da escola pÚblica paranaense o professor pde e … · adquirida pelas numerosas gerações que o...

28
O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE Versão Online ISBN 978-85-8015-037-7 Cadernos PDE 2007 VOLUME I

Upload: hoangnguyet

Post on 03-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

Versão Online ISBN 978-85-8015-037-7Cadernos PDE

2007

VOLU

ME I

INDIVÍDUOS ESQUECIDOS: UM DEBATE SOBRE A CONDIÇÃO DO NEGRO

Natalia Tomen Zeschotko1

...POR QUE ME INCOMODA TANTO O OLHAR DO OUTRO?POR QUE É QUE ME OLHO NO ESPELHO PENSANDO NO OLHAR DO OUTRO?QUE PODER TEM ESSE OLHAR CAPAZ DE MINHA PERSONALIDADE CAMUFLAR?

... Jane da Silva Scaramal2 (2007)

Resumo

O artigo discute o silêncio da prática docente em relação aos conteúdos voltados a Etnia Negra, buscando promover um repensar das atitudes cotidianas e uma ressignificação dos conceitos. Apresenta discussões pontuais como a implementação da Lei Nº 10.639/03, as práticas discriminatórias e um breve histórico do Movimento Negro contemporâneo levando ao aprofundamento teórico do assunto. O espaço escolar é por essência um local para repensar as concepções e as ações dos seres humanos, sendo assim, apresenta-se ainda alguns caminhos percorridos com a comunidade escolar relacionadas a temática, como por exemplo a análise da atitudes e das concepções vivenciadas no grupo e do Projeto Político Pedagógico, interferindo na sua operacionalização.

Abstrat:

This study debates omissions in teaching practices concerning black ethny matters, and it aims at promoting a rethinking of daily attitudes and a review of its bases. It also presents considerations on the Federal Law nº 10.369/03, discrimination practices and a brief historical study of the contemporary Black Movement, providing a theoretical base about the subject. The school environment is, in its essence, a place to rethink actions and conceptions. Therefore, some paths followed by the scholar community concerning this subject are presented, such as the analysis of 1 Graduada em História pela UNICENTRO- PR, com Especialização em Supervisão Escolar pela UNIVERSO – RJ. Atua como Técnica Pedagógica no Núcleo Regional de Educação de Pitanga.2 Graduada em Letras – Português Inglês pela FAFIJAN – PR, com Especialização em Didática e Metodologia de Ensino e Administração Escolar. Atua como coordenadora da Equipe Pedagógica Disciplinar no Núcleo Regional de Educação de Pitanga.

1

the attitudes and conceptions lived by the group as well as the Projeto Político Pedagógico (Political-Pedagogic Project) as an interfering factor on its objectives.

Palavras-chave: Prática Docente. Negros. Racismo. Discriminação. Movimento social.

Introdução

O presente artigo tem a finalidade de promover uma breve análise

do silêncio da prática docente em relação aos conteúdos voltados para a

etnia negra, ressignificando os conceitos e buscando um aprofundamento

teórico. Metodologicamente os conceitos antropológicos de cultura,

racismo e discriminação, as possibilidades da implementação da Lei Nº

10.639/03 e as ações do movimento negro contemporâneo. Apresentamos

ainda um olhar de dentro da escola, o caminho pedagógico percorrido,

buscando o compromisso com as mudanças curriculares, fato esse que se

consubstancia em uma ação cidadã.

Tendo iniciado esse ensaio com essas proposições, pretende-se

desvelar uma realidade social complexa e refletida na prática docente: a

representação do papel social do negro.

Destaca-se que essa discussão permeia a memória coletiva da

sociedade, e o ensino não está alheio a essa realidade, pois são campos

de disputa na memória e imaginário coletivo.

Sobre memória convém expor a seguinte discussão:

[...] o vivido que guardamos em nossas lembranças e que circunscreve ou funda o campo da memória se distingue da história. Entretanto, se são distintos, arriscaríamos afirmar também que são inseparáveis. Afinal, compreendemos a história como uma construção que, ao resgatar o passado (campo também da memória), aponta para formas de explicação do presente e projeta o futuro. Este operar, próprio do fazer histórico na sociedade, encontraria em cada indivíduo um processo interior semelhante (passado, presente e futuro) através da memória.

(MONTENEGRO , 2001)

Ao percorrermos a literatura específica (Le Goff, 1996), deparamos-

2

nos com a história da memória, os enfoques que a problemática vem

recebendo desde a Antigüidade greco-romana até a atualidade. São

importantes os percursos que se mostram, pois é a partir deles que

podemos delinear nosso objeto de estudo. É no encontro de uma memória

com a atualidade que o novo se institui. Em princípio, estamos

entendendo que,

a memória é um referencial vivo na construção das identidades, pois, em sua capacidade de filtrar e manter o sentido, atua por meio de seus processos e efeitos, os quais podem ser tanto de lembrança, de redefinição e de transformação quanto de esquecimento, de ruptura e de negação do vivido e do já dito. Se a memória é, portanto, um fator inerente à construção de identidade, o discurso é o espaço de conhecimento e de interação através do qual o ser humano se faz sujeito, inscrevendo-se no campo da prática social, que é eminentemente histórica.

(CAMPOS e INDURSKY, 2000, p.12)

Com isso encaminhamos nossa reflexão acerca das relações entre

memória, história e linguagem.

A memória coletiva, de acordo com Pierre Nora, apud Le Goff (1996,

p.472) “é o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos

fazem do passado”. Precisamos entender, entretanto, que o “que fica do

passado” não foi selecionado por mero acaso, mas sim sob efeitos

ideológicos e imaginários. Nesse sentido Le Goff (idem,426), ao mostrar as

contribuições que a psicologia e a psicanálise acrescentaram aos estudos

da memória individual, diz que a memória coletiva foi posta em jogo de

forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se

senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e

dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da

história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória

coletiva.

E, quanto ao imaginário destacamos nossa compreensão:

3

O imaginário é a maneira pela qual as pessoas estruturam seu mundo, encontram uma maneira de dar sentido a sua vida, as relações, ao mundo que as cerca. É uma necessidade do ser humano, e parte essencial de sua cultura. O imaginário não é por isto mesmo externo as coisas, superposto a realidade. Ele é a forma inteligível pela qual as coisas existem para o ser humano. Neste sentido imaginário e discurso se assemelham, são formas de representação da realidade. O discurso trabalha com conceitos, o imaginário com imagens e símbolos, mas ambos são representações que freqüentemente se combinam.

