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Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014 DA DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA Silvana Fortes da Silveira 1 Bárbara Carolina de Almeida Mendes Lima 2 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo abordar o instituto da coisa julgada e sua relativização ante a demonstração das correntes favoráveis e contrárias à modificação de uma decisão judicial transitada em julgado. O artigo se valeu do método dedutivo e da revisão bibliográfica sobre o tema, a fim de fornecer ao leitor maiores subsídios quanto ao posicionamento de balizada doutrina acerca do assunto. Destacam-se na pesquisa a análise do tratamento conferido a decisões fundadas em dispositivos considerados posteriormente inconstitucionais. Relevante ainda é a exposição e discussão de princípios constitucionais e dispositivos legais que subsidiam argumentos favoráveis à relativização da coisa julgada. PALAVRAS-CHAVES: Coisa julgada. Coisa julgada formal. Coisa julgada material. Relativização. Inconstitucionalidade. 1. INTRODUÇÃO A função atual da ciência jurídica não se limita à imposição de regras ao comportamento social e individualizado do homem e do Estado, objetivando exclusivamente o fortalecimento de entidades guardiãs de valores necessários para a manutenção de ambos, tais como, a obediência estrita aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficácia, da publicidade, da impessoabilidade e da justiça. O nosso ordenamento jurídico se equipara ao sistema piramidal clássico, consagrado por Hans Kelsen, pois insere a Constituição no topo hierárquico das normas jurídicas, fato pelo qual, todas as demais normas que lhe são inferiores buscam validade em seu texto. 1 Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Mestre em Direito, área de concentração Direito Privado, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias. Advogada. 2 Advogada, professora da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato, especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias.

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Revista Pensar Direito, v.5, n. 2, Jul./2014

DA DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA

Silvana Fortes da Silveira1

Bárbara Carolina de Almeida Mendes Lima2

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo abordar o instituto da coisa julgada e suarelativização ante a demonstração das correntes favoráveis e contrárias àmodificação de uma decisão judicial transitada em julgado. O artigo se valeu dométodo dedutivo e da revisão bibliográfica sobre o tema, a fim de fornecer aoleitor maiores subsídios quanto ao posicionamento de balizada doutrina acercado assunto. Destacam-se na pesquisa a análise do tratamento conferido adecisões fundadas em dispositivos considerados posteriormenteinconstitucionais. Relevante ainda é a exposição e discussão de princípiosconstitucionais e dispositivos legais que subsidiam argumentos favoráveis àrelativização da coisa julgada.

PALAVRAS-CHAVES: Coisa julgada. Coisa julgada formal. Coisa julgadamaterial. Relativização. Inconstitucionalidade.

1. INTRODUÇÃO

A função atual da ciência jurídica não se limita à imposição de regras ao

comportamento social e individualizado do homem e do Estado, objetivando

exclusivamente o fortalecimento de entidades guardiãs de valores necessários

para a manutenção de ambos, tais como, a obediência estrita aos princípios da

legalidade, da moralidade, da eficácia, da publicidade, da impessoabilidade e

da justiça.

O nosso ordenamento jurídico se equipara ao sistema piramidal clássico,

consagrado por Hans Kelsen, pois insere a Constituição no topo hierárquico

das normas jurídicas, fato pelo qual, todas as demais normas que lhe são

inferiores buscam validade em seu texto.

1 Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho. Mestre em Direito,área de concentração Direito Privado, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias.Advogada.2 Advogada, professora da Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato,especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias.

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A norma jurídica não compatível à Lei Fundamental não possuirá

validade no ordenamento, respeitados, é claro, os mecanismos de proteção da

supralegalidade consagrados pela própria ordem constitucional.

Partindo deste pressuposto, considera-se que a imutabilidade dos

efeitos da coisa julgada não poderá sobrepor-se à própria Constituição, que

tem como um de seus princípios basilares a legalidade.

Por decorrer do Poder Judiciário, a decisão judicial deve ser

apresentada de forma confiável, para exprimir confiança e garantir a aplicação

da lei, pois é a instituição responsável pela aplicação coercitiva do direito.

Assim, encontra-se mais diretamente sujeita ao cumprimento da moralidade do

que o executivo e o Legislativo, pois tem por objetivo primordial a defesa do

poder que emana do Estado.

Sendo a decisão judicial a expressão máxima de atuação do Poder

Judiciário, deve expressar compatibilidade com a realidade das coisas e dos

fatos concretos e naturais de forma harmoniosa com os princípios

constitucionais, e, portanto, deve estar adstrita aos princípios da moralidade e

da legalidade.

Por decorrer da forma de manutenção dos princípios constitucionais, o

decisum judicial não pode ter carga da pessoa que o emitiu, pois deve

representar a finalidade da qual originou, que é determinada pela lei.

Assim, sendo pressuposto essencial da decisão judicial o respeito aos

princípios constitucionais, e, sendo a moralidade um desses pilares, sua

violação, seja por parte do Estado ou do cidadão implicará na inexistência do

direito, ainda que este se apresente perfeito no campo formal.

Tampouco pode o decisum judicial vincular-se à vontade de quem o

emitiu pois deve restringir-se à finalidade ditada pela lei, característica esta do

regime democrático do qual é feita a Nação. Portanto, sob o prisma da ética, a

sentença judicial não protege o Estado, ainda que transitada em julgado,

quando esta vai de encontro à realidade dos fatos e aos princípios da

moralidade e legalidade

A moralidade é parte integrante de cada regra ditada na Constituição e

sobre todos os princípios. Sua violação, seja pelo Estado, seja pelo cidadão,

não poderá gerar qualquer efeito.

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Parafraseando Cândido Rangel Dinamarco, a coisa julgada não pode

ultrapassar os efeitos a serem imunizados, deve ser posta em equilíbrio com as

demais garantias constitucionais e com os institutos jurídicos.

É certo que a coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado

Democrático de direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao

Poder Judiciário, como discorre Luiz Guilherme Marinoni (2006). Todavia, não

pode dissociar-se do princípio máximo consubstanciado na Constituição

Federal, que é o princípio da legalidade, pois se uma decisão judicial não

respeita tal princípio, não pode de forma alguma gerar efeitos permanentes e

imutáveis.

Atualmente sob o modelo do Estado Democrático de Direito, a decisão

judicial vai mais além, pois deve cumprir, simultaneamente, os critérios da

certeza jurídica, da aceitabilidade racional, senso de adequabilidade e

celeridade. O princípio da certeza jurídica exige decisões consistentes

baseadas no quadro do direito vigente, de forma que o jurisdicionado as aceite

como uma decisão justa.

Sob este paradigma, o exercício da jurisdição significa fidelidade ao

direito material e as garantias do devido processo legal, do contraditório e da

ampla defesa. A atuação do Juiz reclama, além do senso apurado, experiência

e domínio, não só da legislação vigente como também dos princípios que a

norteiam e envolvem.

