da escrita de si à escrita fora de si. uma leitura do objeto gritante e Água viva

225
MARIA DAS GRAÇAS FONSECA ANDRADE Texto apresentado ao Programa de Pós- Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, para Defesa de Tese de Doutorado. Orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury. Belo Horizonte 2007 D A ESCRITA DE SI À ES CRITA FORA DE SI : UMA LEITURA DE E DE CLARICE LISPECTOR O BJETO G RITA NTE Á GUA VIVA

Upload: carlacarbatti

Post on 20-Jul-2016

37 views

Category:

Documents


12 download

TRANSCRIPT

  • MARIA DAS GRAAS FONSECA ANDRADE

    Texto apresentado ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras: Estudos Literrios

    da Faculdade de Letras da Universidade

    Federal de Minas Gerais, para Defesa de

    Tese de Doutorado.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda

    Ferreira Cury.

    Belo Horizonte

    2007

    DA ESCRITA DE SI ESCRITA FORA DE SI :

    UMA LEITURA DE E

    DE CLARICE LISPECTOR

    O BJ ETO G RITA N TE G UA V IV A

  • Ele foi , o que um crime num homem pblico. O

    sacrifcio de um lder ou de um santo ou de um artista que

    chegaram quilo que so exatamente por terem de sido de incio

    altamente pessoais o seu sacrifcio o de no o serem mais. A

    cruz deles esquecer-se de sua prpria vida. nesse esquecer-se

    que acontece ento o fato mais essencialmente humano, aquele

    que faz de um homem a humanidade: a dor pessoal adquire uma

    vastido em que os outros todos cabem e onde se abrigam e so

    compreendidos; pelo que h de amor na renncia da dor pessoal,

    os quase mortos se levantam.

    Clarice Lispector

    pessoal

  • Para Maria urea, me de ouro, aurifulgente, auriazul, auridulce.

    Para Moiss, que soube abrir caminho em meio s guas salgadas do mar da vida.

    Para Milla, porque ler uma felicidade.

  • AGRADECIMENTOS

    A minha me e meu pai, urea e Moiss, porque o amor tem nome.

    A Milla, Mateus e Eduardo, sobrinhos amados.

    A Paulo, Nel e Juninho, pelos laos de famlia.

    A Jaqueline e Rafaela, que vieram ampliar os laos de famlia.

    A Paulo de Andrade, pelo antes, durante e depois; pela preciosa colaborao na consulta

    Fundao Casa de Rui Barbosa e pela reviso cuidadosa.

    A Raquel Chagas e Marco Aurlio, pela acolhida generosa na chegada a Belo

    Horizonte.

    A Alice e Ricardo Castello Branco, porque o Rio com vocs ficou mais familiar.

    A Sra. Terezinha Canado, que tem alma de passarinho e com quem aprendo as

    virtudes.

    A Mrcio Roberto Soares Dias, Almiralva e Las, que me deram que comigo

    repartiram o po em fraternidade.

    A Railda Menezes de Souza pela apurada correo do texto, mas principalmente pela

    amizade desde sempre.

    Aos amigos Marclia de Souza, Welington Gomes, Rosane Amorim e Rose porque a

    amizade mesmo como o vinho: quanto mais o tempo passa, melhor fica.

    A Sra. Lydia, Sra. Durvalina, Sra. Maria Andrade, velhas amigas queridas.

    A Profa. Maria Helena Carneiro de Paula, mestra sempre.

    Ao Prof. Dr. Georg Otte, pela orientao inicial.

    A Lucia Castello Branco, que me apontou caminhos no branco.

    A Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury, por ter me aceito em meio ao caminho; pela

    pacincia, incentivo e amizade.

  • Aos professores do curso de Doutorado: Ruth Silviano Brando, Lucia Castello Branco,

    Ram Mandil, que muito me ensinaram.

    s professoras presentes no meu Exame de Qualificao, Lucia Castello Branco e

    Maria Esther Maciel, pelas sugestes apontadas, pelas indicaes bibliogrficas.

    A Profa. Llia Parreira Duarte e Dr. Idalmo Duarte, que afianaram a minha idoneidade.

    A Tania Kaufmann, pela delicadeza para comigo, pelo incentivo constante.

    A Ana Cludia da Silva, pelo companheirismo, pela cumplicidade em torno das

    encantorias.

    A Jussara Neves e Rita Abreu Maia, companheiras de ofcio e amigas prezadas.

    A Carlos Ferraz, parce que la vie cest trs jolie! Aussi pour la amiti.

    A Nilton Milanez, pela traduo, pela amizade em meio aos livros.

    A Pedro Kunhavalik, pela ajuda bibliogrfica.

    A Marilene Ges, Iria Frana, Luciene Arajo, pelos cuidados cotidianos.

    Aos funcionrios do POSLIT, sobretudo Letcia.

    Aos colegas do Departamento de Estudos Lingsticos e especialmente da

    rea de Teoria e Literatura, pelo apoio e compreenso.

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia pelas condies necessrias para o

    desenvolvimento desta pesquisa.

  • SUMRIO

    Registro dos fatos antecedentes............................................p.12

    Cap. I Ainda impossvel ou Um pssaro invade a escrita..............p.16

    Cap. II Estrela acesa ao entardecer.......................................p.68

    Cap. III O segredo impessoal de Clarice Lispector....................p.126

    Cap. IV A potica das guas..............................................p.183

    Por que adeus?................................................................p.227

    Referncias Bibliogrficas..................................................p.230

  • ABREVIATURAS

    Utilizaremos abreviaturas para as obras de Clarice Lispector citadas ao longo do

    trabalho, conforme o que se segue abaixo:

    ALP Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (romance)

    AV gua viva (fico)

    BF A bela e a fera (contos)

    CI De corpo inteiro (entrevistas)

    DM A descoberta do mundo (crnicas)

    FC Felicidade clandestina (contos)

    HE A hora da estrela (romance)

    LE A legio estrangeira (contos)

    LF Laos de famlia (contos)

    ME A ma no escuro (romance)

    MMP A mulher que matou os peixes (literatura infantil)

    PSGH A paixo segundo G. H. (romance)

    OEN Onde estiveste de noite (contos)

    OG Objeto gritante (prosa)

  • PNE Para no esquecer (contos e crnicas)

    SV Um sopro de vida: (pulsaes prosa)

    VIL A vida ntima de Laura (literatura infantil)

    VCC A via crucis do corpo (contos).

  • RESUMO

    Esse trabalho consiste em uma leitura das duas verses de ,

    prototextos de , de Clarice Lispector, que se encontram disponveis na

    Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e ainda no vieram a pblico. Este

    trabalho tambm tem como objeto o livro publicado em 1973.

    Nosso objetivo consistiu em acompanhar a trajetria de composio de

    , observar as mudanas ocorridas na passagem de , que

    consideramos uma escrita de si (autobiogrfica pessoal, ntima) para , uma

    escrita fora de si (exterior, impessoal, ).

    Trata-se de pesquisa bibliogrfica onde se discute a questo de gnero em

    Clarice Lispector para sustentar que um dirio, ainda que no exatamente

    nos moldes de um dirio ntimo. Vimos que foi composto a partir de alguns

    textos j publicados anteriormente em e no ,

    procedimento, alis, j utilizado pela autora em

    , de 1969.

    Fizemos um levantamento de todos os textos j publicados por Clarice e que

    aparecem em , sendo, contudo, eliminados em e tambm de

    outros que permaneceram como parte do texto de .

    As questes da escrita de si, da autoria, da citao, fragmento, do dirio so

    tratadas atravs dos tericos Michel Foucault, Roland Antoine Compagnon,

    Batrice Didier, Gaston Bachelard e outros.

    Palavras-chave: Clarice Lispector, , , escrita de si, dirio.

    Objeto gritantegua viva

    gua viva Objeto gritante

    gua vivaex-tima

    gua vivagua viva

    A legio estrangeira Jornal do Brasil

    Uma aprendizagem ou O livro dos

    prazeres

    Objeto gritante gua vivagua viva

    Objeto gritante gua viva

  • RSUM

    Cette tude consiste dans une lecture des deux versions de ,

    proto-textes de , de Clarice Lispector. Telles versions sont disponibles la

    Fondation Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, et elles ne sont pas encore publies.

    Ce travail a aussi comme objet le livre publi en 1973.

    Notre objectif vise suivre la trajetoire de la composition de , observer

    les changements subis dans le passage de , lequel nous considerons une

    criture de soi (autobiographique, personnel, intime), pour une criture hors

    de soi (extrieur, impersonnel, ).

    Il sagit donc dune recherche bibliographique qui discute la question de genre

    chez Clarice Lispector en soutenant que est un journal, mme sil ne se

    prsente pas exactement sur les modles dun journal intime. Nous avons soulign que

    a t compos partir de quelques textes publis ultrierement dans

    et le , procdure dj utilise pour lauteur dans

    , en 1969.

    Nous avons poursuit une slection de tous les textes publis pour Clarice qui

    apparaient dans , en tant, par contre, elimins soit de soit

    dautres textes qui le composaient.

    Les questions autour de lcriture de soi, de lauteur, du journal sont traites

    travers des thoriciens Michel Foucault, Roland Barthes, Antoine Compagnon, Batrice

    Didier, Gaston Bachelard dentre autres.

    Mots-cls: Clarice Lispector, , , criture de soi, journal.

    Objeto gritantegua Viva

    gua vivaObjeto gritante

    gua Viva, ex-time

    gua viva

    gua Viva A legio estrangeira Jornal do Brasil Uma

    aprendizagem ou O livro dos prazeres

    Objeto gritante gua Viva

    Objeto gritante gua viva

  • REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES

    S no inicio pelo fim que justificaria o comeo como a morte

    parece dizer sobre a vida porque preciso registrar os fatos

    antecedentes.

    Clarice Lispector

    este trabalho propusemo-nos, inicialmente, estudar o movimento do que

    nomeamos no projeto da em trs livros de

    Clarice Lispector: , e . Contudo, no

    decorrer de nossa pesquisa no Arquivo Clarice Lispector do Museu de Literatura

    Brasileira da Fundao Casa de Rui Barbosa, no Rio de defrontamo-nos com

    duas outras verses anteriores publicao de . Ambas intituladas

    .

    Decidimos, em virtude da extenso deste material (um composto de 185 pginas

    e o outro, de 188 pginas), optar por focar nosso estudo em e as verses de

    , disponveis no Arquivo Clarice Lispector, j que no h trabalhos sobre

    esse manuscrito, conforme declara Snia Roncador:

    Contudo, apesar da existncia dessas duas cpias de , e, tambm, do fato de

    estarem disponveis para eventuais consultas, nenhum crtico ou estudioso arte de

    Clarice levou adiante o projeto de examinar esse manuscrito. Com exceo de Marta

    Peixoto, que no ensaio A woman writing: fiction and autobiography in

    analisa o processo de ficcionalizao de (Roncador, 2002, p. 54).

