damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis ... ·...

9
Gramado – RS De 30 de setembro a 2 de outubro de 2014 DA MATERIALIDADE DO TRAÇO EM TEMPOS DOS DISPOSITIVOS MÓVEIS: reflexões sobre a particularidade do gesto caligráfico no iPad. Resumo: O artigo discute o impacto das novas tecnologias táteis e das interfaces cognitivas das tablets no processo de desenvolvimento de tipografias digitais de matriz caligráfica. Para tal, busca analisar, à luz da teoria da escrita de Gerrit Noordzij, a estrutura do traço caligráfico tradicional e suas particularidades quando da sua digitalização a partir do iPad. Outrossim, problematizase, ainda, a influência da materialidade dos referidos dispositivos na gestualidade do traço caligráfico, quando comparado ao tradicional uso das penas. Por fim, conclui apontando para as possibilidades e restrições do uso da técnica digital enquanto etapa metodológica para o desenvolvimento de fontes. Palavraschave: tipografia, caligrafia digital, iPad, materialidade da comunicação. Abstract: The article discusses the impact of new tactile technologies and cognitive interfaces of tablets in the typographical development of digital typefaces with calligraphic approach. To this end, it seeks to analyze, from the theory of writing Gerrit Noordzij, the structure of traditional calligraphic stroke and its particularities when it is drawn on ipad. Moreover, also problematizes the influence of the materiality of such devices as a tool / support under the calligraphic gestures and the stroke when compared to the traditional use of pens. Finally, pointing to the possibilities and restrictions of the use of digital technology as a step methodology for typeface developing. Keywords: typography, digital calligraphy, iPad, materiality of communication. 1. INTRODUÇÃO A natureza dos suportes e técnicas usadas para a produção de sentido estão diretamente imbricadas na dimensão semântica das respectivas produções. Com o paulatino aparecimento de diferentes suportes de grafia, a cultura da escrita sofreu influências notórias, produzindo repertório simbólico e gestual particular. Se a pena de um escriba egípcio evocava respeito, a caligrafia de chancelaria a formalidade, a inscrição monumental onipresença, então os gestos, suportes e contextos passaram a figurar como componentes de um repertório cognitivomotor que implicou em produções de presença (GUMBRECHT, 2004) diferenciadas.

Upload: others

Post on 05-Nov-2020

7 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

 

Gramado  –  RS  

De  30  de  setembro  a  2  de  outubro  de  2014  

DA  MATERIALIDADE  DO  TRAÇO  EM  TEMPOS  DOS  DISPOSITIVOS  MÓVEIS:  reflexões  sobre  a  particularidade  do  gesto  caligráfico  no  iPad.  

 Resumo:   O   artigo   discute   o   impacto   das   novas   tecnologias   táteis   e   das  interfaces   cognitivas   das   tablets   no   processo   de   desenvolvimento   de  tipografias   digitais   de  matriz   caligráfica.   Para   tal,   busca   analisar,   à   luz   da  teoria   da   escrita   de   Gerrit   Noordzij,   a   estrutura   do   traço   caligráfico  tradicional  e  suas  particularidades  quando  da  sua  digitalização  a  partir  do  iPad.  Outrossim,  problematiza-­‐se,  ainda,  a  influência  da  materialidade  dos  referidos   dispositivos   na   gestualidade   do   traço   caligráfico,   quando  comparado  ao  tradicional  uso  das  penas.  Por  fim,  conclui  apontando  para  as   possibilidades   e   restrições   do   uso   da   técnica   digital   enquanto   etapa  metodológica  para  o  desenvolvimento  de  fontes.    Palavras-­‐chave:   tipografia,   caligrafia   digital,   iPad,   materialidade   da  comunicação.    

