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DA PEQUENA SALA DA FLORESTA À ESCOLA ESTADUAL NILZA
DE OLIVEIRA PIPINO: VESTÍGIOS DA HISTÓRIA DA PRIMEI RA
INSTITUIÇÃO ESCOLAR DE SINOP-MT
ROHDEN, Josiane Brolo1 - UFMT
Grupo de Trabalho – História da Educação
Agência Financiadora: CAPES
Resumo Esta pesquisa busca contribuir para com os estudos sobre o início da escolarização de Sinop-MT, durante o processo de colonização da cidade, entre os anos de 1973 a 1979. Para tal, a Escola Estadual Nilza de Oliveira Pepino, foi eleita como objeto de estudo por ter sido instaurada concomitantemente ao momento de ‘construção’ da cidade, lócus desta investigação. Com isto, um olhar peculiar foi destinando para a cultura escolar produzida por esta Instituição Escolar, a qual representava naquele contexto histórico um instrumento fundamental para a construção de uma cidade e para a fixação dos migrantes que chegavam. Neste sentido, este trabalho propõe uma discussão sobre a história da Escola em questão, bem, como suas memórias e práticas na procura de (re) significar a identidade desta Instituição Escolar, entendendo que a mesma, foi resultado das astúcias humanas (CERTEAU, 1998), diante da não conformação da ausência da escola quando os primeiros migrantes chegaram à cidade em construção. Dentre os objetivos desta pesquisa, destacam-se a necessidade de compreender como fora organizado o sistema educacional desta primeira Instituição e o que deveria ser ensinado, discutir sobre os valores, as normas, os juízos estabelecidos como necessários a inculcar no processo de escolarização. Para a construção do objeto e desenvolvimento da pesquisa nos voltamos para as fontes históricas e para entrevistas realizadas com ex-professores e alunos. Diante desta investigação, pode-se inferir que a Instituição estudada durante o recorte cronológico em questão, constituiu-se como produtora de uma cultura própria, assim como se constituía como um espaço onde estratégias de imposição e táticas de subversão estavam em confronto cotidianamente, podendo ser percebidas a partir das ações consideradas banais, comuns, no cotidiano do interior da escola. Palavras-chaves: História da Educação. Instituição Escolar. Cultura Escolar. Colonização.
Considerações Iniciais sobre o processo de Colonização de Sinop- MT
1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), graduanda em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pesquisadora do Grupo de História da Educação e Memória/GEM-UFMT – Cuiabá, MT. E-mail: [email protected]
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Durante a década de 1970, a região Norte de Mato Grosso passou por um processo
acentuado de migração. Milhares de pessoas, principalmente do Sul do país, deixaram suas
cidades de origem, para “ocupar” os espaços “vazios” das terras norte mato-grossense, na
busca de maiores oportunidades e de um futuro mais promissor.
Desde o Governo Vargas, com o chamado projeto Marcha para Oeste2, que visava
ocupar e desenvolver o interior do país, o processo de ocupação da última grande fronteira
agrícola do país – a Amazônia brasileira,3 começou a ‘ganhar forma’. Para Vargas (1943), o
verdadeiro sentido de brasilidade era a Marcha para Oeste, além de que seria na sua visão uma
solução para os infortúnios da nação.
A partir de 1964, os governos militares almejando a continuidade do processo de
integrar a Amazônia à economia nacional e com o intuito de atenuar a crise na economia rural
que se acentuava principalmente nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, voltaram-se para a
ampliação de políticas públicas que pudessem concretizar o processo de ocupação territorial
da Amazônia.
Para tal finalidade, foram criados órgãos específicos, que coordenavam a instalação e
implantação de projetos que visavam a expansão da região, os quais incentivam a aquisição
de terras e, com isto, promovia o deslocamento de um grande número de trabalhadores
migrantes.
Assim, com a inserção das estratégias de incentivo à ocupação da fronteira, através
dos órgãos federais criados para tal finalidade, o Governo Federal oferecia condições e
incentivos possíveis para a consolidação do processo de colonização para empresas privadas,
visando, desta forma, apenas a expansão econômica da região.
Neste contexto, o surgimento da cidade de Sinop, localizada na região Norte de Mato
Grosso, encontrava-se nesse processo de ocupação da Amazônia do final do século XX.
