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SIM PÓSIO Unitermos: bioética principialista, contextualiza- ção, alternativa crítica, justiça, direitos humanos, questões coletivas, bioética de intervenção Introdução 125 134 Bioética 2005 - Vol. 13, nº 1 Volnei Garrafa Professor titular e coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), editor da Revista Brasileira de Bioética, presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco – Redbioética e vice-presidente da Sociedade Internacional de Bioética, seção América Latina Da bioética de princípios a uma bioética interventiva Volnei Garrafa A bioética, de origem estadunidense, tornou-se mundialmente conhecida por estar ancorada em qua- tro princípios básicos pretensamente universais e reconhecida como bioética principialista. A partir dos anos 90, começaram a surgir críticas à universalidade dos princípios e às suas limitações frente aos macroproblemas coletivos, principalmente sanitários e ambientais, especialmente verificados nos países periféricos do Hemisfério Sul. Nesse sentido, surge na América Latina, nos últimos anos, uma nova proposta epistemológica – a bioética de intervenção – de base filosófica utilitarista e conse- qüencialista, tentando suprir essa lacuna. A partir de uma análise histórica do processo de consoli- dação do principialismo e da importação acrítica de teorias éticas forâneas, o presente artigo procu- ra mostrar a necessidade de construção de bases conceituais diferenciadas para a bioética no senti- do do adequado enfrentamento dos problemas persistentes rotineiramente detectados nas nações em desenvolvimento. Com apenas 35 anos de vida, a bioética foi o campo da ética aplicada que mais avançou nas últimas décadas. No processo evolutivo de sua construção, três referenciais básicos passaram a sustentar seu estatuto epistemológico: 1) uma estrutura obrigatoriamente multiintertransdisci- plinar, que permite análises ampliadas e “religações” entre variados núcleos de conhecimento e diferentes ângulos das questões observadas, a partir da interpretação da complexidade: a) do conhecimento científico e tec- nológico; b) do conhecimento socialmente acumulado; c) da realidade concreta que nos cerca e da qual fazemos parte; 2) a necessidade de respeito ao pluralismo moral constatado nas democracias secularizadas pós-modernas, que norteia a busca de equilíbrio e observância aos refe- renciais societários específicos que orientam pessoas,

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SIMPÓSIO

Unitermos: bioética principialista, contextualiza-

ção, alternativa crítica, justiça, direitos humanos,

questões coletivas, bioética de intervenção

Introdução

125 134

Bio

étic

a 2

00

5 - V

ol.

1

3, n

º 1

Volnei Garrafa

Professor titular e coordenador da

Cátedra Unesco de Bioética da

Universidade de Brasília (UnB), editor

da Revista Brasileira de Bioética,

presidente do Conselho Diretor da

Rede Latino-Americana e do Caribe de

Bioética da Unesco – Redbioética e

vice-presidente da Sociedade

Internacional de Bioética, seção

América Latina

Da bioética de princípios a

uma bioética interventiva

Volnei Garrafa

A bioética, de origem estadunidense, tornou-se mundialmente conhecida por estar ancorada em qua-

tro princípios básicos pretensamente universais e reconhecida como bioética principialista. A partir

dos anos 90, começaram a surgir críticas à universalidade dos princípios e às suas limitações frente

aos macroproblemas coletivos, principalmente sanitários e ambientais, especialmente verificados nos

países periféricos do Hemisfério Sul. Nesse sentido, surge na América Latina, nos últimos anos, uma

nova proposta epistemológica – a bioética de intervenção – de base filosófica utilitarista e conse-

qüencialista, tentando suprir essa lacuna. A partir de uma análise histórica do processo de consoli-

dação do principialismo e da importação acrítica de teorias éticas forâneas, o presente artigo procu-

ra mostrar a necessidade de construção de bases conceituais diferenciadas para a bioética no senti-

do do adequado enfrentamento dos problemas persistentes rotineiramente detectados nas nações

em desenvolvimento.