(CARVALHO,1995:15)

Exposta essa discussão conceitual destaca-se que a sociedade

brasileira é multifacetária, repleta de diferenças étnicas e culturais,

construída historicamente com conceitos e valores, eurocêntricos e por

conseguinte, muitas vezes estereotipados e excludentes.

Este trabalho reflete sobre o silêncio na prática docente em relação

a essas questões tão fortemente presentes no cotidiano, porém

camufladas em “cortinas de fumaça”. O preconceito não deixa ver a real

situação de exclusão, provocando discriminações. O desconhecimento e a

falta de aprofundamento teórico contribui para essa situação, sendo

assim, buscou-se aqui uma discussão da problemática, apresentando

conceitos necessários para romper os estereótipos.

O artigo estrutura-se da seguinte maneira: primeiro promovemos

uma análise do silêncio da prática docente em relação aos conteúdos

voltados a etnia negra, apresentando o conceito de cultura e etnicidade,

necessários a compreensão das atitudes e ações coletivas, discutindo

ainda como se dá a abordagem curricular em relação a essas múltiplas

identidades. Aprofundamos a discussão, como preconceito, racismo e

discriminação, buscando apresentar um pouco das ações do movimento

negro, os entraves encontrados e suas conquistas. Por fim mostramos um

olhar de dentro da escola, o trabalho desenvolvido com as alunos do Curso

de Formação de Docentes, já que estes serão os futuros educadores, seu

pensar, suas discussões e as ações incluídas no Projeto Político

Pedagógica da escola.

4

Análise do silêncio da prática docente

A Educação pode ser considerada um dos caminhos para a

transformação da sociedade, a via básica para a mudança do caráter

político, social e cultural, alcançada a partir dos princípios da igualdade

dos direitos, da justiça social, da liberdade e da solidariedade. Vida digna

e igualdade de oportunidades são direitos de todos os Seres Humanos.

Cabe aos educadores, portanto, favorecer o processo de formação do

homem e da humanização, ajudando a construir e reconstruir conceitos,

deixando assim de ser um mero reprodutor de conteúdos e de ideologias.

Para tanto é fundamental o repensar da prática docente, buscar um

aprofundamento teórico e uma ressignificação dos conteúdos, a fim de

que estejam voltados a cidadania, ter uma visão multicultural e uma

prática valorizadora das diferenças e diversidades, sem preconceitos e

exclusões.

Sendo assim, levanta-se como discussão os silêncios da prática

docente em relação aos conteúdos da etnia negra e seus movimentos

sociais. São vários os discursos correntes entre os educadores no

cotidiano escolar. Uma idéia que persiste é a de que no Brasil há uma

democracia racial3, o que resulta muitas vezes na não identificação de

problemas étnicos, da violência, da discriminação e da desigualdade.

Há um silêncio de alguns docentes em relação a essa temática,

justificada pela falta de materiais didáticos adequados, desconhecimento

teórico demonstrada pela falta de atitudes diante de situações

discriminatórias justificadas pelo “não sei o que fazer”, “não sei como lidar

com a situação” ou ainda “falar sobre isso vai piorar as coisas”. O trabalho

sobre a etnia negra e o combate às situações discriminatórias, em nível

escolar, tem acontecido de modo superficial e inaparente. No convívio

social também há um disfarce, onde muitos dizem-se não racista, porém,

por muitas vezes, cometem práticas discriminatórias e excludentes, como 3 Idéia fortalecida de que no Brasil não havia preconceito de raça, o que impediu a possibilidade da formação de uma consciência racial por parte dos negros e um respeito a sua cultura e valores pelos brancos. Gilberto Freire, para alguns estudiosos do assunto, teria sido o criador do conceito de “democracia racial”.

5

por exemplo a contratação de brancos para o trabalho em preterimento

ao negro (demonstrado pelo Censo 2000, onde os brancos detém 74,10%

da renda, e os negros 25,90%), o atravessar a rua para não encontrar

com uma pessoa negra à noite, a não permissão de namoro, e outras

práticas percebidas no dia-a-dia.

Como mudar essa situação? O que fazer diante destas realidades?

O educador é exemplo, suas ações influenciam os educandos, seus

discursos contagiam e colaboram para a formação da mentalidade social.

Logo faz-se necessário que o educador tenha uma ampla leitura e análise

do processo histórico, das concepções e das ideologias dominantes, para

que assim possa intervir de modo positivo no cotidiano escolar,

derrubando visões estereotipadas e preconceituosas. É fundamental

possibilitar espaços para discussões entre os educandos, indicar pesquisas

históricas e sobre a legislação, promover diagnósticos locais, regionais e

até nacionais para ampliar o conhecimento. Abrir caminhos para a

compreensão das diferenças de oportunidades que as pessoas têm neste

país e levar à compreensão do resultado gerado por essas diferenças,

como as desigualdades econômicas, sociais, culturais e educacionais.

Entender que o sucesso ou o fracasso, por vezes, é resultado de todo um

jogo de poder, e não apenas determinado pelo esforço individual de cada

ser humano.

Não se respeita o que se desconhece, sendo assim, conhecendo

passa-se a valorizar e o efeito deste processo é a cultura adquirida na

interação social.

O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções.

(LARAIA, 1989, p.46)

Compreender o conceito de Cultura leva à compreensão do Ser

humano e de sua natureza. Para Laraia, o homem vê o mundo através de

6

sua cultura, o que tem como conseqüência considerar o seu modo de vida

como o mais correto e natural (etnocentrismo), provocando assim

discriminações, etnicidade, racismo, intolerância, violência, enfim,

conflitos sociais.

Para Poutignat (1998) a etnicidade tem por definição afirmar um Eu

coletivo e negar um Outro coletivo. Ela não se manisfesta nas condições

de isolamento, mas nas interações do mundo moderno e urbano é que se

salientam as identidades étnicas. A comunicação cultural estabelece

fronteiras entre os grupos por meio dos símbolos simultaneamente

compreendidos. Atualmente, nos debates acerca da etnicidade, a maioria

dos autores recusam-se a ver nela um fato social de importância

universal, mas definem-na como uma estrutura social de reserva, variável

conforme a época e a situação. As relações de classe e as divisões do

poder determinam a compreensão da etnicidade.

