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XLV CONGRESSO DA SOBER "Conhecimentos para Agricultura do Futuro" DA CRISE SOCIOAMBIENTAL À CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE DESENVOLVIMENTO RURAL: UMA ANÁLISE DO PROJETO MICROBACIAS 2 MÁRCIO ANTONIO DE MELLO (1) ; EMANOEL MÁRCIO NUNES (2) . 1.EPAGRI, CHAPECO, SC, BRASIL; 2.UERN, NATAL, RN, BRASIL. [email protected] APRESENTAÇÃO ORAL Londrina, 22 a 25 de julho de 2007, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural 1

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XLV CONGRESSO DA SOBER "Conhecimentos para Agricultura do Futuro"

DA CRISE SOCIOAMBIENTAL À CONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DEDESENVOLVIMENTO RURAL: UMA ANÁLISE DO PROJETO

MICROBACIAS 2

MÁRCIO ANTONIO DE MELLO (1) ; EMANOEL MÁRCIO NUNES (2) .

1.EPAGRI, CHAPECO, SC, BRASIL; 2.UERN, NATAL, RN, BRASIL.

[email protected]

APRESENTAÇÃO ORAL

Londrina, 22 a 25 de julho de 2007,Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural

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XLV CONGRESSO DA SOBER "Conhecimentos para Agricultura do Futuro"

AGRICULTURA, MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVEL

Da crise socioambiental à construção de um projeto de desenvolvimento rural:uma análise do Projeto Microbacias 2

Grupo de Pesquisa: Agricultura, meio ambiente e desenvolvimento sustentável

Resumo

Algumas pesquisas realizadas no Oeste de Santa Catarina destacam que a região vive umacrise socioeconômica e ambiental que se reflete no empobrecimento da população rural, noforte êxodo rural, na poluição do solo e da água e nas dificuldades de reprodução social eeconômica da agricultura familiar. Destacam também que, em grande parte, a crise é resultadodo modelo centrado na modernização da agricultura e na articulação da agricultura familiarcom as grandes agroindústrias. É nesse contexto de crise que no ano de 2003 o Estado deSanta Catarina inicia a execução do Projeto Microbacias 2 que busca desenvolver ações nocampo econômico, social e ambiental e objetiva promover o desenvolvimento rural. Esteartigo procura analisar, a luz da perspectiva teórica do construcionismo da sociologiaambiental a concepção do Projeto Microbacias 2, centrando seu foco na região Oeste de SantaCatarina, onde a pesquisa de campo foi realizada.

Palavras-chaves: Desenvolvimento rural sustentável; Agricultura familiar; poluiçãoambiental; Oeste de Santa Catarina.

AbstractSome research carried out in the West of Santa Catarina State put in relief that the region livesa social, economics and environment crisis that result in the impoverishment of rural

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population, in the strong rural exodus, the pollution of the soil, the water and the air and in thedifficulties of social and economic reproduction of family farm. They also show that, largely,the crisis is resulted of the agriculture modernization. It is in this context of crisis that in theyear of 2003 the State of Santa Catarina start the execution of the Project Microbacias 2 thatdevelop action in the economic, social and environment field and objective to promote therural development. This paper analyze, the conception of the Project Microbacias 2, the lightof the theoretical perspective of the social constuctionist environment, focussend the regionWest of Santa Catarina State.

Key Words: Rural development; Family farm, environment polution, West of Santa CatarinaState.

Introdução

O desenvolvimento econômico e social do Oeste de Santa Catarina historicamente temse apoiado na agricultura familiar. Entretanto, pesquisas têm ressaltado que a região passa poruma crise que é, ao mesmo tempo, econômica, social e ambiental e cujos resultados serefletem no empobrecimento da população rural, no forte êxodo rural, na poluição do solo eda água e nas dificuldades de reprodução social e econômica da agricultura familiar. Essaspesquisas também têm mostrado que o padrão de integração e de articulação da agriculturafamiliar com a grande agroindústria é responsável, em grande medida, pelas agressões aomeio ambiente e pela exclusão dos agricultores do processo produtivo. Apontam também, quea crise socioeconômica e ambiental que vive o espaço rural do Oeste de Santa Catarina, emgrande parte, é resultado do modelo centrado na modernização da agricultura e na articulaçãoda agricultura familiar com as grandes agroindústrias, que historicamente se consolidou naregião.

É neste contexto de crise que em 1991 o Estado de Santa Catarina implementa o“Projeto de Recuperação, Conservação e Manejo dos Recursos Naturais em MicrobaciasHidrográficas no Estado de Santa Catarina”, tendo sido executado até 1999. A avaliaçãopositiva do projeto, sobretudo no que diz respeito aos aspectos ambientais, suscita aelaboração do Projeto Microbacias 2, cujo enfoque ampliado assenta-se no campoeconômico, social e ambiental e objetiva promover o desenvolvimento rural.

Acredita-se que essa proposição de “desenvolvimento rural sustentável,” como opróprio projeto se intitula, pode ser analisada a partir das ferramentas analíticas da abordagemconstrucionista da sociologia ambiental desenvolvida na obra de Hannigan (1997). Sendoassim, a partir do enfoque construcionista, o objetivo deste texto é analisar o ProjetoMicrobacias 2, que desde 2003 está sendo executado em Santa Catarina e cujo horizontetemporal é de seis anos. Portanto, utilizando o construcionismo da sociologia ambiental comouma ferramenta analítica este texto vai se ater apenas a concepção do projeto uma vez queseus resultados ainda não estão disponíveis.

Além desta introdução o trabalho está estruturado da seguinte forma: no próximo item,com o objetivo de contextualizar o ambiente em que o Projeto Microbacias 2 se insere, faz-seuma breve descrição e análise da trajetória histórica do desenvolvimento do Oeste de SantaCatarina e da crise socioeconômica e ambiental que começa a mostrar seus reflexos a partir de

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meados dos anos 1980. No item dois, busca-se demonstrar, ainda que de forma abreviada,como a sociologia passa a incorporar a questão ambiental em suas análises e teorização. Noitem três, discute-se a abordagem construcionista da sociologia ambiental. No item quatro,discute-se o construcionismo ambiental como um instrumento de análise. Por último, no itemcinco, apresenta-se e analisa-se a concepção e proposições do Projeto Microbacias 2utilizando, sobretudo, as ferramentas de análise da perspectiva construcionista dos problemasambientais apresentadas em Hannigan (1997).

1. Do desenvolvimento agrícola à crise socioambientalNeste item, pretende-se fazer uma breve descrição do contexto histórico que culmina

com a crise socioambiental no Oeste de Santa Catarina e onde emerge e se justifica aimplementação de um projeto de desenvolvimento rural que considere aspectos envolvidos nocampo ambiental, econômico e social, como é o caso do Projeto Microbacias 2.

Até o início da década de 1980, no Oeste de Santa Catarina havia uma relativaconvergência nos interesses das agroindústrias, dos agricultores mais capitalizados social eeconomicamente e do Estado, o que resultou num modelo de desenvolvimento centrado naintensificação da produção agrícola e na articulação e integração da agricultura familiar comas agroindústrias de carne suína e, na década de 1970, também de carne de aves. Enquanto osagricultores buscavam se inserir dinamicamente no mercado, as agroindústrias, por seu lado,voltavam seus esforços para que os agricultores aumentassem a oferta da produção(principalmente suínos) que se converteria em matéria-prima a ser industrializada. Nosprimeiros momentos, as agroindústrias adotam uma estratégia de ampliação horizontal daprodução, ou seja, inserindo no ciclo comercial o maior número possível de agricultores. AoEstado cabia o papel de coordenar e facilitar esse processo – tanto do lado da produçãoagrícola como da industrialização – utilizando diferentes instrumentos para isso. Por um lado,visando incrementar a produção agrícola, disponibilizava crédito agrícola e prestavaassistência técnica e extensão rural aos agricultores. Por outro, oferecia incentivos fiscais ecrédito subsidiado voltado à instalação e ampliação das agroindústrias.