Com apenas 35 anos de vida, a bioética foi o campo da

ética aplicada que mais avançou nas últimas décadas. No

processo evolutivo de sua construção, três referenciais

básicos passaram a sustentar seu estatuto epistemológico:

1) uma estrutura obrigatoriamente multiintertransdisci-

plinar, que permite análises ampliadas e “religações”

entre variados núcleos de conhecimento e diferentes

ângulos das questões observadas, a partir da interpretação

da complexidade: a) do conhecimento científico e tec-

nológico; b) do conhecimento socialmente acumulado; c)

da realidade concreta que nos cerca e da qual fazemos

parte; 2) a necessidade de respeito ao pluralismo moral

constatado nas democracias secularizadas pós-modernas,

que norteia a busca de equilíbrio e observância aos refe-

renciais societários específicos que orientam pessoas,

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sociedades e nações no sentido da necessidade de

convivência pacífica e sem superposições de

padrões morais; 3) a compreensão da impossi-

bilidade de existência de paradigmas bioéticos

universais, que leva à necessidade de (re)estrutu-

ração do discurso bioético a partir da utilização

de ferramentas/categorias dinâmicas e factuais

como a comunicação, linguagem, coerência,

argumentação e outras.

Assim, a partir da análise das situações, proble-

mas ou questões éticas em que se levam em

consideração diferentes moralidades, a bioética

(que considero laica, portanto não deve partir

de absolutos morais) possui ferramentas teóri-

cas e metodológicas adequadas para propor-

cionar significativos impactos nas discussões,

seja dos temas persistentes (cotidianos, mais

antigos – como a exclusão social, a discrimi-

nação, a vulnerabilidade, o aborto) ou emer-

gentes (de fronteiras, mais recentes – como a

genômica, os transplantes ou as tecnologias

reprodutivas), nos campos societários locais,

nacionais ou internacionais (1).

É inegável a importância do impacto que a

bioética tem hoje, e que provavelmente aumen-

tará nos próximos anos, com relação à evolução

dos referenciais societários existentes no

mundo contemporâneo. A partir de uma base

de sustentação econômica justa e do respeito ao

contexto sociocultural e nível de informação,

participação e democratização que as sociedades

alcançarem, os países desenvolvidos têm mais

possibilidades de encontro do equilíbrio –

político, jurídico e moral – necessário e indis-

pensável à construção de um futuro melhor

para a vida de seus cidadãos. No entanto, não

se pode deixar de olhar a questão sob ótica

inversa, lançando a seguinte interrogação: a

evolução das sociedades humanas não seria a

razão que proporcionou (ou, praticamente, pas-

sou a exigir) o surgimento da bioética? Caso a

resposta seja afirmativa, posteriormente, com

seu desenvolvimento e consolidação, a hipótese

mais viável é que a bioética passou a influenciar

diretamente na dinâmica e evolução destas

mesmas sociedades.

Com um processo particular de evolução, neste

início do século XXI a bioética retornou às suas

origens epistemológicas, caracterizando-se de

forma ampliada no contexto de uma verdadeira

“ciência da sobrevivência”, como preconizou

inicialmente Potter (2,3). Transformou-se,

assim, em um instrumento concreto a mais,

para contribuir no complexo processo de dis-

cussão, aprimoramento e consolidação das

democracias, da cidadania, dos direitos

humanos e da justiça social.

Um dos objetos do presente estudo é exata-

mente analisar o papel que a bioética já desem-

penha e poderá vir a ampliar na evolução das

representações/organizações políticas e sociais

do mundo atual. O marco referencial de

análise, contudo, será a crescente desigualdade

verificada – principalmente após a consolidação

do chamado “fenômeno de globalização” –

entre os países do Norte e Sul do planeta.

Assim, como a pauta dos problemas (bio)éticos

verificados em uma ou outra região são com-

pletamente diferentes, com soluções também

diversas, surge a necessidade de que se analise

criticamente as verdadeiras possibilidades de

uma bioética meramente descritiva, analítica e

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SIMPÓSIO

neutral, com forças para interferir concreta e

favoravelmente nesse contexto.