Trata-se de uma cidade fruto de uma colonização privada, liderada pela empresa que deu
origem ao nome da cidade: Colonizadora Sinop S/A – Sociedade Imobiliária do Noroeste do
Paraná. A Empresa citada, beneficiada pelos incentivos fiscais pela parceria do Estado
Federal, responsável por toda infraestrutura necessária e pelas políticas e órgãos criados para
2 A Marcha para Oeste foi uma política do governo de Vargas, nascida em 1943 a qual incentiva as pessoas a migrar para a região central do Brasil, na perspectiva de ocupar os “espaços vazios” do país, garantir a segurança das fronteiras e gerar riquezas. 3 Os nove estados que compõem a Amazônia Brasileira são: Acre, Rondônia, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Roraima, Amapá, Tocantins, e Maranhão (PICOLI, 2005, p. 17).
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acelerar o processo de colonização, adquire uma extensa área de terra denominada
posteriormente de Gleba Celeste4, onde seria então, iniciado um novo projeto de colonização.
Desta forma, a partir das discussões históricas apresentadas, a cidade de “Sinop é um
exemplo de colonização numa área de fronteira de ocupação recente na Amazônia,
estabelecida sob o manto do autoritarismo militar e da expansão do capitalismo hegemônico
no Centro-Sul do país” (SOUZA, 2006, p. 194). Em resumo, “a colonização dirigida em Mato
Grosso, tendo como referência maior o caso de Sinop, foi resultado de mudanças estruturais
da sociedade, da economia e do Estado” (VIEIRA 2005, p. 240).
Compreender a relação das conjunturas políticas e sociais do período, o processo de
migração do norte mato-grossense, a formação da cidade de Sinop, assim como os reflexos da
sociedade em construção juntamente com a instituição escolar, nos leva a tecer uma discussão
sobre as práticas produzidas na e pela escola, pelos costumes e tradições mantidas pela escola
e que eram julgados necessários no processo de escolarização, devidos principalmente ao
regime político instaurado pelo Governo Militar no mesmo período. Assim, o recorte
temporal em análise compreende a década de 1970, mais precisamente entre os anos de 1973
a 1979, período este, marcado pelo processo inicial de migração na localidade investigada.
Para tal, utilizamos fontes históricas encontradas em arquivos públicos e particulares,
como também utilizou-se de entrevistas com ex- alunos e professores, a partir dos
procedimentos da metodologia da História Oral.
História, Memórias e Práticas Educativas: da pequena sala da floresta à escola Nilza de
Oliveira Pipino.
“Tudo começou naquela salinha de chão batido, de madeira, quatro paredes, janela e porta e mais nada, sem
livros, sem materiais, com tantas dificuldades [...] não tinha nada”!
(GUERRA, depoimento em 2012)
A epígrafe deste início são palavras retiradas do depoimento da primeira professora de
Sinop, que com saudosismo relembra os tempos difíceis dos primeiros tempos da educação na
cidade que se formava. A escola fora prometida juntamente com a ‘terra boa’ mas, assim
4 A extensão de terra adquirida pela empresa colonizadora equivalia a aproximadamente 645.000 hectares. Denominada de Gleba Celeste, onde seria então dado início ao projeto de colonização das cidades de Sinop, Vera, Carmem e Cláudia.
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como esta, também fazia parte das propagandas ilusórias feitas para atrair os migrantes
sulistas para ‘ocupar’ a nova fronteira agrícola do país.
Cientes de que os migrantes sulistas tinham na educação um referencial, “que a escola
fazia parte da sua cultura, que “mandar” os filhos para a escola era uma obrigação da família,
e, portanto, caberia aos pais fazê-lo” (PERIPOLLI, 2002, p. 121) os colonizadores prometiam
a escola, a continuidade dos estudos em meio àquela imensa floresta, “[...] em uma escola
igualzinha àquela que eles tinham no Sul” (GUERRA, depoimento em 2012).
