dança de números tem base sólida

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Ciência e Tecnologia Setembro 2006 • N° 127 PESQUISAS ELEITORAIS DANCADE NÚMEROS TEM BASE SOLIDA O POBRE E RICO MAR BRASILEIRO ENTREVISTA FERNANDO BIRRI . O CINEMA ALÉM DO CINEMA FAPESP \

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Pesquisa FAPESP - ed. 127

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Ciência e Tecnologia

Setembro 2006 • N° 127

PESQUISAS ELEITORAIS

DANCADE NÚMEROS TEM BASE SOLIDA

O POBRE E RICO MAR BRASILEIRO

ENTREVISTA

FERNANDO BIRRI . O CINEMA

ALÉM DO CINEMA

FAPESP

\

A guerra tinge o mar

Os bombardeios israelenses a Beirute provocaram um derramamento de óleo no litoral libanês em meados de julho. Como as hostilidades seguiram-se por semanas, os esforços para limpar o mar demoraram a começar. As imagens do satélite lkonos mostram um mesmo ponto da costa de Beirute em dois momentos: em dezembro de 2001 (alto), em que se viam pedaços de mar azul, e em agosto de 2006 (embaixo), com a água enegrecida pelo óleo.

PESQUISA FAPESP 127 • SETEMBRO DE 2006 • 3

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

26 PÓS-GRADUAÇÃO Crescem os cursos interdisciplinares, em que disciplinas dialoqam

em busca de soluções para novos dilemas

29 IMPRENSA Pesquisa FAPESP qanha

prêmios de jornalismo

e estréia nova versão de seu site

30 METEOROLOGIA Finep distribui

R$ 12,8 milhões para recuperar as redes

de meteoroloqia

e antever fenômenos

climáticos extremos

CIÊNCIA

40 ASTROFÍSICA Plutão é rebaixado

e sistema solar passa a ter oito planetas

42 COSMOLOGIA Astrônomos brasileiros

propõem outra forma

de explicar a expansão

do Universo

44 IMUNOLOGIA Equipe de Minas Gerais

apresenta novas perspectivas

para uma vacina contra esquistossomose

46 ACIDENTES DOMÉSTICOS Poucas mães sabem como evitar que seus filhos

sofram quedas, cortes

e queimaduras em casa

48 SAÚDE PÚBLICA

Vírus e bactérias se

propaqam li vremente na

fronteira entre os Estados Unidos e o México

54 FISIOLOGIA Enerqético disfarça

alquns efeitos

das bebidas alcoólicas e amplifica outros

4 • SETEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 127

TECNOLOGIA

62 INDÚSTRIA PETROLÍFERA Parceria entre instituições de pesquisa e Petrobras

resulta em R$ 1 bilhão para redes temáticas

66 TELECOMUNICAÇÕES Telefonia empresarial qanha sistema de conexão

com aparelhos liqados

à automação de prédios

68 QUÍMICA Pesquisadores criam

dispositivo para futuros

computadores moleculares

70 ENGENHARIA DE MATERIAIS Películas aplicadas em

vidros controla'm mudanças

de luz no ambiente

73 FARMACOLOGIA Sílica associada a vacina ajuda orqanismo a produzir

mais anticorpos

76 ZOOTECN IA Empresa desenvolve

porcos de pequena

estatura e baixo peso para pesquisa científica

HUMANIDADES

84 ECONOMIA Crise da Variq revela

a situação precária da aviação civil brasileira

88 SOCIOLOGIA Embora o machismo

ainda seja dominante, conquistas das mulheres

intimidam cada vez

mais os homens

92 LITERATURA O Brasil perde um intelectual de verdade,

à moda antiqa :

João Alexandre Barbosa

SEÇÕES

IMAGEM DO MÊS .. . ....... . .. 3

CARTAS ............. . .. .. . .. 6

CARTA DA EDITORA ........ . .. 9

MEMÓRIA . .. ...... . . . .. ... . 10

ESTRATÉGIAS .... . . .. . ...... 20

LABORATÓRIO . . . .. . ... . . . .. 32

SCIELO NOTÍCIAS .. .. . . . .... 56

LINHA DE PRODUÇÃO ..... .. . 58

RESENHA ....... . ....... .. . 94

FICÇÃO ....... . .. . ...... . .. 96 CLASSIFICADOS ....... . . .... 98

Capa: Mayumi Okuyama

Ilustração: Fernando Vilela

ENTREVISTA

12 O cineasta argentino Fernando Birri , 81 anos, fala sobre a transição do cinema atual para uma nova "imageria" mais ampla, com o suporte de avançadas tecnologias

36 MAR Estudo mostra que a pesca nacional pode crescer apenas no plano qualitativo, não em quantidade

78 CAPA O mistério saboroso das pesquisas eleitorais, que fazem milhares de eleitores falar por milhões

ww w. revista pesquisa . fa pe s p. b r

Peiiiüisa FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP retra t am a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evo lução.

• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mai l: [email protected]

• Opiniões ou sugestões Envie car tas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: [email protected]

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

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6 • SETEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 127

c a r ta s@f a pes p. b r

Angelita Gama

Sou leitor assíduo da Pesquisa FA­PESP. Na edição 126 vocês foram ex­tremamente felizes ao dar divulgação a uma das maiores figuras da histó­ria da medicina no continente ame­ricano e seguramente o maior desta­que feminino da cirurgia brasileira. Angelita Habr-Gama é o perfeito equilíbrio entre o saber, o fazer e o ser. Jamais notei qualquer atitude sober­ba de sua parte (e motivos não lhe faltam). Sempre solícita e generosa, pronta para atender pacientes e aju­dar na formação de tantos quantos lhe batam à porta para estágios, resi­dência ou pós-graduação. Sua vida é uma lição para todos que buscam seus ideais. Angelita e Joaquim Gama­Rodrigues materializam elegância e competência e têm admiração e esti­ma da comunidade docente-assisten­cial da medicina brasileira. Parabéns pela reportagem.

JORGE ALBERTO L ANGBECK ÜHANA

Professor de cirurgia da UFPA Belém, Pará

Idosos

O Lar dos Velhinhos recebeu Pes­quisa FAPESP com a reportagem "Fi­lantropia e ciência" (edição 126), cuja felicidade do assunto abordado ale­grou todos desta casa de benemerên­cia. Felicito a revista pela correta di­vulgação desta entidade aos leitores dessa renomada publicação.

JAIRO RIBEIRO DE MATTOS

Presidente do Lar dos Velhinhos Piracicaba, SP

Harvard e Vale

A reportagem "Procuram-se alu­nos" (edição 126), de Fabrício Mar­ques, é, no mínimo, polêmica. Sempre fui um entusiasta do intercâmbio in­ternacional, mesmo em nível de gra-

duação. Entretanto, há uma enorme diferença entre o intercâmbio, que pressupõe reciprocidade nas relações, e a internacionalização de instituições de ensino, que pressupõe uma visão mercantil do ensino como negócio. Nos convênios de intercâmbio de alu­nos de graduação em engenharia que a Unicamp iniciou com o INSA de Lyon, na França, em 1986, a simetria nas relações, com a ida de brasileiros ao INSA e a vinda de franceses à Uni­camp, sempre foi uma componente essencial. No projeto Brafitec que coor­deno, por exemplo, recebemos mais franceses do que enviamos alunos da Unicamp. Esses intercâmbios levaram ao programa de dupla diplomação, no qual a simetria nos direitos e deveres dos dois parceiros é respeitada. O que me pareceu mais estranho é que o es­forço da Universidade Harvard para atrair brasileiros é financiado com doação do empresário Jorge Paulo Le­mann, da Ambev. Com muito esfor­ço e o apoio decisivo da FAPESP, no caso de São Paulo, construímos uni­versidades que adquirem prestígio crescente no cenário internacional. Queremos, sim, aumentar o intercâm­bio com universidades em todo o mundo, mas não simplesmente expor­tar alunos e fortalecer universidades estrangeiras que querem se interna­cionalizar. Queremos intercâmbios onde haja reciprocidade e reconheci­mento de nossa qualidade de ensino e pesquisa. Queremos que nossos em­presários façam doações às nossas uni­versidades, não a Harvard. Queremos que nossos melhores talentos se for­mem aqui e participem de intercâm­bios lhes abram a mente e o espírito para o multiculturalismo.

JOSÉ ROBERTO DE FRANÇA ARRUDA

Facu ldade de Engenharia Mecânica/Unicamp

Campinas, SP

Muito interessante a reportagem "Procuram-se alunos". Parabéns ao

editor Fabrício Marques e à organiza­ção da revista Pesquisa FAPESP.

Emílio Moran

E VA LDO M ARCHI

Jundiaí, SP

Gostaria de parabenizá-los pela entrevista com Emilio Moran na edi­ção 125. O tema abordado é bastante pertinente e mexe com as mais pro­fu ndas bases da nossa sociedade. Creio que toda essa mudança de mentalidade e de comportamento, ci­tada na entrevista, só provém com uma educação diferenciada, desde a fundamental até o nível superior. Po­rém, infelizmente, quando o assunto é investimento em educação, o Brasil deixa a desejar.

D AVID M . L APOLA

Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (lnpe)

Cachoeira Paulista, SP

Comunicamos o registro feito pe­lo conselheiro Luís Henrique Dias Ta­vares na 22a sessão plenária do Con­selho Estadual de Cultura, cujo teor abaixo transcrevemos: "Lembro aos estimados confrades e amigos que te­nho apresentado a este plenário a re­vista Pesquisa FAPESP. Venho hoje destacar o n° 125. Para ser mais exato: vou destacar a entrevista concedida pelo antropólogo norte-americano Emilio Moran aos jornalistas Fabrício Marques e Mariluce Moura sobre a in­quietante questão das mudanças am­bientais globais e suas conseqüências sobre o ser humano e todos os demais seres vivos que habitam o planeta Ter­ra. Moran é diretor do centro antro­pológico para treinamento e pesquisa em mudanças ambientais globais da Universidade de Indiana. Conhece o Brasil e sempre o visita em novos es­tudos. Por isso sofre com os desmata­mentos na Amazônia. O seu tema per­manente são as mudanças de clima

que ocorrem cada vez mais 'em qual­quer lugar do mundo'. Moran acentua nesta entrevista que em mil anos aca­baram as florestas da Europa. Também acabaram as florestas dos Estados Uni­dos, da América Central e da Améri­ca do Sul. O Brasil já perdeu a Mata Atlântica e está ameaçado de perder a Floresta Arnazônica com o atual des­matamento. Não é possível deixar em silêncio o seguinte trecho da entrevis­ta: 'Se não fizermos nada, uma gran­de parte da Antártida va i derreter. O nível do mar vai sub ir, a metade da Flórida vai ficar embaixo d'água'. Tem mais: 'Se em 40 anos não mudarmos

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

(b NOVARTIS

TropiNet.org

nada, existe uma grande possibilida­de de que o padrão de mistura de água fria e quente nos oceanos( ... ) seja que­brado ( ... ) esfriando algumas partes do mundo e esquentando outras'. Pesqui­sa FAPESP é assim: sensível e eficien­te com as questões que preocupam os cientistas. Uma dessas é o desmata­mento do Amazonas".

E usTORGIO L IMA CAVALCA TI

Secretário-geral do Conselho Estadual de Cultura da Secretaria da Cultura e

Turismo da Bahia Salvador, BA

Pesquisa Brasil

Adorei mais esta iniciativa da revis­ta em disponibilizar o conteúdo do programa de rádio Pesquisa Brasil por e-mail. Quero também elogiar a óti­m a reportagem "Agulha no palheiro" (edição 122).

ALEXANDRE B ASÍLIO R ODRIGUES

Centro de Pesquisas do Cacau Ilhéus, BA

Muito obrigado pelo programa de rádio Pesquisa Brasil. Sugiro que seja transformado também em podcast, per­mitindo assim uma assinatura e carre­gamento automático de futuras edições.

Álcool

STEFAN ] OHANSSON

Santos, SP

Gostaria de dar os parabéns à revis­ta pela reportagem "Revolução no cana­vial" (edição 122). Esse texto despertou o meu interesse sobre o trabalho devo­cês. Agora sou um novo assinante.

Correções

DIVINO DE 0. COSTA

Rio de Janeiro, RJ

A revista Educação & Sociedade é publicada pelo Centro de Estudos Edu­cação e Sociedade (Cedes), com apoio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e não da Universidade de São Paulo (USP), como publicado na reportagem "O conhecimento sociali­zado" (edição 126).

A pesquisadora Izabel Boock de Garcia é ecóloga, e não bióloga, como consta na reportagem "No frontda no­tícia" (edição 126).

Cartas pa ra esta revis ta devem ser enviadas para o e· mai l [email protected]. pelo fax on 3838·4181 ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. CEP 05468·901. As car tas poderão ser resumidas por mot ivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 127 • SETEMBRO DE 2006 • 7

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Mais ciência na web -A nova versão do site da revista Pesquisa FAPESP está no ar

Mais bonita, mais funcional e mais informativa

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Peleontologia Corheçlooe$(fll(lletOdoC#rod.S.-.Jrfl, ~•octeiSO~de.-.o.

Onze anos de conteúdo integral da revista Pesquisa FAPESP

Áudio do programa semanal de rádio Pesquisa Brasil

CldMtri·HirtlelltMo grlltul:__.. •• boletill tlllllr&-.:odlor8'o'lltl .._,,....

'Vejtin~teom

bW~cttOI"ddM

lnCOnlre F'asqlbe , ......

Notas sobre os principais artigos publicados nas revistas Nature e Science

Chamadas para as matérias da Agência FAPESP

Peiiiüisa FAPESP

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Carta

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CARLOS VOGT, CELSO LAFER. GIOVANNI GUÍDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA,

JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TECN1CO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO),

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO,

RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO

MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE

NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR

MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES).

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE),

RICARDO ZORZETTO

EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO

REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÒ NEGRO

EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA

CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA

DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECÍLIA FELLI

CONSULTORIA DE ARTE HÉLIO DE ALMESDA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

SECRETARIA DA REDAÇÃO

ANDRESSAMATIASTEL: (11)3838-4201

COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), ANTÔNIO PRATA,

DANIEL BUENO, DANIEL COHN (ESTAGIÁRIO). DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), EDUARDO GERAOUE (ON-LINE), FERNANDO VILELA, GONÇALO JÚNIOR, HÉLIO DE ALMEIDA, IRACEMA CABRAL MONTEIRO, LAURABEATRIZ. MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, NEGREIROS, PEDRO MATIELLO (ESTAGIÁRIO), SÍRIO J. B. CANÇADO.

THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS.

COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIQUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272

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ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

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DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO Ã PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

da Editora

Ciência, cinema e celebrações

E comum, a cada campanha, uma certa controvérsia sobre as pesquisas eleito- rais e o desempenho dos institutos que

as realizam. Dá para confiar nessas pesqui- sas? Seus resultados influenciam a mídia? Criam tendências no eleitorado? E o que os cientistas políticos e outros estudiosos atentos das chamadas humanidades têm a dizer sobre essas sondagens, com sólida base estatística, que entraram de vez no processo político brasileiro, desde a rede- mocratização nos anos 1980? Foi isso exa- tamente que o editor de humanidades, Carlos Haag, tratou de investigar, consul- tando estudos acadêmicos e ouvindo seus autores, para oferecer aos leitores de Pes- quisa FAPESP uma visão densa e abran- gente sobre o que são as pesquisas para o presente da política, como e por que elas funcionam, sem esquecer uma breve pas- sada de olhos por seu histórico. Vale a pe- na conferir, deslizando pelo texto fluente a partir da página 78, o que sustenta essa sal- titante dança de números que a mídia nos apresenta a intervalos de tempo cada vez menores ao longo da campanha, até as vés- peras da eleição.

Em um campo transitório das ciências humanas para as biológicas, quero desta- car a reportagem reveladora do editor es- pecial Marcos Pivetta, a partir da página 36, sobre um megaestudo do potencial pesqueiro da costa brasileira, patrocina- do pelo governo federal, e cujos resulta- dos estão em uma publicação lançada por esses dias. A notícia não muito animado- ra que ele traz é que há pouco peixe no li- toral nacional, dadas suas águas quentes e pobres em alimentos para esses animais. Mas, em contrapartida à escassez dos re- cursos, parte deles é valiosa e, dessa forma, a pesca nacional pode crescer em termos qualitativos.

Nessa mesma zona fronteiriça huma- nas/biológicas merece registro aqui o sen- sível relato, a partir da página 48, do edi- tor de ciência, Carlos Fioravanti, junto com Mariana Martinez Estens, jornalista do diário Frontera, de Tijuana, México, sobre a propagação em larga escala de vírus e bactérias na grande fronteira que separa o México dos Estados Unidos e a conseqüen-

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

te explosão de doenças de todo tipo facili- tada por condições de sobrevivência na re- gião de uma atordoante dramaticidade, te- nha ela caráter temporário ou permanente.

Em tecnologia, o editor Marcos de Oli- veira detalha, a partir da página 62, o co- meço das atividades de uma das mais ex- pressivas parcerias já firmadas neste país entre instituições científicas e uma empre- sa - no caso, a Petrobras. Nada menos que 76 instituições em 17 estados brasileiros vão receber o total de R$1 bilhão, no pe- ríodo de três anos, para desenvolver pro- jetos de pesquisa cujo foco é o aumento da produção brasileira de petróleo e gás e o desenvolvimento de um grande número de novas formas de energia.

Destacar dentro do trabalho coletivo uma pequena peça assinada exatamente por quem está fazendo a avaliação geral desse trabalho pode ser constrangedor. Mas no caso da entrevista que Fernando Birri me concedeu, vale a pena vencer o constrangimento por conta de suas pala- vras, de sua fantástica visão de futuro aos 80 anos, e do tamanho de sua obra na construção do cinema na América Latina, seja fazendo filmes, plantando escolas de cinema ou examinando teoricamente, com grande argúcia e originalidade, os cami- nhos dessa expressão cultural tão insisten- te e persistente em nosso continente. E, as- sim, recomendo a leitura da entrevista a partir da página 12.

E, finalmente, o registro que era o que mais queria fazer desde o começo dessa carta: Pesquisa FAPESP, concorrendo com muitos dos grandes veículos nacionais, conquistou o primeiro e o segundo lugares do Prêmio de Reportagem sobre a Biodi- versidade da Mata Atlântica, na categoria jornalismo impresso. As reportagens vence- doras foram de Alessandra Pereira e Carlos Fioravanti. Todos os detalhes da premia- ção estão na página 29. Elas são comple- tadas com outras notícias que podem su- gerir que estamos entoando loas a nós mesmos. Mas não se trata disso. Trata-se de celebrar boas notícias e o reconhecimento de que temos cometido acertos num traba- lho que esta equipe se empenha em fazer bem porque adora fazê-lo. Tim-tim!

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 9

1907: a inauguração do Canal 1, em Santos (no alto), e uma das pontes de concreto

I a segunda metade do século XIX até 1910, o porto de Santos, no litoral paulista, era considerado pelos europeus

I como "maldito". Motivos não faltavam. I ■ A cidade plana, encharcada, quente, I V poluída e com unia população crescente ■ de imigrantes - em razão da exportação

de café - colecionava epidemias: febre amarela, malária, peste bubônica, varíola e tuberculose. Para salvar a saúde dos moradores santistas e a economia local só restava sanear a cidade a qualquer custo. Para a tarefa foi escolhido o engenheiro fluminense Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, na Comissão de Saneamento, e o médico paulista Guilherme Álvaro, na Comissão Sanitária. Uma técnica de construção já utilizada no exterior, mas praticamente inédita no Brasil, o concreto armado, de grande resistência, teve participação importante na restauração da salubridade de Santos.

Até onde os estudos dos especialistas em engenharia e história alcançam, as primeiras obras conhecidas feitas com essa técnica foram canais, galerias e pontes que cortam Santos, projetados e construídos por Saturnino de Brito. Ele imaginava que os canais drenariam a água das chuvas e recolheriam a que vem dos morros. Um sistema de comportas regularia a entrada e a saída

10 ■ SETEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 127

1910: ponte de 28 metros em Socorro sobre

o ribeirão dos Machados

Criação no concreto NELDSON MARCOLIN

Há cem anos o concreto armado começava a ser usado no Brasil

da água para o mar. Além disso, o regime das marés agiria sobre os canais impedindo que a água ficasse parada e evitando mosquitos. O Canal 1, feito sobre o traçado do ribeirão dos Soldados, foi inaugurado em 1907. No total, Brito projetou oito deles, aos quais foi acrescentado um, posteriormente. A obra foi fundamental para o saneamento e tornou-se marca registrada da cidade junto com os extensos jardins da orla marítima. No próximo ano serão comemorados os cem anos dos canais, a cargo de uma comissão de organização, da qual faz parte a Fundação Arquivo e Memória de Santos (www.fundasantos.org.br).

O concreto armado é uma massa formada por

cimento, areia, água e pedras, que envolve a ferragem e adquire a forma que se queira. Surgiu na França com loseph Louis Lambot, em 1850. No Brasil, a primeira referência que há sobre a técnica veio do professor Antônio de Paula Freitas, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Em trabalho de 1904, Freitas menciona a execução de seis prédios projetados pelo engenheiro Carlos Poma, que também teria construído um reservatório de água em Petrópolis, no Rio. Ocorre que hoje não há sinal de onde essas construções foram erguidas nem se conhecem seus vestígios. "Também não se pode afirmar que elas eram o que hoje se define como concreto armado",

diz Augusto Carlos de Vasconcelos, engenheiro e professor aposentado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, autor do estudo "Grandes obras de concreto armado", que consta do livro 500 anos de engenharia no Brasil (Edusp, 384 páginas).

Depois dos canais de Santos, Vasconcelos acredita que a ponte sobre o ribeirão dos Machados, em Socorro (SP), é a obra mais antiga conhecida no Brasil a usar a técnica, em 1910. "O concreto armado provocou uma revolução na engenharia brasileira porque apenas com estruturas metálicas não haveria condições de fazer tantas grandes obras", explica o engenheiro. "O aço era importado, caro e não havia

uma indústria montada para produzi-lo aqui." Outro fator contribuiu para sua disseminação: operários sem qualificação aprendem facilmente a fazer a massa no chão da obra e aplicá-la às ferragens. Esse ambiente ideal encontrou em Oscar Niemeyer seu melhor arquiteto. "Não é exagero dizer que Niemeyer não seria Niemeyer sem o concreto armado", diz.

A propósito de seu trabalho com a técnica, o arquiteto carioca já disse o seguinte: "Na arquitetura debrucei-me por toda a vida. Foi o meu hobby, uma das minhas alegrias, procurar a forma nova e criadora que o concreto armado sugere. Descobri-la, multiplicá-la, inseri-la na técnica mais avançada, criar o espetáculo arquitetura!".

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 11

Um construtor de utopias MARILUCE MOURA

i palavra cinema já me soa con- servadora. A imagem audiovi- sual tem outras formas possí- veis além do cinema. Estou

I H falando de uma nova maqui- fl B naria de imagens, de novas ■^B fantasmagorias, novas e insus- ■ H peitadas sombras eletrônicas, ou melhor, luzes eletrônicas que por enquan- to apenas entrevemos." No palco da imensa sala 1 do Memorial da América Latina, bem iluminado só em uma pequena área destinada ao personagem em cena, Fernando Birri, 81 anos, mirava assim o futuro, em sua aula mag- na no final da manhã de 14 de julho, logo após ser apresentado à platéia pelo presidente do Memorial, Fernando Leça.

Na verdade, a maioria das pessoas reuni- das ali para ouvi-lo, faixa etária amplíssima, entre menos de 20 e mais de 80 anos, sabia muito bem quem era aquela figura venerável de longas barbas brancas, a lembrar um profe- ta nordestino, na visão de alguns, ou Leon Tolstoi, no olhar de outros. Porque para afi- cionados do cinema produzido fora do mains- tream, como era o caso de quase todos ali, o nome de Birri, cineasta argentino e cidadão do mundo, é nada menos que uma metáfora da capacidade de resistência e de múltiplos re- nascimentos do cinema latino-americano, em mais de cinco décadas. Com certa freqüência a ele se atribui a paternidade do Novo Cinema Latino-Americano.

A aula magna fazia parte do Io Festival de Cinema Latino-Americano, promovido pelo Memorial e pela Secretaria Estadual de Cultu- ra de São Paulo, que coincidentemente tem à

frente nesse momento o cineasta João Batista de Andrade. O evento fora aberto na noite do domingo, 9, com o mais recente filme de Fer- nando Birri, o documentário Za-2005. Lo viejo y lo nuevo, um megaclipe, como ele mes- mo define, uma colagem de cenas tiradas de algumas das melhores produções do conti- nente em diferentes épocas. Nele, trechos de clássicos como Memórias do subdesenvolvi- mento, do cubano Tomás Gutiérrez Álea, Vidas secas, do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, e Tire Dié, do próprio Birri, considerado uma obra-prima fundadora, dialogam com cenas de trabalhos cinematográficos recentes de alu- nos da Escola Internacional de Cinema e Tele- visão de San Antônio de Los Banos, em Cuba (EICTV). Como disse em O Estado de S. Pau- lo o crítico Luiz Zanin Oricchio, o filme "é a perfeita imagem do seu autor - fala do sonho de um cinema latino-americano que se im- põe por seu rigor, por sua força e qualidade, e cresce à margem da grande indústria mun- dial do entretenimento".

Fernando Birri, casado há 46 anos com Carmen, é, registre-se logo, bem mais que um cineasta: é um teórico do cinema, professor e educador que plantou múltiplas experiências de ensino de cinema e televisão, entre as quais a escola de Cuba é sem dúvida a mais reluzen- te e avançada. É pintor, escritor, poeta. É um visionário, um libertário - e bela amostra de tudo isso junto está no texto denso e vigoroso de "Acta de Nacimiento de Ia Escuela Interna- cional de Cine y TV", que integra o livro El al- quimista democrático, cuja edição brasileira deverá ser publicada em breve, graças ao em- penho de Sérgio Muniz, documentarista bra-

12 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP127

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 13

sileiro, primeiro diretor docente da EICTV. Birri é, finalmente e acima de tudo, alguém que jamais abriu mão de seu direito de construir coisas baseadas em seus sonhos mais utópicos, com método e rigor.

A seguir, os principais trechos da en- trevista que ele concedeu a Pesquisa FA- PESP (no site da revista há uma versão sem cortes).

■ Gostaria de começar pelo final de sua au- la: você disse que há algo novo que emerge no panorama da imagem, que iria muito além de um novo cinema. Como é isso? — Ainda o vejo muito nublado, a bola de cristal ainda está empanada, em brumas, não sabemos inteiramente, porque o que tem que vir nunca se sabe acertadamente até que vem, tautologicamente. Mas sinto, intuo que há algo, que se entrevê mais que se vê. Esse festival, muito sério, muito boni- to, serviu muito para essa percepção. De outro lado, o Brasil sempre foi um ambien- te de buscas, inquietudes e preocupações, capaz de sinalizar rumos. Aqui a elabora- ção teórica do cinema alcançou um nível muito alto, comparado a outros países da América Latina.

■ Nas universidades? — Sim, nas universidades, na crítica, mes- mo entre cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Leon Hirzman e tantos outros, não? Teria que fazer uma lista de nomes, com Joaquim Pe- dro de Andrade, Caca Diegues, Õzualdo Candeias, Geraldo Sarno, enfim, todos ci- neastas que fizeram acompanhar sua obra de elaborações teóricas sumamente impor- tantes. Esse aporte de material teórico ca- racteriza o cinema novo brasileiro.

■ Este "novo" que você agora entrevê tem a ver mais com técnicas de filmagem, com a es- tética ou com a reflexão teórica? — A verdade é que eu jamais seria capaz de separar todas essas coisas. Acho que elas só se separam como objeto de estudo, por exemplo, quando Leonardo da Vinci seccio- na um corpo e analisa um pequeno múscu- lo que corre para que um dedo se mova. Mas há que se analisar o próprio homem, e creio que são imprescindíveis um e outra, o pequeno tendão do dedo da unha e a alma do homem que move o dedo. Nesse senti- do o que está se passando agora é que há coisas que estão vindo com respeito a todo um material, um background que o novo ci- nema latino-americano elaborou em qua- se meio século de vida. E, sim, o que acon- tece, com sinceridade, é que muitas das coisas que foram elaboradas já não são vá- lidas, ou melhor, são válidas para ajudar a

pensar, mas nas circunstâncias já não bas- tam. Por exemplo, há duas coisas que sur- gem desse encontro que me parecem mui- to importantes. A primeira é que aqui se está lançando com muita insistência não o novo, mas os novos cinemas latino-ameri- canos, meio século depois. Existe uma plu- ralidade nesse movimento e isso é absolu- tamente novo. Num poema que escrevi nos anos 80 para um grande encontro na Ale- manha chamado Horizontes, um prólogo para um enorme catálogo, fiz esse "Poema em forma de ficha filmográfica" em que di- zia que somos um na diversidade e diver- sos em nossa unidade. Dizia que havia que manter sempre essa característica, esse tao, essa dialética, que em definitivo enriqueceu esse momento antidogmático por excelên- cia. Quero dizer que agora essa diversidade assume muito mais força, mais evidência, e numa explicação simplista podemos dizer que há muito mais cinemas. Há 50 anos, fa- lar de cinema na América Latina era falar quase exclusivamente dos cinemas argenti- no, brasileiro e mexicano. Depois, nos anos 60 aparece a cinematografia cubana com grande força. Mas hoje não há país latino- americano que não tenha produção de ci- nema. E eu não limitaria a palavra produ- ção ao ser cinematográfico, mas a usaria como produção de sentidos cinematográ- ficos, estendendo-a assim para a produção de revistas, de crítica, de análises...

■ E de televisão? — ...E aí vem o ponto crítico, e é justamen- te que a palavra cinema já não basta.

■ Foi isso o mais instigante de sua fala: como assim a palavra cinema não basta, o que é preciso criar em seu lugar para ampliar o pró- prio sentido do que ela nomeia? — Há que inventar uma palavra que ante- cipe a invenção real do meio. Por ora po- demos nos conformar em amarrar algumas que existem para isso, como por exemplo "imageria" audiovisual, que me agrada mui- to. Ou imago, imagem, que tem um prestí- gio muito grande, quase fantasmagórico. É como um fantasma audiovisual, quiçá pos- samos dizer mesmo como um ectoplasma, uma nebulosa que se está completando de diversas formas e da qual o cinema é uma só uma expressão...

■ Para além do cinema, você contempla algo que se apresenta por vários meios... — Claro, mas não vamos exagerar, vamos ficar um pouquinho mais próximos, è para começar podemos nos deter em todas essas formas que já existem de fato, não de mo- do antecipatório. E nesse sentido há o que Pasolini chamava contaminatio: a contami-

nação de gêneros. Assim, mesmo no cine- ma visto na tela normal é por vezes muito difícil separar as coisas, o que é documen- tário, o que é ficcional... E desde já em mui- tos filmes existe uma intersecção, uma in- ter-influência dos gêneros tradicionais com coisas que não conhecemos ainda.

■ Daí a idéia do "docfic". — Claro, docfic é isso, é uma reformulação proposta por Orlando Senna na Escola de Cinema de Cuba em princípio dos anos 1990, a que eu adiro porque me parece real- mente que ele atinge uma intuição que de alguma maneira define uma coisa que tam- bém já está sendo. Mas deixe-me concluir o que queria dizer: onde me parece que real- mente aponta tudo isso, como ponto extre- mo, como uma newfrontier, uma nova fron- teira à qual alguns já chegaram e a estão ocupando para depois partir para outros territórios incógnitos, é cine virtual, é a ima- gem virtual. O que para a maioria de um público de espectadores, de fruidores, ain- da permanece algo secreto e proibido, exis- te para uma minoria superespecífica, por exemplo, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), lugar onde se pratica faz décadas... é um cinema muito especial, que se pode tocar verdadeiramente, e umas tan- tas coisas que seguem de alguma maneira enquanto se fazem as novas tecnologias. E aqui temos uma questão que você me pro- punha antes: é que as novas tecnologias, as novas expressões, as novas críticas, seguem juntas, não são coisas que apontam umas para um lado e outras para um outro. É pos- sível, sim, separá-las com a finalidade de vi- vissecção, de estudo, a exemplo da anato- mia, mas para que o corpo caminhe, viva, respire e ame tem que estar completo.

■ Estamos falando entre outras coisas, aqui, das experiências do Medialab, do MIT? — Sim, claro, eles têm um dos laboratórios mais avançados no aspecto da imagem vir- tual e, por suposto, de todas as antecipações que de alguma maneira derrubam as classi- ficações atuais ou que julgamos atuais e que são velhas do cinema.

■ O que você vislumbra de novo de alguma forma se vincula ao trabalho de meio século de ensino de cinema no continente, que co- meça com a escola de Santa Fé? Como se jun- tam essas pontas em sua reflexão? — Lamentavelmente, por ora não se jun- tam. Ainda não estamos em um momento de síntese. Se me permite dizer, como você ainda estou tentando entender, não há res- posta pré-fabricada para essa questão. Pen- semos juntos todos nesse sentido... de algu- ma maneira, contudo, talvez o que nos ajude

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realmente a pensar um pouco a produção dos fenômenos culturais da América Lati- na seja um dos mais reveladores e mais ilus- trativos deles, ou seja, o fenômeno religio- so, quase diria antropológico-religioso - me refiro concretamente ao sincretismo.

■ Mas você não se refere aos novos movimen- tos religiosos, o neopentecostalismo... — Vou um pouco mais atrás, digamos as- sim. O conceito é o seguinte: isto que esta- mos usando, a imagem de alguma manei- ra, na realidade é nessa perspectiva que estamos tentando entrever, é ainda uma apreciação sincrética do fenômeno, é um momento prévio ao momento analítico e muito anterior ainda ao momento sintético, que acredito que é aquele em que se produ- zirá finalmente a eclosão do fenômeno co- mo um fenômeno social, coletivo.

■ Ou seja, estamos no momento de floresci- mento de variadas coisas, muito antes que se chegue a uma nova forma para o velho cine- ma, que, entretanto, não sabemos qual é. — Sim. Creio que a virtude e os riscos des- se momento é que ele é um momento an- tecipatório. E ante todo momento no qual o novo se apresenta de alguma forma, se in- tui, o espírito humano tem diversas atitu- des, mas há duas fundamentais: a primeira é ousar, atirar-se num duplo salto mortal sem rede no vazio... e voar. Aí pode ocorrer tudo. A segunda é voltar para trás.

■ E o que é, no caso, voltar para trás? — Prosseguir falando de cinema

■ Mas corremos esse risco? — Sim, claro. Não apenas corremos, mas hoje ainda o praticamos concretamente.

■ Em Za-2005 a preocupação era mostrar um pouco essa possibilidade de colagens, de sin- cretismo, da América Latina? Qual é a rela- ção entre o filme e tudo que você entrevê co- mo panorama da imageria contemporânea? — São duas perguntas em uma. A primei- ra resposta é: busco nesse filme o que que- ro em todos, mas um pouco mais, porque tento abarcar um período histórico enfren- tando algumas seqüências dos filmes fun- dadores do cinema latino-americano e fil- mes de teses produzidos pelos estudantes da escola [de Cuba] nesses 20 anos. Então, isso me dá motivo para pôr umas ante as outras como espelhos, em primeiro lugar para ver se uma produção reflete a outra ou, pelo contrário, se não se olham, se recha- çam, se quebram por inteiro, ou, a última alternativa, se indiferentemente dão de om- bros uma para a outra e, em vez de espelhos, são simplesmente superfícies de vidro e

^L ■ A virtude e os riscos desse momento decorrem de ei

ser antecipatório. E daí pode-se voar ou retroceder j \

mercúrio que não refletem nada. Essa é a preocupação do filme, uma verificação de algo que se tenta compreender. E cada um que assuma sua posição, tire suas próprias conclusões. Nesse sentido, o filme não tem a pretensão de impor nada, tenta propor. A segunda questão: o que tem a ver esse filme com o que falávamos antes? Muito, tudo. Porque, ao fazer essa espécie de balanço, de alguma maneira também estamos fechan- do uma janela e abrindo uma porta, o que significa dizer, isto é de um jeito, vamos para outro. Ciclos culturais começam e chegam a sua conclusão, terminam. Julgo que nesse sentido o filme também propicia esse tipo de preocupação que tenho no momento e, como digo no começo, trata-se de compar- tilhar tudo isso com uma espécie de mega- clipe didático e coletivo para tentar enten- der algo - veja, não para ensinar, mas para tentar aprender algo, coletivamente. Como nada nasce de nada, esteve muito presente a parte de Zavattini, não em seqüências, mas o nome e o espírito. Está também muito presente um outro diretor italiano que nos últimos anos de sua vida trabalhou muito nesse sentido, que foi Rossellini. O grande diretor de Roma cidade aberta, de Paisá, de belos filmes, nos últimos anos de sua vida se dedicou à televisão (1970), fazendo fil- mes de uma hora cada um, como Sócrates, como Atti degli apostoli, como La toma dei poder por Luis XIV... Eram filmes de uma hora, muito simples, destinados a difundir a vida, o paradigma, a referência em que se constituíram grandes personagens da hu- manidade. E muito abertos, pouco acadê- micos em sua maneira de contar a história.

■ Com toda a repressão que as expressões cul- turais sofreram na América Latina, como é

possível entrever esse novo, no âmbito da ima- gem, surgindo com tanto vigor? Quais são as raízes dessa força? — É uma pergunta ao mesmo tempo mui- to difícil e muito fácil. Muito difícil se apli- camos o close-up. Mas se a tomo com tele- objetiva torna-se um pouco mais fácil ou pelo menos mais gratificante respondê-la, porque assim falo de 500 anos de história e um pouco mais para trás. Então, vendo a América Latina nessa perspectiva inversa, digamos assim, fica mais fácil compreender que nesses 500 e tantos anos de história, in- cluindo a fase pré-colombina, de uma rique- za impressionante, este continente fisiologi- camente se mostra destinado a ser aquilo que está sendo, ou seja, a elaborar a quími- ca do novo. Porque é isso.

