da escola pÚblica paranaense 2009 - … · universo, bem como, de todos os seguimentos da vida...
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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Produção Didático-Pedagógica
Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE
VOLU
ME I
I
CADERNO TEMÁTICO
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃOPROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL (PDE)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
Professora PDE: Maria Rosânia Mattiolli Ribeiro Orientadora: Terezinha Oliveira (UEM)
A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA: A RECUPERAÇÃO DO CONTEÚDO E DA
CONSCIÊNCIA POLÍTICA DO EDUCADOR/EDUCANDO
MARINGÁ – PR.2010
1
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃOPROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL (PDE)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
Professora PDE: Maria Rosânia Mattiolli Ribeiro Orientadora: Terezinha Oliveira (UEM)
A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA: A RECUPERAÇÃO DO CONTEÚDO E DA
CONSCIÊNCIA POLÍTICA DO EDUCADOR/EDUCANDO
Tema: A escola e sua influência na formação política dos cidadãos.Área de concentração: PedagogiaProfessora PDE: Maria Rosânia Mattiolli RibeiroProfessora Orientadora: Terezinha Oliveira - UEM
MARINGÁ – PR2010
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SUMÁRIO
1 - Apresentação 04
2 - Programa previsto 06
3 - Introdução 06
4 - A Ética como referencial teórico-pedagógico na formação do professor 09
5 - Conceitos estruturantes na formação docente 18
6 - Diferenças entre Pedagogia e Educação 29
7 - A importância dos clássicos e a especificidade da educação escolar 35
8 - A formação dos sujeitos: a relação entre indivíduo, sociedade e natureza 39
9 - Considerações finais 42
10 - Referências 46
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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃOPROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL (PDE)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
Professora PDE: Maria Rosânia Mattiolli Ribeiro1
Orientadora: Terezinha Oliveira (UEM) 2
A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA: A RECUPERAÇÃO DO CONTEÚDO E DA
CONSCIÊNCIA POLÍTICA DO EDUCADOR/EDUCANDO
APRESENTAÇÃO
Relacionado ao Projeto de Implementação Pedagógica na Escola,
apresentado para ingresso no Curso PDE (Programa de Desenvolvimento
Educacional), viabilizado pela SEED (Secretaria de Estado da Educação) do
Paraná, este material didático tem como objetivo geral instigar uma reflexão acerca
do tema: A escola e sua influência na formação política dos cidadãos. Dada a
abrangência e complexidade deste, dar-se-á ênfase a um assunto específico: “A
função social da escola: a recuperação do conteúdo e da consciência política do
educador/educando”.
Trata-se de um texto didático direcionado a pedagogos, professores e alunos
do quarto ano do Curso de Formação de Docentes em nível médio. Seus objetivos
específicos são: incentivá-los e orientá-los a refletir acerca do papel e do sentido
adquirido pela escola diante das contradições que permeiam as relações sociais da
época atual; contribuir para a análise de como os conteúdos estão sendo
ministrados, como os indivíduos estão sendo formados para exercer seu papel
social e com qual consciência política acerca da sua prática cidadã. A
intencionalidade deste “Caderno Temático”, portanto, é despertar para uma reflexão
1Professora e Pedagoga da Rede Pública Estadual desde 1986. Atua também como professora do Curso de Pedagogia do Centro Universitário de Maringá (CESUMAR).2 Professora Doutora da Universidade Estadual de Maringá. Atua no Departamento de Fundamentos da Educação na área de História e Historiografia da Educação com pesquisas sobre a Idade Média.
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acerca da importância dos conteúdos escolares para a formação da consciência
política de educadores e, conseqüentemente, dos educandos.
A perspectiva teórica é de que a formação deve ter passar por uma base
teórica sólida, consistente e fundada em princípios históricos, situando os fatos e
acontecimentos políticos, econômicos, sociais, filosóficos e sociológicos. Considera-
se também que as questões éticas e morais permeiam, e sempre permearam, as
relações sociais e hoje existe a possibilidade de levar os homens a uma
compreensão tanto sobre como as sociedades foram organizadas nos diferentes
tempos e espaços históricos quanto das relações sociais que sustentam essas
formas de organização.
Esses princípios necessariamente devem abranger as diversas áreas de
conhecimento, que, dessa forma, podem contribuir para um equilíbrio pedagógico
(teoria/prática) e para apontar caminhos para uma atuação dinâmica do ponto de
vista da consciência teórico-prática da formação dos indivíduos.
Atuação dinâmica, neste caso, não tem o sentido de trabalho “movimentado”,
do “fazer pelo fazer”, da “prática pela prática”, mas o de trabalho sustentado por
concepções e teorias que fundamentem uma análise dos princípios históricos e
filosóficos que sustentam a educação nos diferentes momentos, principalmente, a
educação escolar. Essas concepções e teorias devem fazer parte da formação dos
cidadãos desde o início de sua educação.
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PROGRAMA PREVISTO
Subtemas a serem desenvolvidos
1 - A Ética como referencial teórico-pedagógico na formação do professor
2 - Conceitos estruturantes na formação docente
3 - Diferenças entre Pedagogia e Educação
4 - A importância dos clássicos e a especificidade da educação escolar
5 - A formação dos sujeitos: a relação entre indivíduo, sociedade e natureza
INTRODUÇÃO
Quando se pensa a educação escolar, formal, sistemática, é relevante refletir
sobre a função social da escola, especialmente porque as propostas que orientam
as concepções de ensino são, na maioria das vezes, desconhecidas pelos
professores. Esse desconhecimento manifesta-se também no não uso ou mau uso
das tecnologias em educação. A falta dos subsídios teórico-metodológicos em
relação ao conhecimento, que resulta na superficialidade na apresentação dos
conteúdos escolares, prejudica significativamente o processo de ensino e
aprendizagem.
Vivemos um momento crucial do ponto de vista político–pedagógico. Por
exemplo, quando a escola é instada a resolver problemas que são alheios à sua
competência, deixa de cumprir sua real função, que é a de transmitir o saber
histórico, científico, pensado, produzido e elaborado pelos homens. Sem o
conhecimento histórico, de caráter científico, não ocorre a formação do e para o
humano
Para desenvolver as capacidades intelectivas dos indivíduos são exigidos
esforço e dedicação por parte das instâncias políticas e administrativas e das
instituições educativas representadas pelo seu corpo docente e discente. É possível
afirmar que todo saber é adquirido de alguma forma, mas existe um saber
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específico, científico, que precisa ser ensinado na escola e, para ser ensinado, não
pode se restringir a informações do senso comum. Assim, quando se parte da
realidade do aluno é necessário avançar para o nível de desenvolvimento adquirido
pelo conhecimento.
Por senso comum entende-se aqui os conhecimentos adquiridos no cotidiano,
aprendidos fora da instituição escolar, nos diversos espaços sociais, onde é
possível estabelecer a comunicação, a linguagem oral, falada, o diálogo, enfim, a
conversa informal. Refere-se, portanto, aos conhecimentos que ainda não
passaram pela mediação do professor ou da escola como espaço institucionalizado
e sistematizado do conhecimento. Embora esse conhecimento possa representar o
ponto de partida, faz-se necessário avançar para um nível mais elevado, o
científico.
Recorre-se aqui a Oliveira (2009), de cuja análise sobre a formação de
professores em Tomás de Aquino, intelectual, filósofo e teólogo da Idade Média,
retira-se a seguinte reflexão:
[...] ser é precisamente tudo o que existe, mas, somente o homem possuiria o ser na totalidade na medida em que é formado pela junção de duas ‘partes’, a intelectual e a material. São elas que possibilitam a formação do Ser, tornando-o um ser único e indivisível (OLIVEIRA, 2009, p. 76-77).
Considerando o contido nessa citação, pode-se concluir que aos sujeitos
cabe estabelecer a diferença entre os saberes do cotidiano e os escolares e
valorizar os últimos. Os conhecimentos escolares pela sua dimensão histórica
podem modificar no homem, sua forma de ser, pensar, agir, de se relacionar com as
pessoas, portanto, de viver em sociedade. São os conhecimentos voltados à
história, à filosofia, à reflexão, aos princípios que nos tornam verdadeiramente
humanos. Dessa forma, entende-se que o professor necessita comprometer-se com
sua função, ter consciência ética e política da sua responsabilidade profissional na
formação dos cidadãos e de que sua finalidade é o exercício consciente da
cidadania. É pelo conhecimento que o homem, como sujeito social, se transforma.
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A especificidade dos conteúdos e conhecimentos científicos, nesta lógica,
aparecem difusos para os educadores, diferentemente das áreas técnicas, cujos
objetivos são operacionalizados conforme interesses de agentes relacionados aos
mais diversos campos profissionais.
A tendência à adaptação e à reprodução em detrimento da emancipação dos
indivíduos expressa o estado de alienação dos sujeitos, que não conseguem
entender as contradições desse processo. O conhecimento histórico deve permear
o âmbito educacional numa perspectiva dialética que favoreça a análise e a
superação dessas contradições.
As políticas públicas têm levado a escola a cumprir inúmeras exigências
educacionais. A própria perspectiva do trabalho por projetos demonstra certa
superficialidade no desenvolvimento dos conteúdos propostos, a exemplo dos
temas transversais, que são abordados como se fossem alheios ou estanques em
relação aos conhecimentos transmitidos pela instituição escolar. Embora, na
verdade, os projetos tenham sentido pedagógico, não se pode negar que,
geralmente, eles se esgotam num tempo determinado e, assim, acabam por
fragmentar o conteúdo científico.
Em razão disso, pretende-se, neste texto, instigar uma reflexão com base em
referenciais que conduzam ao pensamento histórico e favoreçam a compreensão
de como as sociedades se organizam e se educam para as mais diferentes
realidades. Propõem-se, como objetivos gerais: analisar a educação escolar na sua
especificidade, já que ela pode levar à aquisição dos fundamentos apropriados para
que educadores e educandos pensem na humanização e emancipação dos sujeitos
históricos; refletir sobre as condições em que se realizam os processos formativos
na instituição escolar, ou seja, sobre o contexto social, político e econômico da
formação de professores e do trabalho com o conteúdo escolar.
Como objetivos específicos, propõem-se: buscar subsídios que possam indicar
historicamente as perdas em relação aos conteúdos escolares, ou seja, os
fundamentos teóricos que representam sua essência, e, portanto, suas implicações
na formação humana; perceber como se dá a formação para a humanização e
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emancipação dos homens numa perspectiva ética e moral, fundada em princípios
históricos, filosóficos e sociológicos, comumente encontrados na literatura clássica
e que podem contribuir para ações docentes fundamentadas e contextualizadas;
reconhecer nos clássicos a possibilidade de compreensão da necessidade de uma
consciência política na atuação docente.
