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CARL VON CLAUSEWITZ ________________________________________________ DA GUERRA _____________________________ Tradução para o inglês MICHAEL HOWARD e PETER PARET Tradução do inglês para o português CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle Ensaios Introdutórios por PETER PARET, MICHAEL HOWARD e BERNARD BRODIE com um Comentário de BERNARD BRODIE

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CARL VON CLAUSEWITZ ________________________________________________ DA GUERRA _____________________________

Traduo para o ingls

MICHAEL HOWARD e PETER PARET Traduo do ingls para o portugus

CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle

Ensaios Introdutrios por PETER PARET,

MICHAEL HOWARD e BERNARD BRODIE

com um Comentrio de BERNARD BRODIE

SUMRIO

___________________________________________________________________________________

Ensaios Introdutrios

A Gnese de Da Guerra PETER PARET 2 A Influncia de Clausewitz MICHAEL HOWARD 27 A Importncia Duradoura de Da Guerra BERNARD BRODIE 47 Da Guerra Prefcio do Autor 63

Comentrio do Autor 65

Prefcio MARIE VON CLAUSEWITZ 66 Duas Notas do Autor 70 LIVRO UM

Da Natureza da Guerra 1 O que Guerra? 75

2 O Propsito e os Meios na Guerra 94

3 Do Gnio Militar 107

4 Do Perigo na Guerra 125

5 Do Esforo Fsico na Guerra 127

6 A Inteligncia na Guerra 129

7 A Frico na Guerra 131

8 Observaes Finais Sobre o Livro Um 134

LIVRO DOIS

Da Teoria da Guerra

ii

1 Classificaes da Arte da Guerra 137

2 Da Teoria da Guerra 145

3 Arte ou Cincia da Guerra 164

3 Mtodo e Rotina 167

4 Anlise Crtica 173

5 Dos Exemplos Histricos 191

LIVRO TRS

Da Estratgia em Geral

1 Estratgia 199

2 Elementos da Estratgia 207

3 Os Fatores Morais 208

4 Os Principais Elementos Morais 210

5 As Virtudes Militares do Exrcito 211

6 Coragem 215

7 Perseverana 219

8 Superioridade Numrica 220

9 Surpresa 225

10 Dissimulao 230

11 Concentrao de Foras no Espao 232

12 Unificao de Foras no Tempo 233

13 A Reserva Estratgica 239

14 Economia de Fora 242

15 O Fator Geomtrico 243

16 A Interrupo do Combate na Guerra 245

17 As Caractersticas da Guerra Contempornea 250

18 Tenso e Inatividade 252

LIVRO QUATRO

O Engajamento

iii

1 Introduo 256

2 A Natureza da Batalha nos Dias de Hoje 257

3 O Engajamento em Geral 259

4 O Engajamento em Geral - Continuao 263

5 A Importncia do Engajamento 270

6 A Durao do Engajamento 273

7 A Deciso do Engajamento 275

8 O Acordo Mtuo para Lutar 282

9 A Batalha: A sua Deciso 285

10 A Batalha - Continuao: Os Efeitos da Vitria 291

11 A Batalha - Continuao: A Utilizao da Batalha 297

12 Os Meios Estratgicos de Explorar a Vitria 303

13 A Retirada aps uma Batalha Perdida 313

14 Operaes Noturnas 316

LIVRO CINCO

Foras Militares

1 Esboo Geral 321

2 O Exrcito, o Teatro de Operaes, a Campanha 322

3 Fora Relativa 324

4 A Relao Existente entre as Armas do Exrcito 327

5 A Formao de Batalha do Exrcito 336

6 A Disposio Geral do Exrcito 342

7 Guardas e Postos Avanados 348

8 O Emprego Operativo dos Corpos Avanados 356

9 Acampamentos 361

10 Marchas 364

11 Marchas - Continuao 371

12 Marchas - Concluso 375

13 Alojamentos 378

14 Manuteno e Abastecimento 384

iv

15 A Base de Operaes 399

16 As Linhas de Comunicao 404

17 O Terreno 408

18 O Domnio das Elevaes 412

LIVRO SEIS

A Defesa

1 O Ataque e a Defesa 417

2 A Relao Existente na Ttica entre o Ataque e a Defesa 421

3 A Relao Existente na Estratgia entre o Ataque e a Defesa 424

4 A Convergncia do Ataque e a Divergncia da Defesa 429

5 As Caractersticas da Defesa Estratgica 433

6 O mbito dos Meios de Defesa 435

7 A Interao entre o Ataque e a Defesa 441

8 Tipos de Resistncia 443

9 A Batalha Defensiva 457

10 Fortificaes 461

11 Fortificaes - Continuao 471

12 Posies Defensivas 476

13 Posies Fortificadas e Acampamentos Entrincheirados 482

14 Posies nos Flancos 489

15 Guerra Defensiva nas Montanhas 492

16 Guerra Defensiva nas Montanhas - Continuao 500

17 Guerra Defensiva nas Montanhas - Concluso 507

18 A Defesa de Rios e Riachos 512

19 A Defesa de Rios e Riachos - Continuao 527

20 A. A Defesa de Pntanos 529

B. Terrenos Alagados 531

21 A Defesa de Florestas 535

22 A Linha de Defesa 537

23 A Chave para o Pas 541

v

24 Operaes contra um Flanco 545

25 A Retirada para o Interior do Pas 556

26 O povo em Armas 568

27 A Defesa de um Teatro de Operaes 575

28 A Defesa de um Teatro de Operaes - Continuao 579

29 A Defesa de um Teatro de Operaes Resistncia por Etapas 593

30 A Defesa de um Teatro de Operaes Quando o Propsito No For Obter uma Deciso 596

LIVRO SETE

O Ataque

1 O Ataque em Relao Defesa 621

2 A Natureza do Ataque Estratgico 622

3 O Propsito do Ataque Estratgico 625

4 A Fora Decrescente do Ataque 626

5 O Ponto Culminante do Ataque 627

6 A Destruio das Foras do Inimigo 628

7 A Batalha Ofensiva 629

8 As Travessias de Rios 631

9 Ataque a Posies Defensivas 634

10 Ataque a Acampamentos Entrincheirados 635

11 Ataque a uma Regio Montanhosa 637

12 Ataque a Linhas de Defesa 640

13 Manobras 641

14 Ataque a Pntanos, reas Alagadas e Florestas 644

15 Ataque a um Teatro de Guerra: Procurando Obter uma Deciso 646

16 Ataque a um Teatro de Guerra: No Procurando Obter uma Deciso 650

17 Ataque a Fortificaes 654

18 Ataque a Comboios 659

19 Ataque a um Inimigo em Alojamentos 662

20 Diverses 668 vi

21 Invaso 671

22 O Ponto Culminante da Vitria 672

LIVRO OITO

Planos de Guerra

1 Introduo 683

2 Guerra Absoluta e Guerra Real 686

3 A. A Interdependncia dos Elementos da Guerra 690 B. A Dimenso do Propsito Militar e do Esforo a ser Realizado 693

4 Uma Definio mais Precisa do Propsito Militar: A Derrota do Inimigo 705

5 Uma Definio mais Precisa do Propsito Militar - Continuao: Propsitos Limitados 713

6 A. O Efeito do Propsito Poltico sobre o Propsito Militar 715 B. A Guerra um Instrumento da Poltica 718

7 O Propsito Limitado: A Guerra Ofensiva 725

8 O Propsito Limitado: A Guerra Defensiva 728

9 O Plano de uma Guerra Destinada a Levar Destruio Total do Inimigo 733

UM COMENTRIO

Um Guia para a Leitura de Da Guerra BERNARD BRODIE 760 ndice 838 NOTA DO EDITOR ___________________________________________________________________________________

O leitor poder se perguntar porque preciso fazer uma outra traduo para o ingls de Vom

Kriege, quando j existem duas. A primeira, feita pelo Coronel J. J. Graham em 1874, foi republicada

em Londres em 1909. A segunda, pelo Professor O. J. Matthijs Jolles, surgiu em Nova York em 1943.

vii

Mas a traduo de Graham, fora o seu estilo ultrapassado, contm um grande nmero de imprecises e

de trechos obscuros e, embora a traduo de Jolles seja mais precisa, tanto a sua verso como a de

Graham basearam-se em textos alemes que continham importantes alteraes em relao primeira

edio publicada em 1832.

O crescente interesse verificado nos ltimos anos pelos escritos tericos, polticos e histricos de

Clausewitz indicou que havia chegado o momento de fazer uma traduo totalmente nova. Baseamos o

nosso trabalho na primeira edio de 1832, complementada pelo texto alemo comentado, publicado

pelo Professor Werner Hahlweg em 1952, exceto onde os trechos obscuros existentes na edio

original - que o prprio Clausewitz nunca revisou - fez com que parecesse recomendvel que ela

recebesse correes posteriores.