Abstract:  The  article  discusses   the   impact  of  new  tactile   technologies  and  cognitive   interfaces  of   tablets   in   the   typographical  development  of  digital  typefaces  with  calligraphic  approach.  To  this  end,  it  seeks  to  analyze,  from  the  theory  of  writing  Gerrit  Noordzij,  the  structure  of  traditional  calligraphic  stroke   and   its   particularities   when   it   is   drawn   on   ipad.   Moreover,   also  problematizes   the   influence   of   the  materiality   of   such   devices   as   a   tool   /  support  under   the  calligraphic  gestures  and  the  stroke  when  compared  to  the   traditional   use   of   pens.   Finally,   pointing   to   the   possibilities   and  restrictions   of   the   use   of   digital   technology   as   a   step   methodology   for  typeface  developing.    Keywords:   typography,   digital   calligraphy,   iPad,   materiality   of  communication.      

1. INTRODUÇÃO  A  natureza  dos   suportes   e   técnicas   usadas   para   a   produção  de   sentido   estão  

diretamente   imbricadas   na   dimensão   semântica   das   respectivas   produções.   Com   o  paulatino   aparecimento   de   diferentes   suportes   de   grafia,   a   cultura   da   escrita   sofreu  influências  notórias,  produzindo  repertório  simbólico  e  gestual  particular.  Se  a  pena  de  um   escriba   egípcio   evocava   respeito,   a   caligrafia   de   chancelaria   a   formalidade,   a  inscrição  monumental  onipresença,  então  os  gestos,  suportes  e  contextos  passaram  a  figurar   como   componentes   de   um   repertório   cognitivo-­‐motor   que   implicou   em  produções  de  presença  (GUMBRECHT,  2004)  diferenciadas.  

Page 2: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

2

Segundo   Gumbrecht   (2004)   o   termo   "presença"   refere-­‐se   às   relações,   no  âmbito   espacial,   entre   o   mundo   e   seus   objetos,   de   modo   que   a   tangibilidade   das  coisas,  ao  ser  percebida  e   legitimada  nas  "mãos  humanas",  produzem  um   immediate  impact   sobre   os   corpos.   Em   uma   aproximação   ao   repertório   de   gestos   e   objetos  presentes   da   cultura   escrita,   poder-­‐se-­‐ia   reconhecer   como   um   contínum   recursivo  entre  a  linguagem,  a  pena,  a  escrita,  o  suporte  e  os  gestos.  

Desta   forma,   observa-­‐se   uma   espécie   de   acoplamento   cognitivo   entre   os  referidos  objetos  presentes  e  um  orquestramento  dos  gestos,  instrumentos  e  técnicas  de  modo  a  extrojetar  o  pensamento  intangível  em  linguagem-­‐artefato  tangível.  Prática  esta  que,  não  apenas  produz   reflexos  no  campo  corporal-­‐cognitivo,   como   implica  na  produção   de   signos,   instrumentos   e   produtos   de   linguagem   atualizados   –   vide   as  modificações  formais  sofridas  nos  glifos,  quando  do  aparecimento  da  escrita  cursiva  e  seus   instrumentos   de   grafar   –,   refletindo   nas   respectivas   estruturas   de  armazenamento   e   catalogação   dessas   produções.   Existe,   portanto,   muito   mais  intimidade  na  relação  entre  o  corpo,  a  pena,  a   letra,  o   livro  e  a  biblioteca  do  que  se  costuma  pensar.  

Com  a  chegada  dos  dispositivos  móveis,  entretanto,  as  telas  multitoutch  de  alta  definição,  a  portabilidade  e  a  capacidade  de  rodar  softwares  de  pintura  digital  põem-­‐se   disponíveis   um   novo   ferramental   à   serviço   do   desenho   caligráfico   e   do  desenvolvimento  de   caracteres   tipográficos  digitais.  As  promessas  de  otimização  das  etapas   de   produção,   aumento   na   qualidade   do   traçado   e   redução   de   perdas   de  qualidade   na   digitalização   dos   originais   são   alguns   dos   atrativos   que   fazem   da  experimentação   com   penas   caligráficas   emuladas   nos   aplicativos   de   desenho,   uma  realidade  iminente.    