Pressupondo que, nesse quadro, ter-se-ia uma formação acadêmica
comprometida, cabe-nos perguntar: por que a escola não está cumprindo sua
função social; o que explica a ausência da consciência política dos sujeitos; como
fica a formação de professores e, conseqüentemente, dos alunos; como fazer para
que os educadores e educandos percebam a importância do conteúdo produzido
historicamente pelos homens; o que levou a esse esvaziamento e a partir de que
momento histórico, considerando que a escola data do século XIX? Esses são
algumas indagações que orientam este estudo.
Com base nelas, procurar-se-á abordar algumas questões que se colocam
como essenciais para pensar a função da escola e a recuperação do conteúdo
escolar. Para desenvolver uma consciência política do educador e do educando não
basta simplesmente trabalhar os conteúdos programáticos estabelecidos pelas
diretrizes, mas fazê-lo com compromisso e responsabilidade ética. Considera-se
que o necessário é destacar como os conteúdos estão sendo desenvolvidos na
escola e em que medida os objetivos a eles relacionados são atingidos.
1 - A ÉTICA COMO REFERENCIAL TEÓRICO-PEDAGÓGICO NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR
Ética vem do grego Ethikós, significa “modo de ser”. A palavra ética explica o
comportamento humano tendo em vista o seu valor moral, a natureza do bem e do
justo. Por tratar dos valores em sociedade, ou seja, do comportamento humano pelo
seu aspecto moral, também é chamada de filosofia moral.
Quando se dispõe a falar de Ética, necessariamente se entra no campo da
Filosofia, cuja origem se encontra nas condições sociais, econômicas e culturais da
Grécia Antiga, representando um grande avanço na busca pela compreensão do
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universo, bem como, de todos os seguimentos da vida humana, seja no âmbito da
política, ou seja, no âmbito dos valores e princípios que permeiam o mundo dos
homens.
Na reflexão sobre ética, é necessário se reportar a um dos mais ilustres
filósofos do Ocidente, Aristóteles3, nascido em 384 a. C., em Estagira, na Trácia.
Com 17 anos, ele foi para Atenas, com o objetivo de completar sua educação,
possivelmente atraído pela vida cultural da cidade e pelas grandes possibilidades
de estudos que ela oferecia.
Encarregou-se posteriormente da educação de Alexandre, filho do Rei da
Macedônia, que estava com 13 anos. Em virtude da relação com o mestre,
Alexandre, durante a sucessão de seu pai no reinado, enviou a Aristóteles material
de estudo e ajuda financeira para seus projetos educacionais.
Para Aristóteles, a arte e a investigação, visando sempre um bem qualquer,
ofereciam condições para que as demais coisas da vida tendessem também a esse
bem. Ele afirmava que, como as artes e as ciências possuíam muitas ações,
existiam também muitas finalidades a ser atingidas. Considerava também que o
maior bem buscado pelas ciências era o conhecimento, já que por meio dele se
produzia a existência humana e se compreendia a realidade social, política,
econômica, cultural.
Desse ponto de vista, o conhecimento é, então, o objeto de estudo das
ciências políticas e humanas.
As primeiras, que propiciam o bem aos indivíduos e à sociedade como um
todo, caracterizam-se pela organização, pelo estabelecimento de normas e regras
em benefício do bem comum, ou seja, que “deveriam” beneficiar, já que o que é de
interesse coletivo é o bem mais nobre que pode existir. Pela representação política
tem-se o homem cidadão, o dirigente, mas as questões sociais precisam abranger a
sociedade em toda a sua dimensão, com toda sua forma de organização.3Insistia Aristóteles em que devemos conhecer as coisas através de suas causas, descobrindo pelo conhecimento as leis reguladoras dos fatos. Um de seus aforismas prediletos sobre o problema do conhecimento é o de que “nada existe no pensamento que não tenha passado primeiro pelos sentidos”.
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Quanto às segundas, as ciências humanas, estas devem ter como fim a
felicidade, o bem estar, enfim, a apreensão de todas as coisas que levariam os
homens à tranqüilidade, à quietude em relação à própria vida. Quando as normas e
regras estabelecidas pelos que governam seguem esses princípios sendo em e
para benefício de todos, pode-se dizer que há o cumprimento da cidadania. Isso
nos motiva a pensar esse valor social como algo ainda a ser conquistado.
Na concepção de Aristóteles, o homem é, por sua própria natureza, um ser
político, cuja felicidade é realizada na pólis. É na cidade que se atinge esse bem,
justamente porque ela se caracteriza como uma coletividade. Nesta dinâmica,
portanto, em que os homens têm a possibilidade de exercer suas virtudes, não
haveria sentido em praticar as virtudes, senão em benefício do bem comum. Assim,
a felicidade é o fim último e o bem supremo que todos os homens devem desejar.
Quanto a isso, o filósofo apresenta uma questão interessante: “as coisas são
evidentes em duas acepções: algumas o são relativamente a nós, outras o são
absolutamente” (ARISTÓTELES, 1992, p. 19). Acrescenta:
Devemos começar pelas coisas evidentes para nós. Por isto, quem quiser ouvir proveitosamente exposições acerca do nobilitante e do justo e sobre a ciência política em geral deverá ter adquirido bons hábitos em sua formação. O princípio é o que é, e se isto for suficientemente claro para o ouvinte, ele não necessitará também do por que é, e quem foi bem educado já conhece ou pode vir a conhecer facilmente o princípio (ARISTÓTELES, 1992, p. 19 - 20).
Com base na passagem acima, entende-se que, para o autor, o
conhecimento é um bem. Por isso, buscar-se-á destacar, em sua filosofia, a
passagem da Ética a Nicômacos em que, citando Hesíodo4, ele afirma que os que
não conhecem nem podem vir a conhecer deveriam ouvir as palavras desse antigo
filósofo (HESÍODO apud ARISTÓTELES, p. 20):
4O público para quem fala Hesíodo são proprietários fundiários, pequenos agricultores e, principalmente para seu irmão, Perses. O poema “Os Trabalhos e os Dias” divide-se em duas partes: a primeira corresponde aos 382 versos iniciais, que constituem uma reflexão mítico-religiosa. Dos versos (1 ao 10) invoca pedindo permissão às Musas para transmitir as verdades divinas a seu irmão. A segunda refere-se a conselhos práticos relativos à agricultura e à navegação, quando também inclui admoestações morais.
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Melhor, e muito, é quem conhece tudo só;É bom quem ouve dos que sabem; quem não sabePor si nem abre o coração à sapiência alheia,este é um homem totalmente inútil.
Podemos pensar que esta questão está relacionada a valores relacionados à
sabedoria. Saber ouvir é uma virtude que deve ser desenvolvida por todos os
homens. A “deficiência”, essa “não virtude”, necessita ser trabalhada desde a mais
tenra idade, principalmente na instância escolar, ou melhor, antes mesmo de a
criança ir à escola.
A escola, à medida que promove o desenvolvimento das capacidades
intelectivas, deve criar condições para que esse objetivo seja alcançado. O silêncio
é, portanto, uma condição para a aprendizagem. Como uma pessoa ouve ao
mesmo tempo em que fala? Como estar atento às explicações do professor e ao
mesmo tempo às coisas alheias às intenções da aula? Parece-nos que é impossível
aprender em condições inadequadas.
A tolerância para ouvir deve permear o cotidiano dos homens, ser valorizada
como um dos requisitos para a apropriação do conhecimento. Esse princípio, tão
retratado pela literatura clássica dos grandes pensadores da humanidade, encontra-
se distante de ser atingido na nossa contemporaneidade.
Considera-se aqui o estudo realizado em uma das disciplinas do Curso de
Doutorado em Educação - “Tópicos Especiais da Educação”. É pertinente ressaltar
essa importante contribuição, cujas temáticas foram desenvolvidas e discutidas no
primeiro semestre do ano corrente pela professora Terezinha Oliveira (2010).
Quando se afirma que a tolerância é uma virtude, deixa-se claro que o objetivo
não é valorizar uma tolerância comodista em relação, por exemplo, aos fatos
decorrentes da corrupção, dos desmandos políticos e econômicos a que os homens
hoje estão submetidos. O objetivo é destacar uma virtude, por meio da qual se pode
ouvir, apreender, interagir com os outros, estudar a história, conhecer o processo de
civilização das sociedades, compreender a importância do conhecimento, de ler um
livro, enfim, destacar que a tolerância é uma virtude fundamental para que os
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homens adquiram os elementos fundamentais que os tornem cidadãos políticos.
Políticos no sentido da participação consciente nas questões que envolvem a
coletividade.
Nos tempos atuais, a escola luta para recuperar sua função social, ou seja,
retomar seu espaço institucionalizado do saber formal. Discute-se em que medida
os sujeitos conseguem se apropriar desses conhecimentos para atingir sua
humanização. Humanizar-se implica adquirir os valores éticos e morais advindos
dos saberes produzidos historicamente pelos homens.
Constatamos, hoje, que crianças, adolescentes e jovens não são educados a
ouvir, a serem tolerantes e pacientes para valorizarem o “saber ouvir”. Essas
questões não estão colocadas na ordem do dia pela maioria das pessoas. As
famílias não conseguem fazer com que seus filhos exerçam essa capacidade, a
escola, por sua vez, já recebe os alunos com alguns vícios provenientes da
dinâmica social e familiar, na qual não estão habituados a exercer a conduta própria
para a apreensão dos conhecimentos transmitidos pela escola. O que a escola faz
diante desse problema? Que ações, atitudes ou posturas são adotadas para
compreender e intervir nesta realidade com consciência e compromisso
profissional?
O que nos faz refletir é justamente a ausência de responsabilidades, que
deveriam ser observadas em todos os envolvidos no processo educacional dos
homens. Essa questão, que perpassa a escola, os processos de formação de
professores, a família, a disciplina na escola, revela que os valores, os princípios e
a conduta cidadã resultam da formação e que a escola, como um segmento da
sociedade, reflete as condições nela estabelecidas.
Voltando um pouco a Hesíodo, a “Os Trabalhos e os Dias”, procura-se
demonstrar que Aristóteles buscou nesse filósofo da Antiguidade o sentido do maior
valor, a sabedoria. Dirigindo-se a Perses, Hesíodo procura convencê-lo dos
benefícios do trabalho, uma forma plena de excelência moral.
Homem excelente é quem por si mesmo tudo pensa, refletindo o que é então e até o fim seja melhor; e é bom também quem ao
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bom conselheiro obedece; mas quem não pensa por si nem ouve o outro é atingido no ânimo; este, pois, é homem inútil (HESÍODO, v. 295, p. 43).