Foi desta forma então que a suinocultura firma-se como a principal atividade mercantilda maioria das unidades familiares do Oeste catarinense, sem contudo, se transformarem emprodutoras especializadas: elas mantêm sua característica de produção diversificada. Nessemodelo, a escala de produção de suínos era proporcional à capacidade que cada unidade tinhapara produzir os alimentos necessários para a criação. Juntamente com a expansão dasuinocultura ocorre o aumento da produção de milho, um dos principais componentes daalimentação dos suínos. Num primeiro momento, este sistema de produção também permite aexploração do feijão e da soja em cultivos consorciados com o milho. Essas lavouraspassaram então, gradativamente, a se constituir em novas opções derenda para as unidades familiares. Este modelo de produção diversificada foi denominado porTesta et al. (1996) como “policultura hierarquicamente subordinada à suinocultura”.

A partir de meados da década de 1980 as agroindústrias de carne buscam aespecialização e o aumento na escala de produção de suínos nas propriedades dos agricultoresintegrados, caracterizando-se um processo de concentração da produção e seleção deprodutores. Como nem todos os agricultores desejavam ampliar a atividade suinícola oupossuíam o capital para fazer os investimentos necessários, a maior parte deles fica obrigada aabandoná-la. Ao final desse período de transformações, constata-se que se em 1980, no Oestecatarinense, 67 mil famílias tinham na suinocultura uma importante fonte de renda, em 1995restaram apenas 20 mil nesta condição (Testa et al. 1996).

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Dessa reestruturação produtiva surgem dois reflexos que impactam negativamente aregião: a exclusão de mais de 40 mil famílias da produção comercial de suínos e a poluiçãoambiental, causada pela concentração espacial da produção de dejetos de suínos. Além disso,Silvestro et al. (2001) também destacam outros fatores que contribuíram para agravar asituação: a poluição ambiental – causada, sobretudo, por dejeto animal e pelo incremento nouso de agrotóxicos – e o esgotamento dos recursos naturais; a queda do preço e a redução narentabilidade das commodities tradicionalmente produzidas na região; a grande distância dosmercados consumidores; a escassez de terras aptas para culturas anuais; a estrutura fundiáriaexcessivamente subdividida. A ação conjunta destes fatores gerou um quadro dedescapitalização de grande parcela das unidades familiares, refletindo-se na dificuldade decriar oportunidades de trabalho e intensificando o êxodo rural.

Os estudos de Testa et al. (1996), Renk (2000) e Silvestro et al. (2001) têm mostradoque o padrão de integração e de articulação da agricultura familiar com a grande agroindústriaé responsável, em grande medida, pelas agressões ao meio ambiente e pela exclusão dosagricultores do processo produtivo. Os estudos apontam também, que a crise socioambientalque vive a região, em grande parte, é resultado do modelo de desenvolvimento baseado namodernização da agricultura e na articulação da agricultura familiar com as grandesagroindústrias. Em resumo, pode-se afirmar que os resultados mais visíveis dessastransformações se refletem no empobrecimento da população rural, no forte êxodo rural e napoluição do solo, da água e do ar e que acaba abalando profundamente dois dos principaispilares onde se assentam as bases para o desenvolvimento rural: o capital social e a qualidadeambiental.

Grande parte da crise socioambiental do Oeste de Santa Catarina está relacionada com as “desconexões1” dos elementos estruturantes que conferiam especificidade à agricultura (Ploeg, 1992b) e que é resultado da crescente externalização2 do processoprodutivo provocada pela modernização da agricultura. Assim, para Ploeg (2000) odesenvolvimento rural precisa promover a re-conexão da agricultura, concebida como areconfiguração dos recursos rurais que precisam ser reformatados e recombinados, buscandouma reaproximação da sociedade com a natureza.

Importa reter aqui é que no Oeste de Santa Catarina havia um certo consenso, entre osatores regionais, que o desenvolvimento agrícola, baseado na modernização da agricultura ena articulação e integração dos agricultores familiares às grandes agroindústrias, conduziriaao desenvolvimento rural e ao bem estar da população, constituindo-se assim, em umambiente socioinstitucional que Marsden (2003) denomina de “Institucionalização dainsustentablidade”. Quando no final dos anos 1980 e início dos 90 a crise socioeconômica eambiental que atinge a região sinaliza claramente que a opção ao modelo de desenvolvimentoagrícola estava levando a uma situação de insustentabilidade, não havia outro projeto que

1 Os conceitos “re-conexão e “desconexão” utilizado por Ploeg (1992b) parece se aproximar dos conceitos de“encaixe” e “desencaixe” utilizado por Giddens (1991, p.29). Para esse último autor, desencaixe representa o“deslocamento das relações sociais de contextos locais de interações e sua reestruturação através de extensõesindefinidas de tempo-espaço. Esta imagem permite capturar os alinhamentos em mudança de tempo-espaço,fundamental para a mudança social em geral e para a modernidade em particular”.2 A externalização se caracteriza por um aumento na divisão social do trabalho resultante da crescente delegaçãode tarefas a instituições externas, ou seja, um grande número de tarefas é crescentemente separado do processode trabalho agrícola e são delegadas a empresas especializadas, como as agroindústrias à montante da produçãoagrícola. Diferente da indústria, onde uma parte considerável da especialização do trabalho tem lugar na própriafábrica, o desenvolvimento agrícola implica num processo de externalização cujo resultado é a multiplicação dasrelações mercantis (Ploeg 1992a).

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pudesse substituir o anterior. Na realidade, assim como foi observado por Ploeg e Renting(2000) para as condições da Europa, também no Oeste catarinense as práticas e iniciativasvoltadas para o desenvolvimento rural foram, de certa forma, bloqueadas pelo regimetecnológico anterior. Assim, os diferentes tipos de regulação, procedimentos e agendas depolíticas e pesquisa, maquinários e rotinas são orientados para a reprodução da lógica damodernização da agricultura em detrimento da lógica do desenvolvimento rural.

Nesse contexto de crise é que o Projeto Microbacias 2 tenta se inserir com o objetivode orientar e promover uma outra forma de desenvolvimento, que simultaneamente leve emconta a melhoria nos aspectos econômico, social e ambiental. No próximo item, com o intuitode aproximar mais do nosso objeto de análise, discutiremos como se dá a incorporação doambiente nos estudos sociológicos.

2. A incorporação do ambiente pela sociologiaA questão ambiental foi incorporada, de maneira mais contundente, nos estudos

sociológicos somente a partir da década de 1960, na medida que se percebe, de forma maisclara, que os conflitos entre sociedade e natureza e os problemas ambientais não se constituíaem algo fugaz, cujos problemas poderiam ser superados facilmente, mas sim, que se tratavade uma questão de crescente relevância.

Dois aspectos fundamentais são apontados por Hannigan (1997) para explicar porquea sociologia demora tanto para incorporar nas suas análises a questão ambiental. O primeirodeles diz respeito ao fracasso do determinismo geográfico e biológico e que levaram a umaforte aversão, por parte dos sociólogos, às explicações que utilizassem argumentos biológicose ambientais. O segundo aspecto está relacionado com a visão da maioria dos sociólogos arespeito da sociedade humana, que a consideram como sendo livre dos princípios e restriçõesque governam a relação sociedade e natureza e, portanto, acabam ignorando as restrições dosfenômenos ambientais. Essa visão estava ancorada em uma literatura que enfatizava amodernização e enxergava a preocupação ambiental como retrocesso ao desenvolvimento ealgo a ser superado pelo avanço tecnológico. Algumas especialidades sociológicas chegarama se tornar, nas palavras de Hannigan (1997, p. 19), “vendedoras ambulantes”, para benefícioda inovação tecnológica e desenvolvimento econômico. Em síntese, como assevera Hannigan,

“Hipnotizada pelos benefícios do desenvolvimento e do seu ‘amigo intimo’, amodernidade individual, a maioria dos sociólogos, (...), ou ignoroucompletamente o ambiente natural, ou viu-o como algo a ser ultrapassadoresolutamente e com engenho” (Hannigan, 1997, p. 21).