Assim, a escola representava o principal meio o qual, ofereceria a concretização de um
futuro melhor aos filhos daqueles migrantes que se aventuraram a colonizar este território na
ilusão da conquista de terras, os quais idealizavam uma vida mais promissora, diferente
daquela que viviam em seus estados de origem. Além disso, a escola naquele momento se
constituía como instrumento de fixação dos migrantes naquele solo. Assim, a colonizadora
utilizava-se de propagandas que enfatizassem a conquista não somente da terra aos pais, mas
também da escola aos filhos. Nas palavras da ex-professora Anísia Mendes Gobbo5, “[...]
mesmo os pais vindo para aquele fim de mundo, [...] eles queriam ver seus filhos estudando
[...] a educação era o futuro”.
Contudo, mais uma vez as ‘promessas eram muitas’, mas a realidade encontrada era
outra. Os migrantes ao chegar na ‘cidade’, tudo estava em construção, era um período onde se
configurava um verdadeiro ‘campo de obras’ – tudo estava por se fazer, inclusive a escola. A
escola mais próxima se localizava na cidade de Vera, distante 80 quilômetros de Sinop, cuja
única estrada de acesso não era pavimentada, ficando intransitável no período chuvoso, ou
seja, não havia escola para atender os alunos que chegavam naquele momento inicial de
migração.
Foi então, que fugindo das teias da conformidade (CERTEAU, 1998), os migrantes se
organizaram para ‘fazer a escola’ e reinventar aos seus modos o início de um ‘sistema
educacional’ em meio àquele campo aberto na floresta amazônica, ainda pouco habitado.
Organizados, os migrantes recorreram à colonizadora, a qual lhes ofereceu os
materiais para a construção de uma sala de aula. De acordo com os depoimentos analisados, a
Colonizadora propõe uma troca – forneceriam a madeira, telhas de Eternit e outros materiais
enquanto aos pais-migrantes caberia a mão de obra.
5 Gobbo, depoimento em 2012 .
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Não houve outra opção, se não havia escola, era preciso construir uma, uma vez que
sem a escola, àquelas pessoas não ficariam naquele local. Assim, em regime de mutirão, os
pais-migrantes:
“[...] juntaram-se em uma turma de homens, [...] uma turma de gente, e ali construíram a escola, poucos dias e a escola estava de pé, só que não tinha cimento para fazer o piso, então ficou na terra mesmo, piso de chão batido como alguns falam, se molhava - virava barro, aquele barro branco, grudento; se deixava seco - era aquela poeira. [...] E, foi assim que tudo começou: naquela salinha de chão batido, de madeira, quatro paredes, janela e porta e mais nada, sem livros, sem materiais, com tantas dificuldades [...] não tinha nada!” (GUERRA, depoimento em 2012).
Com a escola ‘erguida’, em 1973 a primeira sala de aula, era chamada informalmente
por alguns migrantes de Grupo Escolar Sinop, e, por outros de Escola Sinop, entretanto, desde
seu início se constituía como uma extensão da Escola Estadual Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, localizada na cidade de Vera, próxima à Sinop.
Faz-se necessário ainda mencionar, que naquele primeiro momento, não haviam
profissionais com formação específica para a docência, o que consequentemente partiria outra
vez dos migrantes a decisão dos caminhos da escola, escolhendo entre si, os mais ‘instruídos’
para exercer a função docente, até que irmãs católicas de uma congregação alemã fossem
trazidas do Paraná pela empresa Colonizadora, as quais já direcionavam os trabalhos
educacionais na cidade de Vera, para coordenar também todo trabalho educacional de Sinop.
Todavia, mesmo diante de uma história marcada por tantas deficiências, tantas
dificuldades, diante da pobreza de sua estrutura física, de seus materiais, trata-se de uma
escola ‘especial’ para a sociedade da época – “A escola, era tudo, era um lugar especial”
(BRAZ, depoimento em 2011). Nos referimos ao termo ‘especial’, a partir das narrativas as
quais se teve contato, onde foi possível perceber nas falas de ex-professores, de ex-alunos,
recordações de uma escola, cuja história continua presente na memória daqueles que
vivenciaram - uma história singular, construída em coletivo, a partir das relações entre aqueles
sujeitos, a partir de trocas, encontros, a partir da criação conjunta frente ao desejo de se ter
uma escola.