As virtudes são concebidas para tornar o homem, homem. Aqueles que
buscam os valores, os princípios que caracterizam essa formação humana, têm
maior consciência do seu papel social. É fato que os valores são construídos e
aprendidos, mas, ao mesmo tempo, é preciso querê-lo. Hesíodo, um filósofo da era
anterior à Cristã, ensina-nos com sua sabedoria qual deve ser a conduta para
conseguir isso.
Aristóteles, por sua vez, ao tratar da sabedoria, indica três modos de vida: a
inútil, a política e a contemplativa.
A inutilidade do homem aponta para a questão da ignorância. Trazendo essa
questão para uma reflexão contemporânea, afirma-se que o servir-se de coisas
inúteis não eleva o espírito para adquirir o bem maior, o conhecimento, a sabedoria.
Isso requer um rigor histórico e científico que se contrapõe ao pragmatismo
cotidiano.
Ao tratar da vida política, Aristóteles aponta três formas de governo, e, ao
mesmo tempo, seus desvios e perversões. Tanto a monarquia, quanto a
aristocracia ou governo constitucional, podem ser coerentes quando voltadas para o
bem comum, ou interesses comuns, ou podem se corromper quando priorizam,
utilizando uma linguagem contemporânea, somente o interesse privado.
Ao destacar o terceiro princípio, o da vida contemplativa, Aristóteles aborda
os bens que se relacionam com a alma, as ações e as atividades relacionadas ao
campo psíquico. As boas ações elevam o espírito, fazem bem à alma. Praticar o
bem conduz, portanto, à felicidade. Para o filósofo, o homem bom não possui
conflitos, e sim, paz, mantendo o equilíbrio entre seus interesses e os dos demais.
Nessa perspectiva, ética e política não se separam, da mesma forma que não se
separam o ser individual e o coletivo (social).
Um Estado somente encontra a felicidade quando é baseado na prudência,
virtude que leva às ações mais nobres na sociedade. Seus fins devem ser os do
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bem comum. Ou seja, a idéia de felicidade colocada por Aristóteles identifica-se,
portanto, ao melhor governo, ao melhor dirigente.
Cabe aqui abordar a concepção de Estado desse mestre da Antiguidade.
Segundo ele, o Estado era uma instituição natural, cuja finalidade seria a segurança
da vida social, a regulamentação da vida coletiva, a organização, pelas vias legais,
da convivência humana. O Estado seria superior ao indivíduo. Entende-se, pois,
que as necessidades do coletivo eram satisfeitas com base na organização “desse
estado”, pois, o homem, como um ser social e político, só poderia atingir sua
perfeição (prática de ações nobres) com base na coletividade, ou seja, no Estado.
Para Aristóteles, um homem que pratica ações nobres nunca se tornará infeliz.
Segundo ele, a felicidade é resultante de uma virtude louvável do espírito que se
divide em intelectual e moral.
Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra “hábito” (ARISTÓTELES, 1992, p. 35), grifos meus.
Outros autores, de outros tempos, procuram se basear na Antiguidade para
encontrar os fundamentos das virtudes louváveis para o homem. Passando para o
período medieval, procura-se pensar como foram utilizados os conceitos de
excelência intelectual e excelência moral contidos no pensamento Aristotélico.
Tomás de Aquino5, grande filósofo medieval, utiliza-se da ética de Aristóteles
para fundar a sua. Para ele, “a sabedoria é a mais alta perfeição da razão, a que
corresponde a conhecer a ordem” (AQUINO, 1979, p. 59). Quanto à filosofia moral,
ele destaca que esta é “a ordem das coisas a respeito do fim” (AQUINO, 1979, p.
60).
De acordo com o mestre Tomás de Aquino, o homem deve buscar o bem
maior e perfeito pelas ações virtuosas, as quais requerem o uso da razão, que é a
5O mestre Dominicano concebe o homem do mesmo modo que os religiosos do seu tempo, ou seja, como um ser criado por Deus, assim como os demais seres da natureza. Todavia, inaugura uma concepção nova de homem. Não apenas a mencionada por nós, que corpo e alma formam um ser uno, mas, algo fundamental é apresentado no seio da sociedade cristã ocidental do século XIII: a idéia de que o homem possui intelecto e, por isso, livre-arbítrio (OLIVEIRA, 2009, p. 80).
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que regula a ação do homem, e o da prudência, a virtude de saber escolher e agir
retamente e que se encontra na parte racional da alma, que Tomás de Aquino
chama de virtude intelectual (AQUINO, 1979, p. 63). Neste pensamento,
compreende-se que a prudência e a sabedoria são essencialmente racionais, são
virtudes intelectuais clássicas, porque permeiam a conduta histórica dos homens.
Com base nesse pensamento e trazendo a reflexão para a educação escolar,
afirma-se que esta não deve se caracterizar pela ‘negligência’. Como espaço de
produção e divulgação do conhecimento histórico e da consciência das virtudes que
transformam o ser em homem, sua função é humanizar.
A negligência, segundo os pressupostos filosóficos do mestre medieval
corresponde a um pecado específico, “pressupõe a falta de solicitude” (2005, p. 85).
De acordo com o dominicano, reconhecido pelos beneditinos pelo seu raciocínio
brilhante e cuja sabedoria e conhecimento transcendem o período de sua
existência, “[...] toda omissão de ato devido configura-se como pecado” (p. 85).
Traduzindo essas palavras para os dias atuais, afirma-se que, quando não
cumprimos com nossa função de educadores, com a responsabilidade pela
formação dos homens, estamos negligenciando nossa tarefa, nosso compromisso
social. Ou seja, a função social da escola e do educador é o ato devido que
necessita se realizar para que as intencionalidades se efetivem.
À medida que não formamos as crianças, os adolescentes e jovens para viver
de forma consciente, que não lhes transmitimos os princípios e valores que
transformam os indivíduos em homens, de forma que eles também possam
contribuir para a transformação social, somos negligentes em relação ao ato de
ensinar e, portanto, em relação à nossa função social.
O papel da escola hoje deve ser analisado da perspectiva da ética, já que a
razão pela qual, nós, os educadores, desenvolvemos nosso trabalho é a formação
dos indivíduos. É necessário, portanto, pensar nas questões que nos afastam de
nossa função social.
Uma delas, que acabamos de mencionar, é a negligência profissional:
negligência em relação ao compromisso ético e moral de educar; negligência no
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planejamento da ação docente, no cumprimento da responsabilidade para com a
profissão escolhida, para com a função de formar homens conscientes, cidadãos
dirigentes, responsáveis e comprometidos com o bem comum. Pela consciência
intelectual e moral, acredita-se ser possível adotar uma conduta compatível com a
transformação.
Aristóteles, ao tratar da excelência moral, mostra que ela não acontece pelas
vias inatas, mas, pela natureza, é possível absorvê-la. Seu aperfeiçoamento pode
ser conseguido pelo hábito, pela prática.
As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as, - por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente (ARISTÓTELES, 1992, p. 35).
Considerando que essa questão envolve o fazer e trazendo a reflexão para o
papel social da escola, afirma-se que o professor, como aquele que dirige a sala de
aula, é responsável por aquilo que acontece nesse espaço. Sua prática necessita
ser movida por intencionalidades pedagógicas que conduzam ao despertar da
consciência política dos indivíduos que se encontram nesse ambiente.
A consciência política oferece a possibilidade de o indivíduo pensar a
sociedade, sua organização e as relações que a permeiam e, assim, perceber suas
contradições, de forma a poder nela intervir. Os escritos de Aristóteles revelam que
tanto a questão do fazer quanto a prática da justiça eram responsabilidade de
legisladores que formavam os cidadãos para este fim. Ou seja, o hábito de praticar
o bem era a intenção primeira, aqueles que não o fizessem falhavam em seus
objetivos.
Com base nesse raciocínio, pergunta-se: por que hoje a instituição escolar
falha no cumprimento de seus objetivos; o que falta para que, de fato, se possa
dizer que a escola está cumprindo sua função social; que conteúdos escolares são
necessários; por que estes não estão resultando na formação de uma consciência
política dos indivíduos?
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Tendo refletido sobre a ética e os princípios que a ela conduzem, sobre as
virtudes que podem conduzir a uma maior consciência do nosso papel social,
abordam-se, a seguir, alguns conceitos relacionados à ação docente, os quais
podem provocar uma mudança de posicionamento acerca dos comportamentos e
atitudes inerentes ao ato de ensinar. Considera-se que, por meio dos conteúdos
escolares, é possível desenvolver a consciência política tanto de professores
quanto de alunos no processo de ensino e aprendizagem.
2 - CONCEITOS ESTRUTURANTES NA FORMAÇÃO DOCENTE/DISCENTE
Refletir sobre alguns conceitos estruturantes da formação de professores e de
alunos implica analisar a maneira pela qual vem ocorrendo a formação desses
sujeitos: tanto a daquele que forma quanto a do que está em processo de formação.
Como a educação formal, escolar, tem origem e ocorre na sociedade de
classes e, portanto, constitui-se em espaço de contradição permanente, precisa ser
compreendida no âmbito dessas relações sociais específicas. Geralmente atribui-
se à escola a responsabilidade pela solução de todos os problemas subjacentes a
essa sociedade, no entanto, na forma como ela se apresenta hoje, é mais
determinada do que determinante social.
Quando se considera que a escola e os docentes desempenham ou devem
desempenhar uma função de extrema importância na formação dos indivíduos, é
necessário ter consciência de que à medida que as idéias, as produções teóricas se
materializam e se difundem no âmbito do fazer docente, podem atingir o coletivo da
sociedade, contribuindo para seu desenvolvimento.
Porém, diante das contradições e desafios que a sociedade coloca, tem-se
uma ausência de princípios e valores que interfere diretamente na educação, tanto
de crianças quanto de adolescentes e jovens. Vivencia-se hoje uma ausência de
compromisso e responsabilidade quanto à função social das diferentes instâncias,
especialmente da família, da escola, do professor e da sociedade como um todo.
Embora seja necessário refletir sobre o papel da família, da escola, como
espaço institucionalizado de ensino, e do professor em sala de aula, este trabalho
18
tem como foco a formação de professores, a função social da escola e a
recuperação do conteúdo e da consciência política dos indivíduos. Apresentam-se,
na seqüência, alguns conceitos estruturantes para a formação docente e discente.
Abordam-se inicialmente os resultados de uma pesquisa acerca dos sentidos
e significados dos conceitos presentes na expressão ser ético e ser moral: ter
princípios estabelecidos. Tais conceitos necessitam fazer parte do repertório de
saberes destinados à formação docente, seja na inicial seja na continuada. Por isso,
é preciso tê-los presentes na conduta profissional.