Em todos os aspectos, menos um, seguimos a disposio original do texto. A primeira edio

continha quatro notas escritas por Clausewitz sobre as suas teorias, datadas de diversos perodos entre

1816 e 1830, como introdues ao prprio Da Guerra - uma prtica adotada pela maioria das edies

alems e estrangeiras posteriores. Abandonamos a disposio um tanto desorganizada na qual aquelas

notas sempre surgiram e, em vez dela, as editamos na seqncia em que acreditamos que tenham sido

escritas. L-las de uma maneira seqencial ajuda a revelar como Da Guerra tomou forma na mente de

Clausewitz e indica como o livro poderia ser mais aperfeioado se ele tivesse vivido para termin-lo.

Inclumos tambm o Prefcio de Marie von Clausewitz primeira edio das obras pstumas de

Clausewitz, que acrescenta informaes sobre a gnese de Da Guerra e sobre a maneira pela qual o

manuscrito foi preparado para ser publicado. Uma nota curta que ela introduziu no incio do terceiro

volume das Obras de Clausewitz, antecedendo imediatamente o Livro Sete de Da Guerra, foi

suprimida, uma vez que diz respeito principalmente a outros escritos histricos e tericos, e no a Da

Guerra.

Tentamos apresentar as idias de Clausewitz da maneira mais precisa possvel, permanecendo ao

mesmo tempo o mais prximo do seu estilo e do seu vocabulrio que o emprego do idioma ingls

moderno poderia permitir. Mas no hesitamos em traduzir o mesmo termo de maneiras diferentes, se o

contexto parecesse exigir isto. Por exemplo, traduzimos Moral e moralische Kraft de maneira diversa,

como moral e como psicolgico. O prprio Clausewitz estava longe de ser constante em sua

terminologia, como poderamos esperar de um escritor que estava menos preocupado em criar um

sistema ou uma doutrina formal do que em obter entendimento e clareza de expresso. Algumas vezes

ele escreve Geisteskrafte, Seelenkrafte, e at mesmo Psychologie, em vez de moralische Kraft ou

viii

moralische Grossen, e uma flexibilidade semelhante caracteriza o seu emprego de termos como

meios, propsito, engajamento, batalha, etc. Como ele escreve no Livro Cinco, Captulo Sete:

Uma rigorosa fidelidade aos termos resulta claramente em pouco mais do que diferenas pedantes.

A tarefa de traduo foi realizada inicialmente pelo Sr. Angus Malcolm, anteriormente

pertencente ao Ministrio das Relaes Exteriores, que, para profundo pesar dos seus inmeros amigos,

faleceu enquanto ainda estava envolvido no projeto. Ele j havia realizado, entretanto, o trabalho

preliminar, extremamente valioso, pelo que lhe somos muito gratos. Gostaramos de agradecer Sra.

Elsbeth Lewin, editora de World Politics, ao Professor Bernard Brodie, da Universidade da Califrnia,

em Los Angeles, por verificar o manuscrito e nos ajudar a solucionar diversas ambigidades, e aos Srs.

Herbert S. Bailey Jr. e Lewis Bateman da Grfica da Universidade de Princeton, pelo cuidado que

tiveram ao preparar o manuscrito para publicao. Finalmente, um prazer expressar a nossa gratido

ao Professor Klaus Knorr, da Universidade de Princeton, pois sem o seu interesse e estmulo esta tarefa

nunca poderia ter sido realizada.

NOTA PARA A EDIO DE 1984

Corrigimos alguns erros e tentamos retirar uma poucas infelicidades cometidas na nossa traduo

do texto de Clausewitz. Como no passado, entretanto, acreditamos que este trabalho exige tradutores

que reunam um profundo respeito pelo autor e a determinao de procurar encontrar termos

equivalentes, sempre que uma correspondncia demasiado rigorosa com o original puder levar a uma

artificialidade.

Nos ensaios introdutrios, foram feitas pequenas alteraes em A Gnese de Da Guerra e dois

pargrafos sobre a interpretao Marxista de Clausewitz foram acrescentados a A Influncia de

Clausewitz. A nica outra alterao em relao nossa edio original a incluso de um ndice, que

a Sra. Rosalie West compilou de acordo com o modelo do ndice das edies alems de Da Guerra, de

1952, 1972 e 1980, do Professor Werner Hahlweg.

MICHAEL HOWARD PETER PARET Universidade de Oxford Universidade de Stanford

ix

x

ENSAIOS INTRODUTRIOS _______________________________________________________________________ Por Peter Paret, Michael Howard e Bernard Brodie PETER PARET

_______________________________________________________________________ A Gnese de Da Guerra

Apesar da sua abrangncia, da sua abordagem sistemtica e do seu estilo preciso, Da Guerra no

uma obra acabada. O fato de que nunca foi concluda de modo a satisfazer o seu autor em grande

parte explicado pela sua maneira de pensar e de escrever. Clausewitz tinha vinte e poucos anos quando

rabiscou os seus primeiros pensamentos sobre a natureza dos processos militares e sobre o lugar da

guerra na vida social e poltica. Uma acentuada percepo da realidade, ctico com relao s

premissas e teorias contemporneas e um fascnio igualmente no doutrinrio pelo passado, marcaram

aquelas observaes e mximas e deram a elas uma dimenso de coerncia interna, mas no seria

inadequado considerar os seus escritos anteriores a 1806 como sendo essencialmente idias isoladas -

blocos a serem utilizados numa estrutura que ainda no havia sido projetada.

A presena de algumas das suas primeiras idias em Da Guerra indica a maneira lgica e

coerente com que suas idias se desenvolveram, embora na obra j amadurecida elas apaream como

componentes de um processo dialtico que Clausewitz havia dominado ao longo de duas dcadas e

adaptado aos seus fins. Um exemplo disto o seu conceito do papel que o gnio desempenha na guerra,

que est prximo da origem de todo o seu trabalho terico. Remanescentes de um tipo um tanto

diferente so a sua definio de estratgia e de ttica, que ele formulou pela primeira vez aos vinte e

quatro anos de idade, ou a comparao caracteristicamente no romntica da guerra s transaes

comerciais, feita naquela mesma poca. A maior parte dos seus primeiros pensamentos, entretanto, se

expandiu e adquiriu novas facetas nos anos transcorridos entre a derrota infligida Prssia por

Napoleo e a campanha russa. Clausewitz era um membro da associao informal de civis de

mentalidade reformista e de soldados que tentavam naquele momento, com algum xito, modernizar as

instituies prussianas, e as suas mltiplas atividades como oficial de Estado-Maior, administrador e

professor estimularam ainda mais os seus interesses intelectuais e a sua criatividade. Diversos trechos

de memorandos, palestras e ensaios escritos durante o perodo das reformas reaparecem, claramente

modificados, em Da Guerra. Aps 1815, quando os seus manuscritos sobre poltica, histria, filosofia,

estratgia e ttica chegavam a milhares de pginas, Clausewitz comeou a trabalhar numa coletnea de

ensaios analisando diversos aspectos da guerra, que gradualmente se fundiram numa teoria abrangente

que procurava definir os elementos universais e permanentes existentes na guerra, com base numa

2

interpretao realista do presente e do passado. Ao longo de uma dcada, ele escreveu seis das oito

partes planejadas e esboou as outras duas. Em 1827, entretanto, ele havia elaborado uma nova

hiptese sobre o que ele chamou de dupla natureza da guerra, cuja investigao sistemtica exigiu

uma ampla reviso de todo o manuscrito. Ele morreu antes que pudesse rescrever mais do que os

primeiros captulos do Livro Um.1

Da Guerra apresenta portanto os pensamentos do seu autor em diversos estgios de concluso.

Vo desde a excelente seqncia inicial de proposies que se so reveladas de uma maneira lgica,

at as magnficas, mas algumas vezes parciais ou contraditrias, anlises dos Livros de Dois a Seis e

aos captulos no estilo de ensaios dos dois ltimos livros, que indicam com pinceladas brilhantes o que

poderia ter contido uma verso definitiva. Nada pode tomar o lugar destas verses no escritas, mas

devemos nos lembrar de que a deciso de Clausewitz, tomada em 1827, de rever o seu manuscrito, no

significou uma rejeio das teorias anteriores - ele s pretendia ampli-las e aperfeio-las. medida

em que lemos o texto atual de Da Guerra, podemos pelo menos nos aproximar da inteno de

Clausewitz, mantendo claramente em mente as suas hipteses, intimamente relacionadas, da dupla

natureza da guerra e do seu carter poltico. Ser proveitoso, ao fim desta exposio, voltar s suas

hipteses definitivas e apresentar em linhas gerais os seus aspectos mais importantes, principalmente

porque ele nunca desenvolveu plenamente as suas implicaes na teoria.

