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FACULDADE 7 DE SETEMBRO - FA7 CURSO DE GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO JORNALISMO E LITERATURA NAS CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY SÉRGIO PAIVA DE ALENCAR FORTALEZA - 2009

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FACULDADE 7 DE SETEMBRO - FA7 CURSO DE GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO

JORNALISMO E LITERATURA NAS

CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY

SÉRGIO PAIVA DE ALENCAR

FORTALEZA - 2009

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SÉRGIO PAIVA DE ALENCAR

JORNALISMO E LITERATURA NAS

CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY

Monografia apresentada à Faculdade 7 de Setembro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Orientadora: Professora Alessandra Marques Cavalcante da Fontoura, MS

FORTALEZA – 2009

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JORNALISMO E LITERATURA NAS

CRÔNICAS DE CARLOS HEITOR CONY

SÉRGIO PAIVA DE ALENCAR

Monografia apresentada à Faculdade 7 de Setembro, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo.

Monografia aprovada em: Fortaleza,

BANCA EXAMINADORA: Assinatura: Profª. Alessandra Marques Cavalcante da Fontoura, MS (Fa7) Orientadora Assinatura: Prof. Luiz Gonzaga Capaverde, MS (Fa7) Membro Assinatura: Prof. Paulo Ernesto Saraiva Serpa, MS (Fa7) Membro

_________________________________________ Profª Juliana Lotif Araújo, MS (Fa7)

Coordenadora do Curso

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DEDICATÓRIA: Dedico primeiramente a Deus, pois sem sua luz nada teria sido possível. Dedico a Denise, Serginho e Camilinha, esposa e filhos maravilhosos, que sempre me apoiaram e que tantas ausências minhas tiveram que experimentar em razão do curso que agora concluo. Dedico também a meus inigualáveis pais, Carlos e Valdenise, que doaram suas vidas para que eu conseguisse chegar até aqui. Dedico a meus irmãos, Carlos Jr. e Carlenise, a meus cunhados, sobrinhos e a todos os meus familiares, sempre presentes na minha vida. Por fim, dedico a todos os meus amigos, que são os parentes de coração.

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AGRADECIMENTOS: Em primeiro lugar a Alessandra Marques, orientadora e estimada professora, pela paciência, pelo incentivo, pelos ensinamentos, e, acima de tudo, pela indispensável colaboração para a realização do presente trabalho. Agradeço a Juliana e a Ismael, atual coordenadora e ex-coordenador do curso de Jornalismo, por toda a ajuda que me deram ao longo desses anos, bem como a todos os professores, que emprestaram seus conhecimentos, com total entrega, para que eu pudesse chegar até aqui. Finalmente, agradeço a todos os colegas de faculdade, muitos hoje meus amigos, futuros companheiros de profissão.

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RESUMO

ALENCAR, Sérgio Paiva de. Jornalismo e Literatura nas Crônicas de Carlos Heitor Cony. Fortaleza, 2009. Monografia – Curso de Jornalismo, Faculdade 7 de Setembro. Este trabalho tem como foco quatro crônicas – de cunho biográfico – contidas na obra O Tudo e o Nada, de Carlos Heitor Cony, para verificar nelas a presença dos elementos do Jornalismo, da Literatura e, mais especificamente, dos relatos de narração biográfica. Para tanto, procuraremos estabelecer, em um primeiro momento, as relações entre Jornalismo e Literatura, já que ambos exercem forte influência na crônica. Em seguida, falamos especificamente sobre a crônica, apresentando um breve histórico, conceito, classificação e comparando-a com as narrações biográficas. Por fim, apresentamos nossas considerações sobre as crônicas analisadas, que narram vidas do próprio Cony, além de Pixinguinha, Goethe e Stendhal. Palavras - chave: crônica, jornalismo, literatura, biografia, Carlos Heitor Cony.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 8 1 RELAÇÕES ENTRE JORNALISMO E LITERATURA .................................. 10 1.1 A Literatura na história do Jornalismo.......................................................... 10 1.2 Jornalismo e Literatura se encontram no Brasil........................................... 14 1.3 Jornalismo e Literatura por Carlos Heitor Cony............................................16 1.4 A tênue fronteira entre ficção e realidade ....................................................17 2 A CRÔNICA....................................................................................................19 2.1 Um breve histórico........................................................................................19 2.2 Conceito e características.............................................................................22 2.3 Crônica – classificação..................................................................................28 2.4 Crônica e Biografia........................................................................................31 3. ANÁLISE DAS CRÔNICAS............................................................................34 3.1 Critérios de escolha das crônicas..................................................................34 3.2 Crônica 1: Goethe, Fausto, a Tempestade e o Impulso................................34 3.3 Crônica 2: Grande Momento do Milênio foi um Inocente .............................36 3.4 Crônica 3: As Incalculáveis Cavernas da Alma.............................................38 3.5 Crônica 4: Pixinguinha – Um Choro de Saudade..........................................40 CONCLUSÃO.....................................................................................................43 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................46

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INTRODUÇÃO A crônica, para a maioria dos estudiosos no assunto, é hoje um gênero nitidamente brasileiro e que incorpora o real do Jornalismo e o ficcional da Literatura. Ela tem sua existência na fronteira entre os dois gêneros narrativos e se utiliza essencialmente do veículo jornal para se divulgar. Muitos autores, no entanto, recolhem crônicas que publicaram em jornais, as consideradas menos efêmeras, para publicação em livros. O tema é apaixonante. O que nos levou a fazer o presente trabalho foi o fato de que a crônica, apesar de utilizar linguagem simples, oral, informal, coloquial, espontânea, mais parecendo conversa fiada, requer de seu autor técnicas apuradas de jornalismo e de literatura. A crônica demanda enredo bem desenvolvido, com espaço e tempo bem definidos. Requer também que o cronista tenha conhecimento sobre os fatos do cotidiano, já que a crônica nele se assenta, além de talento, humor, sensibilidade, criatividade, lirismo, estilo e poder de síntese, dentre outras habilidades. A escolha por Carlos Heitor Cony reside no fato de ser ele um dos poucos grandes escritores brasileiros que atuam na crônica, seja publicando regularmente em jornais (no seu caso a Folha de São Paulo), seja compilando-as para publicação em livros.

Cony se destaca por ter uma narração leve, simples, envolvente e aparentemente descomprometida, mas de alta qualidade e que sabe exatamente aonde quer chegar. Ele atrai como ninguém seu leitor, que entra no texto para extrair, em tom de cumplicidade, as opiniões, as reflexões filosóficas e as críticas sociais e políticas que o cronista com ele compartilha.

Dentre as 101 crônicas da obra O Tudo e o Nada, de Carlos Heitor Cony, optamos pelas de cunho biográfico, motivo pelo qual analisamos quatro crônicas de trajetórias de vida, sendo uma do próprio autor, duas de expoentes da literatura universal (Goethe e Stendhal) e uma do gênio musical brasileiro Pixinguinha.

As crônicas biográficas foram escolhidas por fazerem o relato das trajetórias de pessoas, importantes ou não, vivas ou mortas, sem o rigor cronológico e formal das biografias tradicionais. Nessas crônicas, o que importa ao cronista é entrar no contexto psicológico do personagem retratado para fazer as reflexões que pretende, para tanto externando opiniões e mostrando pontos de vista.

Este trabalho, que não tem grandes pretensões científicas, é uma espécie de contribuição para aqueles que pretendam adentrar no fascinante mundo da crônica, especialmente os alunos de Jornalismo da Faculdade 7 de Setembro, onde temos a honra de concluir o curso neste instante. Que sirva, portanto, como um despertar para a crônica.

Não poderíamos deixar de relatar as dificuldades que tivemos para fazer este trabalho, já que jornalista não fala muito em crônica e escritor também não. Cada um

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pensa e age como se o gênero fizesse parte do campo de atuação do outro, e não do seu próprio. Nesse empurra-empurra, perde o jornalismo, perde a literatura e perde a crônica, que é filha autêntica dos dois, dos quais herda suas características fundamentais.

Os estudiosos do assunto, nesse contexto, normalmente não têm escrito obras específicas sobre o gênero, que fica sujeito, em regra, a poucos comentários, mesmo que significativos, em páginas de livros de diversos temas. Assim é que, por exemplo, realizamos grande esforço para levantar dados sobre a história da crônica, colhendo daqui e dali, para, em seguida, tentar “conectar” as versões apresentadas, que normalmente são incompletas.

A primeira parte desse trabalho faz um esforço para apurar quando a literatura entrou na história do jornalismo, bem como quando o mesmo fenômeno aconteceu em terras brasileiras, movido por escritores que, como Machado de Assis e José de Alencar, buscaram fama e dinheiro nas páginas de jornais. Apresentamos ainda a visão de Carlos Heitor Cony sobre a interseção entre jornalismo e literatura.

Na segunda parte, fazemos um breve histórico da crônica, tentamos apresentar seu conceito e suas características, por autores da lavra de José Marques de Melo, Felipe Pena, Edvaldo Pereira Lima e outros, bem como as classificações apresentadas por quatro autoridades no assunto, que são Antonio Candido, Afrânio Coutinho, Luiz Beltrão e Massaud Moisés.

Já na terceira parte, por fim, chegamos ao objetivo maior de nosso trabalho, que é analisar as crônicas biográficas feitas por Carlos Heitor Cony. Teremos a oportunidade de ver que o cronista Cony foge completamente à estrutura tradicional da biografia, dando pouca ou nenhuma importância à ordem cronológica dos acontecimentos ou a informações como a data de nascimento e de morte do personagem. Constataremos também a presença dos elementos da crônica nos relatos biográficos analisados, tais como a ironia, a informalidade, a subjetividade e o sentido figurado, que enriquecem o texto e tanto seduzem o leitor.

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1 RELAÇÕES ENTRE JORNALISMO E LITERATURA 1.1 A Literatura na história do Jornalismo Os estudiosos da Comunicação divergem sobre quando nasceu o jornalismo. Uns entendem que sua origem remonta à pré-história, com as primeiras formas de comunicação humana, antes mesmo do advento da fala. Para esse grupo, as expressões gestuais, os sinais luminosos e os de fumaça já constituíam autênticas expressões do fazer jornalístico. Alguns julgam que o jornalismo nasceu com a linguagem verbal, a partir do momento em que os primeiros oradores apresentavam informações de interesse público ao ar livre. Felipe Pena (2006¹, p. 26) aponta que “os relatos orais são a primeira grande mídia da humanidade”. Já Bill Kovack e Tom Rosenstiel (2004, p. 37) afirmam que “com o fim da Idade Média, as notícias surgiram na forma de músicas e relatos, nas baladas cantadas pelos jograis ambulantes”. A fase da oralidade desembocou na da escrita, invenção que abriu novas perspectivas aos relatos de informações. Michael Kunczik (2002, p. 22) afirma que “na Europa central, os predecessores dos jornalistas eram os bardos viajantes, que reportavam e comentavam os acontecimentos do dia nas feiras, mercados e cortes aristocráticas, assim como os mensageiros e os escrivãos públicos”. P. Albert e F. Terrou (1990, p. 3) também acreditam que a função da transmissão de informações com intuito jornalístico já estava presente nessas fases iniciais da comunicação humana:

A curiosidade do público sempre suscitou a vocação de contadores de história que, dos aedos gregos aos troveiros da Idade Média e aos feiticeiros africanos, cumpriam uma função de comunicação e com freqüência também de informação. A preocupação de conversar a narração dos grandes acontecimentos ou de descrever os mundos estrangeiros, de Homero aos cronistas do final da Idade Média, de Heródoto a Marco Pólo, deu origem a obras que, mutatis mutandis, se assemelham às nossas reportagens.

Albert e Terrou (1990, p. 3) dizem que os pequenos e os grandes impérios da Antiguidade e da Idade Média já dispunham de verdadeiras redes de coleta e de difusão de informações, as quais, por diversos meios, orais ou escritos, eram levadas ao conhecimento público pelos mensageiros. As correspondências privadas teriam constituído, nesse período, uma fonte periódica de transmissão de notícias. Por fim, outros estudiosos definem que o jornalismo só passou efetivamente a existir quando ganhou ares de cientificidade, incorporando as características que a ele são atribuídas na atualidade: periodicidade, universalidade, atualidade e difusão. Para estes, o jornalismo surgiu a partir da invenção dos tipos impressos e, mais especificamente, com o nascimento da imprensa, que aconteceu no final da Idade

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Média na Europa. José Marques de Melo se alinha a essa tese e diz que o jornalismo só nasceu com o advento do jornal, que considera seu principal veículo (2003¹, p. 48). As cartas manuscritas e outras manifestações não tipográficas, para ele, não podiam ser consideradas formas de fazer jornalístico, na medida em que não dispunham de recepção coletiva:

Entendemos que essas mensagens de comunicação social, sobretudo as cartas manuscritas, formas embrionárias de jornais, possuíam atualidade, periodicidade e universalidade, mas não recepção coletiva, pois eram destinadas a grupos restritos de pessoas, até mesmo em fase da ausência daquela característica essencial para Rizzini – liberdade de publicação.