Perguntando-se o que é ética e o que é moral, Boff (2003) responde que há
confusões entre os sentidos de cada expressão. Ele esclarece que, na linguagem
comum e mesmo culta, as duas expressões são consideradas como sinônimas.
Normalmente, expressam um juízo de valor sobre alguma prática pessoal ou social,
se boa, má ou duvidosa.
Enfatiza esse autor que ética faz parte da Filosofia, já que se refere às
concepções, aos princípios e valores que orientam as pessoas e a própria
sociedade; ou seja, uma pessoa é ética quando se orienta por princípios e
convicções. O caráter e a índole são valores éticos.
O princípio da ética deve fazer parte da vida das pessoas em sociedade.
Começa com a família, o primeiro elemento social do qual o indivíduo faz parte,
continua nas diversas instâncias sociais nas quais a educação se faz presente de
forma não sistemática e tem lugar especial na escola, onde o ensino e a
aprendizagem acontecem de forma intencional, sistematizada e em que as ações
necessitam ser fundamentadas nas concepções teóricas e práticas do processo
educativo.
A ausência da ética no campo profissional expropria os sujeitos da
possibilidade de apreensão da realidade, impedindo a apropriação de uma
consciência político-social acerca dos compromissos pertinentes às funções sociais
de cada um
Assim, a falta de ética permeia a nossa prática, distanciando-nos da
consciência dos nossos saberes e fazeres pedagógicos. Ao tratar da dimensão
19
ética e política pertinente à formação do professor, Rios (2001) destaca que “[...] a
opção por abordar conjuntamente os conceitos de ética e política se apóia na
ligação estreita que há entre eles” (p. 100).
Continua a autora que, apesar dessa ligação, não devemos deixar de fazer a
distinção: é necessário distinguir para unir os conceitos. Portanto, “[...] ao explorar o
conceito de ética, uma primeira distinção já se impõe: aquela entre ética e moral” (p.
100), grifos da autora.
Nessa perspectiva, ética corresponde a uma aplicação do campo teórico
apreendido como moral, bem como aos comportamentos individuais conforme as
regras e normas estabelecidas socialmente. Ou seja, a função da ética é explicar,
esclarecer, atribuir sentidos à realidade. Juntando-se, portanto, ao comportamento
ético, está o ato moral, que, para Rios (2001), “pressupõe liberdade e
responsabilidade. A questão fundamental é a questão da escolha” (RIOS, 2001, p.
102). Conclui-se, com base nessa idéia, que ética e moral são virtudes que exigem
discernimento e consciência política dos cidadãos.
Considerando tal perspectiva, as intenções político-pedagógicas precisam ser
compreendidas sob o aspecto da humanização dos cidadãos. Interessante observar
que, no decorrer da história, mesmo nos momentos em que a instituição escolar
ainda não se fazia presente na forma organizacional e institucional que
conhecemos, existia uma preocupação com a formação, a educação dos homens.
Essa preocupação correspondia às necessidades desses diferentes momentos
históricos e os valores éticos, os princípios morais, as virtudes de modo geral eram
consagradas como fundamentais para o homem de bem.
No século XIX, em “Os Camponeses” (1992), Balzac6 descreveu a vida e as
atividades desses homens, evidenciando que [...] “a virtude, socialmente falando, é
companheira do bem estar e começa com a instrução [...]” (p. 17). Este autor,
filósofo e romancista, abordou a luta de classes na França da Restauração e da
6 Os Camponeses (em Francês: Lês Paysans), é um dos livros póstumos de Balzac. Na vida do autor só a primeira parte desse romance foi publicada, tendo saído em folhetim do jornal La Presse, de 3 a 21 de dezembro de 1844. Em 1855, isto é, cinco anos depois da morte do romancista, a Revue de Paris, publicou novamente a parte já impressa, mais uma segunda parte até então inédita.
20
Monarquia de Julho e ao mesmo tempo tratou da sabedoria que eleva à
virtuosidade.
Com base em sua análise, pode-se afirmar que, para praticar ações virtuosas
há que se ter esclarecimento, conhecimento e consciência da realidade. Em sua
narrativa sobre a vida dos camponeses, é nítida a percepção das vicissitudes
presentes em seus comportamentos, especialmente daquelas que se relacionavam
aos interesses privados (individuais).
Observe-se uma passagem do romance:
[...] torna-se necessário, de uma vez por todas, explicar às pessoas habituadas à moralidade das famílias burguesas que em matéria de costumes domésticos os camponeses não têm nenhuma delicadeza; só invocam a moral a propósito de uma filha seduzida se o sedutor é rico e medroso. Até que o Estado os arrebate, os filhos constituem um capital, um instrumento de conforto. O interesse, sobretudo depois de 1789, tornou-se o único móvel de suas idéias; para eles, nunca se trata de saber se uma ação é legal ou imoral, mas, se é proveitosa [...] (BALZAC, 1992, p. 60-61).
O autor procura esclarecer como os interesses privados corrompem os
homens. As leis estabelecidas não se cumprem quando não são utilizadas para o
bem comum, quando na sociedade há diferenças de classes, quando alguns
poucos detêm os privilégios, ou seja, quando, mesmo havendo a prática da
democracia no sentido da participação efetiva dos homens, no caso específico, os
da classe camponesa do século XIX, tem-se a luta ilícita pelas vantagens advindas
da terra e da produção.
Considerando que é da natureza do trabalho docente contribuir para a
humanização dos sujeitos historicamente situados, destacam-se a seguir os
conceitos subjacentes à expressão ter compromisso com a profissão e a função
do “ser docente”.
Veiga (2005), no seu livro “Docência: uma construção ético-profissional”
apresenta o significado etimológico da palavra docência. Segundo a autora,
“docência significa ação de ensinar, e está vinculado ao radical do verbo latino
docere, cujo sentido se expressa por ensinar, instruir, mostrar, indicar, dar a
21
entender” (p. 39). Ela explica também a dimensão temporal da formulação
etimológica da palavra: “[...] docência tem registro em língua portuguesa em 1916;
no entanto, o termo docente, particípio presente do verbo docere, tem registro
somente em 1877” (VEIGA, 2005, p. 39). Da mesma forma que docência, outros
termos, como ensino e instrução são apresentados pela autora, conforme veremos
a seguir:
[...] palavras correlatas, como ensinança, ensino, ensinamento, o radical está vinculado ao termo signo. O verbo latino insignire – a versão romântica do latim é expressa por insignare – significava sinalizar em, sinalizar no interior de, tornar insigne, notável, pôr uma marca, distinguir, assinalar. Em termos de datação, ensinamento é anterior em um século aos termos ensino e ensinança, registrados a partir do século XIV (VEIGA, 2005, p. 40).
[...] Instrução, compreendida como ação de transmitir conhecimento. Struere agregado da preposição in remete-nos para o verbo instruere, significando erguer, levantar, construir, pôr em ordem, formar, dispor. Assim, instrução implica uma ação de ordenar, de construir, e a sua datação em língua portuguesa é do século XVI, e instrutor (aquele que põe em ordem, que prepara) – para lembrar a correlação com docente – é do século XVIII (VEIGA, 2005, p. 41)
Como se pode observar, os termos que traduzem a ação de ensinar, de
transmitir relacionam-se ao campo da docência. O compromisso e a
responsabilidade inerentes a essa função necessitam ser (re)pensados por aqueles
que a escolheram.
“Ser docente” implica assumir que a análise do contexto das relações
humanas, sociais e de trabalho melhora as condições de entendimento,
interpretação, esclarecimento, enfim, de conhecimento.
A consideração sobre o sentido etimológico dos termos apresentados tem
como objetivo destacar as implicações e responsabilidades da docência, já que se
intenciona explicitar o caráter da função de ensinar, com a perspectiva da formação.
Às vezes o próprio docente não analisa historicamente as mudanças, os sentidos
atribuídos às questões educacionais para compreender como a educação foi se
desenvolvendo.
Na explanação sobre a docência, constata-se que os termos ensinar e instruir
foram utilizados nos diversos tempos históricos, demonstrando que a educação
22
acompanhou as diferentes gerações. Considerando-se a necessidade da escola e
do seu sentido expresso no decorrer do processo de modernização da sociedade,
no que se refere a ensinar e transmitir o conhecimento, é possível pensar na
importância dessas ações e no papel que representam no atual contexto social.
Os processos de formação em nível médio e nas licenciaturas “devem”
desenvolver conhecimentos, atitudes e valores para que os futuros docentes
construam seus saberes-fazeres, enfrentando os desafios que o ato de ensinar
exige como compromisso social de formação. Estabelecendo uma relação com
esse pensamento:
Espera-se, pois, que mobilizem os conhecimentos da teoria da educação e do ensino, das áreas do conhecimento necessárias à compreensão do ensino como realidade social, e que desenvolvam neles a capacidade de investigar a própria atividade (a experiência) para, a partir dela, constituírem e transformarem os seus saberes-fazeres docentes, num processo contínuo de construção de suas identidades como professores (LIBÂNEO e PIMENTA, 1999, p. 262).
Repensando a formação inicial, especialmente a das práticas pedagógicas, e
relatando os resultados de uma pesquisa desenvolvida com alunos de licenciatura,
Pimenta (2001) destaca a importância dos saberes da experiência na construção da
identidade profissional do professor e identifica alguns saberes da docência que
considera abrangentes e fundamentais:
a) da experiência, que seria aquele aprendido pelo professor desde quando aluno, com os professores significativos, etc., assim como o que é produzido na prática num processo de reflexão e troca com os colegas;
b) do conhecimento, que abrange a revisão da função da escola na transmissão dos conhecimentos e as suas especialidades num contexto contemporâneo e;
c) dos saberes pedagógicos, aquele que abrange a questão do conhecimento, juntamente com o saber da experiência e dos conteúdos específicos e que será construído a partir das necessidades pedagógicas reais (PIMENTA apud NUNES, 2001, p. 34-35, Grifos da autora).
O que se quer é que o professor desenvolva a capacidade de análise das
práticas existentes, compreendendo os contextos históricos, sociais e culturais aí
23
presentes. Por intermédio dessa análise, entende-se que ele poderá intervir na
realidade, transformando-a e também se transformando, num processo dialético.
Os saberes da experiência, os adquiridos sistematicamente nos processos de
formação (fundamentos teóricos) e os pedagógicos, com base didática, são a mola
propulsora da ação docente. Há que se considerar que, nessa formação, o docente
“já deve” ou “deveria ter” consciência da complexidade da sua função social.