    Na verdade, esse trabalho, ao qual Snia Roncador se refere, foi traduzido para o

    portugus e publicado, em 2004,1 com o ttulo Uma mulher escreve: fico e

    autobiografia em e .2

    Podemos pensar que, se no h trabalhos sobre esse manuscrito, talvez seja

    porque nem sempre valorizado pela crtica e teoria literatura o lidar com a fonte

    primria, no por falta de material, mas talvez pelo preconceito ante o trabalho artesanal

    que ele pressupe: levantamento, classificao e decifrao (Cury, 1992, p. 98-99).

    1 Dez anos aps a publicao pela University of Minnesota Press.2 Cf. : gnero, narrativa e violncia em Clarice Lispector. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Vieira e Lent. p. 137-176.

    escrita de si escrita fora de sigua viva A hora da estrela Um sopro de vida

    gua viva Objeto gritante

    gua vivaObjeto gritante

    Objeto gritante

    The Stations of the body gua viva

    gua viva A via crucis do corpo

    Fices apaixonadas

    N

  • Julgamos, inicialmente, que desse modo nossa proposta estudo permaneceria

    a mesma, mudando apenas o corpus literrio a ser analisado. Em certo sentido era isso

    mesmo, mas o fato de ir pesquisar em acervo nos colocou diante de algumas questes,

    posto que estvamos diante de fontes primrias. Qual seria exatamente nosso objeto de

    estudo? ? Os manuscritos de ? Ou ambos: e os

    manuscritos de ? Ento ns nos vimos tendo que reconfigurar um objeto

    de estudo.

    Acostumado a lidar com o objeto de pesquisa j pronto o livro fetiche que reluta em se

    deixar desmitificar, o pesquisador da literatura envolvido com a fonte primria v-se na

    contingncia de ir criando no s uma metodologia pessoal de pesquisa, mas de ter de

    construir ele mesmo, passo a passo, seu objeto de pesquisa: a literatura em construo, a

    memria sua prpria e a da histria no seu contnuo fazer-se e desfazer-se (Cury, 1992, p.

    98).

    Decidimos pela ltima possibilidade: estudaramos o livro publicado, ,

    mas concomitantemente estudaramos as duas verses de , esse texto

    mantido s ocultas.

    Definido, pois, o objeto da pesquisa, apareceu-nos outra questo: desejvamos,

    por meio de nosso estudo, demarcar o prototexto de ? Concordamos que o

    estudo do prototexto, ou seja, dos rascunhos, das primeiras verses, dos projetos de

    livros nunca concludos, material importante para o gentico e histrico dos

    textos (Cury, 1992, p. 97), mas se verdade que estvamos levando em conta a

    cronologia dos textos, no era nosso objetivo elaborar uma edio gentico-crtica de

    . Embora, inevitavelmente, do cotejo entre as vrias verses vamos que se

    aclarava o mecanismo da criao, as relaes entre texto e contexto, entre as escrituras

    e os gneros (Cury, 1992, p. 95).

    Queramos algo quase impreciso, que era apenas pressagiado, antevisto, mas

    como que todo envolto em nvoa. O que pretendamos era estudar uma passagem, uma

    travessia de um texto autobiogrfico para um texto dito ficcional. Sabamos, ,

    que Alexandrino Severino havia declarado que muitos trechos autobiogrficos de

    haviam sido eliminados. Isso instigou nosso interesse: verificar

    exatamente o que foi excludo, subtrado nessa passagem de para

    . E devido a qu? No haveria a projetos de livros diferenciados?

    A verdade que a pesquisa no arquivo, ps-nos em contato com materiais com

    os quais no espervamos lidar, como correspondncias de Clarice e para Clarice,

    gua viva Objeto gritante gua vivaObjeto gritante

    gua vivaObjeto gritante

    gua viva

    gua viva

    a priori

    Objeto gritanteObjeto gritante gua

    viva

  • artigos que indicavam a recepo crtica de , entrevistas, telas pintadas pela

    autora, fotos etc.. No sem motivos que Maria Zilda Cury adverte-nos, em

    Acervos: gnese de uma nova crtica, de que a ida aos arquivos pode deslocar

    vises, que compreendidos como dilogo com o universo da criao literria, os

    acervos oferecem-se releitura (...) como um amplo texto (Cury, 1995, p. 58).

    Sentamo-nos exatamente assim, com nossa percepo modificada diante de

    tantos dados inesperados, notvamos que diante do acervo nosso objeto de estudo se

    transmudava. Mas estvamos j com , to enredados pela

    trama do texto que o arquivo, que no havia como renunciar. Era um desafio: era

    pegar ou agarrar.

    Estudando os manuscritos de nos demos conta da enorme

    quantidade de crnicas que foram publicadas no , no perodo de 1967

    a 1973, e que fazem parte de , embora muitas delas suprimidas em

    . Por isso no captulo I, Ainda impossvel ou Um pssaro invade a escrita,

    comeamos expondo uma problemtica com relao publicao nos peridicos que

    Clarice Lispector enfrentou desde sua meninice. E por que o estranhamento diante do

    texto dessa autora se estende at sua maturidade? Pela falta de enredo que tambm

    ocorre em ?

    Interessante observarmos que ela mesma, atenta a essas dificuldades enfrentadas

    para publicar seus textos, se questiona em suas crnicas se ela competente para

    escrever crnicas para o , e enquanto no se chega a uma concluso, de

    tudo ali publica: cartas aos leitores, trechos de romances de sua autoria e j publicados,

    entrevistas feitas por ela, contos e at mesmo crnicas. A partir disso o gnero literrio

    discutido para afinal o discutirmos em .

    No captulo II mostramos como o Roteiro encontrado em um dos manuscritos

    de oculta um certo mtodo de escrita de Clarice Lispector. Dos sete

    itens desse roteiro tentamos extrair os procedimentos tcnicas que a escritora utiliza

    em seu fazer literrio, mais especificamente no literrio que elegemos para

    anlise.

    No captulo III, fizemos um cotejamento das verses de com

    com a finalidade de mostrar quais trechos aparecem exclusivamente em

    , se eles podem ser tomados como trechos autobiogrficos e como se deu essa

    passagem de uma escrita de si, mais pessoal, para uma escrita fora de si, em que o eu

    suprimido, em funo da emergncia de um ele sem rosto, como nos diz Blanchot.

    gua viva

    os ps to afundados dentro

    Objeto gritanteJornal do Brasil

    Objeto gritante gua viva

    gua viva

    Jornal do Brasil

    gua viva

    Objeto gritante

    corpus

    Objeto gritante gua viva Objeto gritante

  • No captulo IV, sob a luz de , de Gaston Bachelard, expomos

    como em h uma srie de referncias a materiais lquidos, procuramos

    localiz-los para mostrar que aqui se trata de uma , por meio da qual a

    narradora toma para si o desejo de fluir da linguagem. E, escrevendo, depara-se com a

    figura emblemtica da me, do mar, do amor que se faz discurso.

    So experincias, so travessias a serem feitas por uma narradora/escritora muito

    feminina que aprende, atravs da novidade que para ela sempre o escrever, a cortar o

    excesso do texto; aprende o impossvel de tudo dizer atravs das palavras e passa a

    utilizar a entrelinha como espao para o silncio de sua escrita breviloqente.

    A gua e os sonhos

    gua vivapotica das guas

  • CAPTULO I

    AINDA IMPOSSVEL

    ou

    UM PSSARO INVADE A ESCRITA

  • Era uma vez um pssaro, meu Deus.

    m crnica intitulada Ainda impossvel,3 publicada em 19 de fevereiro de 1972

    no , peridico no qual publicou, semanalmente, uma coluna, de

    1967 a 1973, Clarice Lispector rememora suas primeiras histrias, aos sete anos, o

    comeo dessas histrias, o comeo de sua escrita infantil jamais dada a pblico:

    (...) eu gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma histria que comeasse

    assim: Era uma vez... Para crianas? Perguntaram. No, para adultos mesmo, respondi j

    distrada, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histrias aos sete anos, todas

    comeando com era uma vez. Eu as enviava para a pgina infantil das quintas-feiras no

    jornal do Recife, e nenhuma, mas nenhuma mesmo, foi jamais publicada (DM, p. 437).

    A narradora, no entanto, considerando o decorrer do tempo e as mudanas pelas

    quais havia passado, afirma que talvez agora seja possvel contar uma histria nos

    moldes de uma narrativa tradicional, j que hoje possui uma maior compreenso acerca

    de seu passado: E mesmo ento, era fcil de ver por qu. Nenhuma contava

    propriamente uma histria com os fatos necessrios a uma histria. Eu lia as que eles

    publicavam, e todas relatavam um acontecimento (DM, p. 437).

    A frase que vem a seguir parece-nos importante, embora possa at passar

    despercebida ao leitor menos atento: Mas se eles eram teimosos, eu tambm (DM, p.

    437). Por essa declarao da prpria narradora, evidencia-se seu autoconceito como

    pertinaz, obstinada. Mas a considerao posterior atenua a intensidade dessa sua

    insistncia: Desde ento, porm, eu havia mudado tanto; quem sabe agora j estava

    3 Em , publicado em 1964, encontraremos esse mesmo texto intitulado Era uma vez (Cf. LE, p. 140). Em , publicado em 1978, encontraremos esse mesmo texto republicado (Cf. PNE, p. 28). Convm esclarecer que , embora classificado como livro de contos, era, originariamente, um livro de contos, crnicas e fragmentos e foi concebido tendo uma segunda parte subintitulada Fundo de gaveta. Posteriormente, o livro foi desmembrado porque, segundo a prpria escritora, o livro foi inteiramente abafado pelo , que saiu na mesma ocasio. Agora nessa segunda edio, a tica quer publicar s os contos e depois as anotaes... (Lispector, 2005, p. 148). Desmembrado, a primeira parte foi publicada conservando o ttulo (

    ), mas a segunda diviso passou a ser editada como um livro parte e recebeu o ttulo de . Apenas um texto de ficou de fora de : A pecadora

    queimada e os anjos harmoniosos, nico texto teatral por Clarice Lispector. Esse texto s reaparecer em 2005 em , organizado por Teresa Montero e Lcia Manzo (Cf. Lispector, 2005, p. 57-69).

    Clarice Lispector

    Jornal do Brasil

    A legio estrangeiraPara no esquecer

    A legio estrangeira

    A paixo segundo G. H.

    A legio estrangeira Para no esquecer A legio estrangeira Para no esquecer

    Outros escritos

    E

  • pronta para o verdadeiro era uma vez. Perguntei-me em seguida: e por que no

    comeo? agora mesmo? Ser simples, senti eu (DM, p. 437).

    Era uma vez..., ela inicia, parecendo julgar-se agora pronta para relatar uma

    histria com acontecimentos. Um pssaro atravessa a narrativa e ento: Era uma vez

    um pssaro.... Veja que, mesmo utilizando a expresso com que se iniciam as

    narrativas infantis tradicionais, essa histria ainda no o relato de um enredo nem

    fornece detalhes. Observemos que a narradora, em vez de expor um fato, termina

    narrando, talvez pelo modo abrupto, inesperado como o irrompe no texto, o

    prprio espanto, o prprio assombro, o pasmo de que ela, a narradora-escritora,

    acometida: Era uma vez um pssaro, meu Deus (DM, p. 437).

