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DA URBANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO AO URBANISMO DA REQUALIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS CENTRAIS: A REPRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO COMO FRONTEIRA INTERNA DA EXPANSÃO CAPITALISTA César Ricardo Simoni Santos* *Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] RESUMO: As cidades brasileiras, entre 1950 e 1980, apesar de ficarem à margem do processo de gentrificação, não ficaram isentas de participação na reprodução do capital em escala internacional. A forma de inserção do território brasileiro no universo dos negócios altamente rentáveis se deu a partir de dispositivos típicos de um país de economia periférica e com um território, do ponto de vista da circulação capitalista, ainda por desbravar. Enquanto no centro da economia capitalista o espaço urbano, já consolidado por toda extensão territorial, atendia aos imperativos da valorização por meio da “requalificação” de áreas centrais no interior das cidades, no Brasil novas periferias eram inseridas recorrentemente no universo da circulação de valores a partir da urbanização do território. É somente na década de 1990, com a falência de um Estado protodesenvolvimentista, que a capacidade de expansão territorial da fronteira urbana se arrefeceu. É nessa nova fase que as grandes metrópoles brasileiras vão conhecer a revalorização dos terrenos centrais como parte da estratégia de reprodução do capital. PALAVRAS-CHAVE: Urbanização; Fronteira de expansão; Sobreacumulação; Gentrificação; Mercado imobiliário. ABSTRACT: Although Brazilian cities did not undergo the process of gentrification, from 1950 to 1980, they felt the international expansion of capitalism.The inclusion of Brazilian territory in the scope of profitable business happened in accordance to its economic condition as an emerging country whose territory, from the point of view of capitalist circulation, was yet to be explored. While in the core of capitalist economy urban space, already consolidated all over the territory, attended to the demands of valorization mostly through re-qualifying of downtown areas, in Brazil new suburban areas were inserted in the circulation of capital as they expanded. It is only after the 1990’s, following the bankrupcy of the so-called ‘developmentalist’ state, that the capacity for urban expansion decreased. It was, therefore, from that decade on that the big Brazilian cities witnessed the valorization of downtown areas as a strategy for the reproduction of capital. KEY WORDS: Urbanization; Frontiers; Over-accumulation; Gentrification; Real state market. 1. Introdução “Enquanto os mercados discutem e temem o estouro da bolha do mercado imobiliário americano, empresários do setor procuram boas oportunidades em economias emergentes”. Assim se inicia uma matéria publicada na Folha de São Paulo, no dia 16 de abril de 2006. E, de fato, o ano de 2006 apresentou grandes possibilidades de lucros no setor. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, pp. 28 - 49, 2008

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DA URBANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO AO URBANISMO DAREQUALIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS CENTRAIS: A REPRODUÇÃO DO

ESPAÇO URBANO COMO FRONTEIRA INTERNA DA EXPANSÃOCAPITALISTA

César Ricardo Simoni Santos*

*Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

RESUMO:As cidades brasileiras, entre 1950 e 1980, apesar de ficarem à margem do processo de gentrificação,não ficaram isentas de participação na reprodução do capital em escala internacional. A forma deinserção do território brasileiro no universo dos negócios altamente rentáveis se deu a partir dedispositivos típicos de um país de economia periférica e com um território, do ponto de vista dacirculação capitalista, ainda por desbravar. Enquanto no centro da economia capitalista o espaçourbano, já consolidado por toda extensão territorial, atendia aos imperativos da valorização pormeio da “requalificação” de áreas centrais no interior das cidades, no Brasil novas periferias eraminseridas recorrentemente no universo da circulação de valores a partir da urbanização do território.É somente na década de 1990, com a falência de um Estado protodesenvolvimentista, que acapacidade de expansão territorial da fronteira urbana se arrefeceu. É nessa nova fase que asgrandes metrópoles brasileiras vão conhecer a revalorização dos terrenos centrais como parte daestratégia de reprodução do capital.PALAVRAS-CHAVE:Urbanização; Fronteira de expansão; Sobreacumulação; Gentrificação; Mercado imobiliário.

ABSTRACT:Although Brazilian cities did not undergo the process of gentrification, from 1950 to 1980, they feltthe international expansion of capitalism.The inclusion of Brazilian territory in the scope of profitablebusiness happened in accordance to its economic condition as an emerging country whose territory,from the point of view of capitalist circulation, was yet to be explored. While in the core of capitalisteconomy urban space, already consolidated all over the territory, attended to the demands ofvalorization mostly through re-qualifying of downtown areas, in Brazil new suburban areas wereinserted in the circulation of capital as they expanded. It is only after the 1990’s, following thebankrupcy of the so-called ‘developmentalist’ state, that the capacity for urban expansion decreased.It was, therefore, from that decade on that the big Brazilian cities witnessed the valorization ofdowntown areas as a strategy for the reproduction of capital.KEY WORDS:Urbanization; Frontiers; Over-accumulation; Gentrification; Real state market.

1. Introdução

“Enquanto os mercados discutem etemem o estouro da bolha do mercadoimobiliário americano, empresários do setorprocuram boas oportunidades em economias

emergentes”. Assim se inicia uma matériapublicada na Folha de São Paulo, no dia 16 deabril de 2006. E, de fato, o ano de 2006apresentou grandes possibilidades de lucros nosetor.

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A magnitude do aumento da oferta(Gráfico 1), seguido de perto pelo aumento doslucros, foi o sinal positivo de que o mercadoimobiliário em São Paulo se apresenta numperíodo de ascendência e bastante receptivoaos novos investimentos. No dia 15 de marçode 2007, a Cyrela, a maior incorporadora deedifícios residenciais em São Paulo e no Rio deJaneiro, anunciou que seu lucro havia dobradono ano de 2006: “Em São Paulo, foram 28.324unidades vendidas em 2006, número recorde,o que significa expansão de 19%.

O lucro líquido da companhia alcançou R$242 milhões, ante R$ 128 milhões no anoanterior (...). A margem de lucro cresceu 3,1pontos percentuais, para 21,7% em 2006",segundo dados publicados na Folha de SãoPaulo em 15/03/2007.

Desse ponto de vista, as análises doduque de Westminster, dono do conglomeradoimobiliário Grosvenor, mostram-se bastanteprecisas. Em 2006, Gera ld Grosvenorclassificou a cidade como a “bola da vez”,conforme reportagem do caderno “Dinheiro”da Folha de São Paulo (16/04/2006). Contudo,isso não deveria soar como nenhuma grandenovidade.

De 1995 à 2000, “as at ividadeimobiliárias foram responsáveis por 20,8% dosinvestimentos realizados na Grande São Paulo”,segundo Ana Fani Alessandri Carlos (2004, p.58). Bem atrás, a indústria automobilística foiresponsável por 17,4%, a indústria química por9,8%, o comércio varejista por 7,1% e astelecomunicações se responsabilizaram por6,2%. Ana Fani Carlos chama atenção para ofato de que essa distribuição aponta para “umanova tendência do setor de investimentos daeconomia”. A autora l iga à expansão e àconcentração do setor de serviços na metrópoleum poderoso ressurgimento dos capitaisinvestidos no imobiliário acompanhado de umaindústria da construção civil “voltada para aconstrução dos escritórios verticais” (CARLOS,2004, p. 58 e 59). Desse modo, tanto aconstrução de modernos e eficientes prédios deescritórios para a locação quanto a venda deimóveis residenciais alimentam o impulso dadoao setor nos últimos anos. Dito de outra forma,tanto a requalif icação de espaços, antesresidenciais, para o desenvolvimento de umaatividade terciária ligada às mais modernasformas de gestão empresarial e de fundos,quanto a gentrificação, surgem como poderosasforças de transformação do espaço e respondem

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às expectativas de realização de lucros no setorimobiliário.

A questão a que procuro responder aquié sobre quais elementos vão recair aespecif icidade desse processo atual dereprodução capitalista do espaço, e qual ocaminho percorr ido por esses capitais atéchegarem na reprodução do espaço urbanocomo centro dos mecanismos de acumulação.Um breve esboço do que será apresentado deveser suficiente para preparar o caminho. Para issoé preciso recorrer à noção de fronteira deexpansão com o intuito de circunscrever não sóas diferenças que caracterizam o que seentende por fronteira externa e fronteirainterna, mas também às coincidências entre oplano lógico e a dimensão espacial no interiorde cada uma dessas denominações.

Fronteira de expansão capitalistaexterna e interna

O estabelecimento dos territórios depaíses de economia periférica como a novafronteira do capitalismo internacional, a partirda segunda metade do século XX (IANNI, 1977;RANGEL, 1980; TAVARES, 1986; e FIORI, 2003),não vai se dar sem impactos na própria formade organização espacial da economia brasileira.Simultaneamente, duas escalas de reproduçãodo capitalismo se encontram no território.Nesse caso, o que está em questão é a própriaexpansão do capitalismo no espaço mundial,colonizando e incluindo novos rincões territoriaisno complexo universo dos fluxos de valores emescala internacional. O capitalismo internacionalse utiliza, aqui, dos espaços nacionais, na escalaterritorial, para uma estratégia de reproduçãoampliada das relações de produção.