É oportuno destacar os ensinamentos de Robert Alexi:

a exigência de fundamentação das decisões judiciais que devedar-se através de uma argumentação jurídica racional dependenão só o caráter científico da Jurisprudência, mas também alegitimidade das decisões judiciais.3

Infelizmente, uma grande parcela dos operadores do direito ainda se

prende ao paradigma do Estado Liberal de Direito, objetivando a proteção e o

cuidado extremo da norma; juridicidade; forma; pureza do mandamento legal,

com indefere na aos valores concernentes à legitimidade do ordenamento.

Entretanto, deve-se considerar de forma extremamente cuidadosa o

ataque à decisão judicial transitada em julgado, pois o oportunismo daqueles

3 ALEXI, Robert. Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria dajustificação jurídica. São Paulo: Landy Editora, 2005. 2ª edição. p.20.

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que já tiveram seus direitos rejeitados pode servir de estímulo a pretensões de

reativações de discussão de fatos já analisados, ou até mesmo de provas já

valoradas, o que não tem sido incomum.

2. COISA JULGADA

2.1. Conceito

Entende-se coisa julgada como sendo a sentença que alçou o patamar

da irretratabilidade por não mais poder ser intentado qualquer recurso contra

ela. Sob o aspecto objetivo é aquela que firmou, de forma definitiva, o direito de

um dos litigantes após ter sido apurado pelas vias do devido processo legal.

A coisa julgada pode ser entendida como a decisão judicial da qual não

caiba mais recurso, conforme expresso no artigo 6º, § 3º da Lei de introdução

às normas do Direito Brasileiro, ou então como a imutabilidade do direito

processual.

O direito brasileiro prevê a coisa julgada nos artigos 467, 468 e 472 do

Código de Processo Civil.

A coisa julgada somente produz efeitos em relação àqueles que

participaram do processo independentemente do resultado da demanda.

Quando proferida a sentença, ela e seus efeitos ainda são mera

proposta de solução do litígio, como ocorre nas sentenças de mérito ou em

simples proposta de extinção do processo, através de sentenças terminativas,

uma vez que ainda podem ter alterados seu conteúdo.

A decisão judiciária só ficará imune a questionamentos futuros quando

não mais comportar recurso, conforme previsto pelo art. 267 do CPC.

Quando a sentença limita-se a decidir sobre o processo extinguindo-o

sem julgamento demérito, será estritamente processual tal fenômeno, o qual

restringe-se ao processo que se extingue sem repercutir nas relações das

pessoas no que tange ao processo, pois poderão voltar a juízo, com o mesmo

conflito para apreciação pelo juiz, conforme previsto no artigo 268 do CPC.

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No caso da sentença que contém a decisão de mérito, que gera efeitos

além do processo e sobre a vida das pessoas, tem resguardados seus efeitos

de modo que o julgamento daquela pretensão entre aquelas pessoas fique

imunizado de forma perene com a consequente implantação de uma situação

de segurança quanto aos direitos e obrigações dos litigantes.

Cândido Rangel Dinamarco define esta estabilidade e imunização como

coisa julgada, atingindo conforme o caso, somente a sentença como ato

processual ou até mesmo ela própria e também seus efeitos.

2.2. Coisa julgada formal e material

A coisa julgada ainda é classificada doutrinariamente em formal e

material. A primeira significa a imutabilidade da decisão endoprocessualmente,

ou seja, dentro do processo, de modo que não mais sejam admitidos recursos.

Assim, nenhum outro juiz ou tribunal podem introduzir em tal processo outro

ato que substitua a sentença irrecorrível. Por esse motivo, é conhecida como

preclusão máxima. A segunda decorre da irrecorribilidade de uma decisão de

mérito, impedindo, desta forma, nova discussão da mesma lide em outro

processo, por ter sido definitivamente julgada a questão.

Pode-se ainda definir a coisa julgada formal quando a sentença for

meramente terminativa, ou seja, quando extinguir o processo sem julgamento

do mérito. Este fato impede que o objeto da contenda seja discutido novamente

no mesmo processo, enquanto a coisa julgada material decorre das sentenças

definitivas, o que torna impossível a discussão do objeto da decisão, seja no

mesmo processo em que se deu ou em outro eu venha a se formar.

A coisa julgada formal pode ser caracterizada como a imutabilidade da

sentença como ato jurídico processual se já não existirem recursos ou

expedientes processuais que possam modificá-lo, de modo que naquele

processo não haverá nenhum outro julgamento. A coisa julgada opera tão

somente no interior do processo em que se situa a sentença a ela sujeita. Tem

feição e objetivos estritamente técnico-processuais.

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Toda sentença poderá receber a coisa julgada formal, porque tem por

objetivo a extinção do processo e, quando não há mais recurso cabível será

extinto por força daquela decisão e nenhuma outra será proferida naquele

processo. O efeito processual extintivo é comum às sentenças terminativas e

às de mérito, por disposição legal expressa, porque é essa uma função

universalmente reconhecida às sentenças em geral (CPC, arts. 162, §1º, 267 e

269).

São diversos os momentos em que de forma concreta as sentenças

passam em julgado, seja pela variação dos fatores responsáveis pela

preclusão e as técnicas dos recursos, seja porque na prática do processo civil

ocorrem situações peculiares e diferentes entre si, as quais interferem na

irrecorribilidade.

A preclusão temporal é vislumbrada quando a sentença passa em

julgado no momento em que extingue ou expira o prazo para a interposição do

recurso cabível quando este não é interposto.

A preclusão lógica, que enseja o trânsito em julgado, extinguindo o

direito do recurso, acontece em duas hipóteses. A primeira quando há renúncia

a esse direito pela parte vencida (art. 502 CPC). A segunda, quando há

manifesta anuência ou aquiescência à sentença ante a declaração expressa da

parte que aceita, sem qualquer ressalva.

A renúncia ao direito de recorrer não se confunde om desistência do

recurso, pois esta é como a desistência da ação e refere-se a um recurso já

interposto.

O trânsito em julgado por preclusão consumativa somente ocorrerá

quando tiver sido julgado o recurso cabível contra a última decisão possível no

processo, como define Cândido Rangel Dinamarco.

A preclusão consumativa ocorrerá, portanto, quando não mais houver

recurso a ser interposto ou julgado. Se algum recurso inda for admissível e a

parte não interpuser no prazo, ocorrerá a preclusão temporal e não a

consumativa.

A ocorrência da coisa julgada material pressupõe a ocorrência da coisa

julgada formal, mas o inverso não ocorre necessariamente.

A coisa julgada material pode ser definida como a imutabilidade dos

efeitos da sentença de mérito, pois no momento em que já não couber recurso

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algum será instituído entre as partes e em relação ao litígio julgado uma

situação de absoluta certeza quanto aos direitos e obrigações que os

envolvem.

Segundo Liebmam esse status que transcende a vida do processo e

interfere na vida das pessoas decorre da intangibilidade das situações jurídicas

criadas ou declaradas de modo que nada mais poderá ser feito por elas

próprias ou por outro juiz, que venha a modificar ou contrariar o que foi

decidido, pois a garantia da coisa julgada consubstancia-se na imunização

geral dos efeitos da sentença.