Nos últimos trinta anos do século 20, no entanto, crescentemente os sociólogos têmmostrado uma maior preocupação com o meio ambiente, relativamente ao que acontecia nopassado, e buscam incorporar no escopo de suas teorias ou mesmo refletir e desenvolvernovas teorias que levem em conta a íntima relação da sociedade com a natureza. Tanto éassim, que nos últimos anos expressões como “Questão do meio ambiente”, “crise ecológica”ou ainda “problemática ambiental”, segundo Gerhardt e Almeida (2005, p.2), incorporam-se,de forma inextrincável, nos debates mais relevantes da sociedade e cada vez mais fazem partedo senso-comum, constituindo-se num emaranhado polissêmico de sentidos. O crescentereconhecimento da sociedade para a importância do meio ambiente, o debate que ele suscita esuas implicações prático-cognitivas leva os autores acima citados a defender a hipótese de queestaria se configurando um “campo ambiental”, no sentido de campo utilizado por Bourdieu.

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“... o campo ambiental, sempre perpassado e alimentado pelos demais campossociais e funcionando como um amplo, dinâmico, fluído, instável eheterogêneo espaço de debate onde tendem a se concentrarem as disputassobre que discursos/ações deveriam ser instituídos como sendo os mais"verdadeiros” ou, no mínimo, mais “competentes”, faz com que determinadasidéias, conceitos e práticas possam naturalizar-se e, concomitantemente, sejamvistas como ambientalmente corretas. Porém, deste ponto de vista, o que seriavisto (e adotado) como “ambientalmente correto” está, desde já, em disputa”(Gerhardt e Almeida, 2005, p.5).

Buscando traçar o caminho da sociologia ambiental desde 1970 até 1995, Hannigan(1997, p.22) afirma que na Europa a maior parte dos trabalhos iniciais relacionados comtópicos ambientais teve como foco o ambientalismo e o movimento ambiental, influenciadosque foram pela emergência dos “verdes” como força política. A exceção, segundo o autor, foia Holanda, onde a sociologia ambiental voltou seu foco de análise para questões que giravamem torno da agricultura e a avaliação de riscos, enquanto na Grã-Bretanha o interesse sobre oambiente concentrou-se em torno das questões teóricas, avaliando a relação entre a sociedadee a natureza em oposição as perspectivas sociológicas que tratavam sobre classes sociais eindustrialização.

Nos Estados Unidos, por sua vez, a emergência da sociologia ambiental teve umaimportante contribuição nos trabalhos de Catton e Dunlap que no final dos anos 1970, comseu Novo Paradigma Ecológico, defendiam uma abordagem menos antropocêntrica e maisecocêntrica. Entretanto, como ressalta Buttel (2000, p. 33) a literatura sociológica norte-americana sofre de uma deficiência – no que tange à qualidade de vida – uma vez que dedicamais atenção à teorização da degradação ambiental do que à teorização do melhoramentoambiental.

Se até a década de 1990 as teorias sociológicas ambientais norte-americanas buscavamexplicar a degradação ambiental, uma gama muito diversa de novas teorias da sociologiaambiental, formuladas, sobretudo, por pesquisadores do norte da Europa, tendem a ver amelhoria ambiental como sendo mais importante de ser explicada do que a degradação e, porisso, atribuem maior importância às pesquisas voltadas para a melhoria da qualidadeambiental.

Nesta perspectiva despontam novas tendências teóricas na sociologia ambiental que,de forma geral, se inspiram em aspectos da modernização reflexiva desenvolvida, sobretudo,por Beck (1997). Nesse quadro analítico pode-se destacar, por exemplo, as teorias sobre a sociedade de risco (Beck, 1997)3 ou a modernização ecológica (Mol, 2000).Cabe destacar, também, o trabalho de Hannigan (1997) que também está associado à teoria damodernização reflexiva mas, distintamente de Beck (1997) que abordou os riscos ambientaissob a perspectiva macro sociológica da mudança social, suas análises se assentam naconstrução social das questões ambientais.

3 Beck (1997) afirma que a maneira como percebemos “risco” é construída socialmente. Ouseja, é a sociedade quem determina o que é ou não considerado risco e quanto pode ser aceito.Desse processo não participam apenas aspectos objetivos e científicos, ainda que quasesempre estejam presentes. Socialmente, isso implica que alguns perigos simplesmente sãoconsiderados como não-existentes e por isso não são considerados como risco. Beck propõeum construtivismo institucional para lidar com a natureza depois que a sociedade dela seseparou.

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Os problemas ambientais são considerados por Hannigan (1997) como sendo oproduto de uma construção social cuja definição, negociação e legitimação se dá no âmbito deprocessos sociais onde se opera duas questões consideradas chaves: em primeiro lugar a“fabricação” dos problemas ambientais e, em segundo, o processo pelo qual certas demandasconseguem legitimidade. No próximo item buscaremos detalhar, a partir de Hannigan (1997),a abordagem social construcionista do ambientalismo e do ambiente, tendo em vista que oobjetivo principal deste trabalho é utilizá-la como referência para analisar o ProjetoMicrobacias 2.

3. A construção social dos problemas ambientaisA abordagem construcionista dos problemas ambientais tem muitas origens, mas

remetem aos anos 1970, quando começa a ser questionada a explicação dos problemas sociaisconvencionais como a criminalidade, divórcio, doenças mentais, etc. Hannigan (1997, p. 47)relata que, em 1973, Malcom Spector e John Kitsuse se opuseram a análise funcionalista dosproblemas sociais, que assumia a sua existência como conseqüência direta de condiçõesobjetivas, identificáveis, distintas e visíveis, cabendo aos sociólogos a conscientização e acompreensão das condições preocupantes, sobretudo onde elas não eram prontamenteevidentes. Os autores consideravam a análise do processo de criação de exigências maisimportante para o estudo sociológico do que a tarefa de avaliar se as estatísticas de taisexigências eram ou não realmente válidas. Na perspectiva social construcionista, portanto, oproblema passa a ser analisado não como algo estático, mas como uma permanenteconstrução orquestrada por certos atores, isto é, de como as pessoas determinam o significadodo seu mundo. Sendo assim, o fundamental para a perspectiva construcionista é analisar comoos problemas são “gerados e sustentados pelas atividades de grupos que reclamam e dasrespostas institucionais a elas” (Spector e Kitsuse, 1973, p.158, apud Hannigan, 1997, p. 48).

A partir desse entendimento é que a abordagem construcionista na sociologiaambiental busca compreender como as condições ambientais são definidas como sendoinaceitáveis e, portanto, passíveis de litígio. Para fazer isso seu foco centra-se nos processossociais, políticos e culturais4, por intermédio dos quais as condições ambientais podem sercontestadas. Isto não significa, entretanto, que a construção social de um problema ambientalprescinda dos conhecimentos e descobertas da ciência. Raramente encontramos um problemaambiental que não tenha origem num corpo de investigação científica (Hannigan, 1997, p.103). Entretanto, como é colocado em destaque por Hannigan (1997, p. 109) o que abre portasà criação dos problemas ambientais é a própria incapacidade da ciência em dar provasabsolutas e inequívocas de segurança, o que eleva a importância dos riscos ambientais seremgovernados pelo princípio da prevenção. Não deixa de ser irônico, portanto, que emsociedades ‘reflexivas’ os riscos decorram do próprio sucesso da aplicação do conhecimentocientífico. Como ressalta Beck(1997), vivemos atualmente sob o domínio da sociedade derisco, onde o desenvolvimento da tecnociência não pode mais dar conta da predição e controledos riscos que contribuiu decisivamente para criar e que geram conseqüências de altagravidade para a saúde humana e para a natureza. Esses riscos se inserem na esfera das“incertezas fabricadas”, como aponta Giddens (1991).

A tarefa da perspectiva construcionista da sociologia ambiental é, portanto, a deanalisar como os problemas ambientais são montados, apresentados e contestados,

4 Ao contrário dos problemas sociais, os ambientais estão mais diretamente ligados às descobertas e exigênciascientíficas. Embora eles sejam identificados com agentes humanos, os problemas ambientais têm uma base físicamais impositiva (Hannigan, 1997, p. 54-5).