O poder criativo dos mtodos e das idias de Clausewitz indica que, apesar da irregularidade da

sua execuo, Da Guerra oferece uma teoria de conflitos essencialmente coerente. Qualquer pessoa

que

esteja disposta a penetrar em sua maneira de argumentar compreender os seus pensamentos sobre os ___________

1 Uma grande parte da literatura mais antiga sobre as diferentes fases da elaborao de Da Guerra baseia-se em fontes inadequadas e pode ser desprezada. O pequeno livro Clausewitz (Berlim, 1905), escrito por R. v. Caemmerer, ainda tem valor nos dias de hoje, bem como o sugestivo artigo escrito por H. Rosinski, Die Entwicklung von Clausewitz Werk Vom Kriege im Lichte seiner Vorrenden und Nachrichten, Historische Zeitschrift, 151 (1935), pag. 278 a 293, que foi aprimorado em aspectos importantes atravs da resposta de E. Kessel, Zur Entstehungsgeschichte von Clausewitz Werk vom Kriege, Historische Zeitschrift, 152 (1935), pag. 97 a 100. As reflexes de W. M. Schering, em sua antologia dos escritos de Clausewitz, Geist und Tat (Stuttgart, 1941), esto cheias de contradies e de erros concretos, mas como Schering conhecia bem os rascunhos no publicados de Clausewitz e parece ter sido o ltimo intelectual a trabalhar neles antes que desaparecessem no fim da Segunda Guerra Mundial, as suas interpretaes no podem ser ignoradas. Num ensaio inteligente, Clausewitz, publicado em Formuladores da Estratgia Moderna por E. M. Earle (Princeton, 1943), pag. 93 a 113, H. Rothfels escreve (pag. 108, n. 65): Clausewitz fez a reviso do Livro Oito e de pelo menos algumas partes do Livro Um (provavelmente dos Captulos de Um a Trs) e do Livro Dois (certamente do Captulo Dois). Mas ele acrescenta que Clausewitz s considerava concludo o Captulo Um do Livro Um. Creio que Rothfels superestimou consideravelmente a amplitude das revises de Clausewitz aps 1827. Ele no apresenta qualquer motivo para as suas opinies, a no ser os indcios inerentes a elas, mas o trecho do Livro Oito que ele cita como uma prova de uma reviso posterior pode ser encontrado de forma quase idntica no manuscrito de Clausewitz sobre estratgia, de 1804. A avaliao mais bem informada de toda a questo, incluindo as descobertas de um sculo de cultura, est contida no brilhante Zur Genesis der modernen Kriegslehre Wehrwissenschaftliche Rundschau, 3 (1953), n 9, pag. 405 a 423, de E. Kessel.

3

aspectos permanentes da guerra. Mas a nossa leitura de Da Guerra s pode ser beneficiada por um

conhecimento da sua gnese e do seu contexto intelectual. Que experincias polticas e militares

influenciaram o seu autor? Quais foram as premissas e as teorias contra as quais ele reagiu? Quais

eram, em sua opinio, os requisitos metodolgicos de uma anlise bem fundada? At mesmo um rpido

exame destas questes lanar uma luz sobre a evoluo das idias de Clausewitz e sobre as formas que

elas assumiram nas diversas fases de Da Guerra.2

Clausewitz, o filho de um Tenente da reserva que exercia uma funo secundria no servio de

fazenda prussiano, deparou-se pela primeira vez com a guerra em 1793, como um soldado de doze anos

de idade. No ano anterior, a Assemblia Legislativa francesa havia declarado guerra ustria, com

quem a Prssia tinha concludo recentemente uma aliana defensiva. A ao francesa foi causada

menos por consideraes relativas aos interesses nacionais do que pela poltica interna, mas iniciou um

conflito de 23 anos entre a Frana revolucionria, e posteriormente imperial, e o resto da Europa. Com

exceo da invaso inicial do Duque de Brunswick, que se deteve em Valmy, os prussianos saram-se

razoavelmente bem numa guerra em que nunca envolveram mais do que uma parte dos seus recursos

militares. Eles derrotaram repetidamente os franceses na Alscia e no Saar e fizeram milhares de

prisioneiros. Em 1795, quando terminou a luta, controlavam a linha do Reno. Mas estas realizaes no

trouxeram qualquer retorno poltico. Como se poderia esperar, a guerra, com as suas aes vigorosas,

derramamento de sangue e um resultado nada grandioso, causou uma forte impresso no jovem

Clausewitz. Ele mesmo escreveu sobre o impacto causado por ela em suas emoes e no seu esprito.

Nos anos seguintes, enquanto servia numa guarnio provinciana, extraiu algumas concluses

experimentais daquelas experincias anteriores, trs das quais em especial teriam uma influncia

duradoura: No existe um padro de excelncia nico na guerra. A retrica e as polticas da Repblica

Francesa, que proclamavam a chegada de uma nova era, de modo algum subjugaram os exrcitos do

ancien rgime. Os mercenrios e os camponeses compulsoriamente alistados, comandados por oficiais

cuja eficcia ainda se apoiava tanto na presuno aristocrtica como no conhecimento

profissional,

________________ 2 Qualquer interpretao da gnese do pensamento de Clausewitz sobre a guerra no deve basear-se apenas nos seus trabalhos sobre a teoria e a histria militares, mas tambm em seus extensos escritos sobre assuntos tais como educao, poltica, teoria da arte, e na sua correspondncia. Anlises especialmente valiosas de aspectos da sua ampla evoluo intelectual esto contidas em Carl von Clausewitz: Politik und Krieg (Berlim, 1920), de H. Rothfel, e na introduo de E. Kessel Strategie aus dem Jahr 1804, de Clausewitz (Hamburgo, 1937). As fontes importantes e secundrias so analisadas em detalhes em meu livro Clausewitz e o Estado (Nova York, 1976), no qual se baseia uma grande parte do que se segue.

4

revelaram-se adversrios altura da leve en masse. Por outro lado, a rigorosa disciplina prussiana no

conseguiu eliminar os exrcitos revolucionrios. medida em que a Repblica adquiria estabilidade e

experincia, tinha muito que ensinar ao seus oponentes, cuja capacidade de aprender e de reagir

eficazmente permanecia em dvida. Estes acontecimentos e as suas primeiras leituras de histria deram

a entender a Clausewitz que nenhum sistema estava to certo a ponto de excluir todos os outros. As

instituies militares e a maneira pela qual empregavam a violncia dependiam das condies

econmicas, sociais e polticas dos seus respectivos Estados. Alm disto, as estruturas polticas, como

as guerras, no podiam ser medidas atravs de um nico padro. Os Estados eram moldados pelo seu

passado especfico e pelas circunstncias atuais. Formas muito diferentes tinham validade e todas

estavam sujeitas a alteraes constantes.

Associada a esta viso individualizadora e anti-nacionalista da histria e das instituies sociais e

militares havia uma segunda concluso, que colocava o jovem oficial em oposio opinio dominante

na Prssia e, na realidade, na Europa. Ele achava que era um erro acreditar que fosse possvel conhecer

perfeitamente a guerra atravs da observao deste ou daquele conjunto de regras. A diversidade e as

constantes alteraes sofridas pela guerra nunca poderiam ser totalmente percebidas por um sistema.

Qualquer simplificao dogmtica - que a vitria dependia do controle de pontos chave, por exemplo,

ou do rompimento das linhas de comunicao do oponente - s adulteravam a realidade. Possivelmente

Clausewitz j suspeitava da convico, mantida pela maioria dos tericos militares daquela poca, de

que o campo de ao do acaso na guerra poderia e deveria ser reduzido a um mnimo atravs do

emprego da doutrina operacional e ttica correta. Para algum que desejava veementemente

compreender a guerra de uma maneira sistemtica e objetivamente comprovvel, era especialmente

difcil aceitar o poder do acaso, mas quando ele tinha vinte e poucos anos, o seu realismo e a lgica

das suas opinies sobre as mudanas histricas o levaram ao ponto de considerar o acaso no apenas

como inevitvel, mas at mesmo como um elemento incontestvel na guerra.

Finalmente, as campanhas de 1793 e 1794 colocaram Clausewitz no caminho de reconhecer a

guerra como um fenmeno poltico. As guerras, como todos sabem, eram travadas para que fosse

atingido um propsito que era poltico, ou que pelo menos tinha sempre consequncias polticas. As

implicaes que vinham a seguir no eram to rapidamente evidentes. Se a guerra destinava-se a atingir

um propsito poltico, tudo que entrava na guerra - os preparativos sociais e econmicos, o

planejamento estratgico, a conduo das operaes, o emprego da violncia em todos os nveis -

deveria ser determinado por aquele propsito, ou, pelo menos, estar de acordo com ele. Embora os

5

soldados tivessem que adquirir qualificaes especiais e atuar sob alguns aspectos num mundo parte,

seria uma negao da realidade permitir que realizassem o seu trabalho sangrento sem serem

perturbados, at que um armistcio trouxesse o seu empregador poltico de volta equao. Assim

como a guerra e as suas instituies refletem o seu ambiente social, todo aspecto do combate deve ser

banhado pela sua motivao poltica, seja ela intensa ou moderada. A relao adequada entre a poltica

e a guerra ocupou Clausewitz durante toda a sua vida, mas at mesmo os seus primeiros manuscritos e

cartas revelam a sua percepo da interao existente entre elas.

