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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL NA FORMAÇÃO DO BRASIL AO
PROCESSO EDUCACIONAL DAS MULHERES BRASILEIRAS:
INCIDÊNCIAS IDEOLÓGICAS NAS PROFISSÕES “FEMININAS” E O
SERVIÇO SOCIAL
Silse Teixeira de Freitas Lemos1
Resumo: O trabalho tem caráter de ensaio, a partir de pesquisa bibliográfica, com o objetivo de
refletir sobre a violência estrutural na formação do Brasil e a influência exercida na educação das
mulheres, destacadamente na definição das profissões “femininas”, como o Serviço Social. Para a
compreensão acerca da construção do Brasil parte-se do pressuposto de que é necessário percorrer a
trajetória histórica, social, econômica, cultural e política do processo, caracterizado pela violência,
cujos efeitos incidirão na sociedade brasileira, na qual fora atribuída às mulheres o papel de
reprodutoras, componentes do legado da propriedade patriarcal masculina que englobava tanto
senhoras quanto escravas, guardadas as discrepâncias entre os fatores classe/raça. As assistentes
sociais foram influenciadas por elementos que compunham o ideário da domesticação repressora,
compreendido como adequado à formação moral das mulheres. É necessário contemporaneamente
situar a indispensável inserção de disciplina que trate de Relações de Gênero na formação em Serviço
Social como meio de compreensão ampliada dessas relações, na desconstrução de estereótipos e
preconceitos incidentes no âmbito da profissão.
Palavras-chave: Formação Brasileira. Violência estrutural. Serviço Social.
INTRODUÇÃO
O Serviço Social é uma profissão majoritariamente constituída por mulheres as quais
compõem 97% do quadro profissional (TENÓRIO, PRÉDES, MACHADO e BORGES, 2005, p.18),
dados que validam o epíteto de profissão feminina. Tal constatação fortalece a intenção de busca
interpretativa acerca de fatores concorrentes na formação sociocultural, econômica e política dessa
característica profissional, de modo a trazer para o primeiro plano da reflexão os fatores incidentes a
marcarem a trajetória na qual a profissão foi plasmada. O objetivo de refletir sobre a violência
estrutural na formação do Brasil e a influência exercida na educação das mulheres, destacadamente
na definição das profissões “femininas” como o Serviço Social, remete a discussão a dois aspectos
fundamentais: a formação da sociedade brasileira fundada na violência da escravidão, do trabalho
compulsório, numa estrutura social hierarquizada segundo as relações de poder construídas no âmbito
1 ¹ Dra. em Serviço Social, PUC-SP. Docente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão -UFMA.
Membro do GERAMUS- Grupo de pesquisa e extensão sobre relações de gênero, étnico-raciais e geracional, mulheres e
feminismos – PPGPP- Programa de Pós-gradução em Políticas Públicas, UFMA, São Luís, Brasil.
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rural e na produção monocultora destinada ao mercado externo; a família patriarcal brasileira na qual
os papéis femininos rigidamente estabelecidos limitando as
mulheres à função reprodutiva, ao confinamento do espaço doméstico, sujeitas ao cerceamento do
acesso ao processo educativo que permitisse desenvolvimento de aptidões intelectuais propício a
torná-las aptas a atuar na vida social e política.
Em tempos de industrialização e urbanização, a ocupação de postos de trabalho na esfera
pública deu oportunidades às mulheres, via profissões femininas como o magistério e posteriormente
o Serviço Social. Entretanto, a questão persistente é a reprodução nos processos de trabalho
empreendidos do modelo educativo construído ao longo do período da formação da sociedade
brasileira, no ambiente familiar e nas instituições escolares. Assim, para a desconstrução de
estereótipos, estigmas, preconceitos e limitações resultantes de processos educativos restritivos, de
hierarquizações sociais ratificadoras das injustiças há necessidade de construir-se caminhos, um deles
por intermédio de disciplina específica sobre relações de gênero, para a compreensão das diferenças
e eliminação de desigualdades.
Aqui, o exercício ensaístico realizado por meio de pesquisa bibliográfica, tem como fio
condutor a sequência de etapas da vida social brasileira sem que isso represente rigidez cronológica
ou intenção de exposição exaustiva de fatos históricos. Pretende-se somente facilitar a apreensão dos
elementos definidores do quadro que se pretendeu compor à guisa de contributo para os estudos das
relações de gênero como etapa de conhecimento indispensável ao aprimoramento das ações
profissionais do Serviço Social, de maneira a contemplar a essência do Projeto Ético-Político da
profissão.
