da literatura dos viajantes à literatura mediúnica: um passeio pelo imaginário do...
DESCRIPTION
Pesquisa apresentada no CUARTAS JORNADAS DIÁLOGOS: LITERATURA, ESTÉTICA Y TEOLOGÍA, em Buenos Aires.TRANSCRIPT
UUNNIIVVEERRSSIIDDAADD CCAATTOOLLIICCAA AARRGGEENNTTIINNAA FFaaccuullttaadd ddee FFiilloossooffííaa yy LLeettrraass
FFaaccuullttaadd ddee TTeeoollooggííaa
CUARTAS JORNADAS DIÁLOGOS: LITERATURA, ESTÉTICA Y TEOLOGÍA
TERCER COLOQUIO LATINOAMERICANO DE LITERATURA Y TEOLOGÍA
MMiirraaddaass ddeessddee eell BBiicceenntteennaarriioo.. IImmaaggiinnaarriiooss,, ffiigguurraass yy ppooééttiiccaass
Da literatura dos viajantes à literatura mediúnica:
um passeio pelo imaginário do além-fronteiras
Prof. Dr. Adilson Marques
Doutor em Antropologia das Organizações
e Educação pela USP
Outono de 2010
Resumo
Quase 500 anos separam esses dois estilos literários e ambos representam
importantes transições na história humana. O primeiro é fruto do Renascimento e da
descoberta dos novos continentes, até então desconhecidos na Europa. O segundo é fruto da
passagem do mundo moderno-iluminista para a pós-modernidade e da (re)descoberta do
espiritualismo.
Enquanto a Literatura dos Viajantes (LV) descreve as paisagens e a vida nos
continentes recém-descobertos, a Literatura Mediúnica (LM), supostamente escrita por
seres incorpóreos, através de médiuns e sensitivos, descreve os mundos espirituais e as
formas da suposta vida ativa após a morte.
E, da mesma forma que até hoje se discute os estilos literários adotados por André
Thevet e Jean de Lery, por exemplo, dois entre os nomes mais conhecidos no âmbito da
LV, também na LM há, no meio espiritualista, polêmicas sobre as “verdades” que se
ocultam por trás das obras, por exemplo, de André Luiz (autor psicografado por Chico
Xavier) e Ramatís (autor psicografado por Hercilio Maes), cujo um dos livros mais
conhecidos é La sobrevivencia del espiritu, publicado na Argentina pela Editoral Kier.
Sem dúvida, Chico Xavier é um dos mais significativos nomes da chamada LM,
sendo reconhecido em vários países por sua singular obra psicografada, inclusive na
Europa. De suas mãos mais de 400 livros foram escritos, o que, por si só, já é um fato que
merece um profundo estudo e até uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Porém, como uma espécie de Hermes da pós-modernidade, um psicopompo, Chico
Xavier afirmava que mais de 2000 espíritos escreveram, através dele, crônicas, poesias e
até ensaios filosóficos e científicos.
Verdade ou não, imaginação ou revelação, o que importa é que tal literatura é de
fundamental importância para se estudar e compreender as imagens e o imaginário do
invisível, nos conduzindo para um mundo que transcende os cinco sentidos e alcançado
apenas pela imaginação criadora, como fora, em seu tempo, também a LV, que descortinou
para o homem europeu as paisagens e a vida que se ocultava no novo mundo.
Representando papéis bem específicos no cenário da vida humana
Descrever mundos até então desconhecidos é uma façanha que poucos autores
conseguem fazer com maestria, conseguindo prender a atenção do leitor e ativando, neste,
sua imaginação criadora, necessária para recriar mentalmente as imagens e cenas narradas
pelo escritor.
E é justamente isso o que conseguem fazer tanto a LV como a LM, atualmente um
dos estilos literários mais vendáveis, sobretudo, no Brasil, alimentando uma rica indústria
de livros espiritistas no país.