A facilidade com que este vnculo - sempre reconhecido em tese - pode ser esquecido em

determinados casos, e a insistncia de Clausewitz de que ele nunca deveria ser ignorado, so ilustradas

pela sua educada rejeio, j a caminho do fim da sua vida, de um problema estratgico apresentado

pelo Chefe do Estado-Maior Geral Prussiano, no qual todos os detalhes militares dos lados opostos

eram apresentados detalhadamente, mas no era feita qualquer meno ao seu propsito poltico. A um

amigo que lhe havia enviado o problema para que apresentasse os seus comentrios, Clausewitz

respondeu que no era possvel esboar um plano de operaes sensato sem indicar a situao poltica

dos Estados envolvidos e a relao existente entre um o outro: A guerra no um fenmeno

independente, mas a continuao da poltica atravs de meios diferentes. Consequentemente, as

principais linhas de todo plano estratgico de vulto so em grande parte polticas em sua natureza, e o

seu carter poltico aumenta medida em que o plano se aplica a toda a campanha e a todo o Estado.

Um plano de guerra decorre diretamente da situao poltica dos dois Estados em guerra, bem como

das suas relaes com terceiras naes. Um plano de campanha tem origem no plano de guerra e

frequentemente - se s houver um teatro de operaes - pode at mesmo ser idntico a ele. Mas o

elemento poltico penetra at mesmo nos componentes isolados de uma campanha. Raramente deixar

de influenciar os principais episdios da guerra, como uma batalha, etc. De acordo com este ponto de

vista, no poder ser feita uma avaliao puramente militar de uma importante questo estratgica,

nem poder existir um esquema puramente militar para resolv-la.3

Na segunda metade da dcada de 1790, o jovem Clausewitz s havia dado os primeiros passos da

sua jornada intelectual que iria lev-lo a esta concluso, mas, como dei a entender anteriormente, desde

o incio ele viajou atravs de uma estrada em linha reta, com poucas tangentes ou interrupes. Os

cinco anos em que passou desempenhando uma funo subalterna na pequena cidade de Neuruppin

tm sido __________________

6

3 C. v. Clausewitz para C. v. Roeder, 22 de Dezembro de 1827, em Zwei Briefe des Generals von Clausewitz, edio especial do Militarwissenschafliche Rundschau, 2 (Maro de 1937), pag. 6. Existe uma edio em ingls. normalmente menosprezados, sendo considerados um perodo de estagnao, mas parece que os

bigrafos tm interpretado de uma maneira muito literal o comentrio caracteristicamente crtico e

autocrtico sobre aquele perodo, que ele fez anos depois. Na realidade, a sua situao no deixava de

apresentar algumas vantagens. Longe de estar servindo numa unidade provinciana no ilustre, ele

pertencia a um regimento que tinha um membro da famlia real, o Prncipe Ferdinando, como Coronel

honorrio e patrono. Perto da cidade estava a residncia de um outro Hohenzolern, o Prncipe Henry, o

irmo mais talentoso de Frederico o Grande, cuja biblioteca, pera e teatro estavam abertos aos

oficiais. O mais importante era que o regimento era conhecido em todo o Exrcito pelas suas polticas

educacionais inovadoras, financiadas em grande parte pelos prprios oficiais. Na sua volta da Frana, o

regimento havia organizado uma escola primria e profissional para os filhos dos soldados, e uma

escola mais avanada para os seus Cadetes e Tenentes, que admitia tambm os filhos da pequena

nobreza local. provvel, embora no seja certo, que como outros Tenentes, Clausewitz dava aulas

nesta ltima instituio, e no pode haver dvida de que o seu envolvimento num programa

educacional srio aprofundou o interesse que j sentia pela educao. Aos quinze anos de idade tinha

ficado cativado pela idia de que a aquisio de conhecimento podia levar perfeio humana. Em

pouco tempo, a meta de melhorar a sociedade reforou a de auto-aperfeioamento, e ao seu desejo de

aprender juntou-se a preocupao com a metodologia da educao. As maneiras pelas quais idias

abstratas poderiam refletir precisamente a realidade e transmitir essa realidade, a maneira pela qual os

homens poderiam ser ensinados a compreender a verdade e o propsito mais elevado da educao -

que, sustentava ele, no consistia na transmisso de conhecimentos tcnicos, mas no desenvolvimento

de uma capacidade independente de julgar - tudo isto passou a constituir as principais reflexes de

Clausewitz em seu trabalho terico.

Em 1801, Clausewitz foi admitido na Nova Escola de Guerra que Scharnhorst, recentemente

transferido das suas funes em Hanver, havia organizado em Berlim. Clausewitz formou-se como o

primeiro da turma em 1803 e foi designado assistente de um jovem prncipe, filho do seu comandante

anterior, o Prncipe Ferdinando, uma designao que permitiu que ele permanecesse na capital, em

estreito contato com o seu mestre Scharnhorst. O impacto que Scharnhorst exerceu sobre a vida de

Clausewitz e sobre a evoluo das suas idias no pode ser suficientemente ressaltado. Scharnhorst era

um soldado excepcionalmente vigoroso e ousado, bem como um intelectual e um poltico talentoso -

uma combinao harmoniosa de qualidades aparentemente opostas, que o seu discpulo nunca

7

igualaria. Este no o lugar para analisar as suas opinies sobre estratgia, sobre o recrutamento e

sobre a organizao do Comando e do Estado-Maior, que constituam uma harmonizao pragmtica

do antigo e do novo. O importante para os nossos fins a independncia intelectual com que ele tratava

as questes militares fundamentais da sua poca, bem como a sua simpatia pelos propsitos da

educao humanista, e a sua convico de que o estudo da histria deveria estar no centro de qualquer

estudo avanado de guerra. As opinies experimentais de Clausewitz no campo da teoria militar e da

educao foram comprovadas e orientadas ainda mais por Scharnhorst, que aprofundou tambm a

percepo de Clausewitz das foras sociais que determinavam o estilo militar e as energias dos

Estados. Scharnhorst, filho de um campons livre que havia ascendido graduao de Sargento-

Ajudante de Esquadro tinha tido uma carreira difcil no Exrcito de Hanver, onde havia sido

repetidamente preterido em favor de colegas nobres e bem relacionados. A experincia no o

transformou num democrata, nem - tendo obtido xito profissional, inclusive um ttulo de nobreza -

sucumbiu fcil aceitao dos privilgios. O que importava para ele no era a estrutura especfica da

sociedade, nem a forma assumida pelas suas instituies, mas o esprito que lhes dava vida. Para dar

um exemplo especfico, na escola para crianas do regimento em Neuruppin, Clausewitz havia

testemunhado um pouco da preocupao humanitria e paternalista com os pobres, que era uma

caracterstica marcante do recente Iluminismo na Prssia. Scharnhorst ensinou-lhe que aquilo no era

adequado, nem para o indivduo nem para o Estado. Se a Revoluo Francesa havia provado alguma

coisa, foi que os Estados que desejassem preservar a sua independncia deveriam tornar-se mais

eficientes em controlar as energias das suas populaes. Em todas as sociedades existiram as elites, e

elas se justificavam, contanto que fortalecessem a comunidade, permanecessem abertas aos talentos e

recompensassem o mrito. Mas nada poderia justificar a continuao dos privilgios que protegiam a

mediocridade enquanto privavam o Estado da capacidade e do entusiasmo do homem comum. Foi esta

atitude que alguns anos mais tarde viria a determinar a direo do movimento reformador prussiano -

talvez menos nas questes civis do que no lado militar, sob a liderana de Scharnhorst e dos seus

colegas mais ntimos. Na gnese das idias de Clausewitz, a viso essencialmente no ideolgica das

medidas sociais e polticas, que ele havia aprendido em parte com Scharnhorst e que j expressara em

1804 e em 1805, claramente se equipara sua abordagem no doutrinria da guerra. Os polticos e os

soldados devem repelir a tradio, a convenincia e qualquer influncia que interfira na consecuo do

propsito principal. Semelhantemente, o terico, querendo compreender a natureza do Estado e da

8

guerra, nunca deve permitir que os seus pensamentos se afastem muito do elemento mais importante de

cada um deles - o poder na poltica e a violncia na guerra.

A tarefa mais importante com que se defrontavam os soldados prussianos nos primeiros anos do

Sculo XIX era adequar-se intelectual e institucionalmente nova maneira francesa de travar guerras.

Em uma dcada, os recursos que a Frana mobilizou para a guerra haviam chegado a nveis sem

precedentes. O nmero de soldados que estava agora disponvel para os seus Generais tornava possvel

a realizao de campanhas que envolviam riscos maiores, deu origem mais frequentemente a batalhas,

permitiu que se espalhassem por uma parte maior do territrio e que se procurasse atingir propsitos

polticos de uma magnitude maior do que teria sido possvel para os exrcitos do ancien rgime. Esta

nova tcnica foi empregada por Napoleo com um brilhantismo que chocou tanto quanto a sua

crueldade. Para a maioria dos alemes, era bastante difcil compreender o seu sistema, que reunia os

dons de um indivduo excepcional e as realizaes sociais, administrativas e psicolgicas da

Revoluo, que eram necessariamente estranhas para eles. Para os tericos de qualquer nacionalidade

era ainda mais difcil reconhecer a estratgia e a ttica de Napoleo como sendo um fenmeno

histrico, inevitavelmente sujeito a mudanas, e no um fenmeno definitivo na guerra, um padro de

excelncia permanente para as guerras passadas, presentes e futuras.