DESENVOLVIMENTO
A construção sócio-histórica e econômica do Brasil relaciona-se ao crescente
desenvolvimento europeu rumo à consolidação do sistema de produção capitalista, nos períodos
compreendidos pelos séculos XVI e XVII com o fortalecimento da forma capitalista mercantil.
Inserida nesse contexto, mas com problemas para ocupar e tornar rentáveis as terras as quais tomaram
posse, Portugal precisou encontrar alternativas viáveis, antes do período da extração de minérios. A
saída veio com a experiência já existente dos portugueses na captura e comercialização de africanos
como escravos, atividade desenvolvida há mais de um século, desde os “ tempos de Dom Henrique”
(FURTADO,2005, p.22). Trazer escravos para o Brasil criou a possibilidade de se edificar uma
sociedade agrícola monocultora, com destinação do produto comercializado para o mercado exterior,
regulado conforme a dinâmica comercial orientada pela Europa como centro. A alternativa de mão
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de obra escrava irá demonstrar exeqüibilidade ao verificar-se rentável o empreendimento canavieiro
aqui realizado por coonizadores portugueses, sob o financiamento com recursos holandeses, seja na
produção, seja na comercialização. Anterior à vinda de escravos africanos, à época das feitorias, as
primeiras atividades lusas valeram-se dos indígenas, exploração também recorrente, de acordo com
as circunstâncias, ao longo do período colonial (FURTADO,2005). Nessas primeiras etapas históricas
de formação do Brasil vai-se destacar o elemento central da violência estruturante da sociedade
brasileira, a forma de exploração da força de trabalho no regime escravo. Dessa violência primordial
decorrem as relações sociais no país marcadas pela espoliação, dominação, opressão e humilhação as
quais caracterizam as hierarquias que se estabelecem. Desse modo, a subalternização de contingentes
humanos na sociedade brasileira naturaliza-se e aqui cabe o recorte de gênero, raça e etnia.
Caio Prado Junior (1942) aponta que, nos primórdios do século XIX, a Colônia apresentava
cenários de contendas a envolverem comerciantes e senhores de engenho endividados, escravos
revoltados, população insatisfeita devido à constante condição de inferioridade em que viviam a
caracterizar uma situação de mal-estar generalizado a qual contribuiu para a gradual erosão do sistema
colonial português. Embora o predomínio social, político e econômico sejam ruralistas a
industrialização e a urbanização se apresentem retardatárias, se considerada a precedência já secular
desse processo próprio do capitalismo vivenciado pela Europa e E.U.A., é preciso ter em conta o
processo capitalista, no Brasil, não somente como uma “ maneira historicamente determinada de os
homens produzirem e reproduzirem as condições materiais da existência humana e as relações sociais
através das quais levam a efeito a produção” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2011, p.30). Sob essa
ótica, são reproduzidas “ideias e representações” condicionadas pelas relações e formas materiais nas
quais são produzidas. Desse modo, torna-se compreensível que as relações sociais de gênero não se
distanciam dos elementos definidores da existência humana na sociedade e comportam significados
sociais, históricos, econômicos, políticos e ideológicos/culturais para além das suas manifestações
exteriores e imediatas.
A configuração do Brasil colonial “é o reflexo fiel de sua base material: a economia agrária
[...] Assim como a grande exploração absorve a terra, o senhor rural monopoliza a riqueza e com ela
seus atributos naturais: o prestígio, o domínio” (PRADO JÚNIOR, 2012, p.34). A agregação de
poderes é a síntese de elementos integrantes na estruturação da subalternidade mantida como
contingência para as classes dominadas, cuja vigência haverá de se atualizar, conforme as cenas
política e social se movimentam. Convém antecipar considerações sobre as mulheres no decurso da
formação do Brasil. A população do país, sabe-se formada por miscigenação na qual concorrem a
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ascendência indígena, africana e europeia portuguesa na base colonial. “A formação de uma
população mestiça, sem o contrapeso de uma população branca, de raízes lusitanas, seria perigosa e
inquietante para os projetos da Coroa” (NUNES, 1997, p.484). Mulheres brancas das classes altas,
pobres, órfãs e as prostitutas eram trazidas de Portugal para casarem-se e cumprir o papel de
“reprodutoras biológicas e sociais”, complementa a autora ao mencionar a preocupação portuguesa
ante o fraco povoamento da Colônia até o século XVIII. Não se identifica destacada atenção às
questões relacionadas às mulheres para além da procriação e a reprodução dos valores morais
oriundos sociedade lusitana europeia.