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reconhecendo os problemas e as soluções ambientais como resultados da dinâmica social dasua definição, negociação e legitimação. Desse modo, como avalia Guivant (2002, p. 2), o quepassa a ser socialmente considerado como um problema ambiental não implica meramenteuma leitura imparcial e neutra de um fenômeno real, ou estar se referindo a fatos objetivossobre a natureza, mas de demandas construídas socialmente. Hannigan refere-se a Coleman eCressey para esclarece essa questão: “a poluição não se tornou um problema social até osativistas ambientais serem capazes de convencer outros a se preocuparem com as condiçõesque existiriam na realidade durante algum tempo” (Coleman e Cressey, 1980 apud Hannigan,1997, p. 55). Isso significa que alguém precisa persuadir outros autores sociais sobre quaissão os problemas mais e menos urgentes. Por isso, Hannigan considera que a abordagemconstrucionista da sociologia ambiental leva vantagem em relação às outras porque estas têmdificuldades para justificar adequadamente a forma como os problemas ambientais sãodefinidos, articulados e regulados pelos atores sociais.

O construcionismo é uma das vertentes da sociologia ambiental que analisa os debatesambientais mostrando não só a falta de certezas sobre certas questões mas também certezascontraditórias (Hannigan, p. 44). Isto é, pontos de vista irreconciliáveis sobre ascaracterísticas e conseqüências de certos problemas ambientais, sobretudo quando se trata deproblemas de origem difusa, como é o caso, por exemplo, da poluição causada por dejetosanimais, agrotóxicos, erosão do solo, que é um dos objetos de ação do Projeto Microbacia 2.É necessário esclarecer, no entanto, que quando se afirma que os riscos e problemasambientais são socialmente construídos isto não significa negar que tenham uma realidadeobjetiva nem que possam ser explicados a partir de causas naturais. Neste sentido Hannigan(1997, p. 54-55) esclarece que enquanto os problemas sociais (...) derivam muito mais dopoder retórico da moral do que de argumentos fatuais (...) problemas ambientais comoenvenenamento por pesticidas ou o aquecimento global, mesmo sendo revestidos de moral,são mais diretamente ligados a descobertas científicas (...) têm uma base física maisimpositiva do que os problemas sociais”.

A destruição da camada de ozônio pode ser utilizada como um exemplo ilustrativo deque a construção social de riscos e problemas ambientais não está descolada da realidadeobjetiva e das causas naturais. A perda gradual da camada de ozônio já vinha acontecendo poralgumas décadas quando foi constatada pelos cientistas e que também descobriram asconseqüências negativas do fenômeno para o meio ambiente e à saúde humana. O problema,portanto, existia no ambiente físico e era reconhecido, analisado e discutido na esferacientífica. Entretanto, foi somente quando fotos de satélite feitas pela NASA transformaramas gradações reais na concentração do ozônio numa escala simples de códigos de cores,levando à equivocada impressão de que havia realmente um buraco na camada que protege aTerra da radiação nociva do sol, que o problema real se tornou um problema social, ganhandoas páginas dos jornais e revistas e se transformando em tema de discussão nos seminários depesquisa, plenários políticos e na conversa cotidiana do cidadão comum (Hannigan, 1997, p.63). Portanto, somente depois de ter ganhado a atenção e legitimidade na mídia e setransformado em um problema social é que o “buraco” na camada de ozônio virou alvo depressão e se iniciou um movimento que reivindicava a resolução do problema.

O exemplo da destruição da camada de ozônio, citado acima, ajuda a esclarecer que oconstrucionismo ambiental não trata da criação de problemas, uma vez que eles já existemobjetivamente, mas sim da sua elaboração, de seus significados e de sua importância social.Por esse motivo, como explica Hannigan (1997), o construcionismo ambiental pode ser umaferramenta útil para levar os problemas ambientais da esfera física para a sociocultural e

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política e, só assim, começar a sua resolução. Cabe salientar, entretanto, que a construçãosocial de um problema ambiental (tanto a análise como a operacionalização de um projeto,por exemplo) não se aplica apenas a fenômenos de maior amplitude, como é o caso dadestruição da camada de ozônio, ele também pode ser aplicado àqueles mais localizados,como é o caso da poluição da água e do solo causada por agrotóxico ou dejetos animais, porexemplo. Nesse sentido o que importa analisar é como se dá o deslocamento das questões danatureza para a sociedade.

Merece destacar, entretanto, que críticas são endereçadas à abordagem construcionistada sociologia ambiental de Hannigan, com destaque àquelas vindas dos que defendem umaposição realista. O debate entre realistas e construcionistas sociais, que nem sempre acontecede forma explicita, segundo Guivant (2002), atravessa a sociologia ambiental. Aquelesdefendem a existência objetiva dos problemas socioambientais, independente da forma emque os atores sociais os percebem e acusam os construcionistas de negar ou ocultar aexistência danosa de problemas graves da “vida real”, na medida em que suas análisescentram-se na natureza relativa dos problemas socioambientais, pois são construídas a partirda forma em que as pessoas compreendem o significado do seu mundo. Também acusam oconstrucionismo socioambiental de não ser capaz de criar uma agenda de políticas, na medidaem que seus métodos não funcionam como mecanismos efetivos para solucionar os problemassocioambientais e, por isso, não consegue ser de muita utilidade para enfrenta o desafio dasustentabilidade (Redclift e Woodgate, 1997, p. 61 apud Viveiros, 2004). O referencialteórico da modernização reflexiva, na qual os teóricos socioconstrucionistas se apóiam,segundo Buttel (2000, p. 31), tem dado uma contribuição significativa para a sociologiaambiental e para os estudos sobre a qualidade de vida em particular, entretanto as perspectivasda modernização reflexivas tendem a ser eurocêntricas.

Por outro lado, outras teorias têm dificuldade de estabelecer o que pode serconsiderado um atributo positivo da abordagem socioconstrucionista ambiental: justificarcomo os problemas ambientais são definidos, articulados e regulados pelos atores sociais, istoé, como eles são construídos. Hannigan não desconsidera a existência objetiva dos problemasambientais, defende apenas que para que eles possam ser, de alguma forma, solucionados épreciso ser construídos socialmente para ganhar a consciência da população e do poderpúblico.

Em síntese, a abordagem socioconstrucionista permite teorizar a respeito de como sedá o deslocamento de questões relacionadas com a natureza para a sociedade. Isto é, depoisque o modernismo criou um fosso entre a sociedade e a natureza5, o socioconstrucionismoambiental busca entender como os problemas e conflitos ambientais vão sobrepondo-se,interpenetrando-se, amalgamando-se com a sociedade. O socioconstrucionismo ambiental nãose constitui, portanto, em uma panacéia capaz de sozinha equacionar os problemasambientais, que só recentemente passaram de “efeitos colaterais” aceitáveis à condição delimite à própria sobrevivência humana, mas pode ser um primeiro passo no sentido daharmonização da relação homem natureza.

4. construcionismo como instrumento de análise5 Enquanto em Hannigan o socioconstrucionismo do ambiente tenta teorizar em torno da percepção social dosproblemas e conflitos ambientais e as negociações e configurações que emergem das relações conflituosas entrea sociedade e a natureza, Latour (1994) questiona a separação do pólo social e do pólo natural interpretando quea sociedade e a natureza sempre estiveram conectados de forma inextricável e por isso seus esforços centram-sena teorização e análise do próprio objeto “híbrido” que representa a mescla entre o mundo natural e o mundocultural.