Nessa linha de idéias, o presente texto não é

exclusivamente prospectivo. Faz um breve

histórico da evolução da bioética e sua relação

com os agudos problemas sociais constatados

na maioria dos países do Hemisfério Sul.

Nestes, para que a bioética venha a ter par-

ticipação concreta na evolução dos processos

societários, terá que haver uma transfor-

mação em seus rumos, mudando alguns de

seus paradigmas e indo ao encontro de cada

realidade. Para isso, é indispensável que se

trabalhe na construção de uma visão macro

da bioética, ampliada e concretamente com-

prometida com o social, mais crítica, politi-

zada e interventiva, com o objetivo claro de

diminuir as disparidades constatadas.

Algumas críticas ao

principialismo em bioética

O pluralismo de valores e a virtude da tolerân-

cia frente à diversidade cultural – entre outros

indicadores essenciais a uma nova abordagem

ética – são necessários, mas não suficientes no

sentido de favorecer todos os pontos de vista.

Com relação ao conteúdo dos fatos e conflitos,

torna-se mister introduzir novos critérios, re-

ferenciais e/ou princípios. Nesse sentido, em-

bora recebendo críticas de diversas partes do

mundo, os bioeticistas estadunidenses, princi-

palmente, vêm trabalhando a bioética a partir

de uma base conceitual estabelecida sobre

princípios preestabelecidos. A teoria principia-

lista, universalizada por Beauchamp e Childress

(4), tomou como fundamento quatro princí-

pios básicos – autonomia, beneficência, não-

maleficência e justiça –, os quais seriam uma

espécie de instrumento simplificado para uma

análise prática dos conflitos que ocorrem no

campo bioético.

Uma crítica surgida nos últimos anos a partir

dos países periféricos da metade Sul do planeta

é de que a chamada teoria bioética principialista

seria insuficiente e/ou impotente para analisar

os macroproblemas éticos persistentes (ou coti-

dianos) verificados na realidade concreta. O

processo de globalização econômica mundial, ao

invés de amenizar, aprofundou ainda mais as

desigualdades verificadas entre as nações ricas

do Hemisfério Norte e as pobres do Sul, exigin-

do, portanto, novas leituras e propostas (5).

Nos Estados Unidos da América do Norte

(EUA), no início dos anos 70, a bioética foi

concebida como uma nova maneira de perceber

e encarar o mundo e a vida a partir da ética

aplicada. Desde então, a compreensão do que

venha a ser bioética varia de um contexto para

outro, de uma nação para outra e até mesmo

entre os estudiosos da área dentro de um

mesmo país.

Sua conotação original se relacionava com uma

questão de ética global, ou seja, com a preocu-

pação ética da preservação do planeta, a partir

da constatação de que algumas novas descober-

tas e suas aplicações, ao invés de trazerem bene-

fícios para a humanidade futura, originariam

preocupações e, até mesmo, destruições, como

no caso da biodiversidade, podendo ocasionar

danos irreparáveis ao próprio ecossistema.

Nesse sentido, incorporaria conceitos mais

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amplos na sua interpretação de “qualidade da

vida humana”, incluindo, além das questões

biomédicas propriamente ditas, temas como o

respeito ao meio ambiente e ao próprio ecossis-

tema como um todo (2,3).

Adotada pelo Instituto Kennedy, a bioética

sofreu, já em 1971, uma redução da sua con-

cepção “potteriana” original, restrita ao âmbito

biomédico (6). O tema da autonomia foi maxi-

mizado hierarquicamente em relação aos outros

três, tornando-se uma espécie de superprincípio.

Este fato contribuiu para que, em alguns países,

a visão individual dos conflitos passasse a ser

aceita como a única vertente verdadeira e decisi-

va para a resolução dos mesmos (7).