Um aspecto desse processo que é dignode nota é a coincidência entre o plano lógico ea configuração espacial do tipo deexpansionismo que se elabora a partir dessaescala. Durante a década de 1950, o territóriobrasileiro foi, a partir das ações do Estado,disponibilizado em porções cada vez maiores

para os fins da acumulação de capital. Trata-sede um movimento que insere territórios nãopropriamente capital istas na lógica dereprodução ampliada do capital (OLIVEIRA,1975). Nessa medida, a inserção dessesespaços na lógica de reprodução do capitalrepresenta um tipo de acumulação primitivasegundo a qual tais processos de reproduçãonão se dariam sem o enxerto recorrente derecursos externos ao próprio universo davalorização capitalista. Desse modo, é naperiferia que a própria noção do capitalismocomo um sistema de auto-valorização fechadoe coerente se desfaz de forma mais evidente.Na medida em que os mecanismos dereprodução do capital parecem se esgotar,torna-se necessário alimentá-lo a partir dofornecimento de suprimentos externos. Nomomento em que se esgotam as forças quealimentam a farsa de um processo devalorização auto-sustentado, esse impulsopredatório do capitalismo passa a recair sobreconfigurações diferenciais, e que, nesse caso,tratava de incluir formações sócioespaciais não-capitalistas nos processos de valorização docapital. A fronteira de expansão do capital,nesse caso, opera a partir de um mecanismode transferência típico de estruturas deacumulação primitiva a serviço da reproduçãodo mais moderno capitalismo. Configura-seassim uma fronteira externa que faz coincidir,na mesma zona de contato, processos deacumulação que não participam de uma lógicapropriamente capitalista de reprodução do valore um território em transformação agitado poressa forma híbrida dos processos deacumulação. Na fronteira territorial de expansãocapitalista entram em contato uma lógica nãopropriamente capitalista de reprodução docapital e uma configuração territorial (típica defronteira) que mescla elementos e formas não-capitalistas a processos de valor ização docapital. O avanço sobre essa fronteirarepresenta a inclusão de novas áreas àextensão do processo de reprodução ampliadado capital em escala internacional. Umadeterminação recai sobre essa configuraçãoparticular da estrutura de reprodução ampliada

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do capital: as fronteiras de acumulação primitivarepresentam a zona de contato entre o local eo global; trata-se do lugar da redefinição de umageografia local em direção ao mundial.

Dito dessa forma, poder-se-ia imaginarque, se o processo de expansão do capitalismoé inevitável segundo essa lógica de reproduçãoampliada do capital, o total de áreas disponíveiscomo recursos externos para alimentar taismecanismos incessantes de valorização estariase esgotando. A exemplo de Rosa Luxemburgo(1985), alguns autores chegaram, inclusive, afazer prognósticos a respeito do colapso finaldas estruturas de acumulação capitalista emfunção do escasseamento de tais fronteiras deexpansão. Essa não é a perspectiva aquiadotada. Outras formas para a resolução deproblemas pertinentes aos mecanismos deacumulação podem ser vislumbradas a partir deuma reordenação espacial de territórios jáplenamente envolvidos e produzidos segundouma lógica capitalista de reprodução do valor.

Segundo uma dinâmica expansionistaque recai sobre espaços elaborados segundoum padrão de produção e circulação jáplenamente capitalista, o impulso predatório docapital pode recair sobre o próprio capitalinstalado e sobre formações capitalistas demenor competitividade ou influência política nojogo de forças que irá definir o destino dosgolpes de desvalorização (HARVEY, 2004). Nessecaso, uma reordenação espacial de um espaçopreviamente capitalista é suficiente para mudarde mãos um montante de ativos e de condiçõespara investimentos. Segmentos específicos quese definem no interior da classe capitalista emgeral se beneficiam da transferência que seopera agora não mais sobre fatores alheios aosatuais mecanismos de valorização; espaçospreviamente capitalistas que atendiam a umadeterminada organização de fluxos de valorespassam a atender a uma nova organização quebeneficia mais uns do que outros nessa lutaintercapitalista pela valorização e acumulaçãodo capital. Dessa forma, as crises ou choquesde desvalorização maciça de capitais dizemrespeito à “fases da acumulação originária às

expensas de capitalistas já existentes” (HARVEY,1990, p. 440). “Marx demonstrou que uma certaconcentração social e centralização do capitaleram, ao mesmo tempo, um pré-requisito e umproduto da acumulação de capital. (...) Istosignifica dizer que proporções progressivamentemaiores de capital são controladas por umnúmero cada vez menor de capitalistas” (SMITH,2007, p. 23).

Se no primeiro caso o território nacionalfoi primordialmente a escala que definiu oprocesso, aqui o espaço urbano, a cidade ou ametrópole definem a escala preferencial dessesoutros processos. Não que não haja umexpansionismo de colonização ou exploração defronteiras externas na cidade, nem que não hajareordenações espaciais capitalistas sobreterritórios previamente capitalistas na escala doterritório nacional, mas não são exatamentenessas escalas que tais processos ganhamdestaque.

A concentração de atividades, fluxos efixos de capital no espaço urbano determina omais alto grau de capitalização do espaço. Acidade, essa história materializada no espaço,traz consigo as soluções, formas einfraestruturas de diferentes ciclos deacumulação. Cada configuração atende a umdeterminado compromisso com a distribuição devalores no interior da classe capitalista. Cadatransformação do espaço implica adesvalorização de um certo número de ativosou infraestruturas voltados à valorizaçãocapitalista numa determinada configuraçãoespecífica. Esse processo pode servir pararestabelecer os mesmos padrões de distribuiçãoanteriores ou modificar o peso relativo de cadasetor ou grupo no interior de uma dadaconfiguração espacial. Esse último tem sidofrequentemente o caso que explica ofortalecimento de um determinado setor noramo dos negócios imobiliários, principalmentequando as estratégias desse setor se tornampossíveis a partir das transformações materiaisempreendidas com a mediação do poder públicono espaço urbano das metrópolescontemporâneas. Dessa forma, não só a

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fronteira de expansão se volta para o interiorde espaços já colonizados pela lógica deacumulação capitalista, como um processo deespoliação e transferência, típico demecanismos de acumulação primitiva, recai,agora também, sobre formações previamentecapitalistas. É nesse sentido que se consolidaum novo t ipo de fronteira de expansãocapital ista. A fronteira interna é assimdenominada em função de uma dupladeterminação: a lógica de expansão capitalistae as estratégias de reprodução ampliada docapital se fazem pesar sobre configurações jápropriamente capitalistas, avançando sobresegmentos de menor poder; ao mesmo tempo,o espaço que serve de material para taisoperações não representa uma zona de contatoentre lógicas sociais radicalmente distintas, masapenas o lugar do conflito entre segmentos econfigurações que se diferenciam no interior daorganização da mesma classe capitalista.

Em ambos os casos, tanto noestabelecimento de uma fronteira externaquanto no que diz respeito à elaboração defronteiras internas, é possível identificarmecanismos de acumulação primitiva e detransferência de valores (posições, ativos eoutros fatores que interferem diretamente noplano de acumulação capitalista) que se dão porfora dos processos reconhecidamentecapitalistas de valorização. Os processos deacumulação não se restringiram, em ambos oscasos, aos processos de valorizaçãopropriamente capitalista do capital. É isso quedefine essas regiões de fronteira de expansãocomo zonas permanentes de acumulaçãoprimitiva. No entanto, a internalização dafronteira, no interior dos espaços urbanos e deconfigurações espaciais capitalistas, redefine osprocessos de acumulação primitiva comoelementos at ivamente endógenos aosmecanismos de valorização, numa expansão quepode se prolongar ao infinito, uma vez queconsome a si mesma e não depende dadisponibilização reiterada de porções não-capitalistas do território.

2. A exploração da fronteira externa,o comércio com formações sociais não-capitalistas e a urbanização brasileira

Não é de hoje que a produção ereprodução do espaço urbano ocupam o centrodas estratégias que visam a reproduçãocapitalista no Brasil. No entanto, o crescimentoda economia, que se manifesta a partir depadrões territorialmente expansionistas, pôdecontar, por aqui, com a presença de um enormeestoque de elementos não capitalistas quevieram a fortalecer os processos correntes deacumulação do capital. Essa expansão se davasobre uma base territor ial com um baixocoeficiente de modernização nas relações detrabalho e com uma ordenação capitalista doespaço relativamente inexistente. O avanço dafronteira urbana no território brasileiro inseriurecorrentemente novos rincões territoriais nouniverso da circulação capitalista. Uma espéciede reserva territorial, que foi utilizada na mesmamedida em que a urbanização fazia avançar afronteira externa do capitalismo no Brasil, nutriuos mecanismos de acumulação a partir de umrepasse da renda não capitalista. O crescimentoeconômico-territorial brasileiro apresenta umpadrão típico de processos de acumulaçãoprimitiva. Esse foi o mecanismo que gerou umarenda suplementar em favor da consolidação deum padrão urbano-industrial na economiabrasileira. Um lucro extraordinário utilizado paraa expansão territorial do capitalismo no Brasil eapropriado pela classe responsável pelasinversões “milagrosas” que evidenciaram asbenesses da configuração territorial brasileira.

A partir da década de 1930, dadas asdif iculdades para se importar os bens deconsumo industrializados e o represamento dedivisas em território brasileiro (por ocasião daGuerra e da grande crise de l iquidezinternacional deflagrada em 1929), osinvestimentos em ativos da economia internapassam a contar com um aumento significativonos setores industriais. A migração de capitaisdos setores agrícolas para os setores industriaisde nossa primeira fase efetivamente industrialdá origem a uma organização terr itor ial

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regionalmente concentrada. Os capitais do café,concentrados em São Paulo, aproveitam-se dascondições territoriais já implantadas na regiãopara implementar o novo parque industrialnacional (SILVA, 1976). Dessa forma, foi a própriaeconomia do café que gestou as bases para aimplantação regionalizada da primeira indústriabrasileira. As infraestruturas territoriais herdadasdo ciclo anterior determinaram a opção pelainstalação da nova indústria substitutiva em SãoPaulo (SANTOS, 2005). As ferrovias construídas,um potente e relativamente maduro mercadoconsumidor, além de um vigoroso exército detrabalhadores “livres” eram vantagens regionaisofertadas à instalação local da empresaindustrial. Mas não se pode dizer que a boaaventurança do capital industrial brasileiro emSão Paulo deveu-se exclusivamente a esseinstrumental técnico-espacial instalado. Um outroconjunto de relações espaciais determinou amanutenção dos mecanismos de concentraçãocapitalista no Brasil.