Contudo, há que se referenciar neste item, o descaso para com a educação por parte do
estado e do Governo Federal durante o processo inicial de colonização no norte mato-
grossense. Percebeu-se durante esta investigação que para que o processo de ocupação da
‘nova’ fronteira agrícola se consolidasse o Estado Federal não poupou políticas públicas que
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viabilizasse a infraestrutura necessária, além da oferta dos incentivos fiscais e políticas de
créditos que favoreciam a elite nacional e internacional a investir naquela região do país.
Entretanto, a educação não recebeu igual importância.
No entanto, com o crescimento acelerado da cidade, não era mais possível atender os
alunos que chegavam todos os dias naquela pequena sala de aula construída pelos migrantes,
assim, novas salas de aula foram construídas pela colonizadora para atender a nova demanda.
Porém, somente no final do ano de 1976, a Escola Sinop, ou o Grupo Escolar Sinop, como os
migrantes preferiam chamar deixou de pertencer à escola Nossa Senhora Do Perpétuo Socorro
para tornar-se oficialmente Escola Estadual Nilza de Oliveira Pipino através do decreto nº
767/76 de outubro de 1976, contudo, ainda sob a coordenação e direcionamento das irmãs
católicas.
Figura 1- Escola construída pela Colonizadora Sinop- Extensão da Escola N. Sra. do Perpétuo Socorro de Vera- MT, 1974 Fonte: Patrimônio Histórico de Sinop, 2011.
Diante disto, nesta pesquisa, partimos do pressuposto de que a educação no período
colonizatório de Sinop assumia um caráter religioso, uma educação fundamentada pelos
princípios cristãos da Igreja Católica e, que além do caráter religioso, a escola não deixava de
estar a serviço do Estado, atendendo à predominância de um ensino técnico voltado para o
trabalho e para manter o civismo, a ordem, características da década de 70 impostas pelo
Regime Militar. Além de que a escola atendia também aos interesses da Colonizadora
privada, o que caracterizava desta forma, um trabalho conjunto e determinante na educação
desenvolvido pela Igreja, pelo Estado e pela empresa Colonizadora.
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Práticas produzidas pela Escola: “ Era tudo muito técnico e abstrato!6”
“Nós não fomos educados para expor nossas ideias, ao contrário, nós fomos ensinados na época a ficar
calados!” (PONCE, depoimento em 2012)
As palavras da ex-aluna denunciam o cotidiano da educação no período investigado,
onde predominava o silêncio, a obediência, o medo, o civismo, a ordem.
Desta forma, para a interpretação deste cotidiano, expressado nas palavras da ex-aluna
na epígrafe deste início, nos voltamos para a análise das práticas produzidas na e pela escola,
direcionando nosso olhar para as entrevistas realizadas com ex-professores e alunos, para as
fontes encontradas como documentos oficiais, cadernos e trabalhos de alunos, cadernos de
planejamento de professores, documentação escolar, diários de classe, e fotografias,
adquiridas não apenas no espaço escolar, mas também em arquivos públicos e acervos
particulares.
Constatamos que por ser a década de 70 marcada por um período de expansão da
Ditadura Militar e pelas as Reformas Educacionais do Ensino Primário e Secundário, a
educação tinha por principal objetivo formar ‘cidadãos’ aos moldes do governo vigente e
trabalhadores qualificados, uma vez que o ensino estava totalmente voltado para o tecnicismo.
É possível perceber logo no objetivo geral do ensino de 1º e 2º graus da Lei 5692/71,
que o que fundamentava a educação à nível nacional naquele momento histórico, assim como
na escola investigada era:
Art. 1º - (...) proporcionar ao educando a função necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto–realização, qualificação para o trabalho e preparo consciente da cidadania.
Com isto, tratava-se de um ensino repetitivo, instrumental e técnico. Nas séries iniciais
da 1ª a 4ª série do 1º grau, por exemplo, foi possível perceber que os conteúdos trabalhados
eram compostos principalmente por ‘leituras silenciosas’, cópias, ditados, tabuadas, as
chamadas contas matemáticas de ‘arme e efetue’, entre outros exercícios mecânicos onde o
aluno escrevia inúmeras vezes letras, sílabas, palavras ou números. Como recorda uma ex-
aluna:
6 Bérgamo, depoimento em 2012.
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“Tinha muito ditado e cópia, se resumia muito em quadro e caderno então era copiar, copiar! Lembro nos ditados que se a gente errava alguma palavra, tinha de escrever ela inúmeras vezes, e, se durante a reescrita você errasse de novo, você escreveria tudo de novo muitas vezes. [...] Também tinha que saber a tabuada ‘salteada’ , era um sofrimento, eu tremia! Você não sabia se você tremia por que estava com medo ou se era porque não sabia mesmo” (BÉRGAMO, depoimento em 2012).