    Realmente teimosa como se declara, Clarice narra com engenhosidade no outra,

    mas a sua prpria histria, a de algum que escreve e nesse processo se deslumbra,

    se maravilha. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era

    impossvel conclui a narradora afinal. Aqui ganha amplitude a advertncia j feita ao

    leitor com relao sua prpria : Mas se eles eram teimosos, eu tambm

    (DM, p. 437). De escritora to resoluta o que poderamos esperar? Que passasse a fazer

    concesses?

    Em 1976, um ano antes de sua morte, a escritora concede um extenso

    depoimento, no Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, a seus amigos

    pessoais Affonso Romano de SantAnna e Marina Colasanti. Nele vem baila esse

    perodo em que Clarice-criana, j redigindo suas primeiras histrias, enfrentara uma

    srie de malogros quanto publicao: No , s quintas-feiras,

    publicava-se contos infantis. Eu cansava de mandar meus contos, mas nunca

    publicavam, e eu sabia por qu. Porque os outros diziam assim: Era uma vez, e isso e

    aquilo... E os meus eram sensaes (Lispector, 2005, p. 139).

    Vemos aqui que possua pleno discernimento quanto ao fato de suas histrias

    carecerem de fatos, acontecimentos sucessivos; ao invs, o que nelas sobressaam eram

    as sensaes. A desdita que marca a carreira dessa escritora mirim subsistir em sua

    literatura, haja vista a circunstncia em que se deu a publicao de seu primeiro

    romance, .

    Em uma das conversas com Lcio Cardoso, a essa altura seu livro pela terceira vez,

    ela comentou que gostou de uma frase de , de James

    Joyce. A frase dizia: Ele estava s. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem corao

    da vida. Imediatamente Lcio sugeriu um ttulo para o livro: .

    teimosia

    Dirio de Pernambuco

    Perto do corao selvagem

    O retrato do artista quando jovem

    Perto do corao selvagem

  • Clarice aceitou a sugesto. Agora, s faltava o editor. Chico Barbosa decidiu ajud-la. Na

    ocasio, lvaro Lins dirigia a coleo Joaquim Nabuco, da editora Amerique e

    estava procurando um romance para publicar. Chico Barbosa falou-lhe que conhecia uma

    moa que tinha acabado de escrever um romance: Ela desconhecida,

    quase uma menina. Mas acho que escreveu um romance forte, embora ache que no seja

    muito bem realizado do comeo ao fim, mas um romance de impacto lvaro Lins

    interessou-se, pediu para ler o romance. Lins ficou impressionado, porm indeciso quanto

    ao valor do livro. Ento resolveu consultar Otto Maria Carpeaux. Otto no gostou do que

    leu e lvaro no publicou o romance. Quando Clarice telefonou para lvaro Lins a fim de

    saber se valia pena publicar o livro, o crtico pediu que ela ligasse na semana seguinte. Na

    segunda tentativa a resposta foi decepcionante: Olha, eu no entendi seu livro, no. Mas

    fala com Otto Maria Carpeaux, capaz dele entender. desistiu de pedir a opinio

    dos crticos. Saiu em busca de um editor. O romance foi apresentado editora Jos

    Olympio, provavelmente por Lcio Cardoso, que editava seus livros pela mais prestigiada

    editora do Rio de Janeiro. O livro foi recusado. Restou uma ltima alternativa: a editora A

    Noite, filiada ao jornal no qual Clarice trabalhava. Chico Barbosa e os demais colegas da

    redao reuniram-se e pediram ao diretor da referida editora para publicar

    . O diretor props um acordo. A editora arcava com as da publicao e a

    autora abria mo dos direitos autorais, isto , no receberia qualquer remunerao pela

    venda dos exemplares. O acordo foi selado e A Noite comprometeu-se em publicar o livro

    no final de 1943 (Ferreira, 1999, p. 95-96).

    Observemos que seu livro de estria alcanou a publicao, regulado por um

    acordo de convenincia. Vejamos que seu romance de estria foi recusado por vrias

    editoras (a histria da infncia se repetia, seu texto era rejeitado devido ao

    estranhamento que ele causava nos crticos que o leram: Olha, eu no entendi seu livro,

    no) e s atingiu a publicao com Clarice tendo que abrir mo de seus direitos

    autorais.4

    Paulo Francis, conforme depoimento concedido imprensa logo aps a morte da

    escritora, lembra que, em 1959, ela no achava editor seus livros: Em 1959

    Clarice no encontrava um editor no Brasil. Tinha fama, sim, mas entre intelectuais e

    escritores. Os editores a evitavam como a praga. bem como

    j se encontravam, h muito tempo, nas mos de amigos brasileiros que

    buscavam, sem xito, editora que se interessasse por public-los. verdade que

    , seu ltimo livro, fora publicado h quase dez anos, e que o tempo em 4 At o fim de seu percurso literrio Clarice queixava-se das vrias tradues que faziam de seus livros ou de publicaes de textos seus em antologias e das quais no tinha sequer conhecimento e, obviamente, no obtinha nenhum ganho financeiro por seus direitos No final de sua carreira ela decide ter um agente literrio para defend-la destas situaes de explorao (Cf. Lispector, 2005, p. 153-154; 166).

    .

    Perto do corao selvagem

    Laos de famlia A ma no escuro

    A

    cidade sitiada

  • que a escritora se manteve fora do Brasil contribua, tambm, para o esquecimento dela.

    Mas, segundo Paulo Francis, o fato de as editoras esquivarem-se de publicar Clarice

    Lispector se devia ao carter moderno de sua literatura, que no tinha como modelo o

    realismo socialista e representava a realidade em relances, indireta e indutivamente

    (Cf. Gotlib, 1995, p. 310 e Manzo, 1997, p. 51).

    Em , cujos manuscritos escritos de 1974 a 1977 foram

    organizados por Olga Borelli e publicados postumamente, Clarice escreve: O que me

    importa so instantneos fotogrficos das sensaes pensadas, e no a pose imvel

    dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois no sou fotgrafo de rua (SV, p.

    25-26). No se propondo a ser fotgrafo de rua, que anuncia antes a todos o espervel

    , no se dispe a retratar a realidade com grande exatido, ao invs,

    manifesta sua preferncia por algo que da ordem do imprevisto, do acidental,

    simbolizado aqui pelo , por algo que ,

    invulgar e tambm sbito, fugaz, como as sensaes-pensadas, exigindo daquele que

    fotografa a liberdade de registrar no meramente os fatos,5 mas captar o murmrio, a

    meditao secretssima: Os fatos so sonoros mas entre os fatos h um sussurro. o

    sussurro que me impressiona. (HE, p. 39). Eu passo pelos fatos o mais rapidamente

    possvel porque tenho pressa. A meditao secretssima me espera. (SV, p. 45).

    Clarice inicia o conto Os obedientes evidenciando como uma situao,

    aparentemente simples, que requereria do narrador apenas o relato e o previsvel

    esquecimento do fato, poder, por causa do descuido daquele que narra, fazer submergir

    o p do narrador, e assim a iseno no mais possvel: o narrador fica comprometido,

    perde de vista o fato inicial a ponto de no reconhec-lo mais, seno por meio de sua

    difusa repercusso. Contar obriga o narrador consciente de que toda palavra tem a

    sua sombra a pensar nos vocbulos que no falseariam o relato, a lidar com o

    fascnio que a palavra e a sua sombra, como repetir a personagem-escritora de

    (AV, p. 12).

    Trata-se de uma situao simples, um fato a contar e a esquecer.

    Mas se algum comete a imprudncia de parar um instante a mais do que deveria, um p

    afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que tambm ns nos

    arriscamos, j no se trata mais de um fato a contar, a faltar as palavras que no o

    trairiam. A essa altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se tornar

    apenas a sua difusa repercusso. Que se for retardada demais, vem um dia explodir como

    5 A respeito da questo dos fatos em e verificar Cap. I : A ciranda de dizeres e os ltimos escritos (Andrade, 1998, p. 15-21).

    Um sopro de vida

    passarinho

    pssaro que invade a escrita extra-ordinrio

    gua viva

    A hora da estrela Um sopro de vidaUm sopro de vida

  • nesta tarde de domingo, quando h semanas no chove e como hoje, a beleza

    ressecada persiste embora em beleza. Diante da qual assumo uma gravidade como diante de

    um tmulo. A essa altura, por onde anda o fato inicial? ele se tornou esta tarde. Sem saber

    como lidar com ela, hesito em ser agressiva ou recolher-me um pouco ferida. O fato inicial

    est suspenso na poeira ensolarada deste domingo at que me chamam ao telefone e num

    salto vou lamber grata a mo de quem me ama e liberta.

    Cronologicamente a situao era a seguinte: um homem e uma mulher estavam casados.

    J em constatar este fato, meu p afundou dentro. Fui a pensar em alguma coisa.

    Mesmo que eu nada mais dissesse, e encerrasse a histria com esta constatao, j me teria

    comprometido com os meus mais desconhecveis pensamentos. J seria como se eu tivesse

    visto, risco negro sobre fundo branco, um homem e uma E nesse fundo branco

    meus olhos se fixariam j tendo bastante o que ver, pois toda palavra tem a sua sombra (FC,

    p. 90-91).

    Ao contar uma situao (mesmo que esta seja simples: um homem e uma

    mulher estavam casados), ou ao escrev-la (como o faz Clarice Lispector em Os

    obedientes), preciso compreender, como a narradora de sou palavra e

    tambm o seu eco (AV, p. 18); preciso suportar a oposio dos elementos e buscar

    alcanar a harmonia secreta da desarmonia (AV, p. 13), a harmonia difcil dos

    speros contrrios (AV, p. 34): risco negro, fundo branco; homem, mulher; sol e

    sombra.

    Sigmund Freud, em A significao antittica das palavras primitivas (1910),

    afirma que um trabalho do fillogo Karl Abel, publicado em 1884, foi decisivo para que

    ele avanasse em seus estudos sobre a interpretao dos sonhos. quela altura j havia

    compreendido que

    o modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrrios e contradies bastante

    singular. Eles simplesmente a ignoram. O no parece existir, no que se refere aos

    sonhos. Eles mostram uma preferncia particular para combinar os contrrios numa unidade

    ou para represent-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, alm disso, a liberdade

    de representar qualquer elemento, por seu contrrio de desejo; no h assim, maneira de

    decidir num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrrio

    est presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo (Freud, 1988, p. 141).