Nos efeitos da sentença encontra-se a fórmula de convivência não

encontrada pelos sujeitos de modo amigável e pacífico, tanto que foi preciso se

valerem do processo e do exercício da jurisdição pelo Estado-juiz.

Segundo Sérgio Gilberto Porto, a diferenciação básica entre coisa

julgada formal e material consiste em que:

...a projeção da coisa julgada material diverge da formal, pois,enquanto esta se limita à produção de efeitos endoprocessuais –internos -, aquela os lança de forma pan-processual – externa-,motivo que se impõe perante demandas diversas daquela em que severificou, tornando inadmissível novo exame do assunto e soluçãodiferente a respeito da mesma relação jurídica, seja por outro, sejapelo mesmo juízo que a apreciou.4

A definição dada por Carlos Valder do Nascimento é bastante didática,

segundo ele:

A distinção entre coisa julgada material e formal consiste, portanto,em que a) a primeira é a imutabilidade dos efeitos da sentença, queos acompanha na vida das pessoas ainda depois de extinto oprocesso, impedindo qualquer ato estatal, processual ou não, quevenha negá-los, enquanto que b) a coisa julgada formal é o fenômenointerno do processo e refere-se à sentença como ato processual,imunizada contra qualquer substituição por outra.5

Em suma, não há dois institutos distintos para a coisa julgada, muito

embora se perceba o mesmo fenômeno da imutabilidade advinda da

4 PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1996. p. 55.5 NASCIMENTO, Carlos Valder (org.) Relativização da coisa julgada no ordenamento brasileirocom a inserção do parágrafo único no art. 741 do CPC. In: Coisa Julgada Inconstitucional. Riode Janeiro: América Jurídica, 2002.p. 38.

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impossibilidade de interposição de recurso contra a sentença sob dois prismas

distintos.

A coisa julgada pressupõe uma força oriunda do pressuposto da

verdade, certeza e justiça, formadas ou afirmadas pelo decisum judicial,

impondo estado de irrevogabilidade para o que for assegurado, e, em nosso

ordenamento jurídico, possui proteção constitucional e infraconstitucional.

Prescreve o art. 5º, inciso XXXVI da Carta Magna que “a lei não

prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Assim,

afirma-se que a lei, ao entrar no mundo jurídico, não poderá produzir, em

nenhuma hipótese, eficácia se causar diminuição ou restrição aos limites da

sentença transitada em julgado.

O dispositivo constitucional consubstanciado no princípio da

irretroatividade das leis não pode ser considerado como vedação à

retroatividade da lei, mas, sim, de limitação à aplicação da lei nova e situação

jurídica sob a égide de lei anterior.

Não se pode afirmar que o inciso XXXVI do artigo 5º da CF, constitua

regra geral, mas, sim, regra específica, delimitadora da eficácia de nova lei

apenas nos casos ali previstos, além dos outros já mencionados. José Eduardo

Martins Cardozo observa que:

O respeito ao “direito adquirido”, ao “ato jurídico perfeito”, à “coisajulgada” (...) não apresenta em si mesmo uma incompatibilidade coma retroatividade ou mesmo com a ação retroativa admitida comoprincípio. (...) Realmente, as leis podem em princípio retroagir,deixando resguardadas desta ação todas as realidades mencionadasno art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, como também podem emprincípio não retroagir, deixando ao abrigo de uma excepcional açãoretroativa estas mesmas realidades.6

A proteção constitucional ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à

coisa julgada consagra a estabilidade dos direitos subjetivos, que decorrem de

uma situação jurídica subjetiva consistente num interesse legítimo que é a

expectativa de direito ou um direito condicionado.

6 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. In: Coleçãao Estudos emhomenagem ao Professor Moreira Alves. Vol. 2. SP: RT, 1995. p. 311.

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O ato jurídico perfeito, cuja definição é dada pelo art. 6º, §1º, da Lei de

Introdução ao Código Civil, é o direito consumado, o qual já incorporou ao

patrimônio do titular, embora ainda não exercido.

Diferencia-se o direito adquirido do ato jurídico perfeito, sob o prisma de

que aquele decorre diretamente da lei em favor do titular, enquanto o segundo

é negócio fundado na lei, conforme ensina José Afonso da Silva.

Todavia, o tratamento dado pela Constituição Federal à coisa julgada é

desvirtuado por muitos de seus intérpretes. Portanto, parece mais correta a

corrente daqueles que entendem ter sido vontade do legislados constituinte

que o limite prescrito no artigo 5º, inciso XXXVI, da CF se restrinja à

impossibilidade de vir a ser prejudicada a coisa julgada por uma nova lei.

A interpretação acima foi muito bem desenvolvida por Paulo Roberto de

Oliveira, Juiz Federal do Estado de Alagoas, conforme extraído de sua obra

Teoria da Coisa Julgada, cujo teor transcreve-se:

Repetindo os textos anteriores, a atual Carta Magna, em seu art. 5º,inciso XXXVI, estabelece: a lei não prejudicará o direito adquirido, oato jurídico perfeito e a coisa julgada. A inserção da regra dentro doart. 5º da Constituição, atinente aos direitos e garantias individuais, decerta forma explica a desmedida extensão que alguns refletida ouirrefletidamente teimam em emprestar ao instituto.7

Consoante, observa-se que da leitura do dispositivo, a regra nele

insculpida se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois, de sobre-direito, na

medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo

legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao Poder Legiferante “prejudicar” a

coisa julgada. É a única regra sobre coisa julgada que adquiriu foro

constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária.

A interpretação do dispositivo constitucional não oferece dificuldades.

Em princípio, utilizando-se do método gramatical de hermenêutica, poder-se-ia

chegar a duas conclusões interpretativas absolutamente diferentes. A utilização

dos demais métodos de hermenêutica, porém, deixa evidenciada a certeza do

entendimento correto do dispositivo.

Realmente, apenas pela leitura apressada dos termos do anunciado

inciso XXXVI, poder-se-ia chegar a duas interpretações, quais sejam: a) “A lei

7 OLIVEIRA, Paulo Roberto de. Teoria da Coisa Julgada. Ed. RT, 1997. p. 84-86.

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não pode prejudicar a coisa julgada”, ou seja, a lei não pode atribuir ao instituto

da coisa julgada estrutura e limites que lhe emprestam menor amplitude. O

instituto da coisa julgada, valioso aos olhos da Constituição, mereceria do

legislador infraconstitucional toda a atenção, de modo a preservar-lhe a

extensão.

Assim, seria inconstitucional toda disposição infraconstitucional que de

qualquer forma diminuísse a importância do instituto, reduzisse sua incidência.

Por muito maior razão seria inconstitucional o dispositivo que admitisse o

ataque à coisa julgada, criando remédio jurídico-processual hábil a

desconstituí-la. Enfim, por esta interpretação, a Constituição protegeria o

instituto da coisa julgada; b) “A lei não pode prejudicar a coisa julgada”, ou seja,

a lei não pode alterar o conteúdo do julgado, após a formação da coisa julgada.