■ Como começou sua experiência de ensino na área de cinema? — Começou porque eu justamente queria aprender a fazer cinema na Argentina, ali perto dos anos 1950 e não havia onde fazê- lo. Então, a única maneira possível era ir a um estúdio, trabalhar com alguém que fa- zia filmes e aprender na prática ao lado des- sa pessoa. Mas quando tentei fazer isso em Buenos Aires, por todos os meios possíveis e impossíveis - me ofereci inclusive para tra- balhar varrendo o estúdio -, não consegui. Isso não funcionava, não era habitual.

■ Havia estúdios de cinema em Buenos Aires? — Claro, vários estúdios importantes. Ali es- tavam Argentina Sonofilm, San Miguel, Lu- miton, que faziam parte da indústria tradi- cional. Eu me dei conta, refletindo depois sobre isso, que em geral todas as coisas que terão um destino nascem de uma carência. O fogo, por exemplo, nasceu da escuridão.

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Depois, bom, serviu para cozinhar também, mas nasceu da necessidade de derrotar a es- curidão. Então o ser humano, ante uma ca- rência, inventa coisas com sua capacidade imaginativa. Portanto, na Argentina não conseguia estudar, e esse momento coinci- dia com uma situação política muito tensa...

■ Era o primeiro período do peronismo. — Sim, para mim um momento muito di- fícil, mas não falo especificamente do pero- nismo, falo especificamente da situação do cinema durante o peronismo. O primeiro é um conceito político muito mais complexo e teria que articulá-lo de outra maneira. Es- tou me referindo especificamente ao cine- ma e à necessidade que tinha uma pessoa, um rapaz anônimo, sem nenhum antece- dente, de aprender a fazer cinema nesse país.

■ Você de alguma maneira já convivia com o cinema? Como surgiu seu interesse? — Veja, eu era de uma família de artistas, meus tios, todos, de alguma maneira esta- vam ligados a arte, música, pintura... Meu pai era professor de ciências políticas e so- ciais, mas esta na verdade era uma carreira que sobreveio e sufocou, de outro lado, sua verdadeira vocação que era de pintor. Eu cresci nesse ambiente, e o cinema foi um pouco um sucedâneo da minha infância, da atividade que dominou minha vida, que era um teatro de títeres. Depois eu escrevia poe- sias, pintava desde jovenzinho. Também co- mecei uma carreira de advogado, mas isso me criou um problema terrível, uma crise, afinal mandei ao diabo essa carreira. Sabe que quando o diabo se apresentou a Lute- ro ele lhe atirou a Bíblia para que a lesse, não? Em meu caso não o fiz com a Bíblia, mas com um livraço de capa vermelha, A economia política, de Gide, um economista francês. No momento mais alto da minha crise, eu lia, lia, lia e não entendia páparos, então o atirei contra a parede, como Lute- ro contra o diabo, e decidi ali que não ia ser advogado, mas um diretor de cinema.

■ Quantos anos você tinha então? — Penso que um pouco menos de 20 anos, 17 anos. Bem, eu já havia fundado o primei- ro teatro experimental da Universidade Na- cional do Litoral, em Santa Fé, já havia fun- dado também o cineclube Santa Fé, quer dizer, já tinha um vínculo com o cinema, ha- via uma predisposição, mas...

■ Então o mundo perdeu um advogado... — Teve a sorte... (recíproca)

■ Buenos Aires não o aceitava... — Não, o que não me aceitava era o cinema em Buenos Aires. A cidade era fascinante, en-

contrei muita gente, amigos, estavam Ernes- to Sabato, Xul Solar, Mario Trejo, outros, muita gente, todo um clima muito simpáti- co, e trabalhei também como ator numa obra surrealista de Garcia Lorca que se chamava Assim que passem cinco anos. Mas com o ci- nema se deu essa dificuldade, e além do mais tudo isso coincidiu com um fenômeno his- tórico muito importante que era o neo-rea- lismo italiano. Estávamos nos anos em que chegavam à Argentina os primeiros filmes italianos, aliás, digo-lhe que na Argentina ha- via uma cultura cinematográfica... Por exem- plo, [Sergei] Eisenstein eu conheci antes por lê-lo do que por vê-lo, porque haviam tra- duzido do russo O sentido do cinema, um li- vro determinante, e isso e mais o realismo italiano foram grandes impulsos para eu se- guir. Então me decidi a ir para a Itália, e foi um primeiro exílio, digamos assim.

■ O exílio dos anos 1950. — Exato. Saí disposto a experimentar a ci- nematografia e estudei no Centro Experi- mental num momento em que já chegavam outros estudantes da América Latina atraí- dos pelo neo-realismo, dos quais os dois pri- meiros foram este que lhe fala e um compa- triota seu de quem gosto muito, Rudá de Andrade, uma pessoa adorável.

■ Quem eram seus professores em Roma? — Nesse momento havia no Centro profes- sores fixos, como o crítico Mario Verdone, por exemplo, um grande historiador do ci- nema italiano, mas de outro lado vinham nos dar aula os grandes diretores como Vit- torio de Sica, Luchino Visconti ou mesmo Roberto Rossellini... Também Renoir... Era um ensino muito sério, de muita formação.

■ E então os doisjovenzinhos da América La- tina receberam sua formação de cinema dos grandes mestres italianos. — Exato. E depois vieram outros latino- americanos, veio Garcia Márquez, veio To- más Gutiérrez Aléa, de Cuba, mesmo Glauber Rocha passou pelo Centro Expe- rimental, e tanta gente mais... Tarik Sou- ki, da Venezuela, Júlio Garcia Espinosa, também de Cuba... uma grande quantida- de de companheiros.

■ E quanto tempo você terminou ficando nes- se período em Roma? — Terminei meus estudos no Centro Expe- rimental, que foram dois anos, me graduei, e ao mesmo tempo comecei a trabalhar no cinema italiano, em várias coisas. Trabalhei como ator, no primeiro filme de Francesco Maselli, Gli sbandati, con Lúcia Bose e ou- tras pessoas, depois trabalhei como assisten- te de direção de Cario Lizzani, um grande

cineasta que depois foi também diretor do Festival de Veneza, trabalhei como assisten- te de Vittorio de Sica e de Cesare Zavattini no filme // tetto. Zavattini foi meu grande amigo, foi a pessoa com quem tive o diálo- go mais sério, mais profundo e mais deter- minante em minha futura carreira, porque era um vulcão, numa erupção de idéias per- manente, um grande inovador, um precur- sor de muitas coisas, do que depois vai ser o cinema novo, o nuevo cine, o free cinema, o cinema democrático, o vídeo democrático de que se fala tanto agora. Ele foi o primeiro homem que lançou os famosos cinegiornali liberi, os cine-diários livres, que eram como noticiários, mas absolutamente antioficiais, contra a retórica da cultura oficial, muito provocadores, nessa época mais forte, mais florescente e produtiva do neo-realismo. A Zavattini, e justamente por isso, dedico Za- 2005. Lo viejo y Io nuevo um megaclipe di- dático e coletivo em homenagem aos 20 anos da EICTV, que se completam agora.

■ E, afinal, quantos anos você ficou nesse tem- po de estudos e trabalhos italianos? — Fiquei até 1955, passei portanto seis anos, contados desde 1950. E depois voltei, por- que parecia que a Argentina ia tomar outro rumo, havia interesse em minha experiên- cia e eu cria que já sabia fazer um filme. Já tinha feito vários documentários, havia fei- to Immagini popolari siciliane, Selinunte, Al- fabeto notturno, também já tinha trabalha- do como assistente em vários filmes de ficção. Dessa forma decidi que era chegado o momento de voltar à Argentina, voltei já com um projeto de filme que era Los inun- dados, e já havia lido, amadurecido e escri- to uma espécie de primeiro treatment.

■ Você efetivamente fez esse filme. — Sim, foi meu primeiro filme de ficção, de longa metragem. Mas tampouco encontrei a possibilidade de a indústria cinematográ- fica se interessar por fazê-lo em Buenos Ai- res, e então decidi queimar os navios, rom- per com tudo o que era instituição, o aparatschnik oficial, e voltei a Santa Fé para começar desde o chão. Então fiz um semi- nário onde tive quase cem alunos que nun- ca haviam feito cinema. Havia de tudo: do- nas-de-casa, pintores, bombeiros, estudantes universitários... Enchemos uma sala e aí fi- zemos praticamente os primeiros fotodo- cumentários, que era a maneira mais sim- ples de fazer um projeto de filme, com fotos e com papéis, com epígrafes, saindo para fa- lar com as pessoas, perguntar de seus pro- blemas, suas aspirações, suas raivas, seus de- sejos suas esperanças, seus sonhos... e ao final, depois de dois anos de trabalho, já nos havíamos organizado como grupo na uni-

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versidade, através de um Instituto de Socio- logia que era muito progressista. Aí prati- camente nasceu Tire Dié, que é a primeira encuesta, a primeira pesquisa social que se filma na América Latina. É um filme mui- to polêmico, que dividiu a Argentina em a favor e contra, teve enormes detratores e teve muita gente que o apoiou. Ele tem a ver diretamente com o tema sobre o qual você está me perguntando, o do ensino. Por quê? Primeiro, porque há um paradoxo, dado que vou à Argentina para fazer um filme de ficção e, ante a impossibilidade de fazê-lo, volto à estaca zero e faço um documentário como uma espécie de exploração de campo que depois se vai traduzir na base do filme de ficção que faço mais adiante, Los inun- dados. Então, entre Tire Dié- que começa a ser feito em 1955, no qual se trabalha du- rante todo o ano de 1956 mais 1957, e tem a primeira cópia pronta em 1958 - e Los inundados há um ar de família total, diga- mos. Mas agora vem o que nisso se vincula diretamente com algo que estamos falando: é que Tire Dié é um filme-escola. É minha maneira de fazer escola. Faz tempo que sei que cinema se aprende fazendo cinema. As especulações teóricas são fundamentais e imprescindíveis na medida em que tenham sua contrapartida da práxis. Teoria e práti- ca andam juntas, e então enfrenta-se uma fórmula que é mais ou menos inclusive a européia, na qual se privilegiava muito a teoria. Eu faço um pouco ao revés: parto de uma práxis e nela analiso a teoria em que a sustento. É isso que se passa com Tire Dié, por isso é um filme-escola, um filme feito para que as quase cem pessoas que o fazem aprendam a fazer cinema. Façam cinema pela primeira vez em sua vida. Por isso, ao lado de ser um filme-escola, é também um

filme coletivo. E essa é outra das minhas idéias fixas, de minhas obsessões - o cine- ma como arte coletiva.

■ Mas você é o diretor. Como o filme, sendo uma obra sua, é uma obra coletiva? — É porque não fui nunca um diretor no sentido tradicional da palavra.

■ Você nunca teve uma visão autoral? — Sim, claro, o autor de todos os meus fil- mes são o coletivo, somos todos diretores. E o que eu faço sobre todos, e nesse sentido Tire Dié foi determinante, é uma função de estí- mulo, como uma pessoa que provoca, sus- cita... Visão autoral sim, mas autoritária não.

■ As raízes dessa abordagem, dessa sua for- ma de fazer as coisas, em seu caso estão lan- çadas numa formação marxista? — Sim, é uma parte das coisas, mas não só isso. Porque sou marxista, mas sou também tântrico, sou zen... rechaço os pequenos ró- tulos, porque sou cronópio, sou fama... Mas é verdade que há raízes marxistas, essa con- cepção parte de uma visão comunitária da vida, ou da vida como um projeto comuni- tário e utópico, dois conceitos que anima- ram todo o meu trabalho, e espero poder ti- rar Ia pata, como dizem, ou respirar meu último respiro (viva Bunuel!) vivendo den- tro disso que lhe digo.

■ É bom pensar a vida como um projeto co- munitário e utópico? — Se não fosse assim, que graça teria? Não teria me divertido (e sofrido) como tenho feito tanto nesta vida, com todos os dramas e as tragédias das quais participei, fui par- te e sigo participando e compartilhando, ao mesmo tempo sabendo que definitivamen-

te isso é o que dá sentido às coisas, pelo me- nos a mim assim parece.

■ Quanto durou a experiência de Santa Fé? — Para mim durou até 1963 mais ou me- nos, um pouco antes, talvez, digamos prin- cípio dos anos 1960. Porque então a situa- ção política se pôs outra vez muito feia na Argentina, o vírus fascista e ditatorial vol- tou a impregnar toda a sociedade argenti- na. Houve um período mais ou menos de- mocrático do presidente Arturo Frondisi, mas os militares voltam uma outra vez a sa- car suas asquerosas botas, voltam a pisotear todos e a acabar com tudo. E então, para preservar um pouco a escola cujo nome ofi- cial era Instituto de Cinematografia da Uni- versidade Nacional do Litoral, mas que pas- sou a história do cinema com o nome de Escola Documental de Santa Fé, decidi que não me restava outra opção senão ir-me...

■ Os documentários que foram feitos enquan- to você estava à frente da escola de Santa Fé estão todos preservados? — Alguns sim, outros não. E ao final, já na época mais dura da ditadura, nos anos 1970, terminaram por fechar a escola. Fecharam- na e os militares pegaram todas as coisas, as câmeras, as moviolas... chegaram numa noi- te com dois grandes caminhões, com dois toldos, lonas, puseram tudo lá dentro e... de- sapareceu a escola. Mas tudo isso não é uma história trágica, senão o contrário, porque agora a escola existe outra vez. Há três ou quatro anos foi reaberta e tem inclusive um statusjá reconhecido oficialmente, chama- se Instituto de Meios Audiovisuais. E no país uma nova escola vai ser inaugurada na Uni- versidade San Martin, na província de Bue- nos Aires. É uma universidade muito nova, avançada e progressista, que funda uma es- cola de cinema documental.

■ Você então partiu mais uma vez no come- ço dos anos 60. Dessa vez para onde? — Para o único lugar onde pensava que de alguma maneira poderia ter portas e jane- las abertas. Falei com um amigo em São Paulo, lhe disse que estávamos em uma si- tuação insustentável, tínhamos que sair da Argentina, e queria saber se havia alguma possibilidade de virmos ao Brasil. E então esse amigo, que era o querido Vlado [Vla- dimir Herzog], me disse simplesmente "ve- nham, estamos esperando". Era 1963 e o Brasil vivia uma abertura democrática in- crível. A Argentina... bem, em poucas pala- vras: deixamos para trás a escola, éramos quatro companheiros, homens e mulheres: Edgardo Pallero, sua companheira Dolly Pussi, Manuel Horácio Gimenez e minha companheira Carmen. Em São Paulo nos

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organizaram uma palestra na cinemateca, onde estava Paulo Emílio [Salles Gomes]. Quem organiza é Rudá de Andrade, e jun- to com ele está Vlado e também Sérgio Mu- niz, está toda a turma com a qual, quando termina a palestra nesta mesma noite, saí- mos todos com um entusiasmo único, fa- lando há que se fazer filmes, e isso e aquilo — havíamos apresentado Tire Dié e outros documentários da escola - e então se apro- xima um senhor, jovem ainda, porém um pouquinho mais velho do que nós, que diz "que bom... tenho uma casa de fotografia que tem aparelhos"... e esse senhor...

■ Thomaz Farkas! — Sim, grande Thomaz Farkas! Nasce aí o movimento documentarista paulistano. Thomaz decide levar adiante essa empresa, a assume economicamente, produz os do- cumentários. Ficamos uns meses mais, de- pois vamos ao Rio porque eu já vinha pre- parando um projeto com Ferreira Gullar, que era João Boa Morte.Trabalho com ele, e aí se produz aquela coisa incrível, quando as terras são dadas aos camponeses. Esses também são os meses em que estréiam Vi- das secas e Deus e o diabo na terra do sol.

■ Nossas duas obras-primas... — Sim. Há toda uma efervescência bonita mesmo, um momento único. Lembro da comemoração do que deveria ser o princí- pio do fim do latifúndio. Os camponeses iam enchendo a praça, chegavam com os tratores, as foices, feixes de trigo - me fazia pensar en La tierra, o filme de Dovsenko, dos começos da cinematografia soviética - uma coisa incrível, impressionante... Era o começo de uma era, e justamente por isso uma semana depois se trunca e já vem o contragolpe, e pelo qual os próprios com- panheiros brasileiros me aconselham dei- xar o Brasil, somos uma complicação tam- bém para eles porque já neste momento não há mais garantia de segurança para nin- guém. Assim é, tenho que ir-me outra vez.

■ Estamos em 1964 e você volta à Itália. — Passo primeiro por Cuba, e lá também não posso fazer nada porque a cinemato- grafia desse país está num momento econo- micamente muito difícil. Então vou à Itália e aí começa um período que continua de certa forma até este momento em que es- tou falando. Foi um período dolorosamen- te frustrante no início, muito ativo depois, no qual tenho que me tornar um cidadão do mundo. E há uma frase muito desgarra- dora de um cineasta argentino, que foi mor- to pela ditadura em Paris, Jorge Cedrón, que desde então passa a ser meu lema: "Minha pátria são meus sapatos". A vida me obri-

gou a isso, então eu o assumo, assumo bem, e com sonhos de futuro. Ponto e basta.

■ Quando você retornou à Itália, voltou a tra- balhar com os diretores do neo-realismo? — Não, meu corpo voltou à Itália, mas não voltou a minha alma. Minha alma seguiu não sei onde, e começou um período mui- to duro, que alguns chamam de "exílio in- terior"... Bom, que seja, o exílio exterior, o exílio interior é tudo uma grande ausência e, em troca, eu o evoco num filme que me tomou dez anos de trabalho, que se chama Org. É um nome inventado (cuja raiz eti- mológica está na palavra orgasmo), e é um filme que dedico a Che Guevara, a Mèliès, o cineasta de Viaje a Ia luna, e a Wilhelm Reich, o autor da revolução sexual. Porque creio que são três figuras emblemáticas que ficam do final dos anos 60, quando o ho- mem chega à lua, em 1969, e antes, em 1967, quando se produz a morte de Che, e quan- do a situação política explode, em 1968, no maio francês, no projeto de um novo mun- do e de um mundo que se transforma. O fil- me trata de tudo isso, e é também um ma- nifesto "por um cinema cósmico, delirante e lúmpen". É um filme absolutamente de- mencial, mas que traduz as Utopias (posi- tivas) e Distopias (negativas) desse momen- to de demência única. De certo modo é um filme que participa das tensões de A idade da terra, de Glauber. São dois filmes irmãos.

■ Desta vez, até quando você ficou na Itália? — Até que terminei Org, e voltei à Améri- ca Latina pela Venezuela. No norte da Ve- nezuela, em Mérida, havia um departamen- to de cinema de antigos companheiros meus em Roma. O diretor era Tarik Souki. Volta- mos a nos encontrar e ele me levou à Uni- versidade dos Andes, em Mérida, onde fun- dei no começo dos anos 80, outra escola, o Laboratório Ambulante de Poéticas Cine- matográficas. Era alguma coisa muito sim- ples, que dizíamos que estava feita para fa- zer cinema, ler e pensar cinema. Aí trabalhei vários anos, terminei em 1983 meu filme Ra- fael Alberti,un retrato dei poeta por Fernan- do Birri e depois de vários anos de trabalho voltei à Itália, e daí à Nicarágua e a Cuba.

■ Por que era ambulante? — Porque estava em cima de meus sapatos. O laboratório ia onde eu ia, essa era a idéia. Esteve em muitas partes do mundo. Desde a Suécia a Angola e Moçambique, passan- do pela Alemanha, claro que viajou dentro da América Latina, na Nicarágua, México, Colômbia, Brasil, Argentina... meio mundo e um pouquinho mais. E era uma maneira de já ir difundindo, ir plantando as semen- tinhas do novo cinema latino-americano.

■ Você poderia fazer um breve resumo da fun- dação da escola de Cuba? — Eu quase lhe diria que ela nasce, em 1986, numa conseqüência lógica do movimento do cinema latino-americano, como projeto da Fundação do Novo Cinema Latino- Americano, formada por todos nós, mui- tos brasileiros inclusive, como Cosme Al- ves Neto, determinante nesse processo, Geraldo Sarno, Silvio Tendler, agora tam- bém Wolney Oliveira, tantos companhei- ros.... É um projeto absolutamente autôno- mo, original, porque reconhece todas as experiências, mas não quer imitar nenhum modelo. Quando fui encaregado de elaborá- lo, entre as pessoas que chamei para cola- borar estavam Sérgio Muniz e Orlando Sen- na, depois meu sucessor na escola. Ele introduz o conceito do docfic, uma tendên- cia estética onde de alguma maneira se su- peram as velhas formas arterioesclerosadas da ficção, por um lado, e do documentário por outro. Mas, quando cheguei a Cuba, vi que já estava Garcia Márquez, que já havia confabulado com Espinosa, então presi- dente do Instituto Cubano de Arte e Indús- tria Cinematográficos (ICAIC) e com Fidel Castro. A idéia era me encarregar da direção — mais que a direção, era realmente a funda- ção da escola de cinema. Imaginava o gran- de trabalho que íamos ter, o que ia signifi- car não fazer uma coisa de já vu. Mas o trabalho seria coletivo. Convocamos com- panheiros de todos os países da América La- tina. Sérgio Muniz veio como diretor docen- te, Tarik Souki como diretor de produção, Orlando Senna, como professor do staffde direção. E, para começar, o verdadeiro nome seria Escola dos Três Mundos: América La- tina e Caribe, Ásia e África, para contrapor à idéia de Terceiro Mundo, uma denomina- ção que eu sempre abominei, porque me parecia indigna... mas isso permaneceu co- mo um sobrenome. Bem, a escola nasce com parâmetros muitos específicos e mui- to inovadores. Hoje, tem um grande e jus- to prestígio internacional, mantém-se a li- gação entre prática e teoria, os alunos filmam como uns loucos, não há dia nem hora em que não estejam às voltas com câmeras e gra- vadores... Mas creio que é hora de expandir a área das tecnologias eletrônicas.

■ E assim voltamos ao princípio de nossa en- trevista. Mirando o futuro. — Exatamente. É esse o sentido da coisa: es- timular uma imageria e uma imaginação que de alguma maneira antecipem o futu- ro. Se o audiovisual, o velho cinema, já não servem para nada, se são obsoletos, se sig- nificam sonhar os velhos sonhos, todas as noites precisamos cerrar os olhos para so- nhar os novos sonhos. •

18 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Sí osso separa a produti- e científica e a remu-

neração de homens e mu- lheres em áreas de pesquisa como as engenharias e a bio- logia. Já nas Ciências da Vi- da as diferenças de gênero quase não são observadas. Um grupo de pesquisadores norte-americanos decidiu debruçar-se sobre esse cam- po do conhecimento para investigar um aspecto espe- cífico do desempenho aca- dêmico: o número de paten- tes obtidas pelos dois sexos. Pois até nas Ciências da Vi- da a desvantagem das mu- lheres revelou-se grande. A pesquisa, publicada na revis- ta Science, foi realizada com uma amostragem de 4.227 norte-americanos que obti-

veram seus títulos de doutor entre 1967 e 1995. Em mé- dia, as mulheres registra- ram 40% das patentes obti- das pelos homens. Os dados mostram que 5,65% das 903 mulheres analisadas ti- nham alguma patente em seu nome. Entre os 3.324 ho- mens, a taxa foi de 13%. Os autores do trabalho, Waverly Ding, da Universidade da Califórnia, Fiona Murray, do Massachusetts Institute of Technology, e Toby Stuart, da Escola de Negócios de Harvard, fizeram entrevistas com grupos específicos para tentar entender o motivo do desequilíbrio. Conclusão: o hiato de gênero persiste de- vido às escassas ligações com o setor privado cultiva-

das pelas mulheres e por sua visão tradicional sobre a car- reira acadêmica. Elas não apenas se preocupam me- nos em patentear como tam- bém se dedicam pouco a outras atividades vinculadas ao "empreendedorismo aca- dêmico", como a prestação de consultoria a empresas. Mas isso está mudando. Se- gundo os autores, as pesqui- sadoras mais jovens têm a mesma cultura masculina de expandir suas ligações com empresas. "Se esse pro- cesso continuar assim nós vamos observar um declínio no tamanho do intervalo do registro de patentes, entre homens e mulheres, nos próximos anos", atestam os pesquisadores. •

■ Celebridade às avessas

O matemático russo Grigory Perelman, de 40 anos, recusou- se a receber no mês passado a Fields Medal, uma espécie de Nobel da área de matemática. Alegou que se sente isolado dentro da comunidade acadê- mica e não tem interesse em aparecer como um de seus lí- deres. Em 2002, ele apresentou uma solução para a Conjectu- ra Poincaré, considerada uma questão central da topologia, área da matemática que estu- da as propriedades geométri- cas de objetos que não mu- dam quando são distorcidos, esticados ou encolhidos. Perel- man colocou sua descoberta na internet em novembro de 2002 e, desde então, se recusa

20 ■ SETEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 127

a dar entrevistas. "Matemáti- ca pura é um assunto tão eso- térico que você faz por amor", disse o escritor Simon Singh à agência BBC. "Perelman nem se deu ao trabalho de publicar em uma revista científica. Por- que, do ponto de vista dele, o problema foi resolvido e isso é o que interessa." •

mHermanos na ciência

Aliados políticos, Cuba e Ve- nezuela decidiram estabelecer estratégias científicas comuns. Numa reunião realizada em Caracas nos dias Io, 2 e 3 de agosto, cerca de 150 represen- tantes dos dois países assenta- ram as bases para colaboração em 84 projetos de pesquisa e desenvolvimento. O diretor do Instituto Venezuelano de In-

Chávez e Fidel: parceria

vestigações Científicas (IVIC), Máximo Garcia Sucre, disse à Rádio Nacional da Venezuela que há tempos mantém par- cerias com o país caribenho no campo do refiorestamen- to, do cultivo de arroz e na produção de vacinas. "Esses projetos funcionam muito bem e há espaço para ampliá- los", afirmou Sucre. O encon- tro também serviu para dis- cutir a participação cubana no

programa Missão Ciência, pla- no venezuelano que propõe a criação de uma nova cultura científica e tecnológica no país e o financiamento de diversos programas regionais. A ini- ciativa conta com investi- mentos da ordem de US$ 440 milhões. As áreas consider-. adas prioritárias são saúde, segurança alimentar, energia, meio ambiente e tecnologias de informação. •

■ O mea-culpa uruguaio

O governo do Uruguai apre- sentou ao Parlamento um projeto de lei em que identifi- ca os calcanhares-de-aquiles do país em ciência e tecnolo- gia. O texto tem como finali- dade regulamentar a Agência Nacional de Inovação, cujo objetivo é combater tais defi- ciências. Segundo a agência de notícias Sci-Dev.Net, os pro- blemas foram divididos em três órbitas. No Estado, destacam- se a carência de líderes cientí- ficos, a falta de estímulo à ino- vação, a descoordenação de esforços entre os órgãos públi- cos e a descontinuidade de ações iniciadas. No setor pri- vado, os problemas são o bai- xo investimento em inovação, a escassa contratação de pes- soal capacitado e a débil vin- culação com outros atores da área científica. No nível acadê- mico, o projeto assinala o de-

senvolvimento desigual da pes- quisa em áreas estratégicas e a concentração de universidades na capital do país. •

■ O acesso aberto avança

Foi lançado no Reino Unido o Open Acess Central, portal que disponibiliza gratuitamente na internet o conteúdo de deze- nas de revistas científicas. Se- gundo a agência Eurekalert, o novo espaço eletrônico é obra da equipe que faz o BioMed Central, um dos maiores por- tais de acesso aberto em bio- medicina, com mais de 160 pe- riódicos. No Open Acess Central estará presente, além do con- teúdo do BioMed Central, o Chemistry Central, com cinco periódicos de química. Nos próximos meses um terceiro serviço será lançado com revis- tas de física e matemática. O portal está no endereço www. openaccesscentral.com. •

■ Condenação e alívio

O físico russo Oskar Kaiby- shev foi condenado a seis anos de prisão em regime de liber- dade condicional, sob a acu- sação de exportar tecnologia militar para a Coréia do Sul. Em 2002, o instituto em que Kaibyshev trabalhava cedeu li- gas de alumínio e um produ- to feito de titânio para uma companhia de pneus de Seul. O material permitiria melho- rar a qualidade dos pneus, mas o Serviço de Segurança Fede- ral da Rússia sugeriu que po- deria ser usado na fabricação de mísseis. A prisão seguiu-se à apreensão de documentos da delegação de empresários sul- coreanos que negociou com Kaibyshev - ela incluía repre- sentantes do Instituto de Pes- quisa Aeroespacial do país. "A defesa provou que Kaibyshev não revelou segredos de Esta- do", disse à revista Nature Eu- gene Chudnovsky, físico da Universidade da Cidade de Nova York. Desde o colapso da União Soviética, a ciência da Rússia sofre para conseguir fi- nanciamento. Parcerias inter- nacionais permitiram a sobre- vivência de vários institutos. As acusações de traição havi- am causado tensão nos meios acadêmicos. Por isso, liberda- de condicional de Kaibyshev foi recebida com alívio. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 21

Estratégias Mundo

Mais simples do que parece Enquanto milhões de pessoas continuam a ser infectadas com o vírus causador da Aids, sobretudo na África, um estu- do identificou um conjunto de ações simples e baratas que re- duzem o contágio entre ado- lescentes do Quênia, especial- mente as garotas. No país da África Oriental, onde a miséria leva meninas a fazer sexo com homens em troca de dinheiro ou presentes, a prevalência de Aids é sete vezes maior entre adolescentes do sexo feminino do que do sexo masculino. Fi- nanciado pelo grupo Parceria para o Desenvolvimento In- fantil, o estudo mostrou que, quando as garotas pobres re- cebiam uniformes escolares de graça em vez de ter de pagar US$ 6 por eles - ainda hoje a principal barreira para o aces- so à educação no Quênia -, caía significativamente a chan- ce de ficarem grávidas ou con- traírem o HIV. Os pesquisado- res constataram que debates

Garota africana: proteção

em sala de aula sobre a impor- tância dos preservativos leva- vam a um aumento no seu uso. "Relutei em me envolver nesta pesquisa, porque é um daqueles problemas em que nada parece funcionar. Fiquei feliz em ver as coisas funcio- nando", disse ao jornal The New York Times o economis- ta Michael Kremer, da Univer-

sidade Harvard. O estudo foi realizado durante três anos junto a 70 mil estudantes em 328 escolas do Quênia. •

■ Computares voluntários

Uma ferramenta capaz de aju- dar no combate a alguns dos principais problemas de saú- de costuma ser subutilizada. Trata-se do computador pes- soal, presente em milhões de escritórios e casas. Partindo dessa premissa, a Organização Européia para Pesquisa Nu- clear (Cern) desenvolveu o projeto Africa@home, com o objetivo de analisar dados de pesquisas ligadas às principais doenças que afetam a popula- ção do continente africano. A primeira ferramenta, o pro- grama malariacontrol.net, foi criada por pesquisadores do Instituto Tropical Suíço e ins- talada em computadores de mais de 5 mil voluntários em

diversos países. A proposta é realizar simulações de como ocorre a proliferação da malá- ria. O funcionamento é sim- ples. Toda vez que o computa- dor for ligado, mas não estiver sendo usado, o software entra em ação. Ao reunir o poder de processamento de milhares de máquinas ligadas na internet, o sistema processa dados que levariam anos se fossem feitos apenas nos computadores do instituto suíço. A lógica por trás do projeto, a computação vo- luntária, tornou-se conhecida com o seti@home, iniciativa do programa norte-america- no Seti, de busca de inteligên- cia extraterrestre. Mais de 5 milhões de voluntários insta- laram o programa desde 1999, formando uma imensa rede de processamento de sinais de rádio colhidos por instrumen- tos como o radiotelescópio de Arecibo, em Porto Rico. Por enquanto, não encontrou ne- nhum sinal de ETs. •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

www.centrocelsofurtado.org.br 0 portal traz as atividades do Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, criado por economistas de várias tendências.

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www.unicamp.br/iel/monteirolobato O site sobre Monteiro Lobato e sua obra é resultado de um projeto temático sobre o escritor desenvolvido pela Unicamp.

http://157.86.8.37 A Fundação Oswaldo Cruz lançou um endereço eletrônico que reúne uma copiosa coleção de indicadores sobre a Aids no Brasil.

22 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

■ O potencial da inovação

Quatro instituições científicas paulistas uniram-se para ava- liar o potencial de mercado das tecnologias inovadoras que produzem. O Programa de Investigação Tecnológica (PIT) é resultado de uma par- ceria entre as universidades Estadual de Campinas (Uni- camp) e de São Paulo (USP), além dos institutos de Pesqui- sas Tecnológicas (IPT) e de Pesquisas Energéticas e Nu- cleares (Ipen), com financia- mento da FAPESP e da Finan- ciadora de Estudos e Projetos (Finep). Nos próximos dois anos, cada uma das institui- ções selecionará projetos de inovação tecnológica em an- damento nos seus laborató- rios. A expectativa é que 120 tecnologias sejam estudadas. Todo o processo, que será con- duzido com o apoio de estu- dantes-bolsistas, será baseado na primeira experiência do PIT, realizada em Campinas em 2004, com 60 tecnologias. Depois de treinados, os alunos começarão a investigar as tec- nologias por meio de entre- vistas com pesquisadores. A idéia inicial é mapear os dife- renciais e as limitações de ca-

De volta à Estação

(j Brasil vouou a negociar com a Nasa o fornecimento de peças para a Estação Es- pacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Segundo os entendimentos, a Agência Espacial Brasileira (AEB) deverá fornecer peças no va- lor de US$ 5 a 6 milhões para ter o direito de enviar experimentos científicos de microgravidade a bordo dos ônibus espaciais norte-ame- ricanos. O acordo não prevê a ida de outro astronauta brasileiro à ISS. "Queremos prosseguir com nossas pes- quisas de microgravidade e a Nasa exige o fornecimen- to de peças como contrapar- tida", diz Raimundo Mussi, assessor técnico-científico da AEB. Na viagem que fez

da projeto. As próximas fases do estudo serão formadas pela prova de conceito da tecnolo- gia e pela análise de mercado. No final, ainda será feita a pesquisa de viabilidade eco- nômica das iniciativas selecio- nadas. Todos os projetos con- siderados com bom potencial poderão ser transferidos para a sociedade por dois cami- nhos: a geração de pequenas

empresas nascidas nas pró- prias instituições de pesquisa ou licenciamentos para gru- pos privados. •

■ Brasil, 500 anos de engenhos

A Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) e a Im- prensa Oficial do Estado de São Paulo lançaram o livro

A engenharia em 23 capítulos

à ISS, o astronauta Mar Pontes levou oito experi- mentos de microgravidade, área de interesse de discipli- nas como biotecnologia, me- dicina, materiais e fármacos. A decisão brasileira de inves- tir nessas pesquisas vem no mesmo momento em que a Nasa discute a interrupção por um ou dois anos de suas experiências na ISS, a fim de canalizar recursos para uma outra prioridade: a explora- ção humana do espaço. Há pesquisadores que consi- deram as experiências em microgravidade importan- tíssimas, enquanto outros afirmam que elas não têm valor", diz Raimundo Mus- si. "A verdade provavelmen- te está no meio." •

500 anos de engenharia no Brasil. Organizada por José Carlos Teixeira de Barros Mo- raes, professor da Escola Poli- técnica da USP, a obra é divi- dida em 23 capítulos, todos escritos por professores da USP. Alguns textos promovem uma visão global da engenha- ria no país desde o seu desco- brimento, enquanto outros trazem discussões atuais em áreas específicas, como a construção civil, a mineração, a siderurgia, a metalurgia, a construção de estradas de ro- dagem, a mecatrônica, entre vários outros temas igual- mente relevantes e importan- tes. Repleto de fotos e ilustra- ções, o livro é o 12° da Coleção Uspiana - Brasil 500 anos, lan- çada em meio às comemora- ções dos cinco séculos do des- cobrimento do país. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 23

O quorum da CTNBio na berlinda

missão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) de- finirão a postura do governo em relação ao quorum para deliberações do órgão, in- cumbido, entre outras tare- fas, da análise da liberação comercial de produtos gene- ticamente modificados. Em reunião com 11 ministros realizada no início de agos- to, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva discutiu medi- das para agilizar o trâmite dos processos, emperrados devido a problemas burocrá- ticos a disputas entre repre-

sentantes de ministérios que defendem posições antagô- nicas. Caso os trabalhos não deslanchem, o governo po- derá reduzir o quorum de deliberação de dois terços para maioria simples. "Co- mo o quorum atual foi defi- nido por uma portaria do presidente, ele vai esperar os resultados das próximas reu- niões para tomar uma deci- são", diz o ministro da Agri- cultura, Luiz Carlos Guedes Pinto. A última reunião da comissão não abordou assun- tos polêmicos, mas limpou os 92 itens de sua pauta. •

Estratégias Brasil

■ Inclusão no Mercosul

Estão abertas até o dia 8 de de- zembro as inscrições para o Prêmio Mercosul de Ciência e Tecnologia 2006, destinado aos melhores trabalhos de estu- dantes e pesquisadores de paí- ses do bloco econômico na área de Tecnologias para In- clusão Social. O prêmio se di- vide em três categorias: inicia- ção científica, para estudantes do ensino médio (prêmio de

US$ 2 mil); jovem pesquisa- dor, para candidatos com no máximo 35 anos (US$ 5 mil); e integração, dirigida a equi- pes, sem limite de idade (US$ 10 mil). O prêmio é promovi- do pela Reunião Especializa- da de Ciência e Tecnologia (RECyT), vinculada ao Mer- cosul, e pela Unesco, braço da Organização das Nações Uni- das para a educação e a cultu- ra, com patrocínio da Petro- bras. O regulamento está disponível nos sites da RECyT

(www.recyt.org/premiomer- cosul) e da Unesco (www.unes- co.org.br/premiomercosul/). •

■ Radiografia na internet

O Ministério da Saúde lançou na internet o Atlas de saúde do Brasil, com informações pro- duzidas de 2000 a 2006 sobre mortalidade, morbidade e imunizações. Os dados são distribuídos por estados e mu- nicípios. "A idéia é dar visibi-

lidade ao painel da saúde no país. Um mapa facilita a com- preensão dos dados", diz o se- cretário de Vigilância em Saú- de, Jarbas Barbosa. O Atlas eletrônico é direcionado a es- tudantes, profissionais de saú- de e gestores públicos. É fruto de parceria do Ministério da Saúde com instituições como o Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE), que forneceu dados populacio- nais. Está disponível no site www.saude.gov.br/svs/atlas. •

24 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

■ Melhores da saúde pública

Os congressos mundiais de saúde pública, que acontecem a cada três anos, sempre ele- gem uma liderança sanitária e uma instituição por sua con- tribuição à saúde coletiva mun- dial. Na edição deste ano do congresso, que reuniu 10 mil participantes no Rio de Janei- ro, os escolhidos como melho- res do mundo foram a Fiocruz, na categoria institucional, e seu presidente, Paulo Buss, na pre- miação individual. Os prêmios são concedidos pela Federação Mundial das Associações de Saúde Pública, que representa 70 associações nacionais. Buss também foi eleito novo presi- dente da federação. •

■ Importação ampliada

O Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ampliou o acesso de pesquisadores ao Ciência Importa Fácil, pro- grama que facilita a compra

no exterior de bens e matérias- primas destinados a estudos científicos. Agora, além dos pesquisadores com bolsas de produtividade em pesquisa (PQ) do CNPq, também os que possuem bolsas de produ- tividade em desenvolvimento tecnológico e extensão inova- dora (DT) estão habilitados a se credenciar. Criado em 2004, o Ciência Importa Fácil esten- deu aos pesquisadores, como pessoas físicas, benefícios tri- butários e administrativos pa- ra aquisição de equipamentos e insumos, como a isenção de impostos de importação e so- bre circulação de mercadorias. Até então, isso era primazia de universidades e de institutos de pesquisa. •

■ Pesquisa em educação

A Liber Livro Editora Ltda. lançou mais um livro da Série Pesquisa. É o 15" livro da cole- ção coordenada por Bernadete

Angelina Gatti, diretora da Di- visão de Pesquisa em Educa- ção da Fundação Carlos Cha- gas. A série tem como objetivo oferecer instrumentos teóricos e metodológicos para alunos de mestrado e doutorado nas áreas de ciências humanas e educação. Neste livro, intitu- lado Etnopesquisa crítica, etno- pesquisa-formação, Roberto Sidnei Macedo, doutor em ciências da educação e profes- sor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), analisa a re- lação do pesquisador e os su- jeitos do estudo. •

Segredos do sangue Três hemocentros brasilei- ros vão participar de um grande levantamento epi- demiológico relacionado à doação de sangue, em par- ceria com instituições dos Estados Unidos. Trata-se do Retrovirus Epidemio- logy Donor Study II, estu- do patrocinado pelo Insti- tuto Nacional de Coração, Pulmão e Sangue dos Es- tados Unidos. "No mundo globalizado, os vírus circu- lam com velocidade e os Estados Unidos têm inte- resse em pesquisar o que acontece em outros paí- ses", diz Ester Sabino, da Fundação Pró-Sangue, lí- der do projeto no Brasil. Os bancos de sangue bra-

sileiros participantes a Fundação Pró-Sangue/ Hemocentro de São Pau- lo, Hemocentro de Minas Gerais (Hemominas) e He- mocentro de Pernambuco (Hemope). A Universida- de de São Paulo (USP) e a Federal de Minas Gerais (UFMG) também inte- gram o projeto, que terá duração de quatro anos e receberá R$ 3 milhões. Mais de 2 milhões de doa- dores de sangue serão ava- liados. Três projetos estão programados: um sobre o risco residual de transmis- são do vírus da Aids, ou- tro sobre a triagem de do- adores e um terceiro sobre doença de Chagas. •

-c*.