    Freud, em consonncia com os intrpretes de sonhos da considerava

    que os sonhos tm uma significao e podem ser interpretados e que uma coisa num

    sonho pode significar seu oposto (Freud, 1988, p. 141). O que era ento novo para

    Freud era que o comportamento do trabalho do sonho a uma peculiaridade

    gua viva,

  • das lnguas mais antigas que conhecemos (Freud, 1988, p. 142). Acentuando a

    antiguidade da lngua egpcia, pois ela deve ter-se desenvolvido muito tempo antes das

    primeiras inscries hieroglficas, Karl Abel afirma que mesmo ento permanecia um

    bom nmero de palavras com duas significaes, uma das quais o oposto exato da

    outra (Freud, 1988, p. 142). O vocabulrio egpcio tambm possua palavras compostas

    que, apesar de combinarem os extremos de diferena, exprimiam a significao de

    somente uma das partes contraditrias uma parte que teria tido a mesma significao

    s por si (Freud, 1988, p. 143). O que primeira vista parece redundante e at ilgico

    explicado por Abel da seguinte maneira:

    O homem no foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a

    no ser como os contrrios dos contrrios, e s gradativamente aprendeu a separar os dois

    lados de uma anttese e a pensar em um deles sem a comparao consciente com os

    outros (Freud, 1988, p. 143).

    Abel, assim, tornava claro que a palavra designava a relao e a diferena entre

    os opostos (Freud, 1988, p. 143), ou seja, como conclui Freud, os nossos conceitos

    devem sua existncia a comparaes. Na linguagem escrita esta ambigidade era

    resolvida com o auxlio dos sinais determinativos que, colocados depois dos sinais

    alfabticos, lhes atribuam sua significao e no eram para serem pronunciados

    (Freud, 1988, p. 144). Abel achava que, no falar, a significao desejada da palavra era

    indicada gestualmente.

    Freud l em Abel: nas razes mais antigas que se v ocorrerem as

    significaes duplas antitticas. No curso subseqente do desenvolvimento da

    linguagem esta ambigidade desapareceu (...) (Freud, 1988, p. 144).6

    Uma palavra que originariamente comportava duas significaes separa-se, na linguagem

    ulterior, em duas palavras com significaes individuais, num processo pelo qual cada

    uma das duas significaes opostas sofre uma reduo (modificao) fontica

    particular da raiz original. (...) Em outras palavras, conceitos que s se poderia chegar

    por meio de uma anttese tornaram-se, no curso do tempo, suficientemente familiares s

    mentes dos homens, possibilitando uma existncia independente para cada uma de suas

    partes, e, em conseqncia, permitindo a formao de um representante fontico separado

    para cada parte (Freud, 1988, p. 144).

    O fundador da Psicanlise atenta ainda para outra caracterstica da lngua egpcia

    que a inverso do som bem como do sentido. Abel tenta explicar o fenmeno de 6 Mas permanece outra ambigidade, como por exemplo, atravs da ironia retrica.

  • inverso de som como um dobrar ou uma reduplicao da A esta altura Freud

    relembra o quanto as crianas gostam de brincar de inverter o som das palavras7 e quo

    freqentemente o trabalho do sonho faz uso da inverso do material representativo para

    vrias finalidades. (Aqui no so mais as letras mas as imagens cuja ordem se inverte.)

    (Freud, 1988, p. 146).

    Freud termina seu texto julgando que, devido ao carter regressivo, arcaico da

    expresso de pensamentos em sonhos, os psiquiatras melhor compreenderiam e

    traduziriam a lngua dos sonhos se soubessem mais sobre o desenvolvimento da

    linguagem (Freud, 1988, p. 146).

    E um escritor melhor compreender a lngua na qual escreve, a um s tempo

    instrumento e objeto de seu ofcio, se souber mais sobre as diversas linguagens

    humanas.8

    Autor O processo que ngela tem de escrever o mesmo processo do ato de sonhar: vo-

    se formando imagens, cores, atos, e sobretudo uma atmosfera de sonho que parece uma cor

    e no uma palavra. Ela no sabe explicar-se. Ela s sabe mesmo fazer e fazer sem se

    entender (SV, p. 39).

    Clarice concedeu poucas entrevistas ao longo de sua vida e justificou-se para o

    reprter do , em janeiro de 1971, dizendo que se sentia desconfortvel

    diante de tantas perguntas que ela no sabia responder: Quando comeam a me fazer

    muitas perguntas complicadas, me sinto como a centopia que um dia lhe perguntaram

    como ela no se atrapalhava ao caminhar com cem ps. Ela foi demonstrar sua tcnica e

    acabou desaprendendo-a. Eu tambm tenho medo disso (Lispector, 2005, p. 135).

    Embora desconfortvel, confusa ou embaraada diante das perguntas dos

    reprteres quando entrevistada, Clarice em sua atividade como reprter mostra-se

    bastante desenvolta e interessada em compreender mais sobre as diversas manifestaes

    7 A respeito da inverso do som (mettese) creio ser interessante indicar aqui a leitura de

    , de Chico Buarque. O conto infantil adulterado e Chapeuzinho Amarelo, amarelada de medo, acaba por transformar o prprio medo do lobo em brincadeira com a linguagem. De tanto o lobo gritar o prprio nome para assustar a menina LO-BO-LO-BO, o lobo vira bolo. A partir da ela se inicia na brincadeira de transformar em companheiro cada medo que ela tinha: o raio virou orri, barata tabar, a bruxa virou xabru e o diabo bodi. FIM (Buarque, 2001). Quando se pensa que a histria acabou com o indefectvel FIM, acrescentado: Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo: o Godra, a Jacoru, o Baro-Tu, o Po Bichpa e todos os trosmons (Buarque, 2001). O autor brinca deste modo com a palavra FIM, mostrando que a que comea a verdadeira histria do leitor de brincar com as palavras como o fizera Chapeuzinho Amarelo, aprendendo a tirar o medo e transformar seus prprios monstros em trosmons.8 Assim justifico, inclusive, a insero deste texto de Freud, j que, conforme sintetizou Lacan, o inconsciente est estruturado como uma linguagem. Cf. ANDRADE, Maria das Graas F. Cap. I, p. 30-31, 36-37, onde apontada uma certa primazia do inconsciente na escrita de Clarice Lispector.

    Jornal do Brasil

    Chapeuzinho Amarelo

  • artsticas, como por exemplo, a pintura.9 Vrias de suas personagens tambm so

    pintoras, chegando a desenvolver .

    A narradora de , por exemplo, uma pintora e declara que o mtodo

    que utiliza para pintar o mesmo que utiliza na escrita: Quando pinto respeito o

    material que uso, respeito-lhe o primordial destino. Ento quando te escrevo respeito as

    slabas (AV, p. 65). Em encontramos a declarao: Escrevo com

    traos vivos e rspidos de pintura (HE, p. 31). J em , a personagem

    ngela Pralini reflete sobre sua maneira singular, mpar de pintar. Para ela a pintura

    nasce como que subordinada s linhas de composio da superfcie, e desta grande

    ateno s salincias da tela de madeira que irrompe, tona uma onda de

    criatividade, sendo neste momento importante, a um s tempo, que ela, no ato de pintar,

    se submeta ao material e mantenha a sua liberdade. Trata-se, como veremos, de uma

    :

    Vivo to atribulada que no aperfeioei mais o que inventei em matria de pintura. Ou pelo

    menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste pegar uma tela de madeira

    pinho de riga a melhor e prestar ateno s suas nervuras. De sbito, ento vem do

    subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as

    um pouco mas mantendo a liberdade. (...) um modo genrico de pintar.

    : qualquer pessoa, contanto que no seja inibida demais, pode

    seguir essa tcnica de liberdade (SV, p. 55-56 grifo nosso).

    Vemos assim que tanto a tcnica de pintura quanto a de escritura de ,

    no exige um , sendo bastante para utiliz-la no ser pessoa inibida demais,

    podendo ser seguida mesmo por pessoa tmida, mas certamente , como a

    prpria Clarice se autodefinia.

    Isso tambm nos lembra o modo como Joana, personagem de

    , diz fazer suas poesias:

    Papai, inventei uma poesia.

    Como o nome?

    Eu e o sol. Sem esperar muito recitou: As galinhas que esto no quintal j comeram

    duas minhocas mas eu no vi.

    Sim? Que que voc e o sol tm a ver com a poesia?

    Ela olhou-o um segundo. Ele no compreendera... 9 Cf. entrevistas feitas para , publicadas posteriormente em . L esto entrevistados, por exemplo, os pintores Djanira, Grauben, Carlos Scliar, Iber Camargo. Em 2007 vieram luz, em , outras entrevistas, realizadas tambm por Clarice para a revista

    . No livro aparecem entrevistados mais outros pintores como Maria Bonomi, Fayga Ostrower e Caryb (Cf. Williams, 2007, p. 173-179; 214-218).

    tcnica para pintar

    gua viva

    A hora da estrela

    Um sopro de vida

    tcnica de liberdade

    E, inclusive,

    no se precisa saber pintar

    liberdadesavoir-faire

    tmida ousada

    Perto do corao

    selvagem

    Revista Manchete De corpo inteiro

    Entrevistas: Clarice LispectorManchete

  • O sol est em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e no vi as minhocas... Pausa.

    Posso inventar outra agora mesmo: sol, vem brincar comigo. Outra maior:

    Vi uma nuvem pequena

    coitada da minhoca

    acho que ela no viu.

    Lindas, pequenas, lindas. Como que se faz uma poesia to bonita?

    No difcil, s ir dizendo (PCS, p. 20-21).

    Constatamos, desse modo, que as personagens refletem, os prprios

    procedimentos da autora, tanto na pintura quanto na escrita [Alis, verdadeiramente,

    escrever no quase sempre pintar com palavras? (DM, p. 208)]. E num

    desdobramento dos interesses e desejos, o Autor de , tambm

    personagem de Clarice, diz: (...) ngela herdou de mim o desejo de escrever e de

    pintar. E se herdou esta parte minha, que no consigo imaginar uma vida sem a arte de

    escrever ou de pintar ou de fazer msica (SV, p. 88).

    E o fato dessa personagem de Clarice no conseguir imaginar uma vida sem a

    arte de escrever ou de pintar ou de fazer msica, s referenda o que dissemos antes.

    Acrescente-se que ela prpria produziu as 16 pinturas sobre madeira que hoje fazem

    parte do Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundao Casa de Rui Barbosa,

    sediada no Rio de Janeiro. Tais pinturas foram produzidas em perodo coetneo feitura

    de seus derradeiros livros e, segundo Tnia Kaufmann, a escritora no almejava

    seno a expresso, no tinha ambio esttica ao realizar aquelas pinturas (Andrade,

    2004, p. 2-3).

    Em Literatura e vanguarda no Brasil,10 Clarice afirma que sua literatura no

    lhe serve como meio de libertao.

    O que me descontrai, por incrvel que parea, pintar, e no ser pintora de forma alguma, e

    sem aprender nenhuma tcnica. Pinto to mal que d gosto e no mostro meus, entre aspas,

    quadros a ningum. relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas,

    sem compromisso com forma alguma. a coisa mais pura fao (Lispector, 2005, p.