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O construcionismo, como demonstra Hannigan (1997) não é útil apenas como umainstância teórica, mas também pode ser como uma ferramenta analítica. A análiseconstrucionista que o autor propõe, embora não tenha a pretensão de dar conta de todos osdilemas ambientais ou de efetivamente resolvê-los, aponta caminhos e ajuda a compreender oque faz alguns fenômenos se tornarem visíveis e canalizarem para eles, não apenasdiscussões, mas investimentos e mobilização política, enquanto outros, até mais urgentes elocais, como a poluição do lençol freático, a erosão do solo, a poluição do ar, têm dificuldadesde se tornarem visíveis e promoverem uma discussão mais ampla. Pode-se dizer que aperspectiva construcionista na sociologia ambiental constitui-se em uma ferramenta analítica– e porque não dizer de orientação das estratégias de ação – de grande importância tanto paraos estudiosos da temática ambiental em geral como para organizações que atuam naperspectiva do desenvolvimento sustentável, como é o caso da Epagri – principal executorado Projeto Microbacias 2. Por isso, acredita-se que as ferramentas analíticas disponibilizadaspela perspectiva construcionista podem ser úteis para analisar um caso concreto como é oprojeto de desenvolvimento rural representado pelo Projeto Microbacias 2.

Ao discutir sobre a teoria construcionista como um instrumento de análise, Hannigan(1997, p. 50) cita a contribuição de Best (1989) e Wiener (1981) que sugerem três focos parao estudo dos problemas sociais: a natureza das exigências (reivindicações); os formuladoresde exigências e o processo de criação de exigências.

Com relação à natureza das exigências, Best (1989) apud Hannigan (1997, p. 50),sugere algumas questões chaves que devem ser consideradas quando se analisa o conteúdo deum problema: o que é dito sobre o problema? Como é que o problema está tipificado? Qual éa retórica utilizada pelos formuladores do problema (exigências) e como tentam persuadir oseu público? O conteúdo das exigências dos problemas sociais centra-se na retórica, queimplica na utilização deliberada da linguagem como forma de convencimento e o autor citatrês categorias básicas: bases, garantias e conclusões. As bases ou os dados coletados(definições, exemplos ou estimativas numéricas) fornecem os fatos básicos a respeito dedeterminada situação e que moldam o discurso e a subseqüente criação de exigências; Asgarantias são justificativas para exigir que determinada situação necessita ser combatida e queseja levada a cabo uma ação; enquanto as conclusões tornam clara a ação necessária paraaliviar ou erradicar determinada situação (Hannigan, 1997, p. 51).

Percebe-se que a essência das ações voltadas para a construção social de umaexigência depende do importante papel desempenhado pelos formuladores do problema que,na maioria das vezes, estão respaldados em conhecimentos científicos. Neste sentido, Best(1989, p.250) apud (Hannigan, 1997, p. 53) aconselha formular algumas questões com ointuito de identifica-los: os formuladores de exigências estão filiados em organizaçõesespecíficas, movimentos sociais, profissões ou grupos de interesse? Eles representam os seuspróprios interesses ou de terceiros? Eles têm experiência ou são novatos?” (Hannigan, 1997,p. 51).

O processo de criação de exigências é considerado por Wiener (1981) apud Hannigan(1997, p. 53-54) como sendo a interação de três etapas que não necessariamente se sucedemno tempo, mas que se sobrepõem e se interpenetram e, em conjunto, resultam numa arenapública construída em torno dos problemas sociais: animação; legitimação e demonstração doproblema. Best (1989) apud Hannigan (1997, p. 54) sugere formular algumas questões úteisno processo de criação de exigências: a quem os formuladores de exigências se dirigem?Existem exigências rivais? Que preocupações e interesses o público dos formuladores deexigências levantam e como moldam as respostas do público às exigências? Como é que a

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natureza das exigências ou a identidade dos formuladores de exigências afetam as respostasdo público?” (Hannigan, 1997, p. 51).

Nunca é demais ressaltar que os problemas ambientais são, de alguma forma,semelhante aos sociais, entretanto, enquanto estes se originam muito mais dos argumentosmorais, aqueles estão ligados mais diretamente às descobertas científicas e a uma base física.

Desde a definição do problema ambiental até a implementação de políticasapropriadas à solução três tarefas são consideradas fundamentais por Hannigan (1997, p. 58):a reunião das reivindicações ambientais; a apresentação das reivindicações ambientais e acontestação das reivindicações ambientais. A tarefa de reunião, que inicia com a descoberta eelaboração de um problema ambiental – requer conhecimentos que estão, sobretudo, nocampo científico – a sua distinção em relação a outros semelhantes, a determinação da baselegal, moral ou técnica de uma exigência e estimar os responsáveis pelas ações de melhoria. Aapresentação das reivindicações ambientais, por sua vez, precisa desempenhar o papel deliderar a atenção, sendo visto como uma novidade importante e compreensível, capaz delegitimar sua exigência. Por último, a contestação das reivindicações ambientais, querepresenta os esforços necessários para que as ações de correção de uma problemáticaambiental, traduzidas pelas políticas, sejam postas em prática6.

O êxito de uma exigência ambiental, segundo Hannigan (1997, p. 71), também podeestar relacionada ao tamanho e a influência da opinião pública mobilizada em torno doproblema, podendo constituir-se uma importante força capaz de captar a atenção política7.Para a construção bem sucedida de um problema ambiental o autor destaca seis elementos queprecisam estar presentes: autoridade científica para validar as demandas ambientais; presençade “divulgadores” que estabeleçam pontes entre a ciência e o ambientalismo e que tornem osproblemas ambientais compreensíveis, dramáticos e revestidos de novidade; a atenção dosmeios de comunicação social, que apresentam o problema como grave e novo; a dramatizaçãodo problema em termos simbólico e visual; existência de incentivos econômicos no sentido deconcretizar ações voltadas à solução do problema; existência de um patrocinador institucionalcapaz de assegurar a legitimidade do problema ambiental.

5. Microbacias 2: um projeto de desenvolvimento rural Neste item pretendemos fazer uma síntese da concepção e proposições apresentadas no

Projeto Microbacias 2, utilizando como referência os documentos oficiais que tratam dotema8. O objetivo é analisar e cotejar a concepção e as ações previstas no projeto com a

6 Para que uma proposta de política seja bem sucedida é necessário, em primeiro lugar, que os políticos estejamconvencidos de que ela é tecnicamente exeqüível e politicamente administrável. Em segundo lugar, deve sercompatível com os valores dos formuladores de políticas, isto é, em geral mais utilitarista e menos carregadas deideologia e, em terceiro lugar, deve ser baseada mais em argumentos financeiros do que na mudança do modo devida (Kingdon, 1980 apud Hannigan, 1997, p. 69).7 Hannigan (1997, p. 73) destaca alguns elementos capazes de manter o interesse da opinião pública pela questãoe não desapareçam em um mar de desinteresse ou irrelevância, são elas: i) a particularização do problema,percebido pelo público como distinto de outro de natureza semelhante; ii) a relevância do problema ambiental,cujo fato represente importância ao cidadão comum; iii) a estatura (identificar as atitudes do público em relaçãoà questão); iv) a familiaridade do problema, ou seja, quanto um determinado problema é conhecido do público.8 Estado de Santa Catarina, (2002); Projeto Prapem/Microbacia 2, (2002); Projeto Microbacia 2, (2002);Secretaria de Desenvolvimento Rural e Agricultura, (1999); Instituto de Planejamento e Economia Agrícola de

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perspectiva construcionista dos problemas ambientais, sobretudo no que diz respeito àsferramentas analíticas descritas por Hannigan, tentando identificar, a partir dessa perspectiva,possível vulnerabilidade do projeto bem como a relação sociedade natureza presente nas suaspropostas de ação. Inicialmente descreveremos sucintamente as principais características doProjeto e, na seqüência, buscaremos analisa-lo à luz, sobretudo, da perspectiva construcionistada sociologia ambiental.

5.1. Principais características do Projeto

O Projeto Microbacias 2 tem uma abrangência estadual e busca promover odesenvolvimento rural sustentável9 a partir de uma concepção que privilegia o uso dosrecursos endógenos e o protagonismo da população rural. Trata-se de um projeto, iniciadoem 2003 e cujo término está previsto para 2009, que será executado nos 293 municípios doEstado de Santa Catarina10, abrangendo 880 microbacias hidrográficas (aproximadamente ametade das existentes no Estado) e cobrindo uma área estimada de 3,6 milhões de hectares.Contará com recursos da ordem de 106 milhões de dólares (60% são financiados pelo BM)e pretende beneficiar diretamente 105 mil famílias rurais e 5 mil indígenas.