Entretanto,   a   adoção   das   referidas   técnicas   digitais   nos   dispositivos   móveis  promove  mudanças  significativas  na  natureza  dos  gestos  tradicionalmente  vinculados  às  técnicas  da  escrita  e  da  caligrafia.  Os  controles  de  pressão  e  velocidade  imprimidos  na   pena,   por   exemplo,   passam   por   reformulações   drásticas,   uma   vez   que   as   telas  capacitivas   são   sensíveis   apenas   à   condução   elétrica.   As   variações   de   espessura,  portanto,   passam   a   ficar   ao   encargo   da   simulação   resultante   da   relação   entre   os  vetores  velocidade-­‐direção  e  não  mais  pressão-­‐velocidade-­‐direção  do   traço.  Assim,  o  que  antes  era  diretamente  consequência  de  ações  distintas  sobre  o  instrumento,  agora  passam   a   ser   simuladas   a   partir   de   procedimentos   substitutivos   que,   nem   sempre,  guardam  para  com  os  repertórios  gestuais  anteriores  alguma  relação  de  semelhança.  

Neste  sentido,  o  artigo  busca  problematizar  os  impactos  das  novas  tecnologias  táteis   e   das   interfaces   cognitivas   presentes   nas   tablets,   quando   da   utilização   destas  como   ferramenta/suporte   ou   etapa   metodológica   no   processo   de   construção   de  fontes  digitais  de  base  caligráfica.  Para  tal,  busca  analisar,  à  luz  da  teoria  da  escrita  de  Noordzij   (2005),   a   estrutura   do   traço   caligráfico   tradicional,   bem   como   suas  particularidades   quando   da   digitalização   a   partir   do   iPad.   Investiga-­‐se,   ainda,   a  influência   da   materialidade   do   referido   dispositivo   na   natureza   do   traçado   e   suas  respectivas   implicações   como   ferramenta/suporte   alternativo   ao   desenvolvimento  tipográfico.  

 2. A  MATERIALIDADE  DO  TRAÇO  (STROKE)  

Tendo  em  vista  as  particularidades  do  traçado  caligráfico  em  relação  às  técnicas  de  manipulação  do  instrumento  de  grafia,  adotam-­‐se  aqui,  em  especial,  as  proposições  

Page 3: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

3

teóricas   de  Noordzij   (2005)   acerca   da   escrita,   contrapondo-­‐as   em   relação   aos   novos  limites   e   possibilidades   trazidos   ao   campo   a   partir   do   aparecimento   de   dispositivos  móveis  com  interfaces  táteis  utilizados  como  suporte/ferramenta  alternativos  à  prática  caligráfica   tradicional.   Tais   escolhas   se   justificam   uma   vez   que,   conforme   defende   o  referido   autor,   somente   a   escrita   –   e   a   caligrafia   é   por   excelência   uma   condição   de  normatização  estilística  do  registro  escrito  –  é  capaz  de  preservar  as  características  de  um  simples  contorno.    

Para  além  do  objetivo  generalizante  de  padronizar  a  escrita  de  um  povo,  nação  ou   cultura,   a   caligrafia   se   estabeleceu   enquanto   uma   técnica   de   escrita   dada   à  hierarquização  de  conteúdos,  grupos  sociais  e  tipos  de  comunicação  que  acabaram  por  influenciar,  a  depender  do  caráter  hegemônico  aos  quais  esteve  ligada,  todo  o  sistema  de   escrita   universal.   Independente,   porém,   dos   diferentes   estilos   caligráficos  normatizados,  a  técnica,  em  si,  se  dá  pela  modulação  do  traçado  através  das  variações  na   forma  da  pena,  direção  do  gesto  e  angulação  do   imprint   (NOORDZIJ,2005).  Deste  modo,   o   traço   estaria   no   nível   qualitativo-­‐formal,   estruturado   a   partir   de   três  elementos   principais   –   imprint,   frontline   e   counterpoint   (Fig.1),   respectivamente  determinados  pelo  estilo  da  pena,  direção  do  gesto,  e  mudanças  no  ângulo  da  pena  em  relação  à  linha  de  base.  