O estabelecimento da sociedade nacional a partir da Independência do Brasil intensificará a
influência liberal nos rumos na nação. “[...] o liberalismo forneceu, não obstante todas as limitações
de deformações que pairaram sobre a sua reelaboração sociocultural no meio brasileiro, as
concepções gerais e a filosofia política que deram substância aos processos de modernização [...]”
(FERNANDES, 1976, p.36). Esse inevitável avanço teve repercussões nos costumes e na formação
cultural da família brasileira com a convivência tortuosa entre o “antigo” e o “novo”. A permanência,
mas não imutabilidade, dos determinantes culturais do período colonial como estatuto social na vida
dos sujeitos e nas relações societárias manter-se-ão com reverberações até à etapa contemporânea.
O trabalho na indústria brasileira repetia o ciclo de desapropriações ocorridas nas etapas de
afirmação do modo de produção capitalista na Europa. Apresentava-se sob condições precárias, em
construções inapropriadas, insalubres, sem condições de segurança ou de higiene. As habitações
consistiam num amontoado de casas ou cômodos miseráveis sem água, energia elétrica e saneamento.
Os salários eram insuficientes, a jornada de trabalho exaustiva, o rebaixamento salarial uma realidade
cruel dada entrada de mulheres e crianças desde os cinco anos de idade. “Numa sociedade civil
marcada pelo patrimonialismo, onde apenas contam fortuna e linhagem, serão considerados – quando
muito- cidadão de segunda linha, com direito apenas à resignação” (IAMAMOTO e CARVALHO,
2011, p.138). Conquanto a miséria proletária se estampasse na cena urbana nos primórdios da
industrialização brasileira o Estado não proveu ações no processo de estabelecer direitos e tratou a
questão social como caso de polícia. As manifestações operárias aglutinarão reações contraditórias
da “ boa sociedade da época” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2011, p.138) ora em concordância com
a repressão, ora com ações caritativas atenuantes da miséria nas amiúdes crises de substrato
econômico. O acirramento da pauperização levou o Estado Novo a assumir o compromisso de agir
para além das classes sociais como “[...] legítimo defensor de seus interesses e se auto-atribuindo a
missão de resgatar o clima de ‘harmonia social’ [...]”(MARTINELLI, 2008, p.122). Com esse
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propósito estabeleceu acordos com a Igreja e frações privilegiadas da sociedade que unidas
promoveram ações, via Centro de Estudos e Ação Social de São Paulo -CEAS, dirigidas à
qualificação para o desempenho das intervenções sociais. Pelo significado emblemático para o início
da trajetória do Serviço Social brasileiro registrou-se a primeira capacitação orientada à prática social
ministrada no CEAS como Curso Intensivo de Formação Social para Moças, sob os auspícios das
cônegas de Santo Agostinho, cujo público alvo era composto por moças do estrato social burguês da
sociedade paulista (IAMAMOTO e CARVALHO, 2011; MARTINELLI, 2008). Afirmar que a
presença feminina era convocada ao apaziguamento das expressões da questão social por atribui-lhe
a natural vocação para o cuidado e que tal se realizava de acordo com a ótica da cultura burguesa é
incidir em redundância. Entretanto, a redundância se converte em instigação quando se indaga sobre
a qualidade da educação recebida pelas mulheres brasileiras- as de classes sociais privilegiadas-, o
que lhes era dado a conhecer que propiciasse a incitação reflexiva? Decorre daí a real necessidade de
verificar como as brasileiras eram educadas, que tipo de “instrução” recebiam.
Não há intenção educativa que não seja política e ideológica. Os indivíduos na sociedade
devem apreender e reproduzir os valores que sejam caros à ideologia vigente, pois é o corpo social
que a materializa e reproduz com desdobramento em todos os atos. Assim é que o Brasil que se
afigura no século XX quando o Serviço Social surge no cenário nacional e se estabelece como
profissão com diretriz clara de servir aos interesses capitalistas (IAMAMOTO, 2012; YAZBEK,
2009; MARTINELLI, 2008; NETTO, 2007). Entretanto questionamentos relacionados a esse caráter
não estavam acessíveis às profissionais, pois a abrangência da reflexão atinha-se aos princípios
católicos discorridos pela doutrina social da igreja.