Editada a sentença sobre determinado caso concreto, é irrelevante que a lei

disciplinadora do tema seja alterada, dado que a solução prescrita pela

sentença, ainda que tenha de produzir seus efeitos no futuro, é intocável, não

se lhe podendo opor comando diferente, ainda que editado por lei.

O bem jurídico da “quietude” e da “paz” foi valorado de tal forma pelo

legislador constituinte, que este interditou ao legislador ordinário editar normas

agressoras a casos já decididos pelo Judiciário. Nova disciplina jurídica do fato

somente incidirá para os casos não julgados. Assim, seria marcadamente

inconstitucional o dispositivo que desobrigasse os devedores de pagar aos

credores (moratória), na parte em que eventualmente estabelecesse sua

aplicação aos casos julgados. Enfim, por esta interpretação, a Constituição

protegeria o teor do julgado.

Das duas interpretações literais (gramaticais) possíveis, a segunda é

aquela que efetivamente corresponde à mensagem legal. Observe-se, por

primeiro, que o referenciado inciso XXXVI não proíbe a lei de prejudicar o

“instituto da coisa julgada”, mas, sim, de malferir a “coisa julgada”. Assim,

mesmo a interpretação gramatical tem a prestigiar o segundo entendimento. A

Constituição interditou o ataque ao comando da sentença, protegendo a

imutabilidade do julgado, o que o tornou imune a alterações legislativas

subsequentes.

A igual solução chega-se através da interpretação sistemática. Além

disso, a proteção da coisa julgada foi estabelecida na Carta Política, em

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dispositivo único que trata cumulativamente da coisa julgada, do ato jurídico

perfeito e do direito adquirido, prescrevendo-lhes idêntico regime jurídico. Está

fora de questão que a Constituição não visou defender o “instituto” do direito

adquirido, nem o do ato jurídico perfeito. Em qualquer dos casos, o desejo do

constituinte foi o de impedir que nova lei tivesse o condão de alterar direito já

adquirido ou ato jurídico já celebrado. Trata-se, aqui, do princípio da não

surpresa e da irretroatividade da lei.

Sabe-se que a lei incide somente sobre fatos ocorridos após sua

vigência, daí porque as relações jurídicas formadas sob o império da lei

anterior devem ser resolvidas segundo os seus comandos. Aliás, a própria

fenomenologia do surgimento dos direitos assegura essa irretroatividade que é

decorrência lógica inarredável da essência do sistema. É que a existência de

direitos subjetivos pressupõe a do fato jurídico (lato sensu), e a deste, a regra

jurídica. Sem a regra jurídica previamente vigente, para incidir quando da

ocorrência da concreção do suporte fático, não há nem incidência, nem fato

jurídico, nem relação jurídica. Ademais, sem estes antecedentes lógicos e

cronológico, não há direito, nem dever, pretensão, obrigação, ação, nem

exceção.

Também assegura a correção da segunda tese a observação dos

institutos processuais que sempre conviveram com a regra constitucional em

comento. Prevalecesse a primeira tese (proteção constitucional da amplitude

do instituto da coisa julgada) e a ação rescisória seria inconstitucional, dado

que se trata de remédio jurídico que tem como único objetivo destruir a coisa

julgada. Da mesma forma também seria inconstitucional o instituto da revisão

criminal, dado que a revisão pode ser requerida a qualquer época, não se lhe

podendo opor o instituto da coisa julgada.

Consoante, observa-se, é perfeitamente constitucional a alteração do

instituto da coisa julgada, ainda que a mudança implique restringir-lhe a

aplicação, na criação de novos instrumentos de seu controle, ou até na sua

supressão em alguns ou todos os casos.

O que a Carta Política não admite é a retroatividade da Lei para influir na

solução dada, a caso concreto, por sentença de que já não caiba recurso.

De outra parte, qualquer alteração no instituto mesmo da coisa julgada,

determinando seu enfraquecimento ou dilargando as hipóteses nas quais se

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admite o ataque ao julgado, não incide no que toque às sentenças já

transitadas em julgado, visto que também, neste particular, rege a lei vigorante

ao tempo em que o trânsito em julgado se deu.

Como se vê, a proteção constitucional da coisa julgada é mais tímida do

que se supõe, sendo perfeitamente compatível om a existência de restrições e

de instrumentos de revisão e controle dos julgados. A proteção constitucional

da coisa julgada nada mais é do que uma das muitas faces do princípio da

irretroatividade da lei.

O conceito acima apresentado sobre a coisa julgada baseia-se no

entendimento da realidade processual decorrente do pronunciamento do juiz do

qual não mais cabe recurso.

A caracterização da coisa julgada também decorre do fator tempo, seja

pelo esgotamento das vias recursais permitidas em nosso ordenamento

jurídico, seja pelo conformismo da parte vencida quando não se pronuncia no

prazo devido contra a condenação que lhe foi imputada,

A autoridade da coisa julgada vem sendo justificada pela doutrina sob

dois prismas. O primeiro é de natureza política. O segundo de ordem jurídica,

como dilucida Moacir Amaral Santos em sua obra Comentários o Código de

Processo Civil.

Sobre o primeiro prisma, o de ordem política, esclarece:

A verdadeira finalidade do processo, como instrumento destinado àcomposição da lide, é fazer justiça, pela atuação da vontade da lei aocaso concreto. Para obviar a possibilidade de injustiças, as sentençassão impugnáveis por via de recursos, que permitem o reexame dolitígio e a reforma da decisão. A procura da justiça, entretanto, nãopode ser indefinida, mas deve ter um limite, por exigência de ordempública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se nãohouvesse um termo além do qual a sentença se tornou imutável.8

Quanto ao fundamento de ordem jurídica, este é analisado de modo

controvertido pela doutrina, como explica Moacyr Amaral Santos, sendo,

portanto, apresentado sob várias teorias, senão veja-se:

a) A presunção da verdade contida na sentença (Ulpiano, Pothier e outros);

b) A da ficção da verdade ou da verdade artificial (Savigny);

8 SANTOS, Moacir Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: ColeçãoForense, 1998. p. 461-462.

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c) A da força legal, substancial de sentença (Pargenstecher);

d) A da eficácia da declaração contida na sentença (Heliwig, Binder, Stein);

e) A da extinção da obrigação jurisdicional (Ugo Rocco);

f) A da vontade do Estado (Chiovenda e doutrinadores alemães);

g) A da que a autoridade da coisa julgada está no fato de provir do Estado,

está é, na imperatividade do comando da sentença onde concentra-se a

força da coisa (Chiovenda);

h) A teoria de Liebman que vê na coisa julgada uma qualidade especial da

sentença.

Não obstante a força da coisa julgada, como dessume-se das inúmeras

definições apresentadas pela doutrina, deve-se considerar que na atualidade o

limite de seus efeitos é verificado quanto esta desconsidera os princípios da

moralidade e da legalidade.

