para que possa chegar a outros que também possam estar interes-sados. Cinema é o nosso dia-a-dia, ocupa a maioria dos nossos pensamentos e do nosso tempo, logo é natural fazer a revista e as sessões também, especialmente já que a nossa missão para além de fazer os nossos filmes é de apoiar e defender outros cujo trabalho nos interessa e que podem não ter vida fácil a divulgar o seu trabalho porque existe para além das categorias dos vários tipos de cinema “institucionalizados”.

Foi fazendo essa arqueologia minuciosa de centenas de mensagens não respondidas, em busca das mesmas coisas que vi vocês desabafando: mais telas, mais maneiras de fazer meu filme existir, mais leituras possíveis vindas de outras cabeças pensantes, que felizmente encontrei vocês. Me senti atraído pelo nome da Magazine, me remetendo ao movi-mento criado por Fernando Arrabal, Jodorowsky e Topor, e pela proposta declarada de divulgar cinema surrealista, ex-perimental e underground. Fui generosamente recebido e com honra me tornei um dos cineastas objeto das entrevistas da revista. Vocês também confiaram em mim para marcar data de exibição de um filme que eu ainda nem havia finali-zado, se arriscando a exibir os mais imprevisíveis delírios, sem ainda saber se eles sequer existiriam. Levei isso muito em conta durante a montagem e um incentivo a mais na liberdade de montar o filme. A certeza de um amparo que nem sempre é uma preocupação com sucesso comercial, já que esse sucesso se faz entendendo qual o próprio público e tentando descobrir maneiras de se chegar até ele. Meu amor por um tipo de cinema que enlouquece e se perde nos próprios signos o tempo todo, me deixou bem a vontade com as ideias de vocês e feliz com a oportunidade de partici-par. Vejo um otimismo pela certeza de que existe coisa nova nascendo o tempo todo que acho importante existir em um mundo muitas vezes lotado de trevas como o nosso. Esse incentivo e otimismo louco refresca a utopia necessária em todo nós pra não desistir. É possível ser um eterno incentivador de utopias no mundo muitas vezes egoísta do fazer cinema?

Algo que tem sido um grande estimulante para nós nos últimos tempos é que temos encontrado cada vez mais cineastas com quem sentimos uma afinidade, há pessoas espalhadas por todo o mundo que partilham as nossas paixões, motivações e entu-siasmo por uma certa sensibilidade de cinema. Houve uma altura, talvez há cinco anos atrás, em que nos sentíamos totalmente sozinhos, era muito angustiante, o tipo de filmes que fazíamos e que aspirávamos fazer não parecia existir, eram rejeitados prat-icamente de todos os festivais e apresentações, mas com o tempo começaram a surgir outras pessoas. Nós escrevemos exac-tamente sobre isto no último número da FILM PANIC, o que vemos agora é a emergência de um novo movimento avant-garde a que chamamos o Novo Cinema Visionário, The New Visionary Cinema. Não é um movimento no sentido de estar organizado em volta de um grupo fixo com objectivos e planos definidos, é um movimento internacional que se materializou orgânica e espontaneamente a partir das condições do nosso tempo. É em parte uma reacção às ideologias dominantes da nossa época, mas também é possível graças à tecnologia disponível hoje em dia. É uma altura fascinante para se fazer filmes, há muitas coisas surpreendentes e incrivelmente criativas a acontecer no mundo do cinema neste momento!

Poder influenciar pessoas a criarem filmes do zero, se tornarem artistas livres e compromissados com essa barra que é gostar de cinema, é um incentivo para seguir em frente com a FILM PANIC e o Underground Film Studio? Existe a sen-sação de que a utopia muitas vezes não vai funcionar e que tudo é em vão e nada de novo vai surgir no horizonte? É realmente necessário sempre estar em busca de novidade?

Se pudermos dedicar a nossa vida a criar cinema que nos apaixona, a colaborar e partilhar experiências com outros artistas que nos inspiram e em cujo trabalho acreditamos, então isso é tudo o que precisamos para uma vida rica e realizada. Se de alguma forma inspiramos outros artistas a seguir o seu caminho e realizar os seus desejos criativos, consideramos isso uma grande honra! Não é um objectivo para nós a criação de uma utopia em si, mas simplesmente criar um nicho onde nós e outros cine-excêntricos possam criar, partilhar e existir. Cada vez que completamos um filme é um sucesso, cada vez que descobrimos outro

DANIEL FAWCETT & CLARA PAIS ENTREVISTADOS POR GURCIUS GEWDNER / RISCO CINEMA

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artista que nos entusiasma é um triunfo contra a mundanidade e o conformismo. Para nós criar algo novo só para ser novo não é o objectivo, mas criar um espaço para que o que devia existir e não existe, isso sim é o nosso propósito. Não importa se o que fazemos só é útil para um pequeno grupo de pessoas ou para centenas de pessoas, o que importa é que se crie genuinamente um apoio, um recurso e uma inspiração para alguém, quem quer que seja, mesmo que sejamos só nós. Para nós é um milagre existir, cada um de nós é totalmente único e o objectivo da vida é manifestar essa singularidade, os nossos filmes e projectos e a forma como vivemos é a nossa forma de realizar isso!