O que está na base do êxito de nossaprimeira empresa industrial, para além dainfraestrutura instalada territorialmente e de umdiferenciado meio técnico e social – o que essebelo conto bem urdido não nos diz –, é o comérciodas modernas formas de exploração capitalistado trabalho localizadas no Sudeste com umaestrutura pré-capitalista de exploração dotrabalho na agricultura, localizada no Oeste deSão Paulo e Centro-Oeste brasileiro. Franciscode Oliveira, na sua Critica à Razão Dualista,chama a atenção para a existência de uma“reserva de acumulação primit iva” que semantém incrustada na própria formaçãoterritorial do Brasil (OLIVEIRA, 1975). Bolsõesdistantes de exploração não propriamentecapitalista do trabalho alimentam um tipo deacumulação urbano-industrial fundado nasrelações liberais entre patrão e empregado noCentro-sul do País. Esses territórios, nãotransformados ainda completamente pela lei dovalor, sustentam, a partir de um sobretrabalhonão contabilizado em seu lugar de origem, odinâmico movimento de um Sudesteindustrializado. Contudo, as horas de trabalho

destinadas à produção de art igos desubsistência, que aliviam o empregador deencargos maiores contabilizados nos saláriospagos ao trabalhador da lavoura (o que implicauma diminuição dos preços correntes dosalimentos em todo o território), não são asúnicas fontes extra-capitalistas do sucesso denossa industrialização. A própria configuraçãoterritorial brasileira, que pode contar com umafaixa Leste bastante urbanizada e maissuscetível às transformações de umamodernidade de ultramar e um Centro-oesteavesso à velocidade dessas mesmastransformações, deu origem à formação de umterritório com reservas expansionistas que seria,passo a passo, utilizado segundo o grau deexigência de reprodução das forças produtivas(SANTOS, 2006).

Francisco de Oliveira (1975) denunciaessa relação a partir de um mecanismo detransferência reiterada da renda não-capitalista,a ser apropriada por uma classe dirigente que,em parte, se modernizava nos anos dapassagem de uma economia agro-exportadorapara uma acumulação de tipo urbano-industrial.A porção do território brasileiro que funcionavacomo um fundo de reserva de acumulaçãoprimitiva se refere, fundamentalmente, a umaimensa quantidade de terras a ser destinadana forma de ativos de capital para as mãos deempreendedores capitalistas. Esse processo decolonização e capitalização inicial das terras ede novos agentes na agricultura brasileirafuncionava sob uma oferta bastante grande demão-de-obra e com a possibil idade de ostrabalhadores produzirem, ainda, no “tempolivre”, seus próprios meios de subsistência, oque implicava níveis salariais baixíssimos. Noentanto, segundo Francisco de Oliveira (1975),os frutos desse processo cont inuado deacumulação primitiva e de superexploração dotrabalho no campo brasileiro não serviu somenteaos proprietários das terras rurais em que esseprocesso se efetuava. Os setores urbano-industr iais do Sudeste se beneficiaramsobremaneira pela manutenção de umaprodução de al imentos a baixos preçosproporcionados pela constante expansão das

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fronteiras econômicas em direção ao Centro-Oeste.

“Assim, tanto na abertura de fronteiras‘externas’ como ‘internas’, o processo é idêntico:o trabalhador rural ou morador ocupa a terra,desmata, destoca e cultiva as lavourastemporárias chamadas de ‘subsistência’; nesseprocesso ele prepara a terra para as lavouraspermanentes ou para a formação de pastagens,que não são dele, mas do proprietário. Há,portanto, uma transferência de ‘trabalho morto’,de acumulação, para o valor das culturas ouatividades do proprietário, ao passo que asubtração de valor que se opera para o produtordireto reflete-se no preço dos produtos de sualavoura, rebaixando-os. Esse mecanismo é oresponsável tanto pelo fato de que a maioriados gêneros alimentícios vegetais (tais comoarroz, feijão, milho) que abastecem os grandesmercados urbanos provenham de zonas deocupação recente, como pelo fato de que apermanente baixa cotação deles tenhacontribuído para o processo de acumulação nascidades; os dois fenômenos são, no fundo, umaunidade. No caso das fronteiras ‘externas’ oprocesso se dá mediante o avanço da fronteiraagrícola que se expande com a rodovia... No casodas fronteiras ‘internas’, a rotação de terras enão de culturas, dentro do latifúndio, tem omesmo papel... O morador, ao plantar sua ‘roça’,planta também o algodão, e o custo dereprodução da força de trabalho é a variável quetorna comercializáveis ambas as mercadorias”.(OLIVEIRA, 1975, pp. 16-17).

Dessa forma,

“A solução do chamado ‘problema agrário’ nosanos da ‘passagem’ da economia agrário-exportadora para urbano-industrial é um pontofundamental para a reprodução das condiçõesda expansão capitalista. Ela é um complexo desoluções, cujas vertentes se apóiam no enormecontingente de mão-de-obra, na oferta elásticade terras e na viabilização do encontro dessesdois fatores pela ação do Estado construindo ainfraestrutura, principalmente a rede rodoviária.Ela é um complexo de soluções cujo

denominador comum reside na permanenteexpansão horizontal da ocupação combaixíssimos coeficientes de capitalização e atésem nenhuma capitalização prévia: numapalavra, opera como numa sorte de ‘acumulaçãoprimitiva.” (OLIVEIRA, 1975, p. 16)

É importante ressaltar aqui, no entanto,que aquela oferta elástica de terras não segueos padrões ofertados pela economia políticaclássica da relação entre terra e capital. NoBrasi l, o desenvolvimento das relaçõescapitalistas de produção e o surgimento de umaburguesia nacional não aboliram o monopólioda propriedade de terras concentrado nas mãosde uma oligarquia. Esse fator atribui ao modelobrasi leiro a especif icidade de ter sidoengendrado com um custo adicional, que no finaldas contas foi apropriado por uma burguesiaque mal se distinguia da antiga oligarquia deterras. Esse processo se dá da seguinte forma:a existência do monopólio das terras,concentrado nas mãos de uma classe herdeirada coroa e das práticas ilegais de grilagem,garante a essa mesma classe o poder de cobrarda sociedade inteira pelo direito de colocar essaterra para produzir. A permanência dos direitosde propriedade territorial conservados nasmãos dessa classe sugere, portanto, um tipode “renda da terra” que possui característicaspré-capitalistas. A “renda da terra absoluta”,como é tematizada por uma importante vertentebrasileira dos estudos de Geografia Agrária,passou a compor os mecanismos distributivosda mais-valia gerada em território nacional(OLIVEIRA, 1990). Sua especificidade enquantoelemento de formação pré-capitalista advém dofato de que sua existência prescinde do grau edas condições da produção e da concorrêncianos mercados de produtos agrícolas ouindustriais. Somente a concentração dos títulosde propriedade já é razão para sua vigêncianum esquema distributivo que remunera oproprietário simplesmente por este (sua classeou fração de classe) ser o dono de todas (ouquase todas) as terras disponíveis. Dessaforma, a permanência desse fator no esquemade distr ibuição da mais-valia no território

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nacional cobra um tributo da sociedade inteirapara pôr a terra para produzir, o que seexpressará no preço final do produto nacional.Contraditoriamente, essas tendências opostasno que diz respeito ao comportamento dospreços e dos custos de produção vão se reverternum benefício ainda maior para a classeemergente no interior de um espaço ondevigoram esses mecanismos distributivos.

Segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira:

...a renda da terra absoluta resulta dapropriedade privada do solo e da oposiçãoexistente entre o interesse do proprietáriofundiário e o interesse da coletividade. Resultado fato de que a propriedade da terra émonopólio de uma classe que cobra um tributoda sociedade inteira para colocá-la para produzir.(OLIVEIRA, 1990, p. 104)

...a renda da terra absoluta é aquela que resultado monopólio da terra por uma classe ou fraçãode classe... Assim a renda da terra absoluta éresultante da elevação dos preços dos gênerosalimentícios acima do preço de produção dessesgêneros, pr incipalmente por ação dosmonopólios. Isto porque os proprietáriosfundiários só permitem a utilização de suasterras quando os preços de mercadoultrapassam os seus preços de produção. Dessaforma obtém um lucro extraordinário, que aocontrário da renda diferencial não é fração dotrabalho excedente dos trabalhadores daquelaterra em particular, mas sim fração da massade mais-valia global dos trabalhadores em geralda sociedade... (OLIVEIRA, 1990, p. 104)

Dessa forma, a preservação domonopólio das terras nas mãos de uma classede proprietários se revela uma irracionalidadedo ponto de vista da produção e reproduçãode relações sociais capitalistas. Isso sugereum custo adic ional de produção quecompromete parte significativa da mais-valiaproduzida com os acertos distributivos quedeixam retidos, sob a forma de renda, partedo capital a ser empregado nos sucessivosciclos de valorização.