A literatura militar europia comentava, com uma considervel percepo, os elementos isolados

deste sistema, mas, como Clausewitz percebera anteriormente, fracassava em suas tentativas de realizar

uma anlise abrangente. O melhor trabalho realizado nesta rea foi feito pelo terico prussiano Heirich

von Bulow e pelo Oficial de Estado-Maior suo francs Antoine Jomini, em cujos escritos Clausewitz

aperfeioou os seus conhecimentos tericos nos anos que antecederam e que vieram logo aps a

derrocada prussiana de 1806. Bulow havia percebido o valor de evolues tticas recentes, como a

emboscada com grande nmero de soldados, a rapidez de movimentos e o tiro de pontaria. Ao mesmo

tempo, ele desprezou a eficcia do combate na nova era, considerou-o um recurso de desespero e, em

vez disto, defendeu um sistema estratgico de pontos de dominao e de ngulos de aproximao, cujos

padres geomtricos combinavam de uma maneira fantstica com os seus cantos em louvor do

combatente natural e livre de grilhes. Em seu primeiro trabalho publicado, um longo ensaio sobre

Bulow, Clausewitz reconheceu a utilidade de uma parte da sua terminologia, do mesmo modo que iria

encontrar mritos em alguns dos conceitos de Jomini, mas salientou que o seu mtodo de anlise era

equivocado e que as suas concluses no eram realistas. Em sua nsia de racionalizar a guerra, de

9

transform-la numa cincia e torn-la previsvel, Bulow atribuiu papis preponderantes s

caractersticas geogrficas e s medidas adequadas com relao ao sistema de abastecimento, enquanto

ignorava significativamente os efeitos fsicos e psicolgicos que poderiam resultar de movimentos

inesperados do oponente, da violncia e do fortuito. A estratgia, objetava Clausewitz, no

compreende apenas as foras que so suscetveis anlise matemtica. No, o reino da arte militar

estende-se at onde, atravs da psicologia, a nossa inteligncia descobre um recurso que pode ser til

ao soldado.4

Jomini aproximou-se da realidade contempornea, mas errou, pensava Clausewitz, ao considerar

uma parte da guerra - grandes exrcitos procurando obter uma vitria decisiva - como sendo toda a

guerra. A sua afirmativa de que havia extrado os princpios gerais da guerra a partir das operaes de

Frederico, Clausewitz repudiava como sendo absurda. Ele escreveu em 1808 que os princpios de

Jomini perderiam a sua validade absoluta se pudesse ser demonstrado que as geraes anteriores

possuam boas razes para ignor-los. Csar ou Eugnio de Savia, agindo de acordo com as realidades

sociais, tecnolgicas e polticas das suas pocas, no foram inferiores a Napoleo porque no lutaram

de uma maneira que a Revoluo Francesa havia tornado possvel. E assim como o passado s pode ser

compreendido em seus prprios termos, os homens tambm devem ser interpretados como indivduos,

no como abstraes. Jomini havia imposto de maneira no realista um padro de comportamento

racional a homens com personalidades diferentes, como Frederico e Napoleo e, alm disto, ignorou as

diferenas existentes em suas experincias, s quais cada um naturalmente reagiu sua maneira.5

Se o presente no proporcionou o padro ideal em relao ao qual as guerras do passado

pudessem ser avaliadas, Clausewitz afirmava com igual insistncia que a guerra Napolenica no

poderia estabelecer os padres para o futuro.6 O que significava isto para a teoria? Para Clausewitz, a

resposta era bvia: A teoria de qualquer atividade, mesmo se tiver em vista um desempenho eficaz em

vez de uma compreenso abrangente, deve revelar os elementos essenciais e permanentes daquela

atividade e distingu-los das suas caractersticas temporrias. A violncia e o impacto poltico eram

duas das caractersticas permanentes da guerra. Outra era a livre atividade da inteligncia, da

perspiccia e das emoes humanas. Estas eram as foras que dominavam o caos da guerra, no

aqueles dispositivos esquemticos, como a base de operaes de Bulow, ou as operaes de Jomini nas

linhas interiores.

No havia nada de novo em ressaltar a importncia dos fatores psicolgicos na guerra. Mas

at

10

____________ 4 [C. v. Clausewitz], Bemerkungen uber die reine und angewandte Strategie des Herrn von Bulow, Neue Bellona, 9 (1805), n 3,

pag. 276. 5 Em seu acrscimo ao seu ensaio Dos Princpios Tericos da Estratgia, um acrscimo posterior ao seu manuscrito sobre a

estratgia de 1804, publicado em Strategie aus dem Jahr 1804, pag. 71 a 73. 6 Veja por exemplo o seu ensaio Da Situao da Teoria Militar, escrito quando tinha vinte e poucos anos de idade, que comea com

a declarao de que, ao contrrio do que acreditam alguns escritores, a arte da guerra ainda no atingiu a perfeio: Qualquer disciplina cientfica - a menos que como a lgica seja completa em si mesma - deve sempre ser capaz de se aperfeioar, de sofrer acrscimos constantes. De qualquer maneira, no fcil de modo algum estabelecer limites ao intelecto humano. Geist unt Tat, pag. 52. mesmo aqueles escritores que atribuam uma predominncia s emoes tinham pouco de concreto a

dizer sobre elas. As consideraes relativas coragem, ao medo e ao moral s aparecem na margem

das obras de Maurice de Saxe ou de Henry Lloyd. O jovem Clausewitz, ao contrrio, colocou o fator

psicolgico no centro das suas reflexes tericas. Mas como a psicologia ainda era uma disciplina

rudimentar, que lhe oferecia apenas algumas das ferramentas necessrias para a interpretao e a

classificao das idias, ele fez isto de uma maneira que os leitores modernos podem achar confusa:

incluiu uma grande parte das suas interpretaes das caractersticas emocionais e morais sob o conceito

de gnio. essencial compreender que Clausewitz considerava gnio no apenas a originalidade e a

criatividade elevadas ao seu maior grau, mas tambm, como escreveu em Da Guerra, os dons da mente

e do temperamento em geral. Os gnios serviam como o seu recurso analtico predileto de conceituar as

diversas aptides e sentimentos que afetavam o comportamento dos homens mais comuns, bem como

daqueles excepcionais.

Mesmo nos seus primeiros escritos, Clausewitz no teve dificuldade para revelar a

inadequabilidade dos sistemas normativos quando defrontados com os recursos infinitos da mente e do

esprito. Em seu ensaio sobre Bulow, escreveu que no deveria haver qualquer conflito entre o bom

senso e uma teoria bem fundada, desde que aquela teoria se baseasse no bom senso e no gnio, ou que

desse expresso a eles.7 Ele se manteria fiel a este pensamento. Ele surge repetidamente em Da Guerra,

no apenas no captulo Do Gnio Militar, mas tambm em outros lugares, como por exemplo no

captulo Da Teoria da Guerra, onde est caracteristicamente associado a um ataque sarcstico

capitulao daqueles criadores de sistemas, como Bulow e Jomini, ante s riquezas do esprito:

Qualquer coisa que no possa ser alcanada atravs da escassa sabedoria destes pontos de vista

parciais considerada como estando alm do controle cientfico: reside na esfera do gnio, que se eleva

acima de todas as regras. Pobre do soldado que tem o dever de rastejar ao longo destes fragmentos de

regras, que no so suficientemente boas para o gnio, que o gnio pode ignorar, ou rir delas. No. O

que o gnio faz a melhor regra, e a teoria no pode fazer mais do que mostrar como e porque deve ser

assim. Pobre da teoria que se choca com a razo!8 A teoria e as doutrinas delas decorrentes esto

11

portanto subordinadas ao grande talento criativo e s proposies universais da razo e dos sentimentos

que ela expressa.

O prprio Clausewitz ainda estava longe de formular uma teoria que explicasse porque e como a ____________________

7 [C. v. Clausewitz], Bemerkungen, Neue Bellona, 9 (1805), n 3, pag. 276 e 277. 8 Da Teoria de Guerra, Livro Dois, Captulo 2, Da Guerra.

ao do gnio deveria ser a melhor regra. Ele precisava desenvolver outros mtodos analticos antes

que

pudesse avanar consideravelmente, e devemos acrescentar que ele nunca superou totalmente as

dificuldades inerentes ao duplo papel que atribuiu ao conceito de gnio. Os problemas da teoria,

entretanto, no so idnticos aos da compreenso histrica. Aqui, a ateno dada s emoes de

indivduos e de grupos se associava sem grande esforo crena na particularidade de pocas passadas.