    110).

    10 Essa palestra foi pronunciada no XI Congresso Bienal Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, realizado de 29 a 31 de agosto de 1963, no A repercusso desse pronunciamento tambm foi sentida no Brasil, e o Prof. Jos Guilherme Merquior procurou Clarice com a proposta de publicar sua palestra em revista. Mas ela recusa alegando: Imagine se eu vou lhe entregar a minha galinha dos ovos de ouro. Assim continua lendo a mesma conferncia, que, por no ter sido publicada, conserva seu ineditismo. Apresentou-a em Vitria, Belo Horizonte, Campos, Belm do Par e, por fim, em Braslia, em 1974 (Lispector, 2005, p. 93-94).

    Um sopro de vida

  • Em O Figurativo Inominvel: Os Quadros de Clarice (ou Restos de Fico),

    Lcia Helena Vianna afirma que os quadros deixados por Clarice encontraro um lugar

    de avaliao mais justo se pensados como suplementos de representao e pensamento a

    serem acrescidos a seus escritos (Vianna, 1998, p. 53).

    Assim como os quadros adotam o figurativismo, mas o

    , os textos da escritora ainda so difceis de se entender e interpretar,

    conforme ela mesma nos faz ver em entrevista concedida, em fevereiro de 1977, ao

    Programa Panorama Especial da TV Cultura. questionada quanto ao fato de

    , publicado em 1964, ser lido e relido por uma universitria de 17 anos,

    tornando-o assim o livro de cabeceira dela, enquanto um professor de portugus e

    literatura do Pedro II, apesar de ter lido o livro quatro vezes, dizia no saber do que se

    tratava. A partir dessa situao, relatada pela prpria Clarice, o entrevistador Jlio

    Lerner pergunta:

    Voc acredita que esta dificuldade prpria para apenas algumas camadas de nosso

    tempo e com novas geraes ela ser entendida de imediato ou continuar ...

    Eu no tenho a menor idia, eu no tenho a menor idia. Eu sei que antes ningum me

    entendia. Agora me entendem.

    A que voc atribui isso?

    Eu acho que tudo mudou, porque eu no mudei no.

    O que teria mudado para que...

    Eu no fiz... que eu saiba eu no fiz concesses (Lispector, 1977).

    Interessante que, em 1968, Clarice ganha um trofu por seu livro

    Uma histria policial para crianas, histria esta que ela escreveu a

    pedido-ordem de seu filho Paulo e que s, posteriormente, veio a pblico. Justamente

    ela, cujas histrias em sua infncia sequer alcanaram publicao, devido falta de

    acontecimentos, ela, cujos contos infantis eram recusados desde a sua meninice e que

    sempre foi identificada como uma escritora hermtica (... eu escrevo para poucos (...)

    DM, p. 142), premiada por sua primeira histria para crianas. Em Hermtica?,

    crnica publicada no , em 24 de fevereiro de 1968, ela escreve: Ganhei

    o trofu da criana 1967, com meu livro infantil .

    Fiquei contente, claro, mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me chamam

    de escritora hermtica (DM, p. 76).

    Concernente a esse episdio ela no deixa de inquirir seu leitor, fazendo do

    rtulo uma indagao: Como ? Quando escrevo para crianas, sou compreendida, mas

    figurativismo inominvel

    A paixo

    segundo G. H.

    O mistrio do coelho pensante

    Jornal do Brasil

    O mistrio do coelho pensante

  • quando escrevo para adultos fico ? Deveria eu escrever para os adultos com as

    palavras e os sentimentos adequados a uma criana? No posso falar de igual para

    igual? (DM, p. 76).

    Talvez possamos tomar esta pergunta para entrar na atmosfera de uma histria

    policial, como uma pista para uma outra investigao que a escritora Clarice Lispector

    estava se obrigando naquele perodo: uma escritora tida como hermtica poderia ocupar

    com competncia o lugar de cronista do e, at mesmo, alcanar assim

    uma certa popularidade? E de que modo? Ou seja: que tom usar ao escrever para jornal:

    de igual para igual ou para um leitor desacostumado a nos solilquios do

    escuro irracional? (SV, p. 26).

    Em a protagonista-escritora, mostrando no se importar com a

    caracterstica atribuda por outrem sua pintura e, agora, sua escritura, interroga,

    ironicamente, seu possvel leitor: Estarei sendo hermtica como na minha pintura?

    Porque parece que se tem de ser terrivelmente explcita. Sou explcita? Pouco se me d

    (AV, p. 65).

    O que se evidencia aqui que, para a escritora, embora ela passe a desfrutar da

    situao privilegiada de, semanalmente, poder ter seus textos publicados em jornal,

    escrever ainda a coisa impossvel, mas talvez agora pblico para o impossvel de

    seus textos.

    Escrever.

    No posso.

    Ningum pode.

    preciso dizer: no se pode.

    E se escreve.

    o desconhecido que trazemos conosco: escrever isto que se alcana. Isto ou nada

    (Duras, 1994, p. 47).

    De igual modo em , o que Marguerite Duras nos revela. Escrever: no

    se trata, portanto, de uma capacidade, de mera habilidade decorrente de treino, pois a

    prpria Clarice evidencia sua lida, seu trabalho rduo com a escrita: Adestrei-me desde

    os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a lngua em meu poder. E no entanto

    cada vez que vou escrever como se fosse a primeira vez. Cada livro meu uma estria

    penosa e feliz (DM, p. 99). Ou ainda neste outro trecho: Escrever sempre me foi

    difcil, embora tivesse partido do que se chama vocao. Vocao diferente de talento.

    difcil

    Jornal do Brasil

    gua viva

    Escrever

  • Pode-se ter vocao e no ter talento, isto , pode-se ser chamado e no saber como ir

    (DM, p. 304). Escrever o que se atinge, algo a que se chega, um resultado misterioso,

    ignorado, secreto, difcil:

    Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solido quase total, e descobrir que

    s a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor idia do livro

    significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Uma imensido vazia. Um livro

    eventual. Diante de nada. Diante de algo semelhante a escrita viva e nua, algo terrvel,

    terrvel de ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve no tem a idia de um livro, tem

    as mos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e

    nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o

    sentido (Duras, 1994, p. 19).

    Foi, pois, diante da escrita seca e nua, do vazio, da grande solido da obra (como

    quer Blanchot) que Clarice Lispector, conforme nos mostram seus personagens, se

    deparou sempre:

    (...) em torno dele soprava o vazio em que um homem se encontra quando vai criar.

    Desolado, ele provocara a grande solido.

    E como um velho que no aprendeu a ler ele mediu a distncia que o separava da palavra. E

    a distncia que de repente o separou de si mesmo. Entre o homem e a sua prpria nudez

    haveria algum passo possvel de ser dado? (...)

    Que esperava com a mo pronta? pois tinha uma experincia, tinha um lpis e um papel,

    tinha a inteno e o desejo ningum nunca teve mais que isto. No entanto era o ato mais

    desamparado que ele jamais fizera (ME, p. 164).

    Saber o contorno de uma palavra, conhecer sua paisagem, seus traados, bem

    como suas possibilidades semnticas no o bastante para que a escrita se d, para

    livrar aquele que escreve da zona erma, solitria, desrtica a que arremessado. A

    solido da obra a obra de arte, a obra literria desvenda-nos uma solido mais

    essencial. (...). Aquele que escreve a obra apartado, aquele que a escreveu

    dispensado (Blanchot, 1987, p. 11). Apartado ou dispensado, o autor deve estar,

    sobretudo, s. Para comear, o autor se pergunta que silncio esse ao redor de si. (...)

    Essa real solido do corpo transforma-se na outra, inviolvel, a solido da escrita

    (Duras, 1994, p. 14-15).

    Blanchot fala-nos da solido da obra que traga o escritor e, posteriormente, o

    leitor para essa solido essencial: A obra solitria: isso no significa que ela seja

    incomunicvel, que lhe falte o leitor. Mas quem a l entra nessa afirmao da solido da

  • obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solido (Blanchot, 1987, p.

    12).

    Escrever, no se sabe e se escreve. Em Sobre escrever, publicado em 20 de

    dezembro de 1969, Clarice afirma como escrever uma experincia movida por sua

    e que resulta em ; uma forma de trazer flor,

    conscincia contedos outrora inconscientes:

    s vezes tenho a impresso de que escrevo por simples intensa. que, ao

    escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. na hora de escrever que muitas vezes

    fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes no sabia que sabia (DM,

    p. 271).

    Em Escrevendo,11 refletindo sobre sua prpria maneira de escrever, diz-nos:

    Alm da espera difcil, a pacincia de recompor paulatinamente a viso que foi

    instantnea. E como se isso no bastasse, infelizmente no sei redigir, no consigo

    relatar uma idia, no sei vestir uma idia com palavras. O que vem tona j vem com

    ou atravs de palavras, ou no existe (LE, p. 252).

    Ao que poderamos acrescentar: No se uma frase. A frase nasce (DM, p.

    471). Barthes cita Valry: No pensamos palavras, pensamos somente frases. E

    explica-nos:

    Dizia isso porque era escritor. chamado escritor, no aquele que exprime seu pensamento,

    sua paixo ou sua imaginao por meio de frases, mas : um Pensa-

    Frase (quer dizer: no inteiramente um pensador e nem inteiramente um fraseador)

    (Barthes, 1993, p. 66).

    No caso de Clarice, a criao literria comea com frases, como ela mesma

    responde em entrevista a : Ivan Quando voc senta na (sic) mquina voc

    j sabe o que vai escrever? Clarice No sei quase nada. De repente me vem uma frase

    inteira (Lispector, 1974, p. 13). So frases, frases que vo se encadeando e constituindo

    pargrafos, que por sua vez vo se avolumando e formando notas, e as muitas notas

    reunidas comporo livros. o que ela nos diz em entrevista a respeito de seu primeiro

    livro:

    MARINA COLASANTI: Voc partiu para esse livro com uma de romance j

    visualizada ou trabalhou primeiro formando pedaos que montou num romance?

    11 Escrevendo j havia sido publicado anteriormente em , mais especificamente na segunda parte do livro subintitulada Fundo de gaveta (Cf. LE, p. 251-252).

    curiosidade intensa inesperadas surpresas

    faz

    aquele que pensa frases

    O Pasquim

    A legio estrangeira

  • CLARICE LISPECTOR: Olha... (...). Eu tive que descobrir meu mtodo sozinha. No tinha

    conhecidos escritores, no tinha nada. Por exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade,

    me ocorriam idias e eu dizia: T bem, amanh de manh eu escrevo. Sem perceber ainda

    que, em mim, fundo e forma uma coisa s. . E assim, enquanto eu

    deixava para amanh, continuava o desespero toda manh diante do papel em branco. E a

    idia? No tinha mais. Ento eu resolvi tomar nota de o que me ocorria. E contei ao

    Lcio Cardoso, que ento eu conheci, que eu estava com um monto de notas assim,

    separadas, para um romance. Ele disse: Depois faz sentido, uma est ligada a outra. A eu

    fiz. Estas folhas soltas deram (Lispector, 2005, p. 143 grifo

    nosso).