Esse comprometimento, por sua vez, nãose restringe aos investimentos de capital naagricultura. Em contrário, uma vezrepresentando agora um custo adicional deprodução no campo, a elevação dos preços, daídecorrente, é repassada aos capitalistas dacidade sob a forma de um aumento no custo dereprodução da força de trabalho e da parte docapital empregada no custeio das matérias-primas, logo, uma diminuição da mais-valia e,mais expressivamente, do lucro total, tambémnos setores industr iais. Segundo essaapreciação simplificada do modelo clássico, rendada terra e reprodução do capital se colocamcomo elementos antagônicos, conjugados,ainda assim, na economia brasileira. Por isso,segundo José de Souza Martins,

Ao contrário do que ocorria com o modeloclássico da relação entre terra e capital, em quea terra (a renda territorial, isto é, o preço daterra) é reconhecida como entrave à circulaçãoe reprodução do capital, no modelo brasileiro oempecilho à reprodução capitalista do capital naagricultura não foi removido por uma reformaagrária, mas pelos incent ivos fiscais. Oempresário pagava pela terra, mesmo quandoterra sem documentação lícita e portantoproduto de grilagem, isto é, de forma ilícitas deaquisição. Em compensação, recebiagratuitamente, sob a forma de incentivo fiscal,o capital de que necessitava para tornar a terraprodutiva. O modelo brasileiro inverteu o modeloclássico. Nesse sentido, reforçou politicamentea irracionalidade da propriedade fundiária nodesenvolvimento capitalista. (MARTINS, 1994,pp. 79-80)

O custo adicional de produção,justificado pela permanência da renda fundiáriaabsoluta, que poderá se expressar numa altados preços de origem agrícola, não deverá,portanto, contradizer a tendência à baixa depreços proporcionada pelo caráter primitivo daprodução agrícola nacional como fonte de ummecanismo particular de acumulação. Tratam-se de dois fatores distintos que podem atuarem direções opostas ou de forma complementarpara a definição dos preços f inais e da

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magnitude da renda monetária apropriada poresses proprietários. O fato é que, em relaçãoao primeiro, a renda fundiária é reapropriadapelo capitalista, que atua simultaneamente, porser também ele o dono das terras, comolat ifundiário e rentista. A fonte de suaremuneração detém uma composição tãohíbrida, ao ser remunerado enquanto capitalistae proprietário de terras, quanto é a sua própriaclasse. Nesse sentido, contudo, enquantobarreira para a reprodução do capital naagricultura, a renda fundiária não representoununca problema algum para a classe dominantedetentora de terras, uma vez que quandoaumentava sua part icipação na estruturadistributiva da economia brasileira essa mesmaclasse também se beneficiava pelo caráterrentista que assumia enquanto proprietária deterras. Por conta disso, a estrutura fundiáriabrasileira permaneceu concentrada enquanto sedesenvolviam novas formas mais modernas deextração do sobreproduto social, nos espaçosurbanos e industriais do Sudeste capitalista. Emrelação ao caráter primitivo da produção nasfronteiras de expansão agrícola, também ele foipreservado como forma de extração de umacomponente pré-capitalista do excedente detrabalho na lavoura, somando-se assim essesdois fatores no fortalecimento de uma classeque surge como burguesia sem ter deixado deser latifundiária.

Curiosamente, foi nos anos de maioresforço para a modernização que essasrelações com sistemas primitivos de extraçãodo sobreproduto social se estreitaram aindamais. A partir do esforço conjunto entre Estadoe capital privado, desenhado com mais clarezana constituição do “tripé econômico” (TAVARES,1986) e trazido no discurso ideológico queclamava por um pacto nacional pelodesenvolvimento e pela modernização(CARDOSO, 1978), o poder público entradefinitivamente em favor do grande capitalprivado ao disponibilizar porções do territórionacional numa velocidade ainda maior. Apromoção de uma indústria que supera aincipiente configuração conquistada nos anosda substituição de importações não vai sem a

intensa participação do Estado. Isso porque, atendência segundo a qual um parque industrialincompleto, do ponto de vista de suacomposição setorial, irá produzirconstantemente excedentes de capital, teve deser absorvida a partir do aumento frequente dosgastos públicos, já que parte da renda geradanão retornava ao circuito industrial da economia.A exemplo da indústria de substituição deimportações, o próprio processo deindustrialização brasileiro nunca conseguiu gerarum efetivo de demanda que tornasse a empresaindustrial uma componente auto-suficiente esustentável (MELLO, 1982; TAVARES, 1986; eFIORI, 2003). A proletarização da mão-de-obra,ou mais especificamente, a transformação dotrabalhador agrícola em mão-de-obra urbana eassalariada, nunca ocorreu, como produtodessa indústria, na velocidade demandada pelomesmo incremento técnico que a industrializaçãode alguns ramos produtivos representou. Oacesso a novos mercados no interior dos limitesterritoriais brasi leiros nunca se expandiusat isfatoriamente a part ir de um esforçoendógeno inteiramente comprometido com aindustrialização. Uma economia industrial naqual a oferta cresce sempre à frente dademanda exige, em condições normais decrescimento econômico, um esforço políticoextracapitalista vindo direto do Estado. Umesforço de industrialização sob essas condiçõessignificou uma obrigação por parte do Estadode assumir os efeitos negativos de cada ondade inovação tecnológica para a continuidade dosmecanismos de crescimento. Na passagem deum padrão industrial de subst ituição deimportações a uma nova fase que vai contar jácom os três setores básicos de uma economiaindustrial, ao contrário do que se poderia preverem condições clássicas de industrialização, ainstalação de capital novo em território brasileiroimplicou um “crescimento acelerado dacapacidade produtiva do setor de bens deprodução e do setor de bens duráveis deconsumo antes de qualquer expansão previsívelde seus mercados” (MELLO, 1982, p. 117). Essatendência à produção de excedentes gera, noentanto, na sua paridade lógica, uma tendência

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à desvalorização de capitais. Ao atuar nosentido de gerar aquilo que não erasuficientemente produzido pelo capital industrialcomo parte de suas próprias condições dereprodução, o Estado arca com a desvalorizaçãoesperada sob a forma do aumento dos déficitspúblicos. Dessa forma, a economia industrialbrasileira é levada a crescer sob a pressão deum excesso de capacidade produtiva instalada,num ritmo de crescimento da produtividadebastante lento do ponto de vista de um paísimportador de tecnologia avançada. Portanto,a consolidação de uma nova fase daindustrialização brasileira só foi possível a partirdo crescente investimento em infra-estruturasterritoriais e da promoção de um setor inteiroque cobra tributo dos gastos estatais. Com aabertura de estradas, a construção de Brasíliae os programas de desenvolvimento regional,novos r incões subexplorados do territóriobrasileiro entram no circuito mundial de valores.A urbanização do território, na fase que se iniciaapós a Segunda Grande Guerra, desempenhaesse papel. A interiorização da rede urbana e aelaboração de um Estado que se posiciona comoa principal fonte dos empregos de uma classede trabalhadores livres, abriam novas frentesterritoriais de acumulação com o aumento daclasse de trabalhadores urbanos. A urbanizaçãoda sociedade brasileira guardava, no fundo falsodo discurso modernizador e desenvolvimentista,a transferência de ativos altamente rentáveissob a forma da disponibilização de porções doterritório. A despossessão do trabalhador, quese opera na urbanização da mão-de-obra,forneceu, simultaneamente, o trabalhador livrepara a indústria e um espaço de circulaçãocapitalista cada vez mais amplo. A requalificaçãodessas porções distantes do território nacional,operou a transformação que sinalizava para aindústria o nascimento de novas condições decirculação. No regime militar a implantação deprojetos de “desenvolvimento” agrícola eregional deu condições para a reunião dosinteresses das classes proprietárias peloempreendimento agrícola de grande escala epara exportação. Em suas sucessivas fases, doSul para a ocupação do cerrado (PRODECER) e,

posteriormente, na ocupação da Amazônia,(Calha Norte, Jarí, Zona Franca de Manaus,SUDAM etc.) o latifundiário foi beneficiado pelopacto que o alimentava do orgulho de produtor.Para José de Souza Martins (1994), o “atraso”carrega uma positividade na definição dasespecificidades do modelo brasileiro. “No Brasil,o atraso é um instrumento de poder”, diz Martins(1994, pp. 13), e isso “reforçou politicamente airracionalidade da propriedade fundiária nodesenvolvimento capitalista” (MARTINS, 1994,p. 80). Trata-se de um “modelo antidemocráticode desenvolvimento capitalista, apoiado numpacto político, gestado durante a ditadura militar,que casou numa só figura lat ifundiários ecapitalistas” (MARTINS, 1994).

Assim, o comércio com formações pré-capitalistas está na base do sucesso do nossopróprio modelo de desenvolvimento capitalista.A desigualdade regional existente no Brasilalimenta tanto o crescimento econômico doSudeste, da mesma forma que subordina políticae economicamente o grande território centraldo País. No entanto, seria um equívoco assinalaruma dualidade estanque entre o atraso e omoderno representados pelas figurasdissonantes do latifúndio e da indústria. Osucesso de ambos, no Brasil, se liga a umequacionamento político de forças, que visareproduzir tanto um quanto outro na mesmamedida em que se tornaram dependentes entresi. As desigualdades regionais funcionam aquicomo a substância de poder que sustenta essecomplexo jogo que faz crescerem modernascidades industriais – e, agora, financeiras – noSudeste, ao mesmo tempo em que preserva aconcentração fundiária nas zonas dos novos eant igos projetos agrícolas, lembrando-setambém da importância das formas de extraçãodo sobretrabalho nas frentes de expansãoagrícola.

A urbanização do território brasileiroconta essa história e as cidades que nascerampor aqui resultam de um feliz casamento entrea modernidade enxertada por um Estadodesenvolvimentista e os padrões primitivos quebem lhe servem. A urbanização brasileira, ao

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mesmo tempo em que se colocava como aurbanização do trabalho e a urbanização doconsumo, foi a forma primordial da inserção denovas porções do território a cada surto decrescimento e demanda de uma industrializaçãoassistida. A urbanização do território, dessaforma, não é tanto um processo induzidoquanto a nova condição de instalação daindústria no espaço econômico brasileiro. Atéo fim da primeira metade do século XX, “no Sule no Sudeste, onde existe uma rede urbanamais desenvolvida, a interação entre as cidadesacelera o processo de divisão territorial dotrabalho que lhes deu origem e, por sua vez,vai permitir o avanço dos índices deurbanização, renovando assim, num círculovirtuoso, os impulsos para um novo patamarna divisão internacional do trabalho” (SANTOS,2005, p. 66). “É com base nessa nova dinâmicaque o processo de industr ial ização sedesenvolve, atr ibuindo a dianteira a essaregião, e sobretudo a seu pólo dinâmico, oestado de São Paulo” (SANTOS, 2005, p. 30).