O certo é que, tenha nascido num ou noutro momento histórico, reconhece-se que o jornalismo teve crucial importância para a construção das relações sociais, culturais, históricas e políticas. Isso porque o ser humano, curioso por excelência, sempre buscou obter informações sobre os acontecimentos, quer ocorram ao seu redor ou nos lugares mais longínquos, numa necessidade de sentir-se informado e atualizado, bem como integrado ao seu grupo social. Nesse sentido, Melo (2003², p. 19), ao analisar a trajetória histórica do jornalismo, explicita que:

É fato que o homem sempre teve vontade, interesse e aptidão para saber o que se passa. Informar e informar-se constituiu o requisito básico da sociabilidade. Mas a complexidade adquirida pela organização social, o agigantamento populacional e a redução dos obstáculos geográficos aguçaram a curiosidade humana. Não se trata apenas de uma dimensão gregária. A intensificação e o refinamento das relações de troca, que ocorrem no bojo das transações capitalistas, as possibilidades de atuar e de influir na vida da sociedade, que se afiguram na eclosão das revoluções burguesas, tornam a informação um bem social, um indicador econômico, um instrumento político.

Ressalte-se que os importantes acontecimentos históricos, que se sucediam em velocidade antes desconhecida, aguçavam o interesse dos homens por informações atualizadas. Nesse sentido, Albert e Terrou (1990, p. 4) relatam que:

A partir do século XV, uma série de fatores políticos, econômicos e intelectuais conjugaram seus efeitos para aumentar notavelmente a sede de notícias do Ocidente. O Renascimento e, posteriormente, a Reforma multiplicaram as curiosidades. As grandes descobertas ampliaram o horizonte europeu. Os progressos das trocas bancárias e comerciais ocasionaram um desenvolvimento paralelo das trocas de informações. Os novos Estados modernos exigiam, para sua administração, a criação de novas redes de informação. Os grandes conflitos que dilaceraram o Ocidente no século XVI alimentavam correntes e necessidades de informações.

E essa necessidade do homem por informações atualizadas proporcionou o surgimento do jornalismo. Sobre isso, Bill Kovack e Tom Rosenstiel (2004, p. 37) afirmam que:

Isso que podemos considerar como o moderno jornalismo começou a emergir nos começos do século 17, literalmente na base de conversas, sobretudo em lugares públicos como os cafés de Londres, e depois nos

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pubs ou “casas públicas”, como eram chamados nos Estados Unidos. Ali os donos de bares, chamados publicans, estimulavam os papos animados de viajantes que chegavam, para que contassem o que tinham visto e ouvido no caminho, material informativo registrado depois em livros especiais que ficavam sobre o bar. Na Inglaterra havia cafés especializados em informações específicas. Os primeiros jornais saíram desses cafés por volta de 1609, quando tipógrafos mais atrevidos começaram a recolher informações, fofocas e discussões políticas nos próprios cafés, depois imprimindo tudo.

Melo (2003², p. 21) aponta que, antes do século XVII, a ausência de periodicidade das publicações impressas na Europa não se deveu a fatores tecnológicos, mas à censura prévia exercida pelos Estados nacionais ou compartilhada pela Igreja nas nações católicas. Por isso, para ele, (p. 22) “o autêntico jornalismo – processos regulares, contínuos e livres de informação sobre a atualidade e de opinião sobre a conjuntura – só emerge com a ascensão da burguesia ao poder e a abolição da censura prévia”. O jornalismo, nesses primeiros momentos, caracterizava-se pelo confronto de opiniões de diferentes correntes de pensamento ou de distintos grupos sociais (p. 23).

Ciro Marcondes Filho (2002. p. 11) considera que de 1789 à metade do século 19, que denomina de primeiro jornalismo, foi o período da “iluminação”: “É a época de ebulição do jornalismo político-partidário, em que as páginas impressas funcionam como caixa acústica de ressonância, programas político-partidários, plataformas de políticos, de todas as idéias”. Ele aponta que os jornais eram escritos com objetivos pedagógicos e de formação política e que os fins econômicos ficaram condicionados a segundo plano (p. 12). O conteúdo dos jornais desse período era, enfim, a opinião, que Luiz Beltrão (1980, p.14) considera como a função vertical do jornalismo e que define como “a função psicológica, pela qual o ser humano, informado de idéias, fatos ou situações conflitantes, exprime a respeito seu juízo”. O Autor relata que a distinção entre o jornalismo informativo e o opinativo corresponde a um artifício profissional e também político (p.25):

Profissional no sentido contemporâneo, significando o limite em que o jornalista se move, circulando entre o dever de informar (registrando honestamente o que observa) e o poder de opinar, que constitui uma concessão que lhe é facultada ou não pela instituição em que atua. Político no sentido histórico: ontem, o editor burlando a vigilância do Estado, assumindo riscos calculados nas matérias cuja autoria era revelada (comments); desviando a vigilância do público em relação às matérias que aparecem como informativas (news), mas na prática possuem vieses ou conotações.

A informação é a base do jornalismo informativo enquanto que a opinião, que Beltrão chama de orientação, é a base do jornalismo opinativo. Ele aponta (1980, p. 13) que a informação é o “relato puro e simples de fatos, idéias e situações do presente imediato, do passado ou do vir-a-ser possível/provável, que estejam, no momento, atuando na consciência coletiva” e que a orientação é “o esforço de interpretar a ocorrência, tirando conclusões e emitindo juízos com o objetivo de provocar a ação por parte daqueles aos quais a mensagem é dirigida”. Beltrão

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entende que o jornalismo, além das funções mencionadas – informar e orientar – ainda possui uma terceira, que é a de divertir (entretenimento). Sucede que os jornais, na segunda metade do século XIX, vão se convertendo em autênticas empresas comerciais, preocupadas agora com sustentabilidade econômica e com a obtenção de lucros. As opiniões não desaparecem dos impressos, mas vão cedendo espaço para as publicidades e para as notícias essencialmente informativas, até culminar com a situação exposta por Melo (2003², p. 24):

Mas sem dúvida o jornalismo informativo afigura-se como categoria hegemônica, no século XIX, quando a imprensa norte-americana acelera seu ritmo produtivo, assumindo feição industrial e convertendo a informação de atualidade em mercadoria. A edição de jornais e revistas que, nos seus primórdios, possui o caráter de participação política, de influência na vida pública, transforma-se em negócio, em empreendimento rentável.

E é nesse contexto, onde o jornal se transforma em negócio e a informação em produto, que a demanda por notícias passa a crescer a cada dia. Surge então o jornalista, um especialista que começa a transformar o relato puro e simples da informação em reportagem, modalidade que Juarez Bahia (1990, p.49) conceitua como “a grande notícia, a notícia que evolui, que amplia o relato dos fatos, contextualiza historicamente um acontecimento e o desdobra tentando esgotar suas interpretações, causas e efeitos”. Esse jornalista, a partir do surgimento da reportagem, sente a necessidade de refinar seu trabalho, pelo que começa a se inspirar na literatura para aperfeiçoar suas narrativas sobre o real. Aí tem início o entrelaçamento do jornalismo com a literatura. Por outro lado, nesse mesmo momento, muitos escritores de prestígio encantam-se com os jornais, que lhes abrem novas oportunidades de ganhar dinheiro e notoriedade, difíceis de obter com a publicação de livros. Eles passam a trabalhar na imprensa e nela buscam, inclusive, aprimorar suas técnicas literárias. Edvaldo Pereira Lima (2009, p. 174) descreve essa nova realidade dos jornais:

Na verdade, a literatura e a imprensa confundem-se até os primeiros anos do século XX. Muitos dos jornais abrem espaço para a arte literária, produzem seus folhetins, publicam suplementos literários. É como se o veículo jornalístico se transformasse numa indústria periodizadora da literatura da época. Esse aspecto divulgador, oportunidade inovadora de chegar à coletividade, é o fator que atrai os escritores e ao mesmo tempo inaugura o tradicional debate em torno do “vampirismo” que o exercício da profissão de jornalista exerce sobre os ficcionistas (...).

Felipe Pena (2006¹, p. 29) relata que “publicar narrativas literárias em jornais proporcionava um significativo aumento nas vendas e possibilitava uma diminuição nos preços, o que aumentava o numero de leitores e assim por diante”. Por outro lado, “para os escritores também era um ótimo negócio. Não só porque recebiam em dia dos novos patrões, mas também pela visibilidade que ganhavam a partir da

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divulgação de suas histórias e de seus nomes”. O Autor aponta as conveniências do enlace entre os escritores e os periódicos (p.32):

E foi justamente no século XIX que a influência da Literatura no Jornalismo tornou-se mais visível. O casamento entre imprensa e escritores era perfeito. Os jornais precisavam vender e os autores queriam ser lidos. Só que os livros eram muito caros e não podiam ser adquiridos pelo público assalariado. A solução parecia óbvia: publicar romances em capítulos na imprensa diária. Entretanto, esses romances deveriam apresentar características especiais para seduzir o leitor. Não bastava escrever muito bem ou contar uma estória com maestria. Era preciso cativar o leitor e fazê-lo comprar o jornal do dia seguinte. E, para isso, seria necessário inventar um novo gênero literário: o folhetim.

Esse novo gênero literário, utilizado pelos escritores para seduzir seus leitores de jornal, é assim descrito por Flora Bender e Ilka Laurito (1993, p. 15):

Esse filão era chamado folhetim (do francês feuilleton). E o que era esse folhetim? Era um espaço livre no rodapé do jornal, destinado a entreter o leitor e a dar-lhe uma pausa de descanso em meio à enxurrada de notícias graves e pesadas que ocupavam – como sempre ocuparam – as páginas dos periódicos. Com o tempo, a acolhida do público com relação a esse espaço foi aumentando, e o folhetim passou a ser um chamariz para atrair leitores.

1.2 Jornalismo e Literatura se encontram no Brasil Na imprensa brasileira, consoante relatam Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca (2008, p. 69):

Saem como folhetim Memórias de um sargento de milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida, no Correio Mercantil; O guarani (1857), de José de Alencar, no Diário do Rio de Janeiro; A mão e a luva (1874), em O Globo, e Iaiá Garcia (1878) em O Cruzeiro, ambos de Machado de Assis.

José de Alencar também publica, de 1854 em diante, no mesmo Correio Mercantil, os folhetins "Ao Correr da Pena", posteriormente reunidos em livro. Já no Diário do Rio de Janeiro, a partir de 1855, publica seu primeiro romance, também em folhetins, intitulado “Cinco Minutos”. Gonçalves Dias redige, a partir de 1846, crônicas e folhetins em vários jornais cariocas. Joaquim Manuel de Macedo, em 1856, é colaborador do Jornal do Comércio e Lima Barreto publica a partir de 1911, em folhetins, no Jornal do Comércio, o romance "Triste fim de Policarpo Quaresma". E essas duas linhas de atuação conjunta nos periódicos, a do jornalista e a do escritor, não escapam aos olhos aguçados de Lima (2009, p.178):

Num primeiro movimento, o jornalismo bebe na fonte da literatura. Num segundo, é esta que descobre, no jornalismo, fonte para reciclar sua prática, enriquecendo-a com uma variante bifurcada em duas possibilidades: a de representação do real efetivo, uma espécie de reportagem – com sabor literário – dos episódios sociais, e a

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incorporação do estilo de expressão escrita que vai aos poucos diferenciando o jornalismo, com suas marcas distintas de precisão, clareza, simplicidade.

A partir daí, a trajetória do jornalismo e a da literatura se aproximam mais a cada dia. Embora sejam formas de discurso distintas, cada qual com técnicas próprias, são várias as características em comum. Com o entrelaçamento, começa uma verdadeira relação de amor e ódio entre os gêneros literários. Muitos escritores não admitem ser tidos como jornalistas e alguns destes não se vêem como escritores. Por isso, a relação entre jornalismo e literatura já nasce controvertida e essa polêmica se estende até os dias de hoje. Já nos ocupamos de demonstrar o que seja jornalismo. Procuraremos agora, também em rápidas pinceladas, definir o que seja literatura. Aristóteles, em sua célebre obra Poética (1981, p. 28) explica que ao poeta não compete narrar o que aconteceu, mas o possível, ou seja, representar o que poderia acontecer, segundo a verossimilhança ou a necessidade.

Antonio Candido (1985, p. 51) segue a mesma linha de raciocínio:

A arte, e, portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade.

E Afrânio Coutinho (1978, p. 9/10), ao apresentar seu conceito de literatura, em muito se aproxima das definições apresentadas:

A literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio.

Deduz-se, pelos conceitos apresentados, que o escritor narra sem as amarras das regras de estruturação lingüísticas, criando o mundo conforme suas convicções e imaginação. Não há caminho lógico a ser seguido, não há compromisso com o real, com o atual, mas com o estético e com o prazer de quem lê. O mundo é concebido pelo produtor literário como ele quer que seja, com os significados e representações que produz, pouco importando como esse mundo seja de verdade. Assim é que, enquanto a literatura trabalha com a transfiguração do real, o jornalismo para este se encaminha. O ideal para Gabriel Garcia Márquez, mencionado por Manuel Angel Vásquez Medel (2002, p.20), seria que “a poesia fosse cada vez mais informativa e o jornalismo cada vez mais poético. Um ideal que, como pode observar-se nos bons criadores do jornalismo moderno, parece haver-se cumprido”.