    O mtodo, conforme declara a escritora, o mtodo da da frase,

    independente da hora e do lugar em que ela lhe vem. Foi o que Lcio Cardoso ajudou-a

    a compreender: se as notas so sobre o mesmo tema, podem ser arranjadas de modo a

    formar um livro.

    Qual o seu mtodo?

    Vou tomando notas. s vezes acordo no meio da noite, e volto para a

    cama. Sou capaz de escrever no escuro, num cinema, meu caderninho sempre na bolsa.

    Depois eu mesma tenho dificuldade de decifrar minha letra. Mas assim. Desde o primeiro

    livro. Eu tinha uma poro de notas, no sabia direito o que fazer com elas. Lcio Cardoso

    me disse, ento, se todas as notas so sobre um mesmo voc tem o livro pronto. E

    assim foi (Coutinho, 1976 grifo nosso). O GLOBO, em entrevista com Edilberto

    Coutinho.

    E ela se amolda a esse mtodo, conforme declara um ano antes de sua morte, em

    1976: o que me interessa anotar. Juntar muito chato (Lispector, 2005, p. 147).

    Tambm Rodrigo S. M., narrador-autor de , afirma preferir os

    : O definvel est me cansando um pouco. Prefiro a verdade que h no

    prenncio. Quando eu me livrar dessa histria, voltarei ao domnio mais irresponsvel

    de apenas ter leves prenncios (HE, p.45). Em 1977, respondendo a Jlio Lerner, ela

    ratifica seu mtodo de trabalho: Quando eu estou escrevendo alguma coisa eu anoto a

    qualquer hora do dia ou da noite... coisas que me vm. O que se chama inspirao, no

    ? Agora, quando eu tou (sic) no ato de concatenar as inspiraes, a eu sou obrigada a

    trabalhar diariamente (Lispector, 1977).

    Sobre , que conforme diz Affonso Romano de SantAnna, parece ter

    sido elaborado de uma s vez, no fugiu regra.

    J vem a frase feita

    Perto do corao selvagem

    anoto uma frase

    A hora da estrela leves prenncios

    gua viva

  • AFFONSO ROMANO DE SANTANNA: Quebrando um pouco a cronologia, o

    , que um livro bem posterior, d a impresso de uma fluida e que teve um jorro

    s de elaborao. Ele no passou por esse processo seu de coletar pedaos? Voc foi

    escrevendo enquanto montou?

    CLARICE LISPECTOR: No, tambm anotando coisas. Esse livro, , eu passei

    trs anos sem coragem de publicar achando que era ruim, porque no tinha histria, porque

    no tinha trama. A o lvaro Pacheco leu as primeiras e disse assim: Esse livro eu

    vou publicar. Ele publicou e saiu tudo muito bem (Lispector, 2005, p. 147).

    Em Como que se escreve, crnica publicada no , em 30 de

    novembro de 1968, a escritora pergunta ao leitor: como que se escreve? E ela mesma

    chega concluso que escrever da ordem do fazer,12 isto , no gerndio que ele

    acontece: ela s sabe escrever quando est escrevendo.

    Quando no estou escrevendo, eu simplesmente no sei como se escreve. E se no soasse

    infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe

    perguntaria: como que se escreve?

    Por que, realmente, como que se escreve? que que se diz? e como dizer? e como que

    se comea? e que que se faz com o papel em branco nos defrontando tranqilo?

    Sei que a resposta, por mais que intrigue, a nica: Sou a pessoa que mais se

    surpreende de escrever. E ainda no me habituei a que me chamem de escritora. Porque,

    fora das horas em que escrevo, no sei absolutamente escrever. Ser que escrever no um

    ofcio? No h aprendizagem, ento? O que ? S me considerarei escritora no dia em que

    eu disser: sei como se escreve (DM, p. 161).

    Fato que Clarice Lispector, nas vrias oportunidades que teve de entrevistar

    outros escritores, no deixou de inquirir cada um deles a respeito de seus mtodos de

    criao. Atentemos para as questes recorrentes nos dilogos que mantm com seus

    companheiros de ofcio. Em entrevista com Jorge Amado, por exemplo:

    Qual o seu mtodo de produo?

    Voc se inspira em fatos reais ou os imagina? (CI, p. 10)

    Em entrevista com rico Verssimo, ao tempo em que pergunta ao amigo, d, de

    antemo, a sua resposta:

    De onde lhe vem a inspirao para o seu trabalho?

    Voc planeja de incio a histria ou ela vai se fazendo aos poucos? Eu, por exemplo, acho que

    tenho um vago plano inconsciente que vai desabrochando medida que trabalho (CI, p. 27).

    12 Lembrar que a palavra provm do grego criao; fabricao, confeco; obra potica, poema, poesia (Houaiss, 2001, p. 2246).

    gua viva

    gua viva

    Jornal do Brasil

    poesia posis,es

  • Com Pablo Neruda, embora com menos intimidade, no deixa de tocar nessas

    questes:

    Em voc o que precede a criao, a angstia ou um estado de graa?

    Como se processa em voc a criao? (CI, p. 31-32)

    Em entrevista com Marques Rebelo:

    , a gente escreve s vezes por obstinao. Mas uma obstinao vital. Voc trabalha s

    quando est inspirado ou tem uma disciplina? (CI, p. 36)

    Em entrevista com Fernando Sabino:

    Fernando, por que que voc escreve? Eu no sei por que eu escrevo, de modo que o que

    voc disser talvez sirva para mim.

    Como que comea em voc a criao, por uma palavra, uma idia? sempre deliberado

    o seu ato criador? Ou voc de repente se v escrevendo? Comigo uma mistura. claro

    que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que no de modo

    algum deliberada.

    Fernando, qual o seu processo de trabalho, voc se inspira como? Ou se trata de uma

    disciplina?

    Fernando, voc tem medo antes e durante o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais

    para mim. E cada novo livro meu to hesitante e assustado como um livro.

    Talvez isso acontea com voc, e seja o que est atrapalhando a formao de seu novo

    romance. Estou ficando impaciente espera de um romance seu (CI, p. 41, 43, 45).

    Em outra entrevista, dessa vez com Dinah Silveira de Queirs, Clarice admite

    que a questo da criao artstica sempre a atraiu e que ela se interessa por decompor, a

    fim de compreender os complexos dispositivos da gestao artstica:

    sem dvida um dos nossos escritores que mais produzem. Como que voc se

    organizou para isso? uma questo de disciplina?

    O problema da criao artstica sempre me fascinou e no perdi a esperana de um

    dia desmontar esse complicado mecanismo. Poderia me dizer qual a marcha do seu

    processo de criao? (CI, p. 62)

    Entrevistando a escritora e amiga Nlida Pion, d a ver, por meio de suas

    perguntas, que o foco de sua ateno , em muitos momentos, a questo do escrever:

    Qual o seu modo de escrever? Voc tem disciplina e horrios certos?

    Eu me considero amadora, porque s escrevo quando tenho vontade. J passei quase dez

    anos sem escrever. Voc no, uma profissional no melhor sentido da palavra. Voc se

    sente uma profissional?

    Voc acredita na inspirao ou na disciplina?

    Voc tem, antes de escrever, tudo j planejado? (CI, p. 201, 202, 203)

  • Quanto autodefinio de Clarice, de que uma amadora e no uma

    profissional, Nlida Pion pede licena para contest-la:

    Peo-lhe licena para contestar sua autodefinio. Considero-a uma extraordinria

    profissional, que ainda no adquiriu conscincia do prprio estado. Sua obra produto srio

    e regular, diariamente enriquecido por uma sonda introduzida em sua conscincia, e pela

    qual se realiza permanentemente a comunicao entre o mundo e sua matriz de criao. O

    que talvez a iniba o trabalho encomendado. Porm, sujeitar-se ao trabalho encomendado

    no nos habilita condio profissional. Considero profissional quem est advertido das

    tentaes que cercam o artista, delicadas malhas que o estimulam a liberar textos mal sados

    do forno, quentes ainda de imperfeies, voracidade e Alm de respeitar-se,

    respeitar o pblico, o profissional constantemente exacerbado pela aguda conscincia da

    funo social do seu trabalho, que se destina basicamente a acentuar contradies, fixar a

    mitologia humana. Em princpio, todo escritor brasileiro tratado como amador, porque

    seu esforo operacional no se traduz em lucro. Invadem-lhe a conscincia para que perca o

    orgulho, e jamais abandone o estgio adolescente que prprio do amadorismo. Sou

    profissional, sim, Clarice. Luto por esta condio, e abdico de tudo que isto implica

    (CI, p. 201-202).

    No obstante, essa afirmao de que era uma amadora e uma profissional

    surge vrias vezes ao longo da carreira de Clarice Lispector, tanto em seus textos quanto

    em suas parcas entrevistas. Sob o ttulo de Intelectual? No, Clarice d a ver a seus

    leitores do em 02 de novembro de 1968, que essa era para ela uma

    questo: Literata tambm no sou porque no tornei o de escrever livros uma

    profisso, nem uma carreira. Escrevi-os s quando espontaneamente me vieram, e s

    quando eu realmente quis. Sou uma amadora? (DM, p. 153). Posteriormente a questo

    aparece como sendo respeitante sua personagem, como o caso de Rodrigo S. M. de

    : Acontece que s escrevo o que quero, no sou um profissional

    (HE, p. 31). Atentemos para a mudana de tom: o que antes aparecia como

    questionamento, depois aparece como afirmao. Em 1976, quando entrevistada por

    Affonso Romano de SantAnna e Marina Colasanti, ela sustenta: E por falar em

    profissional, eu no sou escritora profissional, porque eu s escrevo quando eu quero,

    ao que Marina Colasanti replicou: Voc disse isso ao receber o prmio em Braslia.13

    E Clarice: Eu disse, ? (Lispector, 2005, p. 165). Na entrevista com Julio Lerner ela

    explica porque faz questo de assim se apresentar:

    13 Trata-se do prmio do X Concurso Literrio Nacional da Fundao Cultura de Braslia recebido em 1976, em Braslia, pelo conjunto de sua obra.

    Jornal do Brasil

    A hora da estrela

    ,

  • Clarice, a partir de qual momento voc, efetivamente, decide assumir a carreira de

    escritora?

    Eu nunca assumi, eu nunca assumi.

    Por qu?

    Eu no sou uma profissional, eu s escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e fao

    questo de continuar a ser amadora. Profissional aquele que tem uma obrigao consigo

    mesma (sic), consigo mesmo, de escrever. Ou ento com outro, em relao ao outro.

    Agora, eu... fao questo de no ser uma profissional, para manter minha liberdade

    (Lispector, 1977).

    Percebemos que, quando se invertem os papis, e Clarice de entrevistadora passa

    a entrevistada, no faz fora para esconder seu desconforto. Quando Jos Castello, certa

    feita, lhe perguntou sobre os motivos de sua escrita, respondeu spera e bruscamente:

    Por que que voc escreve?

