da crueldade - por jorge veschi

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DA CRUELDADE Coincidência de se refletir sobre a crueldade nas vésperas do dia das mães. Sabemos como os sentimentos e ações são ambíguas. As forças do imaginário da maternagem exibem esta ambigüidade. Werfen, de onde vem Verwerfung (repudiar, renegar, forcluir), significa expelir, parir. Portanto, para gerar é preciso expelir, repudiar. Sabemos como os psicóticos podem parir todo uma realidade ou um criador um mundo novo. Para se colocar alguém na vida é preciso o amor pela humanidade ou por algum objetivo, mas também a crueldade de se colocar alguém na direção e na convivência de sua morte. É preciso aceitar a própria morte, uma vez que os filhos trazem o modelo para a morte dos pais, porisso Laio não suportou a paternidade mandando matar Édipo, não pode aceitar este desígnio simbólico enunciado pelo aêdo. Na ambigüidade do ato de criar, quem cria

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Artigo sobre a Crueldade, do psicanalista e doutor em comunicação Jorge Luiz Veschijorgeveschi.com.br

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Page 1: Da Crueldade - por Jorge Veschi

DA CRUELDADE

Coincidência de se refletir sobre a crueldade nas vésperas do dia das

mães.

Sabemos como os sentimentos e ações são ambíguas. As forças do

imaginário da maternagem exibem esta ambigüidade. Werfen, de onde vem

Verwerfung (repudiar, renegar, forcluir), significa expelir, parir. Portanto,

para gerar é preciso expelir, repudiar. Sabemos como os psicóticos podem

parir todo uma realidade ou um criador um mundo novo.

Para se colocar alguém na vida é preciso o amor pela humanidade ou

por algum objetivo, mas também a crueldade de se colocar alguém na

direção e na convivência de sua morte. É preciso aceitar a própria morte,

uma vez que os filhos trazem o modelo para a morte dos pais, porisso Laio

não suportou a paternidade mandando matar Édipo, não pode aceitar este

desígnio simbólico enunciado pelo aêdo. Na ambigüidade do ato de criar,

quem cria também manta, e também morre.

O acting out da crueldade expressa apenas sua parte de desespero

diante da impossibilidade do sujeito fazer o atravessamento da castração.

Sade já apresentava o engodo da crueldade atuada, ela apenas reforça a vida

e se junta às formas recalcadas de prazer, a crueldade efetiva seria um

método de superação da Lei - matar a vida e a morte, do outro e de si

mesmo. A crueldade efetiva é mais ampla, insidiosa e fria.

Lacan nos apresenta claramente: “os símbolos efetivamente envolvem

a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao

mundo, aqueles que irão gerá-lo ‘em carne e osso’, trazem em seu

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nascimento, com os dons dos astros, senão com os dons das fadas, o traçado

de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado ,

a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para além de

sua própria morte; e através deles, seu fim encontra sentido no juízo final,

onde o verbo absolve seu ser ou o condena – a menos que ele atinja a

realização subjetiva do ser-para-a-morte’.

O ato cruel representa uma proteção contra a castração, assim como a

existência do objeto atesta a proteção diante da existência. A destruição ou o

ataque ao objeto diz respeito a uma tentativa de desdém diante do objeto,

diante da própria condição de objeto. Uma forma de denegar a importância

do objeto como se isso representasse uma superação da castração, um júbilo

que denega o fato de que ‘de nada adianta’. Na bíblia vemos como Deus

reage com crueldade quando os homens o expõe a castração, ao limite de seu

gozo, de seu poder.

A crueldade é demasiada humana, ‘é psicológica’, a existência da

psique é correlata à crueldade humana, diferente da agressividade e da

violência inerente à existência (como a dos animais e das fúrias naturais).

Quando olhamos com olhos humanos vemos apenas a parte violenta e

agressiva da crueldade, para enxerga-la com clareza é preciso olhar como

olhos ‘demasiado humanos’ - como olhos ‘psicológicos’.

Artaud apresenta este aspecto denso da crueldade. Trata-se de uma

‘dor de necessidade implacável’ sem a qual não haveria nem vida nem

realidade. ‘Turbilhão de vida que devora as trevas’ sem a qual a vida não

saberia se exercitar. O bem é desejado, o mal é permanente. Deus quando

cria obedece a necessidade cruel da criação, não pode deixar de criar pelo

núcleo do mal no centro do turbilhão violento do bem. É um ‘apetite de

viver cegamente, passar por cima de tudo’, sem isso a vida seria inútil e

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defeituosa. Não permite que os corpos sejem considerados impermeáveis e

fixos, sujeitos à vontade.

Como se dá o atravessamento da crueldade? Não sem sua presença. O

ser-para-a-morte (Zein zum Tode) de Heiddeger significa que, qualquer

coisa que se faça ou não se faça, qualquer direção que se tome ou não se

tome, já se está sempre na morte própria, como sentido mesmo do Dasein

(estar ai). O sentido do Dasein é ‘die Sorge’ (cuidado, tratamento,

preocupação, solicitude, fique descançado). A solicitude, portanto é um

remédio (atravessamento) para a crueldade. Mas, a diferença entre remédio e

veneno é meramente quantitativa. A solicitude, o tratamento, os cuidados

estão também no sentido da crueldade e da morte. Para que seu efeito não

seja o de uma expressão tirânica e opressiva é preciso que ele seja

conseqüência do atravessamento do ser-para-a-morte porque, como Freud

nos orienta, o que nos aparece como morte é a expressão do complexo de

castração, portanto, o ser-para-a-morte representa o ser-para-a-castração.