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 25

POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

PÓS-GRADUAÇÃO

A hora do

diálogo Crescem os cursos interdisciplinares, em que disciplinas distintas interagem em busca de soluções para novos dilemas

FABRíCIO MARQUES

t campo que mais se expande na pós-graduação brasileira é o interdisciplinar, aquele que soma o conhecimento de áreas diversas para propor a construção de um novo saber ou de soluções para dilemas emergentes. Hoje os progra-

mas de mestrado e doutorado interdisciplina- res compõem a maior área da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe- rior (Capes), agência do Ministério da Educa- ção incumbida de autorizar a criação dos pro- gramas de pós-graduação stricto sensu no país e avaliá-los. Ao todo, já são 177 desses cursos, num universo de quase 3,6 mil. "O crescimen- to tem sido explosivo e mostra que está avan- çando na pós-graduação brasileira a visão de que alguns problemas podem ser abordados de maneira mais eficiente por meio da integração de várias disciplinas", diz Carlos Nobre, coor- denador do comitê dessa área da Capes e pes- quisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre 1996 e 2004 o número de mestrados interdisciplinares passou de 25 para 130. No mesmo período, os cursos de doutorado aumentaram de 7 para 32.

Em julho passado, a Capes autorizou a cria- ção de 147 novos cursos de pós-graduação no Brasil. A área com maior número de progra- mas aprovados foi a Multidisciplinar com 18 projetos, seguida pela Engenharia II (que en- globa as engenharias de materiais, metalúrgi- ca, de minas, nuclear e química) com 8, Medi- cina também com 8 e Saúde Coletiva com 7. Entre os projetos que ganharam sinal verde há, por exemplo, o primeiro mestrado profissio- nal do país em Poder Judiciário, oferecido pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Funda- ção Getúlio Vargas (FGV), cujas disciplinas se- rão ministradas por especialistas em adminis- tração, economia e ciências sociais. O objetivo do curso é formar profissionais que ajudem a reduzir a lentidão da Justiça e a aumentar a efi- ciência dos tribunais. Outro exemplo é o mes- trado em defesa e segurança civil da Universi- dade Federal Fluminense (UFF), que contará com pesquisadores de diversas unidades da ins- tituição, como a Escola de Engenharia e os ins- titutos de Ciências da Sociedade e Desenvolvi- mento Regional, de Geociências, de Química e de Saúde da Comunidade. A lista ainda con- tém, entre outros contemplados, os mestrados em divulgação científica e cultural, da Univer-

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 27

sidade Estadual de Campinas (Unicamp), em lazer, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em nanociên- cias, do Centro Universitário Francisca- no, em Santa Maria (RS).

Dois motores que funcionam para- lelamente dão fôlego à interdisciplinari- dade na pós-graduação. Um deles tem a ver com as novas necessidades do mer- cado de trabalho e está vinculado aos cursos de mestrado profissional, aque- les voltados para quem não segue carrei- ra acadêmica mas busca um aperfeiçoa- mento para trabalhar em empresas. Mas o principal motor é mesmo a necessida- de de apelar a várias ciências para enfren- tar dilemas emergentes e complexos. Um exemplo são os mestrados em geronto- logia, que abrangem o campo da enfer- magem, da medicina, da farmácia, da as- sistência social e da antropologia. "Há alguns anos recebemos uma proposta de curso interdisciplinar na área de segu- rança pública que já introduzia a ques- tão do crime organizado no sistema pri- sional e recorria a diversos campos de pesquisa, como a so- ciologia, o direito e a ciência po- lítica", diz Carlos Nobre.

A prática interdisciplinar na Universidade de São Paulo (USP) não é nova - há tempos a insti- tuição mantém uma dezena de cursos de mestrado e doutora- do interdisciplinares, em cam- pos como a bioengenharia e a bioinformática. Mas a interdis- ciplinaridade vem avançando até mesmo dentro dos programas tra- dicionais. Na área de física, o mestra- do e o doutorado em física médica têm cooperação com a Faculdade de Medi- cina. "Também há colaborações entre professores de matemática e de finan- ças na Faculdade de Economia, e das áreas de engenharia e educação física na pesquisa de sistemas biomotores, para citar dois exemplos", diz o pró-reitor de pós-graduação da USP, Armando Cor- bani Ferraz. "É uma tendência salutar, porque aproveita competências em pro- jetos conjuntos. É bom que uma área ajude a outra. A pesquisa não pode ter limites", afirma.

Muitos programas de pós-gradua- ção interdisciplinares estão vinculados às ciências ambientais. E não por coin- cidência. De um lado há uma tendên- cia internacional iniciada no final dos

anos 1980 de integrar a pesquisa sobre as mudanças globais recorrendo não ape- nas aos climatologistas e ecólogos, mas também a especialistas capazes de abor- dar toda a complexidade do assunto, co- mo os geólogos, os cientistas sociais, os demógrafos e os antropólogos. "Dessa interação vai surgir um novo tipo de profissional, capaz de entender as ques- tões ambientais em todos os seus as- pectos", diz Carlos Nobre. Um exem- plo é o Programa de Pós-Graduação Interunidades (mestrado e doutorado) em Ecologia Aplicada, iniciado em 2001 pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), ambos no campus da USP em Piracica- ba. Suas linhas de pesquisa agrupam professores de áreas diversas, da ecolo- gia à genética, da biotecnologia às ciên- cias humanas, da microbiologia à ento- mologia, em busca de soluções para a conservação da biodiversidade em agro- ecossistemas agrícolas neotropicais.

o ano passado começou a fun- cionar na Amazônia um progra- ma de mestrado em ciências ambientais vinculado a três ins- tituições: a Universidade Federal do Pará, o Museu Paraense Emí- lio Goeldi e a Embrapa Amazô- nia Oriental. A iniciativa foi ins- pirada na experiência de um grande projeto de pesquisa, o Ex- perimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazô-

nia (LBA, na sigla em inglês), que reu- niu pesquisadores de diversas formações para melhorar os modelos climáticos de previsão e fazer projeções sobre como será o uso da terra na Amazônia, con- forme o objetivo do programa Geoma, do Ministério da Ciência e Tecnologia. "O Pará é um laboratório a céu aberto de experiências ambientais", diz o coor- denador do curso, Leonardo Sá, pesqui- sador do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), vinculado ao Instituto Nacional de Pesquisas Espa- ciais (Inpe), e do Museu Goeldi. O curso de mestrado, que já recebeu graduados em áreas como a física, a oceanografia, a matemática, a meteorologia, a agrono- mia, a biologia e até a sociologia, busca formar pesquisadores capazes de estudar a dinâmica dos ecossistemas amazônicos e aperfeiçoar o conhecimento sobre os

fenômenos climáticos e as mudanças no uso da terra na região da floresta.

Cerca de 20% de todas as propostas de cursos que chegam à Capes são in- terdisciplinares. Mas a maioria é repro- vada pela agência. Ocorre que boa par- te deles provém de instituições públicas e privadas de pequeno porte ou de re- giões remotas do país que, por falta de massa crítica para fazer programas em áreas convencionais, promovem consór- cios de professores com formações va- riadas e tentam induzir a criação de um curso multidisciplinar. "Dá logo para ver que falta um foco à proposta e que se trata, na verdade, de vários micropro- gramas justapostos", afirma Renato Ja- nine Ribeiro, professor de filosofia da USP e diretor de avaliação da Capes.

Conforto - De todo modo, o crescimen- to dos cursos pode ser visto como um sinal de vigor da pós-graduação. É que criar um programa deste tipo dá muito mais trabalho do que construir um ou- tro, de figurino tradicional. "Demora muito mais tempo para montar uma pesquisa interdisciplinar. Como fazer que certas pesquisas terminem em dois anos e meio, que é o tempo do mestrado?", in- dagou Arlindo Philippi Júnior, profes- sor da Faculdade de Saúde Pública da USP, num debate realizado na última reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Floria- nópolis (SC). Segundo ele, a prática da interdisciplinaridade exige um esforço de se abandonar o conforto no qual o pesquisador tem o domínio do "saber fa- zer". "Mas precisamos pensar de que ma- neira enfrentaremos a disputa de espa- ço com os colegas de outras disciplinas", disse Philippi.

Não se trata de um problema trivial. A Capes, a agência responsável pela ava- liação dos programas, está preocupada com alguns entraves que esses novos cur- sos enfrentam. "É difícil avaliar um cur- so de pós-graduação interdisciplinar", diz Janine Ribeiro. "Sempre existe o pe- rigo de que, na hora de distribuir recur- sos, os avaliadores sejam mais sensíveis com suas áreas de origem e não dêem o valor adequado para a inovação dos pro- gramas interdisciplinares. Esse é um problema que combatemos de todas as maneiras, sob o risco de produzirmos pesquisas que apenas repetem experiên- cias já conhecidas", afirma. •

28 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

IMPRENSA

Mês de boas notícias Pesquisa FAPESP ganha prêmios de jornalismo e estréia nova versão do site

T pesar da fama de mês agourento, agosto foi excelente para Pesquisa FAPESP. Duas reporta- gens da revista foram premiadas, o site ga- nhou novo desenho e seções e um dos jorna-

listas da redação teve dois artigos cien- tíficos aceitos para publicação, em cola- boração com outros pesquisadores, em periódicos indexados.

A primeira dessas boas-novas es- treou no dia 7 de agosto: o site da revis- ta (www.revistapesquisa.fapesp.br) foi totalmente redesenhado para permitir uma navegação mais fácil e agora tem um sistema de busca mais eficiente. A página eletrônica traz o conteúdo inte- gral de todas as edições da revista, do nú- mero 1 ao atual. Além de poder consul- tar sem restrição os textos publicados na versão impressa de Pesquisa FAPESP, o internauta encontra no site seções espe- cialmente produzidas para o meio vir- tual. Uma delas é "O melhor das revis- tas", que traz um resumo dos principais artigos publicados nos periódicos cien- tíficos Nature e Science.

Todas as segundas-feiras à tarde, o site disponibiliza também um arquivo de áudio, para ser ouvido no compu- tador ou num tocador de música digi- tal, com a íntegra do programa de rádio Pesquisa Brasil do fim de semana ante- rior. O programa, que traz notícias sobre

rrêmodeKeportagemsobrea

DiocWr^adedaMataAtUca Impresso Z006"

L.m reconhecimento à

'Revista Tesquisa Japesp por seu importante papel na difusão

da informação ambienta! e pela publicação de

"JA vida entre foChas sea reportagem eanbadora do iYXYt\£\YO ÍIC

Diploma de primeiro lugar e o novo rosto do site: em prol do leitor

ciência e tecnologia, com ênfase na pro- dução nacional, é uma parceria da revis- ta com a emissora Eldorado AM de São Paulo (700 kHz). Em breve, o site pas- sará a publicar novas seções on-line, com conteúdo feito exclusivamente para o meio eletrônico, além de fornecer tra- duções das reportagens de Pesquisa FA- PESP para o inglês e o espanhol.

Sem acaso - Também em agosto a re- pórter e colaboradora da revista Ales- sandra Pereira e o editor de ciência, Car- los Fioravanti, ganharam o primeiro e segundo lugares do Prêmio de Reporta- gem sobre Biodiversidade da Mata Atlântica, categoria veículo impresso, concedido pela organização não-gover- namental Conservação Internacional Brasil. As reportagens premiadas foram "A vida entre folhas secas", de Alessan- dra, e "Por que as florestas são diferentes", de Fioravanti. O reconhecimento pelos trabalhos publicados não foi por acaso.

Pesquisa FAPESP sempre deu a impor- tância que os temas ambientais mere- cem. Prova disso é que o concurso está na sexta edição e esta é a quinta vez em que os textos da revista são premiados.

Por fim, o editor especial Ricardo Zorzetto, jornalista e mestrando em ciên- cias da saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), participou como autor secundário da redação do artigo "Mental health and psychiatry research in Brazil: scientific produetion from 1999 to 2003", publicado em agosto em um suplemento especial da Revista de Saúde Pública. Foi o primeiro autor de artigo aceito para publicação no Brazi- lian Journal of Medicai and Biological Research, ainda sem data para sair. O provável título é"The scientific produe- tion in health and biological sciences of the top 20 Brazilian universities". Todas essas novidades mostram o esforço que Pesquisa FAPESPfaz para tornar-se me- lhor para seus leitores. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 29

O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

METEOROLOGIA

mpo de prever Finep vai distribuir R$ 12,8 milhões para recuperar as redes estaduais de meteorologia e antever fenômenos climáticos extremos

Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) vai investir R$ 12,8 milhões em programas voltados para manter vivas as redes de meteo- rologia dos estados brasileiros e para promo- ver pesquisas sobre a previsão de fenômenos climáticos extremos no território brasileiro e nas faixas tropical e sul do oceano Atlântico. Os recursos estão divididos em duas chama- das públicas. A primeira irá distribuir R$ 6,8 milhões oriundos dos fundos setoriais de Recursos Hídricos (CT-Hidro) e de Energia (CT-Energ). A meta é apoiar as redes de me-

teorologia estaduais, ajudando-as na melhora de seu sistema de coleta, interpretação e distribuição de dados. Cada rede po- derá receber entre R$ 200 mil e R$ 400 mil. Existem no Brasil 24 Centros Estaduais de Meteorologia, Climatologia e Recur- sos Hídricos, que são organizados por meio de redes e comple- mentam o sistema nacional de previsão climática, cujos braços federais são o Instituto Nacional de Meteorologia (InMet) e o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A qualidade da previsão do clima depende de uma boa dis- tribuição geográfica das estações de coleta de informações cli- máticas, como precipitação e temperatura, e da existência de séries históricas destes parâmetros. Em alguns estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, as redes funcionam bem. Em outros, principalmente os da Amazônia, seu trabalho é irregular. "Em muitas unidades da federação as redes de pre- visão meteorológica enfrentam dificuldades e seriam necessá- rios pelo menos R$ 20 milhões para começar a convertê-las num sistema moderno, com bancos de dados acessíveis para

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todos os cidadãos", diz Ricardo Gattass, superintendente da Área de Universida- des e Instituições de Pesquisa da Finep. "Esses R$ 6,8 milhões são um passo ini- cial no sentido de mantê-las vivas para, mais adiante, criar um sistema de previ- são integrado e abastecido por informa- ções com o mesmo nível de qualidade", afirma. A Finep pretende lançar editais semelhantes nos próximos anos para dar seqüência ao investimento. Conforme exige a legislação dos fundos setoriais, 30% dos recursos serão destinados a propostas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. "Neste caso, isso é espe- cialmente importante, porque os esta- dos do Sul e do Sudeste, que reúnem mais massa crítica, já têm as melhores redes", diz Gattass.

Impacto - A segunda chamada pública vai distribuir R$ 6 milhões vindos dos fundos setoriais do Agronegócio (CT- Agro) e de Recursos Hídricos (CT-Hi- dro). Neste edital o dinheiro será menos pulverizado. A intenção é apoiar entre quatro e dez redes de pesquisa multidis- ciplinares que ampliem a capacidade de observação, previsão e alerta de eventos meteorológicos e climatológicos extre- mos no Brasil e no oceano Atlântico

Seca na Amazônia e devastação causada por ciclone em Santa Catarina: fenômenos mais intensos

Tropical e Sul. No rol desses eventos, in- cluem-se as enchentes e secas catastró- ficas, os ciclones e os furacões, que têm grande impacto na defesa civil, no ge- renciamento do agronegócio e na ge- ração de energia. "A chamada pretende induzir uma ação coordenada para a construção de um sistema articulado de previsão que informe e prepare a popu- lação para a ocorrência de fenômenos extremos, salvando vidas e diminuindo o impacto desses fenômenos nos seto- res mais vulneráveis. Esta ação terá um retorno considerável em relação aos in- vestimentos, dada a demanda por infor- mações meteorológicas nas áreas de agricultura, pecuária, energia, recursos hídricos, transportes aéreos, marítimos e terrestres, saúde pública e defesa civil", diz Ricardo Gattass. "Hoje há pouquís- simos estados brasileiros com sistemas de alerta adequados, voltados principal- mente para a prevenção de deslizamen- tos de terra", afirma.

O principal motivo para estudar mais e conseguir antever os eventos cli-

máticos extremos são os indícios de que, na esteira do aquecimento global, tais fe- nômenos tendem a despontar com in- tensidade maior. "Há um conjunto de evidências que aponta nesta direção", diz o botânico Carlos Joly, professor da Uni- versidade Estadual de Campinas (Uni- camp) e membro da coordenação do programa Biota-FAPESP. Recentemen- te, a FAPESP patrocinou dois workshops sobre mudança climática para analisar as pesquisas feitas em São Paulo no tema. "Fenômenos brasileiros como o ci- clone Catarina, que atingiu o Sul do país em 2004, e a intensa seca que a região amazônica viveu no ano passado podem fazer parte de um conjunto de ocorrên- cias extraordinárias sem vinculação com o aquecimento global. Mas quan- do olhamos o que está acontecendo em outras regiões do globo vemos que o nú- mero de desastres naturais subiu de 260 em 1990 para 337 em 2003, e o número de pessoas atingidas por estes desastres cresceu exponencialmente", afirmou Joly. Em ambas as chamadas, a data fi- nal para envio de propostas é o dia 29 de setembro. O prazo de execução dos pro- jetos será de 24 meses. •

FABRíCIO MARQUES

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 31

CIÊNCIA

Pôr-do-sol sobre o olho de um furacão: turbulências atmosféricas são muito barulhentas

O mundo é muito mais ba- rulhento do que imagina- mos. Só não conseguimos ouvir. Mas uma rede global de detectores está mostran- do a riqueza de fontes de sons nas freqüências abaixo dos limites da audição hu- mana, que capta os sons com

freqüências entre 20 e 20 mil hertz. Os ultra-sons, acima desse limite, se esvaem com facilidade, mas os infra-sons, abaixo dele, podem viajar milhares de quilômetros, co- mo demonstrou em 1883 a erupção do vulcão Krakatoa, registrada a quase 5 mil qui-

lômetros de distância. Ani- mais como elefantes, rinoce- rontes e baleias se valem de sons nessa freqüência para se comunicar a quilômetros de distância, mas as fontes mais abundantes de infra-sons é a própria Terra, que gera vi- brações nessa freqüência nas

erupções vulcânic dos, avalanches, terremotos, meteoros e turbulências at- mosféricas. Os infra-sor também vêm diretamente de interior sólido da Terra, pro- duzindo uma vibração cons- tante - um murmúrio - com uma freqüência de poucos mili-hertz, de acordo com os resultados obtidos por meio de uma malha de barôme- tros com fibras ópticas, cria- dos pela equipe de Mark Zumberge e Jon Berger, da Universidade da Califórnia em San Diego, Estados Uni- dos {Physics World). Sons nes- sa freqüência podem tam- bém produzir ansiedade ou apreensão. Em 2003, pesqui- sadores britânicos descobri- ram que poderiam induzir sensações de tristeza e ansie- dade em um grupo de pes- soas submetendo-as a vibra- ções acústicas com uma freqüência de 17 hertz em uma sala de concertos. •

Laboratório Mundo

■ Os médicos e os erros médicos

Médicos dos Estados Unidos e do Canadá aceitam a idéia de expor aos pacientes os er- ros que cometeram, mas di- vergem sobre quando e como os contariam. Thomas Gal- lagher, da Universidade de Washington, com base em en- trevistas feitas com 1.233 mé- dicos dos Estados Unidos e 1.404 do Canadá, verificou que a maioria dos pacientes quer informações detalhadas sobre os erros por que passa- ram, uma declaração explíci- ta de que algo indesejado ocor- reu, um pedido de desculpas

e uma explicação do que será feito para evitar outras falhas. Porém só chegam aos pacien- tes os relatos de menos da me- tade dos erros médicos (Ar- chives of Internai Medicine). A equipe de Gallagher apresen-

tava aos médicos erros mais evidentes, como deixar uma esponja no corpo do pacien- te, e outros menos, como um dano interno causado pela pouca habilidade em lidar com um instrumento cirúr-

gico, e depois perguntava se e como contariam ao pacien- te. Resultados: 65% realmen- te contariam os erros, 29% provavelmente contariam, 4% só contariam se o paciente pedisse e 1% não diria nada; 42% usariam a palavra erro, 56% algo mais ameno, como efeito adverso, em vez de erro, 50% dariam detalhes e 13% não dariam maiores explica- ções. Os canadenses exibiram maior disposição em falar so- bre os erros e em conversar com o paciente. Para a maio- ria (66%), comunicar os erros pode aumentar a confiança dos pacientes e reduzir o risco de processos judiciais. •

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A Vila do Deserto do Norte: ambiente árido mantém as pessoas isoladas, enquanto o verde as apro..

■ O valor da soneca

Temos boas razões para inve- jar a vida dos bebês: ganham comida quando choram, têm amor incondicional e dor-

mem o quanto querem. Ago- ra um estudo mostra que os cochilos ao longo do dia apri- moram a capacidade de abs- tração. Em um estudo publi- cado na Psychological Science, Rebecca Gomez, Richard Bo- otzin e Lynn Nadei, da Uni- versidade do Arizona, Estados Unidos, repetiam a 48 bebês de 15 meses frases de três pa- lavras de uma linguagem arti- ficial, como pel - wadim -jic, até os bebês se familiarizarem com elas. Embora sem senti- do, as frases seguiam a estru- tura gramatical de sujeito, ver- bo e predicado. Antes do teste, alguns bebês já tinham tirado a soneca habitual e outros ain-

da não. De volta ao laborató- rio, ouviam as frases em outra ordem. Gomez avaliava o ní- vel de atenção de cada um de- les observando como ouviam as antigas e as novas combina- ções de palavras. Os dois gru- pos reconheciam as palavras que haviam aprendido, mas só os bebês que tinham dormido generalizavam o conhecimen- to das relações possíveis entre as palavras nas frases novas. Para Gomez, esse resultado in- dica que os cochilos favorecem a aprendizagem abstrata - a habilidade de detectar um pa- drão geral em uma nova infor- mação e prever outras possi- bilidades de combinação. •

■ Anestésico com som e imagem

Assistir à televisão funcio- nou como um anestésico para crianças, de acordo com um estudo da Archives ofDisea-

se in Childhood. Uma equipe da Universidade de Siena, Itá- lia, acompanhou 69 crianças com 7 a 12 anos de idade, di- vididas em três grupos. Ao pri- meiro não era dada nenhuma distração enquanto se tirava uma amostra de sangue. As crianças do segundo grupo eram acompanhadas pelas mães, que as distraíam en- quanto se tirava sangue, e as do terceiro grupo podiam as- sistir a desenhos na televisão durante o mesmo procedi- mento. Depois todas as crian- ças e suas mães davam uma nota para a intensidade da dor que sentiram. As do primeiro grupo foram aquelas que de- ram as notas mais altas - três vezes mais altas que as das que assistiam televisão. As notas médias vieram das crianças acompanhadas pelas mães. Mesmo assim, as notas das mães eram maiores que as dos próprios filhos. •

Efeitos da paisagem Famílias de estudantes que moram em grupos de casas entre arbustos passam as horas de fol- ga juntas enquanto as crianças brincam nas ruas da Universidade Estadual do Arizona (ASU), Estados Unidos. Ali perto, outro grupo de famílias, cujas casas se situam no deserto sem disfarces, mal se co- nhece. Não é por acaso. O ambiente pode inter- ferir na interação social, favorecendo-a, como no primeiro caso, ou bar- rando-a, como no se- gundo. Cientistas sociais e ecólogos da Universi- dade do Oeste de Illinois (WSU)e da ASU modi- ficaram quatro de cinco grupos de seis casas, deixando-os com plan- tas mais altas ou mais baixas, mais ou menos dependentes de água. Os resultados mostra- ram que mesmo as pes- soas habituadas ao de- serto preferem viver em meio a uma vegetação abundante, que promo- va o lazer e a integração social.

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 33

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Venenos de machos e de fê- meas da mesma espécie de cobra podem ser diferentes e levar a reações distintas no organismo, concluiu uma equipe do Instituto Butantan que examinou exemplares de jararaca (Bothrops jara- raca), abundante no Brasil. Já se sabia que machos e fêmeas eram morfologica- mente diferentes: as fêmeas crescem mais e chegam a 1,2 metro, enquanto os machos raramente passam de 80 cen- tímetros. Os estudos coorde- nados por Maria de Fátima Furtado e Solange Serrano, publicados na revista Toxi- con, mostraram que a com- posição e as propriedades

■ Criando células musculares

Aquela gordurinha que insis- te em se acumular nos quadris ou em deixar a cintura mais saliente que o desejável pode ser útil. É que o tecido adiposo apresenta uma concentração elevada de células-tronco adul-

biológicas dos venenos de machos e de fêmeas também variam bastante. O veneno da jararaca fêmea causa uma hemorragia mais intensa e é mais letal, enquanto o dos machos é mais forte para promover a coagulação do sangue e para degradar mús- culos esqueléticos. Maria de Fátima reconhece que não é simples explicar as razões dessas diferenças, embora al- guns benefícios, especial- mente para as fêmeas, este- jam mais claros. Enquanto os machos adultos mantêm o mesmo veneno e a mesma dieta de quando eram jo- vens, à base de lacraias, an- fíbios e lagartixas, as fêmeas

tas - um tipo de célula versá- til, capaz de originar vários te- cidos do corpo. Trabalhando com células-tronco de gordu- ra extraída em cirurgias de li- poaspiração, a equipe da gene- ticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Hu- mano da Universidade de São Paulo (USP), produziu em la-

adultas, com um veneno mais poderoso, alimentam- se de presas maiores como roedores. Podem assim cres- cer mais e, sendo mais cor- pulentas, podem manter um número maior de embriões dentro do corpo e produzir grandes ninhadas. Uma con- clusão bastante prática, ob- tida a partir da análise dos registros de pessoas picadas por jararaca atendidas no hospital do Butantan: os aci- dentes mais graves são cau- sados por fêmeas; os ma- chos causam apenas lesões leves ou moderadas. Detalhe: as fêmeas produzem cinco vezes mais veneno que os machos. •

boratório células maduras de músculo esquelético. "O mais importante é que essas célu- las musculares fabricam a pro- teína distrofina, essencial pa- ra manter a integridade dos músculos", observa Mayana. Sem essa proteína as células musculares se degeneram e morrem, provocando fraque-

za muscular e perda progres- siva dos movimentos, caracte- rística da distrofia muscular de Duchenne. Natássia Vieira, da equipe de Mayana, obteve cé- lulas produtoras de distrofina por meio de duas estratégias aparentemente simples. Na primeira, Natássia colocou cé- lulas-tronco extraídas da gor- dura com células musculares imaturas de portadores da dis- trofia de Duchenne. Os dois ti- pos de células se fundiram e originaram células musculares maduras. Na segunda, as célu- las-tronco ficaram lado a lado com células musculares já de- senvolvidas. "Neste caso ainda não sabemos se as células- tronco se fundiram com as cé- lulas musculares ou se se trans- formaram em novas células musculares", afirma Natássia. "Mas em ambos os experi- mentos as células passaram a fabricar níveis normais de dis- trofina", afirma a bióloga, que deve publicar em breve os re- sultados desse trabalho, feito em parceria com a médica Vanessa Brandalise. A expec- tativa é de que essas células musculares também produ- zam outras proteínas ausentes em outras formas de distrofia

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muscular. Apesar dos resulta- dos promissores, ainda são ne- cessários anos de pesquisa pa- ra verificar se é viável o uso de células-tronco para amenizar o sofrimento dos portadores de distrofia muscular. •

■ As mulheres diante do sexo

As crenças das mulheres sobre como homens e mulheres de- vem agir na primeira relação sexual com um novo parceiro as deixam vulneráveis à coer- ção, de acordo com um estudo de Ann Moore, do Instituto Guttmacher, de Nova York, Es- tados Unidos. A análise das en- trevistas realizadas em Recife e em Belo Horizonte com gru- pos de 24 mulheres mostra que elas sentem que têm de ser pas- sivas porque - mesmo sugerin- do o uso de métodos anticon- cepcionais -, caso contrário, seu parceiro pode acusá-las de já ter tido experiência se- xual. De acordo com esse es- tudo, publicado na revista In- ternational Family Planning Perspectives, as mulheres tam- bém acreditam que têm de se comportar de modo a não pa- recer que estão à procura de sexo. As entrevistadas, que per- tenciam a duas faixas de idade, de 18 a 21 e de 30 a 39 anos, co- mentaram que os homens têm uma necessidade urgente de sexo que, se não for satisfeita, pode fazer com que eles as abandonem ou se enfureçam. Comentário de uma das mu- lheres entrevistadas: "Se eu dis- ser não, ele ficará aborrecido, porque há muitas mulheres que têm medo de perder o cara de que gostam. Se eu disser não, ele me deixará, então eu faço o que ele quer". Para Ann Moore, programas e políticas públicas que reduzam a fre- qüência do sexo indesejado de- veriam focar as expectativas

tanto das mulheres quanto dos homens e promover mo- delos de comportamento se- xual mais equilibrado. •

■ Mais calor e menos água

Não só a Amazônia, a gigan- tesca floresta que cobre me- tade do território nacional e rege o clima a milhares de qui- lômetros de distância, mas também os 13 milhões de mo- radores da Região Norte mos- tram-se ainda mais sensíveis aos efeitos diretos das mudan- ças climáticas, de acordo com dois estudos recentes. Um de- les, conduzido por uma equi- pe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e por outra do Escritório de Me- teorologia de Exeter, Inglater-

ra, indica que secas brutais co- mo a de 2005 - a mais severa dos últimos 103 anos, que es- vaziou os gordos rios da região e deixou pelo menos 250 mil pessoas isoladas e sem traba- lho nos estados do Amazonas e do Pará - podem se tornar constantes nas próximas déca- das. Em outro estudo, um gru- po da Universidade de Bristol, também da Inglaterra, prevê mais incêndios florestais, se- cas e inundações em conse- qüência do aquecimento glo- bal da temperatura. De acordo com o trabalho publicado no PNAS, que reuniu cerca de 50 modelos climáticos, mesmo que cessassem as emissões dos gases que acentuam o efeito estufa e ajudam a elevar a tem- peratura do planeta, podem desaparecer 30% das florestas

Amazônia em chamas: perspectiva de mais seca e incêndios

da Amazônia, do leste da Chi- na, do Canadá e da América Central se a temperatura subir 2°C ou 60% se subir 3°C, com impactos profundos sobre a vida das populações locais, na medida em que o calor au- mentar e faltar água. •

■ Vírus agressivo em Salvador

O principal agente causador do surto de diarréia em Salva- dor - cerca de 8 mil casos re- gistrados em junho e julho - é um norovírus, não um rota- vírus, como se pensou inicial- mente. Virologistas da Uni- versidade Federal da Bahia (UFBA) e da Fiocruz desfize- ram o equívoco comparando os tipos de vírus encontrados nas 946 amostras de fezes de adultos e crianças. Encontra- dos em 55% das amostras, os norovírus apresentam RNA (ácido ribonucléico) linear e simples, enquanto o do rota- vírus, ao qual se atribuiu 20% dos casos, especialmente em crianças, é segmentado. Outra diferença é que os norovírus são mais agressivos e causam diarréias, vômitos, dor de ca- beça e febre mais intensos. Transmitido pelo ar ou por alimentos e objetos contami- nados, o norovírus aparece pela primeira vez em Salvador. Antes, só havia sido registrado no Rio de Janeiro, em 2002. •

PESQUISA FAPESP127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 35

om uma faixa litorânea que se estende por pouco mais de 3 mil quilômetros, o Pe- ru retira anualmente cerca de 8 milhões de toneladas de pescado marinho, 16 ve- zes mais do que oficial- mente captura o Brasil, dono de uma linha costei-

ra três vezes mais longa. Por que o país nãc consegue ultrapassar a cifra de 500 mil to- neladas anuais de peixes, crustáceos e mo- luscos de água salgada? Faltaria apoio a es- sa atividade econômica? Haveria ineficiência na indústria pesqueira nacional? Ou o bra- sileiro não seria mesmo muito afeito a lan- çar rede e anzol no oceano?

Segundo o recém-lançado relatório fi- nal de um mega-estudo patrocinado pelo governo federal sobre o potencial pesquei- ro na costa brasileira, a explicação central para a aparente timidez do setor não se deve a nenhuma das hipóteses anteriores. Em re- lação às grandes nações pesqueiras, como o Peru ou a China, situadas em zonas de mar frio e rico em nutrientes, aqui se pega pou- co peixe no mar simplesmente porque há pouco peixe na porção tropical do Atlânti- co que banha o litoral nacional. "Nossas águas são quentes na maior parte da costa e pobres em alimento para os peixes", afirma Carmen Wongtschowski, do Instituto Ocea-

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-1BRODE2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

nográfico da Universidade de São Paulo (IO/USP), que participou da elaboração do relatório final. "São condições desfa- voráveis à ocorrência de grandes cardu- mes." Na maior parte da costa, a tempe- ratura média anual das águas superficiais ultrapassa os 20°C, criando um ambien- te inóspito à ocorrência de enormes con- centrações de vida marinha (veja mapa na página ao lado). Não há, portanto, co- mo dobrar ou triplicar o volume de pes- cado marinho capturado, como previam algumas extrapolações do passado.

Essa constatação não é novidade para os especialistas, que, ao contrário dos leigos no assunto, não associam a grande extensão do litoral bra- sileiro à abundância de seres vivos em suas águas. O re- latório é uma síntese de uma década de trabalhos multidis- ciplinares feitos por mais de 300 pesquisadores de 60 insti- tuições e universidades nacio- nais para o Programa de Ava- liação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva, o Revi- zee, iniciativa na qual foram investidos R$ 32 milhões. O mérito do Revizee é fornecer uma radiografia atualizada do status das principais espécies de impor- tância comercial para a pesca marinha no Brasil. Esse setor emprega cerca de 800 mil pessoas e mobiliza quase 60 mil embarcações no país, metade delas de caráter artesanal, como as que aparecem na foto de abertura desta reportagem, retirada do recém-lançado livro Mar de homens (editora Terra Virgem, 180 pá- ginas), do fotógrafo Roberto Linsker. "Temos recursos marinhos valiosos, mas escassos", afirma o oceanógrafo Agnal- do Silva Martins, da Universidade Fede- ral do Espírito Santo (Ufes), que inte- grou o grupo de pesquisadores que estudou a região entre o cabo de São Tome, no norte do Rio de Janeiro, e a ci- dade de Salvador. "Precisamos discipli- nar melhor o acesso a eles."