    Vou lhe responder com outra pergunta: Por que que voc bebe gua? (Lispector,

    2005, p. 135). Sem muita pacincia ela vai direto ao ponto: escrever vital, necessidade

    absoluta. Ela escreve, conforme alega o narrador-autor de , por

    motivo grave de fora maior, como se diz nos requerimentos oficiais, por fora de

    lei (HE, p. 32).

    Chega a ser engraada uma entrevista que Clarice concede, por escrito, a Jos

    Afrnio Moreira Duarte, para o DM MULHER, suplemento feminino dominical do

    , de Belo Horizonte:

    1 Tem alguma tcnica especial para escrever? no

    2 Acredita que sua literatura seja realmente hermtica? no

    3 A seu ver, um escritor deve obrigatoriamente renovar sempre? no

    4 Sendo romancista e contista, o que prefere: o romance ou o conto? ambos

    5 Aps a vitoriosa experincia com Laos de Famlia pretende publicar novo livro de

    contos? sim, este ano ainda.

    6 Alguma de suas obras merece especialmente sua preferncia? Por qu? no tenho

    preferncia.

    7 Quando teremos novo livro seu? este ano.

    8 Que pensa sobre o amor?14 a razo de viver (ACL/FCRB).

    Monossilbica, em geral, porque tem verdadeira impacincia com as entrevistas,

    como ela mesma mostra e declara a Jlio Lerner: eu no ligo muito essa coisa de ser

    escritora e dar entrevista e tudo. porque eu no sou isso (Lispector, 1977).

    14 Essa pergunta, como veremos adiante, ser reproduzida por Clarice em suas entrevistas.

    A hora da estrela

    Dirio de Minas

  • Em Braslia15 Clarice escreve sobre o descuido dos entrevistadores, sobre seu

    desejo de fechar-se diante da curiosidade alheia e prope ser paga pelas entrevistas

    concedidas. Apesar de se dizer uma pessoa comum, reconhece-se enfim tambm

    requintada, misto de camponesa e estrela do cu:

    Dei inmeras entrevistas. Modificaram o que eu disse. No dou mais entrevistas. E se o

    negcio mesmo na base da invaso de minha intimidade, ento que seja paga. Disseram-

    me que nos Estados Unidos assim. E tem mais: eu sozinha, um preo, mas se entra o

    meu precioso cachorro, cobro mais. Se me distorcerem, cobro multa. Desculpem, no quero

    humilhar ningum mas no quero ser humilhada. Eu disse l que iria possivelmente

    Colmbia e escreveram que eu ia Bolvia. Trocaram o toa. Mas no tem perigo: de

    minha vida mesma eu s concedo dizer que tenho dois filhos. No sou importante, sou uma

    pessoa comum que quer um pouco de anonimato. Detesto dar entrevistas. Ora essa, sou

    uma mulher simples e um pouquinho sofisticada. Misto de camponesa e de estrela do cu

    (PNE, p. 74).

    Tambm inslita a revelao que faz em Ainda sem resposta, crnica

    publicada no em 22 de junho de 1968:

    No sei mais escrever, perdi o jeito. Mas j vi muita no mundo. Uma delas, e no das

    menos dolorosas, ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e

    simplesmente no conseguirem. Ento eu quereria s vezes dizer o que elas no puderam

    falar. No sei mais escrever, porm o fato literrio tornou-se aos poucos to desimportante

    para mim que no saber escrever talvez seja exatamente o que me salvar da literatura.

    O que que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja atravs de

    literatura que poder se manifestar (DM, p. 112).

    Perdeu o jeito, a habilidade, a destreza de escrever. a prpria Clarice que

    ao entrevistar Tom Jobim lembra a frase de Gaugin: Quando tua mo direita estiver

    hbil, pinta com a esquerda, quando a esquerda ficar hbil, pinta com os ps (CI, p.

    133). E, como que j contando com a prpria impercia, resolve se plagiar, de acordo

    com suas prprias palavras em carta a seu filho em 1969.16

    15 Convm esclarecer que, apesar de Braslia: cinco dias ser um texto que constava em

    , de 1964, em , de 1978, esse texto ser intitulado apenas Braslia e ser acrescido de uma segunda parte intitulada Braslia: esplendor (Cf. PNE, p. 71-90). Antes da segunda parte Clarice explica:

    Estive em Braslia em 1962. Escrevi sobre ela o que foi agora mesmo lido. E agora voltei doze anos depois por dois dias. E escrevi tambm. A vai tudo o que eu vomitei.Ateno: vou comear.Esta pea acompanhada pela valsa Sangue Vienense de Strauss. So 11:20 da manh do dia 13 (PNE, p. 71).

    16 Cf. , 2002, p. 276.

    Jornal do Brasil

    A legio estrangeira Para no esquecer

    Correspondncias

    ,

  • Todas estas referncias a entrevistas, pois, onde se destacam consideraes sobre

    o que a escrita literria ou como definir o escritor e seu ofcio, so importantes para se

    apreender um dos textos da autora, ou seja, o da migrao de

    fragmentos de um texto a outro, o do autoplgio, por assim dizer.

    Lcia Manzo ressalta que grande parte dos fragmentos que haviam sido

    publicados como crnicas no mais tarde comporiam

    :17

    Longos trechos ou, at mesmo, captulos inteiros de

    , podiam ser localizados em suas crnicas e vice-versa. Algumas alteraes se

    encarregavam de distinguir os trechos publicados em jornal dos que apareceriam mais tarde

    no romance, entre elas, frequentemente, a troca da primeira pela terceira pessoa.

    Enquanto nas crnicas, muitas vezes, as impresses narradas pertencem a Clarice; no

    romance, elas fazem parte da vida de Lri, uma mulher que, em seu aprendizado, pretende

    descobrir o que o amor (Manzo, 1997, p. 104).

    Vale salientar que, nas entrevistas de Clarice, uma questo que se repete com

    insistncia sobre o que o amor. A pergunta dirigida a Pablo Neruda, a Hlio

    Pelegrino, a Chico Buarque, a Djanira, a Carlos Scliar, a Tnia Carrero, a Tom Jobim, a

    Isaac Karabchewsky, a Mrio Schemberg, a Nelson Rodrigues, a Fernando Sabino, a

    Marly de Oliveira, a Pedro Bloch, a Zagallo.

    De sua produo textual podemos dizer o mesmo. Em

    assim como em , sobre as relaes de amor que se fala, relaes

    que parecem fracassar; sobre o amor e suas vicissitudes. sobre laos, para tomar

    uma palavra que cara escritora, mas laos que prendem e aprisionam, e o jeito,

    muitas vezes, romper com eles (sada discreta pela porta dos fundos?) como em A

    fuga, ainda que imaginariamente, ou em A partida do trem e mesmo em .

    Em tambm do amor que se trata: amor de Rodrigo por

    Macaba, pela escrita, amor de Maca por Olmpico (namoro talvez esquisito mas pelo

    menos parente de algum amor plido) (HE, p. 77). Clarice fala-nos no s do rubro da

    paixo, mas dos amores plidos ou que empalidecem, que perdem o vigor e tombam

    letra por letra, como escreve Maria Gabriela Llansol, em resposta pergunta (por que

    que um dia se diz adeus?):

    (...) quando sobe a luz do dia, e o amor fica deserto, que

    dizer-vos do amor a no ser adeus. 17 A esse respeito, ler , de Edgar Czar Nolasco. Nesse livro o autor analisa como uma escritura em palimpsesto.

    modus operandi

    Jornal do Brasil Uma

    aprendizagem ou O livro dos prazeresUma Aprendizagem ou O Livro dos

    Prazeres

    Perto do corao

    selvagem gua viva

    gua vivaA hora da estrela

    Clarice Lispector: nas linhas da escrituraUma aprendizagem ou O livro dos prazeres

    ,

  • Vereis que, pouco a pouco, as letras vo rolar do

    prprio nome:

    amor sem m.

    amor sem o.

    amor sem r.

    amor sem a (Llansol, 1991, p. 92-93).

    da pobreza que Clarice parece tratar, da pobreza das relaes, da pobreza do

    amor. Espcie de desmitificao da idia de que no amor entramos para receber, para

    ganhar algo, para enriquecer nossa vida pessoal:

    (...) A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mo, ns nos reconhecemos e a isto

    chamamos de amor. E ento no necessrio o disfarce: embora no se fale, tambm no se

    mente, embora no se diga a verdade, tambm no mais necessrio dissimular. Amor

    quando concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque amor a

    grande desiluso de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras iluses. H os

    que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecer a vida pessoal. o

    contrrio: amor finalmente a pobreza. Amor no ter. Inclusive amor a desiluso do que

    se pensava que era amor. E no prmio, por isso no envaidece, amor no prmio (...)

    (FC, p. 62-63).

    Essa concepo do amor (amor

    finalmente a pobreza. Amor no ter)

    coincide com aquela veiculada por meio

    do mito de Poros e Penia, extrado do

    discurso de Scrates em . Ali a

    pobreza do amor pode ser justificada, se

    pensarmos na prpria genealogia do

    Amor, como nos adverte Lacan:

    Poros, o autor cuja traduo tenho minha frente, simplesmente por estar diante do texto,

    o traduz, no sem pertinncia, por . Se isso significa , certamente

    uma traduo vlida. tambm, j que Poros filho de Metis, que mais a

    inveno que a sabedoria. Diante dele, temos a personagem feminina que vai ser a me

    do amor, Penia, a saber, , ou mesmo . Ela caracterizada no texto como

    , a saber, sem recursos. isso o que ela sabe sobre si mesma: recursos, no os tem.

    O termo , vocs o reconhecem, aquele que nos serve com referncia ao processo

    filosfico. um impasse, aquilo frente a qu entregamos os pontos, ficamos sem

    O Banquete

    Expediente Recurso

    Astcia

    Pobreza Misriaaporia

    aporia

  • recursos. Eis, portanto, a Aporia fmea diante de Poros, o Expediente, o que parece

    bastante esclarecedor.

    O que muito bonito nesse mito a maneira pela qual Aporia engendra Amor com

    Poros. No momento em que isso se deu, era a Aporia quem velava, quem tinha os olhos

    bem abertos. Contam-nos que ela viera para os festejos do nascimento de Afrodite, e

    como qualquer Aporia que se preze, nessa poca hierrquica, permaneceu nos degraus,

    prximo da porta. Por ser Aporia, isto , por nada ter a oferecer, no entrou na sala do

    festim. Mas a felicidade das festas que, justamente, acontecem coisas ali que invertem a

    ordem comum. Poros adormece. Adormece porque est embriagado, e isso o que

    permite Aporia fazer-se emprenhar por ele, e ter este filhote que se chama o Amor, cuja

    data de concepo vai coincidir, portanto, com a data nascimento de Afrodite. por

    isso mesmo, nos explicam, que o amor ter sempre alguma relao obscura com o belo,

    aquilo de que se vai tratar, com efeito, no desenvolvimento de Diotima. Isso est ligado

    ao fato de que Afrodite uma deusa bela (Lacan, 1992, p. 125).