Esse mecanismo de expansão territorialcapitalista a partir da urbanização do territóriovai ficar ainda mais evidente após a SegundaGuerra Mundial. Quando se intensificam asexportações de capitais produzidos em excessonos Estados Unidos (Plano Marshall), e, maisespecificamente, depois de 1956, quando esse“produto de exportação” chega à periferia poresgotamento dos territórios receptores járeconstruídos na Europa, a urbanizaçãobrasileira ganha novas dimensões. A velocidadea partir da qual o território nacional vai serdisponibilizado para os Investimentos ExternosDiretos deve aumentar. É a urbanização, nessemomento, a grande transformação responsávelpelo crescimento econômico industrial que seopera no interior dos limites territoriaisbrasileiros. A representação do “pioneirismo”das ações de um Estado modernizador edesenvolvimentista, do “desbravamento danatureza primeva” e da “modernizaçãocivilizatória” empreendida na formação de umcapitalismo brasileiro era dada a partir dossignificat ivos números vinculados àurbanização. Mais do que a expansão da

fronteira agrícola, era a expansão do fenômenourbano que consagrava a conquista de umterritório hosti l e primitivo. “Quando daintensificação da urbanização, algumas áreaseram de antigo povoamento, servidas por infra-estruturas ant igas, representat ivas denecessidades do passado, e não respondendo,assim, às vocações do presente” (SANTOS,2005, p. 67). Dessa forma, não só comorepresentação, a urbanização continuadarealizava a transformação do território, o queimplicava um adicional de novos ativosdisponíveis que absorviam os excedentesgerados em favor do crescimento. Portanto,mais do que resultado, a urbanização, no Brasil,se coloca como fenômeno indutor de umamodernização das estruturas produtivas. Ainversão do modelo clássico, se é que assimpodemos chamá-lo, novamente se manifestatambém nessa escala da urbanização.

Segundo Henri Lefebvre (1991 e 1999),a cidade e o urbano foram fenômenos induzidosde uma industr ialização dos processosprodutivos. No Brasil, ao contrário, no entanto,promovidos pelo Estado, como uma estratégiade modernização do território, a cidade e ourbano serviram como as pré-condições daindustr ialização. “O caso de Goiás éemblemático. (...) O novo urbano chega antesda modernização rural, da modernização dostransportes, da modernização do consumo e,de modo mais geral, da modernização do país”(SANTOS, 2005, p. 69). “Dessa forma, ointercâmbio aumenta, incluindo mais gente nomovimento da economia monetária e notrabalho assalariado”. (SANTOS, 2005, p. 46).“É desse modo que o país vai conhecer umaocupação periférica. A decisão geopolítica deestimular a industrialização em diversas regiõese de ocupar o território com projetos decolonização teve influência relevante nesseprocesso” (SANTOS, 2005, p. 47), e isso só foipossível a partir de um esforço no sentido daurbanização do território. A urbanização e oesforço que se realizou nesse sentido fazemparte da estratégia que promoveu um elevadopadrão de inversões no território brasileiro. Aexpansão do fenômeno urbano é responsável,

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em última instância, pela capacidade,art if icialmente cr iada, de absorção dosexcedentes gerados em condições correntes naeconomia industrial brasileira.

Os limites desses mecanismos nãopodem ser encontrados tanto noescasseamento dos recursos territoriais não-capitalistas quanto na falência múltipla de umEstado comprometido, simultaneamente, comsegmentos de interesses divergentes. Aoneração política e fiscal do Estado, em fins dadécada de 1970 e durante toda a década de1980, desmonta um esquema de inversõesfacilitado pelos crescentes gastos públicos(FIORI, 2003). Sem os recursos externos,enxertados pelos crescentes déficits nas contaspúblicas, a desvalorização vai, agora, recairsobre parte do próprio capital total empregadoe fixado territorialmente. O desmonte do Estadodesenvolvimentista vai cr iar não só umaconcorrência intercapitalista mais violenta,tendo como alvo das desvalor izaçõesnecessárias parte do próprio capital investido,como também vai voltar o horizonte deexpansão capital ista para o interior deconfigurações já propriamente capitalistas. Nãose trata, portanto, de um esgotamento dasporções não-capitalsitas do território para serviraos mecanismos expansionistas. O que sepassa é que não se encontra, na ausência deum Estado de t ipo desenvolvimentista,nenhuma outra ent idade disposta ou compossibilidades para arcar com o ônus desseprocesso. O interior das cidades se colocamagora como o espaço por excelência davalorização capitalista e dos processos deacumulação que se realizam por despossessão.A renovação urbana, os projetos derevitalização dos centros e a gentrificação serãoas formas através das quais espaços urbanos,previamente capitalistas serão reinseridosnuma nova dinâmica de acumulação.

3. Uma expansão econômica no interiorda cidade: da urbanização ao urbanismo comofonte da reprodução ampliada do capital

Neil Smith (2001) reconhece trêsgrandes ondas do processo de gentrificação e“renovação” urbanas a partir da experiência deNova Iorque. Sendo a primeira na década de1950 e a segunda iniciada ao final dos anos 70e prolongada durante a maior parte dos 80(SMITH, 2001, p. 19), o Brasil esteve de foradas duas primeiras fases da grande festa docapital especulativo imobiliário que começavaem meados do século XX. Por isso, “São Paulo(...) desconheceu tanto a primeira quanto asegunda fase da gentrificação”, diz HélèneRivière D’Arc (2004, p. 341). Esse fato se justificaporque no Brasil experimentava-se, até essemomento, os efeitos de um dito milagreeconômico movido pela expansão territorial daindústria e do fenômeno urbano ainda semlimites.

A dinâmica da expansão territorial docapitalismo, azeitada pela forte participação deum Estado empreendedor e supridor dascondições endógenas de acumulação industrial,ainda não havia encontrado termo na falênciade uma estrutura burocrát ica por demaiscarregada e nem na resistência de configuraçõesterritoriais avessas à nova lógica devalorização. O Brasil dispunha, ainda, de umterritório sem o peso da estruturação técnica esocial de um passado capitalista.

Nas áreas pouco povoadas do Norte e do Centro-Oeste, a modernidade (...) implanta-se quasesobre o vazio, e, desse modo, quase nãoencontra o obstáculo das heranças. Essas áreasainda se mantinham praticamente pré-mecânicas.

O Centro-Oeste (e, mesmo, a Amazônia),apresenta-se como extremamente receptivoaos novos fenômenos da urbanização, já queera praticamente virgem, não possuindo infra-estrutura de monta, nem outros investimentosfixos vindos do passado e que pudessemdificultar a implantação de inovações. Pôde,assim, receber uma infra-estrutura nova,totalmente a serviço de uma economiamoderna, já que em seu território erampraticamente ausentes as marcas dos

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precedentes sistemas técnicos. Desse modo, aío novo vai dar-se com maior veracidade erentabilidade. E é por isso que o Centro-Oesteconhece uma taxa extremamente alta deurbanização. (SANTOS, 2005, pp. 67-68)

A urbanização do território, a partir dadécada de 1950, por isso, representava o“pioneirismo da iniciat iva civil izatória”. Oterritório ganhava seus conteúdos propriamentehistóricos, no discurso desenvolvimentista, apartir desse gesto desbravador de um Estadoque atuava pela ampliação dos horizontes decirculação capitalista. Um território sem história,portanto, como um “vazio” que está pronto parareceber qualquer inventiva dos novosinvestidores e a se adequar a qualquerconteúdo. O avanço da fronteira urbana coincidiaassim com a ampliação dos recursosexpansionistas do capitalismo industrial noBrasil. A disponibilização, a preços módicos, dosrecursos territoriais para os capitais industriaistornava essa empreitada mais vantajosa do quea exploração de processos de valorização emoutros setores.

Essa dinâmica de colonização obriga otão pronunciado “processo civilizatório” a sereiniciar a cada avanço da fronteira. Como essemovimento era justamente o substrato dosmecanismos de acumulação na periferia docapitalismo mundial, não romperíamos com ospadrões primitivos desse processo até quenovas pastagens se apresentassem maisférteis. Uma circularidade mantida a partir dareprodução de um mesmo esquema primitivo deacumulação fortalecia a retórica de umacivilização desbravadora contra a rude naturezade um território sem história. Na linha defronteira os processos de acumulação seapresentam menos em seu caráter evolutivo ecumulativo, em termos de uma história dedesenvolvimento contínuo, do que como umprocesso constantemente reiniciado. A soluçãoencontrada para os problemas de acumulaçãoera reiteradamente a mesma durante os anosde expansão da fronteira econômica. Trata-se,nesses casos, de um retorno constante acondições primitivas que asseguram elevadas

taxas de rentabilidade ao capital investido ecolocam em conflito não simplesmente duasclasses distintas no interior de um mesmo eúnico sistema de acumulação, mas sistemas elógicas de acumulação absolutamente diversos.Os processos de acumulação primit iva sereiniciam constantemente na linha de fronteirae, por isso, esse limite é a fronteira externa,tanto lógica quanto espacial, dos processos devalorização. O avanço sobre essa fronteiragarantiu um continuado e duradouro processode valorização que tem como marca seu caráterhíbrido nos termos mesmos de uma acumulaçãopropriamente capital ista. A obsessãomodernizadora e o conluio com segmentoscapital istas determinaram, no Brasi l, umpadrão de reut i l i zação dos excedentescapita l is tas no próprio processo deindustrialização, enquanto assegurava aindaa permanência de outras classes no jogo dadistr ibuição dos valores no inter ior doterr itór io nacional. Esse Estado que seempenhava na disponibilização das condiçõesterr itor ia is para o sucesso da empresaindustrial no Brasil agia dessa forma sob apressão de se ver um processo demodernização coagulado a part ir dosexcedentes que não encontravam destinolucrativo. Mas, já na década de 1970, faziaisso a um custo alto demais para sersustentado por mais tempo. Esse mecanismode “fuga para frente”, como o nomeou JoséLuís Fiori (2003), encontraria seu limite nãosó no escasseamento dos espaçoseconomicamente viáveis para uma ofertaconstante e duradoura para o capitalindustrial, como também, e principalmente, nopróprio esgotamento das possibilidades desseEstado continuar financiando a um só tempoos diversos segmentos da classe dominante.Dessa forma, os capitais de elevado custo ebaixa produtividade instalados em territórionacional abririam espaço não só para seusconcorrentes internacionais e um vigorosoprograma de privatizações que assolou adécada de 1990, como também participariam,com seus parceiros estrangeiros, de uma novaalocação de ativos nos setores imobiliários.