 

Figura  1  –  Esquema  do  traço  (contorno-­‐stroke).  A.  Linha  de  base,  B.  Imprint  definido  pelo  estilo  formal  da  pena,  C.  Counterpoint:  Pontos  equivalentes  nas  duas  extremidades  do  contorno  variam  de  acordo  os  movimentos  de  angulação  do   imprint  conferindo  contraste  ao   traçado.  D  Frontline:   linha   imaginária  e  central  do  contorno,  diagrama  do  movimento  da  pena.  Elaborado  pelos  autores,  com  base  na  pesquisa  realizada.  

 Tais   variações   ligadas   à   forma,   movimento   e   ângulo,   embora   alocadas  

preponderantemente   na   dimensão   qualitativa   da   técnica   que,   em   si,   obedece   a   um  conjunto  de  normas  gerais  dos  estilos  caligráficos,  também  guardam  uma  analogia  aos  princípios   qualitativos   (forma   do   imprint),   indexicais   (registro   do   gesto)   e   simbólicos  (regras   de   inclinações   de   pena   para   cada   estilo)   respectivamente.   Dentro   destas  modulações  possíveis,  Noordzij  (2005)  destaca  três  categorias  de  contrastes  a  partir  da  manutenção  de  um  e  modificação  dos  outros  dois  parâmetros  comentados  –  contraste  por  expansão  (forma),  translação  (gesto),  rotação  (ângulo-­‐norma)  (Fig.2).  

   

Page 4: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

4

Figura   2   –   As   três   categorias   de   contraste   do   contorno   (stroke)  propostos   por   Noordzij   (2005).   01.  Expansão  (variação  na  forma)  02.  Translação  (variação  no  movimento,  gesto)  03.  Rotação  (variação  no  ângulo  da  pena,  norma).  Adaptado  de  Noordzij  (2005:  22,  23,  27).    

 No   contraste   por   expansão   (Fig.2.1),   mantém-­‐se   o   sentido   do   traço   e   a  

inclinação  do  imprint,  variando-­‐se  a  forma  a  partir  da  mudança  de  pressão  na  pena.  As  variações  de  espessura  do   stroke  provocadas  pela   força   empregada  no   instrumento,  distanciam   os   counterpoints   (Fig.1)   e   alargam   o   traçado,   modulando-­‐o.   Uma   vez  presentes,   os   contrastes   de   expansão   guardam  para   com  o   gesto  do   calígrafo   (força  empregada   por   cada   artista)   e   os   instrumentos   por   ele   utilizados,   uma   relação   tão  particular   a   ponto   de   servirem   de   índices   para   paleógrafos   inferirem   acerca   da  originalidade,  identidade  e  confiabilidade  de  determinados  documentos  antigos.  

Dentro   de   uma   perspectiva   similar,   o   contraste   por   translação   (fig.   2.2)   se  estabelece   a   partir   da  manutenção   da   forma   e   angulação   do   imprint,   variando-­‐se   o  sentido  da  fontline  (fig.  1.D).  Os  contrastes  por  translação  apresentam  limitações  claras  para   a   construção   de  minúsculas   ou   caracteres   em   tamanhos  muito   reduzidos.   Sua  ampla  variação  de  contraste  gera  áreas  de  superposição  entre  counterpoints  de  maior  distância,  inviabilizando  o  reconhecimento  de  algumas  formas  quando  da  mudança  da  direção  do  traço.  