A histria de Gustavo Adolfo na Guerra dos Trinta Anos, escrita por Clausewitz em torno de 1805,

constitui o seu esforo inicial no sentido de integrar numa escala maior estes dois princpios

interpretativos.9 Foi uma tentativa extraordinariamente bem sucedida, e apenas o primeiro dos

inmeros estudos histricos que ele viria a escrever ao longo da sua vida. Na realidade, se formos

considerar a quantidade, Clausewitz foi mais um historiador do que um terico. O fato de que ele foi

tambm inovador nesta matria tende a ser esquecido - possivelmente porque os seus escritos histricos

mais originais no foram publicados durante dcadas, e porque a cultura histrica alem logo

desenvolveu e expandiu o filo com o qual ele estava entre os primeiros a trabalhar, enquanto que

como terico ele continuou sem ter verdadeiros sucessores. Para um homem da sua poca, ele adotou

uma abordagem do passado extraordinariamente direta. Ele no escondeu um interesse irnico pelas

paixes e limitaes dos seus personagens, principalmente quando escrevia sobre acontecimentos

recentes, mas raramente demonstrou qualquer preconceito ideolgico ou patritico. Ele tentou o melhor

que pde descobrir como e porque as coisas aconteceram daquela maneira. O seu anseio de ser objetivo

foi intensificado pela sua crena, com base numa predileo pessoal e pelos ensinamentos de

Scharnhorst, de que a teoria militar dependia de diversas maneiras da histria. As suas concluses

amadurecidas sobre a relao adequada entre elas foram melhor analisadas quando ele veio a escrever

Da Guerra.

A derrota da Prssia em 1806 confirmou a opinio de Clausewitz de que a guerra no poderia ser

analisada isoladamente, como sendo um ato essencialmente militar. Era bvio para ele que a poltica da

12

dcada anterior havia decidido em grande parte a questo antes de comearem os combates, enquanto

que as condies sociais h muito existentes na monarquia prussiana haviam criado instituies e

atitudes militares que revelaram-se inteis contra um oponente que era numericamente superior e que

estava em harmonia com as novas formas de combater. Para Clausewitz pessoalmente a campanha

foi uma vez mais uma guerra do infante. Ele serviu num batalho de granadeiros at que a sua

unidade foi

___________ 9 O estudo Gustavus Adolphus Feldzuge von 1630-1632, com algumas centenas de pginas, foi publicado em 1837 no volume 9 das

obras compiladas de Clausewitz, Hinterlassene Werke des Generals Carl von Clausewitz, 10 vols. (Berlim, 1832 a 1837). obrigada a se render. Aps um perodo de priso na Frana e uma permanncia temporria na Sua, ele

voltou Prssia na primavera de 1808. Nos quatro anos seguintes serviu como assistente do seu antigo

professor Scharnhorst, que o empregou numa variedade de tarefas relacionadas com a modernizao do

Exrcito: reorganizando e reequipando as tropas, elaborando novas instrues tticas e operativas,

disseminando a nova doutrina como instrutor na Escola de Guerra e tutor militar do prncipe herdeiro.

Finalmente, Clausewitz desempenhou um papel mais importante do que poder-se-ia esperar de um

oficial moderno, na evoluo do pensamento poltico e estratgico do grupo que trabalhava nas

reformas. A experincia que adquiriu foi extraordinariamente ampla e fortaleceu ainda mais o tom

pragmtico que transmitiu em seus escritos tericos, bem como histricos. Casou-se durante aqueles

anos. Sua esposa, uma mulher inteligente e sofisticada, compartilhava dos seus interesses literrios e

filosficos e apoiou totalmente a sua crescente independncia poltica e profissional. Somente a falta de

filhos prejudicou um casamento que, no fosse por isto, teria sido excepcionalmente feliz. Ele criou

tambm uma amizade duradoura com o segundo lder dos reformadores militares, Gneisenau, um

relacionamento que viria a moldar significativamente a sua carreira subsequente. Aps a Prssia ter

sido obrigada a fornecer um destacamento para o exrcito que Napoleo estava formando para a

invaso da Rssia, pediu demisso do Exrcito e, na primavera de 1812, aceitou a designao para uma

funo de Estado-Maior no Exrcito Russo.

A riqueza, bem como o volume, dos seus escritos durante estes anos muito movimentados

impressionante. Apresentar em linhas gerais apenas as principais hipteses que Clausewitz apresentou,

em reas aparentemente to diferentes quanto a grande estratgia e o carter nacional, tomaria mais

espao do que possvel utilizar aqui, mas at mesmo uma breve introduo no deve ignorar as

concluses a que ele chegou sobre a natureza e o papel da teoria militar, uma vez que elas viriam a

determinar a abordagem a ser adotada em Da Guerra. Algo deve ser dito tambm sobre o mtodo

13

analtico que ele estava criando. Finalmente, podemos ter pelo menos uma indicao dos seus diversos

avanos no campo da teoria, analisando uma conceituao que representa aquele perodo - o conceito

de frico, com o qual ele complementou as suas idias anteriores e tornou-as produtivas na

investigao cientfica.

Em 1808, Clausewitz fez uma firme distino entre as funes utilitrias, pedaggicas e

cognitivas da teoria. A primeira - melhorar a eficcia do soldado - era o principal, muitas vezes o

nico, propsito dos tericos militares contemporneos. Clausewitz compartilhava do seu desejo de

definir e de dar uma resposta s questes prticas da guerra moderna, e mais do que nunca nos anos em

que esteve apaixonadamente envolvido em reconstruir o Exrcito Prussiano para o segundo confronto

com Napoleo. Mas, tanto no terreno da lgica quanto no do realismo, tornou-se ctico com relao ao

vnculo direto existente entre a teoria e o desempenho, que os tericos consideravam certo. O seu

estudo da filosofia Kantiana, antes de 1806, deu-lhe pelo menos algumas das ferramentas intelectuais

de que necessitava para esclarecer as suas dvidas - sendo que as coisas mais importantes que absorveu

daquele estudo foram a viso da teoria defendida pelos escritores do antigo Iluminismo sobre esttica, e

o seu conceito de meios e de propsito, que veio a desempenhar um papel penetrante em Da

Guerra. Um ensaio, Arte e Teoria da Arte ilustra a sua utilizao da esttica para explorar a violenta

arte de derrotar o seu inimigo. A arte, escreveu ele, uma aptido desenvolvida. Para que se

expresse deve ter um propsito, como toda aplicao das foras existentes, e para aproximar-se deste

propsito preciso ter meios. . . . Harmonizar propsito e meios criar. Arte a capacidade de criar. A

teoria da arte ensina esta harmonizao [de propsito e meios] at onde este conceito pode faz-lo.

Assim, podemos dizer: a teoria a representao da arte atravs de conceitos. Podemos ver

facilmente que isto constitui a totalidade da arte, com duas excees: talento, que fundamental para

tudo, e prtica - nenhum dos quais pode ser o produto da teoria.10 Em suma, at mesmo a teoria mais

realista nunca pode se igualar realidade. Ocorre que todas as tentativas no sentido de estabelecer

regras com fora normativa foram inteis numa atividade como o combate, e que a teoria militar nunca

pode ser imediatamente utilitria. Como escreveu Clausewitz no mesmo ensaio, as regras no se

destinam a casos isolados e a ao nestes casos s pode ser determinada aplicando-se os conceitos de

propsito e de meios.11 Tudo que a teoria poderia fazer dar ao artista ou ao soldado pontos de

referncia e padres de avaliao em reas especficas de ao, no com o propsito maior de dizer-lhe

como agir, mas de desenvolver a sua capacidade de julgar.

14

Era este processo de aperfeioamento da capacidade de julgar e do tato instintivo do indivduo que

age que constitua a funo pedaggica da teoria, no a redao de regras para serem aprendidas

mecanicamente. (Um outro importante aspecto pedaggico da teoria, importante para Clausewitz

pessoalmente, estava relacionado com o processo criativo. Ao elaborar uma estrutura analtica para a

guerra, Clausewitz fortaleceu as suas aptides intelectuais e implementou o programa de auto-

educao do qual no havia se desviado desde a adolescncia.) Mas embora somente uma sria

investigao

_________________ 10 Geist und Tat, pag. 159. O ensaio no possui data, mas provavelmente foi escrito durante o perodo das reformas. 11 Idem, pag. 162.

terica pudesse deixar a mente livre, Clausewitz acreditava que a maioria dos homens no era capaz

de obter um conhecimento intelectual profundo das reas complexas da atividade humana, nem estava

muito interessada em faz-lo. Para ajud-los atravs da confuso da guerra era necessrio que houvesse

guias relativamente slidos. Como estes guias poderiam ser fornecidos? De acordo com Clausewitz, a

experincia j tinha feito uma grande parte, mas no fim os guias de conduta adequados s seriam

obtidos atravs de uma anlise abrangente e cientfica.

Este era o lado cognitivo da teoria. As anlises no utilitrias, preocupadas apenas em obter uma

compreenso mais profunda, poderiam provocar uma melhora do desempenho operativo e estratgico,

mas para Clausewitz a investigao cientfica no precisava de justificativas. Embora nunca tivesse

perdido o interesse pelos aspectos militares, naquele momento uma compreenso como esta era o que

mais importava para ele, e foi a esta tarefa que Da Guerra se dedicou.