Ao longo de uma década, os pesqui- sadores do Revizee realizaram vários es- tudos de norte a sul no país e partici- param de capturas experimentais, a maioria em águas profundas, centenas de metros abaixo da superfície do ocea- no, às vezes longe da costa e da platafor- ma continental, para tentar determinar o eventual potencial pesqueiro de novas

ou antigas espécies marinhas. De que- bra, durante o programa, os pesquisa- dores descobriram seis novas espécies de peixes e 55 de bentos (seres que vivem no fundo do mar) no litoral brasileiro.

Em vigor desde 1994, a Zona Eco- nômica Exclusiva (ZEE) é um conceito internacional que regulamenta o uso dos recursos oceânicos numa faixa que se inicia onde acaba o mar territorial de um país - a 12 milhas náuticas da cos- ta (22 quilômetros) - e se estende por mais 188 milhas náuticas (cerca de 350 quilômetros) mar adentro. No Brasil, a ZEE abrange 3,5 milhões de quilôme- tros quadrados.

ara a maioria das espécies de valor econômico, sobretudo as que ocorrem mais perto da costa, não há como aumentar de forma responsável a quan- tidade de exemplares hoje já retirados do Atlântico, segun- do os resultados finais do Re- vizee. Elas estão no limite má- ximo de exploração ou já passaram dele e o tamanho de

suas populações encolheu consideravel- mente. Isso não quer dizer que não pos- sa haver pequenos e pontuais incremen- tos nas capturas de determinados peixes, em especial daqueles que vivem em águas profundas, e dos chamados camarões e caranguejos de profundidade, ainda não explorados em sua plenitude. "Pode ha- ver ganhos mais qualitativos que quan- titativos se adotarmos uma gestão mais eficiente da pesca nacional", afirma o biólogo Silvio Jablonski, da Universida- de do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), um dos autores do relatório final.

Apenas uma espécie, até agora pra- ticamente não explorada comercialmen- te em águas brasileiras, pode represen- tar um aumento não desprezível no volume de pescado capturado no mar: a anchoíta. As demais não devem alterar substancialmente as estatísticas pesquei- ras nacionais, embora algumas, apesar de seus estoques reduzidos, tenham ex- celente valor comercial. Parente da sar- dinha, com tamanho em sua fase adul- ta que varia de 4 a 17 centímetros, a Engraulis anchoita, nome científico da espécie, apresenta um potencial estima- do de captura sustentada, sem colocar em risco os estoques desse recurso, da ordem de 100 mil toneladas por ano, em

especial no Sul do país e em menor es- cala no Sudeste. O peixe costuma ocor- rer na plataforma continental, que pode ser descrita como uma planície submer- sa com ângulo de inclinação em torno dos 5 graus e no máximo 200 metros de profundidade. No entanto há limitações para exploração desse recurso. A anchoí- ta, que pode ser utilizada como isca para pegar outros peixes ou processada para virar alimento, é de difícil conservação a bordo de navios e não há demanda do mercado por esse produto.

Outro recurso que também pode ser alvo de algum incremento de captura é o calamar-argentino (Illex argentinus), uma lula que, como seu nome indica, ocorre preferencialmente nas águas ge- ladas da região patagônica, em profun- didades superiores a 100 metros, mas que pode ser encontrada na porção me- ridional do Brasil no inverno, quando a temperatura do mar no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina se torna mais baixa. "O calamar-argentino é um recur- so compartilhado, que passa a maior parte do ano na Argentina e migra sazo- nalmente para cá", explica Carmen. "Sua exploração comercial, que já começou a ser feita por alguns barcos, tem de ser muito cuidadosa porque a quantidade de exemplares dessa espécie varia mui- to de ano para ano nas águas nacionais."

Um dos temores dos pesquisadores é que a exploração do calamar-argenti- no se intensifique e repita a história do peixe-sapo (Lophiusgastrophysus), uma espécie de águas profundas que come- çou a ser capturada por grandes barcos há cerca de cinco anos, quando o Revi- zee estava no meio dos seus trabalhos, e hoje já parece estar com seu estoque de reposição bastante comprometido. Um caso clássico de recurso que foi explo- rado além da conta é o da sardinha-ver- dadeira {Sardinella brasiliensis). No auge de sua captura na costa do Sudeste, du- rante os anos 1970, a sardinha-verdadei- ra chegou a fornecer cerca de 200 mil to- neladas anuais de pescado. O número caiu para menos de 20 mil em 2001 e, aos poucos, parece voltar a crescer. Em 2004 foram capturadas 40 mil toneladas de sardinha, segundo dados oficiais, mas ainda é cedo para dizer se o estoque da espécie está se recompondo.

Mesmo nas zonas com águas ma- rinhas bastante quentes há nichos es- pecíficos que, se explorados de forma

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criteriosa e cuidadosa, podem render alguns dividendos à pesca nacional. No Nordeste peixes como o guarujuba (Ca- rangoides bartholomei), a sapuruna (Haemulon aurolineatum) e o saramu- nete (Pseudupeneus maculatus), este úl- timo muito apreciado na França onde é chamado de rouget, se encaixam nes- sa situação. Os cientistas, no entanto, advertem que o status da pesca na re- gião deve se manter basicamente arte- sanal, sem a abertura do mar nordesti- no a embarcações de grande porte que capturem diversas espécies a cada ida ao mar. "A pesca aqui deve continuar artesanal não porque seja mais atrasa- da do que, por exemplo, a praticada no Sul e Sudeste do país", explica a oceanó- grafa Rosângela Lessa, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFR- PE). "Mas porque a quantidade de re- cursos não comporta a pesca industri- al." Há grande diversidade de espécies no mar do Nordeste, mas a presença de cardumes expressivos é rara. Por isso, para conservar a biodiversidade local e, ao mesmo tempo, não pressionar os pe- quenos estoques de cada espécie, as cap- turas marinhas, segundo Rosângela, devem permanecer nos padrões atuais de exploração.

No Norte também existem oportu- nidades setorizadas para aparentemen- te investir em peixes e crustáceos até agora subexplorados. "A captura co- mercial das espécies costeiras mais tra- dicionais, como o pargo, a serra e a pes- cada-amarela, está no limite máximo", afirma a engenheira de pesca Flavia Lu- cena, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Nas sondagens feitas pela equi- pe do Revizee, os recursos que, em tese, poderiam ser alvo de algum incre- mento de pesca seriam o camarão-ca- rabineiro (Aristeopsis edwardsiana) e o camarão-alistado [Aristeus antillensis). Ambas as espécies, que já são alvo de pescarias no Sudeste e Sul, ocorrem em áreas muito localizadas, a profundida- des entre 700 e 800 metros. Outro recur- so que chamou a atenção foi a presença em grande quantidade do camurim- do-olho-verde (Parasudis truculenta) no litoral do Amapá, a profundidades entre 350 e 700 metros. "O problema é que ainda não sabemos exatamente quanto se poderia capturar dessas espé- cies sem colocar em risco os seus esto- ques", pondera Flavia. •

Poucas, mas boas opções Não há grandes cardumes nas águas quentes e pobres em nutrientes da costa nacional. Mas algumas espécies, como as destacadas abaixo, ainda não são totalmente exploradas

^

Camarões-alistado (alto) e carabineiro: recursos encontrados em grandes profundidades no Norte

Pseudupeneus maculatus: este peixe vermelho do Nordeste, o saramunete, é apreciado na França

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25

20

15

10

5

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Temperatura anual média, em °C, das águas superficiais

Anchoíta: potencial para pesca de 100 mil toneladas por ano na costa do Sul-Sudeste

Calamar-argentino: presente no Sul, lula é recurso compartilhado com o país vizinho

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 39

O CIÊNCIA

ASTROFÍSICA

Éramos nove

0 pequeno e gélido Plutão é rebaixado de status e o sistema solar volta a ter oito planetas

oi a correção pública de um erro históri- co, que há mais de sete décadas incomo- dava a maioria dos astrofísicos. Plutão per- deu o status de planeta e nosso sistema voltou a ter apenas oito membros, de acor- do com uma resolução aprovada em 24 de agosto passado, depois de acaloradas dis- cussões, inclusive de ordem semântica, pela

26a assembléia geral da União Astronômica Internacional, reu- nida em Praga. "Não havia mais argumentos científicos para de- fender a manutenção de Plutão como planeta", afirma o astro- físico Enos Picazzio, da Universidade de São Paulo (USP). Gelado e distante, o diminuto Plutão sempre foi um estranho na fa- mília solar e nunca deveria ter sido alçado à condição de plane- ta. Não era da linhagem dos chamados planetas terrestres (Mer- cúrio, Vênus, Terra, Marte), tampouco da estirpe dos mundos gigantes gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno). E ainda tinha uma órbita muito diferente da exibida pelos outros pla- netas. O mal-estar agora acabou - e livros escolares e enciclo- pédias terão de reescrever seu capítulo sobre o sistema solar.

O encontro na capital tcheca, que reuniu cerca de 2.500 as- trônomos de 75 países, alterou o conceito de planeta e criou duas novas categorias para astros do sistema solar: a dos "pla- netas anões", onde, por ora, se acomodaram o rebaixado Plu- tão, o asteróide Ceres e Xena (apelido do objeto gelado e lon- gínquo 2003 UB313, que até recentemente figurava como forte candidato a décimo planeta solar); e a dos "pequenos corpos do sistema solar", que engloba todos os demais objetos, com exce- ção dos satélites. Pelos novos parâmetros, um corpo celeste tem

40 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

de preencher três condições para mere- cer o título de planeta: estar em órbita ao redor do Sol, apresentar equilíbrio hidroestático (em bom português, ter forma praticamente esférica) e possuir dimensão suficiente para dominar sua órbita, tendo varrido de seu caminho objetos menores. Apenas oito corpos sa- tisfazem essa trinca de requisitos. Plutão foi barrado pelo terceiro item, visto que sua trajetória cruza com a do gigante Ne- tuno. Por isso, é um planeta anão.

Com exceção de algumas vozes dis- sonantes, em especial de pesquisadores norte-americanos que alegavam razões mais históricas que científicas para se conservar o antigo status de Plutão, a de- cisão da União Astronômica Internacio- nal (UAI) de reclassificar esse pequeno objeto gelado foi bem recebida. Até por-

que a proposta anterior, derrotada e re- formada pelos participantes da assem- bléia, ameaçava banalizar o termo pla- neta e abria a porteira para que dezenas de astros galgassem essa condição. Se aprovada, provocaria, enfim, um caos nos livros didáticos. A nova resolução acertou ao reduzir a classificação de Plu- tão no sistema solar, mas não é perfei- ta. Para alguns astrofísicos, a definição de planeta aprovada no encontro de Praga é falha ao não fazer referências cla- ras a quais parâmetros físicos (massa, elementos químicos etc.) caracterizam esse tipo de corpo celeste.

Mais polêmicas ainda seriam as re- cém-criadas categorias de astros, a dos "planetas anões", que parece ser um prê- mio de consolação para os fãs de Plutão, e a dos "pequenos corpos do sistema so-

lar", expressão guarda-chuva. "A defini- ção do que é um planeta anão vai dar muito pano para a manga", comenta Pi- cazzio. O astrofísico Sylvio Ferraz Mel- lo, também do IAG/USP, num artigo publicado no site de seu instituto logo após a reclassificação de Plutão, resumiu bem o espírito com que as decisões vin- das de Praga devem ser encaradas. "A adoção de uma definição não significa que a discussão acabou! A União Astro- nômica Internacional não tem poder le- gal para impor uma definição", escreveu Mello. "Mas é de todo conveniente aca- tar a orientação (...) aprovada pela UAI para que um padrão comum seja ado- tado pelos livros didáticos e transmiti- do aos mais jovens." •

MARCOS PIVETTA

PESQUISA FAPESP 127 • SETEMBRO DE 2006 ■ 41

CIÊNCIA

COSMOLOI

A ousadia de desafiar Einstein Astrônomos brasileiros propõem outra forma de explicar a expansão do Universo

Referência universal: supernova 1987A (em rosa),

tipo de estrela usada para calcular a taxa de

crescimento do Cosmos

RICARDO ZORZETTO

uem olha para o céu estrelado rara- mente imagina que os bilhões de es- trelas e galáxias, incluindo as que não podem ser vistas, estejam se afastan- do umas das outras a velocidades ca- da vez mais altas. Elas apenas pare- cem condenadas a permanecer onde estão por causa da tremenda distân- cia que as separa. Nâo foi fácil provar o contrário. Só no início do século passado o astrônomo norte-america- no Edwin Hubble comprovou que

outras galáxias estavam se distanciando da Via Láctea, onde estamos. Há seis anos outros astrônomos ajusta- ram essa visão e constataram que as galáxias estavam se distanciando a velocidades crescentes. Era um claro sinal de que o Universo todo se expande mais e mais rapidamente, como um bolo crescendo com excesso de fermento. Acreditava-se que essa expansão acelera- da pudesse durar para sempre. Mas um grupo de as- trônomos brasileiros propõe agora um cenário em que o destino do Universo pode ser bem diferente.

Se estiverem corretas as previsões de um grupo de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Norte, a atual fase de expansão acelerada, iniciada há 7 bilhões de anos, só deverá durar mais 6,5 bilhões de anos. "O Cosmos continuará se expandindo indefini- damente, mas de modo desacelerado", afirma José Ademir Sales de Lima, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores de um modelo ma- temático apresentado em 25 de agosto da Physical Review Letters. Desse trabalho, participaram Jailson

e Raimundo Silva Júnior, da Universidade do Estado do Rio Cirande do Norte.

nada deve mudar o cotidiano da maioria das pessoas

planeta devem desaparecer muito antes, em 5 bilhões de anos, quando o Sol explodir. Mas a nova teoria tran-

pectiva de um Universo em expansão eternamente ace- lerada. De acordo com a Teoria da Relatividade Geral, formulada por Albert Einstein, em 15 bilhões de anos poderia surgir uma fronteira no extremo do Universo a partir da qual nada se pode observar. Embora o Cos- mos seja infinito, a luz originada além dessa frontei- ra - uma espécie de bolha gigantesca envolvendo bi- lhões e bilhões de galáxias - jamais alcançaria o sistema solar. O brilho de uma estrela além desse limite teóri- co do Universo levaria um tempo infinito para chegar à Terra, iá que a distância aumentaria sempre a velo-

do a constantes 300 mil quilômetros por segundo. "Nesse estágio o Universo passaria a se comportar

como um buraco negro às avessas", diz Lima. Essa bo-

A dificuldade de predizer os fenômenos além des- sa fronteira perturbava em especial os físicos da Teo- ria de Cordas, que busca unir as forças fundamentais da natureza para explicar todos os fenômenos físicos, do comportamento de partículas atômicas à forma- ção de galáxias. "Esse limite impediria a reconstrução de uma história completa do Cosmos", comenta Li- ma, astrônomo potiguar que por 15 anos se dedicou à cosmologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte antes de se transferir para a USP em 2003.

O problema da expansão acelerada, claro, não es- tá no Universo, mas nos modelos teóricos que o des- crevem. Segundo uma das abordagens mais aceitas, o Universo estaria em expansão acelerada em resposta a uma força repulsiva associada a uma forma desco- nhecida de energia, a energia escura. Corresponden- te a 70% da energia do Cosmos, a energia escura con- trabalançaria a gravidade, uma força essencialmente atrativa. Numa época em que ainda não se falava em aceleração do Universo, Einstein adaptou as equa- ções da Relatividade, acrescentando um valor fixo chamado constante cosmológica, para que o Univer-

sob a ação da gravidade. Mais tarde os físicos come- çaram a tratar a constante cosmológica como se fos- se a própria energia escura.

O quinto elemento - Lima, Silva, Alcaniz e Carvalho sugerem que a origem da força que faz as galáxias se afastarem cada vez mais rapidamente pode ser outra: uma substância que o físico Paul Steinhardt chamou de quintessência, alusão ao elemento imponderável que os filósofos gregos acreditavam ser um dos com- ponentes essenciais do Cosmos, além da terra, da água, do fogo e do ar. Os físicos também a chamam de cam- po escalar primordial. "As propriedades tísicas do cam- po escalar não sâo homogêneas e variam em função do tempo, diferentemente daquelas da constante cos- mológica", afirma Alcaniz, "e, como conseqüência, o campo escalar pode desacelerar o Universo".

Os pesquisadores brasileiros chegaram a esse mo- delo de evolução do Universo acrescentando um ter- mo a uma equação formulada em 1988 pelos físicos Philip Peebles, da Universidade de Princeton, e Bha- rat Ratra, da Universidade Estadual de Kansas. A par- tir daí, calcularam que em 6,5 bilhões de anos o Uni- verso deve passar a se expandir infinitamente de forma desacelerada. Não será a primeira vez. Desde o Big Bang, a hipotética explosão que originou o Cosmos, o Universo alternou períodos de expansão acelerada com outros de expansão desacelerada. O trabalho não acabou, "lemos agora de provar que o modelo está correto e haverá, de fato, uma desaceleração", diz Li-

ra, ao passo que um buraco negro absorve toda a teria ao seu redor, até mesmo a luz.

ma, que analisa com sua equipe ciauos ua explosão cie estrelas supernovas em busca de evidências que con- firmem suas previsões. Em paralelo, a publicação do artigo na Physical Review Letters permitirá a outros fí- sicos apreciarem ou criticarem essa nova proposta so- bre o futuro do Universo. <

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 201

©CIÊNCIA

IMUNOLOGIA

Contra a barriqa-d'água

Equipe de Minas apresenta novas perspectivas para uma vacina contra a esquistossomose

fm 1986, ao voltar ao Brasil com o título de doutor pela Universi- dade John Hopkins, Estados Unidos, Ro- drigo Correa-Oliveira poderia ter preferido viver entocado em um

dos laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte. Mas não. O biólogo mineiro que pode agora estar na pista de uma vacina contra uma doença que aflige o mundo subdesen- volvido tirou então a botina e o chapéu do fundo do armário, pegou o ônibus e dois dias depois desceu no Vale do Je- quitinhonha, uma das regiões mais po- bres de Minas Gerais.

Durante semanas, disposto a enten- der melhor os mecanismos de transmis- são da esquistossomose, percorreu as es- tradas poeirentas de Padre Paraíso, de Itaobim e de outros municípios que mal aparecem no mapa. Conversou com os moradores das comunidades rurais e re- virou com uma pá emprestada o mata- gal das margens de córregos e lagos em busca de caramujos transmissores do verme Schistosoma mansoni, o causador da doença também chamada de barri- ga-d'água por causar um inchaço des- comunal do fígado e do baço. Comum

no norte de Minas, a esquistossomose acomete aproximadamente 12 milhões de pessoas no Brasil - no mundo todo cerca de 200 milhões de pessoas sofrem dessa enfermidade típica dos países me- nos desenvolvidos.

Vinte anos mais tarde, ainda com o hábito de viajar ao menos uma vez por mês para o Vale do Jequitinhonha ou para o Vale do Mucuri, Oliveira e pes- quisadores da Austrália e dos Estados Unidos demonstraram que duas proteí- nas da superfície do Schistosoma manso- ni acionaram os mecanismos de defesa do organismo de camundongos contra o verme. Se em testes com seres huma- nos também surgirem resultados positi- vos, essas proteínas - chamadas trans- paninas - podem se tornar candidatas a uma vacina contra a esquistossomose, a ser adotada em conjunto com outras medidas de combate à doença, princi- palmente a ampliação da rede de esgo- tos e de água tratada, já que o verme de até 12 milímetros de comprimento por 0,4 de diâmetro se espalha por meio de fezes humanas contaminadas.

Segundo Oliveira, uma vacina se jus- tifica porque a doença já se espalhou por vastas áreas do país, dificultando campa- nhas de eliminação de seus transmisso- res, os caramujos do gênero Biomphala-

ria. Além disso, o Schistosoma começa a mostrar resistência aos dois vermífugos mais usados, a oxamniquina e o prazi- quantel. Outro problema: "O tratamen- to por si só", diz ele, "não é suficiente para evitar a reinfecção, principalmente em crianças". Com abordagens distintas, grupos da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Butantan traba- lham em outras alternativas.

Resistência natural - Esse novo cami- nho rumo a uma vacina surgiu de uma hipótese que Oliveira formulou em 1985 depois de ler um estudo sobre pessoas cujo organismo apresentava mecanismos naturais de defesa contra a filariose, outra doença típica dos países pobres que faz as pernas incharem tre- mendamente. Como tanto a elefantía- se quanto a esquistossomose são causa- das por vermes do grupo dos helmintos, ele imaginou que o corpo humano po- deria pôr em ação formas naturais de escapar também ao Schistosoma. O bió- logo que começou a estudar imunolo- gia em 1978, ainda nos tempos de gra- duação, saiu então pelos confins de Minas à procura de pessoas que tives- sem entrado em contato com esse ver- me mas não apresentassem nenhum sintoma da doença. E as encontrou.

44 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

Em laboratório, depois de analisar os tipos e quantidades de anticorpos do sangue dessas pessoas, Oliveira desco- briu que as respostas que apresentavam eram bastante diferentes das registra- das após o tratamento com os medica- mentos que matavam os vermes. Como ele descreve em 1989 na revista Tran- sactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, o organismo das pessoas resistentes à esquistossomose combatia o verme por meio de uma in- tensa - e quase exclusiva - produção de anticorpos, acionados por moléculas de comunicação como as imunoglobulinas E e o interferon gama.

Foi também em 1989 que Oliveira encontrou uma das proteínas capazes de acionar a fenomenal produção de anti- corpos nas pessoas que viviam entre ca- ramujos contaminados. Elas também se contaminavam, mas sem saber conse- guiam se livrar do verme. Mas essa pro- teína, a paramiosina, não era lá muito amigável em laboratório, e os pesquisa- dores não conseguiram avançar. Corre- ram anos até que o biólogo de Minas propôs a Alex Loukas, do Instituto de Pesquisa Médica Queensland, da Aus- trália, que trabalhassem em conjunto para saber se outras proteínas, as trans- paninas, poderiam intensificar a produ-

No Brasil, taxas elevadas de esquistossomose: desatenção com águas contaminadas

ção de anticorpos. Desta vez deu certo. De acordo com o estudo publicado em 18 de junho na Nature Medicine, do qual também participou Jeffrey Bethony, da Universidade George Washington, Esta- dos Unidos, em indivíduos naturalmen- te resistentes a transpanina 2 (TSP-2) é facilmente reconhecida pelas imunoglo- bulinas. Nada acontece, porém, em pes- soas nas quais a infestação progride. Em camundongos, a TSP-2 disparou uma série de respostas que levaram a uma redução de até 64% na quantidade de vermes; com outra transpanina, a TSP- 1, caiu à metade a quantidade de ovos de Schistosoma. Outra informação ani- madora é que as duas transpaninas são recombinantes: podem ser produzidas em quantidades elevadas por meio de bactérias e depois purificadas.

Contra o amarelão - Oliveira e toda a equipe com que trabalhou sabem que é só o começo. Ainda é preciso mostrar, por meio de testes que devem ser feitos ainda este ano diretamente em sangue

de seres humanos, que esses resultados podem ser repetidos - ou mesmo me- lhorados - e que vale a pena investir di- nheiro e tempo nessa linha de pesquisa. Depois vem a etapa tecnológica, come- çando com o chamado escalonamento, por meio da qual se tenta ampliar em centenas de vezes a produção da poten- cial vacina. Essa não é, porém, uma es- trada nova para Oliveira, que ganhou experiência dedicando-se ao desenvol- vimento de outra vacina - contra a an- cilostomose ou amarelão, outra doença de países onde ainda vivem pessoas que andam descalças em ambientes sujos.

Vencida a etapa laboratorial, a equi- pe da Fiocruz de Minas trabalha atual- mente com grupos do Sabin Vaccine Institute, da Universidade George Wa- shington e do Instituto Butantan na preparação de lotes experimentais de uma proteína que deverá em seguida ser testada em seres humanos com o pro- pósito de eliminar os vermes Necator americanus e Ancylostoma duodenale. Esses parasitas causam anemias profun- das em cerca de 800 milhões de pessoas no mundo por danificarem a parede do intestino e provocarem uma perda de até um copo de sangue por dia. •

CARLOS FIORAVANTI

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 45

QCIÊNCIA

ACIDENTES DOMÉSTICOS

arando C.CK0

seus filhos soframy^^| quedas, cortes e queimaduras em casa

ustina Nagato viveu uma saia-justa quando participava de uma pesquisa no último ano do curso de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela estava em um sobrado em reformas no bairro de Icaraí, em Niterói, cidade vizinha ao Rio, entrevistando uma mulher sobre acidentes domésticos com crianças enquanto os dois filhos dela subiam e desciam de uma escada em caracol, sem grade ou corrimão. A mãe dos garotos estava tranqüila, mas

Justina se afligia: deveria avisar que eles poderiam se que- brar ou se cortar caindo de lá? Só após terminar a entre- vista é que Justina perguntou se não seria um tanto peri- goso os garotos brincarem na escada. A outra mulher disse que não tinha pensado antes nos riscos que os meninos corriam, imediatamente interrompeu a brincadeira e em seguida agradeceu o alerta da entrevistadora.

Justina e outras sete estudantes de psicologia visita- ram 96 mulheres de toda a Região Metropolitana do Rio. Mostravam seis desenhos - de quarto, sala, banheiro, co- zinha, escada e quintal - e perguntavam às mães que tipo de acidente poderia surgir nesses espaços. As conclusões talvez deixem as mães de cabelo em pé. De acordo com esse trabalho, publicado na revista Social Science & Me- dicine, as mães têm dificuldade em imaginar que uma criança possa se cortar ao pegar uma faca esquecida à beira de uma mesa ou se queimar ao tocar um ferro de passar. Três em cada cinco das mães entrevistadas identi- ficaram os perigos apresentados nas ilustrações, mas so- mente uma em cada quatro deu soluções.

"Os pais tendem a acreditar que os perigos estão fora de casa, não dentro", diz Rodolfo de Castro Ribas Jr., pro- fessor do Instituto de Psicologia da UFRJ e um dos autores da pesquisa. "Porém, para uma criança pequena, os riscos de acidentes em casa são maiores que os da violência da rua." Ribas conta que nem ele nem seus colaboradores mais próximos nesse estudo - Alexander Tymchuk, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Uni- dos, e Adriana Ribas, da Universidade Estácio de Sá, do Rio - tinham idéia da dimensão da freqüência e da gravi- dade dos acidentes domésticos. Até que as histórias come- çaram a surgir. Uma delas veio de uma pesquisadora da própria UFRJ, que teve de faltar a uma prova porque um

dos filhos se queimara em casa com o óleo que havia caído de uma frigideira.

Diante das estatísticas as mães talvez pensem duas vezes antes de deixar os filhos correrem tantos riscos ao chega- rem perto do fogão. Mundialmente, os acidentes domésticos respondem por 40% das mortes de crianças de 1 a 14 anos. No Brasil, de 1997 a 2002 ferimen- tos acidentais tiraram a vida de 35 mil crianças brasileiras de 1 a 14 anos. Ou- tras 30 mil eram vítimas de queima- duras por acidentes com álcool líquido a cada ano, até que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a permitir apenas a venda do álcool em gel - os acidentes caíram à metade já nos primeiros meses seguintes.

Às vezes os danos podem ser bastan- te graves: 3% das pessoas internadas por queimaduras no Brasil acabam mor- rendo em conseqüência das lesões que o acidente provocou no organismo. Na Inglaterra, também é de 3% o total de crianças que passaram pelos prontos- socorros e permaneceram com uma in- capacidade física permanente. "Não fal-

tam estudos epidemiológicos", diz Ri- bas, "mas poucos estão estudando por que realmente ocorrem tantos acidentes que poderiam ser evitados".

Mães conscientes - Uma hipótese que o grupo pretende testar nas próximas pesquisas é que a freqüência ou a gravi- dade dos cortes, das quedas e das quei- maduras em um espaço aparentemente tão seguro quanto o lar pode estar asso- ciada à maturidade emocional das mães. "Se as mães acreditam que o papel delas é importante para os filhos", co- menta Ribas, "tendem a buscar mais in- formação e arrumar a casa de modo a evitar acidentes". Segundo ele, as mu- lheres sentem uma pressão social inten- sa para que promovam a educação e ga- rantam a saúde e a segurança dos filhos, mas geralmente não recebem apoio e têm de aprender a se virar sozinhas.

Agora não tão sozinhas. Ribas e sua equipe recomeçam neste mês a circular pelo Rio, desta vez se reunindo em esco- las com professores e mães. "Não quere- mos gerar estresse ou alimentar o senti-

mento de culpa das mães, mas alertar sobre como gerenciar os riscos de aci- dentes em casa", diz ele. No berço, por exemplo, é bom evitar os travesseiros, principalmente os muito macios, sobre os quais o bebê pode se sufocar. É bom também deixar o chão do quarto sempre livre de brinquedos e objetos pequenos que as crianças possam engolir. Muitos conselhos são os mesmos das mães que os filhos chamariam de neuróticas: guardar bem produtos de limpeza e re- médios; manter fósforos, objetos cor- tantes em gavetas ou em lugares altos e livros e outros objetos pesados em luga- res baixos; manter as crianças fora da cozinha quando estiver cozinhando; e no banheiro nunca deixar crianças sozi- nhas em banheiras. Como nem todo o peso do mundo cabe às mulheres, a pró- xima etapa das pesquisas é entrevistar também os pais. Diz Ribas: muito curiosos para conhec :r portamento dos home: is em i ei perigos domésticos".

J CARLO FIOR

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CIÊNCIA

SAÚDE PUBLICA

Através do muro Vírus e bactérias se propagam livremente na fronteira entre Estados Unidos e México

CARLOS FIORAVANTI, DE LA JOLLA, E

MARIANA MARTINEZ ESTENS, DE TIJUANA*

Âli está a fronteira entre os Estados Unidos e o Méxi- co: uma cerca de placas metálicas verdes com 4 me-

tros de altura e extensa a perder de vista. Duas viaturas de polícia se movem sem parar ao longo desta barreira - imponen- te, mas insuficiente para manter a sepa- ração efetiva entre dois mundos muito diferentes à beira do Pacífico. De um la- do, na Califórnia, um dos estados mais ricos dos Estados Unidos, espalha-se a ci- dade de La Jolla com suas ruas largas e assépticas e um shopping a céu aberto - um outlet - colado a esta barreira. Os compradores entram e saem das amplas lojas de roupas, perfumes e calçados. An- dam com suas sacolas sob o sol forte de julho como se não vissem nem a cerca, quanto mais o que se esconde do outro lado: as ruas estreitas e as casas miúdas que cobrem os morros da cidade vizinha de Tijuana, uma das maiores do México.

Ali vivem temporariamente - ainda que por muitos anos - os imigrantes expul- sos dos Estados Unidos que não têm di- nheiro para voltar à terra de origem, além dos que alimentam a esperança de entrar no país mais rico do mundo.

Quem não quiser correr o risco de morrer atravessando esta versão mode- rada do Muro de Berlim pode ir de um país a outro apresentando seus docu- mentos em algum dos 20 postos de fron- teira, distribuídos ao longo dos 3 mil qui- lômetros de barreiras que cortam áreas urbanas, rios e desertos. O fluxo é inten- so. Por ano, 350 milhões de pessoas - 1 milhão de pessoas por dia, em média - atravessam os postos de um lado a ou- tro, com autorização, para trabalhar, dei- xar os filhos na escola e ir às compras, ao médico ou ao cinema. É uma das fron- teiras mais movimentadas do mundo, mesmo sem contar os imigrantes ilegais - aproximadamente 1 milhão por ano -, que tentam passar escondidos em carros ou cavando túneis sob a cerca para desa-

fiar a sorte nos Estados Unidos. Quando conseguem, como os personagens da no- vela América., exibida no ano passado pela Globo, alguns imigrantes se espa- lham por regiões mais distantes, outros ficam por ali. Só na Califórnia, um dos estados norte-americanos que fazem fronteira com o México, devem viver 9 milhões de moradores estrangeiros, dos quais 1,5 milhão de modo ilegal.

É por essas mesmas brechas que ví- rus e bactérias se propagam abertamen- te na região. A faixa de 100 quilômetros ao norte e ao sul da fronteira exibe mui- to mais casos novos de doenças infec- ciosas do que no interior de cada um dos dois países. Timothy Doyle e Ralph Bryan, pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), chegaram a conclu- sões impressionantes comparando a in- cidência de 22 doenças infecciosas de no- tificação obrigatória em três áreas distintas dos Estados Unidos. A primei- ra é a região mais próxima à fronteira,

Carlos Fioravanti esteve em La Jolla a convite do Instituto das Américas. Mariana M. Estens é jornalista do diário Frontera, de Tijuana.

48 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

Entre dois mundos: moradores de Tijuana como este garoto aind ~" têm esperanças de vencer os limites da pobreza e viver no país mais rico do mundo

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onde atualmente vivem 9,8 milhões de pessoas; a segunda consiste de uma fai- xa que atravessa o interior dos Estados Unidos e abriga cerca de 45 milhões de pessoas; a terceira é a mais distante, ocu- pada por outros 203 milhões. A porção oeste das três faixas inclui as terras que um dia pertenceram ao México - por meio de acordos ou de guerras, os Esta- dos Unidos apossaram-se de 2 milhões de quüômetros quadrados do país vizi- nho, o equivalente a um quarto do terri- tório brasileiro.

Os contrastes de saúde são mais acen- tuados entre a região mais próxima da fronteira com o México e a mais distan- te, que reúne principalmente os estados vizinhos a outro país, o Canadá. No ter- ritório norte-americano mais próximo do México é oito vezes maior a taxa de pessoas com brucelose, doença bacteria- na causada por carne ou leite contami- nados, e sete vezes maior a de botulismo, outra enfermidade de origem bacteria- na, transmitida por meio de alimentos industrializados estragados ou consumi- dos depois da data de validade. O núme- ro de doentes com hanseníase é cinco ve-

zes mais alto, o de sarampo quatro vezes e o de hepatite A 3,8 vezes.

Dessas comparações entre os habi- tantes de duas regiões fronteiriças dos Es- tados Unidos emerge a face menos gla- mourosa do país mais rico do mundo, a pobreza: 5 das 14 regiões administrati- vas (ou counties, como são chamadas em inglês) mais carentes dos Estados Unidos encontram-se na região fronteiriça do Texas com o México. As diferenças nos índices de doenças persistiram mesmo quando se adotou a etnicidade como cri- tério de análise. As taxas de hepatite A, por exemplo, são duas vezes mais altas entre os moradores de origem latina do que entre os não-latinos. Para esse resul- tado contribuem não só as condições so- cioeconômicas diferenciadas, mas tam- bém os hábitos culturais: os latinos são muito mais afeitos a beijos e abraços - enfim, à proximidade física - que os nor- te-americanos típicos.

Os altos índices de doenças infeccio- sas na fronteira dos Estados Unidos com o México denunciam a falta de profissio- nais de saúde, de hospitais e de atendi- mento médico adequado, já que muitas

dessas enfermidades poderiam ser evita- das: a ocorrência de doenças que podem ser prevenidas por meio de vacinas, co- mo sarampo, difteria e tétano, é duas ve- zes mais elevada nas áreas mais próximas do México do que nas mais distantes. Em segundo lugar, o quadro que emerge des- se estudo, publicado em setembro de 2000 no Journal oflnfectious Diseases e um dos mais abrangentes já feitos, expõe as falhas de saneamento básico. Não há água encanada nem rede de esgotos nos 2.500 assentamentos informais estabele- cidos ao longo da fronteira, conhecidos como colônias, que reúnem aproxima- damente 500 mil pessoas. A água sub- terrânea que circula de um país a outro está contaminada com bactérias causa- doras de doenças infecciosas.

As duas irmãs - "Embora esteja partida por uma fronteira, esta região é uma só, do ponto de vista biológico, ecológico e geológico", comenta Exequiel Ezcurra, diretor do Museu de História Natural de San Diego, enquanto aprecia um grupo de crianças desmontando e montando maquetes de dinossauros que viveram

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! Atrás do sonho: cidadãos mexicanos aguardam uma oportunidade para cruzar a fronteira, mesmo sabendo que todo ano milhares são interceptados e enviados de volta

por aqui há milhões de anos. Tijuana e San Diego, a metrópole regional da Cali- fórnia à qual La Jolla se fundiu, são hoje cidades-irmãs e formam uma mancha urbana de quase 10 milhões de habitan- tes. É a maior área metropolitana bina- cional na América do Norte, marcada por contrastes econômicos: a renda mé- dia anual dos moradores de San Diego é de quase US$ 30 mil, cinco vezes maior que a dos vizinhos de Tijuana.

an Diego constitui a região mais prós- pera ao longo da fronteira. É um centro de indús- trias ligadas às te- lecomunicações, agricultura e bio-

tecnologia, além de pólo turístico, com belas praias, apesar da água quase sem- pre gelada - e nem sempre limpa - do Pacífico. Principalmente depois das chu- vas intensas de final de ano, o rio Tijua- na, que banha o norte do México e uma parte da Califórnia, despeja no mar uma carga acima do normal de esgotos resi-

denciais e resíduos industrias, escurecen- do as águas que chegam às praias da vi- zinha californiana.

O planejamento urbano, que pode- ria deter a poluição, torna-se mais difícil por causa das peculiaridades de Tijuana. De seus quase 4 milhões de habitantes, pelo menos 1 milhão são temporários - porque ainda sonham em cruzar a fron- teira, porque não conseguiram ou ainda porque já foram deportados. Quem vive em Tijuana não cria raízes - ou parece não querer criar - porque não se sente li- gado à cidade mesmo depois de 20 ou 30 anos. A taxa de desemprego é zero, mas a maioria dos moradores trabalha em montadoras que se beneficiam da mão- de-obra abundante para pagar salários baixos. Apesar das precárias condições de trabalho, os moradores temporários que trabalham nas centenas de monta- doras de equipamentos eletrônicos ou médicos instaladas na região do norte do México conhecida como Baixa Cali- fórnia se arriscam a ser dispensados se ousarem se filiar a sindicatos.