Não é possível desvincular a LV do ideal humanista que floresceu na Terra, por
volta do século XVI. Da mesma forma, no século XX, não podemos pensar a LM sem o
despertar de uma nova etapa de revalorização do espiritualismo, após algumas décadas de
predomínio do fanatismo ateísta e materialista na sociedade ocidental, da segunda metade
do século XIX até o final da Segunda Guerra Mundial.
A LV também acompanhou a mudança de postura do ser humano em relação à
natureza e o seu des-envolvimento (ruptura) com o meio ambiente. Ela já assinalava a
tendência do ser humano em deixar de ser um mero observador da natureza para se tornar
um inquiridor, estabelecendo um diálogo, nem sempre pacífico, com o mundo natural.
Por sua vez, a LM é contemporânea de outro imaginário, de outra paisagem mental,
adequada ao mundo cibernético e virtual: a do ser humano que deixa de ser um mero
inquiridor da matéria para desconstruí-la, dialogando, agora, com o mundo sub-atômico ou
energético das coisas materiais, valorizando todo o potencial da mente na criação de
realidades, além de realimentar a imaginação humana com indícios de uma provável
existência de vida após a morte.
No campo sócio-cultural e econômico, a LV deve ser pensada como um dos frutos
da mundialização do planeta ocorrida no século XVI e a LM é, sem dúvida, contemporânea
da globalização que se acentua após a década de 1950. A primeira se beneficiou com a
tipografia de Gutemberg e a segunda se popularizou graças à revolução informática que não
para de gerar novidades, aproximando instantaneamente pessoas de várias partes do
planeta.
Nutrindo-se nas fontes do neo-platonismo
O mito da caverna, de Platão, tornou-se uma metáfora atemporal de todos os
movimentos platônicos e neo-platônicos, ao longo da história humana. A idéia de que o
mundo com o qual convivemos não passa de uma sombra diante de um mundo muito maior
e cheio de novas possibilidades perceptivas, sensoriais e fáticas, alimenta a imaginação
humana desde a Antiguidade. E é essa imagem que também alimenta e sustenta esses dois
movimentos literários.
Assim, se alguns séculos atrás o mundo se encantava e se assombrava com as
descrições do novo mundo feitas por escritores como Jean de Lery, André Thevet, Hans
Staden e outros viajantes que para as Américas se conduziram, não deixa de ter o mesmo
impacto a leitura das descrições dos diferentes “planos espirituais” realizadas por
“espíritos” como André Luiz, Ramatis e tantos outros que reencantam a mente dos leitores
nos chamados livros psicografados.
E da mesma forma que a fenomenal obra de Leonardo da Vince foi importante para
que hoje fossemos capazes dominar a anatomia do corpo, a fenomenal obra mediúnica
produzida por Chico Xavier, por exemplo, não deixa de ser fundamental para quem se
propuser a estudar a “anatomia” da alma.
Trechos para reflexão
Devido às limitações para a exposição de nossos argumentos, optei aqui em
apresentar alguns trechos de um dos mais famosos textos psicografados por Chico Xavier, o
livro Nosso Lar, supostamente escrito por um espírito que se identifica como André Luiz e
que, em tese, teria sido um médico de prestígio na Terra, tendo vivido na cidade do Rio de
Janeiro. O livro foi publicado em 1944 pela Federação Espírita Brasileira e já vendeu mais
de 1 milhão e meio de cópias.
O romance narra o despertar do suposto espírito em uma região umbralina, o seu
resgate alguns anos depois, e sua recuperação em um hospital no plano espiritual para, em
seguida, iniciar sua nova forma de vida, estudando e compreendendo a dinâmica da
existência após a morte.