Quando Clausewitz pela primeira vez comeou a pensar em escrever um estudo que iria explorar

a totalidade da guerra, no apenas algumas das suas partes, ele escolheu como modelos intelectuais

livros como De lEsprit des lois, de Montesquieu, e Crtica da Razo Prtica, de Kant. Se na sua

verso final Da Guerra manteve pouca semelhana com estas obras, elas apesar disto do alguma

indicao sobre o mtodo empregado pelo seu autor. Anteriormente classifiquei o seu mtodo como

dialtico. Ele era, mas num sentido especial. Ele certamente no procedeu de uma maneira formal e

altamente estruturada. A tese, a anttese e a sntese de Hegel, para mencionar uma abordagem que foi

muitas vezes lida em Da Guerra, pareceriam inadequadas a Clausewitz, como pareceria qualquer

sistema cuja simetria lgica e intelectual fosse obtida s custas da realidade. Mas muitas vezes ele

desenvolveu as suas idias no que poderia ser chamada de uma forma modificada da tese e da anttese,

que lhe permitiu explorar as caractersticas cientficas de um determinado fenmeno com um elevado

15

grau de exatido. Propsito e meios, estratgica e ttica, teoria e realidade, inteno e execuo, amigo

e inimigo - estes so alguns dos opostos que ele define e compara, no apenas para obter uma

verdadeira compreenso de cada membro do par, mas tambm para pesquisar os vnculos dinmicos

que uniam todos os elementos da guerra num estado de interao permanente. Uma das caractersticas

marcantes desta maneira de pensar que ela define cada elemento da maneira mais clara possvel, ao

mesmo tempo em que insiste na ausncia de limites distintos. Guerra e poltica, ataque e defesa,

inteligncia e coragem - para mencionar alguns dos outros pares - nunca so opostos absolutos; em vez

disto, um flui dentro do outro.

Uma vez mais, a filosofia alem, juntamente com determinadas premissas analticas e estruturais

das cincias naturais, proporcionaram a Clausewitz uma atitude fundamental e as ferramentas

intelectuais necessrias para express-la. A crena na necessidade de averiguar a essncia de cada

fenmeno, ou a idia que o rege - como a violncia, que de acordo com Clausewitz era a idia

essencial do fenmeno guerra - associada a uma viso universal e a uma percepo de que os

pequenos detalhes continham a explicao para as grandes foras, assim como o conhecimento de uma

flor era fundamental para a compreenso da natureza, ou saber porque e como um homem lutava era

essencial para compreender a guerra.

Foi de acordo com esta perspectiva cultural mais ampla, bem como com as suas tendncias

pessoais, que Clausewitz evitou fazer generalizaes e, ao mesmo tempo, rejeitou a anarquia do

pragmatismo puro. O seu propsito era obter uma estruturao lgica da realidade. Ele acreditava que

isto poderia ser feito se a busca de idias reguladoras e a sua elaborao fossem informadas e

controladas pelo respeito que os tericos tinham pela realidade presente e passada. Consequentemente,

o seu mtodo consistia num permanente dilogo entre a observao, a interpretao histrica e o

raciocnio terico. medida em que a anlise progredia, tentava levar em conta todos os elementos da

guerra em suas dimenses atuais e passadas, adaptar-se a todos, integrar todos eles e nunca ressaltar um

em detrimento dos outros. Veremos que esta caracterstica tambm se mantm verdadeira na teoria

resultante, que flutua, disse Clausewitz, entre os principais fenmenos da guerra, sem ressaltar

qualquer deles em particular. Os perigos do exagero, de ser ofuscado pelas condies atuais,

principalmente a defesa injusta e parcial, so assim em grande parte evitados.

Um exemplo da maneira pela qual o mtodo de Clausewitz transformou a realidade numa forma

analisvel fornecida pela sua criao do conceito de frico. Ele empregou pela primeira vez o termo

durante a campanha de 1806, para descrever as dificuldades que Scharnhorst enfrentava para convencer

16

o alto comando a tomar decises, e as dificuldades adicionais para fazer com que as decises fossem

implementadas. Incerteza, ignorncia, confuso, cansao, erros e outros inmeros elementos

imponderveis - todos interferiam no emprego efetivo da fora. Durante o perodo das reformas

Clausewitz ampliou o conceito e vinculou-o a outras idias. At 1812 ele havia compreendido

perfeitamente as suas implicaes tericas. Um ensaio que ele escreveu para o Prncipe Herdeiro no

fim do seu perodo como tutor terminava com uma seo sobre frico, em que tanto o contedo como

a redao tornaram-se a base do captulo A Frico na Guerra de Da Guerra e para a anlise da

frico

que se estende por toda a obra.12 Travar uma guerra muito difcil, escreveu ele, mas a dificuldade

no

que seja necessrio possuir erudio e um grande talento . . . no existe uma grande arte em conceber

um bom plano de operaes. Toda a dificuldade reside nisto: Em combate, permanecer fiel aos

princpios que foram estabelecidos para ns.

Para explicar porque deve ser assim, Clausewitz recorreu a uma analogia: A conduo da guerra

se parece com o funcionamento de uma mquina complexa, com um tremendo atrito, de modo que as

operaes que podem ser facilmente planejadas no papel s podem ser executadas atravs de um

grande esforo. Consequentemente, a livre determinao e a inteligncia do comandante encontram-se

tolhidas a todo momento e necessrio que haja uma notvel energia da mente e do esprito para

superar esta resistncia. At mesmo muitas idias boas so destrudas pela frico, e devemos realizar

de uma maneira mais simples e modesta o que de uma forma mais complicada teria apresentado

melhores resultados.

A frico, continua ele, mesmo se for criada por foras fsicas - mau tempo, por exemplo, ou

fome - sempre exerce um efeito psicologicamente inibidor. A energia psquica deve contribuir portanto

para super-la: Em combate, as nossas imagens e percepes fsicas so mais intensas do que as

impresses que obtivemos anteriormente atravs de uma reflexo amadurecida. Mas elas so apenas a

aparncia exterior das coisas que, como sabemos, raramente correspondem exatamente sua essncia.

Corremos portanto o risco de sacrificar uma reflexo amadurecida dando preferncia s primeiras

impresses. Ante a estas presses, os homens devem manter as suas convices e a confiana no seu

conhecimento e no seu critrio, seno se rendero fora da frico. A frico, viria ele concluir em

Da Guerra, o nico conceito que contm mais ou menos os fatores que distinguem a guerra real da

guerra no papel.13

17

Ao criar o conceito de frico, ele tornou um dos elementos mais importantes em sua imagem da

guerra - o acaso - sujeito anlise terica. Na medida em que a frico interferia nas aes de algum,

ela s representava os aspectos negativos do acaso. Os aspectos positivos do acaso eram representados

pela fora igualmente penetrante da frico do lado do inimigo. Para avaliar a importncia deste

fenmeno devemos nos lembrar de que os escritores militares do Iluminismo, ao mesmo tempo em que

muitas vezes reconheciam o poder do fortuito, esforavam-se para reduzir a esfera de ao do acaso.

Os seus sucessores espirituais, Bulow e Jomini, lutaram para atingir o mesmo propsito atravs de

sistemas que ampliavam as regras imensamente detalhadas do Sculo XVIII para marchas,

acampamentos e

____________ 12 O ensaio, Die wichtigsten Grundsatze des Kriegfuhrens . . . , foi apresentado em ingls por H. Gatzke, com o ttulo um tanto

enganoso de Princpios da Guerra (Harisburgo, Filadlfia, 1942). Com relao s citaes seguintes, que constam da minha traduo, compare-as com Gatzke, pag. 60, 61 e 67.

13 A Frico na Guerra, Livro Um, Captulo Sete de Da Guerra.

dispositivos tticos para a estratgia. O xito poderia ser assegurado escolhendo-se as tcnicas

corretas. Outros escritores afirmavam que a guerra moderna era anrquica, suscetvel apenas ao

tratamento emprico. Scharnhorst, ao contrrio, sustentava que o comportamento natural das sociedades

e dos indivduos na guerra poderia ser compreendido e, portanto, at certo ponto orientado, e

Clausewitz deu a esta crena uma forma terica. Na sua opinio, excluir ou negar o acaso era ir contra

a natureza. Na realidade, o acaso deveria ser bem vindo porque fazia parte da realidade. No era apenas

uma ameaa, mas tambm uma fora inegvel a ser explorada. Napoleo expressou perfeitamente esta

idia em sua mxima operativa: Engaje o inimigo e veja o que acontece. O comandante colocava-se no

caminho do acaso. A fora que tinha sua disposio e a sua determinao de utiliz-la permitiam que

ele transformasse o acaso numa nova realidade.

A fora que poderia criar e explorar esta realidade da maneira mais eficaz era o gnio. Assim, o

conceito de frico veio a constituir na vida exterior o oposto do resultado das anlises anteriores da

vida interior do indivduo, feitas por Clausewitz. A observao e a reflexo o haviam levado a elevar o

gnio - a combinao harmoniosa de dons excepcionais e, por extenso, de qualidades intelectuais e

emocionais em geral - a uma posio de destaque em suas conceituaes da guerra. Os conceitos de

gnio, de frico e de acaso, em suas mltiplas interaes, possibilitam agora que o terico submeta as

vastas reas da realidade militar a uma anlise lgica e sistemtica.