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1.3 Jornalismo e Literatura por Carlos Heitor Cony O presente trabalho visa analisar algumas crônicas de Carlos Heitor Cony, mais precisamente quatro delas, que foram originalmente publicadas no jornal Folha de São Paulo e, posteriormente, republicadas no livro O Tudo e o Nada (2004), de sua autoria. A escolha não foi à toa, já que Cony é, a um só tempo, jornalista e escritor de excelência, com grandes trabalhos – e contribuições prestadas – nos dois gêneros literários aqui tratados. Na área jornalística, Carlos Heitor Cony teve passagem pelo Jornal do Brasil, foi redator na Rádio Jornal do Brasil, trabalhou como copidesque no Correio da Manhã (onde também dividiu, com Octávio de Faria, a coluna "Da Arte de Falar Mal"), escreveu novela para a TV Rio (sendo depois substituído por Oduvaldo Viana), além de ter atuado nas revistas e na TV do Grupo Manchete. Na Folha de São Paulo, onde ainda é colaborador, revezou coluna com Cecília Meireles, assumiu a coluna "Rio" (sucedendo Otto Lara Resende) e também integra o Conselho Editorial. Na área literária, Cony, eleito imortal para a cadeira 3 da Academia Brasileira de Letras em 2000, fez inúmeras traduções e adaptações de clássicos da literatura nacional e internacional, publicou mais de vinte romances, além de livros infanto-juvenis, de crônicas, de contos, de ensaios biográficos e de reportagens. O Autor também escreveu com vários outros expoentes da literatura nacional. Na obra “O Tudo e o Nada”, Carlos Heitor Cony, em do Jornalismo e da Literatura (p. 293 a 296), originalmente publicada no jornal Folha de São Paulo de 06 de dezembro de 2002, externa sua opinião sobre a convergência dos dois gêneros lingüísticos. Ele começa por questionar as características do jornal impresso, comparando-o a um trem:

O jornal é como um trem - dizia Kafka. Tem que sair em determinado dia, ou todos os dias, mas com uma diferença básica em relação aos trens: ele não pode sair vazio. Com assunto ou sem assunto, tem que ocupar todas as suas páginas, seja com anúncios, ilustrações ou textos paralelos, desvinculados de sua função natural, que é a notícia, a informação, o serviço da comunicação propriamente dito. O veículo-jornal, ao contrário do veículo-trem, não pode sair com lugares não ocupados. E, para encher com alguma dignidade o ângulo morto de cada edição, apelou-se, entre outras coisas, para a crônica, que tem uma tradição paralela na história da comunicação humana.

Esse jornal, já caracterizado como produto comercial, não podia suspender sua edição por insuficiência de notícias e nem diminuir seu número de páginas, em razão dos compromissos já assumidos com anunciantes. Sobre isso, Cony relata:

Comprometido com a notícia, com o fato do dia, o jornal abriu espaços para a comercialização, que o sustenta industrialmente, e para os passageiros robotizados que podem ocupar os lugares vazios de cada edição. Surgiram então as colunas, os ‘potins’, os ‘faits divers’, as charges e, naturalmente, as crônicas, que são a expressão mais visível

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do jornalismo dito literário. Daí que os cronistas, mesmo os bem-sucedidos, são vistos como subprodutos, autores de circunstância que, mais cedo ou mais tarde, ficarão datados.

Assim é que Cony, cético quanto ao reconhecimento dos escritores que atuam em jornais, acaba por questionar a própria existência do jornalismo literário:

Resumindo a ópera: pode-se concluir que não há jornalismo literário. Há jornalismo e há literatura. Funcionam por meio de sinais ou símbolos, que são as palavras compostas por letras, mas nem todas as letras formam necessariamente aquilo que se compreende como literatura. Há jornalistas que dominam a técnica e a composição do texto. Mas são eles, exatamente, que se tornam cada vez melhores à medida que deixam de ser literários.

1.4 A tênue fronteira entre ficção e realidade

A princípio diríamos que o jornalismo trabalha com o real, com o verídico, enquanto que a literatura trabalha com o ficcional, com o imaginário. O jornalista, dessa forma, narra fatos do dia-a-dia que realmente aconteceram, mencionando lugares, datas, pessoas e circunstâncias igualmente reais. Não há, em tese, espaço para o relato do discricionário, do irreal, já que a veracidade é tida como elemento essencial do jornalismo. Já o escritor, falamos também em tese, não tem qualquer compromisso com a realidade. Ele cria lugares, datas, personagens e circunstâncias de forma discricionária, tudo com o objetivo de prender a atenção de seu leitor e transformar seu relato em uma grande obra. Ele constrói a “realidade” a seu bel prazer, manipulando todos os elementos que estão ao alcance de sua imaginação. Sobre esse elemento de distinção do jornalismo, como expressão do real, e a literatura, como vinculada ao imaginário, Adriano Piekas, em artigo apresentado no site do Observatório da Imprensa (2007), faz o seguinte questionamento:

Como se sabe, tanto literatura como jornalismo se usam da palavra para dar corpo e sentido a uma determinada história ou fato, seja ela verídica, na situação jornalística, ou ficcional, quando tratamos do mundo literário. No entanto, como realmente definir o que é realidade do que é ficção? Até que ponto a ficção se restringe apenas à literatura? Será que ela não se apresenta também no universo diário do jornalismo?

A propósito desse questionamento, Rildo Cosson (2002, p. 58), explicita que:

Dessa preocupação com os fatos e a verdade deles, a literatura parece descompromissada. Não quer dizer que o mundo seja a menor das ocupações literárias. Ao contrário, a literatura está sempre dizendo o mundo, mas ao dizê-lo o constrói segundo a sua semelhança. Trata-se da apropriação ficcional da realidade que é, obviamente, diferente da apropriação factual demandada pelo jornalismo. Essa diferença capital entre os dois discursos está representada pelas próprias metáforas com que os denominamos. Desse modo, se o jornalismo é o império dos fatos, a literatura é o jardim da imaginação. Na metáfora do império estão

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contidas as idéias de força, domínio e amplidão de territórios que contrastam com a fragilidade e a sacralidade da arte de cultivar as flores da linguagem no jardim da imaginação.

A verdade é que essa rigorosa separação entre a realidade do jornalismo e a criação imaginária da literatura não pode ser tomada como uma regra inflexível, nem sequer corriqueira. Isso porque o escritor, quando narra o “imaginário”, pode estar contando fatos que realmente vivenciou, ou mesmo pessoas próximas, sem dar conhecimento disso ao leitor. Uma grande estória de amor, de um determinado romance, pode estar contando um pedaço da vida de seu autor, exatamente como aconteceu, e isso não retira da obra a característica de literária. Ela não deixa de ser literatura por ter suporte na realidade, e não no ficcional. Por outro lado, o jornalista, quando escalado para cobrir um fato que não presenciou, e quase nunca presencia, terá que se basear nos relatos de outras pessoas que estavam presentes no local, a fim de que possa fazer a reconstituição e escrever a matéria. E cada uma dessas pessoas poderá ter visto o fato de forma diferente, a depender de sua condição social, situação financeira, nível de instrução, de interesse, carga emocional, conjunto de vivências e de valores, capacidade de percepção e de detalhamento etc. Esses relatos, por mais que retratem algo que realmente aconteceu, terão um pouco de imaginário, motivo pelo qual uns chegam a divergir dos outros. Por isso, Nanami Sato (2002, p. 31/32), aponta que:

Apesar da vocação para o “real”, o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência do acontecer em curso, isto é, uma ficção. Além disso, o jornalismo, produto industrial, precisa de esquemas para captação de notícias, dos quais a fonte é uma das principais. As fontes podem constituir posições estereotipadas; freqüentemente, com a consulta a especialistas, a ação quase não aparece, apenas a linguagem como reforço, como redundância.

Além disso, é preciso ressaltar que a remontagem do “real”, pelo jornalista, de igual forma, também estará condicionada às suas características pessoais. Por isso, não é raro encontrarmos em jornais distintos de uma mesma cidade, da mesma data, relatos diferentes de um mesmo fato jornalístico. Pode-se dizer, sem qualquer receio, que parcela do que se lê nesses jornais tem feição ficcional, ainda que todos eles tenham buscado retratar fielmente o real. Voltamos a mencionar Adriano Piekas (2007), que nos dá o exemplo de um jornalista que sai da sua redação para cobrir um assalto a banco. Chegando ao local, ele ouve versões de clientes do banco, dos funcionários e dos policiais, após o que retorna ao jornal para fazer a narrativa jornalística. Nesse momento, o profissional de imprensa se enche de dúvidas:

Essas dúvidas aparecem quando analisado o trabalho do repórter. Como ele pôde descrever exatamente como o crime ocorreu se quando chegou ao local já havia um desfecho? Não pôde. Mesmo tendo ouvido diversos relatos, de diversas pessoas que estiveram presentes ao local, e ter

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narrado os fatos da maneira mais fiel e imparcial possível, o jornalista teve que usar uma parcela de ficção/imaginação para remontar o momento do ocorrido, os fatos de maiores destaques e o fim da história.

Ressalte-se que a própria interpretação da notícia, por parte do leitor, pode variar de um ângulo a outro. É que ele, assim como as pessoas presentes ao fato (as fontes) e o jornalista (que narra o fato), também tem suas características pessoais e interpreta a notícia de forma condizente com suas convicções. A atuação conjunta das fontes, do jornalista e do leitor dá contornos ficcionais à realidade jornalística. Na verdade, jornalismo e literatura andam próximos. Cada um dos gêneros narrativos bebe em certa medida na fonte do outro, motivo pelo qual guardam entre si mais correlações do que oposições. Nenhum deles pode ser considerado de menor estatura, seja em termos qualitativos ou em termos éticos. São construções discursivas com propósitos e níveis de aprofundamento distintos, mas que estão sempre se tocando e interagindo, numa fronteira tênue que os separa. O jornalismo tem em mente a narração do real e dele não poderá se afastar completamente, mesmo que se utilize de certa dose de ficção, sob pena de se desfigurar. Os fatos do cotidiano, de consumo mais rápido, são narrados mais superficialmente, mas sempre com a preocupação com a verdade. Já a literatura, por mais que algumas vezes se baseie em fatos reais, trata de temas ficcionais e mais duradouros e os explora com maior profundidade. Também não poderá se transformar no relato do real, pura e simplesmente, sob pena de deixar de ser literatura. Esta se nutre da inventividade do autor, que dá asas ao leitor para viajar num mundo imaginário, por ele recriado por meio de sua interpretação. Nesse contexto, Vázquez Medel (2002, p. 18) opina sobre os caminhos que devem trilhar o jornalismo e a literatura:

As relações entre criação literária e exercício jornalístico têm sido problemáticas desde seus inícios. Parece que aquela, sem abandonar a dimensão lúdica e fruitiva, deve encaminhar-se para o essencial humano, bem que encarnado nas inevitáveis coordenadas espaço-temporais que nos constituem. A atividade informativa, ao contrário, aponta mais para o efêmero, passageiro, circunstancial (e sabemos até que ponto a vertigem informativa devora a estabilidade e permanência dos acontecimentos). Simplificando muito, parece que a literatura se orienta para o importante e a informação jornalística para o urgente.

2 A CRÔNICA 2.1 Um breve histórico A crônica, em seu sentido original, era concebida como um gênero histórico, preocupada em relatar os acontecimentos em ordem cronológica. Nesse sentido, Massaud Moisés (1988, p. 245) afirma que:

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Do grego chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo Latim chronica(m), o vocábulo “crônica” designava, no inicio da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência cronológica. Situada entre os anais e a História, limitava-se a registrar os eventos sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los. Em tal acepção, a crônica atingiu o ápice depois do século XII, graças a Froissart, na França, Geoffrey of Monmouth, na Inglaterra, Fernão Lopes, em Portugal, Alfonso X, na Espanha, quando se aproximou estreitamente da História, não sem ostentar acentuados traços de ficção literária. A partir da Renascença, o termo “crônica” cedeu vez a “História”, finalizando, por conseguinte, o seu milenar sincretismo. Não obstante, o vocábulo ainda continuou a ser utilizado, no sentido histórico, ao longo do século XVI, como, por exemplo, nas Chronicles of England, Scotland and Ireland (1577) de Raphael Holinshed, ou nas chronicle plays, peças de teatro calcadas em assunto verídico, como não poucas de Shakespeare.

Entretanto, a partir do século XIX, com o desenvolvimento da imprensa, a crônica desprende-se de vez de sua vocação eminentemente histórica e assume a condição de gênero literário. Massaud Moisés nos fala sobre o momento em que surge esse novo conceito (1988, p. 245):

É em 1799 que o seu aparecimento ocorre, mercê dos feuilletons dados à estampa por Julien-Louis Geofroy no Journal de Débats, que se publicava em Paris. Fazendo a crítica diária da atividade dramática, esse professor de Retórica na verdade cultivava uma forma ainda embrionária de crônica, evidente no fato de reunir os seus artigos em seis volumes, sob o título de Cours de Littérature Dramatique (1819-1820).

Coutinho (1986, p. 121) segue a mesma linha e registra que a crônica foi ganhando roupagem semântica diferente, transformando-se em gênero específico, estritamente ligado ao jornalismo:

Assim, “crônica” passou a significar outra coisa: um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas. “Crônicas” são pequenas produções em prosa, com essas características, aparecidas em jornais ou revistas. A princípio, no século XIX, chamavam-se as crônicas “folhetins”, estampados em geral em rodapés dos jornais (feuilletons – folhetins).