Trabalhar na perspectiva da práxis é pensar nas finalidades e
intencionalidades educativas. Na explicitação do que é práxis, Vázquez7 (1977)
enfatiza que as atividades humanas se distinguem de outras atividades que se
situam num nível meramente natural. Para esse autor, as atividades humanas
consistem:
Na intervenção da consciência, graças à qual o resultado existe duas vezes – e em tempos diferentes -: como resultado ideal e como produto real. O resultado ideal, que se pretende obter, existe primeiro idealmente, como mero produto da consciência, e os diversos atos do processo se articulam ou estruturam de acordo com o resultado que se dá primeiro no tempo, isto é, o resultado ideal. Em virtude dessa antecipação do resultado que se deseja obter, a atividade propriamente humana tem um caráter consciente (VÁZQUEZ, 1977, p. 187).
Segundo essa reflexão, o resultado das atividades humanas implica dois
aspectos diferentes: o ideal e o real. O autor utiliza essas expressões para indicar a
necessidade de “adequação às finalidades”; por mais que o resultado real se
distancie do ideal, trata-se de adequar o primeiro ao segundo.
[...] basta que nela se formule um resultado ideal, ou fim a atingir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independente de como se plasme, em definitivo, o modelo ideal original (VÁZQUEZ, 1977, P. 188).
A proposta de refletir sobre a função social da escola e sobre a recuperação
do conteúdo escolar implica a consciência acerca das intencionalidades
pedagógicas inerentes ao ato educativo. O professor que trabalha na e pela
7Autor da obra “Ética”, na qual reflete sobre Ética e Moral de forma a orientar sobre essas duas dimensões do conhecimento por vias da Filosofia, além da obra, “Filosofia da Práxis”, nesta, apresenta na primeira parte, “Fontes filosóficas fundamentais para o estudo da práxis”, e, na segunda parte, “Alguns problemas filosóficos em relação à práxis”, contribuindo imensamente para o presente estudo.
24
formação dos homens precisa ter clareza da importância da sistematização de
conceitos que traduzam uma prática voltada a determinados fins, aos objetivos do
ato pedagógico.
As considerações em torno da práxis conduzem ao entendimento de que o
tripé da indissociabilidade entre prática-teoria-prática é uma condição intrínseca da
articulação da ação com a reflexão e da mudança de postura, de comportamento
em relação ao ato de ensinar. Isso porque o resultado da ação educativa, ao
mesmo tempo em que é ponto de chegada, deve ser condição de partida
novamente, já que indica a possibilidade de novas apreensões em relação ao
conhecimento.
A atividade humana é, por conseguinte, atividade que se desenvolve de acordo com finalidades, e essas só existem através do homem, como produtos de sua consciência. Toda ação verdadeiramente humana requer certa consciência de uma finalidade, finalidade que se sujeita ao curso da própria atividade (VÁZQUEZ, 1977, p. 188).
É importante ressaltar que não se trata de qualquer atividade. Vázquez,
apoiando-se na I Tese de Marx, afirma que “toda práxis é atividade, mas nem toda
atividade é práxis” (VÁZQUEZ, 1968, p.185). Kuenzer (2004), por sua vez, explicita
que:
a atividade teórica, com suas dimensões ideológicas ou científicas, só existe a partir e em relação com a prática; não há pensamento fora da práxis humana, pois a consciência e as concepções se formulam pelo movimento que se debruça sobre o mundo das ações e das relações que elas geram (KUENZER, 2004, p. 76).
Assim, a práxis ocorre à medida que há reflexão sobre a atividade, sobre a
ação. Nas discussões dos educadores sobre a formação de professores, em geral,
observa-se que as ações são desarticuladas do contexto histórico mais amplo, o
que desvirtua o caráter formativo dos homens.
Como não se buscam os fundamentos teóricos pertinentes a essa formação,
não se produz a consciência inerente ao ato de ensinar, fragmentando-se, desta
forma, o processo de aprendizagem. Ou seja, os conteúdos propostos para cada
nível ou modalidade de ensino necessitam se articular ao conhecimento e às
25
intencionalidades específicas, formais, contextualizadas, que propiciem
efetivamente sua apropriação.
A atividade teórica por si só não transforma a realidade, mas produz uma
transformação nos homens porque os induz a pensar e a refletir sobre ela. Dessa
forma:
A finalidade imediata da atividade teórica é elaborar ou transformar idealmente, e não realmente essa matéria prima, para obter, como produtos, teorias que expliquem uma realidade presente, ou modelos que prefigurem uma realidade futura. A atividade teórica proporciona um conhecimento indispensável para transformar a realidade, ou traça finalidades que antecipam, mas, num e noutro caso fica intacta a realidade efetiva (VÁZQUEZ, 1968, p. 203)
Com base nessas questões, entende-se que o desafio e a tarefa são bastante
complexos e pergunta-se: que formação faz-se, então, necessária? A proposta é
uma formação fundamentada em um referencial que leve o professor a ter clareza e
a assumir um posicionamento crítico, tendo em vista que a crise nos processos de
formação passa pela instância do “esvaziamento teórico”. Dessa forma, se ele não
se engajar em uma proposta metodológica que dê apoio e norteie seu trabalho
pedagógico dificilmente conseguirá uma formação inicial de qualidade. A teoria
precisa se materializar em ações concretas.
Estabelecer intencionalidades pedagógicas no ato de ensinar e aprender
implica ter consciência do que significa planejar a ação docente tendo em vista o
desenvolvimento intelectivo do educando. O planejamento do professor não
deve ser elaborado apenas para satisfazer as exigências da secretaria ou da equipe
pedagógica da escola, mas deve corresponder à necessidade de organização das
ações docentes.
A organização, a seqüência dos conteúdos e atividades, o tempo designado à
execução das ações programadas, a relevância dos temas, os referenciais teóricos
a ser abordados, enfim, essas questões fundamentais devem ficar perceptíveis aos
educandos.
Segundo Pimenta & Lima (2004), que abordam os procedimentos para o
planejamento, os alunos percebem que o professor planeja. Observam se ele:
26
apresenta e segue um plano, roteiro ou conteúdo explícito da aula; obedece a uma
seqüência lógica; faz comentários bibliográficos utilizando indicações de livros,
revistas, etc.; realiza atividades programadas, por meio de esquemas
metodológicos ou perguntas; demonstra domínio de conteúdo; planeja e repensa;
cuida da avaliação e do replanejamento, dentre outros.
Diante dos pressupostos mencionados acerca da importância do planejamento
da ação docente, cabe acrescentar os objetivos gerais e específicos do trabalho
com o conteúdo escolar. Nessa perspectiva, cria-se uma situação de interlocução
entre professor e aluno durante a aula e, com todas as ações de trabalho
planejadas, a articulação teórico-prática no sentido da práxis, eles terão maiores
possibilidades de êxito quanto às finalidades da educação.
Para que o docente tenha o domínio do conteúdo e os objetivos educacionais
sejam conseguidos, sua prática deve ser acompanhada de estudos constantes. Ser
um estudioso é um dos conceitos estruturantes. Rios (2001, p. 27, apud Ponce,
1989) aponta que “o ensino é instância de comunicação. A aula é o espaço/tempo
privilegiado da comunicação didática”. Compreender a dinâmica da educação e,
portanto, da sala de aula significa adotar um posicionamento sobre o compromisso
ético e político da função docente.
Por meio de estudos, é possível compreender melhor o mundo, a sociedade, o
homem em sua relação com estes espaços e com os próprios homens.
[...] a tarefa fundamental da educação, da escola, ao construir, reconstruir e socializar o conhecimento, é formar cidadãos, portanto contribuir para que as pessoas possam atuar criativamente no contexto social de que fazem parte, exercer seus direitos e, nessa medida, ser, de verdade, pessoas felizes (RIOS, 2001, p. 26).
Para o docente em exercício, é imprescindível buscar, por meio da formação
continuada, possibilidades de aprofundamento teórico para que possa realizar
reflexões e tomar posições acerca dos conteúdos a ser desenvolvidos. Um dos
motivos da desatenção na aula está relacionado à ausência de domínio em relação
aos conteúdos por parte do professor.
A aula necessita ser dinâmica, mas do ponto de vista do discurso teórico, da
articulação teoria e prática, da intervenção constante do professor em relação ao
27
conhecimento e não do fazer pelo fazer. Para explicar e intervir, é necessário que o
docente tenha conhecimento.
Informar e formar com competência requer vontade, interesse, perseverança e
consciência do docente sobre o seu papel social. Não é possível envolver o
educando, chamá-lo para o conhecimento, quando a postura profissional não
corresponde aos anseios da demanda escolar, quando não se acredita no trabalho
que se desenvolve, ou seja, não se acredita na educação.
Por isso, a proposta é valorizar o conhecimento com base nos clássicos
(conhecimento científico), recuperar a história, compreender historicamente as
idéias, os valores, os princípios, os conhecimentos produzidos pela humanidade. Na
contemporaneidade, somos absorvidos por imediatismos que colocam em risco o
conhecimento científico, fragmentando-o, parcializando-o, obscurecendo a visão de
totalidade. Predominam o fazer pelo fazer, a prática pela prática, sem o alicerce dos
fundamentos teóricos que favorecem a modificação da conduta humana, dos
comportamentos, atitudes e ações dos homens.
A apreensão dos conceitos demandados pelo processo de formação e de
construção das sociedades, das civilizações, auxilia-nos a recuperar o passado, não
para aplicar tais conhecimentos ao mundo contemporâneo, mas para aprender com
os diversos autores, historiadores e filósofos. Eles nos ensinam a todo tempo os
valores e virtudes que, com base no conhecimento, promovem o viver bem.
Pelo conhecimento, tornamo-nos humanos, cidadãos conscientes de nossa
responsabilidade. Com os clássicos, podemos adquirir os fundamentos necessários
à contextualização dos conteúdos escolares modificando nosso pensar e agir diante
da atuação docente.
3 – DIFERENÇAS ENTRE PEDAGOGIA E EDUCAÇÃO
A seguir, refletir-se-á sobre Educação e Pedagogia como campos distintos na
promoção do conhecimento em suas diversas formas. Sem a preocupação de
apresentar uma depois da outra, justamente porque, mesmo quando ainda não se
28
falava em Pedagogia como ciência ou campo teórico do conhecimento, essa
terminologia se confundia na definição da função de ensinar.
O conceito de Pedagogia relaciona-se ao de docência. Verifica-se que, como
teoria da educação, a Pedagogia tem importância na orientação da práxis docente.
Ou seja, quando se analisa o conhecimento e a educação em seu sentido
sistemático e assistemático, observa-se a contribuição desse ramo da ciência
educacional. Como campo do conhecimento, ela se faz presente mesmo antes de
a escola constituir-se em espaço institucionalizado do conhecimento científico.