Para Lopes in Kabengele (2005) as pessoas não herdam,

geneticamente, idéias de racismo, sentimentos de preconceito e modos de

exercitar a discriminação, antes as desenvolvem com seus pares, na

família, no trabalho, no grupo religioso e na escola. Mas da mesma forma

que podem aprender a ser ou tornar-se preconceituosas e discriminadoras

em relação a povos e nações, podem também aprender a amar e a

respeitar as diferenças. “Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se

elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar...” (MANDELA)

A luta contra o racismo e pelo respeito às diferenças é árdua e ao

mesmo tempo edificante. Precisamos repensar toda uma história escrita,

na sua maioria, por brancos com visões estereotipadas e mascaradas

pelos interesses econômicos. Uma história de negros escravos, peões no

tabuleiro, marcados para o trabalho e desprovidos dos direitos sociais.

Para promover a mudança na escola é necessário despir-se dos

preconceitos e “abrir os olhos” para a compreensão real das concepções e

das diferentes culturas.

Racismo é a ideologia que postula a existência de hierarquia entre grupos raciais humanos. É o conjunto de idéias e imagens vinculadas a grupos humanos, baseada na

7

existência de raças superiores e inferiores. O racismo individualizado manifesta-se por práticas discriminatórias de indivíduos contra outros indivíduos. O racismo institucional está presente, por exemplo, no isolamento dos negros(as) em determinados bairros, escolas e empregos. Também está presente no currículo escolar e nos meios de comunicação.

(GOMES, 2005)

Para Schwarcz (1998, p.184) ninguém nega que exista o racismo no

Brasil, mas atribui a prática sempre à outra pessoa. Afirma existir um

racismo silencioso e sem cara, escondido atrás da garantia da

universalidade e da igualdade a todos. A explicitação do racismo depende

da esfera pública, da posição social e econômica, percebe-se muitas vezes

que o poder político e/ou econômico embranquece o negro perante a

sociedade. A raça é uma construção histórica e social e o racismo é um

fenômeno social.

Preconceito racial é a idéia pré-concebida da superioridade de uma

raça sobre a outra, um julgamento prévio e negativo sobre alguém

baseado em estereótipos de grupo racial de pertença. A discriminação

racial é a atitude, a ação baseada em idéias preconceituosas, violando os

direitos das pessoas baseando-se em critérios injustos. “A discriminação

racial é tida como a prática do racismo, onde o preconceito se efetiva”

(GOMES, 2005).

Para muitas pessoas a sociedade e a escola são vistas como

preconceituosas e discriminadoras. Segundo depoimento de Nilma Bentes

(ALBERTI e Pereira, 2007, p.40) “... na escola é onde a gente aprende pela

primeira vez que existe discriminação, que existe a questão do negro”, e

para Sueli Carneiro (ALBERTI e Pereira, 2007, p.39) “ A partir do momento

em que a gente entra para a escola, começa a vivê-las (racismo)”. Nestas

falas podemos perceber a real situação a que são submetidas algumas

pessoas, onde a discriminação é vivida na “pele”. Sendo assim a relação

sociedade-escola é importante para a formação humana, é preciso “...

romper a omissão e o silêncio dos profissionais da escola possibilitando o

respeito à diversidade e mudanças no cotidiano da escola”. (CAVALLEIRO,

2005)

8

A situação dos negros e o preconceito racial na vida brasileira são

assuntos muito discutidos nas ciências humanas. Gilberto Freire ao

escrever Casa Grande & Senzala, segundo análise de muitos sociólogos e

historiadores, pôde ser considerado um saudosista da escravidão. Em sua

obra relata cenas de doce convivência, histórias felizes, experiências

afetivas com pessoas escravas... Segundo SCHWARCZ e NOVAIS (1998,

p.195), Freire manteve porém, em sua obra, os conceitos de inferioridade

e superioridade, bem como alguma violência e sadismo. Os senhores se

apresentavam severos mas paternais, ao lado de escravos fiéis, ou seja,

uma "boa escravidão". Ele transmitiu para o mundo a idéia de que no

Brasil a escravatura foi diferente, mais pacífica, o que faz pensar e

acreditar num Brasil com Democracia racial. Mas havia preconceito de

classe e o preconceito racial era apenas um ingrediente deste. A Unesco

(década de 40) interessada e impressionada pela idéia de que o Brasil era

uma democracia racial propõe um estudo sobre as relações raciais no

Brasil, em busca de esclarecimentos e comprovações, que foi

desenvolvido em São Paulo a partir da Universidade de São Paulo, com a

participação ativa e pioneira de Roger Bastide e Florestan Fernandes. O

resultado deste estudo foi traumatizante para muitos. Foi publicado em

Negros e brancos em São Paulo, dados e questões que revelaram a

realidade do preconceito racial. um texto escrito, fundamentado com

pesquisas de campo e com reconstruções históricas, que convenceu e

influenciou muitos estudos posteriores, e é claro incomodou a elite

brasileira e intelectuais.

Pois constatou-se que não é possível afirmar a democracia racial

num país em que as experiências de democracia política são precárias e

que a democracia social é praticamente inexistente; numa nação onde a

desigualdade de renda entre as famílias negras/pardas e brancas ainda é

de mais de 50%. (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2007);

num modelo de educação exclusivo, em que nem todos os que ingressam

nas escolas, saem devidamente escolarizados; onde apenas 4% dos

negros concluem a Universidade (Síntese de Indicadores Sociais- IBGE,

2007)... Se analisarmos nossa comunidade perceberemos que muitas

9

pessoas não estão inseridas na sociedade, mas sim marginalizadas e

desprovidas do direito à vida digna e a igualdade. No Brasil, observando a

concentração de renda entre os mais ricos, percebemos que 82,20% está

nas mãos dos brancos e apenas 17,80% nas mãos dos negros.

Percebemos ainda, que entre os pobres brasileiros 65% destes são negros.

(Censo 2000)

Cabe ressaltar que o currículo escolar, de modo geral, não aborda de

forma significativa as múltiplas identidades, há uma aparente

inferiorização dos negros e indígenas e uma supervalorização dos

brancos, o que podemos observar na maioria dos livros didáticos e

paradidáticos.4, uma vez que estes materiais mostram apenas imagens de

negros em situações de inferioridade social, preconceito e discriminação e

não apresentam a presença ativa e relevante do Negro na História do

Brasil. A visão eurocêntrica (visão de mundo que tende a colocar a

Europa, sua cultura, seu povo... como elemento fundamental na

constituição da sociedade moderna), a qual geralmente é utilizada no

processo de ensino, dificulta o sentimento de identidade no processo de

construção da história.

O desafio é “desenvolver, na escola, novos espaços pedagógicos

que propiciem a valorização das múltiplas identidades que integram o

povo brasileiro, por meio de um currículo que leve o aluno a conhecer

suas origens e a se reconhecer como brasileiro” (MOURA, 2005, p.69).

Leis: garantia de mudança?