O processo de confinamento das mulheres ao espaço familiar do período ruralista não
bloqueava somente o acesso ao ambiente físico exterior à fazenda, mas compunha com práticas
orientadas explicitamente à destituição feminina de acesso aos bens intelectuais, o impedimento de
expansão de potenciais que porventura possuíssem. A educação das mulheres precisa ser vista no
percurso antecedente ao início da profissão de assistente social para a compreensão do processo
formativo que ocorrerá. É preciso situá-la como integrante do conjunto formado pela concepção e
ações orientadas à formação educacional da população brasileira, mormente o seu fim específico.
No Brasil, nas etapas que antecedem à modernidade, a educação letrada para as mulheres era
vista com desconfiança ou desnecessária, no ponto de vista das classes abastadas, posto que para as
mais pobres sequer se cogitava. Pais que permitiam a alfabetização das filhas o faziam com relutância
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e imposição de limitações. Temiam-se os “danos” que o conhecimento pudesse trazer às jovens
porque poderia desviá-las do interesse primeiro de seu destino, a vida conjugal e a procriação.
A ausência de orientação educativa de ordem integral restringiu a possibilidade das mulheres
brasileiras de elite contribuírem para uma ordem familiar harmônica, saudável e sem a truculência
que sobreviverá ao regime escravagista instituindo a agressão como instrumento educativo e meio de
resolver questões de variada ordem. Diz Freyre (2010): “[...] O livrinho de missa nem sempre se sabia
ler”. A falta de educação, a ausência de letramento, não permitia julgamento analítico para além do
óbvio sobre o ambiente rústico, brutal e violento em que viviam.
Da França do final do século XVIII sabia-se a acolhida da participação intensa dos
contingentes femininos na luta por direitos pelos revolucionários, se bem que, na etapa seguinte,
foram exortados pelos mesmos grupos os quais se valeram do seu esforço na derrubada do Antigo
Regime a recolherem-se as suas casas. Entretanto, ideias apresentadas por intelectuais da época
constituíram-se numa espécie de perspectiva inovadora ao considerar as mulheres cidadãs, como
Condorcet que escreveu sobre o educar mulheres e homens:
Provamos que a educação pública devia limitar-se à instrução; mostramos que era preciso
estabelecer vários graus para ela.Assim nada pode impedir que seja a mesma para as
mulheres e homens.Com efeito, limitando-se toda a instrução a expor verdades, e destas
desenvolver as provas, é difícil entender como a diferença dos sexos na escolha dessas
verdades, ou na maneira de prová-las. (CONDORCET, 1991, p.87).
Nas observações postas pelo pensador há sugestões do que se pode fazer sobre a instrução
para às mulheres “podemos restringir–nos a fazê-las percorrer os primeiros graus, mas sem interditar
os outros àquelas que tivessem disposições mais felizes, nas quais suas famílias desejassem aprimorá-
las” (CONDORCET, 1991, p.87). Defendia Condorcet a participação das mulheres no
desenvolvimento das ciências com destaque às prováveis contribuições que poderiam trazer.
É possível compreender, com reflexão mais elaborada, as condições vividas por mulheres
brasileiras quando se depara com os costumes patriarcais fundados no controle das ações femininas
pela via da obediência hierárquica, submissão, coerção e violência. As ações dirigidas à educação
feminina caracterizavam-se por um conjunto de orientações destinadas a criar uma domesticidade da
qual as mulheres não tivessem saída e não acreditassem ser possível outro destino. Nesse processo
de construção ideológica não se deixava saídas senão aquelas consideradas “naturais” para o
feminino, a conjugalidade, a maternidade e o cuidado de outrem.
Perrot (2009, p.277) relata como a mulher solteira era apresentada na obra de Jules Simon, A
operária, de 1861: ‘Se é uma coisa que a natureza nos ensina com clareza é que mulher é feita para
ser protegida, para viver quando jovem junto à mãe, e esposa sob a guarda e a autoridade do marido
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[...] as mulheres são feitas para esconder sua vida’ (grifos meus). Pensava-se também dessa forma
numa das regiões cuja cultura, a política e o processo civilizatório serviram de orientação para outras
nações, em estágio menos avançado.