Outrossim, há vários questionamentos cujas respostas não se

encontram quando é defendida a imutabilidade da coisa julgada, senão veja-se:

a) A grave injustiça não pode prevalecer em qualquer época, ainda que

protegida sob o manto da coisa julgada, em um regime democrático, porque

este afronta o princípio consubstanciado na soberania da proteção da

cidadania.

b) A coisa julgada é princípio definido e regulamentado pelo direito

formal, via instrumental, que não pode se sobrepor aos princípios da

legalidade, da moralidade, da realidade dos fatos, das condições impostas pela

natureza ao homem e às regras contidas na Constituição.

c) A sentença – ato do juiz – embora atue como lei entre as partes, não

pode sobrepor-se às normas constitucionais.

d) A segurança jurídica imposta pela coisa julgada prevalecerá quando

decorrer de ato não contaminado por desvios graves que desvirtuem e

afrontem o ideal de justiça preconizado na Constituição Federal.

e) A segurança jurídica da coisa julgada impõe certeza, a qual somente

estará caracterizada no mundo jurídico quando não gerar qualquer dúvida, mas

sim verdade absoluta.

f) Deverá prevalecer a coisa julgada quando esta decorrer da aplicação

absoluta do direito material e do direito formal.

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g) A injustiça, a imoralidade, o ataque à Constituição, a transformação

da realidade das coisas quando presentes na sentença tornam viciada a

vontade jurisdicional de modo absoluto, pelo que, em momento algum ocorrerá

seu trânsito em julgado.

h) Os valores absolutos da legalidade, moralidade e justiça pairam acima

do valor da segurança jurídica. Aqueles são pilares, entre outros que sustentam

o regime democrático, de natureza constitucional, enquanto esse é valor

infraconstitucional, originado no regramento processual.

Insustentável, portanto, que em nome da segurança jurídica, a sentença

viole a Constituição Federal e seja veículo da injustiça, principalmente porque a

própria Constituição Federal preleciona ser finalidade precípua do Estado

brasileiro assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a

segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e ajustiça como

valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito,

fundada na harmonia social.

2.3. Da desconsideração da coisa julgada inconstitucional

Compete ao Judiciário, enquanto Poder do Estado, a obrigação de

garantir a prática da justiça. Portanto, é inconcebível a pecha de intocável

atribuída à coisa julgada que promova o contrário.

Um dilema é criado quando uma sentença inconstitucional, transitada

em julgado, é desconstituída por ADI. O que será respeitado? A coisa julgada

ou a Constituição Federal?

A sociedade escolhe os valores que devem ser positivados em seu

ordenamento jurídico. A proteção da coisa julgada é um dos valores escolhidos

pela sociedade brasileira. Ideia consubstanciada no princípio da segurança

jurídica, que segundo definição apresentada por José Afonso da Silva “é o

conjunto de condições que tornam possíveis às pessoas o conhecimento

antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos

à luz da liberdade reconhecida”.

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A confirmação desta afirmação encontra-se consignada no art. 5º,

XXXVI, CF.

A proteção constitucional de uma coisa julgada decorrente de uma

inconstitucionalidade geraria um paradoxo. Portanto, é inconcebível, a

princípio, que a Constituição Federal proteja a coisa julgada que apresente

uma decisão contrária ao seu próprio teor.

A segurança jurídica implica em estabilidade da Constituição e dos que a

realizam.

Deve-se também diferenciar a segurança jurídica da certeza do direito. A

segurança jurídica é um dos princípios do Estado de Direito, consubstanciada

na estabilidade da ordem jurídica constitucional, cuja finalidade é assegurar

nas relações intersubjetivas o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos

jurídicos pretéritos e futuros decorrentes da regulação das condutas sociais.

Como a Constituição história ou dogmática é a base da segurança

jurídica, a forma de efetivação deste princípio deverá nela constar, bem como

nas outras espécies normativas do ordenamento jurídico.

Todavia, o direito apresentado pode não contemplar de forma plena o

princípio da segurança jurídica. Assim, são criados sistemas jurídicos que

promovem meios para realização e manutenção deste princípio.

O sistema brasileiro vigente não protege qualquer decisão judicial

coberta pelo manto da coisa julgada, mas somente aquelas que se encontram

em consonância com os princípios consagrados na Constituição Federal.

O ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado,

um dos pioneiros na defesa de relativização, afirma que as teorias da coisa

julgada devem ser confrontadas com os limites impostos pela moralidade,

legalidade e justiça, não podendo transformar fatos não verdadeiros em reais e

ser veículo de injustiça.

Salienta o ex-Ministro que:

... a carga interpretativa da coisa julgada pode ser revista, emqualquer tempo, quando eivada de vícios graves e produzaconsequências que alterem o estado natural da coisa, que estipulem

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obrigações para o Estado ou para cidadão ou para as pessoasjurídicas que sejam amparadas pelo direito.9

Preleciona, ainda, que ao se deparar com o conflito entre o princípio da

coisa julgada e outros postos na Constituição Federal, o intérprete da norma

deve valer-se do princípio da razoabilidade, de forma a prevalecer uma solução

ética, homenageando, assim, os princípios da moralidade, legalidade e justiça.

Cândido Rangel Dinamarco manifesta-se nessa mesma linha de

entendimento defendendo a ideia de que não poderá ser declarada perene a

coisa julgada inconstitucional face a premissa da harmoniosa convivência entre

todos os princípios e garantias plantados na ordem constitucional, pois nenhum

deles pode ser tratado como absoluto.

O doutrinador ainda esclarece que tal entendimento não vaio ao ponto

isentado de minar de forma imprudente a autoritas rei judicatae ou de

simplesmente transgredir o que a seu respeito resta assegurado pela

Constituição Federal. Propõe-se apenas seja tratado de forma extraordinária

uma situação extraordinária, a fim de afastar injustiças flagrantes.

Cândido Rangel Dinamarco lembra que mesmo as sentenças de mérito

só se tornam imunizadas pela autoridade do julgado quando dotadas de uma

imperatividade possível, ou seja, não merecerão tal imunidade quando em seu

decisório enunciarem resultados materialmente impossíveis ou que contrariem

valores de elevada relevância ética, humana ou política, valores estes também

amparados constitucionalmente.

Seria insensato defender a perenidade de um efeito que humanamente

não poderia ser produzido, no caso das impossibilidades materiais.

Quanto às impossibilidades jurídico-constitucionais, estas decorrem de

um juízo comparativo equilibrado entre a relevância ético-política decorrente da

coisa julgada material como fator preponderante de segurança jurídica e a

grandeza de outros valores humanos, éticos e políticos, que são igualmente

garantidos pela Constituição Federal. Por isso, não ficam imunizadas as

sentenças que de forma frontal transgridam tais valores.

9 DELGADO, Jose Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In CoisaJulgada Constitucional. Coord. Carlos Valder do Nascimento. 1. Ed. Rio de Janeiro: AméricaJurídica, 2002.

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Do contrário, para se evitar a perenização de conflitos seriam

perenizadas inconstitucionalidades de extrema gravidade, ou até mesmo

injustiças intoleráveis.