O   terceiro   padrão   de   contraste   se   estabelece   pela   mudança   do   ângulo   do  imprint   em   relação   à   linha   de   base   (Fig.1.A),   mantendo-­‐se   a   pena   e   o   sentido   do  movimento.   Tecnicamente   o   giro   no   imprint   é   protagonizado   pela   rotação   o  instrumento  em  torno  do  seu  próprio  eixo.  A  rotação  (Fig.2.3)  provoca  uma  mudança  nos   ângulos   dos   segmentos   de   reta   entre   os   counterpoints   gerando   uma   ilusão   de  movimento  em  relação  ao  eixo  do  stroke  -­‐  a  frontline.  Tais  modulações  geram  pontos  de   estrangulamento   pela   aproximação   assimétrica   de   counterpoints   que,   com   as  pressões   aplicadas   na   pena   nos   contrastes   de   expansão,   figuram   enquanto   a  marca  pessoal  de  cada  calígrafo.  

Vale   frisar   que   tais   caracterizações   acerca   das   possibilidades   formais   de  materialização   do   gesto   caligráfico,   por   meio   do   stroke,   estão   longe   de   se  configurarem   enquanto   categorias   puras.   Seja   pela   questão   da   norma,   ou   das  idiossincrasias  de  cada  artista,  o  traço  é  um  campo  de  contaminações  entre  diferentes  técnicas  e  modos  particulares   como  cada   sujeito   se  apropria  delas.  Por   certo,   sem  a  

Page 5: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

5

singularidade  do  gesto,  presente  também  na  grafia  formal,  estaríamos  restritos  a  um  sem  fim  de  formas  redundantes  e  indiferenciadas  entre  si.  

 2.1 A  virtualidade  da  pena  

Caracterizados   os   aspectos   principais   que   estruturam   o   traço   (stroke)  tradicionalmente   produzido   pela   pena   manipulada   através   do   repertório   gestual  relativo  à  cada  estilo/técnica  caligráfica,  cabe  reconhecer  a  natureza  –  e  os  impactos  -­‐  das   ferramentas   digitais   que   se   apresentam   como   possibilidades   alternativas   ao  exercício  caligráfico  ou  de  desenvolvimento  tipográfico.    

Diferente  do  que  costuma-­‐se  atribuir  às  telas  multitouch  dos  gadgets  da  apple  (até  o  presente  momento)  elas  não  possuem   feedback   háptico.  Ao   contrário  do  que  afirma   Palácios   e   Cunha   (2012),   a   tela   do   iPad   é   capacitiva   e   não   tátil.   Isso   significa  dizer   que,   de   modo   resumido,   o   reconhecimento   dos   toques   se   dá   por   meio   da  localização   do   impulso   eletrostático   do   dedo   –   ou   caneta   condutora   –   do   usuário,  posterior   análise   da   zona   de   contato   do   toque   e   consequente   interpretação   dos  gestos.  Por  esse  método,  a  pressão  do  dedo  sob  a  tela  não  é  contabilizada  –  salvo  por  meio   da   análise   das   diferentes   áreas   registradas,   decorrentes   das   variações   de  deformação  do  dedo  quando  em  contato  com  o  vidro  –.    

Neste  sentido,  de   imediato   tem-­‐se  uma   implicação  significativa  para  o  campo  caligráfico:  os  contrastes  por  expansão  e  rotação  (NOORDZIJ,  2005)  –  dependentes  da  pressão  da  tela  e  mudança  de  eixo  do  instrumento  –  são  possíveis  apenas  por  meio  da  simulação  de  software  e  modulação  da  velocidade  de  arrasto  do  gesto.  Há  assim  um  acúmulo   de   funções   para   o   vetor   da   frontline.   A   rotação   da   pena   virtual   é,   na   tela,  simulada  por  meio  de  movimentos  suaves  em  relação  ao  eixo  vertical  e  espaçados  na  direção   da   frontline   (Fig.3).   Dito   de   outra   forma,   o   mesmo  movimento   responsável  pelo  registro  do  stroke  e  modulação  do  contraste  por  translação  é  também  empregado  para  a  variação  no  eixo  do  imprint.    