Com o advento da Independência do Brasil, houve uma intensificação de esforços para criar-
se um grupo populacional letrado num ambiente de quase total analfabetismo. O século XIX herdara
dos seus predecessores, no ocidente, o acúmulo de conhecimentos que trazia possibilidade de
avanços técnicos, científicos intelectuais como antes não se conhecera na Europa, os quais também
seriam exigidos para as nações que despontavam. Um país novo, para enfrentar a complexidade que
se impunha de fora dirigida pelo sistema econômico e social capitalista que passara a absorver e a
diluir as velhas formas relacionais do mundo do trabalho e seus desdobramentos nas demais esferas
da existência, requeria, com urgência, investimentos em educação. Com o crescimento urbano,
comercial/industrial o analfabetismo se tornara um embaraçoso obstáculo à modernidade pretendida.
Era impossível enfrentar os desafios que as novas formas societárias exigiam sem criarem-se gerações
preparadas para tanto. A ferramenta primeira deveria ser o letramento.
A Constituição do Império Brasileiro, 1824, abordava a necessidade da educação e prescrevia
que a instrução primária deveria ser gratuita para todos os cidadãos. Deveriam ser ensinados os
princípios da moral cristã e a doutrina da igreja católica. Privilegiar-se-iam os assuntos relacionados
à constituição do império e à história brasileira, no exercício do aprendizado da leitura. Com a
reforma Leôncio de Carvalho, em 1879, foi estabelecida a liberdade de ensino que permitiu a
fundação de colégios protestantes e os de orientação positivista. Benjamim Constant, em 1891,
“elaborou uma reforma de ensino de inspiração nitidamente positivista, defensora de uma ditadura
republicana dos cientistas e de uma educação como prática neutralizadora das tensões sociais”
(NASCIMENTO, 2004, p.95).
Nas duas primeiras décadas do século XX restaram as“ limitações impostas pelo mecanismo
de transplante cultural” (RIBEIRO, 1984, p. 77). Isso significava que a “[...] única doutrina filosófica
que havia conseguido reunir um grupo de adeptos no Brasil, o positivismo era apenas lembrança do
passado. [...] na Europa essa doutrina já havia sido enterrada quarenta anos atrás” (BASBAUM,
1962, p.290). Ressalta-se que, para substituir o pensamento positivista despontaram ‘novas
correntes’ de concepção da ciência e de perspectiva de apreensão do mundo ‘num todo’ (RIBEIRO,
1984, p. 77), as quais, o Brasil, pelas limitações da visão política, social e intelectual das lideranças,
não lograra acessar.
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Decorrente da dependência cultural como um dos desdobramentos da estrutura social
brasileira, a definição da educação nacional vergava-se ora para a tendência humanista clássica ora
para o cientificismo positivista. Tinha-se na reprodução dos modelos educacionais europeus a
imagem deformada no reflexo em espelho de má qualidade, representada num “idealismo estreito e
inoperante ao formar um pessoal sem instrumentação teórica adequada à transformação da realidade
em benefício de interesses da população como um todo [...]” (RIBEIRO, 1984, p.78). Nesse contexto
histórico, econômico, político e cultural marcado pelas fragilidades da nação imatura o
estabelecimento da educação para as mulheres não se constituía como um problema de significativa
monta, posto que secundária, como secundária era a importância social do universo feminino.
Pensava-se na coadjuvante da vida masculina como uma criatura a ser mantida pela obediência aos
preceitos patriarcais familiares e da religião que normatizavam e controlavam todos os seus
pensamentos, palavras e atos. Preparada para reproduzir os preceitos dominantes do ambiente
conservador, mulheres ideais correspondiam ao estereótipo da “ recatada, esposa e mãe”, educadora
das crianças do Brasil.
E o Serviço Social com isso? É no aprofundamento da busca pela origem das circunstâncias
multifacetadas em que a profissão emergiu que se vai situá-la para ser entendida como primeiro
resultado das iniciativas educativas gerais dirigidas para as mulheres brasileiras. Noutras palavras, a
formação das assistentes sociais erigiu-se sobre a base educacional comum, repressiva e
conservadora como uma profissão própria para mulheres, cuja vocação natural, reitera-se. É a
prevalência da conjugalidade e a maternagem com seus subprodutos.