As Instituições Escolares têm como papel fundamental na sociedade

trabalhar com as diferenças buscando a igualdade de direitos,

compreender as relações, romper com os estereótipos e refletir sobre as

identidades e os caminhos para uma educação pluricultural. As

dificuldades e os problemas sociais devem servir de alavanca para

4Nova História Crítica, de Mario Furley Schmidt, para o ensino fundamental, editora Nova Geração; Projeto Araribá, editora Moderna; História, Sociedade e Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior, editora FTD...

10

repensar valores na comunidade. A escola não deve servir para adaptar o

indivíduo ao meio social, mas sim favorecer o conhecimento e a criação

de condições de acesso à cidadania. Isso apenas é possível quando há

conhecimento, reflexão de comportamentos, valores, pensamentos e

discussões coletivas, pois como ensinou Paulo Freire (1977, p.79) “os

homens se educam em comunhão”. É necessário estabelecer o hábito de

conviver na diversidade.

Trabalhar com os educandos, sistemática e constantemente,

assuntos que contemplam a diversidade étnica e a cultura afro-brasileira

possibilitará o respeito às diferenças e a compreensão do Outro. Contudo,

uma pesquisa feita em São Paulo, em 2005 e 2006, pelo CEERT - Centro

de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades, mostra que os

professores abordam a temática somente em datas comemorativas, como

o 13 de maio - Abolição dos Escravos e o 20 de novembro - dia da

Consciência Negra.

Faz-se necessário portanto, observar se de fato está ocorrendo uma

mudança curricular, analisar como se dá a abordagem das questões

étnicas na prática docente, garantindo a implementação da Lei 10.639, de

09 de janeiro de 2003, que tornou obrigatória a inclusão no currículo das

escolas de Ensino Fundamental e Médio (públicas e privadas), o estudo da

História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Busca-se com isso, resgatar a

participação da raça negra nas áreas sócio-econômica, política e cultural

no cenário brasileiro.

Segundo ARAÚJO e CARDOSO (2003) o primeiro e mais importante

passo foi dado. É nos estabelecimentos de ensino – local adequado para

acontecer - que se poderá abordar de forma didático-pedagógico todo um

processo histórico cultural que envolve a presença da população afro em

solo brasileiro. Nos bancos escolares é que o aluno poderá tomar contato

com uma história até então não contada ou contada pelos outros de forma

deturpada e descolada da sua importância na formação da sociedade

brasileira. Existem grandes desafios para a Implementação da Lei

10.639/03, o que não é estranho ao tratarmos de questões desta

complexidade. Foram muitos os entraves colocados ao longo de todos

11

esses anos, são muitos os questionamentos e dúvidas sobre as

possibilidades da lei vingar. Mas é importante ressaltar o avanço com a

promulgação da lei, pois sua ausência mantinha a falta de perspectivas de

reivindicações e o eurocentrismo como conceito determinante em nossas

escolas. A visão eurocêntrica está enraizada nos educadores e nas

pessoas de modo geral. É muito difícil romper com concepções históricas

às quais convivemos em toda a formação acadêmica e até mesmo no

cotidiano familiar e social.

Sendo a educação uma via para a inserção na sociedade, o

conhecimento é o caminho que abre possibilidades à conquista de

espaços individuais e coletivos e à busca da igualdade de direitos.

Comparando as condições de vida dos brancos e dos

afrodescendentes nos diferentes setores, sejam eles sócio-econômico,

culturais, ocupacionais ou educacionais, observa-se que as desigualdades

são enormes.

...é impossível reduzirmos a questão racial no Brasil somente a uma questão de classe social. Os resultados mostraram nitidamente que, as políticas universais que vem ocorrendo, direcionadas à população pobre, apesar de muito bem aceitas, ainda não resolverão os graves problemas de segregação existentes, pois, mesmo inseridos num mesmo lócus (brancos e afros), as desigualdades continuam existindo e mais, tornam-se mais latentes nos afro-descendentes.

(BRANDÃO, 2003)

Em busca desta superação são criadas políticas de ações

afirmativas, que têm como objetivo principal reparar danos históricos.

Entre algumas destaca-se a reserva de vagas em universidades, cujo tema

passou a ser discutido em todo o país, gerando grandes debates em

diversos setores da sociedade e principalmente em âmbito universitário.

As ações afirmativas em relação às Cotas, forçadas pelo movimento

negro, passaram a ser discutidas politicamente no país. A questão já vinha

sendo debatida, há anos, dentro do movimento negro e ganhou espaço a

partir da adoção do sistema em duas universidades estaduais no ano de

2002 – Bahia e Rio de Janeiro. A partir de então, o Executivo Federal

12

encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta para levar as cotas para

todas as universidades federais do país.

O Projeto do Senador José Sarney que institui Cotas para Negros foi

aprovado em 08/05/2003. Prevê a garantia de 20% das vagas em

concursos públicos, universidades federais e contratos de financiamento

estudantil (FIES). Nas universidades, além das cotas, deverá ser instalado

um órgão de acompanhamento para alunos negros que ingressarem pelo

sistema. As cotas de 20% devem ser proporcionais à porcentagem de

população afro-descendentes do Estado.

Mas apesar do projeto aprovado, nem todas as universidades

públicas aderiram às cotas, diversas estão realizando pesquisa para uma

tomada de decisão. Cita-se aqui cinco universidades públicas brasileiras

que já adotam cotas - Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),

Universidade Estadual da Bahia (UNEB), Universidade de Brasília (UNB) e

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Universidade

Federal do Paraná (UFPR) e o critério usado, na maioria delas, para definir

quem é ou não negro é o da auto-declaração.

A pouca aceitação pública e o silêncio docente podem ser motivados

pela falta de conhecimento da história da resistência do povo africano e

afrodescendente em solo brasileiro. Sendo assim, este artigo tem também

o objetivo de contribuir para a ampliação dos conceitos e aprofundamento

teórico, apresentando a seguir parte da “luta” dos negros pelo respeito a

seus direitos.

Movimento social contemporâneo dos negros – suas ações

Ser considerado racista e discriminador são adjetivos que inquietam

os homens e a sociedade de modo geral. Discute-se muito a necessidade

de implementar ações que modifiquem as práticas sociais

marginalizadoras.

Mas, onde está a origem das lutas travadas pelos negros contra a

escravidão, a discriminação e a marginalização? Que organizações, que

ações e movimentos as entidades negras têm promovido?

13

No período escravista os negros foram destituídos de sua liberdade

como ser humano, de seu corpo, de suas crenças, seus costumes... e

reagiram, desafiando seus senhores, fugindo e formando os quilombos.