A Pedagogia se caracteriza fundamentalmente pela reflexão, pela organização
e pela sistematização do processo educativo. Considerando que a prática educativa
é intrinsecamente social, por meio dessa ciência podem-se analisar as condições
em que ocorrem os processos educacionais.
Na introdução à sua obra “A Pedagogia no Brasil: história e teoria”, Saviani
(2008) informa-nos sobre o processo que dá origem à Pedagogia. “Ao longo da
história da chamada civilização ocidental, a Pedagogia foi firmando-se como
correlato da educação, entendida como o modo de apreender ou de instituir o
processo educativo [...]” (SAVIANI, 2008, p. 01).
O termo ‘Pedagogia’ vem etimologicamente da Grécia Antiga, paidós (criança)
e agogé (condução). Segundo o significado conceitual dessas palavras na
Antiguidade, a Pedagogia é a “condução da criança” por um preceptor, mestre,
guia. Geralmente era o escravo que fazia esta condução até o paedagogium. Sua
origem:
[...] confunde-se com as origens do próprio homem. Na medida em que o homem se empenha em compreendê-la e busca intervir nela de maneira intencional, vai constituindo um saber específico que, desde a Paidéia grega, passando por Roma e pela Idade Média, chega aos tempos modernos fortemente associado ao termo “pedagogia” (SAVIANI, 2008, p. 01).
Na concepção moderna da Pedagogia, datada do século XVIII, a condução da
criança aparece articulada à problematização e à teorização do ato educativo.
29
Nesse sentido, no âmbito histórico-científico, a produção humana teria possibilitado
o desenvolvimento do conhecimento tão necessário à humanização dos indivíduos.
Conforme essa descrição, o pedagogo da contemporaneidade é um
profissional de fato e de direito que, munido de saberes teórico-práticos, com
capacidade investigativa dos processos educativos escolares, pode contribuir para
o avanço dos procedimentos pedagógicos nas escolas, especialmente nas salas de
aula. Para Orso (2007):
[...] a educação se constitui num dos principais bens da humanidade. Por ela, as gerações vão legando, umas às outras, as experiências, os conhecimentos, a cultura acumulada ao longo da história, permitindo tanto ao acesso ao saber sistematizado, como a produção de bens necessários à satisfação das necessidades humanas (ORSO, 2007, p. 01).
O autor afirma que, justamente por ser histórica, a educação não se faz da
mesma maneira em todas as épocas e em todas as sociedades. É preciso
considerar que esses campos da ciência permeiam diferentes contextos e fases
históricas. Desde o período primitivo até a contemporaneidade, ocorre educação no
sentido genérico da palavra, já que, quando a escola ainda não se fazia presente, a
criança precisava ser ajustada ao seu ambiente físico e social. Geralmente, isso se
fazia com base na experiência e em modelos determinados.
Considere-se o período medieval, conhecido como o século das trevas. Havia
então uma educação conservadora, que, de certa forma, contestava a educação
grega e romana. A primeira, pela visão liberal, a segunda, pelo caráter
eminentemente prático. Nesse momento, foi fundada a Companhia de Jesus.
Segundo Oliveira (1994), Guizot8, um historiador do século XIX que se
dedicou-se aos estudos da Idade Média, considerava que “o conhecimento deveria
ser o instrumento a ser utilizado pela burguesia na sua luta política, conseguindo
ser classe dirigente por seus próprios méritos, voltando-se para sua história” (p. 69).
Para este autor, “era preciso recuperar as origens que estavam na Idade Média, era
8François Guizot não concordava com a premissa de que a Idade Média representava a época das trevas, nem com a idéia negativa sobre esse período, pelo contrário, dizia que a Idade Média havia sido uma etapa importante para o desenvolvimento da civilização moderna.
30
preciso extrair elementos teóricos que substituíssem as atitudes práticas ou
radicais” (p. 69).
Observa-se que, durante o período medieval, havia um estreitamento de
relações entre a educação e a igreja católica. Algumas repartições e corporações
profissionais, por meio de seus representantes, responsabilizavam-se pela
educação, pela formação dos indivíduos e pelo conselho. Práticas e modelos
educativos eram discutidos, as intervenções eram programadas a fim de atender o
povo e as classes mais elevadas economicamente.
Em razão das transformações sociais, havia também um dualismo entre a
teoria e a práxis educativa, como já acontecera no mundo antigo. A estrutura da
escola nesse período já apontava a exigência de um professor que ensinasse a
muitos alunos. Seguiam-se planos de estudos organizados com base nas
perspectivas das escolas monásticas e das catedrais, principalmente das
universidades. Alguns conteúdos culturais do período moderno e contemporâneo
são originários desse período, como por exemplo: o latim, o ensino gramatical e
retórico da língua, a filosofia, a lógica e a metafísica, os quais continham um
enfoque metódico próprio no seu ensino.
A seguir, procurar-se-á destacar alguns tipos de escolas existentes nos
diferentes períodos para que se compreenda um pouco mais os métodos utilizados
em cada uma delas.
No Século das Luzes, foram reativados os interesses pela educação greco-
romana, especificamente pela arte. No Renascimento, os que possuíam poder
tinham acesso aos maiores privilégios. A razão era imprescindível para que o
conhecimento fosse alcançado. A grande ênfase à matemática e às ciências da
natureza, em sentido amplo, indicava um processo de valorização do homem e da
natureza. Assim, entre as características da formação do homem, destacavam-se a
racionalidade, o rigor científico e o ideal humanista.
Com o modernismo, a família e a escola tornam-se centrais na formação dos
sujeitos e também na reprodução de elementos culturais, ideológicos e profissionais
da sociedade. A família retoma os laços de afeto, agora movida por outro
31
sentimento de infância que já não corresponde aos tempos passados. Nesse
instante a criança passa a ser considerada como alguém que precisa ser cuidada,
controlada, segundo um ideal para a vida futura, ou seja, é valorizada. A escola
desempenha, ao lado da família, a função de instruir e formar. Além de ensinar
conhecimentos, ela deve também induzir comportamentos.
A didática articula-se aos conteúdos propostos nas escolas. As práticas
repressivas conduzem à disciplina e a novos comportamentos. O ensino tem
finalidades específicas e corresponde, portanto, a uma intencionalidade educativa.
A disciplina deve acompanhar todo o processo educacional, porque sem ela não se
concebe a possibilidade de apreensão do que seria ensinado.
No século XVI, observa-se uma reorientação do processo de ensino. O
controle do ensino e a disciplina tornam-se necessários à condução sistemática da
aprendizagem. Elabora-se um método de ensino e aprendizagem conhecido por
Ratio Studiorum, que modifica o formato do trabalho desenvolvido; surgem “os
internatos”, as classes são distribuídas por idade, estabelecendo-se a graduação do
ensino e da aprendizagem.
Nos primórdios da história, existia a figura do pedagogo, que exercia a função
de mestre dos filhos das famílias abastadas, mas, na segunda metade do século
XVIII, na obra “Sobre a Pedagogia”, Kant9 (2004) afirma:
o homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), o ensino e a instrução com a formação. Conseqüentemente, o homem é infante, educado e discípulo (KANT, 2004, p. 11).
A educação foi e é necessária em todos os tempos, importante no transcorrer
de toda a humanidade. O homem na formação do e para o humano, necessitou de
educação, independentemente do momento histórico.
9Para Immanuel Kant, a educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino (p. 19).
32
Nesse período, pensa-se em uma forma disciplinar que evite a violência e
funcione como um meio de se conseguir o respeito. A disciplina escolar era uma
condição de edificação, ou seja, o controle era exercido tendo em vista o
conhecimento. Kant (2002), na obra já citada, enfatiza que a “disciplina é que
impede o homem de desviar-se do seu destino, da humanidade [...]” (p. 12).
Já que a escola precisa formar cidadãos conscientes de seu papel na
sociedade, deve definir sua função social como instituição formadora e também
seus propósitos educacionais. Sobre a formação das crianças, é interessante o que
pensa esse filósofo clássico do século XVIII e início do século XIX. Em seus
escritos, Kant (2004) demonstra preocupação com a formação da criança, o que
pode ser estendido para o jovem e o adulto. Na passagem acima, fica claro que,
para o filósofo, “[...] o homem é a única criatura que precisa ser educada”.
Embora Kant não esteja se referindo à educação escolar, formal, mostra a
importância da educação para a formação do verdadeiro homem, que adquire a
capacidade de se autogovernar, autodirigir. Ele se manifesta a respeito da
importância de se pensar na formação das crianças para o futuro.
[...] um princípio de pedagogia, o qual mormente os homens que propõem planos para a arte de educar deveriam ter ante os olhos, é: não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas, segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e de sua inteira destinação. Esse princípio é da máxima importância. De modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor no futuro (KANT, 2002, p. 22).
Em suma, a educação tem a finalidade de levar os homens a adquirir
consciência sobre sua formação para viver em sociedade, visando o futuro. Partindo
da premissa de que todos os sujeitos históricos são cidadãos, a educação escolar
deve contribuir para a humanização desses sujeitos, levá-los a participar de forma
efetiva do movimento social que é contínuo, conflituoso e dialético.
33
Os profissionais responsáveis por essa formação devem ter clareza da
importância de se ter domínio dos conteúdos escolares. O vasto conjunto dos
conhecimentos produzidos historicamente precisa fazer parte do repertório didático-
pedagógico do professor que atua na Educação Básica. Dessa maneira, ele pode
contribuir para a formação da consciência ético-política dos cidadãos. A educação,
como uma exigência da formação para que o homem saiba viver em sociedade,
leva-o a “perceber-se e perceber a própria sociedade, ou seja, a consciência de si
mesmo” (LEAL & OLIVEIRA, 2007, p. 46).
As breves referências a esse contexto histórico têm a finalidade de levar o
educador a observar, analisar a educação ou a preocupação com a educação,
considerando que esta se estabelece na relação entre os homens. Em cada
momento da humanidade, independentemente dos segmentos sociais, a educação
acontece.
O pedagogo surge da figura do mestre, aquele que ensina, que conduz, que
guia. A Pedagogia como ciência é recente, caracteriza-se por ser teórica, por
atribuir um novo caráter ao conhecimento. Este, intencionalmente deve ser tornado
científico, visar o estabelecimento de relações e de contradições, conduzir à
capacidade de argumentação, de análise. Ou seja, a atividade educativa deve
mobilizar os conhecimentos com base em referenciais teórico-metodológicos que
“devem” conduzir à apropriação dos conteúdos escolares por parte dos educandos.