O país, apesar das restrições estabelecidas nas suas bases estruturantes respondia às
determinações da expansão burguesa capitalista como ponderara Florestan Fernandes:
Na medida em que o Brasil já se integrara no sistema mercantil engendrado pela expansão
do capitalismo comercial e em que a ruptura dos nexos coloniais formais não implicava
nenhuma alteração profunda nas formas dessa integração, impunha-se uma evolução
paralela interna, que implantasse no País concepções econômicas, técnicas sociais e
instituições políticas essenciais para o intercâmbio e a associação com as Nações
hegemônicas do sistema (FERNANDES,1976, p.93, grifo meu).
Conquanto o status quo das relações senhorais tendessem a busca da manutenção da condição
de domínio que perpassava as esferas econômica, política e cultural da tradicional sociedade
brasileira, inexoráveis se tornaram as infiltrações redefinidoras das relações sociais, cuja abrangência
atingiria além do espaço público, a esfera doméstica / familiar com incidência na educação das moças
que passaram a estudar como internas em colégios destinados para esse fim. Afirmava-se
o transcorrer dos dias sempre iguais, suas ideias de disciplina severa e obediência, o
controle da correspondência, a regularidade da distribuição do tempo no exercício das
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atividades, o cultivo do silêncio, o incentivo às práticas de devoção e piedade, a constante
presença preventiva de membro da congregação, cobrindo a totalidade dos espaços do
colégio [...] (NADAI, 1991, p.19).
Num cenário de constante destituição de interesses próprios, de cerceamento das expressões
espontâneas, criativas e singulares se anunciam mulheres adestradas para uma vida de renúncia de
objetivos próprios, com reforço na missão de esposa e mãe, não como escolha, mas destino. As
atividades da educação confessional, católica ou protestante, ao reforçarem o papel familiar das
mulheres excluíam qualquer projeto de trabalho profissional. Remetia o seu cotidiano ao universo
doméstico-familiar a valorizar a doação, o desprendimento, a caridade e as atividades voluntárias.
Posteriormente, com a expansão urbana e industrial do país admitiu-se a participação feminina
massiva no ensino por serem as professoras portadoras de talentos naturais estendíveis da maternidade
para a educação mas, por outro lado, criticavasse o raciocínio raso das mulheres, pouco afeto à
complexidade de estudos aprofundados, dado serem “portadoras ‘cérebros pouco desenvolvidos’ pelo
seu ‘desuso’ [...]” (LOURO, 1997, p. 450). Os atributos femininos decantados como virtudes
inerentes às mulheres serviram a um padrão ideológico fincado na tradição autoritária do qual o
Estado brasileiro é tributário. Além da paciência, dedicação, afetividade e dedicação creditadas como
próprias das mulheres o seu processo educativo formal mantivera e reforçara tais aspectos ao
acrescentar-lhes o rótulo de ‘trabalhadoras dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras’ [...] (LOURO,
1997,p. 450), algo conveniente e adequado para a reprodução de populações submissas. A base
ideológica da constituição da profissão da assistente social absorve, na sua gênese, as inferências do
referencial ideopolítico da própria formação das educadoras, pois que esse antecede em torno de um
século o surgimento do Serviço Social no Brasil.