Existe   ainda   a   possibilidade   de   controle   a   partir   da   customização  manual   do  pincel,   o   que   impõe   uma   interrupção   do   processo.   Soma-­‐se   esse   fato   aos   limites  impostos  pelo  enquadramento  da  tela  –  diferente  da  técnica   tradicional,  a  dimensão  física   do   suporte   é   variável   –   a   precisão   e   o   controle   do   traço   ficam,   em   alguma  medida,  dependentes  de  ajustes  e  correções  por  meio  de  zoom,  acrescentando  ainda  mais  obstáculos  à  fluidez  característica  do  gesto  caligráfico.  

 

Figura   3   –  Da  esquerda  para  direita:  Detalhe  da   caixa  de  diálogos  que  permite   customizar   a   pena  no  software  SketchBook  Pro  da  Autodesk,  Variações  na  espessura  do  traço  a  partir  da  mudança  no  ângulo  

Page 6: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

6

do  imprint.  Desenhos  de  caracteres  obedecendo  o  contraste  por  translação  da  caligrafia  e  subversão  do  imprint  do   instrumento  em  detrimento  do   controle  do  desenho  a  partir  do   lettering.   Elaborado  pelos  autores,  com  base  na  pesquisa  realizada.    

Contudo,  no  que   toca  à  utilização  dos  desenhos  dos  glifos  para  utilização  em  projetos   tipográficos,   o   controle   no   tipo   de   aparência   do   pincel   permite   o   uso   de  interpolações   no   nível   das   sequencias   de   counterpoints  do   traçado,   permitindo   uma  maior  suavização  na  visualização  do  stroke  e  significativa  otimização  na  redução  de  nós  e   ruídos   quando   do   processo   de   rastreamento   vetorial   automático   das   imagens  geradas  no  iPad  em  softwares  como  Ilustrator.  Tais  possibilidades,  em  contraponto  às  questões  acima  levantadas,  resultam  notadamente  em  economia  de  trabalho  e  tempo.  

 2.2 Ferramentas   digitais   para   o   traço,   relato   de   experiência   aplicado   a   projeto  tipográfico  

Salvo   as   particularidades   naturais   de   cada   profissional,   em   linhas   gerais,   os  procedimentos   tradicionais   para   a   elaboração   de   tipografia   digital   constam   da  elaboração  dos  sketches  em  papel,  digitalização  por  meio  de  scanners,  redesenho  em  softwares   vetoriais   e,   posterior,   importação  nas   ferramentas   específicas   de   edição   e  geração   de   fontes.   Para   esse   fim,   tomou-­‐se   por   material   de   análise   o   registro   do  processo  de  desenvolvimento   tipográfico  da   fonte  Petit  Princess1  que,   sendo  voltada  para   aplicação   em   um   livro   aplicativo   (FLEXOR,   2012),   contou,   experimentalmente,  com   o   iPad   e   softwares   de   ilustração   digital   móvel   nas   etapas   metodológica   de  desenhos  dos  glifos.    

Para   o   desenvolvimento   da   tipografia,   foram   reproduzidas   as   etapas  metodológicas   comumente   relacionadas   ao   processo   de   criação   de   fontes   digitais,  substituindo-­‐se   o   papel   pelo   iPad,   enquanto   principal   plataforma   para   o   desenho.  Dado  caráter  experimental  da  proposta  e  finalidade  de  aplicação,  as  etapas  projetuais  buscaram  fazer  o  maior  uso  dos  recursos  e  limitações  da  tecnologia  móvel,  de  modo  a  ter   uma   visão   geral   das   potências   oferecidas   quando   da   implementação   dessas  ferramentas  digitais  móveis  em  desenvolvimento  tipográfico.  

Os   desenhos   foram   realizados   com   canetas   capacitivas   e   penas   virtuais   do  Sketchbook   Pro,   software  de   desenho   a  mão   livre   voltado   para   a   plataforma   iOS.   A  escolha  do  software  se  deu  pelas  vantagens  oferecidas  no  que  tange  ao  controle  das  ferramentas  de  traço,  elevada  quantidade  de  estágios  de  zoom  (até  3.000x  no  iPad3)  e  possibilidade   de   saída   em   alta   definição   (até   12  megapixels   no   iPad3)   dos   desenhos  realizados.  