Sobre o tema, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de

Faria assim se manifestaram:

a) – se a inconstitucionalidade significa inexistência da lei e/ou ato,poder-se-ia falar em Coisa Julgada Inconstitucional se esta seencontra fundamentada em algo que não existe?b) – sendo a resposta negativa, indaga-se: a decisão judicial quecontrarie a Constituição faz coisa julgada?c) – se a resposta continuar negativa (o que é imperativo face àprimeira questão) não se há de falar em relativização da CoisaJulgada Inconstitucional, visto que não se pode flexibilizar (repita-se)o inexistente;d) – como a Arguição de Inconstitucionalidade poderá ser feita aqualquer tempo, em qualquer instância ou Tribunal, neste caso nãose aplicaria o elemento tempo, ou seja, não se há de falar emDecadência, Preclusão e/ou ainda Prescrição;e) – se por qualquer motivo, a Ação Rescisória for apontada comoilegítima em razão do tempo, a saída seria o uso do Mandado deSegurança ou ainda Querela Nulitatis defendida por Pontes deMiranda, cujo prazo de interposição seria de 20 (vinte) anos, e não de2 (dois) anos, como o é no caso da Ação Rescisória. Nesta últimahipótese, via Ação Declaratória de Nulidade Absoluta da Sentença,buscar-se-ia a nulidade da sentença calcada em norma,posteriormente declarada inconstitucional e, portanto, inexistente;f) – não se há de falar, neste caso, em atentado à segurança jurídica,vez que esta não se poderá assetar do nada, no inexistente;g) – dizendo de forma objetiva: lei ou ato eivados deinconstitucionalidade, não geram direitos nem deveres, pelo que o atojudicial inconstitucional não faz coisa julgada.10

Ainda manifestando sobre a coisa julgada inconstitucional, discorrem

Júnior e Faria:

1. O vício da inconstitucionalidade gera invalidade do ato público, sejalegislativo, executivo ou judiciário;2. A coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimentoda invalidade da sentença dada em contrariedade à ConstituiçãoFederal;3. Em se tratando de sentença nula de pleno direito, oreconhecimento do vício de inconstitucionalidade pode se dar aqualquer tempo e em qualquer procedimento, por ser insanável;4. Não se há de objetar que a dispensa dos prazos decadenciais eprescricionais na espécie poderia comprometer o princípio dasegurança das relações jurídicas. Para contornar o inconveniente daquestão, nos caos em que se manifeste relevante interesse napreservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio

10 JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro. In: Revista da Advocacia-Geral da União, AnoII, nº 09, abril de 2001. p.2.

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constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, otribunal, ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderáfazer com eficácia ex nunc, preservando os efeitos já produzidoscomo, aliás, é comum no direito europeu em relação às declaraçõesde inconstitucionalidade.11

Não obstante os argumentos aduzidos, não se pode desconsiderar,

insista-se, a normatização sobre o assunto, do contrário, seria banalizado o

instituto da coisa julgada.

Olvídio Batista, em seu artigo intitulado Coisa Julgada Relativa, discorre

sobre a “era da incerteza” na qual vivemos, pois as cosias que até agora

pareciam perenes, sagradas, acabam-se desfazendo, face às transformações

culturais. Apoiando-se na teoria de Bauman, diz que vivemos num período que

bem pode ser descrito como “modernidade líquida”, em tazão de que tudo que

é construído origina-se já com o selo de provisoriedade.

Preleciona, ainda, ser impróprio que a injustiça da sentença justifique o

afastamento da coisa julgada, pois se a coisa julgada cedesse à injustiça

apresentada na primeira sentença, como ficaria a segunda? Inatacável? E

como se saberia que a segunda faria justiça?

O respeitável processualista realmente defende o entendimento de que

é indispensável a revisão do sistema de proteção à estabilidade dos julgados,

entretanto, nunca poderá permitir a relativização a partir de pressupostos

valorativos como “injustiça” da sentença “abusiva” ou outras proposições

análogas.

A manifestação supra, encontra-se em consonância com a corrente que

defende a relativização da coisa julgada, pois os doutrinadores até agora

citados não defendem, em momento algum, a absoluta desconsideração da

coisa julgada ante o simples argumento de que restou injusta. Sua defesa é a

de que não se deve falar em imutabilidade de decisão proferida em dissonância

aos preceitos insculpidos pela Constituição Federal, ou seja, uma vez proferida

decisão que não contempla a justiça, a legalidade, a moralidade, entre outros

princípios constitucionais, esta estaria viciada e, por isso, poderia ser

desconsiderada, uma vez comprovados os seus vícios.

Contrário a tal entendimento encontra-se Nelson Nery Júnior, que

defende a imutabilidade da coisa julgada. Segundo ele, tal desconsideração

11 Idem, p. 27-28.

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seria um artifício para que a ditadura seja instalada no país, pois se poderia

exterminar a democracia a partir do pressuposto de que o princípio da

segurança, do qual a coisa julgada é elemento de existência, é manifestação

do princípio do Estado Democrático de Direito, conforme dessume-se de

entendimento doutrinário mundial.

Assinala, ainda, que até mesmo na ditadura totalitária do nacional-

socialismo alemão, que não era fundado no Estado Democrático de Direito, a

coisa julgada não foi desconsiderada pelos nazistas.

Porém, pode-se discordar do posicionamento supra, pois não há que se

falar “Estado Democrático de Direito” se a Constituição Federal promulgada por

representantes do povo não for respeitada quando da sentença judicial

proferida. Cabe, portanto, ao Judiciário, conforme já salientado, a vigência da

aplicação e do respeito ao texto constitucional, cabendo-lhe assim a revisão de

decisões proferidas, ainda que transitadas em julgado, que não observam tal

aplicação.

Outrossim, o preâmbulo da Constituição Federal dirime tal questão ao

estabelecer:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em AssembleiaNacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinadoa assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiçacomo valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sempreconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordeminterna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição daRepública Federativa do Brasil.

Não há que se falar em Estado Democrático de Direito se não respeitada

sua Lei Maior, razão pela qual, o exemplo dos nazistas não se aplica ao caso

em debate, pois não havia naquela situação um Estado Democrático de Direito

e as decisões judiciais nunca destoavam das prerrogativas do Estado, caso

contrário, seriam colocadas em risco as vidas dos juízes.

O Estado Democrático de Direito tem por essência a proteção aos

direitos fundamentais, sendo a proporcionalidade instrumento assegurador

desses direitos, redundando na concretização do Estado de Direito.

Partindo desse pressuposto, a proporcionalidade nada mais e do que um

instrumento que proporciona a existência e manutenção desses direitos

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fundamentais, na medida que impede qualquer atuação abusiva por parte do

Poder Público, nele incluído o Judiciário.

Compete à ciência jurídica não só impor regras de comportamento

individual e social para a manutenção do equilíbrio e segurança da sociedade,

mas também, garantir o fortalecimento das instituições responsáveis pelo

desenvolvimento da pessoa humana, instituições estas estabelecidas na

Constituição Federal e consubstanciadas nos princípios da legalidade, da

moralidade, da eficácia, da impessoalidade e da justiça.

Deverá ser subordinado ao princípio da moralidade qualquer conduta

estatal ou privada, pois a este princípio submete-se a supremacia da própria

lei.