Avanços ocorridos no percurso afirmativo da profissão transitam da época do Serviço Social
tradicional ao reconceituado até a etapa contemporânea a demonstrarem maturidade intelectual,
teórica, ético-política e técnica conquistadas em convívio com as inquietantes questões que povoam
o dia a dia profissional. Há uma lacuna no processo da formação profissional no que tange à
indispensável compreensão das implicações das relações de gênero nas políticas sociais e nas
demandas da população atendida. “De forma pulverizada, quando não isolada, algumas (uns)
profissionais de Serviço Social têm se aproximado dos estudos de gênero e insistido na importância
da transversalidade dessa categoria na mediação teórica sobre as demandas que surgem no cotidiano
das práticas”(LISBOA, 2010, p.72). A insuficiência de aporte teórico sobre a temática é dificultadora
quando se busca resposta para as inquietações das profissionais:
[...] Os estudos de gênero têm contribuído para decifrar alguns questionamentos: por que
ao longo da história, a diferença sexual tem sido a principal causa da subordinação
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feminina? Como entender o alto índice de violência contra mulheres e abuso sexual
contra meninas? Por que as experiências de homens e mulheres têm sido construídas de
forma diferenciada? O que explica as hierarquias sexuais e as distribuições desiguais de
poder na sociedade? Como se assumem as identidades femininas e masculinas
consideradas fora de padrão de ‘normalidade’ estabelecido pela sociedade? (LISBOA,
2010, p.72)
A resposta à complexidade dos nexos que as indagações propostas abrangem requer a
sistematização dos estudos sobre relações de gênero, contemplados em disciplina específica, inserida
nas matrizes curriculares dos cursos de Serviço Social. A inconsistência das abordagens esporádicas
sobre relações de gênero não dão conta de instrumentalizar as profissionais do Serviço Social para o
enfrentamento lúcido da problemática abrangida pela questão. A justificativa da transversalidade das
relações de gênero implícita “em todas as disciplinas do curso de Serviço Social” traz o risco, nas
diversas inserções profissionais de superficializações, de desqualificação da categoria gênero e fazê-
la submergir no limbo dos estereótipos, preconceitos, equívocos e naturalizações distorcidas dos
papéis sociais de homens e mulheres, engessados pelas matrizes conservadoras de pensamento. A
existência da disciplina Relações de Gênero e Serviço Social nos currículos da formação acadêmica
se constitui em insubstituível oportunidade de expansão do conhecimento a partir da interpretação
adequada dos constructos socioculturais erigidos nas desigualdades criadas por interesses
determinados, generalizados na reprodução e reatualização de preceitos patriarcais de dominação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A colonização do Brasil caracterizou-se pela violência estrutural na apropriação da força de
trabalho escravizada, elemento fundador da economia na sociedade brasileira, refletida nas distintas
estâncias componentes da vida cotidiana, ou seja, no âmbito das relações políticas e culturais
caracterizando uma composição social fortemente hierárquica, também no ambiente doméstico e
familiar. Nessa conjuntura, o processo educacional destinado às mulheres ideologicamente é dirigido
à manutenção da dependência, da subordinação, da docilidade e afetuosidade como inerentes à
condição feminina. Tais atributos são reproduzidos no espaço profissional feminino por meio de
profissões consideradas próprias para mulheres como o magistério e o Serviço Social.
Contudo, os avanços sociais hão de requerer a dissolução dos arcaicos modelos educativos e
suas inculcações ideológicas pró conservadorismo autoritário e a maturidade conquistada pela
profissão do Serviço Social estabelecerá novas premissas para qualificar a formação das assistentes
sociais. Dentre as requisições para o exercício aprimorado das ações profissionais situa-se a imperiosa
necessidade dos estudos sobre relações de gênero como possibilidade de respostas possíveis à
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complexidade constituinte da vida social e da luta pela garantia de direitos. O adensamento teórico-
analítico adquirido pela via das reflexões acerca das relações de gênero contribuirá para a
compreensão e supressão dos processos limitadores contidos na própria trajetória educacional, com
a consequente desconstrução de preceitos dogmáticos e a ampliação do pensamento crítico libertador,
qualidade indispensável ao Serviço Social.
REFERÊNCIAS
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1962.
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FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio
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OF STRUCTURAL VIOLENCE IN BRAZILIAN FORMATION
TO THE EDUCATIONAL PROCESS OF BRAZILIAN WOMEN: IDEOLOGICAL IMPACT
ON FEMININE PROFESSIONS AND THE SOCIAL WORK
Abstract:This study is based on a bibliographical research aiming to reflecting about the structural
violence in the Brazilian formation and the influence exerted on the education of women, especially
in the definition of "feminine" professions, such as Social Work. In order to understand Brazil's
construction, it is assumed that is necessary to pass by the historical, social, economic, cultural and
political trajectory of the process, characterized by violence, whose effects will affect Brazilian
society, in which woman gained the role of reproducers, components of the legacy of male patriarchal
property that encompassed both women and slaves. The social workers were influenced by elements
that contain the ideology of repressive domestication, understood as adequate to the moral formation
of women. It is necessary, contemporaneously, to recognize the indispensable insertion of a discipline
that deals with Gender Relations in the academic formation of Social Workers as a way of expanded
understanding when talking about gender relations, and deconstructing stereotypes and common
preconceptions in the scope of the profession.
Keywords: Brazilian Formation. Structural Violence. Social Work.