Os  desenhos  foram  construídos  sob  um  grid  elaborado  para  facilitar  o  processo  de   transposição   entre   o   iPad,   software   de   vetorização   automática   e   aplicativo   para  refinamento   e   desenvolvimento   da   fonte   digital   utilizados   em   desktop.   O   uso   do  recurso   layers    permitiu  a  construção  modular  das  estruturas  morfológicas  principais,  

1   A  Petit   Princess   foi   desenvolvida   pelo   autor   desse   texto   -­‐   Elias   Bitencourt   -­‐   para   ser   aplicada   como  fonte   principal   do   appbook   Raízes,   projeto   prático   de   mestrado   da   autora   Carina   Flexor.   O   projeto  tomou  como  referência  a  flexibilidade  das  cursivas  de  chancelaria  e  a  racionalidade  das  Didones.  Teve  os  desenhos  realizados  no  applicativo  SketchBook  para  iPad,  com  auxilio  de  canetas  capacitivas  Wacon  Bamboo,   posteriomente   rasterizados   em   vetor   no   illustrator   CS6,   refinados   e   gerados   no   Glyphs,  software  para  edição  de  fontes  digitais.  

Page 7: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

7

volutas,   ornamentos   e   caracteres   alternativos,   mesmo   na   etapa   dos   desenhos   base  (Fig.3).  

 

 Figura  4  –  Da  esquerda  para  direita:  comparativo  dos  vetores  brutos  feitos  a  partir  dos  bitmaps  gerados  no   ipad   e   os   refinamentos   realizados   no   Glyphs;   detalhe   do   uso   das   layers   e   grids   no   processo   do  desenho  na  tablet.  Elaborado  pelos  autores,  com  base  na  pesquisa  realizada.    3 CONSIDERAÇÕES  FINAIS  

Ao  final  do  processo  foram  gerados  os  principais  caracteres  que  compõem  o  set  tipográfico   com   uma   significativa   economia   de   procedimentos   para   o   refino   dos  caracteres.  De  modo  geral  a  quantidade  de  nós  e  ruídos  nas  curvas  foram  minimizados  com   a   alta   definição   na   saída   das   imagens   e   o   relativo   controle   nos   ajustes   e  acabamento   do   traço   no   ato   do   desenho.   Tomando   em   consideração   o   caráter  experimental  da  proposta,  as  restrições  de  prazo  e  espaço  de  trabalho,  a  utilização  do  dispositivo  móvel  digital  como  ferramenta-­‐suporte  para  o  traço  se  mostrou  efetiva  na  otimização  do  processo  projetual.  (Fig.5)  

Page 8: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

8

Figura  5  –  Da  esquerda  para  direita:  Testes  de  impressão,  teste  de  aplicação  no  appbook,  aplicações  da  Petit  e  páginas  de  teste  para  impressão.  Elaborado  pelos  autores,  com  base  na  pesquisa  realizada.

Diante  do  exposto,  recobram-­‐se  as  afirmações  de  acerca  das  teorias  da  

materialidade  da  comunicação  que  defendem  o  papel  dos  instrumentos,  suportes,  meios  de  armazenamento  e  suas  respectivas  relações  com  os  sujeitos  atores  como  instâncias  que  ultrapassam  o  campo  da  hermenêutica  da  comunicação,  reforçando  o  caráter  material  e  suas  potencialidades  de  modificar/determinar  as  produções  de  significados.    