Na realidade trata-se da continuação do Projeto Microbacia anterior, cuja execução seestendeu de 1991 até 1999, e que se caracterizou pelo forte enfoque de recuperação, manejo econservação dos recursos naturais, sobretudo do solo e da água. Entretanto, o presente projetoterá seu enfoque ampliado, visando à redução da pobreza e o fortalecimento da agriculturafamiliar, associado ao uso sustentável dos recursos ambientais.

“Atualmente o setor rural catarinense passa por um processo de mudança. Avisão do desenvolvimento predominantemente reducionista e produtivista,com enfoque para a máxima produtividade, tem cedido espaço para a dodesenvolvimento sustentável, que procura integrar a dimensão econômica,ambiental e social. Este tripé econômico/ambiental/social se caracteriza comoo principal guia comportamental do projeto” (Projeto Microbacias 2, 2002, p.5).

As avaliações do Projeto Microbacia anterior revelaram uma débil participação dosagricultores e demais atores sociais nos organismos que foram constituídos para a gestãodaquele projeto. A concepção do Projeto indica que seu enfoque e suas ações estão baseadosna prudência ecológica, na eficiência econômica e na justiça social, sustentado pela ampliaçãoe consolidação da democracia e participação dos beneficiários nas distintas etapas de suaimplementação. Por isso, o Projeto dará ênfase as estratégias de participação que deleguemparcelas importantes de poder decisório aos próprios beneficiários e que crie um ambiente deconfiança mútua, reciprocidade, solidariedade, comprometimento e cooperação por parte dosparticipantes. O Projeto reconhece que um fator fundamental para ocorrer a participação é acapacitação dos atores envolvidos:

Santa Catarina (2005). 9 O conceito de desenvolvimento sustentável adotado pelo Projeto é emprestado de Sachs (1990) e Buarque(1995) que apregoam “a justiça social, viabilidade econômica e prudência ecológica”. Em outras palavras, odesenvolvimento sustentável é aquele que proporciona “qualidade de vida e equidade social, crescimento eeficiência econômica e conservação ambiental.” (Estado de Santa Catarina, 2002, p. 3).10 No Oeste catarinense a previsão é que o projeto ocorra na totalidade dos 118 municípios e beneficiediretamente mais de 50 mil famílias.

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“a maioria dos projetos de desenvolvimento está diretamente relacionado àparticipação e capacitação dos atores envolvidos. A capacitação, na prática, éum dos pressupostos para a participação. Geralmente, são os atores maiscapacitados e organizados da sociedade que participam das decisões e açõesdo desenvolvimento. Os outros, em geral, são esquecidos ou, simplesmente,excluídos” (Projeto Microbacias 2, 2002, p. 5).

O projeto faz um diagnóstico da realidade rural de Santa Catarina do início desteséculo e constata que a qualidade de vida do meio rural sofre uma crescente e rápidadeterioração.

“... se, de um lado, existem no Estado grandes e modernos complexosagroindustriais apoiados na avicultura, suinocultura, soja, maçã, fumo emadeira, de outro, é cada vez maior o número de agricultores catarinenses queenfrentam problemas econômicos, sociais e ambientais (Estado de SantaCatarina, 2002, p. 4). (...) A atual situação do meio rural mostra que as pessoasestão em desarmonia consigo mesma, com a sociedade e com a natureza. Emoutras palavras, a qualidade de vida no meio rural vem diminuindorapidamente nos últimos anos” (Estado de Santa Catarina, 2002, p. 5).

Os problemas que afetam a qualidade de vida da população rural, na perspectiva doprojeto, foram agrupados em quatro grandes conjuntos que constituirão as dimensões nasquais pretende trabalhar: (a) degradação dos recursos ambientais; (b) baixa renda dapopulação rural; (c) inadequadas condições de habitabilidade no meio rural; (d) baixaefetividade das ações concebidas externamente.

Com relação à degradação dos recursos naturais os principais problemas apontadossão a perda da biodiversidade – resultante do modelo de agricultura praticado ao longo dedécadas – e a baixa disponibilidade e qualidade da água. A drástica diminuição da coberturavegetal, sobretudo das áreas de florestas, e a compactação do solo são apontados como osprincipais fatores responsáveis pela insuficiente disponibilidade de água para atenderadequadamente às necessidades da população rural e ao consumo animal e das plantas. Avaliaainda, que as atividades de lavoura e pecuária estão entre as principais fontes poluidoras daágua, cuja origem está no despejo de dejetos suínos, contaminação por agrotóxicos e noassoreamento dos rios, causado pela erosão do solo. O Projeto prevê ações voltadas amelhoria da qualidade da água como: a correta destinação de dejetos humanos e animais,menor contaminação ambiental causada por agrotóxicos e pela diminuição da erosão do solo edas estradas. Com relação à baixa renda da população rural, o Projeto aponta as seguintes causas:sazonalidade e ociosidade da mão-de-obra nas propriedades do público-meta do Projeto;poucos empreendimentos agrícolas e não-agrícolas para absorver toda a mão-de-obra;atividades agrícolas – representadas basicamente pela produção de commodities – com baixadensidade econômica; baixa eficiência produtiva; pequeno volume de produção ecomercialização individual.

O diagnóstico do Projeto detecta que alguns dos fatores que tornam inadequadas ascondições de habitabilidade do meio rural são: deficiência no serviço de saúde preventiva;habitação das famílias pobres é inadequada; dificuldade de acesso a terra; educação formalinadequada às necessidades do meio rural; dificuldade de acesso ao sistema de saúde públicae restritas opções de lazer.

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Os principais fatores que contribuem para a baixa efetividade das ações realizadas nomeio rural são apontados como sendo os seguintes: ações concebidas externas ao meio rural;baixa participação das famílias rurais nas decisões das ações que lhes dizem respeito;despreparo dos atores sociais para o enfoque da sustentabilidade o que pode ser constatado naforma de participação de muitos agricultores e seus representantes em comissões, conselhos,comitês, etc.

O Projeto tem como objetivo geral: “trabalhar na perspectiva de construção de um futuro em que os habitantes do meiorural possam, com responsabilidade e consciência, na gestão de suas atividadesdiárias, viver em harmonia, isto é, integrados ao seu meio ambiente (disponibilidadede água, ar e solo em quantidade e qualidade adequadas), com renda suficiente(produção organizada em rede e aumento das atividades agrícolas e não-agrícolas eocupação para as pessoas) e exercendo plenamente a sua cidadania (auto-gestãocomunitária e disponibilidade de serviços básicos)” (Estado de Santa Catarina, 2002,p. 24).

Portanto, a partir da leitura do Projeto pode-se inferir que é a ampliação da área desobreposição das esferas social, ambiental e econômica que se orienta o objetivo central doProjeto. Para alcançar seus objetivos o Projeto se norteará pelos seguintes “princípiosgerais”:

1. Estimular a participação interativa e cooperativa das pessoas, que terão controle sobre asdecisões locais, dando-se ênfase a processos interdisciplinares e o aprendizadoenvolvendo múltiplas perspectivas.

2. Alocar recursos, prioritariamente, às famílias rurais empobrecidas social eeconomicamente, estimulando as formas associativas.

3. Aplicar recursos, prioritariamente, através de “projetos” coletivos, com ênfase nos quegerem mais ocupação e que propiciem produtos e/ou serviços diferenciados e que estejamintegrados em rede com outros empreendimentos.

4. Garantir a participação paritária dos beneficiários das Microbacias nos diversos níveis degerenciamento do projeto.

5. Estimular a co-responsabilidade da população rural no planejamento, na implementação eno monitoramento do Projeto e garantindo a participação dos diversos atores sociais naexecução das ações.

6. Propiciar o aparecimento e fortalecimento de novos atores sociais e lideranças locais.7. Estimular iniciativas que busquem integrar as ações das instituições que têm interesse no

meio rural.Para que a participação seja efetiva será dada ênfase na preparação e capacitação das

pessoas envolvidas (os integrantes das famílias rurais e as pessoas externas que atuarão noprojeto). Busca-se assim, criar oportunidades para a expressão da cultura local; fortalecer asiniciativas locais; promover eventos de formação para a sustentabilidade; aumentar emelhorar os espaços de participação interativa, através da criação de mecanismos de gestãodescentralizada e participativa e métodos de trabalho adequados.