Tijuana pode ser angustiante, triste, violenta, mas nunca tediosa. A cidade de

poucos prédios e muitas lojas de facha- das coloridas torna-se ainda mais viva com os festivais anuais de música e sushi. É para lá que vão os norte-americanos em busca de bebidas mais baratas, permiti- das nos bares mexicanos para quem tem mais de 18 anos; nos Estados Unidos o li- mite mínimo é 21 anos. A maioria dos ba- res abre as portas também para menores de idade, ainda que sob o risco de receber pesadas multas. Outra motivação para ir a Tijuana é comprar drogas ou remédios ou mesmo passar por cirurgias que nos Estados Unidos seriam bem mais caras: a remoção de um tumor custaria US$ 7 mil na Califórnia, mas menos de US$ 3 mil em Tijuana. De compra em compra, os visitantes norte-americanos deixam por lá cerca de US$ 800 milhões por ano.

Os homens da fronteira - Como a maioria das cidades de fronteira, Tijua- na abriga uma população predominan- temente masculina. Os imigrantes che- gam sozinhos e se envolvem em sexo de risco com mulheres ou com outros ho- mens. Resultado: as doenças sexualmen- te transmissíveis, especialmente Aids, es-

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palham-se livremente. De acordo com um estudo coordenado por Kimberly Brouwer, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), publicado em março deste ano no Journal of Urban Health, um em cada 125 moradores de Tijuana com idade entre 15 e 49 anos é portador do HIV, o vírus causador da Aids. A maioria (70%) são homens que fazem sexo com homens, seguidos pelos usuários de drogas injetáveis.

A médica epidemiologis- ta Maria Luisa Zúniga, da UCSD, coordenou uma equi- pe que entrevistou 354 ho- mens portadores do HIV que admitiam fazer sexo com ou- tros homens. A primeira constatação, que atrapalha as campanhas de prevenção da Aids, é que eles não se consideram homossexuais, mas héteros. "Para eles, homossexuali- dade é um estilo de vida, com o qual não se identificam", comentou Maria Luisa em julho durante uma das conferências do programa de jornalismo científico Jack Ealy, organizado pelo Instituto das Américas em La Jolla. "O comporta-

mento sexual pode ser diferente da identidade sexual", disse. Essa distinção pode ajudar os médicos a entender e a deter a doença na região fronteiriça. De acordo com esse levantamento, quase metade desses homens vai para San Die- go ou para Tijuana uma ou duas vezes por mês, diluindo-se na multidão de aproximadamente 42 mil pessoas que cruzam a fronteira diariamente.

omo os imigrantes são os mo- radores de Tijuana que apre- sentam maior risco de contrair o HIV, o governo mexicano iniciou uma campanha de rá- dio para promover os testes gratuitos de HIV, com o propó- sito de identificar as pessoas

infectadas e iniciar o tratamento o mais cedo possível. A campanha enfatiza La prueba dei VIH es para gente que piensa que no Ia necesita (o teste de HIV é para quem pensa que não precisa). Mas não tem sido fácil avançar. Qualquer um que desconfie que possa ser um portador do vírus sabe que, se o tiver realmente, po- derá perder o emprego, os amigos e tal-

vez a própria família. Nas cidades mexi- canas próximas aos Estados Unidos há outra razão para adiar o teste: "Quando as pessoas descobrem que têm o vírus, elas podem perder a permissão para cru- zar a fronteira", diz Maria Luisa, uma das coodenadoras de um projeto que pro- cura ampliar o acesso das pessoas com HIV e Aids aos serviços de saúde em San Diego e em Tijuana. Mesmo nos Esta- dos Unidos, 40% de todos os infectados não sabem que estão com o vírus.

Outro problema é que os moradores temporários de Tijuana, por não terem o hábito de usar preservativo, podem contaminar as esposas com o HIV quan- do voltam para casa. O vírus se espalha acobertado pelo silêncio e pela negação da possibilidade de ter contraído a doen- ça, normalmente apresentada ou con- fundida com anemia. A saída mais co- mum é esconder a doença até o último minuto, quando a contaminação de mui- tas outras pessoas já pode ter ocorrido.

Pelo ar corre outro perigo: as bactéri- as causadoras da tuberculose, que se alas- tra no mundo inteiro na esteira da Aids e da pobreza. É uma doença endêmica

52 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

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Passagem permitida: o posto de fronteira San Ysidro, em San Diego, um dos mais movimentados do mundo, registra a cada ano 65 milhões de travessias legais

em Tijuana por causa do clima muito úmido e dos numerosos e vastos assen- tamentos, que abrigam os moradores temporários. Além disso, os migrantes têm muitas dificuldades até chegarem a um médico do Seguro Social, a estrutu- ra de atendimento médico oferecida pe- lo governo mexicano, quando vêm de outro estado sem um documento de identidade oficial. Enquanto os Estados Unidos registram apenas 5 casos de tu- berculose para cada 100 mil pessoas, a re- gião da Baixa Califórnia apresenta de 50 a 60 para cada grupo de 100 mil habitan- tes. É quase o dobro da atual média me- xicana, que havia caído na década de 1990 e voltou a crescer nos últimos anos, à me- dida que se deu menos atenção às cam- panhas de prevenção e de tratamento.

"A tuberculose não perdoa", comenta o médico pneumologista Rafael Laniado- Laborín, da Universidade Autônoma da Baixa Califórnia, em Tijuana. Em um es- tudo publicado em maio deste ano na re- vista Infection Control and Hospital Epide- tniology, Laniado-Laborín e Maria Noemi Cabrales-Vargas relatam 18 casos de tu- berculose entre os médicos e enfermeiros

que trabalharam durante cinco anos em um hospital de 140 leitos em Tijuana. O resultado representa uma incidência 11 vezes maior que na população e é preocu- pante por se tratar de um lugar de inten- sa circulação de pessoas doentes, mais propensas a contrair outras infecções. Se- gundo Laniado-Laborín, o hospital ado- tou algumas medidas administrativas su- geridas, mas depois as deixou de lado. No mesmo hospital surgiram mais 17 novos casos entre os profissionais de saúde de novembro de 2005 a junho de 2006.

Ações conjuntas - Do outro lado da fronteira a tuberculose também preocu- pa. Um levantamento feito há dois anos com 571 imigrantes e refugiados que haviam se intalado havia pouco tempo em San Diego mostrou que, embora só 7% deles apresentassem a forma ativa da tuberculose, 76% tinham a forma laten- te e eram potenciais transmissores do bacilo causador da doença. É possível conter essa doença quando as pessoas contaminadas tomam os medicamentos rigorosamente durante seis meses; ocor- re que geralmente se interrompe o trata-

mento tão logo os sintomas desapare- cem. É quando surgem as formas mais agressivas da doença, causadas por va- riedades de bactérias para as quais os medicamentos se tornaram inócuos. Três profissionais de saúde que trabalha- vam no hospital de Tijuana, por sinal, estavam infectados com uma variedade de M. tuberculosis multirresistente. A re- sistência aos dois fármacos mais adota- dos contra a tuberculose foi detectada em laboratório em 1% das variedades do bacilo que circulam em San Diego e em 17% das variedades isoladas de pa- cientes da Baixa Califórnia.

Os especialistas em saúde insistem: tanto a tuberculose quanto outras doen- ças infecciosas só podem ser detidas por meio de ações dos dois países que facili- tem o diagnóstico e o tratamento. Mas não basta treinar médicos para atender os mexicanos que vivem na Califórnia ou dar mais atenção aos moradores de Ti- juana. É preciso respeitar as realidades locais, alerta Laniado-Laborín. "Não po- demos simplesmente aplicar o que vem de outros países", diz ele, "porque as si- tuações e as culturas são distintas". •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 53

CIÊNCIA

FISIOLOGIA

Máscara da embriag Energético disfarça alguns efeitos das bebidas alcoólicas e amplifica outros

Duas doses de uísque e uma lata de bebida energética deixam o mais tímido freqüenta- dor de bares e dance- terias eufórico e falan- te para curtir a noite como um boêmio de

carteirinha. O problema é a hora de vol- tar para casa. Quem bebe energético à base de cafeína e taurina na esperança de cortar o efeito do álcool pode até se sentir em condições de pegar na direção, quando, na realidade, não está - e, as- sim, correr o mesmo risco de causar um acidente de quem consumiu apenas uís- que ou cerveja durante a balada.

Experimentos feitos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) compro- vam que os energéticos produzem um efeito duplo sobre o sistema nervoso cen- tral: por um lado aumentam a sensação de prazer proporcionada pelo álcool, por outro diminuem a percepção sobre o es- tado de embriaguez. Por essa razão, ima- gina-se que o consumo freqüente de energéticos com bebidas alcoólicas pode aumentar o risco do uso abusivo e even- tual dependência do álcool, que atinge 12 milhões de adultos no país.

Interessado em conhecer como e por que as pessoas consomem energéticos - bebida criada em 1987 pelo austríaco Dietrich Mateschitz a partir de compos- tos populares na Ásia -, Sionaldo Eduar-

do Ferreira, da Unifesp, teve de esticar o horário de trabalho alguns dias e procu- rar os usuários da mistura de energético e bebida alcoólica onde eles geralmente se encontram: em bares, danceterias e academias de ginástica, além de, claro, na própria universidade.

Em 2000 Ferreira entrevistou 136 ho- mens e mulheres que haviam consumi- do ao menos uma vez energéticos asso- ciados com uísque, vodca, cerveja ou outro tipo de bebida alcoólica. Em geral, as pessoas tomavam energéticos por achar que reduziam a sonolência e o can- saço causados pelo álcool, efeito chama- do depressão psicomotora. Um em cada quatro entrevistados afirmou que o ener- gético adicionado à bebida alcoólica me- lhorava o vigor físico, em comparação com o consumo exclusivo de álcool. Na opinião de 40%, o energético os deixava mais alegres, enquanto 30% disseram que aumentava a euforia e 27% a desini- bição. Só 14% falaram que o energético não modificava os efeitos do álcool.

De volta ao laboratório, Ferreira en- controu resultados diferentes. Ele e ou- tros integrantes da equipe de Maria Lú- cia Formigoni convidaram 26 jovens adultos para três baterias de testes com energéticos e bebidas alcoólicas, com o objetivo de verificar se os energéticos mo- dificavam de fato os efeitos do álcool, co- mo muitos acreditam. Antes de cada ba- teria de teste, os voluntários receberam

doses de vodca com um corante amarelado que imita o sabor do energético, de energético puro ou de energético e vodca - em nenhuma das vezes eles sabiam o que es- tavam tomando. A avalia- ção feita com o bafômetro mostrou que o nível de ál- cool no sangue depois de be- ber álcool e energético foi se- melhante ao observado após o consumo de álcool. "Esse é um sinal de que o energético não in- terfere na metabolização do ál- cool", explica Maria Lúcia.

Exames de sangue detecta- ram níveis semelhantes de açúcar (glicose) e de diversos hormônios no organismo após a ingestão de bebida alcoólica ou da mistura de álcool e energético. Testes de atenção também comprovaram que a reação visual e a coordenação motora fica- ram igualmente comprometidas em ambos os casos. O desempenho na ati- vidade física em bicicleta ergométrica foi praticamente o mesmo, como ates- ta estudo publicado em abril deste ano na Alcoolism, Clinicai and Experimental Research. "A única diferença importan- j te", conta Maria Lúcia, "foi observada no g dia em que as pessoas beberam energé- g tico com álcool: elas tinham a sensação 1

54 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP127

subjetiva de manter boa coordenação motora e de menor embriaguez".

Essa falsa noção de sobriedade asso- ciada ao consumo de energéticos havia sido identificada em 1996 por uma equi- pe alemã. Em artigo publicado na Bhi- talkohol, o grupo relatou que a combi- nação de álcool e energéticos poderia levar os jovens a uma avaliação errada de sua habilidade para dirigir. "Por não ter noção de seu estado de embriaguez, é bem possível que o usuário beba mui- to mais", comenta Ferreira. Além disso, o energético disfarça o gosto nem sem- pre agradável das bebidas destiladas, tor- nando-as mais palatáveis.

É cedo para afirmar que os energéti- cos induzem a um consumo maior de álcool. Mas Ferreira tem indícios de que isso pode ocorrer. Como não seria ético submeter voluntários ao consumo de doses mais elevadas de álcool e por pe-

três semanas Ferreira deu álcool diaria- mente a camundongos, antes de testá- los em caixas acrílicas com células fotos- sensíveis, que registram a movimentação dos animais. Na primeira vez em que os roedores receberam álcool, metade ficou inicialmente agitada e logo se tornou so- nolenta, enquanto a outra metade per- maneceu inquieta por mais tempo. Nas outras vezes em que repetiu o experi- mento, Ferreira observou que três de

efeito estimulante do álcool de forma bastante acentuada.

Quando misturou energético à bebi- da, porém, todos os roedores ficaram agi- tados, caminhando rapidamente de um lado a outro da caixa. "Se esse resultado for válido para os seres humanos, uma pessoa que inicialmente fica pouco esti- mulada ao tomar uma bebida alcoólica

das", diz Maria Lúcia. "É justamente esse efeito que a maioria busca nas drogas de abuso." A equipe da Unifesp imagina que a sensibilidade causada pelo consumo contínuo de álcool - e aumentada pelo energético - pode influenciar o desenca- deamento de seu uso abusivo. Talvez não seja por acaso que nas casas noturnas vi- sitadas por Ferreira a mistura de álcool e energético já constava dos cardápios. "Os administradores desses estabeleci-

para testes com roedores. Durante seu efeito estimulante, apresentando eu- foria e agitação mais intensas e prolonga-

te que bebe a mistura consome mais ál- cool durante a noite", avalia Maria Lúcia.

Atualmente Gabriela Naomi Fujisa- ka, aluna de ciências biomédicas na Uni- fesp e integrante da equipe de Maria Lú- cia, analisa como agem separadamente no organismo os componentes dos ener- géticos. Enquanto não se conhecem me- lhor os efeitos desses componentes, es- sas bebidas continuam a ser vendidas sob a vaga classificação de composto lí- quido pronto para o consumo. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 5í

Biblioteca de Revistas Científicas

disponível na internet www.scielo.org

A iniciativa de adequação do sistema Stanalyst, do Instituto de Informação Científica e Técnica/Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França, para operar com a biblioteca SciELO continua com seu desenvolvimento também com bases no modelo de cooperação técnica da Bireme/OPAS/OMS. Com o intuito de finalizar a primeira versão do sistema Stanalyst para plataforma Linux e concluir a ferramenta de conversão de bases de dados SciELO para o Stanalyst, foi realizada uma reunião de trabalho entre os desenvolvedores do projeto, em Buenos Aires, Arqentina, entre os dias 17 e 23 de julho de 2006. O objetivo final do projeto é tornar compatível o banco de análises Stanalyst com as bases biblioqráficas da SciELO, permitindo o compartilhamento das fontes de informação científicas e técnicas. O sistema Stanalyst se refere a uma cadeia de tratamento da informação composto de um conjunto de módulos aplicativos relativo à pesquisa de informação em base de dados documentais.

Saúde

A gênese da obesidade

Estudos pros- pectivos mostram que, além da pre- valência da obe- sidade aumentar em todos os luga- res, em 2025 o Brasil será o quin- to país do mundo a apresentar problemas de peso em sua popula- ção. "A etiologia da obesidade não é de fácil iden- tificação. Essa é uma doença multifatorial, que conta com fatores genéticos, psicológicos, me- tabólicos e ambientais", aponta o artigo "O pa- pel dos hormônios leptina e grelina na gênese da obesidade", escrito por Carla Eduarda Rome- ro e Angelina Zanesco, pesquisadoras do Insti- tuto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A obesidade pode ser classifi- cada em dois caminhos: por determinação ge- nética ou fatores endócrinos e metabólicos ou, então, influenciada por fatores externos, sejam eles de origem dietética, comportamental ou ambiental. "Acredita-se que os fatores externos são mais relevantes na incidência de obesidade do que os fatores genéticos", sugerem as pesqui- sadoras. O estudo mostra que os adipócitos são capazes de sintetizar várias substâncias e, dife- rentemente do que se supunha anteriormente, eles não são apenas um sítio de armazenamento de triglicérides. "Dentre as diversas substâncias sintetizadas pelo adipócito destacam-se a adipo- nectina, a angiotensina e a leptina", afirmam. A leptina é um peptídeo que desempenha impor- tante papel na regulação da ingestão alimentar e no gasto energético, gerando um aumento na queima de energia e diminuindo a ingestão ali- mentar. "Os achados sobre a descoberta da lep- tina, produzida pelo adipócito, e da grelina, pro- duzida pelo estômago, abrem novos campos de estudo para o controle da obesidade, principal- mente nas áreas de nutrição e metabolismo."

REVISTA DE NUTRIçãO - VOL. 19 - N°

CAMPINAS - JAN./FEV. 2006 1 -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-

52732006000100009&lng=pt&nrm=isoStlng=pt

■ Petróleo

Desempenho organizacional

Embora alguns especialistas questionem o fa- to de as tecnologias de informação e comuni- cação (TIC) poderem ser consideradas uma fonte de vantagem competitiva, há consenso quanto à necessidade do seu alinhamento às es- tratégias das empresas. O assunto é amplamen- te discutido no artigo "Assegurando o alinha- mento estratégico da tecnologia de informação e comunicação: o caso das unidades de refino da Petrobras", de Marcos Villas e Diana Mace- do-Soares, ambos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Mar- cus Fonseca, gerente de TI da Petrobras. O es- tudo mostra que assegurar este alinhamento, ou seja, promover a consistência da estratégia das TIC com a da empresa, tendo como objetivo au- mentar a efetividade, tornou-se particularmen- te importante com o acirramento da competi- ção no setor de petróleo, em decorrência da abertura deste mercado no Brasil a partir de 2002. Segundo o estudo, o cenário competitivo no qual a Petrobras se insere estabelece precon- dições para que se utilize a TIC de forma estra- tégica. "A identificação dos fatores que inibem a promoção do alinhamento estratégico na or- ganização permite que sejam elaborados novos planos de ação", afirmam os pesquisadores no trabalho publicado. Entre as ações mais impor- tantes, destacam-se a necessidade de conscien- tizar a gerência da empresa a respeito da im- portância estratégica da TIC e seu potencial tecnológico de auxiliar a organização a conquis- tar maior vantagem competitiva. Além de com- partilhar os resultados de um estudo de caso nas unidades de negócios da Petrobras, o estudo apresenta uma proposta de modelo conceituai para auxiliar a gestão da TIC no sentido de ga- rantir o alinhamento de suas ações com as es- tratégias do negócio, com o objetivo de poten- cializar a contribuição desse tipo de tecnologia para um melhor desempenho organizacional dessas unidades.

REVISTA DE ADMINISTRAçãO PúBLICA - VOL. 40 - N° 1 - Rio DE JANEIRO - JAN./FEV. 2006

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-

76122006000100007&lng=pt&nrm=isoStlng=pt

56 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

■ Esporte

Objetivo único

O esporte é um fenô- meno de grande abran- gência social, tanto do ponto de vista do espetá- culo como da atividade profissional e comercial. Diante das necessidades impostas aos atletas de alto rendimento, a supe- ração tornou-se um princípio e um termo recorrente entre aqueles que conseguiram chegar entre os vence- dores. Kátia Rubio, professora da Escola de Educação Física e do Esporte da Universidade de São Paulo (USP), discute o tema no artigo "O imaginário da der- rota no esporte contemporâneo". "Na estrutura do es- porte observa-se a reprodução do modelo liberal que privilegia a vitória, embora sejam premiados os três primeiros colocados em disputas olímpicas. Isso leva muitas vezes o ganhador da medalha de prata e de bronze a se sentir derrotado, negando um feito digno de registro histórico", explica a pesquisadora. Segundo ela, os desdobramentos da derrota não são suficiente- mente estudados, o que contribui para uma atitude de negação em relação a essa situação, tanto por parte de atletas como de profissionais que atuam no universo esportivo. Por isso, o estudo apresenta uma discussão sobre o imaginário da derrota e como esse evento se dá entre atletas brasileiros ganhadores de medalhas olím- picas. "Causa estranheza a dificuldade em se encontrar referencial teórico sobre uma reflexão sobre a derrota e sua representação social", diz Kátia, que consultou ba- ses de dados como livrarias e bibliotecas virtuais. "Cu- riosamente, quando o tema se apresentava por meio de palavras-chave, as obras que surgiram foram quase to- das elas na linha da superação da derrota, ou em como se tornar um vencedor com base em técnicas de auto- ajuda." O tema derrota emergiu quando a procura se concentrou apenas nos aspectos éticos e morais da competição.

PSICOLOGIA & SOCIEDADE

ALEGRE - JAN./ABR. 2006 VOL. 18 - N° 1 - PORTO

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

71822006000100012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ História

Fronteira tênue

Analisar as relações entre história e ciências sociais, investigando os embates e as reciprocidades conceitu- ais e institucionais entre ambas. Essa é a proposta do artigo "História e ciências sociais: zonas de fronteira", de Fernando Teixeira da Silva, da Universidade Esta- dual de Campinas (Unicamp). Segundo o autor, a con- frontação entre a história e as ciências sociais sempre

foi o espaço de um debate difícil, "e que ainda hoje per- manece inteiramente aberto". Trata-se de esboçar um debate que encontra seu ápice de tensão na antropolo- gia estruturalista. "O impulso estruturalista na década de 1960 e início da de 1970 foi uma tentativa de tirar as ciências sociais da sombra da história. Mas os histo- riadores resistiram a essas investidas, sem que deixas- sem de sair em defesa da abertura da história para as ameaçadoras disciplinas vizinhas", descreve Silva. Nas últimas décadas, a aproximação entre história e an- tropologia atualizou o debate, culminando nas atuais reflexões sobre a identidade do ofício do historiador di- ante da abertura da história em relação às demais ciên- cias humanas. "As relações da história com as ciências sociais remontam ao momento em que ambas passa- ram a disputar posições no interior do establishment acadêmico por meio de embates conceituais que visa- vam definir um estatuto de cientificidade para o con- junto de sua produção."

HISTóRIA (SãO PAULO) - VOL. 24 - N° 1 - FRANCA 2005

www.se ielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S0101-

90742005000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Educação

Avaliação distante

O artigo "A avaliação vista sob o aspecto da educação a distância", de Marcus Maltempi e Maurício Rosa, am- bos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, reflete sobre a avaliação como um aspec- to bastante relevante para a educação em geral, que tam- bém deve ser pensado e discutido ante a educação a distância. Tendo por contexto um curso realizado a dis- tância, o estudo analisa algumas interações ocorridas ao longo das aulas, que foram desenvolvidas tendo como norte a teoria construcionista. A abordagem construcio- nista vai além de atividades hands-on ao deixar para o aluno mais controle sobre a definição e resolução de problemas. A idéia é criar um ambiente no qual o alu- no esteja conscientemente engajado em construir um artefato público e de interesse pessoal (head-in). O cur- so teve a construção de jogos eletrônicos do tipo RPG como proposta pedagógica, além de discutir questões relativas à sociedade do conhecimento e a teorias de aprendizagem. O estudo trabalha esse aspecto a partir de dados coletados no curso que indicam a avaliação como processo formativo, próprio à educação. "No en- tanto, fazemos inferências à concepção, equivocada em nossa opinião, de avaliação como quantificação, como ideologia de medição de conhecimento, ou seja, como exigência realizada pelo sistema educacional que incita uma atribuição de valores ou conceitos ao que o aluno 'sabe' ou 'aprende'", dizem os autores.

ENSAIO: AVALIAçãO E POLíTICAS PUBLICAS EM EDUCAçãO

- VOL. 14 - N° 50 - Rio DE JANEIRO - JAN./MAR. 2006

www.scielo.br/scielo.php7sc ri pt=sci_arttext&pid = S0104-

40362006000100005&lng=ptSnrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 57

TECNOLOGIA

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■ Silenciosa e não poluente

Uma pequena motocicleta de baixa cilindrada, silenciosa e que não emite fumaça foi de- senvolvida na Universidade de Tecnologia de Delft, na Holan- da, pelo estudante de desenho industrial Crijn Bouman. Nos testes realizados com um pro- tótipo da motoneta, batizada de Fhybrid, ela atingiu 65 qui- lômetros por hora e teve um desempenho tão bom quanto o do modelo movido a gasoli- na. Na aceleração mostrou ser superior ao modelo padrão. A moto é movida por um meca- nismo elétrico alimentado por baterias. Um sistema compac- to de célula a combustível, equipamento que funciona com hidrogênio estocado em um tanque e oxigênio do ar para gerar eletricidade, carre- ga a bateria. Além disso, a energia gerada pelos freios, que normalmente é transfor- mada em calor, é utilizada para gerar eletricidade e suprir as baterias de carga adicional.

Mercado da nanotecnologia Em 2005, empresas, gover- nos e investidores de capital de risco investiram cerca de US$ 10 bilhões em materiais e produtos com dimensões nanométricas, medidas equi- valentes a 1 milímetro divi- dido por 1 milhão de vezes. A expectativa é que esse mer- cado atinja US$ 2,6 trilhões em 2015. A previsão é da empresa de consultoria nor- te-americana Lux Research,

Dependendo do tráfego, um sistema chamado de frenagem regenerativa reduz o consumo de hidrogênio em 10% a 20%. Com um tanque cheio de hi- drogênio será possível percor- rer 200 quilômetros. •

especializada em nanotec- nologia, segundo a agência Ásia Online. Os aparelhos e dispositivos eletrônicos na- notecnológicos são os prin- cipais produtos comerciali- zados. São semicondutores com tamanhos abaixo de 90 nanômetros, novas formas de memórias digitais, sistemas nanoeletrônicos de armaze- nagem de dados e nanotubos de carbono que estão entre

■ Oscilações do transgênico

Um estudo recém-divulgado por pesquisadores da Univer- sidade Cornell, nos Estados Unidos, mostrou que o uso de

os principais produtos com dimensões nanométricas. Apenas o mercado para dis- positivos eletrônicos repre- sentou US$ 250 milhões em 2005, excluindo os rendi- mentos com licenças e pa- tentes. A maior parte desse valor foi dedicado a mate- riais para a produção de cir- cuitos integrados, vindo a seguir revestimento de dis- positivos e nanotubos. •

algodão transgênico resistente às chamadas larvas Bt (Bacillus thuringiensis) pode não apre- sentar os benefícios esperados pelos produtores. O trabalho, que tomou como base a pro- dução de 481 fazendas situa- das nas cinco maiores provín- cias produtoras de algodão Bt na China, mostrou que, entre 2001 e 2003, o algodão trans- gênico ajudou a reduzir o uso de pesticidas em 70% e pro- porcionou lucro 36% maior, quando comparado às planta- ções convencionais. Mas, em 2004, o resultado se inverteu.

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O uso de agrotóxicos ficou equilibrado nas duas culturas e a receita entre os produtores de transgênicos foi 8% menor em função do alto custo das sementes geneticamente mo- dificadas. Esse mau resultado, afirmam os pesquisadores, de- veu-se ao ataque de outros ti- pos de praga. Mas o estudo foi contestado pelo diretor do Centro para Políticas Agríco- las da China, para quem o mau resultado da safra de 2004 deveu-se ao fato de os meses de verão daquele ano terem sido mais frios e úmi- dos, o que levou à eclosão de pragas nas plantações. O algo- dão Bt responde por cerca de 60% da cultura chinesa. •

ploradores é que poderão vas- culhar locais inacessíveis para os atuais veículos-robôs da Na- sa, como túneis subterrâneos, onde podem existir indícios de que, no passado, já houve água em solo marciano. •

■ Escrita portátil em braile

Um aparelho portátil para es- crever em braile, com disposi- tivos mecânicos e que dispen- sa componentes eletrônicos,

foi criado por um grupo de alunos de engenharia da Uni- versidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. O aparelho é muito simples de usar e pos- sui apenas seis botões, que po- dem ser pressionados para pro- duzir qualquer um dos padrões que compõem letras, números e sinais do sistema braile. Ele tem pontas metálicas que pos- sibilitam fazer seis marcas de uma vez, aumentando a velo- cidade da escrita. O protóti- po foi testado por represen- tantes da Federação Nacional do Cego, dos Estados Unidos, que conta com 50 mil associa- dos. Caso seja produzido em série, o equipamento deverá custar cerca de US$ 10,00. •

■ Minissondas marcianas

Dentro de uma década, Marte será invadido por milhares de minissondas espaciais que irão esquadrinhar todos os seus re- cantos. Essa é a aposta de um grupo de engenheiros do Ins- tituto de Tecnologia Massa- chusets (MIT), que desenvol- veu engenhosos artefatos do tamanho de uma bola de bei- sebol pesando cerca de 100 gramas. Os minirrobôs, cons- truídos com material resisten- te para suportar o intenso frio marciano, serão dotados de câmeras e sensores ambien- tais. Movidos a células a com- bustível, equipamento que gera energia com hidrogênio, e do- tados de músculos artificiais, eles se moverão em saltos de 1,5 metro com capacidade de dar seis pulos por hora. Os pesquisadores acreditam que, em um mês, um enxame de mil minissondas poderá co- brir uma área de 129 quilôme- tros quadrados. Elas usarão uma rede local para se comu- nicar e enviar seus dados a uma base. A vantagem dos miniex-

Energia marinha Um novo sistema para gerar

ondas do mar foi desenvol- vido por pesquisadores da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. A novi- dade é que ele funciona com bóias posicionadas a cerca de 3 quilômetros da costa, produzindo energia a partir das ondulações superficiais

do mar - e não propriamen- te da arrebentação das on- das, como é mais comum. A bóia possui em seu interior uma bobina elétrica e um eixo magnético fixo, que é preso ao fundo do mar (ve- ja desenho acima). Com a ondulação do mar, a bobina

Os pesquisadores, liderados pelos engenheiros Annette von Jouanne e Alan Wallace, estimam que cada bóia teria potencial para 250 quilo- watts de energia. Uma rede de 200 bóias trabalhando em conjunto poderia gerar energia para abastecer o cen- tro financeiro de uma cida-

baixo, gerando eletricidade. de de médio porte.

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 59

O óleo do farelo de arroz po- de ser uma alternativa para a produção do biodiesel. En- quanto a atual produção e as pesquisas com biodiesel uti- lizam girassol, mamona, pal- ma, babaçu, soja, amendoim e pinhão-manso, a Faculda- de de Química da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) aposta na produção de bio- diesel a partir do óleo do fa- relo de arroz e conta com o apoio financeiro da Associa- ção dos Arrozeiros de Uru- guaiana. Os produtores des- sa cidade estão interessados em novas possibilidades pa- ra o uso desse subproduto do arroz. O projeto iniciado

em agosto de 2005 é coorde- nado pela professora Jeane Dullius com a participação da mestranda Tatiana Maga- lhães da Silva e da aluna de graduação Cleidi Perciuncu- la. O trabalho delas recebeu o Io lugar na categoria Quí- mica Industrial do Prêmio da Associação Brasileira de Química deste ano. Combus- tível derivado de fontes re- nováveis, o biodiesel ganha importância pela substitui- ção total ou parcial do óleo diesel de petróleo em moto- res de caminhões, tratores, automóveis, entre outros. •

Valor energético para subproduto do arroz

Linha de Produção Brasil

■ Parceria para revestimento

A multinacional de origem francesa Saint-Gobain assinou um convênio com a Universi- dade Estadual Paulista (Unesp) para desenvolvimento de re- vestimento polimérico à base de óleos vegetais para recobrir vidros de janelas e policarbo- natos, um ligante polimérico para proteção de superfícies. O revestimento serve como proteção contra a corrosão provocada por produtos quí- micos. "Nos testes realizados o revestimento produzido com óleos vegetais demonstrou ser durável e resistente", diz o pro- fessor Younès Messadeq, coor- denador do Laboratório de Materiais Fotônicos do Insti- tuto de Química da Unesp de Araraquara. A principal van-

tagem desse material em rela- ção a revestimentos similares encontrados no mercado é o preço, bem mais baixo por conta da matéria-prima uti- lizada. O convênio é o primei- ro trabalho de cooperação da empresa com pesquisadores brasileiros, que vai investir R$ 165 mil na pesquisa. •

■ Vendas feitas pelo celular

Um sistema para envio de pe- didos de venda via telefone ce- lular, chamado de Pwap e de- senvolvido pela empresa True Systems, do Rio de Janeiro, foi um dos ganhadores do Wi- reless Emerging Tecnologies

Awards na feira de tecnologia sem fio CTIA Wireless 2006, realizada em Las Vegas, nos Es- tados Unidos. Os vendedores podem passar os pedidos para as empresas por meio de qual- quer dispositivo móvel que possua conexão com a inter- net. Além do telefone celular, pode ser utilizado com compu- tadores portáteis e comuns. "O vendedor manda o pedido on- line pelo telefone, diretamen- te da base de dados do clien- te", diz Luiz Sérgio Oehler, diretor da empresa. Uma das três empresas brasileiras que adotaram o Pwap é a AlfaParf, fabricante de produtos para cabeleireiros, que tem uma equipe de vendas própria com 80 pessoas. As bases de dados das empresas, como cadastros de clientes, produtos, condi- ções comerciais e pedidos, po-

60 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

dem ser acessadas on-line pe- lo sistema. A comercialização do Pwap é feita por assinatu- ra, com pagamento mensal, proporcional ao número de usuários. "Pretendemos agora exportar o produto para a América Latina", diz Oehler. •

■ Televisão avançada

A Universidade Estadual Pau- lista (Unesp) está na era da TV digital. Concedido pelo Minis- tério das Comunicações, o ca- nal vai transmitir do campus de Bauru, sede do Centro de Rádio e Televisão Cultural e Educativa da Unesp, com ob- jetivo de difundir conteúdo educacional, abrangendo des- de a pré-escola até o ensino su- perior, além de servir para a formação de mão-de-obra es- pecializada. A emissora será

Lançamentos tratam de gestão e agricultura

■ Sistemas de informação

As aplicações e tendências dos sistemas e tecnologias de in- formação aplicados à gestão em organizações são a temáti- ca do livro Por que Gesiti?, or- ganizado pelo professor Antô- nio José Balloni, do Centro de Pesquisas Renato Archer (Cen- pra), unidade do Ministério da Ciência e Tecnologia instalada em Campinas (SP). Dividido

em sete capítulos, o livro ini- cia com um panorama geral do tema proposto: "Por que Gestão dos Sistemas e Tecno- logias de Informação (Gesiti)?". Os capítulos restantes tratam de assuntos como tendências globais nas transações comer- ciais feitas por meio eletrônico, aproveitamento da tecnologia de informação para melhorar o desempenho da cadeia de suprimentos e das áreas de transporte e logística. •

■ Citricultura em detalhes

Uma obra de fôlego com 929 páginas e o curtíssimo título Citros reúne informações mi- nuciosas sobre a citricultura brasileira, que movimenta cer- ca de US$ 3,2 bilhões por ano. Organizado em seis áreas te- máticas (história, genética, pro- dução, fitossanidade, resíduos e pesquisa e desenvolvimento) divididas em 31 capítulos, o li- vro tem como objetivo levar a todos os envolvidos nesse ra- mo o que há de mais novo em conhecimento e tecnologia. Para essa tarefa contou com 82 especialistas. A coordenação, organização e edição do livro ficaram a cargo do Centro Ap- ta Citros Sylvio Moreira, do Instituto Agronômico (IAC), em Cordeirópolis, interior de São Paulo. •

Perda menor na colheit

implantada em um ano e meio ao custo de R$ 22 milhões. Ela também deverá incorporar al- gumas das tecnologias, como softwares e sistemas de intera- ção, desenvolvidas pelo con- sórcio de pesquisadores brasi- leiros para o Sistema Brasileiro de TV Digital (veja Pesquisa FAPESP n° 120). .

cana-de-açúcar para a co- lheita mecanizada, desenvol- vido no Instituto Agronômi- co (IAC) de Campinas, no interior de São Paulo, conse- guiu reduzir as perdas da matéria-prima no campo. "O sistema é composto de lâminas serrilhadas, acopla- das de forma inclinada aos discos de corte de base utili- zados nas máquinas usadas para colher a cana", diz o pesquisador Roberto da Cu- nha Mello, do Centro de En- genharia Agrícola do IAC, responsável pela inovação. As colhedeiras existentes no mercado trabalham com sis- tema de corte de base por impacto. Essas máquinas cortam abaixo da superfície do solo, aumentando o des-

Lâmina serrilhada não toca o solo

gaste das lâminas. O proces- so também causa perdas e danos às raízes e, com isso, uma rebrota menos vigoro- sa. O novo sistema utiliza o corte por deslizamento com lâminas, evitando assim o contato do instrumento com o solo. O resultado é a dimi- nuição nas perdas de cana e

nos danos às raízes, o que fa- vorece a rebrota e reduz o desgaste das lâminas. A mol- dagem dos instrumentos foi feita em parceria com a em- presa Duraface, que licen- ciou a patente da invenção do IAC. A previsão é de que até abril do ano que vem o pro- duto esteja no mercado. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 61

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TECNOLOGIA

INDUSTRIA PETROLÍFERA

Energia ampliada Redes temáticas reúnem Petrobras e 76 instituições de pesquisa em projetos que vão receber R$ 1 bilhão

MARCOS DE OLIVEIRA

ma das mais expressivas parcerias entre instituições científicas e uma empresa, no caso a Petrobras, está

H H iniciando suas atividades com a participação de 76

^^^V instituições de pesquisa em ^^^ 17 estados brasileiros. As

redes temáticas terão à dis- posição R$ 1 bilhão num período de três anos. Esse valor é equivalente a 0,5% da produção de petróleo da empresa em cam- pos de alta produtividade que deve ser des- tinado, por lei federal e cláusula contratual, às parcerias com instituições brasileiras. Mais 0,5% está garantido para aplicação no Centro de Pesquisa da Petrobras (Cen- pes), onde existem 923 profissionais com nível superior. O valor financeiro dessa parceria é uma estimativa e deverá sofrer oscilações porque depende do nível da pro- dução e do valor do barril de petróleo du- rante todo o período.