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Dessa forma, a experiência dareprodução capitalista no Brasil demorou aconhecer os processos de gentrificação comomecanismos altamente rentáveis e que seapresentam como uma solução para o problemareiterado da queda nas taxas de lucro. Ésomente ao findar a década de 1980 que aeconomia urbana brasileira se prepara para aentrada em um novo momento. Se o processode urbanização do território brasileiro foi indutorde uma lógica industrial que cresce a partir demecanismos de acumulação primitiva, areprodução do espaço urbano, num momentoposterior, aparece como indutora de uma novaeconomia. De um processo de urbanização e,portanto, de expansão geográfica absoluta queassegura a remuneração do capital industrial,na década de 1990 as cidades brasileiras vãoconhecer os processos de transformação doespaço urbano que se voltam para o interior daorganização mesma da cidade já expandida, emconsonância com a terceira onda degentrificação das grandes metrópoles do centrocapital ista. É esse o momento em que ocapitalismo passa a explorar suas fronteirasinternas; não só, vale lembrar, pelo fato de quea escala de expansão econômica se volta parao interior da cidade – um espaço de ordenaçãocapitalista prévia –, mas também pelo fato deque as ações de expropriação que mimetizamprocessos de acumulação primitiva recaemagora, como condição para a continuidade dosprocessos de valorização, sobre a própria classecapitalista instalada nesses espaços. Trata-se,nesse caso, não mais da produção, pura esimplesmente, de espaços urbanos numterritório “vazio”, como foi estigmatizado poressa lógica desenvolvimentista, mas dareprodução do espaço urbano no interior mesmode cidades já estabelecidas em sua formaçãoespacial. É a passagem da produção àreprodução que se coloca em jogo nessemomento, segundo uma idéia muito bem tratadapor Ana Fani Alessandri Carlos.

A noção de fronteira, nesse caso, éutilizada menos pelo significado formal ou pelarepresentação espacial de uma l inha detransição e contato (o fronte) do que como

manifestação espacial de um limite. Os limitesinternos dos processos de acumulação sãosuperados no interior mesmo de uma ordenaçãocapitalista já suficientemente madura, assimcomo por meio de um espaço produzido segundoos padrões de acumulação apresentados poruma economia tipicamente capitalista. É nessesentido que a noção de fronteira é resgatadae, diferentemente de sua outra manifestação,é assim que se consolida como fronteira interna.

Mas como se elaboram as condições paraa entrada das cidades brasileiras no circuito dagentrificação como negócio? Nesse momento, aabertura econômica (decorrente doenfraquecimento das estruturas de um Estadocentralizador e dos mecanismos de sustentaçãode uma indústria que funciona alimentada porpadrões primitivos de produção e distribuiçãodo sobretrabalho) disponibilizou para o capitalinternacional apenas um estoque desvalorizadode ativos espaciais urbanos no interior dascidades brasileiras. O mecanismo elementarque define o processo de capitalização a partirda valorização e produção do espaço urbanotem de contar sempre com uma desigualdadeque se manifesta tanto no tempo quanto noespaço a respeito dos valores imobiliários. Arenda auferida a partir do investimento no setorimobiliário advém de um diferencial substantivoentre o preço da compra e aquilo que seconsegue, por meio da indolente valorização dom2 ou da construção (produção) de espaçonovo, na hora da venda.

Que isso se trata de um processo queocorre no tempo, a obviedade não deixaesconder. Mas o que resta revelar por detrásdessa diferença que se manifestatemporalmente?

Os Desenvolvimentos GeográficosDesiguais parecem ser uma categoria bastanteimportante para explicar o processo, mas antestemos que ver de onde vêm esses capitais eporque eles migram para as cidades utilizandoa reprodução espaço urbano como o últimorecurso de valorização.

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Do financeiro acionista para ofinanceiro imobiliário1

Um duplo processo determina a entradadas metrópoles brasileiras na terceira onda degentrificação. Um movimento mais geral, que serefere ao capital internacional, e aquele, noBrasil, que dificulta o acesso a territórios deformação não-capitalista, vão inserir com forçaduplicada as metrópoles brasileiras no circuitoda gentrificação como negócio. Vejamos primeiroos aspectos gerais do problema.

A sobreacumulação de capitais tem sidoo calcanhar de Aquiles para os inversionistasque devem realizar sucessivamente novosinvestimentos lucrat ivos. Associadas àsobreacumulação, as baixas taxas de lucro têmestimulado recorrentes processos migratóriosintersetoriais e espaciais de capitais. Diante dadif iculdade de realização do capitalmanufatureiro internacional a part ir doaparecimento de barreiras à circulaçãocapitalista, ora mais evidentes em determinadossetores e ora mais evidente em determinadoslugares, esse capital gerado e sobreacumuladosob algum arranjo espaço-temporal busca novasformas de ser invest ido lucrat ivamente.Evidentemente, se o problema para as taxasde retorno se apresenta localizado, devido aalguma manifestação local ou a um determinadoarranjo espacial comprometedor ou insuficiente,esse capital se empenhará em lançar-se paranovas pastagens mais férteis: se opera aquiuma migração espacial dos capitais, que buscamem novos lugares condições promissoras derentabilidade. Isso foi o que aconteceu quandoda exportação de capitais ingleses no séculoXIX ou da exportação dos excedentes de capitalnorte-americanos no pós-guerra, a partir de1946. Contudo, se o problema é sugerido apartir de uma determinada organizaçãoempresarial ou diagnosticado num determinadosubsetor – como foi o caso recente dasempresas de telecomunicações e de altatecnologia, ao se enredarem às voltas com osobreinvestimento que deu origem a umexcedente de capacidade de transmissão dedados –, essa migração será determinada pela

fuga de capitais invest idos nesse nichoempresarial. Em ambos os casos, estãoenvolvidas novas transformações no uso e nasfunções do espaço. Robert Kurz apresenta,como uma realidade constatada a partir dadécada de 1990, a maciça migração de capitaisdos setores produtivos e manufatureiros paraos setores financeiros, principalmente daquelescapitais internacionalizados que circulam nosespaços econômicos dos países centrais (KURZ,2003). As baixas taxas de lucro, as barreiras anovas inversões e o aparecimento deexcedentes de capital nos setoresmanufatureiros de forma geral – eprincipalmente naqueles ligados a uma altacomposição de capital (BRENNER, 2003) –definiram uma retirada brusca e intensiva dosinvestimentos nesses setores para aqueles dofinanceiro acionista. Essa busca de rentabilidadee de novas possibilidades de investimentoslucrativos encontradas aí, fora da sólida rigidezque envolve os processos produtivos, levou aoinchamento dos setores financeiros,estimulando, assim, o aparecimento de umabolha de especulação no universo de compra evenda de ações antes mesmo do fim da primeirametade dessa década. A formação e a já ameaçade rompimento dessa bolha, no curto períodode pouco mais de meia década, exigiu uma novasaída para o adiamento de uma crise deproporções ainda maiores. Segundo Kurz, issosomente foi possível graças ao modelo deseparação no tempo dos tipos de investimentosque poderiam suportar a entrada maciça dosexcedentes de capital gerados nos setoresmanufatureiros do mundo todo. Graças aomodelo migratório de capitais da economia dosEstados Unidos, que, diferentemente do Japãoou da Alemanha, contava ainda com umimobiliário pouco atingido pelos efeitosespeculativos do financeiro, deu-se um segundomovimento de fuga: do financeiro acionista parao financeiro imobiliário.

A separação no tempo, entre osinvestimentos nos setores financeiros acionistae imobiliár io, e a opção mais ou menosgeneralizada de concentração desses

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investimentos em ativos que se remetem à casaprópria, à moradia, foram as características quedeterminaram o imobiliário como alternativa àcrise do acionista, de acordo com o modeloverificado nos Estados Unidos. No Japão osefeitos da crise do acionista foram somados aosdo imobiliário pelo fato de que estes doissetores receberam, juntos, investidas nummesmo instante e de mesma intensidade, comrelevo para o fato de que a opção pelaconstrução de prédios de escritórios (ligados,por isso, ao novo ramo das atividadesaltamente rentáveis da economia capitalistamundial), com a crise do financeiro acionista,intensificou os efeitos do aparecimento de umasobrecapacidade no setor. O modelo dosEstados Unidos, então, o único sobrevivente –uma vez que a Alemanha nem sequer chegou aapresentar um crescimento significativo do setorimobiliário após a crise do financeiro acionista– serviu de orientação para o comportamentogeral dos capitais internacionais. O setorimobiliár io e o espaço urbano,consequentemente, sofreram novas e fortesinvestidas dos capitais excedentes, dandoorigens a novas bolhas especulativas a partirda segunda metade da década de 1990.Curiosamente, esse é o período em que seintensificam também as ações da burocraciaestatal sobre o espaço urbano com o intuito de“revitalizar” antigas zonas degradadas dascidades. Esse momento é anunciado, a partirde 1994, pelo início da terceira onda degentrif icação em Nova Iorque, segundo aclassif icação de Neil Smith (2001). Essa“revitalização”, que poderia ser entendida,segundo o argumento aqui apresentado, comoum revigoramento capitalista do espaço dascidades, atribui um novo papel ao espaçourbano nos processos de circulação evalorização do capital em âmbito mundial, assimcomo inventa também uma nova forma de agirsobre o espaço urbano, de um Estadocomprometido com a elevação das taxas derentabilidade pertinentes aos setores privados.