Se  o  advento  da  técnica  caligráfica  doce  acabou  por  reconfigurar  o  desenho  dos  glifos  da  tradicional  escrita  monumental,  também  as  culturas  de  uso  e  especificidades  dos  novos  artefatos  digitais  móveis  da  cibercultura  parecem  impor  novas  modalidades  ao   traço   a   partir   das   limitações/possibilidades   impostas   pelas   especificidades  interfaciais   mediadas   por   software.   Antes   de   propor   sistemas   de   classificação   ou  atribuir   significados   à   marca   do   gesto   digital,   portanto,   é   prudente   lembrar   que   as  considerações   aqui   levantadas   são   de   caráter   parcial   e   restrito   aos   enquadres  estabelecidos   na   escolha   das   ferramentas,   suportes   e   aplicativos.   Ademais,   ainda   se  verificam  necessários  estudos  que  discutam  as   transformações  observadas  no  objeto  tipográfico   quando   da   inserção   tablets   junto   (ou   substitutos)   aos   procedimentos  metodológicos   nativos   da   cultura   escrita   uma   vez   que   os   experimentos   realizados  ainda  carecem  de  replicações  em  diferentes  contextos-­‐problema.  

 REFERÊNCIAS  BLANCHARD,   Gerard.   La   Letra:   caligrafia,   logotipos,   tipografia,   sistemas   de  reproducción  e  impresión.  Barcelona:  Ediciones  CEAC,  1988.  

BRINGHURST,  Robert.  Elementos  do  estilo  tipográfico.  São  Paulo:  Cosac  Naif,  2005.  

FAIRBANK,  Alfred.  A  book  of  scripts.  London:  Pelican  Books,  1968.  

FELINTO,  E.  Materialidades  da  comunicação:  por  um  novo  lugar  da  matéria  na  teoria  da   comunicação.   Disponível   na   internet   por   http   em  http://www.uff.br/mestcii/felinto1.htm.  Acesso  em  10  de  dez.  2012.  

FETTER,  Sandro  Roberto;  et.  al.  A  escrita  cursiva  no  renascimento:  origem  e  evolução  dos   modernos   caligráficos   cursivos   e   dos   tipos   itálicos.   In   Anais   do   9   Congresso  Brasileiro  de  Pesquisa  e  Desenvolvimento  em  Design.  São  Paulo:  P&D,  2010.  P  39-­‐44.  

FLEXOR,  Carina  O.  Appbook  Raízes:  bibliogênese  e  devir  livro.  2012.  180  f.  Dissertação  (Mestrado)   –   Universidade   Federal   de   Goiás,   Curso   de   Pós-­‐Graduação   em   Cultura  Visual.  

GRAY,  N.  A  history  of  lettering.  Oxford:  Phaidon  Press  Limited,  1986.  

GUMBRECHT,   Hans   Ulrich.   Prodution   of   presence:   what   meaning   cannot   convey.  Califórnia:  Stanford  University  Press,  2004.  

MARTINS,   B.   G.   Tipografia   popular:   o   ilegível   como   caminho   para   a   percepção   da  materialidade.  São  Paulo:  Annablume,  2007.  

NOORDZIJ,  Gerrit.  The  stroke:  theory  of  writing.  London:  Hyphen  Press,  2005.  

Page 9: DAMATERIALIDADE#DO#TRAÇO#EM#TEMPOS#DOS#DISPOSITIVOS#MÓVEIS ... · damaterialidade#do#traÇo#em#tempos#dos#dispositivos#mÓveis: reflexõessobre#aparticularidade#dogestocaligráficonoiPad

9

PALACIOS,   M.;   CUNHA,   R.E.S.   2012.  A   tactilidade   em   dispositivos   móveis:  primeiras  reflexões  e  ensaio  de  tipologias.  Contemporânea,  Salvador,  Vol  3,  N.10.  

ROCHA,   Cleomar.  Pontes,   janelas   e   peles:   contexto   e   perspectivas   taxionômicas   das  interfaces  computacionais.  2009.  Relatório  de  estágio  de  Pós-­‐Doutorado  no  Programa  de  Pós-­‐Graduação  em  Tecnologias  da  Inteligência  e  Design  Digital  –  PUC-­‐SP.  

SANTAELLA,  Lúcia.  Matrizes  da  linguagem  e  pensamento:  sonora,  visual  e  verbal.  São  Paulo:  Iluminuras,  2005.