Folhetim era uma seção em que os escritores comentavam em linguagem simples e acessível, nas páginas dos jornais, os acontecimentos semanais dos mais variados temas, para leitores de todas as classes. Com o passar do tempo, no entanto, o termo deixou de ser utilizado como gênero literário e a palavra “crônica” ficou em seu lugar. Folhetim passou a ser a seção em que se publicavam, além das crônicas, várias outras formas literárias, como o conto, a ficção e o ensaio. A crônica, por sua vez, ganhou para muitos contornos nitidamente brasileiros. Melo (2003², p. 148) relata isso:

No jornalismo brasileiro a crônica é um gênero plenamente definido. Sua configuração contemporânea permitiu a alguns estudiosos proclamarem que se trata de um gênero tipicamente brasileiro, não encontrando equivalente na produção jornalística de outros países.

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Massaud Moisés (1988, p. 246) também aponta na mesma direção, ao afirmar que “a crônica, tal qual se desenvolveu entre nós, parece não ter similar noutras literaturas, salvo por influência de nossos escritores (como na moderna Literatura Portuguesa)”. Isso porque a crônica brasileira assumiu feição nitidamente literária e se distanciou do modelo francês e do produzido em outros países. Paulo Rónai, mencionado por Melo (2003², p. 148/149), também fala sobre o sentido brasileiro que a crônica passou a incorporar:

Para qualquer brasileiro a crônica tem sentido claro e inequívoco, embora ainda não dicionarizado; designa uma composição breve, relacionada com a atualidade, publicada em jornal ou revista. De tal forma esse significado está generalizado que só mesmo os especialistas em historiografia se lembram de outro bem mais antigo, o de narração histórica por ordem cronológica.

Antônio Candido, igualmente mencionado por Melo (2003², p. 153/154), segue a mesma linha de raciocínio e expõe: “acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres”. Candido entende que esse fenômeno deveu-se em grande parte a dois episódios. Um deles foi a Semana de Arte Moderna de 1922, com grande repercussão na imprensa, que transformou o estilo discursivo, convertendo-o em linguagem simples e coloquial. O outro fator, também enumerado por Cândido, foi o próprio desenvolvimento da imprensa que, além de diversificar e ampliar conteúdos, tornou o leitor de jornal, tipicamente da emergente classe média, bem mais exigente. Assim é que a crônica, como já mencionamos, foi responsável por levar para as páginas dos jornais nacionais, em épocas distintas, grandes nomes como José de Alencar, Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo, Quintino Bocaiúva, Raul Pompéia, França Júnior, Aluísio Azevedo, Artur Azevedo, Olavo Bilac, José do Patrocínio, Humberto de Campos, Coelho Neto, Manuel Antônio de Almeida, Gonçalves Dias, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, João do Rio, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Vinicius de Morais, Cecília Meireles, Fernando Sabino, Antonio Olinto, Oto Lara Resende, Affonso Romano de Sant’Anna, Millôr Fernandes, Stanislaw Ponte Preta, Luis Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony e tantos outros. Coutinho (1986, p. 124/127) afirma que a crônica brasileira propriamente dita começou com Francisco Otaviano de Almeida Rosa em folhetim no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro (em 2 de dezembro de 1852). Também diz que José de Alencar, ao comentar com vivacidade e juventude desde um simples incidente policial até os acontecimentos da guerra do Oriente, imprimiu ao gênero a mais alta categoria intelectual, cuja mais alta perfeição, no entanto, foi, conforme aponta, atingida por Machado de Assis.

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O Autor ainda destaca outros dois expoentes nacionais da crônica: Paulo Barreto (p.128), o João do Rio, por ser o iniciador da crônica social moderna, conciliando esplendidamente o jornalismo e a literatura, e Rubem Braga (p. 132), que considera o mais subjetivo e lírico dentre todos os cronistas contemporâneos, e o que mais admira, por entrar para a história literária exclusivamente como cronista. 2.2 Conceito e características Machado de Assis, mencionado por Coutinho (1986, p. 121/122), ao definir “folhetim” e “folhetinista”, originários da França e difundidos pelos jornais brasileiros, acaba por dar as características da moderna crônica:

(...) o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista. Esta última afinidade é que desenha as saliências fisionômicas na moderna criação. O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consociado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal. Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo: o capital próprio. O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; solta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seitas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.

Coutinho (1986, p. 123) entende que a acepção do vocábulo crônica evoluiu para designar, nos dias de hoje, um “comentário ligeiro ou a divagação pessoal feita com bom gosto literário, ligada estreitamente à idéia da imprensa periódica, pois nela revela-se o cronista”. O Autor aponta que o estilo da crônica deve tender para as formas simples e para o tom comunicativo, de conversa, de bate-papo. Quanto à linguagem (p. 134):

A crônica deve empregar de preferência a linguagem da atualidade, não evitando de maneira sistemática os idiomatismos, epítetos circunstanciais e certos jogos de palavras que se formam eventualmente para desaparecer algum tempo depois. Sem essa prática, a crônica deixaria de refletir o espírito da época, uma vez que a língua corrente constitui a mais viva expressão da sociedade humana, no tempo. A linguagem e, mais expressivamente, a gíria social, é um tempero importantíssimo na confecção de uma crônica.

Melo (2003², p. 156) aponta que a crônica tem como características fundamentais a fidelidade ao cotidiano, “pela vinculação temática e analítica que mantém em relação ao que está ocorrendo, aqui e agora; pela captação dos estados emergentes da psicologia coletiva”, e a crítica social, que o cronista realiza de modo dissimulado e com ar despreocupado (ironicamente ou com feição de conversa fiada), como se estivesse falando coisas sem importância, entrando a fundo no significado dos atos e sentimentos humanos.

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Lourenço Diaféria, mencionado pelo mesmo Autor (p. 162), afirma que “a crônica é aquele pedaço da imprensa onde se cultiva a sensação de que o mundo continua livre – como os pardais, as nuvens e os vagabundos”. Para ele, a função da crônica “é acordar as pessoas que estão dormindo de olho aberto, e gritar”. Irene Machado (1994, p.246) vê como aspectos fundamentais da crônica o pitoresco, o lirismo, o humor, a paródia e a crítica. Ela entende (p. 267) que o gênero valoriza fatos e acontecimentos do dia-a-dia, narrados de forma breve, simples e descontraída, com final surpreendente. Pode versar sobre qualquer assunto, não havendo lugar, no entanto, “para muitas descrições, detalhes sobre personagens e longas discussões de idéias”. Rogério Menezes (2002, p. 165) afirma que a crônica se apropria da realidade do cotidiano, mas vai além. O olhar do cronista é de certo estranhamento sobre o mundo, onde tenta descobrir – e achar – as fissuras do real, invisível para a maioria das pessoas. O Autor aponta (p. 168) que o leitor da crônica é o grande e bem-vindo interlocutor, e que:

Com ele o cronista deve dividir tudo (ou quase tudo): questões pessoais que o afligem, viagens ou não-viagens que fez, lembranças alegres e tristes, crises de inspiração que eventualmente enfrenta. Enfim, há que seduzir o leitor, aproximar-se dele, tornar-se íntimo dele, transformar-se naquele cara que é procurado quando a pessoa enfrenta momentos difíceis. Em certos momentos, principalmente neste mundo de solitários em que vivemos, o cronista periga de se tornar alguém da família. Ou, se bobear, um amante.

Massaud Moisés (1988, p. 255) vê na brevidade e na subjetividade as características específicas da crônica. Para o Autor, a crônica é um texto curto, de meia coluna de jornal ou de página de revista, e o que importa ao leitor é a veracidade emotiva do cronista (e não a veracidade positiva), ou seja, sua visão de mundo, motivo pelo qual o gênero situa-se em terreno fronteiriço com a poesia e com o conto. Para ele (p. 256/257), a crônica monta-se em torno de muito pouco ou nada e é por meio do estilo ágil, simples, oral e poético que se sustenta (“cronista sem estilo parece incongruência”). O Autor aponta que o texto da crônica tem que ser direto, espontâneo, jornalístico, de imediata apreensão, munido de todo o arsenal metafórico que identifica as obras literárias. O mesmo Massaud Moisés (p. 257) comenta que a “ambigüidade, brevidade, subjetividade, diálogo entre oral e literário, temas do cotidiano, ausência de transcendente, – eis os requisitos essenciais da crônica, a que falta adicionar, tão-somente um outro: (...) a efemeridade”. Beltrão (1980, p. 66), por sua vez, afirma que crônica “é a forma de expressão do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre fatos, idéias e estados psicológicos pessoais e coletivos (...) O comentário é leve, concreto, incisivo; as conclusões oferecem normas e julgamentos específicos e diretos”.

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A crônica, portanto, tem sido geralmente caracterizada pelos estudiosos como uma narração (ou argumentação) subjetiva, leve, breve, direta, informal, insinuante, bem humorada (ou irônica, crítica, sarcástica), emotiva (por vezes poética, sentimental, fantasiosa) de temas do cotidiano (algumas vezes corriqueiros, triviais e até insignificantes), com o objetivo claro de envolver o leitor. Normalmente, a crônica apresenta número reduzido de personagens (ou mesmo nenhum), com ou sem nome, os quais são retratados sem maior aprofundamento psicológico. A narração, de regra em primeira pessoa, é um diálogo que se desenvolve entre o cronista e o leitor, pelo qual o primeiro transmite sua visão de mundo ao segundo, que a absorve num clima de cumplicidade prazerosa. Beltrão (1980, p. 71), ao questionar para quem o cronista escreve, acaba por descrever um perfil possível do destinatário da mensagem:

Às vezes, é fato, a gente escreve para algum amigo; a crônica é uma espécie de prolongamento de uma conversa: ou é um recado disfarçado, alguma coisa que a gente gostaria de dizer, mas prefere não dizer diretamente. Também acontece que, ao escrever, a gente está pensando, por exemplo, naquela mulher – que, por sinal, pode muito bem acontecer que não leia a crônica. Ou, pior ainda, que a leia, e não goste, ache cacete e nada mais. Nesses casos, pode suceder que outra mulher se comova com aquilo que não comoveu a destinatária; e uma terceira ache que estamos lhe mandando uma velada mensagem. A própria pessoa que escreve nem sempre identifica perfeitamente a mulher que o está inspirando; há uma parte de inconsciente na escrita, e não foram os surrealistas que inventaram isso.

A crônica, embora muitas vezes seja perenizada com a publicação em livros de coletâneas, tem a marca da efemeridade, motivo pelo qual é em regra veiculada em jornais diários. Isso faz com que Coutinho (1986, p. 123) afirme o seguinte:

Tão característica é a intimidade do gênero com seu veiculo natural que muitos críticos se recusam a ver na crônica, a despeito da voga de que desfruta, algo durável e permanente, considerando-a uma arte menor. Para Tristão de Athayde “uma crônica num livro é como um passarinho afogado”. De qualquer modo, aceite-se ou não a permanência da crônica, é certo que ela somente será considerada gênero literário quando apresentar qualidade literária, libertando-se de sua condição circunstancial pelo estilo e pela individualidade do autor.

Massaud Moisés (1988, p. 249) também fala sobre o tema:

Entretanto, na flutuação do evento e do estado de espírito do cronista, a crônica logra escapar de perecimento tão breve. E adquire, no livro, uma existência menos falaz: ali se enfeixam as peças que o seu autor julgou resistirem à erosão do tempo, via de regra porque lhe pareceu ostentarem certos méritos, evidentemente não como reportagem, mas como texto literário.

Existem semelhanças entre o texto da crônica e o da notícia, já que ambos se inspiram nos acontecimentos diários. Entretanto, de acordo com as características apresentadas, o cronista tem a liberdade de incluir em seu texto elementos

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emocionais, irônicos, sarcásticos, ficcionais, fantasiosos, dentre outros, normalmente não cabíveis no texto puramente noticioso, que em regra busca a exatidão na informação. É por isso que Lowenstein, mencionado por Beltrão (1980, p. 66), afirma que “o noticiário representa para o jornalista o seu pão de cada dia ... a crônica representa a sobremesa. Ela permite ao jornalista afastar-se do controle frio, analítico e objetivo do noticiário e trabalhar com o coração. Dá-lhe oportunidade de ser subjetivo, emotivo, terno e, sobretudo, criador.” Nesse aspecto, Massaud Moisés (1988, p. 247) aponta que a crônica oscila entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial e a recriação do cotidiano. Para ele:

Ambígua, duma ambigüidade irredutível, de onde extrai seus defeitos e qualidades, a crônica move-se entre ser no e para o jornal, uma vez que se destina, inicial e precipuamente, a ser lida no jornal ou revista. Difere, porém, da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender o dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de ofício.

E é exatamente por causa dessa ambigüidade que a atividade do cronista difere tanto da do escritor como da do jornalista. A propósito disso, vejamos o que fala o mesmo Massaud Moisés (p. 247):

O cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia. Aliás, como procede todo autor de ficção, com a diferença de que o cronista reage de imediato ao acontecimento, sem deixar que o tempo lhe filtre as impurezas ou lhe confira as dimensões de mito, horizonte ambicionado por todo ficcionista de lei. De onde as características da crônica, como também suas grandezas e misérias, resultarem dessa inalienável ambigüidade radical.