Em São Paulo, já em 1992, na gestãode Paulo Maluf, um novo dispositivo seria criado

para viabilizar uma “reforma” no espaço urbano.As “Operações Urbanas”, como vieram a serconhecidas as intervenções que visam atransformação do uso, das funções e daestrutura do espaço metropolitano,beneficiaram uma série delas. Esse dispositivoconta com a participação direta de investidoresprivados no financiamento e na viabilização daobra. Ele promove não só a agilidade necessáriapara os negócios do financeiro, dotando ospapéis (produtos financeiros) daí decorrentesde maior l iquidez, como cria incent ivos epossibilidades de realização de lucros fabulosos.Na “Operação Urbana Faria Lima”, para a qualesse dispositivo foi criado, o direito a ocupar asmargens da nova avenida e de construir acimado permitido pela lei de zoneamento lançaramesses papéis às alturas e, assim, garantiramum elevado retorno àqueles que investiramnesse projeto de renovação urbana. A entradamais voraz do espaço urbano para o mundo dosnegócios financeiros exigiu a criação, também,de outros disposit ivos que permitiram oimobiliár io acompanhar a velocidade doacionista. A criação dos Fundos deInvestimentos Imobiliários (FII), congregatambém os pequenos investidores, com suaspequenas poupanças, num negócio deproporções gigantescas. O investidor, a partirdos FII, participa da grande farra da valorizaçãoimobiliária como “cotista”, desonerado, assim,da responsabilidade de por à venda ou alugaros imóveis que contribuem para a sua renda.Esses fundos dotam de maior liquidez, ainda,os investimentos no imobiliário e, assim, dão umpoder de atração e, consequentemente denegociação destrutivos do ponto de vista darelação do habitante com o espaço urbano. Osprojetos de renovação, revital ização oumodernização do espaço urbano, contribuemsobremaneira para a rentabilidade dos negóciosdo imobiliário. Nesse sentido, a participação doEstado e de alguns técnicos urbanistas que dãoforma aos projetos de requalificação éimprescindível do ponto de vista das estratégiasde valorização-gentrificação do espaço.

Esse momento marca, no Brasil, apassagem da urbanização ao urbanismo como

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fonte da rentabilidade e da ampliaçãomomentânea da capacidade de absorção dosexcedentes frequentemente gerados por cimadas condições correntes de investimento. Trata-se da endogenização de um processo deexpansão territorial capitalista, representadopela urbanização do território, voltado, agora,à reprodução do espaço urbano no interiormesmo desses espaços já prefigurados.

Nesse momento, os capitaisespeculat ivos passam a ser atraídos nãosimplesmente pela definição das taxas de jurosdos bancos centrais, pelas manipulaçõescambiais, pelo grau de abertura econômica oupela existência de programas de privatizações,para os quais a década de 1990 foi umexcelente exemplo. A valorização do espaço,disparada a partir do imprescindível papel dasburocracias estatais, faz parte da linha de frentedas estratégias do poder público para atrairinvestimentos internacionais, assim como, aomesmo tempo, funcionam como o núcleo durodas inventivas privadas de valorizaçãocapitalista em período de crise. “As cidadesglobais puderam comprovar por si mesmas suacapacidade para desviar os excedentes de valorproduzidos em qualquer parte em direção a seuspróprios mercados financeiros” (SMITH, 2001,p. 30). A compra e venda de fragmentos doespaço urbano tomam a dianteira no rol deestratégias dos setores privados para umarecuperação das taxas de lucro e a cidadecontemporânea deixa assim de servir ao capitalsomente a part ir da função de espaço decirculação, para se tornar, ela mesma, o objetodessa valorização capitalista: parte do capitalempregado em processo de valorização, a partirda valorização do espaço. Para atrair capitais apartir de seu potencial de valor ização, ascidades são reestruturadas e produzidas(“revitalizadas”). Dessa forma, vende-se acidade, como imagem de um potencial devalorização, e é tanto maior o seu preço (e asua procura) quanto mais real e verossímil for asua imagem enquanto potencial de valorização.A cidade como negócio superou a condição dacidade como lugar do negócio.

Do espaço de circulação ao espaço davalorização

Diferentemente dos territórios deformação não-capital ista, as cidades, porexcelência, representam o lugar do acúmulo dosdiversos tempos; elas atribuem materialidadee conservam materialmente no espaço ascondições de reprodução do capital em suasdiferentes etapas. Não é difícil encontrar, nascidades contemporâneas, um galpão construídopara atender a uma antiga instalação industrial,ou resíduos dos trilhos de bondes que antesserviam como meio de transporte principal parao deslocamento de trabalhadores e viventes dabelle époque. No entanto, a função ou a utilizaçãodesse espaço construído ficam comprometidasdiante das sempre novas exigênciasreprodutivas dos ciclos subsequentes. Adesvalorização do capital empregado nessasinfraestruturas ultrapassadas, que figuramcomo capital obsoleto, está prevista e definidaa partir da velocidade das transformaçõesdemandadas pelos posteriores ciclos deacumulação. A agenda de demolições eabandono das infraestruturas urbanas para aconstrução de outras tantas marca o cambiantecaráter do espaço metropolitano do século XXassim como atribui o movimento responsávelpelo recorrente sentimento de estranhamentoque marca a relação cidadão-metrópole. Astransformações no espaço urbano seguem deperto, no capitalismo, a produção de novasexigências dos ciclos reprodutivos do capital.

Quando, no entanto, entra em questãoo valor imobiliário e as possibilidades de retornonesse campo, esse jogo de valor ização-desvalorização passa a integrar as estratégiasde rentabilidade do capital empregado noespaço. Se até agora o espaço urbano foitratado, pela carga histórica materializada emsuas estruturas, como um depositário de capitalobsoleto que deve ser destruído pelossucessivos ciclos de acumulação, é hora deconsiderar a desvalorização, decorrente daobsolescência de certos espaços, em seusaspectos positivos para a acumulação, como ummecanismo de produção de uma “reserva

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territorial” de acumulação primitiva do espaçourbano. Isso trará repercussões tanto para ocapital produtivo quanto para o especulativo.

Diante do impulso à expansão eaceleração dos ciclos de valorização capitalistae da relativa impossibilidade de se encontrarem terr itór io urbano possibil idades dedeslocamento de capitais para regiões, de certamaneira, “virgens” em termos de infraestruturae pertencentes a ciclos com uma menorexigência de eficácia e velocidade de circulação,o capital deve voltar-se para uma reordenaçãoespacial no interior mesmo das cidades. Issoenvolve um novo ciclo que se remetediretamente ao espaço urbano enquantomaterialidade das infraestruturas produtivas ede circulação do capital. Logo, o eixo valorização-desvalorização-valor ização, decorrente daconstrução-obsolescência-reconstrução deinfraestruturas espaciais para a circulaçãocapitalista, apresenta o movimento seguido deperto pelos analistas imobiliários e que daráfrutos aos seus investimentos. É aqui que umasorte de acumulação primitiva do espaço urbanocomeça se desenhar no horizonte.

A desvalorização do espaço urbano oude fragmentos desse espaço implica uma perdade signif icados de uma determinadaterritorialidade para o capital, seja ele produtivoou especulativo. Consequentemente, umasubtração dos investimentos nessas áreas seefetua a partir da busca por melhoresrendimentos em outras regiões, que passamagora por momentos de ascendência no ciclodesvalorização-valorização. Esse é o processotípico enfrentado pelos centros das grandescidades mundiais da periferia capitalista a partirda segunda metade do século XX. Os capitaisbatem em retirada e deixam aos circuitosinferiores da economia aquele espaço poucoajustado às demandas dos novíssimosinvestimentos. A economia informal –ambulantes, camelôs e um comércio varejistaque se alimenta de formas residuais de consumopara os padrões atuais de circulação capitalista– se apodera dessas antigas estruturasdesvalorizadas e conserva, numa espécie de

sobrevida, o espaço produzido segundo ospadrões de inversão de ciclos anteriores. Adesvalorização é visível em seus efeitos, sejapara novas possibilidades de investimentos,seja para a vida urbana que se desenrola norastro de destruição deixado pelo movimentomigratório do capital. Criam-se, dessa forma,estoques de espaços desvalor izados,verdadeiros “territór ios-reserva”, comodenominou Rosa Tello Robira (ROBIRA, 2005),que aguardam novos investimentos produtivosou imobil iários de acordo com a préviaorientação do poder público. Dessa forma, namesma medida em que se promovem surtos devalorização em determinadas áreas do territóriourbano, depreciam-se outras que servirãoposteriormente como promissoras áreas deinvestimentos lucrativos.

O movimento de valorização que vaiinserir esses espaços novamente nos circuitosde invest imentos públicos e privados érelativamente simples. Assim como nos setoresmanufatureiros a saída de uma crise desobreacumulação passa pela desvalorização deativos, no setor imobiliário a rentabilidade égarantida sempre a partir do movimento devalorização ou subida de preços dos terrenosna cidade. No entanto, para que isso ocorra, eé preciso dar por certo que esse processo nãoé indefinido, em algum momento é precisodesvalorizar territórios complexos nas mãos desetores menos privilegiados da sociedade paraque, novamente então, se dê inicio à escaladatão lucrativa para os investimentos no espaço.Dessa forma, ao mesmo tempo em que énecessário produzir espaços com potencial ouem franco processo de valorização, há que seproduzir um estoque territorial para futurosinvestimentos. A continuidade dos mecanismosde valorização dos capitais invest idos noimobiliário, que em nossa época representa umadas escassas possibil idades de valorizaçãocapitalista em geral (fictícia, é verdade), dependeda reprodução de estoques territoriais de ativosimobiliár ios desvalor izados. “Portanto, areestruturação do espaço urbano conduz a umasimultânea, assim como subseqüente,

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decadência e redesenvolvimento,desvalorização e revalorização” (SMITH, 2007,p. 29).