A própria lei, ao ser aplicada pelo Judiciário, está intrinsecamente

vinculada aos princípios da moralidade e da legalidade e só se solidificará

quando não expressar abuso. Em suma, a decisão proveniente do Judiciário

deve exprimir confiança e pautar-se na boa-fé.

O artigo 37 da Constituição Federal ao contemplar obediência aos

princípios de legalidade e moralidade, dentre outros, objetivou abranger todos

os Poderes. Assim, nenhuma prerrogativa excepcional pode ser outorgada à

decisão judicial que vá de encontro ao sistema constitucional.

Tomando por base o padrão ético há que se considerar que o Estado

não poderá proteger sentença judicial, ainda que transitada em julgado,

quando esta entrar em conflito com os princípios da moralidade e da

legalidade. Deverá prevalecer a verdade real.

Conclui-se que a Constituição Federal não quis proteger qualquer

decisão que se apresenta sob o manto da coisa julgada, mas somente aquelas

de conteúdo compatível com a Constituição. Ocorrendo uma coisa julgada

inconstitucional, os instrumentos do ordenamento jurídico possibilitam a sua

destituição. Do contrário, verificar-se-ia uma fragilidade na implementação do

princípio da segurança jurídica.

O efeito prático do princípio da segurança jurídica é que a lei pode

criar novos meios jurídicos de desconstituição da coisa julgada que afronte

princípios consagrados na Constituição Federal, sem afrontar a Constituição.

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A segurança jurídica é, em suma, o fundamento para a solidificação

das sentenças. Se a inconstitucionalidade da coisa julgada compromete a

segurança jurídica não poderá ser admitida a intangibilidade da coisa julgada.

Humberto Theodoro Júnior entende que a inferioridade hierárquica do

princípio decorrendo daí uma obediência ao princípio da intangibilidade da

coisa julgada é uma noção processual e não constitucional decorrendo daí

uma obediência ao princípio da constitucionalidade. Somente ocorrerá a

intangibilidade quando a coisa julgada não contrariar a Constituição Federal,

do contrário, verificar-se-á a existência de coisa julgada inconstitucional.

Outro argumento favorável ao fim do absolutismo da coisa julgada

material é o de que se nem as leis e atos normativos são intangíveis, podendo

ser julgados inconstitucionais a qualquer momento pelo Supremo Tribunal

Federal, é injusto admitir que a sentença transitada em julgado seja absoluta,

não podendo ser revista após o prazo prescricional previsto da ação rescisória.

José Augusto Delgado ao se referir a sentenças que precisam de

revisão mesmo após o prazo de propositura da ação rescisória utiliza

expressões como sentenças injustas, violadoras da moralidade e dos

princípios constitucionais. Alguns dos exemplos são hipóteses de

contrariedade a princípios consagrados pela Constituição Federal: sentença

obtida por meio de um perjúrio ou julgamento falso; ofensa à soberania estatal,

provocadora de anulação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

que ofenda, nas relações jurídicas de direito administrativo, o princípio da

legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da publicidade,

que no julgamento de pedido de indenização de propriedade pelo Poder

Público, não respeite o princípio da justa indenização, entre outros.

A consequência da coisa julgada inconstitucional impõe nulidade e, se

a coisa julgada inconstitucional é nula, não se sujeita a prazos prescricionais

ou decadenciais e independe de ação rescisória para eliminação do vício,

segundo Humberto Theodoro Júnior (2002).

No que concerne à violação, há que se ressaltar que o reconhecimento

aos juízos de um poder equivalente ao controle incidental de

constitucionalidade da coisa julgada, como defende Paulo Manoel Cunha da

Costa Otero, que reconhece que uma postura contrária a tal entendimento

ensejará “que o juiz tenha o dever oficioso de recusar a aplicação de normas

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jurídicas contrárias à Constituição Federal, tendo por outro lado, em

contradição, o dever de aplicar casos julgados inconstitucionais.

Quanto à situação brasileira, que é o objeto deste estudo, também se

aplicam as lições do mestre português que preleciona que em situações

nocivas criadas pela globalização econômica, a conformidade atual da coisa

julgada não mais se justifica em qualquer área do Direito.

2.4. Da importância do parágrafo único do artigo 741 do CPC

Um exemplo de aceitação da legislação pátria da desconsideração da

coisa julgada é a inclusão do parágrafo único ao artigo 741 do CPC pela Lei

11.232/2005, declarando inexigível o título judicial fundado em lei ou ato

normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou

fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo

Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Tal preceito legal inspirou-se no direito alemão12 e introduziu no

ordenamento jurídico brasileiro a relativização da coisa julgada ao possibilitar a

revisão de títulos executivos amparados pelo manto da coisa julgada material,

sem se fazer necessária sua desconstituição por meio de ação rescisória.

O disposto no art. 791, I do Código de Processo Civil permitiu que a

incompatibilidade do título executivo em face a Constituição Federal fosse

arguida no próprio processo executivo, possibilitando tal arguição a suspensão

do curso da execução.

Tal dispositivo é objeto de ação direta de inconstitucionalidade proposta

pelo Conselho Federal da OAB (ADI n. 2418-3, Rel. Min. Sydney Sanches).

Não obstante não tenha sido julgada até agora a ADI 2418-3 pelo

Excelso Pretório, esse dispositivo não enseja qualquer violação constitucional

no que tange a garantia da coisa julgada pois, o legislador constitucional não

excepcionou a via da ação rescisória ao estabelecer a garantia da coisa julgada

e nem por isso é incompatível com a Constituição Federal/88 o artigo 485 do

12 Lei do Tribunal Constitucional, §79, n. 1 e n. 2.

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Código de Processo Civil. Criou-se, portanto, um instituto processual por meio

do qual se ataca a imutabilidade da coisa julgada.

Da análise do texto do inciso II do art. 741 do Código de Processo Civil,

conclui-se que a alegação da coisa julgada inconstitucional não exige, em todos

os casos, a existência de julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal,

posto que a parte final do mencionado dispositivo traz orações iniciadas pela

conjunção alternativa ou – “ou em aplicação ou interpretação tidas por

incompatíveis com a Constituição Federal”. Assim, qualquer arguição de

aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”.

Assim, qualquer arguição de aplicação ou interpretação incompatível com a

Constituição Federal, também poderá ser alegada nos embargos, ainda que

tenha havido pronunciamento acerca da matéria por qualquer tribunal.

O parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil apresenta

três hipóteses de inexigibilidade do título executivo judicial: a) a existência de

julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal que tiver reconhecido a

inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo sobre o qual estiver fundado o

título executivo; b) título executivo judicial que implique aplicação considerada

incompatível com a Constituição Federal; e c) título executivo judicial que

implique interpretação considerada incompatível com a Constituição.

As vantagens proporcionadas pela arguição de inexigibilidade do título

por incompatibilidade com a Constituição Federal em sede de embargos do

devedor são evidentes, não só pelo efeito suspensivo atribuído aos embargos,

como também pela facilidade que o julgador terá para conhecer tal lide, posto

que todos os elementos de formação do juízo estará o reunidos em um único

processo apenso, o que proporcionará celeridade na instrução e consequente

economia processual, notadamente para a parte que suscitar o vício por se

encontrar ameaçada de lesão em bem jurídico em decorrência de um julgado

inconstitucional.