Como condição para a vivência em sociedade, a educação se faz na interação
entre os sujeitos, com base nos modelos, nos ensinamentos dos adultos de modo
geral e dos professores, em particular, por meio da linguagem oral e escrita, das
representações simbólicas, enfim, por meio de todas as instâncias sociais.
4 - A IMPORTÂNCIA DOS CLÁSSICOS E A ESPECIFICIDADE DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR
Nesta abordagem, a intenção é refletir sobre a importância dos fundamentos
do trabalho pedagógico, a qual está implícita nos conteúdos do currículo escolar. É
preciso recuperar a história, trazê-la para as discussões dos conteúdos,
34
contextualizá-los com base em pressupostos que favoreçam uma mudança de
postura, de conduta, de valores. As instâncias escolares, por meio desses
conteúdos, devem ter como objetivo constituir uma consciência política acerca do
papel social de cada um, seja do docente seja do discente.
Neste material, abordaram-se alguns conceitos propagados por autores,
educadores, filósofos, historiadores, enfim, por homens que contribuíram para a
construção da história e para a organização das sociedades em seus vários
aspectos. Pode-se perguntar: por que ou para quê se recorrer a grandes nomes do
passado que refletiram acerca da função social da escola e do conteúdo escolar;
por que a escola busca recuperar seu conteúdo; por que é preciso formar cidadãos
com consciência política?
É certo que o homem sempre busca a recuperação de algo que se perdeu no
tempo. Hoje, o imediatismo, o individualismo, o útil estão à frente de quaisquer
possibilidades de formação acadêmica, desvirtuando ou afastando a escola de sua
verdadeira função social. Valorizar o imediato implica deixar de dar aos cidadãos a
oportunidade de assumir um compromisso efetivo com o bem comum, com os
valores e as virtudes, implica deixar que os interesses pessoais, individuais, se
sobreponham aos coletivos.
Por isso, nesta reflexão, propõe-se a recuperação dos clássicos, da literatura
universal, que continua se perpetuando na passagem das gerações. Nesta literatura
encontra-se a originalidade dos grandes pensadores, que, por meio do retrato
histórico e filosófico da época de cada um, referem-se a um tempo em que idéias
foram produzidas e materializadas com base em princípios que conduziam o
homem a pensar, a refletir, a meditar. É dessa maneira que eles nos ensinam.
Nesta perspectiva, é importante mencionar um contemporâneo que se baseia nos
clássicos para refletir acerca das questões mais gerais da educação.
Saviani (2008) enfatiza que “a compreensão da natureza da educação passa
pela compreensão da natureza humana” (p. 11). Diferentemente dos outros
animais, o homem é um ser que necessita desenvolver sua existência, por meio de
elementos materiais e não-materiais. Ele adapta a natureza a si, transformando-a
35
para seu próprio benefício e para o da coletividade. Essa capacidade se faz pelo
trabalho.
Nessa abordagem clássica e contemporânea do trabalho educativo, Saviani
(2008) enfatiza o processo de humanização dos indivíduos: “[...] o trabalho
educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular,
a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens
[...]” (SAVIANI, 2008, p. 13).
Quando se ensina, o que se ensina corresponde à produção humana, que,
tomando como referência o passar das gerações, é resultante da ação coletiva
(construção e reconstrução). Assim, o ensino refere-se ao conhecimento
acumulado, embora a aprendizagem se dê no âmbito individual, em que cada qual
apreende na sua singularidade o que é produzido pela humanidade.
À medida que o homem pratica suas ações materializa o que estava antes
somente no campo das idéias. Nessa perspectiva, “dizer que a educação é um
fenômeno próprio dos seres humanos significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo,
uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um
processo de trabalho” (SAVIANI, 2008, p. 12).
Considerando o campo das idéias e relacionando com o pensamento de
Saviani (2008), buscou-se, na obra “A Ideologia Alemã” de Marx & Engels10, um
entendimento do campo da produção que envolve o conhecimento. Para eles “a
produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente
entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens
como a linguagem da vida real” (MARX & ENGELS, 1987, p. 36).
10Para Marx e Engels, “a história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado, prossegue em condições completamente diferentes a atividade precedente, enquanto, de outro lado, modifica as circunstâncias anteriores através de uma atividade totalmente diversa” (MARX & ENGELS, 1987, p, 70). Relacionado a esse pensamento ver nota n° 9, quando Kant explicita a importância dos conhecimentos precedentes como suporte à aquisição destes às novas gerações.
36
Na continuidade desse pensamento, esses dois grandes clássicos que
estudam a história em seus diversos contextos e movimentos, enfatizam:
o representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc de um povo (MARX & ENGELS, 1987, p. 36).
No que se refere à forma de vida material dos sujeitos históricos, pode-se
afirmar que à medida que estes invertem a trajetória de vida desvirtuando a
realidade, o fazem porque possuem limitações no pensar e no agir, decorrentes,
provavelmente, da ausência de consciência.
Quanto à modificação da realidade pelo homem, este só consegue fazê-lo à
medida que conhece. É pela educação que ele aprende a se comunicar, a se
relacionar com o outro, que adquire conhecimentos que podem promover seu bem
estar físico, econômico, social, ético-moral, intelectual, dentre outros. Assim, a
educação, conforme a citação destacada, reflete a própria condição de trabalho. A
educação é uma prática social e, como tal, abrange ações a ser desempenhadas,
seja no âmbito da família e da escola seja em qualquer outra instância.
Como a finalidade deste texto é pensar na importância da recuperação dos
clássicos, retorna-se a Saviani, que, ao tratar do objeto da educação, relaciona-o
[...] de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir este objetivo (SAVIANI, 2008, p. 13).
Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais que
precisam ser assimilados), o autor destaca que se trata de “distinguir entre o
essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório” (p.
13). Nesse caso, é importante a noção de “clássico”:
o clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao
37
atual. Clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, constituir-se num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico (SAVIANI, 2008, p. 14).
A idéia aqui é utilizar as literaturas universais como referência para provocar
uma reflexão sobre a função social da escola e a recuperação do conteúdo escolar.
Elas direcionam o educador para um “novo” olhar sobre os conteúdos curriculares
da escola. Os autores mencionados neste material analisam e apontam o que, em
seu momento, se entendia como necessidade de formação, o que pensavam os
homens em seu tempo e como viam o futuro da humanidade. Concorda-se com a
afirmação de Saviani de que o clássico é o que permanece, o “que resistiu aos
embates do tempo”.
É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como clássica, que Kant e Hegel são clássicos da filosofia, Victor Hugo é um clássico da literatura universal, Guimarães Rosa um clássico da literatura brasileira etc. (SAVIANI, 2008, p. 18).
Não se pode ignorar a história, especialmente na adoção de procedimentos
metodológicos e na organização dos meios pelos quais o conhecimento poderá se
efetivar.
Os clássicos podem contribuir para que a escola reencontre o compromisso e
a responsabilidade de transmitir o conhecimento produzido, elaborado pelos
homens. Esses conhecimentos, que têm sua base nos primórdios do processo
civilizatório, não podem ser ignorados, considerados ultrapassados, mas, sim,
valorizados.
5 - A FORMAÇÃO DOS SUJEITOS: A RELAÇÃO ENTRE NATUREZA,
INDIVÍDUO E SOCIEDADE.
A palavra natureza vem do latim: natura, naturam, naturea ou naturae e, numa
visão antrópica11, aplica-se a tudo o que tem como característica fundamental ser
natural. Ou seja, envolve todo o ambiente existente que não sofreu intervenção
11Termo relativo ao homem ou a vida humana, conforme o Dicionário mini Aurélio: século XXI, 2004, p. 55. Ed. Nova Fronteira (MEC/FNDE).
38
humana. De acordo com uma visão mais ampla, natureza corresponde ao mundo
material e, por extensão, ao universo físico. Portanto, toda matéria e energia estão
inseridas em um processo dinâmico que lhe é próprio e cujo funcionamento segue
regras próprias.
A natureza humana, segundo a filosofia, define-se por um conjunto de
características implicitamente ligadas às formas de agir e pensar do ser humano. A
ciência moderna, entretanto, define a natureza humana como parte do
comportamento humano, durante longos períodos de tempo e em variados
contextos culturais.
Esse entendimento é equivocado, já que a ciência não crê em natureza
humana porque lhe atribui um caráter metafísico. Nesta questão, não há como não
fazer referência novamente a Aristóteles, que, refletindo sobre as qualidades do
homem, menciona três coisas que fazem dele bom e virtuoso: a natureza, o hábito e
o princípio racional. Segundo esse filósofo:
Primeiramente, a natureza produz o nascimento de um homem e não de um outro animal qualquer; em seguida, é preciso que o homem nasça com algumas características de corpo e alma. “Mas certas qualidades de nascimento tornam-se inúteis, pois são alteradas pelos nossos hábitos, e há alguns dons que pela própria natureza podem ser transformados para melhor ou pior em decorrência de nossos hábitos (ARISTÓTELES, 2008, p. 255-256).
Na relação com a educação, Aristóteles enfatiza que, quando as qualidades
não são concedidas pela natureza, precisam ser lapidadas pela educação. Segundo
ele, os homens aprendem algumas coisas pela força do hábito e outras pela
influência dos educadores.
Com base nesses estudos, constata-se que, no princípio da humanidade,
quando o ritmo de trabalho e a vida dos homens associavam-se ao ritmo da
natureza, homem e natureza compunham certa unidade. Já no modo de produção
capitalista, observa-se um rompimento dessa unidade, pois a natureza, que antes
representava a forma de subsistência do homem, passa a integrar o conjunto dos
meios de produção.
39
Dessa forma, o homem se apropria e transforma os meios do trabalho,
produzindo o processo de socialização da natureza. O trabalho, assim, é a
mediação entre o homem e a natureza. Segundo esse pressuposto, tem-se a
seguinte premissa: a separação entre o homem e suas condições naturais de
existência não é natural, mas histórica.
O homem, para o filósofo inglês, Locke12, tem perfeita liberdade para ordenar
suas ações de acordo com as leis da natureza. Assim, as pessoas só deixam seu
estado de natureza quando consentem em fazer parte de uma comunidade a fim de
proteger os seus direitos.
Locke tinha a pretensão de criar uma teoria que conciliasse a liberdade dos
cidadãos com a manutenção da ordem política. Opunha-se ao autoritarismo em
todos os aspectos: individual, político e religioso. Para este filósofo, a razão
conduzia à obtenção da verdade e legitimidade das instituições sociais e o mundo
poderia ser transformado pela educação.