A desvalorização estratégica do espaçourbano: a nova força dos desenvolvimentosgeográficos desiguais

O que há de novo nesse processo quese inicia a partir dos anos 1990 é o caráterrelat ivamente dirigido dos processos devalorização e desvalorização do espaço. Umageografia da diferenciação a partir do potencialde valorização dos espaços se torna produtodas estratégias de valorização capitalista apartir do imobiliário. A desvalorização doscentros antigos das grandes cidades brasileiras,a partir da década de 1970, encontra parte desua justificativa nessas estratégias. A tomadade espaços suburbanos quase sem valor demercado, pelas poderosas incorporadoras, nãosó realizou um impressionante potencial devalorização nos subúrbios, organizados sob aforma de condomínios residenciais de luxo, paraos quais afluíam as camadas mais abastadasda sociedade brasileira, como desvalorizou asregiões centrais. Hoje, os centros antigosdessas cidades passam por processos de“revitalização”, processos esses que procuraminserir novamente essas áreas degradadas edestruídas no circuito de valorização do capital.Durante os anos 1980 e parte dos anos 1990,os centros das cidades brasileiras que passarampor esse processo, funcionaram como umestoque desvalorizado de ativos imobiliários,funcionaram, pois, como os tais “territórios-reserva”. “Em um nível mais básico, é odeslocamento do capital para a construção depaisagens suburbanas (...) o que cria aoportunidade econômica para a restruturaçãodas áreas urbanas centrais. A desvalorizaçãoda área central cria a oportunidade para arevalorização desta parte ‘subdesenvolvida’ doespaço urbano” (SMITH, 2007, p. 22). Assimcomo no período da urbanização, comoexpansão do fenômeno urbano no território,agora a valorização capitalista se utiliza da

diferenciação geográfica para extrair osobrevalor que vai garantir a reprodução docapital no interior do espaço urbano. Dessaforma, essa renda que advém da apreciação novalor de mercado dos terrenos é resultado diretodos desenvolvimentos geográficos desiguais. Arequalificação de espaços no interior da cidade,no entanto, substitui o processo de apropriaçãode porções territor iais de formação não-capitalsita. É por isso que,

“No que diz respeito à base espacial, a expansãoeconômica ocorre hoje não por meio daexpansão geográfica absoluta, mas peladiferenciação interna do espaço geográfico (...).A produção atual do espaço ou dodesenvolvimento geográfico é, portanto, umprocesso acentuadamente desigual. Agentrificação, a renovação urbana e o maisamplo e complexo processo de reestruturaçãourbana são todos parte da diferenciação doespaço geográfico na escala urbana; e, emboraestes processos tenham sua origem em umperíodo anterior à atual crise econômica mundial,sua função hoje é reservar uma pequena partedo substrato geográfico para um futuro períodode expansão”. (SMITH, 2007, pp. 17-18)

É nesse sentido que a noção deDesenvolvimentos Geográficos Desiguais, utilizadapor Harvey (2004 e 2005), ganha potência de análisediante da elaboração de uma realidade que promovea diferenciação espacial como substrato dosprocessos de acumulação, ao invés de simplesmenteutilizá-la e consumi-la num movimento de expansãosobre as zonas de fronteira. Esse novo padrão dereprodução capitalista, tendo em vista a necessidadede inversões futuras, prepara sua própria reservade acumulação primitiva promovendo umadiferenciação interna do espaço urbano. Enquantoa fronteira externa, consumida no processo daurbanização do território, “representou a realizaçãode uma expansão geográfica absoluta como aprincipal expressão espacial da acumulação decapital, a gentrificação e a renovação urbanarepresentam o exemplo mais desenvolvido darediferenciação do espaço geográfico com vistas aomesmo resultado” (SMITH, 2007, p. 19).

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O movimento de transição para umaeconomia propriamente urbana da reproduçãocapital ista conta, primeiro, com asuburbanização dos investimentos imobiliários.É esse movimento que cria um processo devalorização na periferia enquanto desvalorizaos centros das cidades, na subtração de novosinvestimentos e de uma classe com mais altopoder aquisitivo desses espaços. Trata-se, noentanto, de uma transição porque a expansãoterritorial da mancha urbana conta ainda comum tipo de expansão geográfica absoluta sobreo território, mas já prepara os antigos centrosdas cidades para uma posterior valorização.“Assistimos, com efeito, no Brasil, nos anos1970-1980 a passagem de uma ‘fuga parafrente’ em direção à modernidade concretizadapela extensão contínua das cidades em direçãoà periferia, com construções de padrão elevadoe protegidas por grades, mas também sob aforma de moradia precária e pouco densa”(D’Arc, 2004, p. 341). Em São Paulo, sãobastante emblemáticos os empreendimentos dealto padrão, como os de Alphaville e Aldeia daSerra – distantes cerca de 30 Km do centro dacapital paulista –, assim como uma grande eextensa periferia urbana constituída por bairrospobres, caracterizados, muitas vezes, pelaautoconstrução e irregularidade da ocupação.A formação desses conglomeradoshabitacionais, pobres ou ricos, datam,justamente, dos anos 1970 e 1980. Aexperiência da década de 1990 será de outroporte: é só nesse momento que os padrões deacumulação vão voltar sua tendênciaexpansionista tanto para o interior mesmo dascidades quanto para uma ordenaçãopreviamente capitalista do espaço. Hoje, adespeito desse processo, a região da Luz, emSão Paulo, sofre investidas policiais e de gruposneonazistas obstinados pela “limpeza” urbana.A vinculação da imagem da região ao seucodinome “Cracolândia”, ultrapassa o desdémjornalíst ico e ganha destaque na voz daoficial idade. Isso, talvez nãodespropositadamente, vem a reforçar, junto àopinião pública, a necessidade deimplementação de um programa de revitalização

para a área, já planejado. A luz se prepara parasair da condição de reserva territorial paraentrar no virtuoso ciclo de valorização da últimaforma do capital. A gentrificação é o conteúdo,por excelência, desse processo. O reiníciocontinuado dos processos de gentrificação é oque vai garantir a reprodução capitalista doespaço e dos capitais através do espaço.

“As cidades estão voltando a se definir comounidades da escala geográfica da produção, aomesmo tempo em que o processo de produçãomesmo se viu transformado. Os antigos limitesentre a produção tradicional e as finanças, queantes já eram confusos, são agora praticamenteopacos. Setores inteiros dos serviços financeiros(...) se desenvolvem agora com êxito comoprodutores de excedentes de valor, como emboa medida já antecipara Henri Lefebvre. Aconstrição de bens imóveis se converteu em suaprópria locomotiva da produção econômica, agorajá não restrita à periferia, senão atuandotambém na própria remodelação do coraçãourbano”. (SMITH, 2001, p. 30)

4. Conclusão

Assistimos atualmente, no Brasil, a umatransformação na tônica do processo deacumulação capitalista. A forma de utilização doterritório nesse processo é determinante esinaliza para a versatilidade dos mecanismosde valorização. Harvey (2004), em O NovoImperial ismo, faz referência a processosprodutores e consumidores de espaço nodesenvolvimento das estratégias promovidasno complexo jogo da acumulação capitalista. Écomo se, do ponto de vista da consolidação deuma lógica territorial capitalista, fosse possívelconsiderar aspectos de positividade no avançodas formas de exploração típicas do atual modode produção. O deslocamento da fronteiraeconômica, motivada pelo expansionismo dosmecanismos de valorização, produz um territóriovoltado às dinâmicas da acumulação. A presençade mecanismos destrutivos e aniquiladores doespaço social anterior à chegada das novasdinâmicas territoriais é inquestionável, e não é

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intenção deste artigo valorar o processo. Mascabe reconhecer que o avanço da fronteiraeconômica promoveu e acompanhou também oavanço das fronteiras urbana, industrial,agrícola e populacional que atribuíram novoconteúdo aos espaços a partir dos quais seconsolidaram.

Contudo, numa outra perspectiva, osprocessos que regem a acumulação de capital apartir da reinserção de espaços previamentecapitalistas nos atuais ciclos de valorização,exigem a destruição de antigas ordenaçõesespaciais produzidas já segundo uma lógica emacordo com as estruturas de acumulação.“Conclui-se, pois, que o capitalismo sobrevive nãoapenas por meio de uma série de ordenaçõesespaço-temporais que absorvem os excedentesde capital de maneiras produtivas e construtivas,mas também por meio da desvalorização e dadestruição administradas como remédio corretivo”(HARVEY, 2004, p. 113). Se é possível falar de uma“produção” capitalista do espaço no primeiro caso,quando um espaço de formação já capitalista éreinserido nos processos mais atuais de

acumulação do capital pode-se falar, no máximo,de “reprodução” capitalista do espaço, retomandoos termos propostos por Ana Fani AlessandriCarlos (1994). Nesse sentido, os aspectosnegativos do processo imprimem à dinâmicaespacial um caráter de atualização ao seequipararem aos aspectos produtivos (positivos).Nesse jogo de soma zero, a fronteira de expansãodo capital se encontra no interior mesmo deconfigurações espaciais previamente capitalistas,fazendo recair seus poderes destrutivos sobreparcela da própria classe dos detentores docapital.

Diferentemente do que poderíamospensar, no entanto, ambos mecanismos espaciaisde acumulação resultam em processos exigentesde enxertos alheios ao corpo lógico do capitalismo.Esse processo de acumulação às expensas deoutros capitalistas ou de classes sociais estranhasao universo da teoria econômica clássica tem sido,sistematicamente, o mecanismo básico dareprodução capitalista, sem os quais a falênciadas estruturas reprodutivas teriam, há muito,cedido à outras formas de organização social.

Nota1 Os próximos dois subtítulos referem-se a adaptações de fragmentos do artigo “Dos negócios na cidade à

cidade como negócio: uma nova sorte de acumulação primitiva do espaço”, publicado na revistaCidades, Nº 05, de 2006.

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Trabalho enviado em agosto de 2008

Trabalho aceito em setembro de 2008

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