Coutinho (1986, p. 123) considera que o jornal, ao dispor de maior espaço, “se enriquece de atrativos e, com o noticiário, o grave artigo de fundo e as seções ordinárias, transforma a crônica em matéria cotidiana, como recreio do espírito, amável e brilhante cintilação da inteligência”. A crônica, no jornalismo moderno, não mais figura como mero acessório. Saiu do rodapé, da seção de variedades, ganhou páginas importantes e passou a ser ligada ao espírito noticioso dos jornais. Herdou do jornalismo a capacidade de observar a realidade do cotidiano e da literatura a construção verbal, de feição nitidamente literária. Tanto é assim que grandes nomes da literatura nacional continuam em plena atividade profissional, escrevendo crônicas para as principais revistas e jornais brasileiros. Além de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, temos, dentre outros: Mário Prata, no jornal O Estado de São Paulo e na revista Isto É; Moacyr Scliar, nos jornais Folha de São Paulo, Correio Brasiliense e Zero Hora (de Porto

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Alegre); Millôr Fernandes, na revista Veja; Luís Fernando Veríssimo, no O Estado de São Paulo, O Globo e Zero Hora, Zuenir Ventura, na revista Época e no O Globo e; Affonso Romano de Sant’Anna, no O Globo. É importante frisar que a crônica, apesar de se utilizar de linguagem simples, informal e espontânea, com certo ar de “conversa fiada”, demanda tratamento literário apurado, apresentando enredo bem desenvolvido com espaço e tempo bem definidos. A crônica exige de seu autor talento, conhecimento, humor, sensibilidade, criatividade, lirismo, estilo e poder de síntese, dentre outras habilidades, uma vez que simula algo ao alcance de poucos, que é a oralidade na escrita. O cronista, por meio de um discurso aparentemente descomprometido ou sem importância, pode externar uma opinião séria, mostrar um ponto de vista diferente do que as pessoas vêem ou construir uma crítica social ou política refletida e bem articulada. A respeito disso, vejamos o que falam Flora Bender e Ilka Laurito (1993, p. 27/28):

Gênero aparentemente – e só aparentemente – fácil, a crônica exige uma espécie de descompromisso do autor no tratamento do assunto, que deve ser abordado de forma ligeira e atraente para o público leitor; por outro lado, esse suposto descompromisso do cronista – sujeito comprometidíssimo com o seu ofício – não implica mediocrização do texto. E é o talento do autor que vai dar estatura maior a um gênero considerado um modo menor de ficção.

Nesse contexto, o requisito da oralidade, que é da essência da crônica e que tenderia a torná-la um gênero aparentemente mais simples (repita-se, aparentemente), é assim visto por Irene Machado (1994, p. 250):

A crônica não é só conversa, pode ser também uma forma de diálogo. A oralidade é um tom importante do discurso. O cronista cria um diálogo com o leitor sem o qual a crônica não sobreviveria. Este dialogismo flagrante na oralidade do discurso libera o discurso do rigor da literariedade que domina na escrita. O texto vira uma “prosa à toa”, uma “conversa fiada”. Cada um tem toda liberdade de contar seu caso ou sua reflexão sobre coisas que, nem sempre, ocupam o pensamento das pessoas.

É de se ressaltar, entretanto, que muitos estudiosos consideram a crônica um gênero menor, que somente é capaz de dar relevo ao cronista quando seus trabalhos se reúnem em livro. Tal argumento não deixa de ser contraditório, já que esse mesmo livro normalmente só é editado a partir do sucesso que as crônicas fazem nos jornais. Sobre isso, vejamos, mais uma vez, o que nos diz Massaud Moisés (1988, p. 248/249), ao se reportar a Machado de Assis:

Fosse o caso de não ter deixado senão aquelas páginas dispersas, é muito provável que estaria relegado a um glorioso ostracismo (...) o desentranhamento do espólio machadiano começa a merecer atenção crítica no momento em que se configura em livro, o que nos conduz ao ponto de partida: a crônica somente ganhou a consideração dos críticos e historiadores da Literatura no instante em que, ultrapassando as barreiras do seu veículo original, conheceu a forma de livro.

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Mas, ainda assim, o Autor não esconde seu desapontamento quanto ao reconhecimento dado à crônica (p. 257): “admitamos, contudo, que o envoltório do livro funcione como ungüento preservador da total decomposição, e lá teremos, ao fim de tudo, a mumificação, que significa uma enganosa e falsa vitória sobre o poder implacável das horas”. E é nessa linha de raciocínio, em tom de descrença, que Massaud Moisés (p. 257) chega a afirmar: “um cronista com veia de mestre, como Machado de Assis, se ressuscitasse em nossos dias, veria, entre cético e melancólico, que suas crônicas reunidas em volume não conhecem o milagre da reedição, ao invés de seus romances e contos, que proliferam em várias impressões”. Carlos Heitor Cony é um dos escritores brasileiros que reuniu suas crônicas em livros. Além de O Tudo e o Nada (2004), objeto de estudo do presente trabalho, publicou Da Arte de Falar Mal (1963), O Ato e o Fato (1964), Posto Seis (1965), Os Anos mais Antigos do Passado (1998) e O Harém das Bananeiras (1999). No entanto, apesar de ser um dos grandes cronistas brasileiros em atividade, com os seis livros publicados, Cony (2004, p. 294/295) não esconde seu ceticismo com relação ao reconhecimento dos profissionais da área:

Daí a conclusão de que a crônica, como gênero jornalístico ou como gênero literário, é uma contrafação. Os mais radicais poderão considerá-la subjornalismo ou subliteratura. Dirão alguns: há crônicas admiráveis, e a citação de Machado de Assis é obrigatória. E cada um poderá citar um autor ou uma determinada crônica admirável. Mas, se Machado não tivesse escrito os romances finais de sua carreira, seria hoje um João do Rio melhorado, um Humberto Campos mais consistente.

Entretanto, Lourenço Diaféria, mencionado por Melo (2003², p. 162), aponta que essa discussão quanto à estatura da crônica não tem muito sentido. Para ele, “perdem tempo os ‘teóricos’ preocupados em ‘discutir se a crônica é um gênero maior ou menor’, pois ‘a função da crônica não é saber se é grande, pequena ou média”. Já Coutinho (1983, p. 305), entende que a crônica é a arte da palavra, altamente pessoal, uma reação individual, íntima, ante o espetáculo da vida, as coisas, os seres. O Autor defende que não há nada mais literário que a crônica, que não pretende informar, ensinar ou orientar, e que a sua efemeridade, bem como sua publicação em jornais, não a tornam um gênero menor:

O fato de ser divulgado em jornal não implica em desvalia literária do gênero. Enquanto o jornalista tem no fato seu objetivo, seu fim, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista tira máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espírito, de sua graça, de suas faculdades inventivas.(...) E tanto ela não é indissoluvelmente ligada ao jornal, que esse prazer decorre da sua leitura mesmo em livro, como é o caso de Machado de Assis, Rubem Braga, Henrique Pongetti, Ledo Ivo, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Moreira,

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Elsie Lessa, Fernando Sabino, Eneida, para citar alguns mestres do gênero.

Flora Bender e Ilka Laurito (1993, p. 76/77), igualmente entendem que a crônica é uma manifestação artística e que depende de talento. Essa arte contempla recursos estilísticos como “linguagem metafórica, alegorias, repetições, antíteses, paradoxos, gradação, metonímia, hipérbole, eufemismo, ironia, diminutivos afetivos, aumentativos depreciativos ou suspense”. Num texto ao mesmo tempo literário e jornalístico, em tom aparentemente despretensioso, que parece ao leitor ser fácil:

O cronista aproveita seu espaço para confidências, como se o leitor fosse um amigo. E o tom intimista é uma das armas para o sucesso do gênero. Equilibrista do cotidiano, o cronista faz o que quer, inclusive crítica de filme, teatro ou livro, sem ser crítico de arte. De certa maneira, poderíamos dizer que é um ilusionista, que se mete onde não é chamado e escreve sobre o que é atribuição dos outros. Talvez até seja, mas a sua graça, seu charme está justamente nisso. É um factótum (faz tudo) literário: especialista em tudo e em nada, tem nas linhas contadas de um jornal uma faca de dois gumes, pois, se às vezes faz da realidade transcendência, num texto que ficará registrado para sempre, corre também o risco de escrever matéria menor, na obrigação de preencher um espaço, por contrato, haja o que houver.

As Autoras (p. 77) concluem, a partir dessa realidade, que o cronista enfrenta um grande paradoxo, já que é, ao mesmo tempo, dono e prisioneiro de sua liberdade. Ele é livre para escrever em seu texto o que bem entender e, por outro lado, torna-se escravo de um papel a ser preenchido. E é dessa tensão, dessa marcante dualidade, que surgem, para elas, as melhores crônicas. 2.3 Crônica - classificação

Melo (2003², p. 157) afirma que encontramos quatro tentativas de classificação na bibliografia sobre a crônica brasileira. Para ele, Luiz Beltrão usa critério jornalístico, Afrânio Coutinho toma como base a tipologia literária, Massaud Moisés procura uma correspondência com os gêneros literários e Antonio Candido guia-se pela estrutura da narrativa. Luiz Beltrão (1980, p. 68) classifica a crônica em razão de duas variáveis jornalísticas: a natureza do tema e o tratamento que a ele se dá. Quanto à primeira, Beltrão vislumbra três possibilidades: Na crônica geral, também chamada de coluna ou seção especial, o autor, sob uma epígrafe geral, sob forma gráfica ou em página fixa, mas com extensão variável, aborda variados assuntos; A crônica local (urbana ou da cidade) é editada sempre sob a mesma epígrafe, em página e coluna fixas, com ou sem subtítulo, e versa sobre o cotidiano da cidade. O autor age como um receptor e orientador da opinião pública da comunidade em que se localiza o jornal;

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Por fim, a crônica especializada, também denominada comentário, faz parte de uma página ou seção determinada, mas tem apresentação gráfica do texto diferente das outras matérias com mesma localização. O autor, nesse caso, é um experto em determinado assunto – política, esporte, economia, entretenimento, relações exteriores etc. – e fala especificamente sobre sua especialidade. Quanto ao tratamento que se pode dar ao tema objeto da crônica, Beltrão (p. 68), propõe, igualmente, três modalidades distintas: Na crônica analítica, mais racional e dialética do que emocional, o cronista expõe os fatos com brevidade e os analisa com objetividade. O texto se assemelha a um pequeno ensaio científico, na medida em que é apresentado com linguagem “sóbria, elegante, enérgica, embora não lhe devam faltar capricho e graça”; A crônica sentimental não tem profundidade dialética, já que, ao contrário da analítica, apela ao coração e não à inteligência. Utiliza-se de linguagem alegre, com mais qualitativos e gerúndios, tem ritmo ágil e discurso muitas vezes poético. O autor, nesse caso, apela à sensibilidade de seu leitor, explorando aspectos “pitorescos, líricos, épicos, capazes de comover e influenciar para a ação num impulso quase inconsciente”; Já a crônica satírico-humorística tem como objetivo criticar, “ridicularizando ou ironizando fatos, ações, personagens ou pronunciamentos comentados, com finalidade de advertir ou entreter o leitor”. Sua abordagem é superficial e sua linguagem é repleta de nuances, verbos no futuro do pretérito e duplo sentido (com uso de aspas). Essa modalidade de crônica só surte os efeitos esperados quando o personagem, idéia ou situação do tema é de inteiro conhecimento do público. Afrânio Coutinho (1983, p. 306) aponta as dificuldades em conceituar a crônica, em razão de sua natural ambigüidade, já que vive presa ao dilema da transcendência e do circunstante, que muitas vezes a conduz ao conto, ao ensaio ou ao poema em prosa. Apesar disso, baseado na tipologia literária, Coutinho acaba por propor cinco modalidades de crônicas (1986, p. 133), mas reconhece que a classificação não implica o reconhecimento de uma separação estanque, já que os tipos se encontram constantemente fundidos em diversos textos. Por isso, Coutinho argumenta: “há mesmo, entre os cronistas, os ecléticos, que se deliciam a borboletear em torno de diversos assuntos ou temas ou motivos, não se deixando jamais prender a nenhum deles permanentemente. É mesmo da própria natureza da crônica a flexibilidade, a mobilidade, a irregularidade”. Vejamos, portanto, a classificação por ele proposta: A crônica narrativa, que vê como representante típico Fernando Sabino, é uma estória ou episódio próximo do conto, principalmente em sua concepção moderna, quando perdeu as características tradicionais de começo, meio e fim; A crônica metafísica faz reflexões mais ou menos filosóficas ou de meditação sobre

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os acontecimentos ou sobre os homens. Coutinho dá como exemplos desse tipo de crônica Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade; A crônica-poema-em-prosa, por sua vez, que Coutinho menciona como representantes Álvaro Moreira, Manuel Bandeira, Ledo Ivo, Eneida e Rachel de Queiroz, é a que tem conteúdo lírico e que se dispõe a ser o “mero extravasamento da alma do artista ante o espetáculo da vida, das paisagens ou episódios para ele carregados de significado”; Já a crônica-comentário de acontecimentos, que menciona como exemplos de cronistas Machado de Assis e José de Alencar, é a que acumula muita coisa diferente ou díspar, mantendo, consoante afirma Eugênio Gomes, mencionado por Coutinho, o aspecto de bazar asiático; Por fim, a crônica-informação, que se assemelha à anterior (mas é menos pessoal), é a que mais se aproxima do sentido etimológico, divulgando fatos e tecendo, sobre eles, ligeiros comentários. Massaud Moisés (1988, p. 250) procura uma correspondência com os gêneros literários e propõe apenas dois tipos de crônica: a crônica-poema, que acentua o aspecto narrativo, e a crônica-conto, que ressalta o contemplativo. Melo (2003², p. 158/159), ao falar sobre a proposição dos tipos de crônica por Massaud Moisés, procura explicitar os conceitos: Na crônica-poema, “os cronistas chegam a fazer versos na sua prosa emotiva ou a lançar mão de uma estrofe para encerrar um texto; ou então, constroem a crônica totalmente em verso. Carlos Drummond de Andrade recorreu algumas vezes a esse tipo de expressão verbal”. Na crônica-conto, o acontecimento que chama a atenção do cronista é narrado em forma de conto. Melo afirma: “enquanto o primeiro tipo explora a temática do ‘eu’ (concentra-se nas emoções do cronista), o segundo tipo gira em torno do ‘não-eu’ (o acontecimento de que o cronista é apenas o narrador, o historiador)”. Por último, Antonio Candido, mencionado por Melo (2003², p. 159), sugere quatro modalidades de crônica, a saber: crônica diálogo, onde o cronista e seu interlocutor trocam informações e pontos de vista; crônica narrativa, com certa estrutura de ficção e que se aproxima do conto; crônica exposição poética, que divaga livre sobre um fato ou personagem, fazendo uma série de associações e; crônica biográfica lírica, que narra poeticamente a vida de alguém. O cronista Luis Fernando Veríssimo, também mencionado por Melo (2003, p. 159), oferece uma classificação baseada na qualidade textual: crônica é qualquer uma (qualquer crônica); croniqueta é a crônica curta; cronicão é a crônica grande, substanciosa, com parágrafos gordos e; grande crônica, o cronicaço, capaz de verdadeiramente consagrar seu autor.