Com quinze anos de idade, muitas vezes eu via cinco, seis filmes por dia. No momento me vejo lutando para encontrar brechas que me permitam ver filmes todo dia. Muitas vezes me pego decidindo que não vou assistir nada e me sinto aliviado. Outras vezes o ato de rever ou ver um filme pela primeira vez salva meu dia e não raramente minha vida. Como vocês organizam o tempo para o prazer de assistir filmes?

Há cerca de dois anos apercebemo-nos de que seria impossível ver todos os filmes alguma vez feitos, acho que inconsciente-mente estávamos a tentar mas mesmo que toda a produção de filmes acabasse a partir deste momento, seria na mesma impos-sível ver tudo que foi criado até agora. Perceber isto de certa forma libertou-nos dessa tarefa! Normalmente vemos um filme por dia, às vezes relacionado com o que quer que estivermos a pesquisar ou a trabalhar nesse momento e claro às vezes como puro escapismo e entretenimento também. Todos os filmes têm um propósito e podem servir-nos de formas diferentes em alturas diferentes, alguns filmes oferecem estimulação intelectual (geralmente coisas como documentários e filmes-ensaio), outros tentam inspirar algum tipo de actividade (porno e filmes políticos existem nesta categoria), alguns adormecem a mente e servem como tranquilizante (a maioria dos filmes mainstream por exemplo, mas qualquer filme que tenha uma narrativa que te agarra e suga) e alguns filmes mergulham-te numa visão mística sublime (outra palavra para isto é Arte). É este último tipo de filme que nós queremos criar, mas todos os filmes são válidos e servem um propósito.

The Kingdom of Shadows tem muitos convidados especiais, funcionando principalmente na lógica do trabalho entre amigos. Vejo uma troca constante com Rouzbeh Rashidi, participações suas nos filmes dele e vice versa. Como foi feito o contato e início de parcerias com Rashidi e a EFS (Experimental Film Society)?

Temos muitos amigos no The Kingdom Of Shadows mas também algumas pessoas que só conhecemos no dia das filmagens. Tínhamos tido contacto com toda a gente anteriormente de uma forma ou outra mas algumas pessoas mal conhecíamos e deci-dimos arriscar ao convida-los a participar, e eles arriscaram também ao aceitar aventurar-se connosco nesta estranha produção sem realmente saberem no que se estavam a meter! O Rouzbeh era alguém com quem já tínhamos tido algum contacto online e tínhamos partilhado os nossos filmes. Já tínhamos sentido, dos dois lados, que havia grandes ligações entre o que andávamos a fazer nos nossos filmes e a direcção que ambos queríamos seguir no futuro, em retrospectiva parece inevitável que viríamos a colaborar de alguma forma. Quando estávamos a planear as filmagens e a personagem do Inspector surgiu sentimos logo que o Rouzbeh seria perfeito para o papel, não tínhamos ideia se ele estaria interessado de todo, mas fizemos o convite só para ver o que acontecia e ele aceitou! Isto acabou por ser algo maravilhoso, não só para o filme mas também por que nos tornamos tão próximos desde então e já colaboramos em tantos projectos juntos, incluindo participar no seu último filme Phantom Islands e também várias sessões e publicações. Temos muitos mais projectos juntos que serão anunciados a devido tempo, incluindo o regresso do Inspector!

É possível ganhar dinheiro com filmes fora dos padrões hegemônicos de cultura de massa e estruturas narrativas? Gan-har dinheiro realmente importa? E será que realmente existem pessoas que se importam com a existência de cineastas como Gurcius Gewdner, Clara Pais, Daniel Fawcett ou Rouzbeh Rashidi? Sinto que para tudo que se cria nesta vida, existe alguém em algum lugar com o coração aberto para receber, mas como se conectar com essas pessoas? E será que essa conexão realmente representa algo quando talvez as mais belas críticas vem muitas vezes daqueles que não gostam do seu filme?

Parte da nossa missão é procurar as pessoas que realmente se importam com os filmes e unir forças com elas, trabalhar para a sobrevivência de todos nós e acima de tudo dos próprios filmes! Os filmes eventualmente terão uma vida própria, hão-de chegar às mãos das pessoas que os querem ver, não há muito mais que possamos fazer para além de fazer com que os filmes estejam disponíveis da maneira que mais adequada. Não há nenhuma regra geral em relação a isto, algumas pessoas gostam de lançar os filmes online gratuitamente, outros gostam só de mostrar em cinemas, outros só em festivais e galerias ou di-rectamente em DVD, só o cineasta pode decidir o que cada filme precisa e isso por sua vez afecta onde o filme chega e como é experienciado. Há sem dúvida pessoas que se importam, nós pelo menos apreciamos profundamente o teu trabalho e de muitos outros cineastas, esperamos ansiosamente para ver o que farás a seguir e faremos tudo o que podermos para te apoiar. E sabemos que existe pelo menos uma mão cheia de pessoas por aí que realmente se interessam pelos nossos filmes também e isso dá-nos alento durante os momentos mais difíceis.

Quanto a ganhar dinheiro, não fazemos ideia, nós vamos sobrevivendo e angariando o que podemos para continuar o nosso trabalho, de momento não sabemos que mais podemos fazer. Uma coisa que temos a certeza é que nunca vamos deixar de fazer filmes! Por isso continuamos a criar, continuamos a apoiar os que podemos, e veremos o que acontece.

DANIEL FAWCETT & CLARA PAIS ENTREVISTADOS POR GURCIUS GEWDNER / RISCO CINEMA