Lutaram em nome da liberdade e da igualdade de direitos entre todos.

O sentimento de luta e resistência, historicamente praticado nos

quilombos, sempre inspirou e serviu de referência para a continuidade da

luta de emancipação do negro. No decorrer dos tempos, os movimentos e

organizações, ora apareceram e fortaleceram-se, ora diminuíram a

intensidade, influenciados ou reprimidos por fundamentos sociais, políticos

e até econômicos. Uma luta contínua, não apenas pela liberdade com

também pelo direito e pela igualdade de oportunidades na sociedade.

Nas décadas de 1910 a 1960, a imprensa negra brasileira com seus jornais alternativos (os mais conhecidos "O Menelik", o "Clarim da Alvorada" e a "Voz da Raça") denunciava a situação de não integração do negro no mercado de trabalho, bem como a exclusão desta população nas esferas de decisão do país, mesmo porque muitos não poderiam votar já que eram em sua maioria analfabetos, outros eram pobres, desempregados formais e outros, ainda, empregados sem carteira profissionais assinadas e inúmeros sem posses de terras. (FONSECA, 2002)

Em 1931, foi fundada a Frente Negra Brasileira, importante milícia

frentenegrina, uma organização paramilitar, com uniforme e treinamento,

discriminada no início, mas que aos poucos conseguiu adquirir confiança e

respeito perante a sociedade e ao poder político. Dentre seus fundadores

encontramos Abdias do Nascimento5. Em 1936 transforma-se em partido

político, sua proposta fundamentava-se em uma filosofia educacional,

acreditando que o espaço do negro, sua afirmação, somente seria

conseguida pelo caminho da formação educacional.

Em 1944, surge no Rio de Janeiro o TEN - Teatro Experimental do

Negro, com o objetivo de abrir as portas das artes cênicas brasileiras para 5Grande nome do Movimento Negro no Brasil, pois participou ativamente em diversos momentos e ações históricas: Fundação do Teatro Experimental Negro, organização do I Congresso do Negro Brasileiro.. Paulista, nascido em Franca em 1914. Professor, escritor, dramaturgo, poeta e artista plástico.

14

atores e atrizes negras, fundado e dirigido também, por Abdias do

Nascimento. Tinha como objetivo a libertação cultural do povo negro. Esse

movimento foi responsável pela publicação do jornal Quilombo, que

retratou o ambiente político e cultural de mobilização anti-racista no

Brasil.

Nestes anos, proliferaram organizações negras de diferentes

aspectos em todo o país: cultural, social, política, literária...

Mas, os períodos ditatoriais (o Estado Novo e a Ditadura Militar)

refrearam todos os movimentos sociais no Brasil. E com o movimento

negro não foi diferente, sofreu todo o processo de repressão. Essa

situação impediu uma organização mais propositiva.

A partir dos anos 70, a luta do movimento negro é realimentada e

ressurge com toda a força. “A luta organizada contra o racismo

desembocou, enfim, num movimento negro de amplitude nacional e

claramente destacado de outros movimentos sociais e políticos” (RUFINO,

1994, p.94). Essa década representou uma nova fase, fortalecida, da

organização dos movimentos negros na retomada das lutas e das

resistências e na busca da identidade do povo negro. Denunciaram a falsa

idéia da democracia étnico-racial no país.

... ainda sob o regime militar os movimentos sociais rompem o silêncio: os negros gritam por oportunidades e igualdades sociais e o fim do racismo; os trabalhadores clamam por trabalho e emprego digno; as mulheres bradam por creches e contra a carestia e setores da Igreja Católica comprometidos com o povo pobre e trabalhador também suplicam aos céus e aos homens por justiça social.

(FONSECA, 2002)

O Movimento Negro (Santos, 2006) era formado por mais ou menos

400 entidades que ressurgiram dos antigos grupos de lutas

afrodescendentes. A consciência das constantes dificuldades que viveram

no decorrer dos tempos contribuiu para uma união entre os grupos do

movimento negro, o que representou organização significativa aos

militantes em busca de auto-afirmação e da recuperação da identidade

negra e cultural. Aparecem assim, o Movimento Negro Unificado – MNU

15

(1978) e algumas instituições como o Grupo André Rebouças (RJ), Centro

de Estudos Afro Asiático (RJ), Centro de Cultura Negra (MA), CECAN –

Centro de Cultura e Arte Negra (SP), Grupo Palmares (RS) e o Instituto de

Pesquisas das Culturas Negras – IPCN (RJ), estes entre outros.

Em 18 de junho de 1978, um grupo de negras e negros, desafiando

um momento conflitante da história criaram o MNUCDR – Movimento

Negro Unificado contra a Discriminação Racial, que mais tarde passou a

chamar-se MNU – Movimento Negro Unificado. Esse movimento nasceu da

inquietação e da indignação, foi uma resposta contra as ações

discriminatórias sofridas por meninos negros impedidos de freqüentar o

Clube de Regatas Tietê e contra a morte, sob tortura, do trabalhador

negro Robson Silveira da Luz, no 44º Distrito Policial de Guaianazes – SP.

Aconteceu uma manifestação pública, que reuniu três mil pessoas, nas

escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, que representou um ato de

protesto contra o racismo e uma proposta de unificação dos vários grupos

negros existentes. Após este Ato determinante, novas Assembléias

aconteceram e foram elaborados documentos para nortear o Movimento:

o Estatuto, o Programa de Ação e a Carta de Princípios...

O MNU transformou-se em uma das principais organizações negras

do mundo e dentre as suas muitas ações, destacam-se a luta contra

discriminação racial, a formação de lideranças políticas negras para

atuarem, a elaboração de propostas de superação do racismo em âmbito

escolar e a discussão da questão racial dentro dos partidos políticos de

esquerda.

Uma das deliberações mais importantes do movimento, em nível

nacional, foi a aprovação do dia 20 de Novembro como o Dia Nacional da

Consciência Negra, data importante a ser lembrada, a morte de Zumbi dos

Palmares, homem símbolo da luta contra toda forma de repressão e

exclusão. Diversos estudiosos e entidades do movimento negro (Agentes

de Pastoral Negros, a União dos Negros pela Igualdade, a Soweto –

articulação dos negros...) têm discutindo, desde 1980, que o dia 13 de

maio de 1888 não foi o dia da abolição dos negros, e sim o dia em que os

brancos não tiveram mais que se comprometer social e economicamente

16

com a manutenção daqueles submetidos à escravidão. O dia 13 de maio –

símbolo da “Abolição”- tornou-se para as entidades do movimento negro,

o Dia Nacional de Combate ao Racismo, enquanto que o dia 20 de

novembro tornou-se o dia de comemoração pela liberdade - o símbolo da

Resistência – um momento para recordar os ideais e os sonhos de Zumbi.