Verificamos que o trabalho na escola regido pelas irmãs católicas de acordo com os
depoimentos obtidos, era muito rigoroso em concordância com a metodologia tradicional, de
cunho moralista, patriótico e técnico. As irmãs exigiam uma extrema disciplina, desde a
entrada para a sala, quando os alunos se organizavam em filas, tomavam distância, ficavam
em posição de sentido para então rezar, hastear a bandeira nacional e cantar os hinos, até a
saída da escola. Durante a aula, que acontecia de forma muito tradicional, o silêncio tomava
conta da escola: “[...] ninguém desobedecia, ninguém falava nada, era um silêncio total, a
gente ouvia só o barulho dos sapos na época da chuva, porque as crianças era todas
quietinhas” (BÉRGAMO, depoimento em 2012).
A organização do espaço nas salas de aula, como ensino de caráter tradicional era
também em filas, “[...] as filas deviam ser muito retas, [...] sempre eram organizadas por
ordem de tamanho: do menor para o maior, aí ficavam sempre aquelas filas do mesmo
tamanho, organizadas, arrumadinhas, [...] não podia ficar virando para trás para ficar
conversando ou olhando p/ os lados. Era ali: a lousa e muito silêncio! Era um comportamento
total!” (PONCE, depoimento em 2012).
Tanto pela falta de materiais, quanto pela metodologia tradicional que se consolidava
em sala de aula, percebemos a partir das fontes analisadas e dos depoimentos colhidos, que os
alunos eram obedientes, servis, mesmo porque a sociedade se comportava desta forma e isto
refletia diretamente para o contexto escolar. Contudo, a ensino deixava muito a desejar, e,
consequentemente a aprendizagem se constituía de forma pouco efetiva:
“Não tinham nada de concreto, nada que facilitasse a aprendizagem. Em matemática, desenhava-se bolinha, pauzinho na folha para dividir, mas na cabeça de uma criança era difícil fazer isto, era tudo muito abstrato! Eu tinha de aprender tudo na decoreba mesmo. Eu olhava o amigo que era bom em matemática fazer os exercícios, aí eu decorava todo o exercício na minha cabeça, então, quando eu tinha de ir para a lousa eu ficava torcendo para ser aquele exercício que eu havia decorado, para colocar todos os números certinhos, no lugar certinho, como eu havia decorado. Mas nem sabia o que aquilo significava!” (BÉRGAMO, depoimento em 2012).
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Outra prática constatada nesta pesquisa é a questão dos castigos, que mesmo negado
nas entrevistas pelas professoras, nos depoimentos de ex-alunos eles aparecem, seja sob forma
física, quanto psicológica, chegando a casos extremos na expulsão do aluno, entretanto este
último era muito raro, primeiramente porque os alunos tinham muito medo dos professores,
das irmãs e dos pais, também pelo fato de que se deixassem de frequentar à escola não teriam
aonde ir: a escola era tudo, era local de encontro com os amigos, de poder conversar, brincar
mesmo que fosse alguns minutos no momento do recreio.
Contudo, entre aquilo que era ensinado e trabalhado na escola, previsto pelo currículo,
estavam também práticas que sutilmente apareciam sobre forma de festividades, cultos
religiosos e rituais cívico-patrióticos, caracterizando-se como um ‘currículo oculto’7 que se
inseria por meio de culto à bandeira, desfiles cívicos, canto do Hino Nacional, Oração pela
Pátria, declamações de poesias relacionados à Pátria, além de comemorações aos heróis
consagrados pela História Oficial ou que simbolizavam os ‘verdadeiros’ patriotas da nação.