A participação efetiva dos atores sociais é um desafio que está sendo colocado peloProjeto, que prevê o desenvolvimento de um programa sistemático, contínuo e flexível decapacitação realizado em parceria com as instituições locais, que valorize o saber e asexperiências das populações e que leve em consideração sua heterogeneidade

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socioeconômica. Para tanto, “as atividades de capacitação serão formuladas a partir daaceitação de que o conhecimento é socialmente construído, não se tratando de uma meratransferência de conhecimentos de técnicos para agricultores e/ou de agricultores paratécnicos” (Projeto Microbacias 2, 2002, p. 6).

Em síntese, o Projeto prevê que o estabelecimento das prioridades e a tomada dedecisões ocorrerão em fóruns nos quais os beneficiários e parceiros não-governamentaispredominarão.

5.2 Projeto Microbacias 2: uma construção de desenvolvimento rural ?O desenvolvimento rural sustentável é o objetivo máximo que se pretende alcançar no

Projeto Microbacias 2, por isso parece importante, a princípio, analisar qual é a idéia que estápor de trás dessa noção no referido Projeto.

A noção de desenvolvimento rural sustentável, segundo Almeida (1997, p. 43-4),emerge a partir da compreensão da finitude dos recursos naturais e das injustiças sociaisprovocada pelo modelo de desenvolvimento vigente na maioria dos países, no entanto, ela éainda muito genérica e difusa. Segundo o mesmo autor, o desenvolvimento sustentável (deonde se origina a idéia de desenvolvimento rural sustentável) pode ser polarizada [para finsdidáticos] em duas concepções principais. Por um lado, a idéia de desenvolvimentosustentável estaria sendo elaborada no próprio âmbito da economia a partir da constatação deuma crise de mercado. Nessa concepção não se coloca em xeque os fundamentos que regem omercado, o que se busca é apenas fazer um ajuste e levar o social e a natureza para dentro daeconomia . Daí é que emerge a idéia de uma economia mais “ecológica” e de estipular valoresmonetários ao meio ambiente. De outro lado, uma idéia que reconhece uma crise ambiental esocial que decorre fundamentalmente do processo de acumulação do industrialismo. A partirdessa constatação tenta superar o discurso hegemônico da crescente expansão econômica e davisão instrumental e restrita imposta pela economia, introduzindo elementos econômicos,sociais e ambientais desafiadores para a ciência no sentido de redimensionar a relaçãosociedade e natureza.

A definição do que é e como alcançar o desenvolvimento rural sustentável presente nosdocumentos oficiais que tratam do Projeto Microbacias 2 parece ser muito ampla e genérica.Essa omissão pode ser comprometedora na medida em que o desenvolvimento ruralsustentável é a situação que se pretende alcançar no Projeto. Como a execução e oplanejamento das ações do Projeto contará com a animação dos extensionistas rurais e dos“facilitadores” que atuarão junto às associações de microbacia, corre-se o risco de, nomínimo, haver distintas interpretações para aquele que é o objetivo mais importante doProjeto. Mesmo que a noção de desenvolvimento rural sustentável seja explicitada nostreinamentos e cursos de capacitação destinados aos atores envolvidos e previstos para seremministrados no âmbito do Projeto, ainda assim, não deixa de surpreender que ela não estejaclaramente explicitada nos documentos oficiais do Projeto. Quando o Projeto aponta que umadas principais fontes de poluição e comprometimento da qualidade da água é originada pelouso de agrotóxico e sua ações, voltadas à solução desse problema, apenas prevê uma “menorcontaminação ambiental causada por agrotóxico” e não um esforço voltado para a gradativaeliminação, já é uma clara evidência de que sua visão de desenvolvimento está muito maispróxima ao primeiro pólo, acima referenciado por Almeida (1997). Isso também permitesuspeitar que a relação sociedade natureza presente no Projeto permanece centrada numavisão utilitarista.

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Embora o Projeto reconheça que a população do meio rural está insatisfeita consigomesma e em desarmonia com a sociedade e com a natureza, quase nada é dito a respeito dascausas que levaram a essa situação e, em conseqüências, as ações que preconiza pouco fazempara ir além do paliativo e atacar centralmente o problema. Isso é mais uma evidência de quea visão de desenvolvimento sustentável do projeto está mais próxima do pólo relacionadocom a “crise de mercado” que o da “crise de modelo”. É possível contra argumentar, noentanto, que esse debate está reservado para acontecer naquele que é considerado o fórum dedecisão privilegiado do Projeto – a “Associação de Desenvolvimento da Microbacia” – porocasião da elaboração do Plano de Desenvolvimento da Microbacia. Entretanto, sabe-se queas pressões políticas e ideológicas, a que estão submetidos os agricultores e os extensionistasrurais, deixam pouca margem de manobra para ir além do trivial, caso não tenham um forteapoio institucional que respalde ações mais inovadoras. Isso não significa que ações maiscontestatórias e inovadoras possam acontecer e seus exemplos se irradiarem, mas sim, quehaverá uma dificuldade maior para que isso aconteça. Nesse sentido, não estamos negandoque os agricultores, nos mais variados contextos, orientam-se por diversos interesses eobjetivos e adaptam criativamente determinados projetos, como foi observado por Long ePloeg (1994). Para os autores, os atores sociais dão respostas reativas aos projetos formuladospor agências estatais, cujo resultado é o surgimento de uma ampla heterogeneidade e estilosde agricultura. Longe de discordar dos autores, o que estamos argumentando, no entanto, éque o Projeto pouco contribui para remover os constrangimentos sócio institucionais a queestão submetidos os atores sociais locais e isso acaba restringindo seus espaços de manobra.

Com relação à construção de um projeto de desenvolvimento rural pelo menos doisatributos positivos do Projeto merecem destaque. Em primeiro lugar, o reconhecimento daimportância da ampliação e consolidação da democracia e a criação de espaços para aparticipação efetiva dos atores sociais nas distintas etapas do projeto e a delegação de poderdecisório aos beneficiários11. Nesse sentido, Navarro (2002) considera que a “radicalizaçãodemocrática” ao intensificar a participação social e o aperfeiçoamento da “governança” localse constitui na principal arma política na revalorização do rural como uma das opções dasociedade. A “radicalização democrática” pode se constituir, então, na base onde asubpolítica pode se enraizar e frutificar. Para Beck (1997) a subpolítica é um espaçoprivilegiado no debate político e se distingue do sistema político oficial por envolver atoresoutsiders dessa esfera e congregar distintos grupos profissionais e ocupacionais, institutos depesquisa, corpo técnico de companhias, trabalhadores qualificados etc. Em síntese, para Beck(1997) a subpolítica seria uma forma de fazer “política radical” ao delegar poder a diversosgrupos e moldar a sociedade de baixo para cima.

Em segundo lugar, também merece ser destacado, como um mérito do Projeto, oreconhecimento de que a capacitação dos atores envolvidos no projeto é um fator fundamentalpara ocorrer a participação efetiva, pois é através dela que as pessoas tomam conhecimento erefletem a respeito de novas perspectivas e possibilidades para a construção de um novomodelo de desenvolvimento. Nesse sentido, o projeto prevê um programa de capacitação quebusca valorizar o saber e as experiências das populações e que considere a heterogeneidadesocioeconômica. Embora seja louvável esse reconhecimento e o Projeto preveja ações, que11 Guivant (2002) critica os métodos que ela denomina de “populista participativo” pela falta de umquestionamento das relações de poder entre os próprios agricultores e entre os agentes de desenvolvimento. Paraa autora trata-se de uma visão voluntarista e ingênua a respeito das possibilidades de sua eliminação. Em outrotrabalho (Guivant, 1997) a autora chega a afirmar que o recente interesse das agências internacionais dedesenvolvimento na utilização de métodos participativos, em parte pode ser atribuído ao desejo de reduzir oscustos de infra-estrutura e aos problemas organizacionais.