Em muitos municípios do país este dia já está instituído como feriado.

Em 1988 aconteceu uma série de movimentações sociais resultantes

do movimento negro: a luta pelo movimento internacional, liderados pela

ONU, para o fim do apartheid; a comemoração do centenário da abolição

da escravatura no Brasil; a Campanha da Fraternidade teve como tema o

combate ao racismo e a escola de samba Vila Izabel, que falou do

movimento negro, foi a vencedora do Carnaval carioca; sem falar é claro

da nova Constituição brasileira, que passou a considerar o racismo como

crime, o que foi regulamentado pela a Lei 7.716/856, do deputado negro

Carlos Alberto Caó.

Várias organizações foram surgindo dentro do movimento negro e

reclamando por mudanças sociais, políticas e educacionais. Dentre tantas,

abordamos algumas:

CEERT - Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades,

uma organização não-governamental, que tem o propósito de combater o

preconceito de raça e gênero no trabalho;

CRIOULA - fundada em 1992, no Rio de Janeiro, é uma instituição

conduzida por mulheres negras, de diferentes formações, voltada para o

trabalho com mulheres negras, com o objetivo de instrumentalizar para o

enfrentamento do racismo, sexismo e da homofobia vigentes na sociedade

brasileira. Tem como linhas de ações, entre outras, a defesa e garantia

dos direitos humanos, a ação política e articulações com instituições e

6 De autoria do Deputado Federal Carlos Alberto de Oliveira, a Lei Caó define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Esta lei estabelece doze tipos penais, dentre os quais, negar ou obstar emprego em empresa privada, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos, e prevê sanções que vão de um a cinco anos de reclusão, com a possibilidade de ser agravada em 1/3 (um terço) a pena, quando o crime previsto no art. 6º for praticado contra menor de dezoito anos( Art. 6º Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau). Os doze tipos penais previstos nesta lei admitem tentativa e co-autoria, nos termos da parte geral do Código Penal.

17

movimentos sociais, a difusão de informações, documentações e

publicações. São muitos os projetos e ações desta entidade;

HIP HOP - movimento cultural que adota uma postura de protesto social e

trabalha nas áreas carentes. Desenvolveu-se em São Paulo, na década de

80, mas consolidou-se na década de 90, e aos poucos espalhou-se a

outros lugares. Realiza oficinas e palestras sobre diversos temas. Tem o

objetivo de ampliar a consciência étnico-cultural e cidadã dos jovens,

criando uma identidade;

GELEDÉS - é o instituto da mulher negra. Atua nas diversas áreas: direitos

humanos, SOS racismo, promotoras legais populares, relações

internacionais e assistência jurídica e psicossocial a mulheres em situação

de violência;

UNEGRO - União de Negros pela Igualdade, é uma organização nacional,

com várias células estaduais, criada em 14 de julho de 1988, em Salvador,

na Bahia. Tem como principal objetivo lutar contra as desigualdades

raciais e sociais, seu lema central é "rebele-se contra o racismo".

Desempenhou papel importante na construção do I Encontro Nacional de

Entidades Negras, no Congresso Continental dos Povos Negros das

Américas, nos encontros nacionais de mulheres negras, de trabalhadores

e sindicalistas anti-racismo da CUT (Central Única dos Trabalhadores), da

Conferência Nacional contra o Racismo e da III Conferência Mundial Contra

o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,

realizada em Durbam, na África do Sul em 2001.

GRUCON - Grupo de União e Consciência Negra, nasceu da necessidade de

aprofundamento e resgate da origem da nossa cultura. Desenvolvem

reuniões, encontros de formação, além de aulas de arte e cultura.

Nos últimos 30 anos, o Movimento Negro influenciou a luta política

contra o racismo e colocou a desigualdade entre negros e brancos como

tema de ampla discussão do Estado brasileiro. Ampliou sua base social em

outras frentes de lutas como partidos, sindicatos, igrejas, mulheres,

estudantes, organizações não governamentais e em movimentos da

cidade e do campo.

As diversas ações realizadas pelas organizações vem provocando

18

algumas mudanças estruturais na sociedade brasileira. Uma discussão na

atualidade é a descrença na suposta passividade do negro diante da ação

libertadora do branco, a resistência sempre existiu demonstrada nas

fugas, revoltas e práticas como o banzo (suicídio), no sincretismo religioso

e nos aspectos culturais como a capoeira. As ações afirmativas, como a

elaboração da lei 10.639/03, as mudanças curriculares, as discussões na

mídia, a inserção de representantes negros na política pública, a luta

explícita contra o racismo e a discriminação, a política de cotas nas

universidades e concursos públicos, dentre outras, demonstram a real

transformação em alguns aspectos da sociedade.

Os Movimentos Negros contemporâneos lutam para que a escola e a

sociedade lembrem-se das lideranças negras e das formas de resistência

do povo negro. As ações vêm se consolidando a cada ano, ganhando

espaço, conquistando vitórias institucionais e a real cidadania do negro.

Tudo isso, apesar dos entraves políticos, sociais e culturais de um povo

que precisa retomar caminhos e realizar na prática a real democracia.

Um olhar de dentro da escola

A prática educativa se faz no processo, nas ações e intervenções no

cotidiano escolar. Conceitos e concepções podem ser pensados,

construídos e reconstruídos a todo momento, mas esta ação dependerá de

um trabalho consciente, partindo de uma boa sensibilização e

problematização orientada pelo docente e uma discussão sistematizada

com aspectos teóricos bem definidos.

Buscou-se um repensar sobre a prática pedagógica, analisando os

silêncios da ação docente em relação aos conteúdos referentes à Etnia

Negra, mais precisamente, referentes aos movimentos sociais

contemporâneos dos negros (1970-2000). Outra questão discutida foi a

escassez de material didático para o trabalho com a temática, bem como

a forma como o conteúdo foi e continua sendo abordado nos livros

didáticos. O desconhecimento dos conteúdos referente aos movimentos

contemporâneos dos negros é outro aspecto que dificulta o trabalho

19

docente. Há que se considerar ainda o Mito da Democracia Racial, uma

idéia ainda presente e fortalecida na sociedade brasileira.