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2.4 Crônica e Biografia O presente trabalho, como já foi mencionado, tem como foco quatro crônicas da obra O Tudo e o Nada, de Carlos Heitor Cony, que retratam trajetórias de vida. Por esse motivo, passaremos a falar um pouco sobre os textos biográficos, cotejando-os com a crônica. Sergio Vilas Boas (2002, p. 18) diz que a biografia é uma compilação de uma vida (ou de várias), e que o biógrafo enfrenta acontecimentos que moldaram seu biografado ou foram por ele moldados. Aponta ainda (p. 21) que o objetivo maior da biografia é gerar conhecimento sobre o passado – sem ele não há biografia – de alguém ou de alguma coisa. O Autor (p. 34) informa que os primeiros biógrafos ingleses viam na biografia a finalidade de “edificar a imagem de alguém pela glória de Deus e com o aval dos santos”. Ele afirma que, no final do século XIX, em que o gênero biográfico já havia se desenvolvido bastante, “os críticos literários começaram a questionar o que e quanto o biógrafo deveria revelar sobre a vida privada de seu personagem; se deveria encobrir com um véu lapsos morais e atitudes fúteis. Em outras palavras, perguntava-se algo como: Quais os direitos do biografado (vivo ou morto)?” Nessa linha de raciocínio, Vilas Boas ressalta (p. 43) que a cultura ocidental tende a confundir sucesso com dinheiro e fama como estar em evidência, gerando uma situação em que “raramente se consegue avaliar o valor das pessoas que não se destacam, sob a justificativa ingênua de que indivíduos competentes estarão necessariamente em evidência”. O Autor (p. 47/48), mencionando Jorge Caldeira, lembra que o biógrafo tem sempre de negociar, pois o que está em jogo é o que “pretende contar e qual o caminho menos pior”, o que pode expandir ou limitar o raio de ação. Para ele, as biografias, quanto ao contrato autoral, podem ser de quatro tipos (p. 48): Autorizada, com aval e eventualmente com a cooperação do biografado; Independente, em que o biógrafo investiga sem o conhecimento do biografado ou de seus descendentes; Encomendada, por editor, pelo personagem ou por familiares, e; Ditada, em que o biógrafo escreve uma autobiografia ou memórias em nome do personagem central (como um porta-voz). Felipe Pena (2006², p. 161) entende que a biografia é um gênero narrativo que utiliza técnicas jornalísticas e que se vale de um pacto referencial de expressão de verdade com o leitor. É o “relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção”. Ele aponta que “o relato biográfico produzido pelos jornalistas, na maioria das vezes, tenta ordenar os acontecimentos de uma vida de forma diacrônica, na ilusão de que eles formem uma narrativa autônoma e estável, ou seja, uma história com princípio, meio e fim, formando um conjunto coerente”.

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Bourdieu, mencionado pelo Autor (p. 161), diz que o biógrafo, responsável pela criação artificial de sentido, é cúmplice dessa ilusão, já que “ele tenta satisfazer o leitor tradicional, que espera uma suposta verdade, uma suposta realidade. Mas o máximo que a biografia pode oferecer é uma reconstrução, um efeito de real”. O Autor argumenta (161/162) que o discurso do biógrafo baseia-se na preocupação de “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final”. O leitor, nesse contexto, é conduzido a se identificar com o biógrafo, que fornece uma razão de ser ao seu biografado. Tal fato ocorre, inclusive, porque os inúmeros fatos dispersos de uma vida são apresentados de uma forma cronológica e supostamente organizada, o que em tese facilita o trabalho de quem escreve e o esforço de compreensão de quem lê.

Vejamos um modelo de biografia tradicional, que versa sobre a vida do próprio Carlos Heitor Cony, extraído do site UOL (http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u132.jhtm):

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926. Ainda pequeno, decide se tornar padre e ingressa, em 1937, no Seminário Arquidiocesano de São José. Em 1945, desiste da batina e abandona o seminário. Estréia na imprensa, em 1947, cobrindo as férias do pai no Jornal do Brasil. Em 1958, publica seu primeiro romance, O Ventre. Começa a trabalhar no Correio da Manhã em 1960. Em 1965, é levado a demitir-se do Correio, em razão de suas críticas ao governo militar (durante a ditadura, seria preso seis vezes pelos militares). Publica Pilatos em 1971, e declara que não escreverá mais romances. Passa a publicar livros-reportagem, entre eles Quem Matou Vargas (1972) e JK --Memorial do Exílio (1982). Volta à imprensa diária em 1983, assinando uma coluna na Folha de S.Paulo. Após 23 anos, lança o romance Quase Memória (1995). Recebe, em 1996, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. A Casa do Poeta Trágico é de 1997. Outros livros recentes: Romance sem Palavras (1999) e A Tarde da Sua Ausência (2003). Em 2000, é eleito para a Academia Brasileira de Letras.

Acontece que, consoante nos relata Lima (2009, p. 424), vários jornalistas têm contribuído para modernizar o gênero biográfico, com a utilização de elementos do jornalismo literário, o que torna a biografia muito mais dinâmica e convidativa à leitura. Ele ressalta que a biografia difere de outros textos biográficos, como o perfil, as memórias, o ensaio pessoal e o jornalismo literário de viagem. O perfil (p. 427) é um “texto que retrata um indivíduo em uma arqueologia psicológica que vai escavando e trazendo à tona seus valores, suas motivações, talvez seus receios, seus lados luminosos e suas facetas sombrias, quem sabe”. A missão do perfil é (p.428) “lançar luzes sobre alguém, compreendê-lo sob diversos matizes de cores”. As memórias (p. 428) “são trabalhos autobiográficos ou não sobre uma etapa da vida de uma pessoa ou sobre um ou mais episódios do qual participou. Geralmente, são reminiscências de uma época já distante no tempo. Diferem-se da biografia por não haver compromisso em se narrar uma vida inteira”. O foco não reside

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essencialmente na contextualização do fato no período vivido, mas na experiência do protagonista. Já o ensaio pessoal (p. 431/432), texto autobiográfico derivado do ensaio tradicional, tem como princípio básico a discussão filosófica de um tema por parte do autor, mesclando narrativa e reflexão (sempre com forte conotação pessoal). O ensaísta é impelido a falar do assunto, a expurgá-lo, muitas vezes movido por dor profunda (em busca de cura psicológica pela exposição) e precisa ser compreendido. Ele necessita de coragem para se despir para o leitor, a mostrar suas vulnerabilidades perante os acontecimentos mais tocantes, revelando-se frágil ou tomando consciência de seus limites, diante dos paradoxos da vida. Ele não só conta sua história, mas também filosofa a respeito. Finalmente, o jornalismo literário de viagem (p. 433), que se aproxima do ensaio pessoal e dos textos de memórias, já que também é um texto biográfico. Essa modalidade tem o autor como protagonista, o qual explora um tema subjacente e uma questão chave a ser compreendida. O autor narra uma viagem que faz, abordando, como num processo de descoberta, outros lugares, pessoas e culturas, buscando a identidade de povos diferentes e, por conseqüência, definindo e transformando a sua auto-identidade. Lima nos aponta que “cada viagem pode nos tornar um pouco diferentes, pois aprendemos algo novo, abrimos o olhar sobre aspectos do mundo, que desconhecíamos. E podemos permitir que a viagem nos transforme”. É exatamente esse aprendizado, essa visão do novo, do desconhecido, essa transformação que o autor do relato de viagem faz em seu texto, em que mergulha de corpo e alma, com foco e propósito bem definidos. Vilas Boas entende (2002, p. 68) que a biografia tem caráter híbrido e transdisciplinar, em que estão presentes as escritas histórica, literária e a jornalística, de forma coincidente e complementar. O biógrafo tem que manter diálogo interminável entre o presente e o passado, estabelecendo contato com a mente do biografado, numa relação de reciprocidade. Ele aponta (p. 71), que “ao biógrafo não cabe explicar cada atitude do biografado, cada sucesso e insucesso, cada opção feita e desfeita, cada ação dos protagonistas com os quais conviveu”, sob pena de o discurso tornar-se inexeqüível por ser demasiado extenso. Mas deve deixar claro ao leitor quem é o biografado, com riqueza de detalhes. Além da historiografia, que dá as medidas para o fazer biográfico, o jornalismo fornece os meios para que o conjunto dos acontecimentos seja narrado com seqüência e andamento lógicos, fazendo com que o leitor da biografia se envolva plenamente e se transporte de um tempo – o do biografado – ao seu próprio tempo. Já a narrativa literária não exige pesquisa documental sobre o biografado, mas requer conhecimentos específicos e experiências próprias do autor. Vilas Boas, mencionando Ruy Castro, afirma (p. 72) que é o foco no elemento humano que aproxima a biografia da literatura, na medida em que “é geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) de um texto, por

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resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária”. 3. ANÁLISE DAS CRÔNICAS 3.1 Critérios de escolha das crônicas As crônicas analisadas no presente trabalho foram extraídas do livro O Tudo e o Nada (2002), de Carlos Heitor Cony. Na obra constam 101 crônicas, sendo que poucas delas versam sobre trajetórias de vida de personagens, importantes ou não, vivos ou já falecidos, todas escritas com a mais apurada qualidade estilística, própria dos textos do autor. Mas são exatamente essas, de relatos biográficos, que mais nos atraem. Isso porque a crônica biográfica rompe com o conceito tradicional de biografia, que necessariamente demanda informações como data de nascimento e de morte, além de obedecer a rígido esquema cronológico dos acontecimentos. Nas crônicas tidas como biográficas, a vida do personagem é contada não do nascimento à morte (se já aconteceu), mas em razão dos aspectos psicológicos que o cronista quer abordar para fazer as reflexões que pretende, tanto do objeto de seu trabalho como do mundo. O resto literalmente não interessa. Assim é que escolhemos uma crônica autobiográfica, outra mostra a vida de um dos gênios musicais brasileiros (Pixinguinha), e as demais retratam a vida de dois dos maiores escritores da literatura mundial, que são Goethe e Stendhal. Passemos a analisar, portanto, as crônicas mencionadas.

3.2 Crônica 1: Goethe, Fausto, a Tempestade e o Impulso

Esta crônica fala de Johann Wolfgang von Goethe, romancista e poeta, considerado o maior nome da literatura alemã, além de notável dramaturgo, ensaísta e autor de grandes obras autobiográficas.

Basta que comecemos a ler o texto e já vemos que não se trata de um relato biográfico em sentido tradicional, marcado por obedecer a um esquema cronológico da vida do personagem, que normalmente tem início com o seu nascimento.

Cony subverte essa lógica. Sua morte é anunciada logo nos primeiros parágrafos. Para tanto, o autor lança mão de sentido figurado:

– Luz! Mais luz! Na manhã de 22 de março de 1832, Goethe acordara cansado. Tinha em sua carne a fadiga de 83 anos. Pediu que o camareiro abrisse a janela para que a luz entrasse. Mandou que lhe trouxesse uma pasta. Mas não

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havia pasta alguma e ele apenas murmurou: “Nada. Foi um fantasma... Mais um fantasma ...”

Ao meio dia, chamou Otília, sua companheira dos últimos tempos. Disse então suas palavras finais, bem prosaicas por sinal: “Vem cá... Me dá a tua mãozinha...”

Cony, ao retratar Otília como a “companheira dos últimos tempos”, já dá sinais de que abordará, em seu texto, uma das três facetas mais marcantes de seu personagem, que é uma vida marcada por grandes paixões (“E ama. E, porque ama, faz versos”). O texto retrata que ele – Goethe – resumia em três códigos toda sua obra e vida: luz, visão e amor:

A ansiedade pela luz, a obsessão pelos fantasmas e a necessidade da mulher formaram ao mesmo tempo a sua carne e a sua alma.