São cerca de 700 pesquisadores subdivi- didos em 38 redes, cada uma com um tema e com a participação de no mínimo cinco instituições. "Entre os macroobjetivos des- sas redes e do Cenpes estão aumentar cada vez mais a produção de petróleo e de gás na- tural, refinar o máximo possível (resultan- do em combustíveis e demais derivados), além de desenvolvermos novas fontes de energia, como biomassa, biodiesel, álcool, biogás e hidrogênio", diz Carlos Soligo Ca-

merini, gerente-geral da gestão tecnológica da Petrobras. Esse tipo de parceria vem sen- do realizado mais efetivamente desde o fi- nal dos anos 1980 e já trouxe muitos bene- fícios para o atual estágio de produção petrolífera da empresa estatal que atingiu a auto-suficiência em abril deste ano. "Difi- cilmente desenvolvemos uma tecnologia que não tenha a participação das universi- dades", diz Camerini. São tecnologias para a prospecção de petróleo no fundo do mar, dutos para transporte de óleo e de combus- tíveis, além de estudos geológicos, produ- ção de softwares específicos para o setor e pesquisa em energia alternativa e renovável.

As redes devem mudar para melhor esse cenário até aqui moldado por projetos pon- tuais realizados entre um laboratório de uma universidade e o Cenpes, embora esse tipo de parceria também deva continuar, agora em menor escala. O novo formato es- tabelece uma relação mais institucional que envolve reitores, pró-reitores e gerentes da empresa. Cada rede possui um gestor, que será o representante da Petrobras, e um co- mitê técnico-científico, formado por pro- fessores das instituições relacionadas ao te- ma. "Cada comitê vai analisar e acompanhar os projetos da rede", explica o professor Cel- so Pupo Pesce, da Escola Politécnica (Poli), representante da Universidade de São Pau- lo (USP) na Rede de Estruturas Submari- nas, uma das 21 redes em que a universida- de terá pesquisadores. Ela será responsável

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 63

Tanque oceânico da UFRJ: pesquisa com maquetes de plataformas e de navios

por elaborar projetos relacionados ao de- senvolvimento de metodologias de cál- culo estrutural, experimentos e qualifi- cação de dutos, conectores e risers, que são as tubulações de perfuração e produção que ligam as plataformas, na superfície, ao solo marinho. Dessa rede também vão participar pesquisadores das universida- des Estadual de Campinas (Unicamp), Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fede- ral do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Centro Federal de Educação Tecnológi- ca de Campos, no Rio de Janeiro.

Profunda dedicação - Celso Pesce é um exemplo da trajetória de pesquisa das parcerias entre universidade e Pe- trobras. "Comecei como estagiário em engenharia, no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em 1977, em proje- tos de prospecção de petróleo em pro- fundidades de 50 a 200 metros. Hoje trabalhamos em projetos de cabos e tu- bos visando profundidades de 3 mil metros", diz. Outra rede com a partici- pação da USP é a de Computação e Vi- sualização Científica, que tem o profes- sor Kazuo Nishimoto, também da Poli, como representante da universidade no comitê técnico-científico. Em seu labo- ratório chamado de Tanque de Provas Numéricas, ele desenvolve experimen- tos com um sofisticado sistema com- putacional, inclusive com visualização em três dimensões (3D), que analisa, de

forma virtual, os efeitos do vento, ondas e correntezas em navios e plataformas de extração de petróleo e gás no mar. Nessa rede, ele terá, no comitê, a com- panhia da UFRJ, da Pontifícia Universi- dade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio), do IPT, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Instituto Tecno- lógico de Aeronáutica (ITA).

"Já tínhamos algum tipo de intera- ção com outras universidades, mas com as redes a interatividade será maior com projetos melhores e maiores", diz Rober- to Lotufo, diretor executivo da Agência de Inovação (Inova) da Unicamp, que é o representante da universidade indica- do pela reitoria para tratar das redes te- máticas da Petrobras. "Estamos acostu- mados a fazer a gestão entre universidade e empresas", diz Lotufo, lembrando a ex- periência da agência em buscar, por exemplo, o licenciamento de patentes oriundas de pesquisas da universidade. A Unicamp está presente em 19 redes, dentre elas a de nanotecnologia aplicada à indústria de energia, que vai pesquisar o desenvolvimento de materiais nanoes- truturados (no nível dos nanômetros, medidas equivalentes a 1 milímetro di- vidido por 1 milhão de vezes) a serem utilizados na produção de combustíveis e na produção de equipamentos e com- pósitos industriais.

A universidade atua nas redes, prin- cipalmente com o Centro de Estudos de

Petróleo (Cepetro), fundado em 1987, e formado pelas faculdades de engenha- rias mecânica, elétrica, química e o Ins- tituto de Geociências com atuação nas áreas de exploração e produção de petró- leo. "Em 2004, o valor desembolsado das parcerias em projetos da empresa com a Unicamp atingiu R$ 5 milhões e tem au- mentado, de forma consistente, nos últi- mos anos", diz Lotufo.

Um dos fatores principais do suces- so dessas parcerias é a formação de pro- fissionais para a indústria do petróleo que será continuada nas redes temáticas. "Desde a formação do Cepetro já foram mais de 250 alunos de pós-graduação que se tornaram funcionários da Petro- bras", diz o professor Saul Suslick, dire- tor do centro. Um resultado que mostra o investimento e a necessidade da em- presa nos últimos anos em aumentar a produção e o refino de petróleo até atin- gir a auto-suficiência.

Formação de profissionais - O apro- veitamento por parte da empresa de re- cém-formados também é exemplar na UFRGS. Criado em 1957, o curso de geologia da universidade formou cerca de mil geólogos até o ano passado. Des- ses, 255 foram para a Petrobras. "Em al- guns anos, 50% dos formandos foram trabalhar na empresa ou para seus for- necedores", diz o professor José Carlos Frantz, diretor do Instituto de Geociên-

64 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

cias da UFRGS. A experiência acumula- tes depositadas no Brasil e 14 internacio- da leva essa universidade a participar de 17 redes como a de Estudos em Sedi- mentologia e Estratigrafia, que visa es- tudar e elaborar projetos para análise das camadas geológicas e verificação da idade das rochas com objetivo de locali- zar novas jazidas ou avaliar as existen- tes. "Detalhamos os campos petrolífe- ros, verificamos como eles se formam e analisamos as rochas dos reservatórios", diz Frantz. Para ele, as redes vão pro- porcionar a multiplicação de projetos de pesquisa, tornan- do-os mais rotineiros, além de dar maior entrosamento com outros centros de pesquisa.

A maior interação entre as instituições de pesquisa tam- bém é destacada pela profes- sora Ângela Uller, diretora-ge- ral do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Cop- pe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Teremos mais projetos voltados para desenvolvimentos futu- ros", diz Ângela. A Coppe está presente em 32 das 38 redes temáticas. Além de participar da rede Tecnologia de Cons- trução Naval, área em que a instituição colaborou para um dos trunfos da em- presa na prospecção em alto-mar - o aproveitamento de navios petroleiros adaptados como plataformas -, a Cop- pe participa também de 24 comitês cien- tíficos de outras redes.

"Nossa primeira parceria formal com a Petrobras aconteceu em 1977, mas desde 1967 já tínhamos projetos meno- res e específicos. Até 2001 foram mil pro- jetos realizados em parceria e, em 2006, atingimos 2 mil projetos", diz Ângela. Esse incremento em quatro anos é credi- tado principalmente a pesquisas finan- ciadas pelo Fundo Setorial do Petróleo (CTPetro), gerenciado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que ob- tém recursos de royalties da produção de petróleo e de gás. Um dos projetos mais significativos é o tanque oceânico, com 23 milhões de litros de água, 40 metros de comprimento por 30 metros de lar- gura e profundidade de até 25 metros, capaz de produzir ondas e correntezas. Todo o trabalho de desenvolvimento da Coppe, que inclui robôs para operar em altas profundidades e dutos para trans- porte de petróleo, resultou em 72 paten-

nais. São patentes em parceria também com a Petrobras e consideradas de cate- goria defensiva porque não são, em sua maioria, comercializadas ou licenciadas para terceiros. "Elas não geram benefí- cios à instituição de pesquisa", diz Ân- gela. "Hoje existe uma reivindicação das universidades no sentido de obtermos alguma participação financeira sobre a propriedade intelectual das tecnologias que desenvolvemos", diz Lotufo.

Petrobras aceitou discutir o assunto e uma comissão com várias universidades e insti- tutos de pesquisa apresentou propostas que estão sendo ana- lisadas pela empresa. "As pro- postas estão na esfera jurídi- ca com nossos advogados e consultorias. Acho que conse- guiremos uma alternativa pa- latável aos dois lados", acredi-

ta Camerini, da Petrobras. A solução sobre as patentes deve ser

resolvida até o final deste ano, período dedicado a montagem e aperfeiçoamen- to de laboratórios em todo o país. A fase de projetos de pesquisa começa em 2007. Na UFRJ, por exemplo, serão construí- dos prédios, revitalizados laboratórios e adquiridos equipamentos de ponta, tu- do na área de 12 mil metros quadrados da Coppe. "Na Unicamp serão construí- dos prédios específicos para projetos da Petrobras", diz Lotufo.

Mas as redes não são formadas ape- nas por instituições de pesquisa tradi- cionais ou por grandes estruturas, como demonstra a rede Monitoramento Am- biental Marinho - uma das que possuem maior número de participantes com 18 instituições -, que vai elaborar projetos de caracterização e monitoramento de ecossistemas costeiros e marinhos. Entre as participantes, além da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e o Museu Pa- raense Emílio Goeldi, estão a Fundação Pró-Tamar, de proteção às tartarugas ma- rinhas, e a Fundação Baleia Jubarte.

A grande novidade está em uma rede temática que não vai precisar construir prédios nem comprar equipamentos. Chamada de Tecnologias Convergentes, esta rede terá as idéias como matéria-pri- ma. "Entendemos que algumas tecnolo- gias, ao se encontrarem, como a biotec- nologia, a nanotecnologia, a informática

e outras, podem provocar grandes mu- danças em muitos setores e gerar produ- tos diferentes", diz Camerini. "Um exem- plo é a união entre a engenharia e a medicina que criou equipamentos médi- cos e de diagnóstico como a ultra-sono- grafia e outros que mudaram o patamar da vida humana."

A tendência dessa rede formada por cerca de 50 a 60 pesquisadores de áreas variadas é analisar tecnologias que estão em outras redes, mas não de forma tra- dicional, além de examinar outras de fora da área de energia. Estarão partici- pando psicanalistas, médicos, engenhei- ros e pedagogos. "Vamos pensar o que nenhuma das outras 37 redes estão pen- sando", diz Lotufo, que também vai par- ticipar da rede. Outro objetivo é pensar como a Petrobras vai se preparar para os próximos 10, 20, 30 anos.

A intenção da rede, que será forma- da inicialmente por pesquisadores da UFRJ, Unicamp, USP, UFRGS e ITA, tam- bém é gerar idéias que ultrapassem o âm- bito da empresa. Um dos participantes, o médico Paulo Hilário Saldiva, profes- sor da Faculdade de Medicina da USP, tem propostas para um novo perfil de es- colha de combustíveis que contribuam para a saúde pública e social do Brasil e do planeta. "Poderíamos mudar a per- cepção atual dos biocombustíveis em ser apenas um produto alternativo. A menor toxicidade em relação aos combustíveis fósseis poderia defini-los como o princi- pal combustível. E, no custo de produção, deveriam ser descontados os benefícios que ele proporciona ao ambiente", expli- ca Saldiva. "Além disso, a produção de biocombustível poderá diminuir o fos- so social. Imagine a Europa comprando álcool de países da África, por exemplo."

As idéias podem ir mais longe, se- gundo Saldiva. "Imagine que uma linha de metrô poderia economizar por ano até 3 milhões de barris de petróleo (se um determinado número de pessoas trocasse o carro pelos vagões). Com os altos preços do barril e havendo a neces- sidade de economizar petróleo e garan- tir por mais tempo as reservas, por que a Petrobras não poderia entrar como só- cia do metrô?" pergunta Saldiva. "Pre- cisamos mudar o nível de consumo de combustíveis, diminuindo viagens urba- nas que podem resultar em benefícios tanto para a companhia de petróleo co- mo para a saúde pública." •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 65

O TECNOLOGIA

TELECOMUNICAÇÕES

Ramal inteligente

A empresa paulistana Conceito de- senvolveu uma tecnologia, que vai servir principalmente a telefonia empresarial, na distribuição de li- nhas telefônicas em ramais que atuem de maneira independente uns dos outros, além de controla- rem sistemas de automação predial.

São funções realizadas por meio de módulos de tele- fonia distribuídos no ambiente e conectados a cada ramal. Dessa forma, além de agir como um PABX mo- dular e distribuído, tal sistema privado de telefonia prevê a interação com qualquer aparelho que faz par- te do sistema de automação de prédios inteligentes. Assim, ao digitar teclas de um telefone, em qualquer lugar dentro ou fora da empresa, é possível ligar o ar- condicionado, abrir portas e janelas e, por meio de sen- sores, até descobrir se existe alguém passeando por lá.

O novo sistema foi batizado de Telefonia Modu- lar Inteligente Distribuída (TMID) e possui módulos que o fazem trabalhar de forma independente da co- mutação realizada pelo PABX. Para realizar todas as funções, os ramais são conectados entre si e à rede Lo- cal Operating Network (Lon- Works), que realiza a automa- ção predial, compartilhando o mesmo meio físico, como os pa- res de fios, por exemplo. A idéia de desenvolver os "telefones in- teligentes" surgiu enquanto o coordenador do projeto da em- presa financiado pelo Programa Inovação Tecnológica em Pe- quenas Empresas (Pipe) da FA- PESP, o físico Miguel dos Santos Alves Filho, desenvolvia senso- res com inteligência distribuída para balanças de caminhões, usadas nas estradas, em 1991. Desde então, ele começou a per- guntar se não conseguiria fazer

0 PROJETO

Rede de controle de dispositivos com inteligência distribuída em interfaces de comunicação e automação

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR MIGUEL DOS SANTOS ALVES FILHO - Conceito

INVESTIMENTO R$ 173.520,37 (FAPESP)

um PABX de forma distribuída do mesmo modo que havia feito com os sensores das balanças.

O sistema convencional é composto de Central Telefônica de Comutação Privada, que possui a sigla PABX, de Private Automatic Branch Exchange, e fun- ciona de maneira centralizada. É a partir de um apa- relho central que ele administra os ramais da empre- sa, fazendo as ligações para a central telefônica pública por meio de, pelo menos, duas linhas-tronco e cinco ramais. A depender de seu interesse, a empresa pode comprar mais linhas-tronco e colocar mais ramais. O problema é que as micro e pequenas empresas aca- bam tendo ramais ociosos, enquanto as grandes pre- cisam lidar com uma estrutura de conexões muito complexa e com muitos fios.

A simplicidade do sistema TMID está no seu nú- cleo, chamado de módulo controlador, que possui um microprocessador de informações denominado Neu- ron Chip, desenvolvido pela empresa americana Eche- lon, além de um transceptor, dispositivo que tem a função de garantir o acesso à rede de comunicação do prédio. Por tratar-se de uma tecnologia modular, o cliente pode adquirir os módulos na medida de seu

interesse e necessidade, sempre considerando o custo do que realmente vai usar.

Partindo da tecnologia de- senvolvida que está em forma de protótipo, portanto ainda não disponível comercialmente, a empresa produziu e colocou no mercado o Logphone. Conec- tado ao telefone e a um com- putador, ele monitora todos os telefonemas recebidos, grava conversas, registra a duração, in- forma o número de quem ligou ou se o telefone estava ocupado. O aparelho é aplicado de manei- ra independente em cada ramal e custa R$ 100 cada um.

66 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

Telefonia empresarial ganha sistema avançado de automação

Módulos independentes para cada ramal

A empresa também está trabalhando para colo- car no mercado o Módulo de Resposta Audível (MRA) que realiza o serviço de espera telefônica personaliza- da em cada ramal e o atendimento automático, nor- malmente utilizado por empresas de telemarketing. Esse trabalho pode ser realizado pelo PABX, mas de- pende de uma estrutura maior e mais dispendiosa: uma unidade de resposta audível para gravar e deco- dificar a conversa, além de um computador para ar- mazenar as locuções programadas. Como o uso de um PABX é predominante no Brasil, o grupo está desen- volvendo o MRA. que terá entradas analógicas e digi- tais. "É uma maneira de entrar no mercado aos pou- cos", explica Alves Filho.

O grupo também pretende produzir o Módulo Gate Keeper (MGK) para interligar os telefones e os computadores em rede, ampliando o sistema de co- municação. A diferença desse sistema em compara- ção com o Voice Over Internet Protocol (Voip), ou voz sobre protocolo internet, que possibilita ligações tele- fônicas na rede, é o envio de informação sincroniza- da e voz com boa qualidade. No Voip, as informações, ou "pacotes de voz", que transitam pela internet so- frem atraso e variação na ordem de emissão, resultan- do em uma comunicação deficitária. "O novo sistema elimina a perda de comunicação dos pacotes e melho- ra a qualidade da ligação via internet", explica.

Para Alves Filho, o fato de entrar no mercado não é o suficiente para a nova tecnologia ser disseminada. Ele quer difundir o novo sistema no meio acadêmico. "É importante formar grupos de estudos sobre au- tomação porque não adianta criar a tecnologia e co- locar no mercado sem que existam profissionais ca- pacitados para trabalhar com ela", diz. É por isso que o conhecimento produzido por Alves Filho também está em uso na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) pelo Virtual Network Center of Ecosystem Services (ViNCES), um consórcio de la- boratórios que utiliza o controle a distância e a au- tomação de aparelhos para coleta de dados em pes- quisas na área de ecologia. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 67

O TECNOLOGIA

QUÍMICA

Portões lógicos Pesquisadores desenvolvem dispositivo para futuros computadores moleculares

YURI VASCONCELOS

0 sonho de computa- dores e outros equi- pamentos eletrônicos dotados de circuitos compostos por molé- culas ganhou uma nova contribuição. Pesqui- sadores do Laboratório

de Química Supramolecular e Nanotec- nologia do Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (USP) anun- ciaram em julho o desenvolvimento de células fotoeletroquímicas capazes de funcionar como portas lógicas, disposi- tivos responsáveis pelos bits que carre- gam a informação digital por meio do código básico binário empregado em computação identificado pelos sinais 1 e 0, equivalentes a "sim" e "não". A novi- dade do sistema é que essas células são construídas com moléculas capazes de responder a estímulos externos - como impulsos elétricos ou ópticos - gerando respostas eletrônicas. "O que fizemos agora é apenas um protótipo que, no futuro, poderá ser usado num compu- tador molecular. É um avanço, mas não sabemos ainda como seria a cara' desse computador", diz o químico Henrique Eisi Toma, professor do IQ da USP.

As portas lógicas (PLs) são compo- nentes fundamentais da eletrônica di- gital atual baseada na tecnologia do si- lício. A combinação de dois sinais de entrada (podem ser 1 ou 0) resulta em respostas que caracterizam os três tipos básicos de portas lógicas: NOT, AND e OR, sendo as demais (XOR, XNOR, INH, NOR etc.) obtidas pela combina- ção das três. Todos os processadores e equipamentos digitais existentes no mer- cado são operados por sistemas consti- tuídos por combinações daquelas três PLs básicas de acordo com regras bem definidas, recebendo ou gerando sinais compatíveis com a linguagem binaria.

"As respostas de cada PL são usadas como entradas de outras PLs e, quando combinadas, geram circuitos lógicos ca- pazes de realizar operações simples. Elas são interconectadas para produzir dis- positivos mais complexos e estão presen- tes em aparelhos como computadores e aparelhos celulares, entre outros", expli- ca o professor Koiti Araki, que também participou do desenvolvimento.

As PLs utilizadas atualmente ope- ram com o mesmo princípio do pri- meiro transistor desenvolvido na déca- da de 1940. Com o contínuo avanço

tecnológico e a incessante miniaturiza- ção de componentes eletrônicos - que hoje alcançam escala de 50 nanômetros (1 nanômetro eqüivale à milionésima parte do milímetro), essa tecnologia pa- rece estar chegando ao seu limite, sen- do necessário o desenvolvimento de no- vos dispositivos.

"Uma possibilidade é a eletrônica molecular, e um exemplo da viabilida- de desse tipo de tecnologia é o cérebro humano. Ele é um supercomputador úmido baseado em moléculas e sinais moleculares e que utiliza uma lingua- gem distinta da linguagem binaria dos supercomputadores construídos pelo homem", destaca Toma. Assim, a com- putação molecular se inspira no com- plexo funcionamento do cérebro para o desenvolvimento de seus componentes.

Filme colorido - O dispositivo molecu- lar criado pela equipe do Instituto de Química possui cerca de 1 centímetro quadrado, no formato de um "sanduí- che" entre duas lâminas de vidro con- dutor. Uma delas possui um filme na- noestruturado de dióxido de titânio (Ti02) sensibilizado por um corante molecular, constituído por três íons

68 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

Atrás da lente, o dispositivo instalado entre duas lâminas de vidro recebe um feixe de luz e produz um impulso elétrico

(perda ou ganho de elétrons) de rutênio e moléculas contendo carbono, oxigê- nio e nitrogênio. A outra lâmina con- dutora tem em sua superfície um filme de nanopartículas de platina colocado sobre um filme de dióxido de estanho (Sn02). Quando um feixe de luz incide sobre o "sanduíche", é produzido um impulso elétrico. Uma particularidade importante é que, dependendo do com- primento de onda da luz, o composto de rutênio ganha ou perde elétrons. É es- sa a característica fundamental que transforma a cela fotoeletroquímica em uma porta lógica do tipo XOR (ou ex- clusiva) ou INH (inibidora) que geram os bits de informação ao longo de um circuito eletrônico.

Dado o ineditismo da invenção, o grupo entrou com pedido de patente para o dispositivo. "Em princípio, nossa PL poderia ser miniaturizada até a esca- la nanométrica, porque seu funciona- mento depende apenas da formação da junção entre o corante e as nanopartí- culas de dióxido de titânio que possuem, no dispositivo testado, 20 nanômetros de diâmetro. Assim, um número mui- to grande poderia ser construído sobre substratos adequados usando fotolito-

grafia (a impressão de um circuito de um dispositivo eletrônico por meio de luz)", afirma Araki.

Não é de hoje que vários grupos de pesquisa no mundo estão tentando usar moléculas como matéria-prima para a construção de componentes eletrônicos, em substituição ou complementação aos atuais dispositivos sólidos feitos princi- palmente de silício. As primeiras portas lógicas moleculares surgiram nos anos 1980, mas seu princípio de funciona-

O PROJETO

Desenvolvimento de supermoléculas, filmes e dispositivos em nanotecnologia supramolecular

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR HENRIQUE EISI TOMA - USP

INVESTIMENTO R$ 289.743,66 e US$ 138.441,15 (FAPESP)

mento era rudimentar e dependia, em pelo menos uma de suas etapas, da re- novação ou injeção de solução do com- posto molecular. A porta lógica desen- volvida pelos cientistas brasileiros é bem mais complexa e funciona de forma re- generativa, sem necessidade de renova- ção da substância ativa, que se encontra imobilizada no dispositivo. A inovação obteve boa repercussão na comunidade científica internacional e foi divulgada por publicações do setor químico e de novos materiais, como a Angewandte Chemie, revista de maior impacto na área química.

Se, apenas no futuro, a inovação po- derá ser empregada na construção de computadores moleculares, hoje ela já tem uma aplicação prática. Segundo Henrique Toma, a porta lógica molecu- lar poderá ser utilizada como um dispo- sitivo conversor de energia, transforman- do impulsos ópticos em sinais elétricos. Isso porque a PL desenvolvida na USP é similar a uma célula solar do tipo DSSC (de Dye Sensitized Solar Cells ou Célu- las Solares Sensibilizadas por Corantes), produzida com baixos custos e que de- verá se tornar no futuro próximo uma opção às células atuais de silício. •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 69

O TECNOLOGIA

ENGENHARIA DE MATERIAIS

Coloridos e sensíveis Películas aplicadas sobre vidros e espelhos controlam mudanças de luminosidade no ambiente

Um simples apertar de botão e o vidro da janela da casa ou do escritório pode ficar colorido em tons de rosa, azul, vermelho ou outras cores. Em um ambiente interno separado por vidros basta recorrer ao controle ma- nual para não ser visto durante uma reunião, por exemplo. No caso de ja- nelas externas, as condições de lu- minosidade ou climáticas podem também determinar os ajustes neces- sários, sem nenhuma intervenção.

Em um dia nublado, o vidro fica mais claro, em um dia ensolarado, mais escuro, proporcionando maior conforto térmico e redução nos gastos de energia com sistemas de ar-condicionado e iluminação.

O nível de transparência é determinado por filmes finos (películas) com propriedades eletrocrômicas, que mudam suas propriedades ópticas com a aplicação de um campo elétrico e retornam ao seu estado inicial pela simples reversão desse campo. São esses filmes que estão sendo desenvolvidos por pesquisadores do Ins- tituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) com novidades em relação aos mesmos materiais usa- dos, até comercialmente, no exterior.

Na USP, eles utilizam materiais cerâmicos, como o oxido de níquel, que apresentam efeito eletrocrômi- co. Na presença de um eletrólito, que é um condutor de elétrons e íons (átomos com perda de elétrons) e de um contra-eletrodo, responsável por fechar o cir- cuito eletrônico, esses materiais sob ação de um cam- po elétrico apresentam reações de transferência de car- gas elétricas, responsáveis pela mudança de cor dos vidros. Um fotossensor, ligado a uma bateria, contro- la o nível de luminosidade e a necessidade de mudar do claro para o escuro e vice-versa.

Os filmes finos podem ser aplicados também em espelhos retrovisores de automóveis para diminuir o reflexo de uma luz intensa no espelho à noite, como um farol alto. Esse tipo de espelho funciona em con- junto com um fotossensor que reconhece se a luz está forte ou fraca. Quando a fonte de luz se afasta do car- ro, o espelho volta à condição normal de reflexão.

As janelas que mudam de cor já são produzidas fo- ra do Brasil e usadas em projetos de arquitetura. Mas lá os filmes finos aplicados sobre o vidro são feitos com moléculas orgânicas, como corantes, que sofrem com a degradação provocada pela radiação ultravio- leta do Sol, portanto um material pouco adequado ao clima tropical.

"Com os materiais inorgânicos que usamos, co- mo o oxido de níquel, a troca de janela pode demo- rar até dez anos", diz a professora Márcia Carvalho de Abreu Fantini, do Laboratório de Cristalografia do Instituto de Física da USP, uma das participantes do projeto temático financiado pela FAPESP que estuda a preparação e o desenvolvimento de nanomateriais (com tamanhos próximos a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) cerâmicos ou híbridos, coorde- nado pelo professor Celso Valentim Santilli, do Ins- tituto de Química da Universidade Estadual Paulis- ta (Unesp) de Araraquara.

Nanopartículas controladas - Para obtenção dos vidros coloridos é preciso controlar o tamanho e a forma das nanopartículas metálicas inseridas nos ma- teriais inorgânicos responsáveis pelas alterações das propriedades ópticas. Após várias tentativas, os pes- quisadores conseguiram produzir materiais coloridos pelo processo de deposição a vácuo chamado de sput- tering. É um método físico que usa o gás argônio ioni- zado para deposição das nanopartículas metálicas na

70 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

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Amostras de vidro em água recebem carga elétrica

matriz de oxido de níquel. Como o pro- cesso de obtenção dos filmes finos de oxido de níquel com propriedades ele- trocrômicas já está dominado, os pes- quisadores querem agora encontrar uma empresa que se interesse em pro- duzir os vidros. Materiais similares usa- dos nos filmes aplicados nas janelas tam- bém são úteis para baterias de celulares e outros aparelhos eletrônicos, como transmissores em miniatura, computa- dores portáteis e sensores remotos.

Rotas químicas - A obtenção de filmes finos também é objeto de estudo do gru- po de pesquisa da Unesp. Só que em vez de processos físicos como o sputtering, eles utilizam rotas químicas, como o mé- todo sol-gel, para a preparação das nano- partículas. Por esse processo, os pesqui- sadores produzem partículas dispersas em líquido (estado sol), que são imobi- lizadas por uma rede formada pela agre- gação ou polimerização controlada, re- sultando em um gel com características semelhantes às da gelatina comestível. Uma das aplicações estudadas é a prote- ção contra a corrosão e riscos de lentes utilizadas, por exemplo, em filmadoras e câmeras fotográficas especiais para cap- tação de imagens sem luz visível, apenas com a emissão de calor (em infraver- melho) de pessoas, animais e objetos.

Enquanto os vidros de janelas e len- tes tradicionais absorvem radiações ele- tromagnéticas tanto na faixa do ultra-

violeta como na do infravermelho, os componentes ópticos das câmeras foto- gráficas e filmadoras "noturnas" têm que possuir vidros especiais que são transparentes e não absorvedores dos raios infravermelhos emitidos pelos corpos. "Os vidros que existem no co- mércio com essa finalidade funcionam bem nessa região do espectro eletro- magnético, mas muitos deles são feitos de materiais que gostam muito da umi- dade, como é o caso dos vidros à base de fluoreto de metais pesados, e por isso têm de ser protegidos", diz Santilli.

Outra aplicação para os filmes é a co- bertura de espelhos de banheiro, para que não fiquem embaçados. Nesse caso, o material tem como principal caracte- rística a super-hidrofilia, ou seja, é um

0 PROJETO

Nanomateriais cerâmicos e híbridos preparados pelo processo sol-gel

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR CELSO VALENTIM SANTILLI - Unesp

INVESTIMENTO R$ 414.568,00 e US$ 311.544,36 (FAPESP)

filme que gosta de água e não gosta de gordura. Por conta dessa característica, o filme forma milhões de gotinhas, me- nores que as formadas pelo vapor d'água, que espalham a luz. Dessa forma, mes- mo com o chuveiro ligado no quente, o espelho não fica embaçado. O mesmo material pode ser usado para proteger lonas de estufa de plantas na agricultu- ra e azulejos de prédios. Mesmo reco- bertos de poeira e de outros materiais indesejados voltam a ficar limpos com a chuva, porque a sujeira e a gordura não aderem ao filme.

Controlar e entender a passagem do estado sol para gel é o grande interesse do grupo da Unesp para a obtenção de materiais em temperatura ambiente. Por essa rota, foi obtido um material inovador, produzido a partir de moldes formados pelo arranjo periódico de agre- gados cilíndricos de moléculas surfactan- tes, substâncias químicas que atuam co- mo detergentes e são compostas por uma longa cadeia molecular. Reações químicas efetuadas no interior desses moldes permitem produzir em tempe- ratura ambiente fibras cerâmicas longas. "O nosso processo produz fibras cerâ- micas do mesmo tipo que as fabricadas hoje, mas que são obtidas geralmente por evaporação de metal acima de 1.000 graus Celsius, tornando mais caro o pro- duto", diz Santilli. •

DlNORAH ERENO

72 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

TECNOLOGIA

FARMACOLOGIA

Areia poderosa Sílica associada a vacina induz organismo a produzir mais anticorpos

DlNORAH ERENO

ma prosaica substância en- contrada na água do mar e nas rochas, a sílica, mostrou em testes ter potencial para auxiliar na indução dos me- canismos de defesa do orga-

HHT nismo quando administrada em associação com vacinas. "Nos estudos com camun- dongos vimos que a sílica usada como meio de trans- porte das vacinas melhora a

resposta de indivíduos que produzem pouco anticorpo, além de não ser tóxica", diz Osval- do Augusto Sant'Anna, pesquisador do Labo- ratório de Imunoquímica e diretor científico do Centro de Toxinologia Aplicada do Insti- tuto Butantan. Ele coordena o projeto Com- plexo Imunogênico desenvolvido em parce- ria com o Laboratório Cristália, empresa brasileira que apostou na novidade e está in- vestindo R$ 250 mil nos testes que podem le- var ao produto.

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 73

Arranjo de poros em forma de tubos longos

Abaixo, estrutura da sílica lembra o favo de mel

Chamada de sílica nanoestruturada, ela é produzida a partir de moléculas co- mo os surfactantes, compostos orgâni- cos utilizados na fabricação de detergen- tes e outros materiais, que funcionam como um molde. Sobre os surfactantes adiciona-se a sílica, também conhecida como dióxido de silício, composto por silício e oxigênio. "Os surfactantes são removidos depois por meio da exposi- ção do material a altas temperaturas, em um processo conhecido como calcina- ção", diz o professor Jivaldo do Rosário Matos, do Laboratório de Análise Tér- mica do Instituto de Química da Uni- versidade de São Paulo (USP), que, em parceria com a professora Lucildes Pita Mercuri, do Departamento de Química Analítica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), participa do mesmo grupo de pesquisa. Eles são os respon- sáveis pelos estudos de síntese e carac- terização físico-química das sílicas na- noestruturadas.

Após o processo de calcinação, o material é preparado para aplicação. A sílica forma uma rede com estruturas em forma de tubos longos, dispostos he- xagonalmente, em um arranjo de poros bastante organizado e uniforme, com diâmetro de cerca de 8 nanômetros, unidade de comprimento equivalente à bilionésima parte do metro. "A unifor- midade do tamanho dos poros é mui- to importante para a obtenção dos re- sultados", diz Matos. Dependendo da disposição dos poros e do tamanho, o material pode ter várias aplicações tec- nológicas, como catalisadores, nanos-

sensores e até servir como meio de imo- bilização de enzimas, fixação e liberação controlada de fármacos e adsorção (fi- xação de moléculas de uma substância na superfície de outra substância) de metais pesados e outros poluentes en- contrados na água.

Viagem promissora - O projeto de de- senvolvimento da sílica nanoestrutura- da como auxiliar de antígenos, substân- cias capazes de induzir a produção de anticorpos específicos contra uma toxi- na ou uma vacina quando injetadas no organismo, começou dentro de um ôni- bus no final de 2001. Numa das viagens diárias feitas entre Campinas e São Paulo, Osvaldo SanfAnna conversava com a profes- sora Márcia Carvalho de Abreu Fantini, do Laboratório de Cris- talografia do Insti- tuto de Física da USP, quando ela lhe contou que ha- via feito raio X de uma sílica nanoes- truturada, que era muito bonita estetica- mente porque lembrava um favo de mel com seus he xágonos perfeitos.

Imediatamente o pesquisador - que seguiu os passos do seu bisavô, o médi- co mineiro Vital Brazil, um dos pionei- ros nas pesquisas com soros antiofídi- cos, fundador e primeiro diretor do Instituto Butantan - lembrou de um es-

tudo realizado pelo Laboratório de Imu- nogenética há 20 anos com outro tipo de sílica, a coloidal, de forma gelatinosa. Ao injetar a sílica em altas concentrações nos camundongos verificou-se que os ma- crófagos, células do sistema imunoló- gico responsáveis por destruir corpos estranhos, tiveram sua atividade blo- queada. Isso facilitou a resposta de defe- sa do organismo. Assim, o projeto com a nova sílica começou a tomar forma.

Em setembro de 2004, o estudo foi apresentado por Márcia Fantini, respon- sável pela parte de caracterização físi- ca (avaliação estrutural) dos materiais no projeto, no Congresso de Química

do Estado Sólido, realizado em Praga, na República Tcheca,

onde teve muito boa aco- lhida por se tratar do

primeiro estudo com uma nanoestrutu- ra com potencial para ser usada co- mo veículo de vaci- nas. No início de 2005, esses estudos

foram apresentados pelo professor Osval-

do SanfAnna em um workshop realizado no Ins-

tituto Butantan. Na platéia es- tava a professora Regina Scivoleto,

farmacologista aposentada da USP, que gostou muito dos resultados e se encar- regou de fazer a ponte entre o Butantan e a Cristália, empresa sediada em Itapi- ra, no interior de São Paulo. A parceria foi selada com um pedido de patente de-

74 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

positado em setembro de 2005. Nos pró- ximos três anos deverão ser realizados os testes necessários para determinar a via- bilidade da sílica nanoestruturada como adjuvante, o nome dado a substâncias que auxiliam o transporte dos antígenos.

Os resultados dos testes realizados até agora correspondem às expectativas dos pesquisadores e da empresa. Misturada a antígenos, a sílica nanoestruturada foi testada na imunização de camundongos e comparada com as respostas aos mes- mos antígenos misturados a ou- tros adjuvantes conhecidos e usados em vacinas para que a resposta do organismo ocorra de maneira mais eficaz. "Se for in- jetada só uma suspensão de ví- rus ou bactérias atenuadas que compõem a vacina, sem nenhum adjuvante, ela pode funcionar ou não, porque existe uma reação rápida de metabolização da subs- tância pelo organismo que elimi- na a função protetora do medi- camento", diz SanfAnna.

Nos estudos comparativos foram usa- dos, além da sílica, o hidróxido de alumí- nio, o único transportador aprovado para imunização em humanos, além de adju-

O PROJETO

Complexo imunogênico formado por antígenos vacinais encapsulados por sílica mesoporosa nanoestruturada

MODALIDADE Centro de Toxinologia Aplicada - Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)

COORDENADOR OSVALDO AUGUSTO SANTANNA - Instituto Butantan

INVESTIMENTO R$150 mil (FAPESP) R$ 250 mil (Laboratório Cristália)

vantes oleosos utilizados em vacinação de animais, que são extremamente potentes, mas causam inflamações locais que po- dem levar a granulomas (massa de tecido cronicamente inflamado) e resultar até em feridas. A sílica teve uma ótima resposta nesse quesito, porque não provocou ne- nhuma reação cutânea nos camundon- gos. "Pelo que observamos, após a ino- culação por via intramuscular fica um pequeno ponto duro, que desaparece de- pois de 24 horas", diz Osvaldo SanfAnna.

ntígenos como veneno de cobra- coral, albumina bovina e outros foram utilizados nos testes com camundongos. Com todos, a sí- lica funcionou como um exce- lente meio de transporte. "Ela tem propriedades que melhoram a eficácia da vacina. Com isso acreditamos que poderemos pro- duzir imunidade com quantida- de menor de antígeno", diz o mé- dico neurofisiologista Eduardo

Pagani, gerente de pesquisa clínica da Cristália. Isso significa que será possível imunizar o dobro ou o triplo de pessoas com a mesma quantidade de antígeno.