Com o objetivo de discutir e buscar aprender as concepções dos

educandos e educadores acerca da questão problematizada aplicou-se um

questionário diagnóstico inicial, cujas respostas demonstraram o

desconhecimento dos conceitos e a dificuldade de compreender a real

situação de discriminação e exclusão vivenciada pelos negros. A partir das

questões levantadas foi proporcionado um estudo reflexivo entre os

educandos do Ensino Médio, mais especificamente das turmas diurnas do

Curso de Formação de Docentes, por serem esses os futuros educadores.

...o conceito de educador transcende o de professor. Este refere-se às competências específicas adquiridas por uma pessoa, que as transmite a outras, ensinando-as e treinando-as. Aquele “o educador” refere-se à responsabilidade na formação integral do cidadão, à cumplicidade radical entre educando e educador. O professor que não assume plenamente a função de educador e se exime de sua responsabilidade de ensinar a leitura do mundo, para restringir-se à leitura das palavras - utilizando expressões freirianas -, era considerado um técnico asséptico, reducionista, que reeditava na prática pedagógica a velha tese da neutralidade científica.

(NOSELLA, 2003)

Discutiu-se a temática com os educandos em diversos momentos:

na semana do Dia da Mulher, abordando a força e luta de algumas

personalidades femininas negras, inclusive com pesquisa, discussões e

elaboração de poesia com conhecimentos históricos relativos; e em

relação ao Dia Internacional de luta pela Eliminação da Discriminação

Racial buscou-se ampliar a compreensão do significado de Racismo,

preconceito e discriminação racial, conceitos antropológicos e construções

culturais (estereótipo e etnocentrismo).

Fez-se necessário repensar e discutir algumas afirmações que estão

impregnadas no imaginário de grande parte da população, como as

citadas a seguir:

No Brasil existe democracia racial; as oportunidades são iguais para

todos; a escola é universal, trata todos de forma igual; o preconceito vem

20

de casa; onde não há negros não é necessário trabalhar a questão e nem

mesmo as leis; racismo é problema dos negros e dos movimentos

organizados; negros e índios são nativos, precisam ser civilizados como

uma forma de cultura; o próprio negro se auto-discrimina; não temos

preparo para trabalhar o tema; a escola não discrimina ninguém, nem

propaga o racismo; as cotas, reserva de vagas para negros e

afrodescendentes, vão prejudicar a qualidade do ensino universitário...

Todas essas desconstruções, necessárias à busca da igualdade de

direitos provocaram algumas mudanças de concepções nos envolvidos, ou

pelo menos grandes pontos de interrogações. É na dúvida que se gera o

conhecimento, pois segundo Aristóteles (384-322 a.C.) “a dúvida é o

princípio da sabedoria”.

Foram apresentados e analisados também, alguns dados

estatísticos, com o objetivo de compreender realmente as diferenças de

oportunidades que existem, no que diz respeito à renda, educação e

moradia. Percebeu-se que as oportunidades, ou a sua ausência, não são

iguais e dependem de todo um contexto histórico, social, econômico e

político.

Os alunos analisaram ainda o Projeto Político Pedagógico do colégio,

observando a presença de conceitos referentes à Cidadania, Democracia e

respeito às diferenças, e se existe planejamento de ações relativas a esse

trabalho no marco operacional. Perceberam que nem tudo o que estava

expresso na proposta oficial acontecia na prática, pois os conceitos e as

concepções necessitam ser congregadas por todo o colegiado para uma

real implementação. Atividades reflexivas permearam todo o desenrolar

do trabalho, bem como a análise dos resultados observados nas atividades

e retorno aos educandos e à corporação docente de modo geral. Sentir-se

parte do processo é importante porque gera compromisso com as

mudanças curriculares.

Sendo assim, algumas propostas surgiram entre os educandos:

Elaboração e aplicação de um questionário diagnóstico para observar o conhecimento e a consciência das pessoas sobre as diferentes culturas; promover palestras referentes a Preconceito de cor/etnias, concepções política, diferenças

21

culturais - sociais e étnicas, administração de situações discriminatórias, história e cultura afro-brasileira...; elaboração e distribuição de panfletos informativos que mostrem a cultura e discutam as questões referentes à discriminação; debates em sala de aula e entre o colegiado; grupos de estudos entre alunos; discussões nas reuniões pedagógicas; passeatas e mobilizações; organização da I feira do Conhecimento da História e Cultura Afro-brasileira; atividades que envolvam a família na discussão étnico-racial (estudos, palestras...); e exposição/conhecimento da Lei Nº10.639/03 à comunidade escolar e local...

(Alunos(as) do Curso Formação de Docentes – CE D Pedro I, 2008)

Após o trabalho com os alunos, percebeu-se nos depoimentos, um

posicionamento, uma tomada de consciência sobre a importância de

discutir o tema com a comunidade escolar para a real implementação das

idéias democráticas presentes no Projeto Político Pedagógico, bem como o

reconhecimento e o respeito às diferentes culturas existentes no espaço

escolar e na sociedade de modo geral.

(...)

E depois de décadasO chocolate começa a ser valorizadoE do jantar não vem só hematomasE da voz vem o gritoEu sou livre para pensarPara opinar, para dizer sim ou nãoEu sou livre para amar(...)

(Jéssica Rodrigues, aluna Formação de Docentes, CE D. Pedro I, 2008)

Com os docentes, nos momentos da hora-atividade, abordou-se a

temática, levantando as indicações apresentadas pelos educandos, bem

como a discussão teórica relativa a democracia racial, a forma como a

temática se apresenta nos livros didáticos e no cotidiano escolar, e ainda

que materiais disponíveis existem. Após alguns estudos e reflexões, o

material didático elaborado – OAC – foi apresentado, discutido e analisado

pelo grupo para posterior implementação. O material possibilita maior

aprofundamento teórico, conhecimento da Lei Nº 10.639/03, as políticas

afirmativas, mais especificamente as Cotas, um debate sobre o direito da

terra – quilombos e quilombolas, a presença e implementação de

22

conceitos democráticos, e é claro, o conhecimento das ações do

movimento negro. Além disso, foram propostas atividades de análise e

reflexão em um trabalho contextualizado, promovendo a

interdisciplinaridade com Geografia e Sociologia e ainda uma análise de

vídeos e leituras de livros selecionados.

Ampliando as discussões, organizou-se uma reunião teórico-prática

com membros das Equipes Multidisciplinares dos diferentes

Estabelecimentos de Ensino desta região, momento em que se discutiram

todos estes elementos e foram indicados mecanismos de disseminação a

outros espaços escolares.