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acredita que levarão a uma efetiva participação, somente uma avaliação dos cursos decapacitação previstos é que poderia indicar em que medida ele é transformador e libertador ouapenas reproduz a retórica dominante.

Cabe ressaltar, todavia, que caso o Projeto Microbacias 2 consiga pelo menos lançar asbases da “radicalização democrática” e a criação de espaços para o florescimento desubpolítica – e não há qualquer motivo para duvidar disso – e promova a emancipação social,terá dado um importante passo para a construção de um projeto de desenvolvimento ruralsustentável o que, em princípio, já justificaria todo o esforço dispendido.

O Projeto Microbacias 2 será capaz de dar visibilidade para os problemassocioeconômicos e ambientais presentes no Oeste de Santa Catarina e mobilizar a atenção,esforços e investimentos para solucioná-los e, assim, promover o desenvolvimento rural? Istoé, o projeto pode ser bem sucedido? Acredita-se que as ferramentas analíticas disponibilizadaspelo socioconstrucionismo ambiental podem auxiliar na compreensão e lançar alguma luzpara esclarecer a questão suscitada.

Na perspectiva construcionista a construção bem sucedida de uma exigênciasocioambiental depende do papel exercido pelos formuladores do problema. Nesse sentido, aEpagri, principal executora do Projeto Microbacias 2, pode ser considerada uma interlocutoraprivilegiada pois congrega trabalhos tanto na área de extensão rural quanto na da pesquisaagropecuária e cuja qualidade e legitimidade é reconhecida em quase todos os segmentos dasociedade. A capilaridade representada pela presença do serviço oficial de extensão rural emtodos os municípios do Estado e uma rede de centros de pesquisa confere a ela autoridadepara falar a respeito do meio rural, da produção agropecuária e dos problemas ambientais daíoriginados. Os dados das pesquisas que ela mesma realiza confere a autoridade científicanecessária para validar as demandas por um projeto de desenvolvimento rural, pois fornecemas bases que moldam o discurso e a criação das exigências e justificam as ações corretivas. Ocorpo técnico, representado pelos extensionistas rural e os animadores do projeto,desempenham o papel de “tradutores” e de “divulgadores” tornando os problemassocioambientais compreensíveis e passíveis de ações corretivas. Em síntese, pode-se dizer quea Epagri reúne legitimidade e os atributos necessários para a criação de exigências voltadas àconstrução de um projeto de desenvolvimento rural (que considere aspectos ambientais,sociais e econômicos).

A atenção dos meios de comunicação social, que apresentam o fato como umanovidade e que merece ser resolvido, é apontado como um elemento essencial à construção deum problema socioambiental. A região Oeste de Santa Catarina tem sua economia fortementealicerçada na produção agropecuária e na agroindustrialização e a maioria dos municípiospode ser considerada como essencialmente rural. Sendo assim, problemas que afetam o meiorural, assim como as conseqüências resultantes da atividade agropecuária, como é o caso dapoluição da água e do solo, fazem parte do cotidiano dos meios de comunicação local,sobretudo do rádio e do jornal. O Projeto Microbacias 2, pela sua magnitude e o interesselocal pelos temas que a ele estão relacionados (meio ambiente, renda, subsídios e outros) épauta quase que diária nos meios de comunicação local. Todavia, se a inserção do tema napauta dos meios de comunicação tem recebido suficiente atenção, parece que o mesmo nãopode ser dito em relação ao aprofundamento e qualificação do debate. Nesse caso, corre-se orisco do tema sofrer uma certa banalização e os problemas ambientais, como por exemplo, apoluição do solo, da água e do ar causado por agrotóxicos ou por dejetos de animais, seremnaturalizados pela população, sobretudo aquela que vive no meio rural.

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A existência de incentivos econômicos é um elemento considerado importante para aconstrução bem sucedida de um problema socioambiental. O Projeto Microbacias 2 dispõe deuma razoável quantidade de recurso financeiro para a sua execução e até mesmo parasubvencionar os agricultores que realizam práticas consideradas ambientalmente corretas. Issopode ser considerado como um ponto positivo uma vez que diminui as chances do projetosofre solução de continuidade, o que fatalmente comprometeria o alcance de suas metas e, atémesmo, a confiança da população em futuros projetos.

Portanto, visto pela perspectiva do construcionismo, o Projeto Microbacias 2 reúne osprincipais elementos necessários para a construção bem sucedida de uma problemáticasocioambiental. Contudo, isso não garante que os problemas serão solucionados a contento.Um projeto que pretende promover o desenvolvimento rural sustentável, como é o caso doMicrobacias 2, precisa atacar problemas de ordem ambiental, social e econômica e issoenvolve interesses de distintas naturezas e, provavelmente, gera conflitos que vem se somaraos já existentes e que, em grande medida, podem se constituir em empecilho para alcançar opleno sucesso do projeto.

6. Considerações finaisBuscamos demonstrar neste artigo que o espaço rural do Oeste de Santa Catarina,

desde meados dos anos 1980 passou a conviver com uma crise socioeconômica e ambientalcujos resultados foram a exclusão de grande parcela de agricultores familiares dos processosprodutivos que historicamente vinham desenvolvendo, no empobrecimento da população, nodespovoamento de muitas comunidades e nos graves problemas ambientais. Grande parte dosproblemas, sobretudo os ambientais, como a poluição da água, do solo e a perda dabiodiversidade, pode ser creditado ao processo de desenvolvimento agrícola e demodernização da agricultura, em curso desde meados dos anos 1960. Nesse contexto é que oProjeto Microbacias 2 pretende desenvolver ações com o intuito de reverter esse processo e depromover o desenvolvimento rural.

Os documentos oficiais, no entanto, dão evidências que a visão de desenvolvimentorural sustentável presente no Projeto está mais próxima do pólo relacionado com a “crise demercado” e que suas ações estão, de certa forma, voltadas à inserção da sociedade e doambiente para dentro do modelo econômico tradicional. Ou seja, as ações previstas no Projetonão mostram evidências claras de contestação do modelo de desenvolvimento que levou oespaço rural a uma situação de crise. Isso não significa, todavia, que o Projeto não possatrazer resultados positivos em relação ao desenvolvimento e a qualidade de vida no espaçorural. Ele tem potencialidade para fortalecer as bases onde se assenta o desenvolvimento ruralsustentável: avanços no campo democrático; criação de espaço de reflexão, debate eelaboração de subpolíticas; construção de capital social. Acredita-se que isso pode possibilitara emergência de uma nova dinâmica social capaz de promover e concretizar virtuosasinovações na esfera da produção, da organização social e da relação com a natureza.

Entretanto, é prudente lembrar, que a análise refere-se apenas a concepção doProjeto, sendo que as ações colocadas em prática em distintas localidades podem apresentarresultados significativamente diferentes, dependendo, entre outros fatores, da dinâmica socialpresente e dos atores sociais e suas interações. Assim também, a participação efetiva dapopulação no planejamento e execução do projeto constitui-se em um elemento chave para osucesso. O Projeto assume ser a capacitação dos atores um dos pressupostos para a efetivaparticipação e que é através dela que as pessoas tomam conhecimento e refletem sobre novasperspectivas e possibilidades de construção de um novo modelo de desenvolvimento. Fica a

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incógnita, porém, se os tais cursos de capacitação previstos conseguirão esse propósito. Issosuscita a relevância teórica e acadêmica de investigar o projeto desde a sua concepção até asua implementação.

Analisado pela perspectiva construcionista o Projeto Microbacias 2 reúnesatisfatoriamente os elementos necessários para dar visibilidade aos fatores que dificultam apromoção do desenvolvimento rural e, assim, disputar a atenção pública, criar espaços dedebate e angariar o necessário apoio político para encaminhar uma solução. Isso não significa,entretanto, que o projeto possa obter o pleno sucesso. Outros fatores, como as relações depoder e os conflitos que ele gera, por exemplo, podem interferir negativamente na suaexecução e, consequentemente, nos seus resultados.

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