Também ao contrário de narrativas biográficas eminentemente históricas, que só revelam virtuosidades, o autor ressalta o lado humano de seu personagem, como a doença que contraiu antes dos 20 anos, a obsessão por fantasmas e o lado psicológico sombrio, expondo o remorso que o acompanhou em boa parte da vida. Isso também acontece quando mostra o que Goethe pensava de si e de sua própria obra, demonstrando que mesmo as grandes personalidades têm suas fragilidades e angústias: “sou um poeta de ocasiões”. Quis Goethe se referir ao fato de que suas poesias são ligadas aos acontecimentos de sua vida e a experiências pessoais, de modo que não é possível separar suas obras de sua vida. Isso é reforçado quando Cony repete outras palavras de Goethe, “minha vida e minha obra são uma só”, para fazer, em tom informal e de feição literária, um paralelo entre a existência do escritor e a de seus personagens, vários deles criados com base em suas vivências:

Friederike Brion, filha do vigário de Sesenhein, foi o primeiro amor de Goethe e a ela foram dedicadas suas primeiras poesias líricas, já pessoais, já goethianas e até hoje das mais belas da língua alemã. Goethe entregou-se ao amor e dele usufruiu tudo: carne e sentimento. Esgotada a paixão, abandonou a adolescente. O remorso ficaria para sempre. Seduzida e abandonada, Friederike forneceria o modelo para Margarida, a moça desgraçada por Fausto.

Cony utiliza a linguagem metafórica para falar sobre esse remorso de Goethe, que, de tão forte, parece ter inspirado uma de suas mais importantes obras:

Ainda em Estrasburgo, Goethe visitava a catedral, passava horas sentindo sobre a cabeça o peso das pedras medievais, das ogivas góticas. Falar em gótico alemão pode parecer um pleonasmo. Mas foi ali, na Catedral de Estrasburgo, que o jovem Goethe pela primeira vez pensou em fazer o Fausto.

O mesmo recurso é usado para expressar a dimensão histórica, a posição de destaque de seu personagem na Alemanha e no mundo, ao mesmo tempo em que retrata sua vinculação ao país de nascimento, ou seja, o orgulho por ostentar a nacionalidade alemã:

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Ele era alemão: as catedrais góticas eram dele, a língua também era dele. E a lenda de Fausto, escrita e reescrita diversas vezes, era também uma herança alemã, sua, portanto.

E lança mão de ironia para caracterizar uma das facetas do movimento de que Goethe participou, mesmo claramente ressaltando sua importância:

Johann Gottfried Von Herder (1744-1803) era um dos nomes mais importantes do Sturm und Drang (Tempestade e Impulso), movimento que daria, com mais impulso do que tempestade, o contorno definitivo da autonomia literária da Alemanha. Sua importância está ligada à descoberta de Shakespeare, até então mal traduzido, mal conhecido e quase absolutamente incompreendido pelos alemães.

O que se nota claramente no texto é que Cony fez uma narração seletiva da vida de seu personagem, dividindo espaço entre Goethe e o mencionado movimento de que participou, o Sturm und Drang, deixando de relatar tudo aquilo que foge desse contexto. Tanto é assim que menciona outros escritores universais, como Shakespeare, Ossian e Rousseau, que também integraram o movimento. Por esse motivo, detalhes como os nomes dos pais ou a data de nascimento de Goethe não são sequer mencionados, por não guardarem relação com o tema proposto. O texto se aproxima de um perfil, na medida em que lança luzes sobre a vida de Goethe, para tanto mostrando seus valores, motivações, receios, ou seja, os aspectos luminosos e os sombrios de sua existência. 3.3 Crônica 2: Grande Momento do Milênio foi um Inocente Cony inicia sua crônica com um fato, ocorrido em 14 de março de 1926, que considera o eixo do milênio, a referência maior – e praticamente única – do século que estava acabando:

Deu-se que naquele mês e ano, num aprazível lugar que antigamente os cariocas chamavam de Boca do Mato, numa rua chamada Lins de Vasconcelos, no número 214, e, para ser exato, às quatro horas da tarde de um domingo, nasceu um menino.

Ele relata que esse menino foi levado oito dias depois à pia batismal e, em seguida, dá detalhes da Matriz de N. S. da Guia, onde ocorreu o batismo, “uma quase capela” de onde se podia ver todo o bairro, e, “mais longe, o rolo de fumaça das velhas locomotivas que chegavam ao Méier”. A seguir, o autor revela que esse menino era o próprio Cony, o que mostra que o texto é autobiográfico. Ele usa linguagem simples, informal, direta, íntima, familiar e, acima de tudo, saudosista, em que fala sobre a tia-avó Doneta (sua madrinha também) e sobre o pai – Ernesto Cony Filho – “torcedor do São Cristóvão Atlético Clube, jornalista e fazedor de balões”.

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O texto é também repleto de ironias. Vejamos como o autor, por exemplo, discorre sobre a placa que existia na Matriz onde foi batizado, que dizia o seguinte: “Aos 22 de março de 1926, aqui neste batistério, foi solenemente batizado o inocente Carlos Heitor”:

Este “inocente Carlos Heitor” sou eu mesmo e é possível que naquele tempo fosse ainda inocente. E o “solenemente” ficou por conta do pai, que adorava solenidades e advérbios de modo. Em míseros oito dias seria improvável que fizesse alguma coisa abominável que me maculasse a condição de inocente, condição essa que logo perdi e nunca recuperei. Também fiz pouco esforço para isso.

E continua seu relato informando que, para grande parte do gênero humano, para a imprensa internacional, para as universidades e academias mais respeitadas do mundo esse evento – seu nascimento – nada representou. Ainda em tom irônico, diz que o luminoso fato “só foi comemorado pela minha madrinha, também tia-avó Doneta, que era cega e declarou que eu era o guri mais bonito que ela conhecera”, o que ela dizia para todos da família que nascessem. Mas Cony, com esse relato leve e aparentemente descomprometido, com ar de conversa fiada, de papo furado, de não querer dizer nada de importante, sabe exatamente aonde quer chegar com sua crônica. Ele faz uma afirmação em que lança um questionamento de vida dos mais importantes, que é a verdadeira razão de ser de sua narração, de caráter eminentemente reflexivo. Vejamos então:

Daí que muito me distraio quando tomo conhecimento das resenhas, retrospectivas e listas do mais isso e aquilo do milênio. Falou-se no descobrimento da América, na Revolução Francesa, na invenção da imprensa, na bula que Lutero colocou na porta da catedral de Wittenberg, na conquista da Lua, na bomba de Hiroshima.

E continua, em tom de ironia, a base da reflexão filosófica que pretende fazer, mais uma vez com aparência de quem não vai dizer nada de relevante:

Falou-se em Francisco de Assis, na informática, no cachorro-quente, na higiene de Pasteur, na psicanálise de Freud, na relatividade de Einstein, na catilinária de Marx contra o capitalismo. Falou-se também das pernas de Mistinguett, do vôo de Nijinski em o Espectro da Rosa, nos Concertos de Brademburgo, no teto da Capela Sistina e no chão que os judeus reconquistaram após uma diáspora que atravessou dois milênios.

Num aparente paradoxo, Cony acaba por dizer que todos os fatos mencionados são secundários, até mesmo as pernas de Mistinguett, que já tinham pelancas quando nasceu (razão por que prefere as da Cláudia Raia). Tudo isso para fazer um questionamento, que considero o ponto alto de toda a trajetória narrativa:

Pois a verdade é clara e indestrutível: se o inocente Carlos Heitor não tivesse nascido naquele local e data, de que lhe serviriam até mesmo as pernas da Cláudia Raia, que estão mais perto, e a conquista da Lua, que está mais longe?

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Cony conclui, então, que ele, assim como cada um de nós, é o centro e a medida de todas as coisas. E que essas coisas, apesar de serem importantes, apenas medem o homem:

Por sua vez, essas coisas todas de certa forma me produziram, me deram aquilo que nas redações chamam de “texto final”. Que seria eu se nunca tivesse ouvido os Concertos de Bach, sentido em cima de minha cabeça o teto da Capela Sistina, evitado micróbios com os filtros de Pasteur e, aqui entre nós, me deslumbrado não exatamente com o par de pernas de Mistinguett? Nesse particular, tive excelentes compensações com as pernas de Cyd Charisse e as já citadas da Cláudia Raia.

Ao final, Cony sintetiza todo o pensamento e, de forma simples, quase oral e didática, apresenta sua mensagem final (a conclusão filosófica):

Resumindo: se não houvesse aquele março, aquela rua e aquele inocente, o milênio e o mundo poderiam ter sido melhores, mas não me teriam servido para nada.

A partir daí, cabe ao leitor, que se deliciou com o texto, parar para pensar na reflexão lançada por Cony e tirar as suas próprias conclusões. Afinal, é exatamente para isso que serve a crônica. O texto autobiográfico analisado tem grande proximidade com o ensaio pessoal, na medida em que Cony, mesclando narrativa e reflexão, com forte conotação pessoal, não só conta sua história, mas também promove a discussão filosófica de um tema. 3.4 Crônica 3: As Incalculáveis Cavernas da Alma Esta crônica biográfica fala sobre o escritor francês Stendhal, que não teve reconhecimento em vida, já que grande parte de sua obra só foi publicada após a morte. A partir de então, passou a ser reconhecido como um dos maiores romancistas da humanidade. A exemplo da crônica de Goethe, o texto que agora analisamos não tem o sentido de uma narração biográfica em termos tradicionais (e exatamente por isso é uma crônica). Cony também não começa o texto com o nascimento de Stendhal, com o nome de seus pais ou com detalhes sobre sua infância. Nada disso interessa ao perfil psicológico que o cronista pretende criar. A propósito, o texto se aproxima ao de um perfil, na medida em que entra na arqueologia psicológica de Stendhal, com o objetivo de compreendê-lo melhor. Seus aspectos negativos são bastante explorados por Cony que, no entanto, não deixa de reconhecer o brilho de seu personagem (até por isso fez a crônica sobre ele). Seu lado sombrio e seu lado luminoso são claramente confrontados. Já no primeiro parágrafo, Cony relata, inclusive destacando comentário irônico do editor de uma das obras de Stendhal, o seguinte:

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A primeira edição de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, vendeu apenas 750 exemplares. Com o tempo, tornou-se um dos romances mais importantes da literatura universal. Uma obra anterior do mesmo autor, De l’Amour, hoje um clássico, provocou de seu editor o seguinte comentário: “É um livro sagrado, pois ninguém bota a mão nele”.

A partir daí, o cronista menciona, em diversas partes do texto, as características nebulosas de Stendhal, que é descrito como um ser imodesto, que fazia tudo para aparecer e que assinava como seus livros escritos por outros. E também que fazia passar-se por secretário de Napoleão, enganando Byron, que remetia por seu intermédio correspondências ao imperador, pedindo conselhos e sugestões. Stendhal respondia pelos dois. Em outro trecho, Cony aponta que “sua ânsia em mistificar era tanta que escreveu o próprio epitáfio, declarando-se Arrigo (Henrique em italiano) e dizendo-se milanês”. Diante de quadro tão sinistro da existência humana, Cony questiona, em linguagem coloquial e direta, o seguinte:

Teria sido Stendhal um reles vigarista, um mitômano desvairado? Até certo ponto, sim. O máximo que alcançou, em matéria de prestígio, foi acompanhar um general da Intendência que participou da fracassada campanha da Rússia. Ficava sempre na retaguarda, em função burocrática.

Entretanto, com a liberdade que a crônica permite, em que se pode ir de um pólo a outro sem qualquer inconveniente, Cony passa a explorar o outro lado de Stendhal, o das virtudes, que foi capaz de torná-lo um dos mais importantes nomes da literatura mundial:

Com toda essa biografia negativa, que mereceu de um autor contemporâneo o título de Monsieur Moi-Même (Senhor Eu Mesmo), ele é hoje considerado o maior conhecedor da alma humana. Nem Flaubert, que era mais escritor, nem Balzac, que era um vulcão literário, atingiram a essência que habita o ser humano.

Afinal, se vigaristas existem muitos, o maior conhecedor da alma humana só tem um. Exatamente por isso, Tolstoi o teve como modelo. Cony relata que o importante para Stendhal era captar aquilo que Santo Agostinho chamava de as “cavernas incalculáveis da alma humana”. Aliás, mais uma vez com a liberdade de atuação que a crônica possibilita, Stendhal e Santo Agostinho são colocados lado a lado em algumas características indignas de elogios, o que é feito só de passagem e sem que haja maior aprofundamento psicológico de qualquer um deles (coisas da crônica!):

Até antes de sua conversão, Agostinho foi também uma espécie de Stendhal. Meio cínico, escatológico, devasso, ele nunca se perdoou pelo fato de o pai dele surpreendê-lo enquanto se masturbava. Ao escrever Confissões, atribuiu a uma dor de barriga a convulsão que o tornaria um doutor e santo da Igreja. “Senhor, fazei-me casto, mas não agora!”, pediu ele após a conversão, pois mantinha caso escabroso com uma viúva.

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Mais uma vez, de um pólo a outro, Cony volta a Stendhal para, além de salientar sua genialidade, expor a veneração que o escritor francês nutria por uma personalidade. Isso mostra a condição essencialmente humana de seu retratado, pois só os homens podem admirar ou venerar. Vigarista, talvez sim, mas humano também, na essência, como qualquer outro:

Ele teve em Napoleão o seu deus particular. Sua obra é, em linhas gerais, o melhor comentário sobre a época napoleônica. Sua genialidade teve, como ponto mais alto, a famosa descrição da batalha de Waterloo, pouco mais de 15 linhas, em que o personagem principal de A Cartuxa de Parma vê uns soldados em fuga e ouve uns tiros disparados ao longe. Só mais tarde ficaria sabendo que presenciara sem saber a maior batalha de seu tempo.