Rousseau13, por sua vez, acreditava que os homens no estado de natureza
eram naturalmente bons e que os maus hábitos eram produto da civilização
corrompida. Por isso, considerava ser necessário voltar à natureza, pois esta era
boa. Na perspectiva rousseauniana, a natureza é o estado primitivo, originário da
humanidade; quando entendida em seu sentido espiritual, expressa a
espontaneidade e a liberdade contra forma de qualquer corrupção.
Para mostrar o posicionamento de alguns filósofos acerca do tripé que
constitui a formação dos homens históricos, buscamos o entendimento de Kant a
respeito do dualismo conceitual que envolve a natureza. Para esse clássico, a
12Locke não compartilhava com a doutrina das idéias inatas. Para esse filósofo inglês, as nossas idéias passavam primeiramente pelos sentidos. No Ensaio acerca do Entendimento Humano, desenvolve a teoria sobre a origem e a natureza dos conhecimentos humanos. Observar relação do pensamento deste autor no que se refere às idéias e aos sentidos com o citado na nota n° 3.13Aos trinta e sete anos, após um de seus delírios fantasistas, Rousseau conhecia um outro universo: o problema social feri-o profundamente, descobrindo num vislumbrar de olhos toda a corrupção e as abominações da sociedade de seu tempo. Vendo a opressão e a miséria na ordem social, disse ele: “Para fazer-me ouvir, era necessário pôr minha conduta de acordo com meus princípios”.
40
natureza interior dos seres humanos compreendia suas paixões cruas, enquanto a
natureza exterior era o ambiente social e físico no qual os seres humanos viviam.
O que se pode depreender do pensamento de Kant? Parece haver uma
relação intrínseca entre seu pensamento e o de Aristóteles. A natureza interior à
qual se refere Kant pode ser aquela que precisa ser desenvolvida, trabalhada pela
educação, conforme o pensamento de Aristóteles. Transpondo para a
contemporaneidade, seria aquela que necessita da intervenção do professor?
Mencionando Aristóteles, retoma-se a questão do hábito. Ao determinar que a
natureza, o hábito e o princípio racional são necessários para alcançar os bens
maiores, ele destaca como e por que meios se pode alcançá-los. O filósofo
pergunta, e, em seguida, aborda a questão da educação da criança, se esta deve
se iniciar pela razão ou pela aquisição do hábito.
[...] os dois aspectos devem estar em perfeita harmonia, pois, a razão pode falhar na procura dos ideais mais altos da vida, ou males semelhantes podem resultar em hábitos inapropriados. [...] No homem, a razão e a inteligência são o fim para o qual toda a natureza concorre, de modo que o nascimento e a disciplina moral dos cidadãos deveriam ser organizados tendo por objetivo mais alto o desenvolvimento dessas faculdades (ARISTÓTELES, 2008, p. 261).
No início deste material de estudo, foi mencionado o discurso de Aristóteles a
respeito da busca do bem maior, a felicidade. Segundo seu pensamento, a natureza
e o caráter dos cidadãos são determinados pelo tipo de felicidade que eles
desejam. Na Ética, a felicidade foi definida como perfeito exercício da virtude.
Dessa forma: “[...] um homem adquire esse tipo de virtude com o auxílio da
natureza, do hábito e da razão. O hábito e a razão são frutos da educação, que
precisa, portanto, ser discutida” (ARISTÓTELES, 2008, p. 48).
Assim, pode-se afirmar que a educação escolar, na perspectiva de se formar
uma consciência política nos cidadãos, requer certo rigor quanto à aquisição da
razão e dos hábitos. Segundo Aristóteles, é por meio do conhecimento que os
indivíduos conseguem atingir o bem maior, a felicidade. Buscar a felicidade implica
obter a liberdade de adotar um pensamento ético em relação aos compromissos e
41
responsabilidades com a formação dos homens, e, principalmente, a formação
escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se, com a produção deste material didático, contribuir para uma
reflexão sobre a importância de direcionar outro olhar para os conteúdos escolares,
concebendo-os como fundamentos imprescindíveis da produção do conhecimento.
Pretendeu-se também mostrar que a prática docente deve ser fundada nos
valores éticos e morais que orientam a idéia de liberdade e cidadania. Não se pode
constituir uma formação humana sobre os preceitos do individualismo,
pragmatismo, e sim sobre o pressuposto do bem comum, do coletivo.
As relações humanas e de trabalho propiciam a compreensão de como a
sociedade se produz, como os homens, em sua dinâmica social e política,
organizam-se e constituem-se como parte dessa engrenagem que é a sociedade
civil. É preciso entender a educação como elemento fundamental na apropriação
das idéias e dos conceitos que traduzem as necessidades do homem em suas
relações.
O professor necessita direcionar sua atenção para a função que escolheu
exercer. Assumir a docência implica acreditar na educação e no ensino. É pelo
conhecimento que, como sujeito social, o homem se transforma. A especificidade
dos conteúdos e conhecimentos, nesta lógica, precisa ser clara, para que eles
possam ser articulados de forma a evitar a fragmentação. Um conteúdo não se
esgota num tempo determinado, ele tem uma continuidade histórica.
Percebe-se que as instituições educativas têm se deparado com infinitas
exigências e que a escola, especificamente, tem sido conduzida a resolver
problemas decorrentes das relações sociais.
A referência a Aristóteles como um clássico da literatura universal tem como
finalidade justamente provocar a transposição de barreiras em relação ao
42
conhecimento. Foi nesse sentido que, em dado momento, mencionamos sua
reflexão sobre a Ética e sobre o bem maior, a felicidade.
É possível relacionar sua ideia de felicidade à de liberdade defendida na
contemporaneidade. Porém, a liberdade só pode ser entendida na medida do
conhecimento. Sem o conhecimento, o homem fica limitado na apreensão de
valores que podem conduzir ao bem. O maior bem, aquele que as ciências buscam,
é o conhecimento. É este que produz a existência humana e leva os docentes e
discentes a compreender a realidade social, política, econômica, cultural.
Buscamos em Aquino (1979, p. 60) um exemplo medieval de pensamento
sobre a sabedoria. Considerando-a como a mais alta perfeição do homem, ele
afirma que a sabedoria implica a ordem, a razão. Nesse sentido, o homem precisa
perseguir o bem maior e perfeito. As ações virtuosas requerem o uso da razão, que
funciona como reguladora das ações humanas. Outro valor expresso pelo teólogo e
filósofo é a prudência: por meio dessa virtude, o homem tem a possibilidade da
escolha. Por prudência, ele se refere ao agir reto que está no campo da virtude
intelectual.
A conduta ética e profissional do docente depende, portanto, de sua
consciência sobre o saber-fazer. Ela deve perpassar a formação inicial, mas esta
não é suficiente. Tal formação não se deve romper em nenhum momento; como o
conhecimento, necessita ser (re) alimentada continuamente.
A função social da escola e do educador é recuperar o que há de essencial no
trabalho com o conteúdo escolar. Essa não é uma tarefa simples; pelo contrário, é
de muita complexidade, mas nela reside o compromisso ético daquele que forma.
Quando não se atenta para o fato de que ensinar e aprender são atividades
interligadas, dinâmicas, não se produzem possibilidades de mudanças. A
negligência na docência revela ausência da ética, como foi sendo mostrado no
decorrer deste estudo.
43
A organização, a seqüência dos conteúdos e das atividades, o tempo
designado para a execução das ações programadas, a relevância dos temas, a
definição dos referenciais teóricos utilizados, todas essas questões fundamentais
são percebidas pelos educandos.
É dessa maneira que a práxis se efetiva, contribuindo para o (re)
direcionamento da ação pedagógica. Procurou-se mostrar que o tripé prática-
teoria-prática é a condição para um agir consciente, para se refletir sobre a prática
e, fundamentando-se nos elementos encontrados, observados e vivenciados,
contribuir para a possibilidade de mudança. A cada nova ação, novos
conhecimentos devem ser acrescentados, de forma que o ponto de chegada deve
ser o ponto de partida para novos saberes docentes e discentes.
Pode-se observar, pelos conceitos e reflexões destacadas neste estudo, que a
escola precisa recuperar sua função social e, se precisa se recuperar, é porque, em
dado momento, deixou de cumprir seu compromisso ético e político, que é formar
cidadãos conscientes de seu papel na sociedade, ou seja, deixou de se orientar
pelos objetivos da educação.
Neste estudo, chamou-se também a atenção para um filósofo do século XVIII,
Immanuel Kant. Mesmo que ele não tenha se referido à instituição escolar, que no
seu tempo não predominava como espaço de conhecimento formal, ele já se
preocupava com a formação das crianças. Segundo ele, o homem é a única criatura
que precisa ser educada. Importante ressaltar que, ao se fazer essa menção,
pretende-se mostrar que sua frase continua válida: o homem é “a única criatura que
precisa da educação para viver em sociedade” no tempo presente.
Trabalhar com os clássicos da literatura universal é nossa proposta para
(re)pensar os conteúdos escolares. Entende-se que as idéias que se perpetuam no
transcorrer das gerações são o que há de mais significativo para se compreender
as relações humanas no passado e no presente. Os grandes nomes da história, da
filosofia, da sociologia orientam-nos a pensar a educação e a pedagogia em uma
dimensão mais abrangente em relação aos conhecimentos.
44
O homem age à medida que conhece, ou seja, pela educação. Portanto, pode
interagir com a natureza, modificar o ambiente físico e social de seu entorno,
trazendo possibilidades de crescimento e desenvolvimento humano.
Conclui-se que a escola, para cumprir sua verdadeira função, precisa
(re)adquirir sua competência que é, ao mesmo tempo, técnica, política e ética.
Quanto à sua tarefa primeira, que é a de transmitir o conhecimento histórico
produzido pela humanidade, ela deve (re)pensar sua proposta de formação, suas
ações pedagógicas, rever seus conceitos de natureza, homem e sociedade,
valorizando essas dimensões do ponto de vista teórico-metodológico.
A ética e o compromisso político são elementos fundantes do processo
educativo. Não há como ensinar sem o conhecimento; para obtê-lo, é necessário
estudo constante, planejamento e (re)planejamento, avaliação e (re)avaliação. A
consciência política dos indivíduos, portanto, se faz pela firmeza do trabalho
docente, pela filosofia adotada pela escola e pelo compromisso de todos os
envolvidos.
Os sujeitos que passam pela instituição escolar precisam identificar nesse
espaço educativo disciplina na organização da escola e na ação do professor,
perceber que este demonstra postura ética, que estabelece diferença entre os
conteúdos, que respeita com rigor o tempo destinado ao trabalho pedagógico e tem
segurança no conteúdo que está sendo ministrado.
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