Todavia, para o manejo da nova arma, há forte corrente que defende a

necessária declaração de inconstitucionalidade pela STF de lei ou ato normativo

em que se fundou o título executivo e que seu efeito tenha eficácia contra todos,

desfazendo, assim, o ato tido como inconstitucional. Isto é, ficam fulminados

todos os atos pretéritos embasados na norma julgada inconstitucional.

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Lembre-se que a eficácia retroativa da declaração de

inconstitucionalidade não tem o condão de automaticamente desconstituir a

coisa julgada das sentenças pretéritas que aplicou determinada norma

inconstitucional, como é o entendimento mantido pelo STF.

Antes deste novo dispositivo legal, permitia o STF a desconsideração da

coisa julgada fundada em violação da Constituição Federal por meio da ação

rescisória, entretanto, expirado o prazo para tanto, não havia outro mecanismo

processual.

Com o novo instituto, abriu-se outro caminho permitindo-se, assim, que a

incompatibilidade do título executivo judicial em face da Constituição Federal

seja arguida no próprio processo executivo.

Observe-se ainda que se for atribuído o efeito ex nunc à decisão

prolatora da declaração de inconstitucionalidade, com base nas exceções

previstas no artigo 27 da Lei 9.868/99, o parágrafo único do art. 741 do estatuto

processual civil, não será aplicada a arguição de inexigibilidade do título.

Também não se aplica o artigo 741, parágrafo único, do CPC, nos casos

de jurisprudência reiterada do STF, consistente em decisum sobre

inconstitucionalidade proferida incidenter tantum, em razão de não ter eficácia

erga omnes.

Para que a declaração de inconstitucionalidade proferida na via

incidental, ainda que se trate do STF, possa servir para o manejo dos

embargos previstos no parágrafo único do art. 741, da lei adjetiva civil, é

preciso que o STF, como dito, solicite ao Senado Federal a suspensão do ato

declarado inconstitucional, se assim entender, por resolução que tenha eficácia

erga omnes.

Em suma, a decisão do STF para possibilitar o manejo desse novel

instituto deve possui efeito erga omnes, ou seja, ser proveniente de uma ADI

ou ter sido proferida em uma ação incidental com resolução do Senado Federal

suspendendo os efeitos da lei ou ato normativo declarados inconstitucionais de

forma retroativa.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Conclui-se do estudo que a lei não pode prejudicar o conteúdo do

julgado que é resguardado pelo princípio constitucional da coisa julgada.

Todavia, não se pode deduzir que o dispositivo constitucional (art. 5,º, inciso

XXXVI da Constituição Federal) proíbe alterações no instituto, seja em sua

estrutura ou limites. A proteção constitucional à coisa julgada deve ser flexível,

permitindo a existência de mecanismos de revisão e controle dos julgados,

ainda que fora do prazo previsto para a propositura de ação rescisória.

Aos olhos do leigo a sentença injusta corresponde à negação do direito

pelo que, deve-se repensar o atual modelo de justiça, na busca ideal de uma

interpretação e aplicação do direito que se amolde aos princípios fundamentais,

sem os grilhões do pragmatismo, tornando-o compatível com a evolução da

sociedade.

Há casos em que resta justificada a rescisão da sentença, quando

acoimada de injusta não pela valoração da prova, mas para que prevaleça a

descoberta da verdade real, a qual deve sobrepor-se à verdade ficta.

Há que ser repensado o conceito da coisa julgada material, em face dos

avanços tecnológicos no campo da informática e da biomedicina. Dar à coisa

julgada o manto da perenidade e da irretratabilidade incondicional, muitas

vezes leva o jurisdicionado a uma frustração incompatível com os princípios da

lei fundamental, calcada na boa-fé e na moralidade.

Tomando-se por prioridade os princípios constitucionais da legalidade e

da moralidade não se pode declarar imutável a coisa julgada sob o argumento

de que é principio constitucional, pois não o será se não forem respeitados

seus outros princípios.

Assim, a proteção constitucional à coisa julgada não poderá ser

considerada imutável, face sua necessária flexibilização em determinados

casos, desde que analisada cautelosamente.

A relativização da coisa julgada tornou-se possível na medida em que foi

evoluindo o Direito e a consciência dos direitos sociais e morais preconizados

na Constituição Federal, tornando-se essencial a atuação do Poder Judiciário

na delimitação dos parâmetros da coisa julgada material.

Se a justiça, a igualdade e outros valores constitucionais não se

encontram consubstanciadas numa decisão judicial, esta deverá ser revista a

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fim de que não se perpetuem os efeitos nocivos de uma decisão

inconstitucional.

Frise-se que a revisão da decisão judicial, ainda que necessária, deverá

ser feita com cautela, pois do contrário, as decisões jurisdicionais poderiam

tornar-se banalizadas, servindo-se para satisfazer os interesses de alguns, o

que também feriria princípios constitucionais.

A atuação do Poder Judiciário é imprescindível na delimitação dos

parâmetros atuais da coisa julgada material Como consequência, tem-se a

fragilização ou desconsideração da coisa julgada como reação a injustiças ou

fraudes prevalentes na sociedade e que podem ocorrer em quaisquer relações

humanas levadas ao Poder Judiciário para apreciação.

Em suma, os juristas devem servir aos valores humanos mais caros,

como a liberdade, o pluralismo, o humanismo, a dignidade, a igualdade, a

verdade e a paz. Por isso sua missão é ter como máxima a aplicação e

manutenção do justo e do igual nos sistemas jurídicos.

Se a justiça, a igualdade e os demais princípios máximos da

Constituição Federal não foram consagrados ou observados em determinada

decisão judicial, tal decisão poderá ser revista em outra oportunidade para que

não se perpetuem os efeitos nocivos de uma decisão inconstitucional.

O fundamento de manutenção da segurança jurídica não implica em

necessária imutabilidade da coisa julgada quando esta é proferida em

desrespeito à legalidade, à moralidade e outros princípios preconizados pela

Constituição.

Constata-se que a trajetória para a modificação da coisa julgada não

parece tão difícil. Não existe proteção constitucional ao instituto capaz de torna-

lo absolutamente imutável, pois, como já mencionado, a proteção recai sobre o

julgado, impedindo que lei nova o modifique. Entretanto, a proteção

infraconstitucional não pode subsistir frente à existência de julgados ofensivos

aos princípios fundamentais consagrados na Constituição.

Deve-se ainda considerar como argumento favorável ao fim do

absolutismo da coisa julgada material o dato de que nem mesmo as leis e os

atos normativos federais são absolutos. Posto que podem ser considerados

inconstitucionais a qualquer tempo pelo Supremo Tribunal Federal, seria

absurdo admitir que a sentença passada em julgado seja absoluta e não possa

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ser revista após o prazo prescricional da ação rescisória, quando não coadune

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