Todo o texto, como se viu e comentou (e que não poderia ser diferente), desenvolveu-se com características típicas da crônica, tais como discurso direto, empolgante e de bom gosto literário, capazes de seduzir e envolver o leitor sem qualquer dificuldade. O desfecho também espelha com fidelidade o conceito de crônica, na medida em que expõe uma das mais marcantes características do ser humano, que é a sua ambigüidade:

Colocando-se sua genialidade em confronto com sua vigarice, temos em Stendhal uma das expressões mais sinceras das incalculáveis cavernas da alma humana.

3.5 Crônica 4: Pixinguinha – Um Choro de Saudade Estivesse Cony a fazer um artigo de opinião ou um relato jornalístico, por exemplo, e estaria cometendo uma grande impropriedade ao afirmar, quando inicia o texto em que fala sobre Pixinguinha, o seguinte: “Não sei se ainda há. Mas havia uma lei que proibia dar o nome de pessoas vivas a ruas, praças, becos, pontes, viadutos e demais logradouros”. Em um texto de gênero mais formal que a crônica, deveria o autor pesquisar sobre a vigência ou não da lei – seu número etc. –, sob pena de cometer omissão imperdoável. No campo da crônica, no entanto, é absolutamente permissível que essa “omissão” ocorra. Aliás, é possível, e até provável, que o autor tenha feito isso de propósito, para dar mais informalidade e graça a seu texto. Outra característica da crônica, como sabemos, é realizar a crítica social e política, com o uso de palavras aparentemente sem compromisso. É o que faz Cony, logo no início do texto, quando fala do eventual descumprimento da lei, apesar de justificar a exceção dada ao nome de Pixinguinha:

Como se tratava de uma lei brasileira – e mais do que isso, de uma lei carioca –, tinha mais exceções do que regras. E uma dessas exceções, a mais justificada talvez, estava situada num distante subúrbio da cidade: Rua Pixinguinha. Ele ainda estava vivo, e como.

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Logo em seguida, o cronista usa da ironia, também típica da crônica, ao se referir à palavra “musicólogo”, aposta na placa da rua, como se fosse um palavrão proferido contra o homenageado:

Para um homem que amava a música, a classificação é quase ofensiva. Pixinguinha nem sequer era músico. Era música – e essa seria a melhor palavra para defini-lo, explicá-lo e amá-lo.

Em outro trecho, usando linguagem coloquial e ostentando carinho e admiração por seu personagem, Cony a ele se refere como “o rapazinho que tocava flauta”. Quanto à sua fama, também abusando da informalidade (longe de ser vulgar, é preciso que se diga), o cronista afirma que a glória do artista não foi imposta “de cima para baixo” e que a fama não subiu “de baixo para cima”. O pleonasmo, em se tratando de Cony e de crônica, não só é possível, como seguramente não aparece no texto à toa, a troco de nada. Cony brinca com as palavras e altera a direção do sucesso do personagem, que não viria de cima ou de baixo, mas dos lados, de todos os lados:

Com Pixinguinha, a glória foi total, o amor e admiração que soube provocar vinham de todos os lados: era o artista de gênio, o homem simples, o papo perfeito, a vida repartida com todos.

E cometendo uma simplificação possível no gênero, chega a afirmar, em tom de proximidade e intimidade com seu personagem:

Quem não gostava dele só podia ser mau-caráter, pois o velho Pixinga realizou, dentro e fora da música, uma das mais doces e gratificantes trajetórias de homem.

Cony não diz sequer quando seu admirado artista nasceu ou morreu, e isso pouco importa ao seu relato, mas faz questão de justificar de onde vem seu estranho apelido:

(...) feito do carinho de sua avó africana (pizim dim significa menino bom) e da gozação carioca de sua moléstia deformadora, bexiga, que, no caso dele, recebia o tratamento carinhoso de bexiguinha. Aceitando os dois apelidos – que mais tarde seriam fundidos em “Pixinguinha” – , ele assumia com humor e consciência a sua raça e a sua circunstância.

O cronista, em seguida, fala em sentido figurado para expor as virtudes do artista:

Um carioca genuíno que não se deixou prostituir nem se avacalhar, emigrando para a zona sul: viveu agarrado aos subúrbios, aos bares que nunca estão na moda e, por isso, se tornam eternos enquanto duram. Agarrou-se também a um feitio de vida sem rancor e sem glória, ao pijama caseiro, à tradição das grandes comilanças dominicais, quando o angu ou a feijoada são para “durar três dias”.

E até comenta, em tom de prosa, a morte do criador de “Rosa” e “Carinhoso” (cuja data, repita-se, pouco importa):

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Carioca até na morte: o coração ameaçou falhar diversas vezes, mas só foi parar na sacristia de uma igreja em Ipanema, durante um batizado, quase sem agonia e sem escândalo. Só uma coisa faz um carioca do subúrbio ir parar em Ipanema (e vice-versa): batizado ou enterro.

Pixinguinha, que adotou o chorinho, era também, além de flautista, sax-tenor e pianista, com o que ganhava dinheiro como orquestrador. O compositor criou melodias que, para Cony, “agradam a jovens e velhos, são músicas intemporais, são Pixinguinha” (que feliz duplo sentido!). O cronista encerra seu texto com a mesma admiração e carinho com que se reportou ao artista em todos os momentos:

Ainda em vida, Pixinguinha tornou-se um clássico. Definido e definitivo. Para aqueles que o conheceram e com ele trabalharam, foi um dos mais estupendos exemplares da espécie humana.

A crônica tende ao perfil. Isso porque Cony, ao retratar Pixinguinha, entra a fundo em sua estrutura psicológica e busca seus valores e suas motivações (seus aspectos luminosos), relatando-os de forma objetiva, para que o leitor possa compreender o artista. As facetas sombrias, no entanto, não foram expostas. É que o cronista tem grande admiração por Pixinguinha, e, por isso, não vislumbra no personagem um defeito sequer (a crônica permite essa liberdade). Afinal, como Cony afirma no texto, “quem não gostava dele só podia ser mau-caráter”.

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CONCLUSÃO

As crônicas que vemos em jornais ou publicadas em livro apresentam características muito bem definidas e aceitas pela maioria dos estudiosos no assunto. O texto é simples para o leitor, mas requer do cronista talento, inspiração e conhecimento das técnicas da literatura e do jornalismo, já que a crônica se situa exatamente na fronteira entre a realidade e a ficção. O veículo natural da crônica é o jornal, onde divide espaço com as notícias diárias. O cronista trabalha com o cotidiano, com o efêmero, com o circunstancial, atuando como jornalista, motivo pelo qual deve estar permanentemente atualizado. Mas também atua como escritor, na medida em que recria a realidade com seu espírito de inventividade, dando ordem aleatória a coisas, seres e sentimentos e usando uma linguagem sem as amarras da estruturação lingüística. O cronista é, nas palavras já mencionadas de Massaud Moisés, o poeta ou o ficcionista do cotidiano. Por esse motivo, estamos de acordo com Lourenço Diaféria, quando afirma que a discussão quanto à estatura da crônica não tem muito sentido, já que sua função não é saber se é grande, pequena ou média. Nesse ponto, nos filiamos à opinião de Afrânio Coutinho, que entende que a circunstância de a crônica ser divulgada em jornal não implica em desvalia literária. O autor salienta que o fato, o acontecimento, que para o jornalista é o objetivo de seu trabalho, para o cronista é um meio ou pretexto para externar seu estilo, seu espírito, sua graça e sua inventividade. Nesse contexto, o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony transita com naturalidade e maestria no território fronteiriço da crônica. Seus textos externam fielmente as características essenciais do gênero narrativo, com linguagem oral, subjetiva, leve, direta, descontraída, bem humorada e envolvente de fatos do dia-a-dia. Apesar disso, Cony consegue, mesmo na brevidade de suas crônicas, e com ar de quem não quer dizer nada de importante, convidar seu leitor a compartilhar opiniões e reflexões filosóficas relevantes, bem como críticas sociais e políticas bem fundamentadas.

Já nas crônicas biográficas, além de cumprir o mesmo papel, Cony consegue penetrar na esfera psicológica e sentimental de seus personagens, por vezes apontando, com inigualável estilo, seus aspectos luminosos e seus pontos sombrios. Todas essas características, é preciso que se diga, também fazem parte do gênero crônica.

Em suas crônicas biográficas, Cony dá pouca ou nenhuma importância à ordem cronológica dos acontecimentos e a informações como data de nascimento e de morte, nomes dos pais ou dados curriculares formais. O personagem é tomado em seu arcabouço psicológico, que o cronista procura alcançar para fazer as reflexões que pretende, seja sobre o retratado ou a respeito do mundo.

O Autor, ao usar espontaneamente recursos metafóricos, irônicos, algumas vezes reducionistas, acaba transportando o leitor para a esfera psicológica do

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personagem, o qual é descrito no exato contexto social em que vive. Com fino estilo, Cony divide as suas angústias e as suas verdades sobre o mundo, que não são objetivas, mas plenamente subjetivas.

O escritor alemão Goethe, por exemplo, é retratado por Cony como um homem de grandes paixões e que tem ansiedade pela luz e obsessão por fantasmas. As fragilidades do escritor (como o remorso, sua dor psicológica mais profunda), são exploradas no texto ao lado das suas virtudes, tudo ressaltando o lado humano do personagem.

O mesmo ocorre com Stendhal, escritor francês, que tem seus aspectos luminosos fortemente contrastados com os sombrios. O personagem é descrito como desprestigiado, imodesto, esnobe, impostor, mitômano e vigarista, sendo comparado em defeitos a Agostinho, que posteriormente virou santo. Indo de um pólo a outro, no entanto, com a liberdade que a crônica possibilita, Cony expressa a ambigüidade do ser humano e relata que o personagem, após a morte, passou a ser reconhecido como o maior conhecedor da alma humana.

Já Pixinguinha é visto apenas por seus aspectos luminosos. Cony, em um texto ao mesmo tempo informal e sedutor, ressalta a genialidade, a simplicidade, a autenticidade e o papo perfeito do artista, que é considerado “a música” (e não simplesmente um músico), além de um dos mais estupendos exemplares da espécie humana.

Cony assume a admiração pelo personagem e utiliza o artifício do reducionismo para chamar de mau-caráter todo aquele que não gostasse de Pixinguinha. É interessante ver que a crônica dá essa liberdade de atuação ao cronista, que não se obriga a expressar as facetas sombrias do personagem que idolatra.

Goethe, Stendhal e Pixinguinha foram biografados em textos que se aproximam do perfil, já que, como demonstrado, são compreendidos por seus valores, suas motivações, seus receios, ou seja, por seus aspectos psicológicos positivos (luminosos) e negativos (sombrios), e não por meros detalhes cronológicos e formais de suas existências.

Já no texto autobiográfico, aqui também analisado, Cony relata seu nascimento, considerado ironicamente como o mais importante acontecimento do século e do milênio, apenas para fazer reflexão filosófica das mais importantes. Com linguagem familiar, íntima e envolvente, o cronista segue toda uma trajetória argumentativa para, ao final, concluir que o ser humano é o centro de tudo, acima de todas as coisas, inventos, descobertas, conquistas, revoluções, maravilhas e beldades do mundo. Afinal, de que adiantaria tudo isso se o ser humano – qualquer um de nós – não tivesse nascido?

Essa crônica autobiográfica tem, assim, proximidade com o ensaio pessoal, na medida em que Cony faz a discussão filosófica de um tema, com forte conotação pessoal, mesclando sabiamente a narrativa e a reflexão. Ele não só fala de si, mas, principalmente, utiliza de passagens da sua vida com o intuito de refletir sobre a natureza e a grandeza do ser humano, que deve ser considerado o verdadeiro centro de todas as coisas.

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O presente trabalho, como já tivemos a oportunidade de mencionar, não tem grandes pretensões científicas. E isso ocorre, inclusive, por considerarmos tarefa complexa, para quem ainda não é especialista em crônica (como é o nosso caso), promover com profundidade e acerto a análise de textos tão primorosos como os de Carlos Heitor Cony.

Significa, portanto, uma breve descrição de nossa viagem inicial ao fascinante mundo da crônica, que nos proporcionou momentos de encantamento e de prazer. A partir da experiência deste trabalho, com certeza leremos novas crônicas com olhar diferenciado. Teremos consciência de que um texto leve e coloquial, aparentemente descomprometido e de fácil assimilação pelo leitor, pode trazer opiniões, reflexões ou críticas significativas. Também saberemos reconhecer o valor de um profissional, o cronista, que, com o talento e o estilo marcantes de um artista (o das palavras), consegue realizar tarefa das mais difíceis, que é escrever em tom de oralidade, com ares de conversa à toa. E isto, convenhamos, é dom que poucas pessoas conseguem ter. Dessa forma, apesar da boa vontade e do esforço empreendido, sobretudo na coleta de dados sobre a crônica, sabemos que a contribuição aqui apresentada é modesta. Mas temos a consciência de que, no futuro, com mais conhecimento e familiaridade no tema do que hoje, haveremos de prestar contribuição mais significativa para o estudo e aprofundamento de tão importante e sedutor gênero narrativo.

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