Novos ensaios serão feitos com a sí- lica misturada à vacina da hepatite A, co- mercializada pela Cristália, para avaliar as respostas imune e inflamatória. "A va- cina da hepatite A foi escolhida como modelo porque ela é eficaz e segura", diz Pagani. "Se funcionar com ela pode fun- cionar para muitas outras." Se os testes confirmarem o que já foi observado, a sílica pode também substituir os adju- vantes oleosos na imunização de cavalos para a produção de soros antiofídico e antitetânico. Os estudos de toxicidade, como são padronizados e caros, ficam a cargo da empresa, que contrata um cen- tro especializado em toxicologia para re- alizar os testes. Só depois de terminada essa fase tem início a pesquisa clínica, que consiste em administrar o novo fár- maco em seres humanos e observar os efeitos que provoca. •

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f TECNOLOGIA

ZOOTECNIA

Miniporcos no laboratório Pesquisadores brasileiros já contam com suínos de pequena estatura e baixo peso para experimentos científicos

Minipig filhote: aos 8 meses tem 16 quilos, enquanto o convencional possui 70 quilos aos 4 meses

I ÂH os 8 meses de idade, os W porquinhos têm apro-

ximadamente 47 cen- tímetros de altura, 88 centímetros de com- primento e pesam 16 quilos, enquanto um membro da mesma es-

pécie criado em granjas para abate já possui 70 quilos com 4 meses de vida. Essa diferen- ça de tamanho foi conquistada há cerca de dois anos pela empresa paulista Minipig Pes- quisa e Desenvolvimento. Ela passou a pro- duzir o primeiro suíno brasileiro, com o nome de Minipig Br 1, que é selecionado es- pecialmente para ter dimensões adequadas para uso em experimentos científicos em instituições de pesquisa.

Devido à semelhança fisiológica, mor- fológica e bioquímica entre o suíno e o ser humano, o uso de porcos em pesquisas cien- tíficas para testes de medicamentos, por ex- emplo, não é nenhuma novidade. Na obra do médico belga Andreas Versalius, De hu- mani corporis fabrica, de 1540, já consta a ilustração do porco sendo utilizado em ex- perimentação, uma prática também realiza- da cerca de mil anos antes pelo médico gre- go Galeano. Mais próximos do homem que alguns primatas, eles têm o aparelho diges-

76 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127

tivo, os pulmões e olhos muito pareci- dos com os dos humanos. O coração também tem características morfológi- cas idênticas às do homem, assim como sua pele. Aliás, o porco é o único animal que, afora o homem, fica com a pele ro- sada depois de exposição solar intensa. No entanto, tão antiga quan- to o uso do suíno em pesqui- M sas científicas é a dificuldade de manipular o animal de granja, que atinge 1 ano de idade com 250 quilos. Assim, alguns experimentos tor- nam-se inviáveis.

A primeira tentativa de produzir suínos menores por meio de cruzamento e seleção aconteceu em 1949, no Insti- tuto Homel da Universidade de Minne- sota, nos Estados Unidos. Desde então, foram desenvolvidas várias linhagens de minipigs, entre elas a Minnesota, a Yuca- tan, proveniente do sul do México, a Kangaroo Island, do sul da Austrália, a Goettingen, da Dinamarca, e a também norte-americana Sinclair. Entre 1960 e 2004 foram publicados nada menos que 3.640 trabalhos científicos utilizando mi- niporcos como modelo experimental, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia.

Sociedade familiar - Na década de 1960, por meio da revista Scientific American, o médico veterinário Mário Mariano, então professor do Departa- mento de Patologia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), to- mou conhecimento do trabalho dos pesquisadores de Minnesota, que ten- tavam reduzir o tamanho do suíno para utilizá-lo como modelo experi- mental. Ele conta que seu interesse em fazer uma experiência semelhante no Brasil partiu dali, mas, depois de algu- mas tentativas frustradas de realizar o projeto na academia, a idéia esfriou. Foi só em 1999, quando uniu sua expe- riência científica com os conhecimen- tos de seu irmão José Roberto Mariano em administração de empresas e de- senvolvimento de projetos, e com a co- laboração da funcionária Maria Benedi- ta de Albuquerque Pereira, responsável pela manutenção e progressão dos cru- zamentos, é que ele conseguiu concreti- zar a idéia do minipig. Iniciou-se então a seleção de porcos com pequena esta-

tura para procriação em sua proprieda- de localizada no município de Campina do Monte Alegre, na região oeste do es- tado de São Paulo. Antes de abrir a em- presa a dupla fez ainda uma pesquisa de mercado para verificar a viabilidade econômica do projeto.

oi uma luta muito grande, uma experiência de erro e acerto até chegar à estabiliza- ção do tamanho adequado nos animais", recorda Mário, atualmente professor afiliado do Departamento de Micro- biologia, Imunologia e Para- sitologia da Universidade Fe- deral de São Paulo (Unifesp). Depois de cinco anos de ten-

tativas sem obter resultados positivos, ele pensava em desistir. Foi quando con- seguiram um animal na fazenda que aos 9 meses de idade tinha apenas 50 centí- metros de altura, aproximadamente. Quatro anos depois, os irmãos já esta- vam com o minipigBrl pronto para co- mercialização. O preço atual de cada ani- mal é de R$ 800,00, fora o frete. Nos Estados Unidos, animais semelhantes custam entre US$ 900,00 e US$ 1.200,00.

O porquinho brasileiro possui índi- ces compatíveis com os desenvolvidos nas colônias de minipigàe. outros países. Aos 11 meses de idade, os animais ma- chos atingem o peso máximo de 35 qui- los e as fêmeas, 30 quilos. Desde que o minipig passou a ser produzido no Bra- sil, há dois anos, foram usados 110 ani- mais para pesquisas científicas e 144 já estão vendidos para os laboratórios.

Uma das primeiras experiências com o minipig no Brasil foi realizada na Fa- culdade de Odontologia, na unidade da USP de Bauru, que resultou em publi- cações em periódicos internacionais e uma tese de mestrado. Esses animais também foram usados em vários traba- lhos de mestrado e doutorado da Uni- fesp. Só o grupo de Endoscopia Digesti- va daquela universidade já realizou quatro estudos na área com o uso do mi- nipig. Todos foram chefiados pelo pro- fessor Ângelo Paulo Ferrari Júnior. Um deles foi o tema do mestrado de Rodri- go Azevedo, com o título Modelo expe- rimental de manometria e efeito do mi- dazolam e propofol no esfíncter de Oddi de Minipig Brl. "A praticidade do peque- no porte do animal e a similaridade com

a anatomia do tubo digestivo do ser hu- mano são as grandes vantagens da uti- lização deste modelo em estudos expe- rimentais", diz Azevedo. Pesquisadores de outros centros, como o Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clíni- cas da Faculdade de Medicina da Uni- versidade de São Paulo, do Instituto de Ciências Avançadas em Otorrinolarin- gologia (Icao) e da Faculdade de Vete- rinária da USP já usam ou solicitaram a aquisição de animais.

Pequenas mães - Na seleção que re- sultou no minipig, os irmãos Mariano selecionaram as matrizes com caracte- rísticas de serem "boas mães", pequenas e com baixo índice de gordura. Todas as matrizes e reprodutores selecionados não chegam aos 40 quilos. Mário enfa- tiza que a criação desses animais não se- gue as técnicas de produção industrial de suínos, que costuma mantê-los em gaiolas, mas segue os critérios de bem- estar animal da Organização Mundial da Saúde (OMS). As matrizes parem em baias com cama de capim e os leitões desmamados são transferidos para áreas com piso de 80 centímetros de marava- lha de pinho que auxilia na higieniza- ção do ambiente. Quando adultos, eles vão para baias abertas com piquetes gramados para o pastoreio.

Os animais são vacinados contra seis tipos de doença e vermifugados para o controle de parasitos. Os dejetos, após tratamento, são utilizados para aduba- ção da pastagem. A manutenção do ani- mal, o transporte para os laboratórios e toda assistência médica nas áreas de anestesiologia, raios X, ultra-sonografia e cirurgia geral também foram facilita- dos devido a convênios da empresa com hospitais veterinários. A empresa pro- duz e oferece a ração apropriada para os animais e até assistência na elaboração de projetos de pesquisa.

"É bom lembrar que nós só dispo- nibilizamos porcos para projetos cien- tíficos aprovados por uma comissão de ética", enfatiza José Roberto. O uso do suíno para a pesquisa é direcionado para áreas de investigação, como trans- plante de órgãos, toxicologia, testes pré- clínicos e outras. "O minipig é também um modelo ideal para a realização de testes pré-clínicos com novos medica- mentos e para substituir os cachorros nos experimentos." •

PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 77

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CAPA

CIÊNCIA POLÍTICA

Pesquisas eleitorais, o mistério saboroso das eleições que faz mil falar por milhões

CARLOS HAAG

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Tão inteligente quanto esper- to, Leonel Brizola, numa de suas inúmeras campanhas, saía pelas ruas perguntando a cada passante se ele já fora entrevistado para uma pes- quisa de opinião eleitoral. "Eu também nunca fui", as- severava o gaúcho após ou- vir, quase sempre, um "não" do seu interlocutor. No mês passado, o candidato à Pre-

sidência Geraldo Alckmin igualmente prefe- riu desprezar os números ao classificar de "piada" os resultados de uma pesquisa que não lhe era favorável. "Eu só falo de coisa sé- ria e isso é uma piada. Você leva isso a sério?", perguntou aos jornalistas que o acompanha- vam. "A cada eleição se repete a controvérsia sobre o desempenho dos institutos de pes- quisa durante a campanha eleitoral, questi- ona-se se os números afetam o voto etc. Is- so ocorre pela diferença de ethos que move políticos, jornalistas e coordenadores de pes- quisas sobre elas. Candidatos, por exemplo, tendem a desprezá-las quando o resultado não é bom e vice-versa", explica o cientista po- lítico Alberto Almeida, coordenador da FGV Opinião e autor do livro Como são feitas as pesquisas eleitorais e de opinião (Editora FGV) e que lança agora o estudo Por que Lula?.

Afinal, dá para confiar em pesquisas elei- torais? Elementar, meus caros Brizola e Alck- min, responderia Sherlock Holmes, que, em O signo dos quatro, revela o curioso mecanis- mo que movimenta as sondagens eleitorais.

"Embora o homem individual seja um enig- ma insolúvel, o agregado humano represen- ta uma certeza matemática. Nunca se pode predizer, por exemplo, o que fará um ho- mem, mas é possível prever as atitudes de um certo número deles. Os indivíduos variam, mas as porcentagens permanecem constan- tes", já entendia, no século XIX, o detetive. "Lembro, quando criança, de ter assistido a um comício do Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960. Foi a última cena de campanha do Brasil rural. O país acordou do pesadelo militar, 29 anos depois, para eleição de 1989, urbano e telemaníaco. As campa- nhas deslocaram-se dos palanques para os estúdios de televisão, governadas pelas pes- quisas eleitorais, que, em tese, expressariam os caprichos da opinião pública, um milagre estatístico que faz mil pessoas falar por mi- lhões", observa o jornalista Maurício Dias.

"Desde a democratização, as pesquisas indicam erros e acertos nas táticas de cam- panha, redirecionam estratégias, incentivam desistências, forçam alianças, fornecem ele- mentos para programas de governo e alteram a agenda de candidatos", analisa o sociólogo Antônio Teixeira Mendes, do Centro Brasi- leiro de Análise e Planejamento (Cebrap). "Por tudo isso, elas não podem mais ser vis- tas como figurantes no cenário eleitoral. Os candidatos sofrem o impacto direto da'dan- ça dos números': bons resultados em pesqui- sa significam apoio político, contribuições fi- nanceiras da área empresarial, talvez mais espaço na mídia. O oposto pode representar perda de aliados, pressões intrapartidárias,

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apatia, crise e até mesmo desistência." Ou na definição algo crua do ex-presi- dente norte-americano Richard Nixon: "Os agentes do serviço secreto protegem os candidatos contra os psicopatas e os pesquisadores de opinião os protegem contra os eleitores". Apesar de todo esse poder, as pesquisas são um mistério para os eleitores e mesmo para muitos jorna- listas que, muitas vezes, interpretam er- radamente o gingado numérico. "Na verdade, não se acredita em pesquisa porque se sabe como ela funciona, mas simplesmente por- que funciona", lembra Mendes.

E que não se duvide disso. A média de acerto dos quatro gran- des institutos brasileiros de pes- quisa (Ibope, Datafolha, Vox Po- puli e Sensus) está em padrões internacionais: considerando os números referentes às eleições presidenciais a partir de 1989, a média de acerto é superior a 90%. A de- mocracia agradece essa precisão. "Afinal, as pesquisas criam fatos políticos, na me- dida em que reduzem o custo da infor- mação do que está ocorrendo politica- mente no país. Ela virou um fenômeno importante para os cidadãos, ajudando- os a decidir, a refletir e a julgar aqueles que se apresentavam recomendando, de- sejando ou pedindo seu voto", observa o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. "Esses tipos de fatos criados pelas pesquisas são bem-vindos, porque são um ingrediente indispensável para tornar a democracia não apenas um bem coletivo, mas um bem barato tanto quan- to possa ser", assevera o pesquisador. Há, no entanto, quem considere o instrumen- to como uma"espetacularização"das elei- ções, transformadas em "corrida de cava- los" da qual se exclui a discussão política séria. "Mesmo que isso fosse verdade, te-

mos que ponderar que essa conversão da política em esporte faz com que o pú- blico fique mais atento para o pleito e, nesse contexto, acabe se inteirando mais sobre plataformas de candidatos etc. Os eleitores ganham informação política com a divulgação e discussão das pes- quisas pela mídia", diz Lydia Miljan, da Windsor University, do Canadá. Infor- mação é um bem precioso.

em, se concordamos que o in- grediente é indispensável, é pre- ciso entender de que forma ele é usado na "cozinha" eleitoral. O primeiro mistério que ronda as pesquisas é a amostragem. Como poucos podem falar por tantos e, no final, tudo dar cer- to? "Tamanho não é documen- to", responde Alberto Almeida. A mania por pesquisas iniciou- se em 1916, nos Estados Unidos,

quando a revista The Literary Digestpas- sou a enviar milhões de questionários para todos os eleitores que conseguiu lis- tar (também de olho em futuros assi- nantes) e acertou, com precisão razoá- vel, os resultados da eleição presidencial daquele ano em diante. Em 1936 repe- tiram (e aumentaram: enviaram 20 mi- lhões de questionários) a dose, com um conceito de pesquisa que consistia em atingir o maior número de pessoas possí- vel. Um ano antes, mais modesto, Geor- ge Gallup fundou o American Institute of Public Opinion, onde desenvolveu um método mais científico de pesquisa, baseado em amostragem. Para conquis- tar os jornais prometeu prever o ganha- dor da eleição de 1936, em que concor- riam Franklin Roosevelt e Alf Landon.

A Digest, que enviara 20 milhões de ques- tionários, afirmou que o último vence- ria o páreo. Gallup espalhou entrevista- dores pela América, falou com 3 mil pessoas e apostou em Roosevelt, que venceu o concorrente por uma margem de 19 pontos. O que houve?

A Digest enviara seus questionários para todos os donos de carro e telefones, parcela importante mas nada represen- tativa do país como um todo. "De nada adianta realizar milhões de entrevistas se os entrevistados não forem represen- tativos da população. É melhor realizar poucas entrevistas representativas", ex- plica Almeida. Como fez Gallup, basea- do na chamada amostra por cotas, o mé- todo adotado ainda hoje pelos institutos brasileiros de pesquisa. Nele, divide-se a população em subgrupos (homem e mu- lher, negro e branco, jovem e idoso etc.) e calcula-se o tamanho proporcional de cada um desses conjuntos. A partir dis- so, define-se o total de entrevistas a se- rem feitas, as quais serão divididas de acordo com as proporções encontradas para cada subgrupo. Quanto mais va- riáveis forem controladas na definição das cotas, melhor a representatividade da pesquisa, ou seja, o seu grau de simi- laridade com a população. O tamanho da amostra independe da população pesquisada. Esse sistema é barato, rápi- do e funcional. No Brasil, opta-se por um universo que gira em torno de 2 mil pessoas. Mas e a tal margem de erro?

Engana-se quem pensa que se trata de embromação dos pesquisadores, uma

forma de se safar caso uma previsão não se confirme nas urnas. "Existe sempre u- ma chance de aqueles que foram incluídos na amostra não serem perfeitamente re- presentativos da população toda. Assim, as estimativas estão sujeitas a diferenças entre os dados obtidos por meio da amostra e os da população pesquisada. Se estas diferenças forem aleatórias, são chamadas de erros amostrais, que podem ser calculados e controlados", esclarece Márcia Cavallari, diretora do Ibope. A margem de erro diz o quão perto a esta- tística da amostra cai ou está em relação ao parâmetro da população. Entra em campo o segundo ethos da pesquisa, co- mo observado por Alberto Almeida, o da mídia. "Para os jornalistas, nada mais frustrante do que uma campanha elei- toral em que os índices de intenção de voto dos candidatos não se alterem. A mudança é notícia e a continuidade não é. Muitas vezes, um candidato subiu de 30 para 32% em duas pesquisas com margem de erro de três pontos e, pela es- tatística, não houve alteração. Para o ethos do jornalista, isso é impossível de ser aceito e, provavelmente, a manchete do seu veículo será que o candidato X su- biu 2% na corrida eleitoral. A mídia pre- fere correr o risco de ficar com uma hi- pótese errada do que perder uma notícia", avisa Almeida. Para o coordenador de pesquisas, no terceiro ethos em cena, dá- se o inverso. Ele prefere não descobrir que houve uma mudança na tendência de votos a aceitar uma hipótese errada que colocaria sua confiabilidade em questão.

Mas não basta saber escolher, é pre- ciso saber perguntar. "As perguntas de um questionário são o centro de um projeto de pesquisas", assegura Márcia, que preconiza que elas sejam breves, ob- jetivas, claras e num vocabulário acessí- vel a qualquer eleitor. Há mesmo uma piada sobre isso. Um jovem monge foi advertido severamente por seu superior quando perguntou se poderia fumar en- quanto rezava. Faça a pergunta diferen- te, sugeriu um amigo. Pergunte se você pode rezar enquanto fuma. "A formula- ção do questionário afeta os resultados de uma pesquisa e por isso, muitas ve- zes, os resultados podem ser fabricados de maneira sutil. É comum que a mídia não apresente as perguntas como foram feitas, mas apenas o seu resumo. O cida- dão precisa ter cuidado com isso e sem- pre buscar saber a íntegra das questões", adverte Almeida. "A pesquisa é um ex- celente instrumento de marketing, des- de que se tenha consciência de seu po- der e de seus limites", adverte a diretora do Ibope. Afinal, por melhor que seja a pergunta, ela será feita por um humano. E errar é...

Opiniões - "De nada vale ter uma amostra perfeita e um questionário sem falhas se os entrevistadores erram ou fraudam os questionários. Eles estão apenas colhendo informações e isso não lhes dá o direito de expor suas idéias ou contrapor opiniões. Uma equipe de campo bem treinada e profissional é elemento-chave do sucesso de qualquer instituto de pesquisa", avalia o pesqui- sador. Há regras para conduzir as en- trevistas que incluem instruções como

nunca entrevistar pessoas acompanha- das por terceiros (a tendência é respon- der o que o acompanhante gostaria de ouvir), não se entrevistar mais de uma pessoa de um grupo, não importando se o grupo é formado por duas ou mais pessoas etc. A vida de entrevistador não é nada fácil. "Em 1998 fizemos uma pesquisa no Rio de Janeiro. Na Zona Sul, por exemplo, foi preciso trazer en- trevistadoras com a 'cara' para que os passantes evitassem segregá-las, como fizeram com profissionais de fenótipo mais popular. Já na favela da Rocinha, fomos abordados por homens arma- dos e os entrevistados respondiam a questões de olho neles, assustados", lembra Almeida. A modalidade do tra- balho de campo, aliás, diferencia os ins- titutos brasileiros.

O Datafolha, criado em 1983, como um departamento de pesquisas do Grupo Folha da Manhã para realizar sondagens de opinião com "rigor técnico e agilida- de", prefere pesquisar nas ruas. "Temos no nosso DNA o espírito do jornalismo. Além disso, hoje é difícil o acesso a con- domínios de luxo e só se entra nas fave- las após um acordo com o tráfico", ob- serva Mauro Paulino, há 20 diretor-geral do Datafolha, que, a partir, de 1995, foi transformado numa unidade de negó- cios. O Vox Populi, por sua vez, só faz entrevistas a domicílio. "Isso aumenta a possibilidade de controle de fluxos no campo. A pesquisa ideal é aquela que dá a mesma chance de um integrante de um determinado universo ser incluído na amostragem", acredita Marcos Coim- bra, diretor do instituto. Apesar da cren- ça no instrumento de seu trabalho, o pesquisador tem ressalvas sobre o limi- te real das pesquisas. "Uma intenção de voto é apenas uma intenção de voto. Ainda não temos um número grande de

eleições para entender o padrão de com- portamento do eleitor brasileiro. Em 506 anos de história, essa é a quinta eleição direta seguida no Brasil", lembra. Daí a "juventude" dos institutos de pesquisa.

O pioneiro dentre eles, o Ibope, foi criado em 1942 por Auricélio Penteado, contrariado dono da rádio Kosmos, de São Paulo, que, diziam pesquisas apó- crifas da época, era a emissora menos ouvida. Usando as técnicas desenvolvi- das por Gallup, Penteado logo desco- briu que o seu futuro não estava nas on- das do rádio (efetivamente a Kosmos era um desastre), mas na crista das pesquisas. O pri- meiro teste do novo instituto foi dos mais inusitados: Ary Barro- so, vereador carioca, disputava com Carlos Lacerda qual seria o melhor lugar para edificar o fu- turo Maracanã. O compositor defendia um terreno no Derby Club e o "Corvo", a restinga de Jacarepaguá. O criador da Aqua- rela do Brasil sugeriu que o Ibo- pe fizesse falar a voz popular e venceu a parada com 88% dos cariocas a seu lado. "A ação de Barroso colocou em suspenso a idéia de representação par- lamentar, indicando, ainda que indire- tamente, o fato de os representantes da população não se interessarem em co- nhecer a vontade daqueles que os ha- viam elegido. A grande maioria dos re- presentados, evocados em discursos, mantinha-se restrita ao papel de elei- tor/consumidor, devendo escolher os produtos políticos elaborados pelos produtores políticos", nota o historia- dor Áureo Busetto, da Universidade Es- tadual Paulista (Unesp). A democracia nacional crescia com pesquisas.

Em 1953 veio o teste maior do Ibo- pe, capaz de prever a vitória, em São Pau- lo, de Jânio Quadros. Como o eleito, o su- cesso da pesquisa reviraria o Brasil pelo avesso. "Embora não fosse percebido pe- la maioria do eleitorado, o comprome- timento entre órgãos e profissionais da imprensa era conhecido por grupos po- líticos e pelas elites intelectuais. Assim, as prévias eleitorais dadas pela impren- sa, antes do Ibope, eram meras peças de propaganda partidária ou de candida- turas", conta Busetto. "O prognóstico preciso do Ibope foi um passo impor- tante para a redenção e a qualificação da pesquisa de opinião pública na seara po-

lítico-eleitoral." A reação veio com o jei- tinho brasileiro. Se antes os jornais es- cancaravam "certezas" duvidosas e que se contradiziam nas suas capas ("Fulano tem tantos por cento do eleitorado e vai ganhar de barbada"), depois do Ibope, foi preciso maior cuidado para agradar ao leitor. Inventaram-se institutos de fa- chada, como o Epil ou o Ipê, que "garan- tiam" precisão científica de resultados, embora o método continuasse o mes- mo: estava na frente quem pagasse mais ou cuja vitória interessasse ao jornal.

fetuamos duas pesquisas básicas com a finalidade de estabelecer as 'áreas de conhecimento e ig- norância' do fato pesquisado (as eleições) e o estudo da opinião pública diante dos problemas que carecem de solução e os ho- mens que seriam capazes de re- solvê-los." Esse era o "método" adotado pelo Ipê, nas palavras de seu diretor. Era só o começo dos problemas do Ibope. Em

1954, na eleição estadual paulista, esta- vam polarizados Jânio e Adhemar de Barros e todos queriam acertar o desen- lace do pleito. Mesmo a Rádio Record arriscou o seu palpite: JQ. E, por uma coincidência infeliz, foi a única a acer- tar. O Ibope dera a vitória a Adhemar (que perdeu por apenas 1%) e caiu nas mandíbulas dos jornais. "Se nos fosse dado usar uma gíria, diríamos que o Ibope está avacalhado", atacou o Diário da Noite, de Assis Chateaubriand, que temia a concorrência científica do ins- tituto de Auricélio. Chegou mesmo a fa- zer uma série de reportagens com um vidente armênio, Sana-Khan, que pro- fetizava coisas como "há três estrelas ju- piterianas no destino de Jânio", forma de açodar o Ibope e colocar em questão a pesquisa eleitoral por amostragem ao afirmar que o sobrenatural estava mais bem equipado do que ele.

Foi difícil recuperar a credibilidade da estatística eleitoral junto aos brasilei- ros para, em 1984, sofrer outro baque, desta vez com o Instituto Gallup. Jânio estava novamente em cena, desta vez en- frentando Fernando Henrique Cardoso. Para o Gallup havia um empate técnico. "A vontade política da mídia era a vitó- ria de FHC e ela perdeu a aposta. Eles endoidaram o eleitorado", observa Mar- cus Figueiredo, do Iuperj. Os institutos

de pesquisa perceberam que era preciso cuidado com o andor e ainda mais com a imprensa, fechando-se mais na profis- sionalização para garantir a competiti- vidade por competência. Seja como for, as pesquisas tinham chegado para ficar. "Desde o início dos anos 1980, as pes- quisas políticas na América Latina têm se constituído num evento central ao processo de redemocratização", afirma o cientista político Fabián Echegaray, da Market Analisys Brasil. Elas foram, ob- serva, um veículo-chave para checar a limpeza do voto e desencorajar a fraude eleitoral, uma prática comum até então em vários países da América Latina. "Em casos como os da Argentina e Venezue- la, a divulgação das pesquisas chegou mesmo a impedir tentativas de golpe; elas também desmistificaram o discur- so ditatorial sobre o exagerado preço a pagar pela volta de um regime eleito e civil; e deram espaço para o povo, en- fim, expressar seus desejos e vê-los res- peitados", analisa.

Reaqan - Nem sempre porém. Foi ba- seado em pesquisas cujos supostos da- dos indicavam o desejo popular de romper com a Constituição que, em 1992, Fujimori deu um golpe de Esta- do no Peru. Durante a administração Reagan houve, conta Echegaray, tam- bém uma onda de pesquisas eleitorais fraudadas, patrocinadas pelo governo norte-americano para consolidar os in- teresses dos Estados Unidos em várias regiões. "Uma conseqüência direta des- te mau uso das pesquisas foi a repre- sentação incorreta da verdadeira agen- da política e um pobre conhecimento sobre quais eram os assuntos prioritá- rios." Daí a pergunta inevitável: as pes- quisas afetam o voto? "Sim. É racional que o cidadão considere a escolha de uma opção com mais chances de vi- tória e a possibilidade de um segundo turno. O curioso é que a divisão em turnos foi feita justamente para incen- tivar as pessoas a expressarem suas pre- ferências reais, ao menos no primeiro turno. No Brasil, por vezes, antecipa-se o voto útil para esta fase, sem dúvida alimentada pela valorização das pes- quisas eleitorais", acredita Alessandra Aldé, do Iuperj.

Há mesmo jargões para indicar esse movimento: os efeitos bandwagon (lite- ralmente o carro abre-alas de um circo

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e indicativo do candidato com maiores chances de vencer e, logo, atrativo para a maioria que prefere seguir o movimen- to geral e apostar no vencedor) e under- dog (o "pária", o candidato C, "lanterni- nha", em quem se vota para alavancar o B, que se deseja, e forçar a definição de uma eleição num segundo turno com o A, que não se quer). As pesquisas, então, empurrariam o eleitor para um lado ou outro e deveriam, por esta razão, ser sub- metidas a controles, como a proibição de sua divulgação num período de tem- po anterior ao pleito (em vários países, elas são totalmente proibidas ou devem ser interrompidas várias semanas antes de uma eleição). "Um eleitor é submeti- do a um grande volume de informações sobre os candidatos, denúncias, feitos etc, e formará a imagem de cada um de- les. Essas informações todas serão filtra- das de acordo com as preferências, vi- sões de mundo e simpatias dos eleitores. Uma das informações que pode (ou não) chegar ao eleitor é a pesquisa. Note- se: é uma dentre um vasto universo", ava- lia Almeida. "A influência direta das pes- quisas não é algo a ser suposto, mas provado. Afinal, o eleitor pode saber das pesquisas e duvidar da veracidade delas ou simplesmente desconhecê-las. Não é óbvio que pesquisas influenciem o voto e até hoje não houve uma pesquisa cien- tífica que provasse essa hipótese. Pode- se dizer que candidatos bem colocados nas pesquisas têm mais recursos, ani- mam seus partidários etc, mas só isso."

Para Almeida, o mesmo vale para a suposta manipulação de pesquisas feitas por institutos sérios e conhecidos. "Quan- do se levanta essa questão, é preciso ge- rar um dado público que comprove isso. Caso contrário, é mera suspeita, sem base científica." Teixeira Mendes concorda com o pesquisador. "A avaliação do pú- blico e o confronto com os resultados fi- nais tornam a manipulação um suicídio mercadológico." Ele igualmente não vê possibilidade na determinação precisa do grau em que uma pesquisa afete a de- cisão de um votante, embora reconheça que ela tenha impactos na eleição. "Bas- ta um candidato subir nas pesquisas para sofrer um bombardeio dos outros, que cessa assim que ele despenca nas inten- ções de voto." No bom sentido, o preço da liberdade democrática é a eterna vi- gilância: entenda a "dança dos números", mas não se afogue neles. •

ECONOMIA

Asas do

desejo Crise da Varig revela situação precária da aviação civil brasileira

fuma curiosa ironia, no ano em que se celebra o feito centenário do brasileiro que primei- ro conseguiu, a custo, arrancar um avião do solo, os aeroportos na- cionais estão coalhados de aeronaves as mais modernas, que sobem aos céus com grande facilidade, mas estão

presas ao chão por problemas econômi- cos. A questão chegou mesmo a tocar os brios pátrios. O próprio presidente Lu- la, que se recusa a "colocar dinheiro pú- blico lá", reconheceu que a empresa era "uma paixão nacional". A menção do jingle natalino "Estrela brasileira no céu azul/ Iluminando de Norte a Sul", que se encerrava com o famoso "Varig, Varig, Varig" arranca, hoje, lágrimas.

O que teria levado a primeira empre- sa aérea brasileira, que chegou a figu- rar entre as 20 maiores companhias do mundo, com 87 aviões, 40 mil funcioná- rios e 44 destinos no exterior ao estado atual de penúria, brigando para manter seus balcões de atendimento nos aero- portos? "Já se cogitou mesmo estatizar a empresa para, depois, privatizá-la. Mas a

Varig já vem sendo gerida na prática co- mo uma estatal, de forma pouco trans- parente: por uma fundação que, na prá- tica, atua como uma autarquia, com um processo lento de decisões, uma estru- tura inchada de pessoal e mostrando, há anos, aparente despreocupação com re- sultados econômicos", avalia o engenhei- ro de transportes da Poli-USP Antônio Henriques de Araújo. De 2000 até hoje, a companhia já teve nove presidentes, nenhum com autonomia para tomar de- cisões efetivas. "A Varig fragmentou as linhas de comando dentro da empresa e para comprar, seja uma caneta, seja uma turbina, era preciso o aval de um sem- número de funcionários", observa o pes- quisador. No final de 2003, segundo Araújo, o número de funcionários por aeronave da companhia era mais do que o dobro da TAM ou da Gol, enquanto a produtividade total dos fatores da Varig era 86% da produtividade da TAM e 95% da VASP. Cada assento em um vôo costumava custar 30% a mais do que na concorrência. Varig, Varig, Varig...

Ainda assim, era vista como a em- presa brasileira por excelência, embora tivesse nascido, em 1927, por obra de um imigrante alemão, Otto Meyer, que, em Porto Alegre, ganhou isenção fiscal para

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• V +"* !IIÍ!

tocar o seu negócio aéreo pioneiro. Me- yer juntou-se com um consórcio alemão, trouxe o avião Atlântico para o país e reu- niu 550 outros filhos de imigrantes para constituir a primeira empresa de aviação comercial brasileira, a Varig. Já em 1931 mostrou sua faceta mais característica: a relação com o poder político. Em crise, recebeu apoio intenso do governo gaú- cho, iniciando a afirmação da empresa como "instituição" a ser preservada. Em 1944, com a guerra, o tedesco Meyer cede o posto ao brasileiro Ruben Berta. Então, a Varig dividia o espaço aéreo interno com a Vasp, empresa criada em 1933 por empresários paulistas e estatizada pelo es- tado de São Paulo, e com a Panair, nome abrasileirado que foi impingido ao ramo nacional da Pan American Airlines.

Símbolo - "Mas a Varig foi hábil no sen- tido de construir junto à sociedade bra- sileira uma imagem de empresa ligada aos interesses do país, um símbolo de modernidade, desenvolvimento e inte- gração nacional, das regiões entre si, e do Brasil com o mundo", observa Cris- tiano Monteiro, da Universidade Cândi- do Mendes, autor da tese de doutorado A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira.

O pesquisador revela o trabalho de Berta em manter sempre em funciona- mento a relação estreita do poder, pau- tada pelo clientelismo. "O Berta ajudou muito na campanha e eu gostaria que você olhasse com simpatia as pretensões da Varig, atendendo-a com boa vonta- de": foi nesse tom casual que Vargas pressionou seu ministro da Aeronáuti- ca, Nero Moura, a ceder as rotas da América do Sul para a jovem compa- nhia. Todos os presidentes, até FHC no seu segundo mandato, foram transpor- tados pela Varig. Amigo de Goulart e Brizola, Berta não pensou duas vezes em se unir aos militares que tomavam o po- der em 1964. Quando Costa e Silva de- cretou, por razões ainda obscuras, a fa- lência da Panair, a Varig foi "convocada" a assumir as rotas internacionais dela, tornando-se a número um do país. "Para além de questões de eficiência e competitividade, a construção de em- presa do país precisava sempre ser reno- vada simbolicamente", nota Monteiro. Daí o transporte das seleções de futebol, os favores aos políticos: em 1970 imple- mentou-se uma linha entre Brasília e Porto Alegre, não por acaso com a pre- sença do gaúcho Mediei e, durante o go- verno Collor, a criação de uma ligação

entre Maceió, terra do ex-presidente, e o Distrito Federal.

"Esse é o reconhecimento extensivo ao nosso governo que, desde a salvado- ra Revolução de 1964, achava-se volta- do para a inadiável obra de criar, no Bra- sil, condições para o desenvolvimento econômico acelerado", rezava o Relató- rio Anual de 1971 da companhia. Para o "Brasil Grande", uma "Varig Grande". "Se durante o período pré-64 vislumbrava- se a possibilidade de equiparar o trans- porte terrestre ao aéreo em termos de custos e propunha-se a oferecer preços populares, o paradigma da Varig pós-64 é outro", revela Monteiro. Os vôos feitos para Nova York tinham um Boeing 707 cuja metade de sua cabine era dedicada à primeira classe. O perfil do usuário de- sejável pela empresa era justamente o empresário rico, capaz de pagar bem por um serviço de luxo. Na relação com o poder, e isso não era privilégio da Varig apenas, incluía uma ligação direta entre as companhias privadas e o Ministério da Aeronáutica, baseada na Doutrina do Poder Aéreo Unificado.

Economicamente, a aviação flutua- va baseada em dois pilares concedidos pelo elo com a Aeronáutica: a "realidade tarifária" (ou seja, os passageiros deve-

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riam arcar com os custos do transporte, elitizando o setor) e a "competição con- trolada", que evitava a superposição de rotas e horários. Nesse contexto, a Varig saiu-se melhor do que as outras, pois ga- nhou o monopólio das linhas interna- cionais, prerrogativa perdida apenas no governo Collor. Com o anteparo militar, nem sequer tinham que se preo- cupar com as pressões trabalhis- tas, pois os líderes sindicais eram perseguidos pelo novo regime. Com a chegada da redemocrati- zação, o mundo ideal da aviação comercial brasileira viu-se joga- do na realidade. Aos poucos: num primeiro momento, as au- toridades aeronáuticas viram-se esvaziadas de poder diante de seus colegas econômicos, para os quais o controle da inflação era uma prioridade e incluía um controle rí- gido sobre as tarifas aéreas. As turbulên- cias maiores estavam por vir com a che- gada ao Estado brasileiro das nuvens neoliberais, que preconizavam o fecha- mento dos mecanismos de interlocução entre atores estatais e não-estatais, forta- lecendo um estilo "tecnocrático" de ges- tão da economia, como observa Mon-

teiro. O primeiro impacto foi a privati- zação da Vasp e a entrada em campo de Wagner Canhedo, com um estilo agres- sivo de concorrência que assustou as con- correntes. Um ano depois, o empresário se veria enredado numa CPI, acusado de participar de um esquema de favoreci- mento com PC Farias.

emia-se mesmo que se repetisse, no Brasil, a desregulamentação das companhias aéreas, efetiva- da nos Estados Unidos durante o governo Reagan. "No governo Collor, havia a retórica pró-mer- cado, que admitia o aumento da competição, mas, do ponto de vista prático, mantinha posturas conservadoras", lembra Montei- ro. "Mas no primeiro mandato de FHC prevaleceu uma versão

ortodoxa do estilo tecnocrático de ges- tão, não havendo espaço para mecanis- mos políticos formais de mediação en- tre agentes econômicos, sindicatos e Estado. Isso, infelizmente, num momen- to em que as empresas aéreas amadure- ciam e se esforçaram em criar vínculos fortes com seus trabalhadores, após anos de descaso", nota o pesquisador. Montei-

ro lembra que o setor foi objeto de pres- são crescente do Executivo para dimi- nuir suas tarifas sob pena de se abrir o mercado doméstico para empresas es- trangeiras. Na "guerra de tarifas" houve benefícios: um aumento de 20% no flu- xo de passageiros. "Mas eles duraram pouco, pois, a partir de 1999, como fim da paridade entre o real e o dólar, o se- tor entrou em crise profunda." Após dé- cadas de relação com o poder, a Varig acreditava nele incondicionalmente.