A proposta de trabalho contribuiu muito no sentido de despertar o interesse dos alunos pela questão étnico-racial e principalmente em discussões pouco abordadas como a democracia racial, um olhar mais crítico sobre o livro didático e sobre a atuação na população negra na construção da história. Um exemplo desse interesse é que na Feira do Conhecimento do Colégio teve trabalhos abordando o assunto – o sistema de cotas. Em relação ao corpo docente, as discussões feitas foram de muita relevância, levando todos a um processo de reflexão, discussão e ampliação de conhecimentos em relação a prática docente na abordagem étnico-racial. Para o coletivo, após a análise do marco conceitual do P.P.P. pelas alunas, houve uma proposição de ações a serem desenvolvidas para melhorar o trabalho com a cultura Afro-brasileira.

(Depoentes: Pedagogos Orlei Campanharo e Rosangela Berese, Diretora Nanci Bassani, 2008)

Frente a isso as discussões e estudos atingiram seu objetivo,

promovendo um repensar da prática docente, uma ressignificação dos

conceitos e aprofundamento teórico voltadas à etnia negra, bem como

mudanças e adequações curriculares, o que podemos constatar nas

palavras dos pedagogos e diretora do colégio Estadual D. Pedro I, local do

estudo de caso.

23

Considerações finais

Ao término deste trabalho, algumas reflexões devem ser tecidas

para fortalecer sua construção. Destaca-se que foi a primeira aproximação

da autora com a temática no sentido acadêmico, logo, algumas lacunas

histórico-historiográficas evidentemente não puderam ser preenchidas.

Soma-se a isto, o aspecto da pouca produção paranaense sobre o tema

em apreço, o que dificultou o acesso a bibliografias complementares.

Dessa forma, o desafio da pesquisa foi frustrante, em alguns

momentos, tendo em vista a validade cidadã do tema. Porém, ao mesmo

tempo, o caráter relativamente inédito deste, valoriza sua edificação e os

esforços percorridos na sua produção.

Os primeiros aspectos que ressaltamos aqui, como fecho deste

trabalho seriam a resistência percebida na prática educativa, entre os

docentes, as dificuldades e desconhecimento de questões pontuais

necessárias e fundamentais às discussões referentes à temática.

Trabalhar com questões de preconceito e discriminações, historicamente

construídas, arraigadas nas concepções e na própria formação humana,

sempre encontram resistências. Observou-se ainda um latente

descompromisso da comunidade escolar em relação ao aprofundamento

teórico e implementação das ações necessárias à desconstrução de

conceitos incutidos, por meio da formação religiosa, familiar, escolar,

política e social, através de diversas práticas a que o povo brasileiro foi

submetido e incorporado ao longo do tempo.

Outro ponto a destacar são as concepções existentes entre os

educandos impregnadas pelos conceitos, excludentes e discriminatórios,

baseados no senso comum, como por exemplo “eles mesmos (os negros)

se auto-discriminam”. Foram necessárias amplas discussões e análises

textuais para que alguma mudança fosse percebida. Os discursos foram

aos poucos modificados, mas o processo não se encerra aqui. Muito há

que se fazer para uma transformação consistente em relação a

valorização e respeito à História e Cultura Negra.

24

REFERENCIAS:

ALBERTI, Verena e PEREIRA, Amílcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Org. Verena Alberti e Amílcar Araújo Pereira – Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC. FGV, 2007.

ARAÚJO, Joel de. e CARDOSO, Patrycia de Resende. Alforria Curricular através da Lei 10.639. Revista Espaço Acadêmico nº. 30, novembro/ 2003 – mensal ISSN 1519.6186. In:http://www.espacoacademico.com.br/030/30caraujo.htm. Acesso em: 23/06/2007

BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo. Ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 3ª edição, São Paulo: Nacional, 1971.

BRANDÃO, André Augusto P. Pretos e pobres, parecidos, mas não iguais: desigualdades raciais em áreas pobres. Rio de Janeiro, Políticas da cor, UERJ, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. MEC – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília. Out.2004.

CARVALHO, José Murillo de. A nova historiografia e o imaginário da República. Revista do Programa da Pós-Graduação em História. Porto Alegre. UFRGS, nº 3, 1995.

CAMPOS, Maria do Carmo & INDURSKY Freda.(org.). Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2000.

CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-Racismo na educação. Repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001.

Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil/ Construindo um Projeto Político do Povo Negro para o País. Movimento Negro Estadual do PDT/MG, In: http://www.pdtmg.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=242&Itemid=47 Acesso em: 20/06/2007

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.79.

25

FONSECA, Dagoberto José. De Palmares à consciência Negra. Revista Missões on-line.In: http://www.revistamissoes.org.br/quadro2.php?url=edicoes/09_2002/encarte.php Acesso em: 29/10/2007.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algumas Estratégias de Atuação. In: Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada / Kabengele Munanga, organizador. – [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de Antropologia, 2004, vol.47, n. 1, ISSN 0034-7701.

IANNI, Octavio Octavio Ianni: o preconceito racial no Brasil. Estudos Avançados, 2004, vol.18, n. 50, ISSN 0103-4014.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Indicadores: Trabalho e Rendimentos, 2002.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Indicadores: Trabalho e Rendimento/ Educação e Trabalho, 2007.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Estudos e Pesquisas, 2007.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 4ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, 112 p.

LDB – Lei de Diretrizes e Bases. Lei n. 9.394 de 20 de novembro de 1996. Congresso Nacional – Brasília.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4 ed. Campinas, São Paulo: Unicamp, 1996.

LEI N.10.639 de 9 de Janeiro de 2003. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos jurídicos.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada. 3 ed, São Paulo: Contexto, 2001.

MOURA, Glória. O direito à diferença. In: KABENGELE, Munanga. Superando o racismo na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. SECAD/MEC - Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

26

NOSELLA, Paolo. Compromisso político e competência técnica: relendo Gramsci. Textos: Gramsci e o Brasil, 2003. Acesso em 17/11/2008 in: http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv332.htm

Pesquisa mostra que Diversidade Racial ainda não faz parte de curriculos escolares. Agência Brasil. Novembro 2007. In: www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/11/19/materia.2007-11-19.1873236563/view – 29k. Acesso em 04/12/1007.

POUTIGNAT, Philippe. Teorias da Etnicidade. Seguidos de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Tradução de Élcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

SANTOS, Regina Coeli Benedito dos. Raça, sexualidade e política: um estudo da constituição de organizações de lésbicas negras no Rio de Janeiro. Dissertação – Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2006. p 44.

SCHWARCZ, Lilia Moritz e NOVAIS, Fernando A. História da Vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 184.

RUFINO, Joel e BARBOSA, Wilson do Nascimento. Atrás do muro da noite. Brasília. Ministério da Cultura/ Fundação Cultural Palmares, 1994.

27