Como se tratava de uma década onde o Regime Militar instaurava conceitos que
buscavam promover o civismo, o patriotismo, na tentativa de mobilizar o povo brasileiro, de
fazer com que o pensamento de ‘amor à Pátria’, de obediência, de ordem e progresso
atenuasse as imagens de torturas, de censura, de conflitos sociais, os rituais cívico-patrióticos
assim como as festividades aos heróis nacionais tornavam-se importantes para que fosse
possível estabelecer as formas e estratégias de poder, para que então, a ordem social fosse
mantida. E, a escola, neste cenário, era local propício para se cultivar os valores determinados
pela elite que governava o país.
De acordo com as análises de Souza (2008), o cultivo dos valores cívico-patrióticos foi
reforçado nas escolas públicas e privadas nos anos 70 em concordância com a ideologia do
regime militar. “Práticas de hasteamento da bandeira e canto do Hino Nacional nas escolas
foram revalorizadas. Os desfiles cívicos foram enaltecidos e incentivados pelos poderes
públicos de grande visibilidade social” (SOUZA, 2008, p. 282).
Deste modo, é possível inferir que na Instituição estudada a educação era vista, como
um fator de transformação e de conformação social. Era necessário que a escola inculcasse
normas, princípios e valores nos alunos, a fim de discipliná-los, de forma a ajustá-los ao
7 De acordo com Costa (2009), em sua natureza oculta, o currículo aponta para o fato de que, tal aprendizagem casual, pode contribuir mais para a socialização, na formação de valores e atitudes do aluno, que o currículo oficial da escola.
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mundo do trabalho e a adequá-los ao modelo de sociedade que se pretendia construir –
visando a ordem e o progresso nacional.
O caráter tecnicista do ensino se misturava aos aspectos dos princípios religiosos, os
quais demonstravam a preocupação com a disciplina e a formação moral, bastante presente na
concepção de educação voltada para a formação cristã, cujo eixo norteador era “formar o
cidadão via conhecimentos científicos e valores morais e cívicos, de sorte que todos fossem
instrumentalizados e imbuídos de amor à Pátria” (SÁ, 2010, p. 224).
Com isto, as práticas cívico-patrióticas em voga na escola, “atendia assim, a múltiplos
propósitos: fosse a perpetuação da memória histórica nacional, a exibição das virtudes morais
e cívicas inscritas na obra formativa escolar, a ação educadora da escola para o conjunto da
sociedade” (SOUZA, 2000, p. 116).
Contudo, as práticas mencionadas, a cultura produzida pela escola se voltam para o
que Julia (2001) define como um conjunto de normas que determinam conhecimentos a
ensinar e condutas a inculcar, um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos.
Um conjunto de normas, condutas, valores, que intencionalizavam não apenas
transmitir conhecimentos, mas moldar o comportamento dos alunos educando-os, ensinando-
os a ficar calados!
Vestígios Finais
Foi possível compreender com esta pesquisa que teve como perspectiva de estudo a
cultura escolar, o quanto a escola se configura como um lugar de produção de uma cultura
específica, em que frequentemente criam-se estratégias modeladoras e táticas de subversão
(CERTEAU, 1998), além do quanto as relações de poder se revelam no interior das
instituições escolares, enquanto espaço em que se determinam as relações sociais ao mesmo
tempo em que se constitui como difusora de saberes e conhecimento.
Assim, no contexto de uma história onde colonização e educação se entrecruzam, fazer
um inventário das práticas escolares, dos valores, condutas, normas que eram necessárias
inculcar, dos conhecimentos necessários a ser ensinados pela escola se constituiu como um
campo de trabalho interessante, pois permitiu-nos além de compreender o espaço escolar em
estudo, também discutir as tradições, os costumes trazidos pelos migrantes, que seriam então
mantidos e repassados pela escola, além de ter possibilitado uma discussão sobre a história
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desta primeira instituição, a qual permitiu-nos também pensar escola e sociedade inteiramente
interligadas por um objetivo comum: a construção de uma cidade, sendo, portanto, a escola o
referencial que garantiria a permanência dos migrantes nestas terras, em meio aos perigos da
floresta, as doenças, as dificuldades de sobrevivência num local desconhecido, onde tudo era
preciso ser construído.
Faz-se necessário mencionar o quanto é importante que se faça uma relação entre o
objeto de estudo com o contexto histórico que se definiu, levando-se em consideração as
ações dos homens nesse processo, assim como a história entendida como acontecimento
(BENJAMIN, 1987) e significada pelos sujeitos.
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