"A desvalorização da moeda afetou as finanças das empresas brasileiras e as receitas operacionais obtidas no perío- do tiveram como contrapartida um au- mento das despesas financeiras, geran- do grandes prejuízos, já que recebiam em real, mas tinham dívidas (de leasing, juros de financiamento, pagamento de aviões e peças) em dólar", explica Araú- jo. Numa empresa bem administrada is- so é um grande problema. O que se pode pensar no caso do "elefante branco" em que se transformara a Fundação Ruben Berta, inchada e ineficiente? "A Varig, nesse período, teve um crescimento de despesas financeiras de 642,2% diante de um aumento da receita operacional de 107,8% e dos custos operacionais de

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139,2%." Ainda assim, a empresa seguiu montada num imaginário de crescimen- to, no espírito da "Varig grande". Mes- mo sem a "realidade tarifária", política rompida com o congelamento de preços do Plano Cruzado, a empresa "tem que entrar com seu necessário gigantismo, que lhe exige crescimento constante, marca de líder latino-americana", como dizia um relatório interno da companhia. Novas aeronaves foram compradas, mes- mo quando se tirou da empresa o mo- nopólio das linhas internacionais. "A es- trutura da empresa cresceu muito para um aumento de demanda que não se concretizou", avalia Monteiro.

Smiles - O discurso muda e começam demissões e cortes. "Na busca de uma nova identidade, a Varig ainda preserva o lema da empresa a serviço do país', as- sumindo o lucro dos acionistas como prioridade em relação aos demais com- promissos ufanistas com a nação, que ficam em último lugar." Mas a Nova Va- rig, integrada à Star Alliance e com um programa inovador de milhagens (o Smiles), embora tente se manter na li- nha de empresa global ligada ao merca- do, não consegue manter os pés no chão

e continua a comprar novos aviões. Fo- ram 39 entre 1997 e 1998, um investi- mento de US$ 2,7 bilhões, pouco antes da desvalorização drástica do real, que trouxe, de quebra, a diminuição da pro- cura por viagens internacionais e a redu- ção dos descontos nos vôos domésticos e redução geral do número de passagei- ros. "Curiosamente, os produtos volta- dos ao público de maior poder aquisi- tivo permaneceram, indo de encontro à lógica que, desde a década de 1970, ani- mara a política de desregulamentação americana, qual seja, a popularização do transporte aéreo", avalia Monteiro. Nes- se ínterim, chegam concorrentes que pensam com realismo, como a TAM, que optou pelas linhas domésticas, e, mais recentemente, a Gol. "Se persistir a situ- ação atual de crise, pode-se prever, no curto prazo, a falência das companhias tradicionais brasileiras e deverão sobre- viver apenas as de baixo custo, com o perfil da Gol."

Para ele, seria melhor empregar os US$ 2,5 bilhões, que muitos exigem que o governo injete na Varig, na recupera- ção da malha viária e na eliminação dos gargalos portuários. "A solução para a empresa passa por soluções de mercado

e por uma reestruturação gerencial e operacional que possibilite a geração de lucros que possam ser reaplicados em programas de aumento de produtivida- de e eficiência. Uma coisa é certa: quem deve pagar por isso é a empresa e seus acionistas e não, mais uma vez, o con- tribuinte brasileiro." Sérgio Lazzarini, co- ordenador do Centro de Pesquisas em Estratégia do Instituto Brasileiro de Mer- cados de Capitais (Ibmec), concorda com Araújo. "Não há nada de estratégico no setor aéreo. Se uma rota é lucrativa, não há dúvida de que haverá gente interessa- da em investir no setor. Grandes empre- sas estrangeiras têm buscado oportuni- dades no Brasil, mas existem restrições para estrangeiros explorarem conexões e rotas domésticas." Heloísa Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que somos um país continental com renda per capita baixa. "Dos 105 vôos do acordo entre Brasil e EUA, eles usam 93% da sua cota e nós, 47%. Não falta passageiro, mas avião. São empre- gos para outros países em prejuízo dos brasileiros." Se a praça é do povo, o céu precisa voltar a ser dos aviões. •

CARLOS HAAG

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T HUMANIDADES

SOCIOLOGIA

Macho ensimesmado ? GONçALO JúNIOR

mulher urbana brasi- leira do século XXI fala de tudo: queixa-se do parceiro, reclama do di- reito ao prazer, de suas preferências sexuais e quer ter salário igual. E faz de tudo também: toma iniciativas no re- lacionamento, trabalha e sustenta sozinha sua família cada vez mais.

Chega a dispensar pensão alimentícia, não se importa em dividir a conta do restaurante ou das despesas de casa - pe- lo contrário, exige isso às vezes. Tem si- do assim em escala crescente nas últimas três décadas. Por outro lado, não abre mão da guarda dos filhos e de ser ro- mântica - adora que lhe abra a porta, dê- lhe a preferência no elevador etc.

E o homem? Bom, este assiste ao avanço do sexo oposto com um nó na cabeça, em sua maioria. Ora parece in- timidado, ora acuado. Admitir que é ma- chista, jamais. Não são poucos os que partem para o confronto e tentam im- por sua condição cultural de domina- dor. Falam alto, gritam, batem, matam. Faz tempo, são freqüentes violências fí- sica, sexual, psicológica ou moral. Ou, mais sutilmente, demarcam território, reivindicam seu papel de responsável pe- lo sustento da casa.

Vive-se uma guerra não declarada dos sexos? Hoje não, sempre. A diferen- ça talvez seja de que, pela primeira vez, os machos não sabem exatamente o que fazer, como se observa no dia-a-dia - nos relacionamentos, no ambiente de trabalho, na cama. O problema está na dificuldade que ele tem para admitir que valores difundidos ao longo de mi-

lênios são cada vez mais questionados ou abandonados.

Tão complexo quanto entender o surgimento de termos como metrosse- xual - homem vaidoso, com hábitos fe- mininos - é conceituar o machismo ou dimensionar seu impacto negativo na vida social e econômica brasileira. O tema, por incrível que pareça, ainda é pouco estudado na universidade, em- bora as relações de desigualdade entre homens e mulheres tenham sido obje- to de algumas teses de mestrado e dou- torado na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo.

Rigor - Do ponto de vista histórico, o termo machismo está associado ao sis- tema social e familiar patriarcal ainda hoje difundido com rigor pela Bíblia, pelo Alcorão e por outros livros religio- sos. Prega-se que, como vontade divi- na, o pai deve ser o líder da família sob todos os aspectos. Outro conceito co- mum é a crença de que os homens são superiores física e intelectualmente às mulheres.

Alguns pesquisadores acham com- plicado falar em homens "acuados", uma vez que, no trabalho ou no lar, a violência contra a mulher não é novidade. Assim, a ascensão feminina não tem causado "rea- ção" masculina ou um contra-ataque. "O conflito sempre existiu, a novidade, tal- vez, é que as mulheres vêm mais e mais conquistando e mantendo espaços em quantidade e qualidade", afirma Eliza- beth Cardoso, que defendeu mestrado na Escola de Comunicações e Artes (ECA/ USP) sobre imprensa feminista brasilei- ra pós-1975 e atualmente é doutoranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH/USP

- pesquisa as personagens femininas de Lúcio Cardoso.

Para ela, no ambiente de trabalho, al- guns homens continuam a usar "estra- tagemas torpes". Desde assédio sexual a desqualificação constante da mulher. A pesquisadora recomenda, porém, que não se caia em generalizações. "Sabemos que o ser humano é dotado de comple- xidade e que temos reações masculinas diversas perante a escalada feminina ru- mo à diretoria e à presidência das em- presas e instituições." Mesmo assim, des- taca como uma das principais mudanças motivadas pela ascensão da mulher no meio produtivo (fora do lar) a valori- zação do modo "feminino" de gerenciar, de administrar. "Fala-se muito da flexi- bilidade feminina, da capacidade de atuar em múltiplas tarefas simultanea- mente, de diálogo, de lidar com o dife- rente, da humanidade que as mulheres imprimem em suas relações profissio- nais. Mas devemos frisar, até a exaustão, que todo esse discurso elogioso ao femi- nino não impede que as mulheres con- tinuem tendo menores salários que os homens e que ocupem cargos de chefia com menos freqüência."

Como observa Elizabeth, a indepen- dência econômica da mulher foi vista durante os anos 1970 e 1980 como o principal caminho para sua liberação so- cial, sexual e cultural do controle mas- culino. Mas os séculos de poder patriar- cal têm mostrado que suas raízes são profundas. Apesar disso, está forçando o homem a rever seus pontos de vista. "Talvez falte uma luta mais coletivizada, visto que as mulheres brigam em guer- ras individuais, cotidianas, silenciosas, conseqüência mesmo dos caminhos que o movimento feminista percorreu, mas

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Embora o machismo ainda seja dominante, conquistas das mulheres intimidam cada vez mais os homens

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essas conquistas se sobrepõem e no acú- mulo delas percebem-se melhoras para todas e todos".

Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira, em doutorado defendido na Fa- culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), analisou as repre- sentações das mulheres em jornais cana- denses na década de 1990. A hipótese central é que a mídia, através de um dis- curso que celebra a diversidade sexual, legitima e marginaliza identidades. Ela acredita que as "confusões" de sexos que apontam hoje têm a ver com papéis es- tabelecidos para os gêneros que às vezes contradizem a própria experiência do "ser" homem ou mulher. "Eu conheço homens que têm uma cabeça extrema- mente 'feminina' e vice-versa. E aí? O que acontece quando os homens não possuem aquelas qualidades ti- das como 'masculinas', o mesmo ocorre com as mulheres?"

O que ela percebeu foi que o mundo masculino é o "sério", "importante", o mundo dos ne- gócios, da política. O das mulhe- res é mais "cor-de-rosa", sem muita importância. "A mídia so- lidifica a mulher como mãe, ob- jeto sexual ou a profissional, que é mãe, esposa, jovem, magra e bela, ou seja, a supermulher, ou como a vítima, subordinada e subjugada ao mundo masculino. Assim, as homosse- xuais, as negras, as do Terceiro Mundo etc. são marginalizadas e/ou excluídas." O homem, no processo, é a norma, a re- gra, o modelo. "Acho que temos que es- colher se vamos trabalhar dentro dos estereótipos estabelecidos, tais como mulher é feminina, mãe, a caça etc, va- lendo o mesmo para o homem; quais os atributos ou qualidades inerentes ao gê- nero 'masculino'?"

Em seu doutorado na USP, Ellika Trindade investigou a perspectiva mas- culina dos temas paternidade, sexuali- dade e projetos de vida. Entrevistou so- mente homens. Apesar de eles não terem sido questionados quanto à ocupação crescente de espaço das mulheres, de modo geral, vêem a possibilidade de maior divisão de responsabilidades com elas, inclusive em questões financeiras, como algo benéfico e positivo para a re- lação e para eles mesmos, na medida em que as pressões também são divididas. Segundo ela, a crise que muitos homens

vivem na meia-idade não necessaria- mente tem relação com a "dominação econômica".

Tem a ver mais com o lugar social ocupado pelos homens no trabalho e com o significado que este universo do trabalho tem para o sexo masculino. O ser macho - aquele que executa e coman- da - pode ser vivido de modo crítico na medida em que a aposentadoria se apro- xima e a consciência de que se está enve- lhecendo, com as perdas daí decorrentes, é pensada. "No universo dos entrevista- dos, a crise da meia-idade foi lembrada principalmente em relação ao contato com os filhos, com o perceber que estes estão ingressando no mundo adulto, e também ao universo do trabalho, a apro- ximação da aposentadoria."

llika observa que, para alguns homens, conviver com mulheres no mundo do trabalho pode ser visto como motivo de temor ou de dificultador dos relaciona- mentos afetivos. No entanto, não se pode desconsiderar que a con- corrência com outros homens, marca do mundo do trabalho, também pode ser motivo de te- mor. "O fato de as mulheres tra- balharem fora pode ser visto co-

mo algo negativo se mantido o modo de pensar a educação como responsabili- dade apenas da mãe." Outros atores so- ciais, porém, podem desempenhar esta função, inclusive o pai. O que ocorre en- tão é que com a mulher que é mãe tra- balhando faz-se necessário rever este modo de pensar e ampliar a perspecti- va para outras pessoas que possam rea- lizar a tarefa de educação dos filhos, des- de membros da família até instituições educacionais.

A evolução e as causas da participa- ção feminina no mercado de trabalho brasileiro foram estudadas por Luiz Gui- lherme Scorzafave em seu doutorado na USP. Ele encontrou um "forte" aumen- to da participação feminina, principal- mente daquelas com 1 a 11 anos de es- tudo, entre as cônjuges e as pertencentes de todos os grupos raciais. Observou também os principais determinantes da mulher e de sua evolução. Concluiu que a educação teve papel fundamental no crescimento das taxas de atividade femi- nina nos últimos anos no Brasil. Além deste fator, destacou a importância da

variável idade e da variável binaria asso- ciada a mulheres cônjuges.

Scorzafave se concentrou na presen- ça da mulher no comportamento da economia e menos nos aspectos com- portamentais. Ele afirma que os estudos mais recentes demonstram que a dife- rença de salário entre homens e mulhe- res de mesma produtividade tem dimi- nuído no Brasil. Um dos fatores que explicam isso - ainda não há consenso - seria a redução da discriminação con- tra o sexo feminino. Em especial nas ge- rações mais novas. Ele lembra que alguns teóricos argumentam que a contribui- ção maior da mulher na renda familiar aumenta seu poder de barganha na to- mada de decisões dentro da família - onde será gasto o dinheiro, quem vai trabalhar etc.

Homens e mulheres vivem hoje trans- formações em todos os níveis sociais, mesmo que, num primeiro momento, não sejam percebidas de forma positiva. Ou boas para todos. Basta observar a po- sição de oprimidas das mulheres, dos ne- gros e de outras minorias sociais duran- te séculos. É o que afirma Ana Maria Capitanio, autora da tese Mulher, gêne- ro e esporte: a análise da autopercepção das desigualdades, da USP.

Para a pesquisadora, com as conquis- tas femininas, a socialização dos homens tende a mudar também e a sensação de estranheza se torna evidente. Com o tempo, entretanto, as transformações tendem a se acomodar. E essa dinâmica não afeta um lado só. E os conceitos de masculino e feminino também sofrem mudanças. "Não pense que também não é (ou era?) estressante para o homem ter que corresponder às expectativas sociais como ser o provedor, ser o melhor, o mais forte, o mais competente, entre ou- tros adjetivos exigidos pela sociedade ou até mesmo no contexto esportivo."

Ana Maria diz que é tudo uma ques- tão de socialização. Se as mulheres to- mam iniciativas até mesmo de relacio- namento, o que tradicionalmente foi um papel masculino, causará confusão na cabeça dos homens a depender de como ambos foram socializados. "O homem, grosso modo, pode 'achar' que mulheres mais independentes e que tomam a ini- ciativa são menos femininas, por exem- plo. Dependerá de qual é o ideal de mu- lher que ele tem para si. E ela também terá que entender isso." Talvez, acrescen-

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ta, ele se sinta ameaçado pelo fato de a mulher estar estudando mais, lutando pelos seus direitos, saindo de casa para trabalhar tanto para ganhar seu susten- to e da família quanto por satisfação pes- soal e tentando ter uma postura de igual com o homem.

Um livro que poderia servir de con- traponto para se compreender melhor o assunto no Brasil é Machismo invisível, da psicóloga mexicana Marina Castane- da, que acaba de ser lançado em portu- guês pela editora A Girafa. Basta ler al- gumas linhas, no entanto, para perceber que, apesar da opressão ser mais inten- sa contra as mexicanas, o problema ain- da é grave entre os brasileiros. Por isso é uma obra que fascina e assusta. Em en- trevista por telefone, Marina afirma que o machismo se manifesta de várias ma- neiras, nas situações mais triviais, sem- pre de forma sutil, o que dificulta sua percepção. "Não falo do que é evidente, mas das formas sutis que existem em to- das as classes sociais."

Exemplos? Os maridos não impe- dem mais as esposas de trabalharem, só que exercem vigilância integral. Querem saber onde estão e cobram explicações o tempo todo. Observa ainda que a ira não é socialmente permitida à mulher, ao contrário do choro, do medo, do temor, da ternura. Se eles são corajosos, elas de- vem ser medrosas, numa relação de de- pendência estabelecida. No mercado de trabalho, não é diferente. "O machismo deixa as pessoas de ambos os sexos inap- tas." Segundo ela, as mulheres avança- ram sim em direitos, mas os homem não caminham em paralelo.

Sexo - Marina identifica com clareza a gênese do machismo no cotidiano. Os homens passam toda a vida atendidos pelo sexo feminino e tendem a desen- volver uma personalidade infantilizada porque são cercados de devoção. Não aceitam críticas, não querem ser deso- bedecidos e acham que têm sempre ra- zão. Na era da informática, todavia, a

força física não conta muito porque não há sentido dividir o trabalho assim. "As forças globais econômicas e sociais vão levar a um equilíbrio de papéis. Não creio que vão na direção do con- fronto de sexos, mas o machismo não é economicamente eficiente."

A psicóloga lamenta que a socie- dade tenda a reproduzir modelos es- tereotipados que não permitem aos homens demonstrarem sentimentos. Seria um problema de educação, de formação familiar. Meninos e meninas são orientados para serem completa- mente diferentes. Outra distorção apa- rece entre as mulheres que ascendem a postos de comando e se tornam ma- chistas: como o homem, mostram-se autoritárias, despóticas. Justifica que essa é a forma de sobreviver. Ela acre- dita que os casais podem ser mais fe- lizes com mais igualdades. "É muito melhor redistribuir papéis e serem alia- dos. Afinal, a vida já é tão difícil, por que não unir forças?" •

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T HUMANIDADES

LITERATURA

Tradição sem impasse

Brasil perde um intelectual de verdade, à moda antiga: João Alexandre Barbosa

ransformou-se em lu- gar-comum chamar um professor universitário, seja ele ou ela quem for, de intelectual. A palavra perdeu o seu impacto e, em muitos casos, reduziu-se a sua

literalidade léxica: alguém com intelec- to, alguém que pensa sobre um assun- to. Talvez, pela ausência de verdadei- ros intelectuais, preferiu-se rebatizar os acadêmicos com o título, antes um pri- vilégio de poucos e, hoje, de pouquís- simos. Pois acabamos de perder um desses "bichos em extinção": o profes- sor João Alexandre Barbosa, morto no mês passado, aos 68 anos, em São Pau- lo, vítima de uma série de complicações renais que se seguiram a um AVC so- frido no início deste ano. "João Alexan- dre era intelectual de espécie bastante rara hoje. Estudioso da literatura, nun- ca se deixou deslumbrar pelas últimas teorias da moda. Em suas aulas e pales- tras assistia-se à transformação do co- nhecimento e da erudição em possibi- lidade de aprendizado e de apreciação de escritores", escreveu a professora de teoria literária Regina Zilberman, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Essa mágica é coisa de poucos ma- gos. Como Antônio Cândido, por exem- plo, seu orientador e responsável pela sua vinda para São Paulo, deixando Re- cife (onde nasceu em 1937), para ser as- sistente na Universidade de São Paulo (USP), logo após o golpe de 1964. Eis os intelectuais, de verdade, capazes de reler e redescobrir, sem alardes e modismos, o que se esconde por detrás das grandes obras literárias. Capazes de pensar o país e entender suas sutilezas. Capazes de pensar grande, mesmo que escrevendo de maneira humilde, acessível, gentil. João Alexandre começou como advoga- do, formado na Faculdade de Direito do Recife, mas não exerceu a profissão. Pre- feriu aventurar-se pelo jornalismo lite- rário, escrevendo no Jornal do Commer- cio de Pernambuco. A paixão pelo texto levou-o a integrar a equipe docente fun- dadora do curso de Jornalismo da Uni- versidade Católica de Pernambuco. Lá, convidado por Luiz Beltrão, desenvol- veu mais uma das virtudes de um inte- lectual de verdade: a capacidade de en- sinar com prazer e amar o que fazia.

Anos mais tarde, como contou num texto para a Folha de S.Paulo, já aposen- tado, foi procurado por um ex-aluno que lhe oferecia um posto numa univer- sidade particular e um salário que era o

dobro da aposentadoria que recebia da USP. Rejeitou. "Eu não queria ser vicia- do num salário que não fosse resultante do trabalho que, durante mais de 30 anos, consumira minha vida física, inte- lectual, afetiva e emocional, pois não me aposentara para ganhar mais, e sim para poder aproveitar aquilo que, porventu- ra, ainda me restava de vida intelectual útil, realizando algumas coisas que a agi- tação da vida de um professor tornava difícil ou mesmo impossível de cum- prir." Ah, sim. Grandeza é outro atribu- to dos reais intelectuais.

Não parou de lecionar por três déca- das. Iniciou a carreira em 1963, em Re- cife, em 1965 estava na turma que for- mava a Universidade de Brasília. A coisa durou pouco. No mesmo ano, ao lado de 200 colegas, foi expulso da faculdade pelo regime militar. Daí a boa vontade com que aceitou o convite de Cândido para a USP, onde chegou em 1966. "Mas eu não era um orientando comum, não. Já era bem madurinho e sabia me virar", brincava ao lembrar de seu doutora- do, concluído em 1970 (com bolsa da FAPESP, que também lhe concederia a oportunidade de um pós-doutoramen- to na Universidade Yale, nos Estados Unidos). Suas releituras sobre José Verís- simo, retomadas em 1975 em A tradição

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do impasse, foram fundamentais para que se repensasse a visão da história da literatura brasileira. Um ano antes, assu- miu a cadeira de teoria literária. Gosta- va de contar que a bolsa da FAPESP o ajudara a sustentar não apenas o intelec- to, mas uma família de quatro pessoas. Em 1980 era professor titular de teoria literária e literatura comparada da USP, onde excerceu diversos cargos.

O mais notável deles foi a presidên- cia da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), de 1988 até sua aposen- tadoria, em 1993, aos 56 anos. Fez da Edusp um marco editorial. "Quando eu assumi, a Edusp era uma co-editora e se limitava a emprestar o selo e o prestígio da USP para editoras privadas ganharem dinheiro", contou numa entrevista. De- mocrata empedernido, só aceitou ser di- retor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da univer- sidade paulista após ser eleito pelos três corpos acadêmicos. Daí a sua negativa em se candidatar a reitor se não fosse por eleição direta, ainda que as pesquisas o indicassem como favorito. "Não tenho paciência para essas coisas", dizia. Prefe- ria ações concretas à política dos gabi- netes e saiu da FFLCH para assumir a pró-reitoria de Cultura e Extensão Uni- versitária, onde criou projetos referen-

João Alexandre no escritório: um mestre das releituras

ciais como o Nascente, o Universidade Aberta à Terceira Idade e o Cinusp, bem como a reorganização da Comissão de Patrimônio Cultural da USP. O Nascen- te, o mais notável dentre eles, nasceu de sua vontade pessoal.

Nascente - Procurado por Jucá Kfou- ri, da Editora Abril, que buscava um projeto para patrocinar, Barbosa reu- niu a oferta com a demanda. Poucos dias antes de se encontrar com Kfouri, um aluno se queixara da dificuldade de encontrar espaços para apresentar seus talentos artísticos. A costura feita resul- tou no Nascente. Quando se aposen- tou, a Abril quis encerrar a parceria, mas a insistência de Barbosa manteve o projeto funcionando e revelando gente como Fernando Bonassi ou José Ro- berto Torero. A primeira edição do prê- mio arrancou uma declaração forte de Chico Buarque: "Se houvesse projetos assim quando eu estava na FAU, jamais teria saído da faculdade".

Depois de deixar a USP, escreveu ainda mais quatro livros: Biblioteca imaginária, Entrelivros, Alguma crítica e João Cabral de Melo Neto, da série Folha

Explica. O poeta, aliás, foi a grande des- coberta e paixão de João Alexandre, desde a mocidade, quando todos prefe- riam a riqueza exuberante do texto de Gilberto Freyre à secura de João Cabral, que teve em Barbosa um dos seus maio- res intérpretes. Deixou um livro inédito sobre outra de suas paixões, o francês Paul Valéry, que deve ser publicado pela Editora Iluminuras. "Ele fará falta para a literatura e a cultura brasileiras", diz Davi Arrigucci Jr., professor de teoria li- terária da USP. "Foi um pesquisador exemplar da teoria e da história da críti- ca literária do Brasil, assim como da poesia moderna e contemporânea: de- dicou estudos de qualidade aos poetas modernistas, a João Cabral, aos concre- tistas, a Sebastião Uchoa Leite e a mui- tos outros mais. Foi ótimo professor de literatura, cujo estudo motivava com voz calorosa e entusiasmo; seus ensaios críticos dão a medida de suas leituras. Cuidou do livro como objeto cultural e estético; sua gestão na Edusp o compro- va. Acima de tudo, porém, lamento a ausência do amigo, de quem sinto pes- soalmente a falta." Com seu jeito man- so, bem-humorado, sempre de cachim- bo na boca, ensinando de modo fácil a literatura mais difícil, João Alexandre era um intelectual. Restam poucos. •

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Resenha

Sutis atmosferas brasileiras

MARILUCE MOURA

D Cidades reveladas

Cristiano Mascaro

á alguma coisa de profundamente to- cante em todos os Brasis que o olhar fo-

tográfico de Cristiano Mas- caro, esse reconhecido fo- tógrafo/arquiteto, apresenta ao leitor - talvez melhor fosse dizer ao apreciador ou ao voyeur- em Cidades reveladas, seu belíssimo livro recém-lançado. Uma certa atmosfera, um clima cheio de delicadeza, pare- ce propor uma viagem, uma passagem para um tem- po muito anterior/interior, quem sabe um além do tempo estrito, ainda que todas as suas imagens tenham sido colhidas num período bem definido, entre os anos de 2000 e 2006. Nesse clima singular, transtemporal, de que as fotografias são investidas com as infinitas gradações entre o preto e o branco, ele é capaz de su- gerir a mais íntima ligação entre uma minúscula casa precária, que parece traçada com a inteira pureza de linhas infantis, perdida no meio do mato em Gararu, Sergipe, e a paisagem urbana de um fim de tarde chu- voso (ou seria um amanhecer?) na Ladeira General Carneiro, no centro da maior cidade do país, São Pau- lo {foto ao lado). Pelo olhar de Cristiano Mascaro, o Brasil mais nitidamente urbano e industrial está for- temente aderido ao país singelo da arquitetura popu- lar de formas muito simples; o país barroco e colonial cimenta-se às construções do Império e às audácias das construções modernistas. A força de arcos, a soli- dez de grossas colunas, ganham um halo poético in- suspeitado. Assim ele transita por diferenças e contra- dições, ligando tudo com um fio sutil por meio do qual nos conduz para o que sabe que pode revelar-se de uma atitude verdadeiramente "drástica e intuitiva" na fotografia, em suas próprias palavras.

Com essa unidade essencial, o livro está dividido em cinco partes: Forma, Composição, Luz e Sombra, Arquitetura, Cidades, cada uma delas aberta pelo tex- to de um artista plástico ou arquiteto, todos eles liga- dos como aluno ou professor, em algum momento passado ou ainda, à respeitada Faculdade de Arquite- tura da Universidade de São Paulo (FAU-USP). As- sim, Renina Katz fala de forma, Maria Bonomi de composição, Sérgio Fingermann de luz e sombra, Be- nedito Lima de Toledo de arquitetura e Carlos Lemos de cidades. Há ainda no livro um pequeno e precioso

BE7 Editora 192 páginas R$ 120,00

texto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, um ar- tigo do diplomata e crítico André Corrêa do Lago e um texto do próprio autor, além da orelha assinada pe- lo poeta Ferreira Gullar.

Cristiano Mascaro, fiel ainda às máquinas analó- gicas, explica nas páginas

finais do livro que descobriu a fotografia e suas pos- sibilidades estudando arquitetura. "Ao folhear alguns livros entre tantos outros existentes na biblioteca da faculdade, bati os olhos, casualmente, em Images à Ia sauvette, uma das primeiras edições do trabalho de Henri Cartier-Bresson." E daí emergiu um mais que justificado deslumbramento: "Jamais vou esquecer meu espanto diante daquelas imagens. (...) aquelas ce- nas eram tão bem estruturadas, captadas em momen- tos tão expressivos e todos seus elementos ocupavam lugares tão bem definidos nos espaços onde se encon- travam, que eu imaginei que tudo aquilo tinha algo a ver com arquitetura" (pp. 175-176).

Faz todo sentido: veja-se a junção extraordinária que disso ele realiza na foto do Museu de Arte Con- temporânea de Niterói (p. 49), ou das ruínas da Igre- ja Matriz de São Matias, em Alcântara (p. 37). Veja-se a eloqüência magistral da relação homem/espaço, ar- quitetura/homem, em fotos de composição e ilumina- ção deslumbrantes feitas em Porto Alegre, no Clube do Comércio, e em Belém, no Palácio dos Governado- res (pp. 94-95 e 96-97). São apenas exemplos, porque é difícil dizer o que mais causa impacto, sacode nossa sensibilidade, nesse mar de imagens de infinita beleza. Ainda bem que Cristiano Mascaro declara sua fé na capacidade transfiguradora do olhar. E explica que fo- tografa as cidades brasileiras "certo de que elas são as mais relevantes testemunhas das transformações do país, o cenário mais amplo e diversificado por onde se manifesta o brasileiro. Enfim, o retrato mais fiel de nosso caráter" (p. 179).

Nas palavras de saudação que dirige ao autor den- tro do próprio livro, Paulo Mendes da Rocha diz: "A minha idéia é que a fotografia - a sua sempre - de modo muito comovente fixa para ver o invisível. Para dizer o indizível" (p. 181). É isso: há uma atmosfera das cidades brasileiras que continuaria invisível sem Cristiano Mascaro.

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Ficção

ATA 387

os três dias do mês de setembro de dois mil e seis, às vinte horas e trinta e dois minutos, na sala S-48, sede do Centro Acadêmico Dezoito

^^^* Brumário, da Faculdade de Ciências Sociais, de acordo com o disposto no artigo 8o do estatuto do regi- mento interno do órgão supracitado, os membros se reu- niram extraordinariamente com a seguinte pauta: deci- dir o destino das verbas angariadas no evento intitulado "Chopada dos Bichos", no valor de mil e noventa e três reais e setenta e três centavos.

Compareceram o diretor-geral do C.A., Augusto de Oliveira (Cabeleira), o diretor administrativo Robson S. Torres (Rob Marley), o diretor de comunicação Felipe Cuglioni (Lipão) e a diretora financeira Olívia Ramos (Lilica). Marcos Azambuja (Bujones), diretor de progra- mação, não apareceu para o início da reunião.

Havendo número regimental, o diretor-geral Cabe- leira iniciou os trabalhos apresentando aos demais pre- sentes a lista de possíveis investimentos para a verba ar- recadada, elaborada na última reunião ordinária, no último dia trinta, a saber: 1) Uma mesa de pebolim para o CA. 2) Um novo computador para o CA. 3) Reforma do sofá do CA. O diretor-geral Cabeleira propôs o voto direto para decidir-se a questão.

Neste ponto, o diretor administrativo Rob Marley pe- diu a palavra para um aparte. Aparte aceito, Rob Marley objetou que, não estando presente à reunião do dia trin- ta do mês último, quando foi elaborada a lista, não po- deria reconhecê-la como legítima, sendo o pebolim, o computador e a reforma do sofá alternativas autorita- riamente impostas de cima para baixo, reproduzindo o sistema opressor que eles mesmos diziam combater, qual seja: o oligopólio neoliberal escamoteado como demo- cracia. A diretora financeira Lilica lembrou o diretor ad-

ANTONIO PRATA

ministrativo Rob Marley do regulamento seis, inciso qua- tro, do estatuto do Centro Acadêmico, que estabelecia que, mesmo na ausência de algum dos membros, haven- do quorum de 75%, as votações eram válidas. Lembrou- o ainda que, quando da votação, o diretor administrati- vo havia sido visto saindo do almoxarifado com uma primeiranista de psicologia, atitude que, embora não condenada pelo estatuto do Centro Acadêmico, merecia no mínimo uma admoestação verbal. O diretor admi- nistrativo Rob Marley argumentou que não tinha ver- gonha de seus atos e que bastava ler Reich ou Marcuse para saber que a revolução decorrerá de ações como as por ele praticadas no almoxarifado, não da burocracia cinzenta das altas esferas do poder, sendo aplaudido en- tusiasticamente pelo diretor de comunicação Lipão. A diretora financeira Lilica ameaçou sair da sala, mas foi dissuadida pelo diretor-geral Cabeleira, que insistiu na importância de sua presença, dada a natureza do tema serem exatamente as finanças.

Acalmados os ânimos, foi pedido ao diretor de co- municação Lipão que preparasse as cédulas. Neste ínte- rim, o diretor administrativo Rob Marley pediu a pala- vra e levantou a questão do efeito estufa, do aquecimento global e do degelo das calotas, propondo que, a longo prazo, o CA. Dezoito Brumário se engajasse mais na questão ecológica. Sugeriu, porém, a curtíssimo prazo — tendo em vista a boa hidratação de todos os presen- tes - que se comprassem algumas cervejas. A proposta foi aceita por unanimidade. A diretora financeira Lilica disse que não iria ser ela a comprar as cervejas, posto que nas últimas duas reuniões havia sido encarregada de tal função. Sublinhou ainda que poderia haver sob tal insistência um fundo de machismo dos membros do CA. O diretor-geral Cabeleira ofereceu-se para buscar

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as cervejas, mas lembrou-a de que de machismo ele não poderia ser acusado, sendo a prova cabal de sua ido- neidade o tema de seu trabalho de iniciação científica: Margaret Mead e a questão do masculino e do femini- no nas sociedades primitivas. A diretora financeira Lili- ca declarou nada saber a respeito da iniciação científica do colega e pediu mais informações, mas o diretor-ge- ral Cabeleira disse que preferia ater-se à pauta do dia. Antes de sair, percebendo certa animosidade no recin- to, sugeriu que o diretor administrativo Rob Marley pre- parasse um cigarro de maconha. Ficou acertado que o dinheiro para as cervejas seria abatido do total arre- cadado, na qualidade de "custos adicionais", e que o diretor administrativo Rob Marley seria ressarcido do fumo ali consumido.

Tendo o diretor-geral Cabeleira voltado com as cer- vejas e vendo que as cédulas estavam prontas, decidiu abrir a votação. O diretor de comunicação Lipão obser- vou que o cigarro de maconha também estava pronto e que colocar o trabalho antes do lazer era uma imposi- ção burguesa às classes trabalhadoras, citando um ou ou- tro trecho de Foucault e propondo, destarte, que fumas- sem o baseado. Foi bastante aplaudido.

Findos os trabalhos canabino-revolucionários, aden- trou o recinto o diretor de programação Bujones, tocan- do ao violão a canção Viva a sociedade alternativa! (de autoria do músico baiano Raul Seixas), acompanhado por três intercambistas bolivianos, munidos de flautas de bambu. Após a execução da música, Bujones cumpri- mentou a todos os presentes e convocou-os para a cer- vejada do CA. de psicologia. O diretor administrativo Rob Marley defendeu a idéia com eloqüência e, citando Maquiavel, argumentou que a união dos C.As. era fun- damental e que a separação entre eles era justamente o

projeto de dominação da reitoria. A diretora financeira Lilica afirmou saber exatamente o tipo de união que ele buscava no CA. de psicologia. O diretor de programa- ção Bujones e os três bolivianos deram início à execução da canção Volver a los 17, de Violeta Parra. Projetando a voz, o diretor-geral Cabeleira propôs que se encerrassem os trabalhos. A diretora financeira Lilica fez o uso da pa- lavra para protestar contra o que chamou de furdunço engajado e deixou claro que se o CA. Dezoito Brumá- rio continuasse com tamanha propensão para a esbór- nia, ela sairia da chapa. O diretor administrativo Rob Marley aproveitou a deixa para encorajar a colega a as- sim proceder, pois suas posturas pequeno-burguesas não condiziam com a postura revolucionária do grupo. Da- da a agressividade do diretor administrativo, a diretora financeira decidiu responder à altura e, arrancando a flauta de bambu da mão de um dos intercambistas bo- livianos, deu com a mesma na cabeça do diretor de ad- ministração, que, ao cair no chão, bateu com a cabeça na máquina de escrever e derramou no carpete considerá- vel quantidade de sangue. Diante da conjuntura adver- sa, o diretor-geral Cabeleira achou por bem encerrar os trabalhos e dirigirem-se todos à Santa Casa de Miseri- córdia — sem votação.

Tendo todos os membros deixado às pressas o recin- to, às vinte e uma horas e quarenta e nove minutos da data mencionada anteriormente, encerrou-se, sem con- clusão sobre a pauta, na sala S-48, a reunião de número 387 do Centro Acadêmico Dezoito Brumário.

Sem mais, Buzunfa (estagiário).

ANTôNIO PRATA é escritor, autor dos livros Douglas e outras histórias, As pernas da tia Corália e O inferno atrás da pia.

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