    Da a frmula lacaniana

    : evidente que se trata

    disso mesmo, j que a pobre Aporia, por

    definio e por estrutura, no tem nada a

    dar, seno sua falta, , constitutiva

    (Lacan, 1992, p. 126).

    O Amor amor de algo, faz-nos ver

    Scrates ao interrogar Agato sobre o

    prprio discurso proferido n

    (O Amor amor de nada ou de algo? De

    algo, sim) (Plato, 1997, p. 148). Em sua

    Declarao de amor Clarice Lispector

    manifesta seu amor pela prpria lngua

    portuguesa, que deve ser transformada

    numa linguagem de amor:

    Esta uma confisso de amor: amo a lngua portuguesa. Ela no fcil. No malevel.

    E, como no foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a tendncia a de no

    ter sutilezas e de reagir s vezes com um verdadeiro pontap contra os que

    temerariamente ousam transform-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de

    amor. A lngua portuguesa um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para

    o amor dar o

    que no se tem

    aporia

    O Banquete

  • quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo (DM, p.

    98).

    Ao escrever Clarice foi compelida a

    aceitar o desafio de manejar a lngua

    portuguesa, a acompanhar o modo de

    respirar da frase, a aceit-lo e aceitar-se,

    ainda que soe estranho, conforme ela

    mesma recomenda Ao linotipista:

    Desculpe eu estar errando tanto na mquina. Primeiro porque minha mo direita foi

    queimada. Segundo, no sei por qu.

    Agora um pedido: no me corrija. A pontuao a respirao frase, e minha frase

    respira assim. E, se voc me achar esquisita, respeite tambm. At eu fui obrigada a me

    respeitar (DM, p. 70).

    Respeitar a pontuao que marca a

    respirao da frase, mesmo esquisita,

    remete-nos a Gilles Deleuze em

    Gaguejou..., quando nos diz que, para

    marcar as entonaes de uma gagueira, os

    maus romancistas sentem a necessidade de

    variar os indicativos de dilogo e para

    realiz-la s h duas possibilidades: ou

    fazer o personagem gaguejar ou ento

    apenas diz-lo sem faz-lo, contentar-se

    com uma simples indicao que se deixa

    ao leitor o cuidado de efetuar (Deleuze,

    1997, p. 122). Ao que ele acrescenta uma

    terceira possibilidade: quando

    , quando no mais o personagem

    que gago da fala, o escritor que se

    torna : ele faz gaguejar

    (Deleuze, 1997, p.

    dizer

    fazer

    gago da lngua a

    lngua enquanto tal

  • 122). Apropriando-nos dessa idia,

    perguntamos se em Clarice

    Lispector s pensa sobre a escrita, ou se

    pensa e faz, ou, ainda, se pensando faz?

    Ao que tudo indica, somente uma relao

    diferenciada com a lngua possibilitaria

    esse terceiro passo.

    Curiosamente, Clarice fato para o qual

    muitos atentaram possua uma dico

    estranha, um sotaque que, primeira

    escuta, soava similar a uma fala com

    acento nordestino e dissonncias

    francesas, em que erres se arrastavam e

    vogais se faziam pronunciadas com uma

    abertura tpica. Fato esse que ela

    desmitifica afirmando que tem a lngua

    presa e gracejando: Tem uma palavra que

    eu no posso falar, seno todo mundo cai

    para trs: Aurora.18

    Jos Castello (1997, p. 70) aponta que

    talvez essa justificativa no esgote o

    assunto: Suas dificuldades com a lngua

    eram embaraosas e sua grandeza como

    escritora vem dessa repugnncia. S uma

    pessoa que no se adapta lngua, que a

    revira, que dela desconfia pode escrever

    uma obra como a de Clarice Lispector.19

    18 Lispector apud GOTLIB. , p. 65.19 Teresa Ferreira conta-nos que, em determinada ocasio, Clarice perguntou a Pedro Bloch o que ele achava dos erres dela. Ele disse-lhe que seu problema no era lngua presa, esse defeito de dico podia ter origem, por exemplo, em sua infncia, quando talvez ela tenha imitado a maneira dos pais falarem. E ofereceu-se para corrigir este defeito. Depois de algumas sesses de foniatria no consultrio de Pedro Bloch, Clarice ficou curada. Ao reencontr-la meses depois, o mdico notou que ela tinha voltado a

    gua viva

    Clarice uma vida que se conta

  • Se Clarice no tinha a , talvez

    se sentisse de algum modo presa lngua

    partida de seu pas de origem, essa

    Ucrnia que lhe era mais mtica que real,

    terra de seus pais, que lhe marcava a

    condio que ela receava perder, como

    um trao de personalidade de

    estrangeira na lngua portuguesa, ainda

    que esta que tenha sido verdadeiramente

    sua lngua materna.

    Vale para Clarice o que disseram Deleuze

    e Guattari (1977) sobre Kafka: estava em

    sua prpria lngua como estrangeira. Ela,

    cujo desejo primeiro foi o de e

    cuja vida padecia de no pertencimento,

    como declara em Pertencer:

    Tenho certeza de que no bero a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos

    que aqui no importam, eu de algum modo devia estar sentindo que no pertencia a nada

    e a ningum. Nasci de graa.

    (...) Eu nem podia confiar a algum essa espcie de (...).

    A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que

    eu perco no pertencendo. E ento eu soube: . Experimentei-o com a

    sede de quem est no deserto e bebe sfrego os ltimos goles de gua de um cantil. E

    depois a sede volta e no deserto mesmo que caminho (DM, p. 110-111).

    Embora tenha chegado a se considerar

    feliz por pertencer literatura brasileira,

    com sua obra de mais de vinte ttulos

    entre romances, contos, crnicas, livros

    infantis, entrevistas, fragmentos, fico,

    impresses leves, pulsaes , Clarice

    sabia dela estar apartada, isolada, usar os erres. A razo dessa atitude, segundo Clarice, devia-se a seu receio de perder suas caractersticas, pois sua maneira de falar era um trao da personalidade (Ferreira, 1999, p. 228).

    lngua presa

    pertencer

    solido de no pertencer

    pertencer viver

  • distanciada, numa trgica solido nas

    letras brasileiras, como bem disse Alceu

    Amoroso Lima (Lispector, 2005, p. 169),

    condenada desde sempre

    . Talvez porque seja sempre o

    deserto o terreno por onde um escritor

    avana no a lngua por excelncia

    esse deserto? , cabe-lhe a experincia de

    pertencer ao que no se pertence e, assim

    sendo, dar sua medida, fazer um uso

    menor e intensivo da lngua: pertencer a

    uma lngua e exilar-se dela, encontrar

    novas potncias gramaticais ou

    sintticas (Deleuze e Guatari, 1977, p. 9),

    levar a linguagem ao delrio, ao seu limite,

    ao seu .

    Isto o que assistimos em .

    Foi por sugesto de lvaro Pacheco, jornalista e poeta, fundador da editora Artenova, que

    Clarice Lispector comeou a escrever um novo livro. como poeta, o editor no se restringia a

    publicar os livros, gostava de conversar com o autor, sua opinio e fazia sugestes. A Clarice

    sugeriu escrever um livro abstrato (Ferreira, 1999, p. 255). a ento que ela comea a reunir

    anotaes feitas h muito, trechos j publicados em suas crnicas no ,20 para produzir

    um livro. Um livro abstrato, conforme lhe foi sugerido? E o que viria a ser abstrato para ela? Em

    Abstrato e figurativo, ela afirma: Tanto em pintura como em msica e literatura, tantas vezes o que

    chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difcil, menos

    visvel a olho nu (LE, p. 151).21 Observemos que, de acordo com o entendimento de Clarice, parece no

    20 Ndia Gotlib chama a ateno para o fato de que, embora Clarice afirme no ser esta sua inteno, insere em suas crnicas do um passado seu, inclusive literrio, nos textos diversos que j produziu e publicou anteriormente: contos, crnicas, captulos ou trechos de romances (Gotlib, 1995, p. 375).21 Cf. tambm em , p. 49.

    solido de no

    pertencer

    foragua viva

    Jornal do Brasil

    Jornal do Brasil

    Para no esquecer

    O e nre do de g ua viva

  • haver uma oposio entre arte abstrata e figurativa, sendo o abstrato, para ela, o prprio figurativo, s que

    o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difcil. A parece incidir o seu trabalho.

    Ainda em 1971, a primeira verso de , intitulada

    , foi entregue a Alexandrino E. Severino, para que fosse traduzida para o ingls. Em carta de 02 de

    junho de 1972, Alexandrino Severino escreve a Clarice: Guardo ainda o propsito de traduzir seu livro,

    O Objeto, como lhe disse, mas no sei at hoje o que fazer sobre ele. No recebi qualquer notcia de sua

    publicao no original (Severino, 1972). No mesmo ano, tendo interrompido o trabalho de

    , a autora escreve para o professor Alexandrino Severino justificando-

    se: Quanto ao livro interrompi-o porque achei que no estava atingindo o que eu queria atingir. No

    posso public-lo como est. Ou no o publico ou resolvo trabalhar nele. Talvez daqui a uns meses eu

    trabalhe no .22

    Como possvel perceber, vemos que aqui Clarice j atribui um segundo ttulo ao Mas

    vemos, tambm, que ela continua considerando que o texto ainda exige trabalho.

    E em que, exatamente, consiste esse

    trabalho? pergunta Lucia Castello

    Branco. Consiste numa reescrita que,

    basicamente, traduz-se em cortar, em

    suprimir do texto mais de cem pginas,

    numa tentativa de eliminar seu carter

    pessoal (Branco, 2001, p. 321): Esse

    livrinho tinha 280 pginas; eu fui cortando

    cortando e me torturando durante trs

    anos. Eu no sabia o que fazer mais. Eu

    estava desesperada. Tinha outro nome.

    Era tudo diferente... (Lispector, 1974, p.

    24).

    Ento com a colaborao de Olga

    Borelli, que auxilia Clarice juntando as

    anotaes, datilografando os textos da

    escritora e mesmo estruturando o livro,23

    que ser publicado em 1973.

    22 Cf. Carta de Clarice a Alexandrino E. Severino, de 23 de junho de 1972. Apud: As duas verses de

    . In: , p. 115.23 importante ressaltar que, encerrada a estruturao uma parte, Olga a entregava a Clarice para as modificaes que julgasse pertinentes. Ela lia, fazia cortava o que achava necessrio. Assim se deu em e em (Cf. Ferreira, 1999, p. 257, 284).

    gua viva Atrs do pensamento: monlogo com a vida

    Atrs do

    pensamento: monlogo com a vida

    Objeto gritante

    gua viva

    gua viva Remate de Males

    gua viva A hora da estrela

  • Clarice levou muito tempo para decidir public-lo,