Durante a guerra de 1812, Clausewitz serviu como Oficial de Estado-Maior em diversos

comandos russos, sendo que o seu desconhecimento do idioma o limitou ao papel de observador at o 18

fim de Dezembro, quando tomou parte nas conversaes entre as autoridades russas e o comandante do

destacamento prussiano na Grande Arme, que levaram estratgica e politicamente importante

separao das foras prussianas do controle francs. Enquanto os combates deslocavam-se para oeste,

ele concebeu o plano para organizar a milcia da Prssia Oriental, mais um passo significativo no

processo de livrar a Prssia do domnio Francs. Na campanha da primavera de 1813, ainda usando o

uniforme russo, trabalhou como assessor de Scharnhorst e de Gneisenau at a morte do primeiro e, em

seguida, tornou-se Chefe do Estado-Maior de um pequeno exrcito internacional que protegia o flanco

dos Aliados no Bltico. Embora alguns monarquista rigorosos, inclusive o prprio Rei, continuassem a

se ressentir da sua recusa anterior de seguir a poltica oficial e lutar para os franceses, ele obteve

finalmente a sua readimisso ao Exrcito Prussiano. Durante a campanha de Waterloo serviu como

Chefe do Estado-Maior de um dos quatro destacamentos que constituam o Exrcito de campo

prussiano e lutou em Ligny e em Wavre, onde o seu destacamento imobilizou a fora superior de

Grouchy, at que o principal Exrcito francs estivesse derrotado. Em 1816 tornou-se Chefe do Estado-

Maior do novo comando de Gneisenau, com sede em Coblenz, no Reno. Dois anos mais tarde foi

transferido para Berlim, como Superintendente da Academia de Guerra. Suas novas funes no eram

nem rduas nem especialmente gratificantes. Procurou diversas vezes trocar o Exrcito pela

diplomacia, mas como a sua poltica reformadora o havia tornado inaceitvel para a corte, continuou

por doze anos em sua funo administrativa, no descontente, compensado pela a oportunidade de

dedicar uma grande parte do seu tempo ao estudo e a escrever.

Foi nos primeiros anos da paz, aps o violento intervalo das ltimas campanhas contra Napoleo,

que Clausewitz voltou seriamente ao trabalho terico. Uma nota encontrada em seus papis, que a sua

esposa cita em sua introduo a Da Guerra, indica que enquanto estava servindo na Rennia comeou

a escrever pequenos ensaios sobre estratgia, destinados aos conhecedores do assunto.14 Nenhuma

dessas peas parece ter sobrevivido, mas possumos pelo menos um estudo preliminar do qual

Clausewitz esperava extrair o ensaio aforstico que estava pretendendo escrever: Do Avano e da

Pausa na Atividade Militar. Ele forneceu a base para o Captulo Dezesseis do Livro Trs de Da

Guerra, que, por sua vez, elabora um dos argumentos chave no primeiro captulo da obra: a guerra real

fica aqum da violncia total que em tese a sua essncia porque, entre outros motivos, a guerra no

consiste num nico ato, ou num grupo de aes simultneas, mas estende-se ao longo do tempo, com

perodos alternados de ao e de inao. Um outro ensaio, muito menos importante, pode ter sido a

anlise de uma organizao do Exrcito que normalmente publicada como um apndice na edio

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alem de Da Guerra. Os seus pontos essenciais podem ser encontrados no Captulo Cinco do Livro

Cinco.

Estes ensaios, concisos como so, no se equiparam extrema brevidade dos captulos das obras

de Montesquieu, que, escreve Clausewitz, serviram-lhe naquela poca como uma espcie de modelo

geral. Nem a estrutura da sua argumentao assemelha-se de Montesquieu. Mas as caractersticas de

De lEsprit des lois e a personalidade do seu autor indicam com bastante clareza o fundamento

para o sentimento de afinidade de Clausewitz. A introduo, apenas para mencionar um exemplo,

contm ____________________

14 M. v. Clausewitz, Prefcio, Da Guerra. A citao do seu marido aparece na pag. 65. Cronologicamente esta a segunda das quatro notas introdutrias escritas por Clausewitz para Da Guerra. A primeira, Prefcio do Autor, datada de 1816 a 1818, faz referncia aos ensaios que ele estava escrevendo naqueles anos (pag. 62 e 63). A segunda, contida no prefcio da sua esposa, faz referncia ampliao do esquema original. A terceira, datada de 10 de Julho de 1827, constitui a primeira metade da Observao e menciona o plano de Clausewitz de fazer uma reviso completa dos Livros Um a Seis e dos esboos para os Livros Sete e Oito (pag. 70 e 71). A segunda parte da Observao foi escrita mais tarde, possivelmente em 1830, e indica que Clausewitz no havia avanado muito em sua reviso (pag. 62 e 72). frases que o prprio Clausewitz poderia ter escrito: Eu peo um favor que temo que no venha a

ser

concedido - no julguem o trabalho de vinte anos num s momento. Aprovem ou rejeitem todo o

trabalho, no algumas das suas afirmativas. Se algum quiser procurar saber a inteno do autor, ela s

poder ser revelada no esquema do trabalho. Um trecho posterior, em que Montesquieu afirma que

enquanto estava escrevendo no conhecia regras nem excees, dificilmente pode ser melhorado para

descrever a atitude de Clausewitz com relao ao estudo da guerra.15

Os ensaios, cada um destacando um determinado fenmeno ou conceito, tinham a vantagem de

revelar com maior clareza as principais caractersticas de cada um deles, mas a anlise inevitavelmente

fragmentada deixou Clausewitz insatisfeito. medida em que acrescentava novas sees e revia as

existentes, a caracterstica aforstica e condensada da sua obra deu lugar a um tratamento mais

minucioso, que correspondia sua preferncia por um desenvolvimento sistemtico das idias e pela

aplicao uniforme de conceitos a uma gama mais ampla de fenmenos. Coincidentemente, ele achava

que uma anlise mais ampliada e mais explcita seria adequada a um pblico mais amplo do que o que

originalmente tinha em mente. O resultado foi Da Guerra, basicamente como o conhecemos hoje,

exceto pelas revises limitadas feitas a partir de 1827.

Os leitores desta obra, e dos estudos que levaram a ela, podem perguntar porque Clausewitz

achou que era necessrio afirmar repetidamente que a violncia a essncia da guerra, e considerar

esta reiterao uma insistncia pedante no bvio. Mas Clausewitz ressaltou este ponto, no s porque a

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experincia e o estudo do passado o haviam convencido da sua veracidade, mas ele estava tambm

dando uma resposta ao nmero surpreendentemente elevado de tericos que continuavam a afirmar que

as guerras poderiam ser ganhas atravs de manobras e no atravs do derramamento de sangue. De

qualquer modo, o que importa so as dedues que ele extraiu do que era por si s evidente. Quando

tinha 24 anos de idade, havia escrito que a guerra deve ser sempre travada com a maior quantidade de

energia possvel - que apenas as operaes mais decisivas estavam de acordo com a natureza da

guerra.16 Oito anos depois, ensinava ao seu pupilo, o Prncipe Herdeiro, que a guerra exigia sempre a

mais completa mobilizao de recursos e a sua utilizao mais vigorosa.17 Havia aqui implicaes

especficas decorrentes do conceito de guerra absoluta, da guerra que, de uma maneira ideal,

deveria ser travada com o mximo de violncia - de uma maneira ideal porque a violncia extrema

estava de

__________________ 15 Montesquieu, De lEsprit des lois, Gnova, 1749, pag. iii e vi. 16 Plano de Operaes, Strategie aus dem Jahr 1804, pag. 51 e 52. 17 Princpios da Guerra, pag. 46.

acordo com a sua natureza. Se a guerra era um ato de fora, Clausewitz no podia perceber quaisquer

limites lgicos, intrnsecos ou auto-impostos, ao uso da fora. A sua insistncia nos extremos durante

a era Napolenica decorria, evidentemente, no s da lgica, mas tambm da situao histrica. Entre

1792 e 1815 eram de fato necessrios um esforo e uma disposio excepcionais para correr grandes

riscos para preservar a independncia da Europa, ou para reconquist-la. Mas mesmo nos anos de

maior desafio, Clausewitz reconhecia que a exigncia da violncia absoluta ou extrema, embora

logicamente vlida, raramente era atendida na realidade. A guerra absoluta era uma fico, uma

abstrao que servia para unificar todos os fenmenos militares e ajudava a tornar possvel o seu

tratamento terico. Na prtica, o uso da fora tendia a ser limitado. O poder de frico reduzia o

absoluto terico s formas modificadas que assumia na realidade. A principal parte de Da Guerra, no

revista, est dominada pela relao dialtica mutuamente esclarecedora existente entre a guerra

absoluta e a guerra real.

Mas era realmente verdade que a guerra real sempre modificava o absoluto terico? E, em

segundo lugar, era vlido deduzir, a partir do conceito de guerra absoluta, que todas as guerras,

quaisquer que sejam as suas causas e os seus propsitos, devem ser travadas com o esforo mximo?

Em 1804, Clausewitz j fazia uma distino entre as guerras travadas para exterminar o oponente e

destruir a sua existncia poltica, daquelas travadas para enfraquecer o oponente o suficiente para que

pudesse impor condies [a ele] na conferncia de paz.18 Quanto ainda estava elaborando esta

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distino, Clausewitz negava que o fato dos propsitos serem limitados justificasse uma limitao dos

esforos. Ele argumentava que, mesmo que no se pretendesse mais do que obrigar o oponente a

concordar com