Neste primeiro trecho, o espírito descreve como foi o seu despertar no mundo
espiritual em um suposto local de purgação:
Sentia-me, na verdade, amargurado duende nas grades escuras do horror. Cabelos
eriçados, coração aos saltos, medo terrível senhoreando-me, muita vez gritei como louco,
implorei piedade e clamei contra o doloroso desânimo que me subjugava o espírito; mas,
quando o silêncio implacável não me absorvia a voz estentórica, lamentos mais
comovedores, que os meus, respondiam-me aos clamores. Outras vezes gargalhadas
sinistras rasgavam a quietude ambiente. Algum companheiro desconhecido estaria, a meu
ver, prisioneiro da loucura. Formas diabólicas, rostos alvares, expressões animalescas
surgiam, de quando em quando, agravando-me o assombro. A paisagem, quando não
totalmente escura, parecia banhada de luz alvacenta, como que amortalhada em neblina
espessa, que os raios de Sol aquecessem de muito longe.
Neste outro trecho do livro, após o espírito ser resgatado das trevas por forças
divinas, é levado para uma espécie de hospital onde continuará em recuperação:
Envolvendo os dois enfermeiros na vibração do meu reconhecimento, esforcei-me
por lhes dirigir a palavra, conseguindo dizer por fim:
- Amigos, por quem sois, explicai-me em que novo mundo me encontro... De que
estrela me vem, agora, esta luz confortadora e brilhante?
Um deles afagou-me a fronte, como se fora conhecido pessoal de longo tempo e
acentuou:
- Estamos nas esferas espirituais vizinhas da Terra, e o Sol que nos ilumina, neste
momento, é o mesmo que nos vivificava o corpo físico. Aqui, entretanto, nossa percepção
visual é muito mais rica. A estrela que o Senhor acendeu para os nossos trabalhos
terrestres é mais preciosa e bela do que a supomos quando no círculo carnal. Nosso Sol é
a divina matriz da vida, e a claridade que irradia provém do Autor da Criação.
Meu ego, como que absorvido em onda de infinito respeito, fixou a luz branda que
invadia o quarto, através das janelas, e perdi-me no curso de profundas cogitações.
Recordei, então, que nunca fixara o Sol, nos dias terrestres, meditando na imensurável
bondade dAquele que no-lo concede para o caminho eterno da vida. Semelhava-me assim
ao cego venturoso, que abre os olhos para a Natureza sublime, depois de longos séculos de
escuridão.
Neste terceiro trecho, o espírito é diagnosticado por um médico e aborda,
sumariamente, a lei universal de causa e efeito, ou seja, que aquilo que semearmos, iremos
ceifar:
- A zona dos seus intestinos apresenta lesões sérias com vestígios muito exatos do
câncer; a região do fígado revela dilacerações; a dos rins demonstra característicos de
esgotamento prematuro.
Sorrindo, bondoso, acrescentou:
- Sabe o irmão o que significa isso?
- Sim - repliquei , o médico esclareceu ontem, explicando que devo esses distúrbios
a mim mesmo...
Reconhecendo o acanhamento da confissão reticenciosa, apressou-se a consolar:
- Na turma de oitenta enfermos a que devo assistência diária,cinqüenta e sete se
encontram nas suas condições. E talvez ignore que existem, por aqui, os mutilados. Já
pensou nisso? Sabe que o homem imprevidente, que gastou os olhos no mal, aqui
comparece de órbitas vazias? Que o malfeitor, interessado em utilizar o dom da locomoção
fácil nos atos criminosos, experimenta a desolação da paralisia, quando não é recolhido
absolutamente sem pernas? Que os pobres obsidiados nas aberrações sexuais costumam
chegar em extrema loucura?
Poderíamos citar outros trechos, mas estes são suficientes para demonstrar a
estrutura básica de parte significativa dos romances psicografados. O espírito narra seu
desencarne, o sofrimento que experimenta inicialmente e, em seguida, após sua
recuperação, apresenta o trabalho regenerador que inicia para que possa ascender às
moradas mais sublimes da vida eterna.
E como já salientou o antropólogo Gilbert Durand, o imaginário humano visa
enfrentar a angústia originária, ou seja, a consciência do tempo que passa e a foice da
morte. E a LM, neste tempo de revalorização da espiritualidade, traz o alento e o conforto
que muitos necessitam, além de estimular o surgimento de muitas editoras especializadas
na produção de “romances espíritas”, ou seja, escritos supostamente por espíritos.