Em diversas nações indígenas, por exemplo, ou

mesmo na cultura oriental de um modo geral,

o tema da autonomia é pouco conhecido. O

perigo da utilização maximalista da autonomia

está em – saindo do referencial sadio do

respeito à individualidade e passando pelo indi-

vidualismo em suas variadas nuanças – cairmos

no extremo oposto, em um egoísmo exacerba-

do, capaz de anular qualquer visão inversa, cole-

tiva e indispensável ao enfrentamento das

tremendas injustiças sociais relacionadas com a

exclusão social, hoje mais do que nunca cons-

tatada (7).

O contexto internacional

Foi com esta roupagem que a bioética se

difundiu pelo mundo partindo dos EUA: uma

bioética anglo-saxônica, com forte conotação

individualista e cuja base de sustentação repou-

sava sobre a autonomia dos sujeitos sociais (7),

categoria que, por sua vez, tinha como uma de

suas conseqüências operacionais/práticas a

exigência, ou necessidade, de aplicação dos

chamados “Termos de Consentimento

Informado” (TCI). Esta, basicamente, foi a

concepção que acabou divulgando a bioética

internacionalmente a partir dos anos 70 e

durante os anos 80, tornando-a conhecida e

consolidada em todo o mundo nos anos 90.

Apesar de que os demais princípios inicial-

mente apresentados também tiveram espaço na

nova concepção – incluindo as concepções

deontológicas da beneficência e da não-

maleficência –, a verdade é que, mais uma vez,

o campo da justiça, e portanto do coletivo,

acabou ficando em grau de importância

secundário (7). O hiperdimensionamento da

autonomia na bioética estadunidense dos anos

70 e 80 fez emergir uma visão singular e indi-

vidualizada dos conflitos, juntamente com uma

verdadeira indústria de “consentimentos infor-

mados” já incorporada de forma horizontaliza-

da e acrítica às pesquisas com seres humanos e

aos atendimentos médico-hospitalares, como se

todas as pessoas – independentemente de nível

socioeconômico e escolaridade – fossem ver-

dadeiramente autônomas.

Assim, a abordagem de grande parte das

questões do âmbito da bioética foi reduzida à

esfera individual, tratando preferencialmente

das contradições: autonomia versus autonomia

e autonomia versus beneficência. A partir de

abusos históricos (como no caso Tuskegee) ou

das denúncias apresentadas por Henry Beecher

(8), a bioética foi criada, pelo menos inicial-

mente, para defender os indivíduos mais frágeis

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Page 5: Da bioética de princípios a.pdf

SIMPÓSIO

nas relações entre profissionais de saúde e seus

pacientes ou entre empresas/institutos de

pesquisa e os cidadãos. No entanto, em poucos

anos, a nova teoria mostrou ser uma faca de

dois gumes, pois as universidades, corporações

e indústrias também começaram a treinar seus

profissionais na construção de TCIs adequados

a cada situação. Isso, de certa forma, obstaculi-

zou, na prática, os objetivos iniciais e históricos

da medida em proteger os mais vulneráveis,

pelo menos nos países com grandes índices de

excluídos sob os pontos de vista social e

econômico.

No início dos anos 90, no entanto, vozes dis-

cordantes com relação à universalidade dos

princípios de Georgetown começaram a surgir a

partir do próprio EUA (9,10), da Europa (11)

e da América Latina (1,12,13,14,15). É

necessário ressaltar, todavia, que apesar da

resistência contrária ao que se pode chamar de

“tentativa de universalização de aspectos mera-

mente regionais”, existem autores que vivem

fora do eixo estadunidense e que continuam

defendendo fortemente essa mesma linha prin-

cipialista.

Em 1998, no entanto, com o Quarto

Congresso Mundial de Bioética, realizado em

Tóquio, Japão, a bioética (re)começa a percor-

rer outros caminhos, a partir do estabelecimen-

to do tema oficial do evento: “Bioética global”.

Com forte influência de Alastair Campbell,

então presidente da Associação Internacional

de Bioética (AIB), parte dos seguidores da

bioética retornou aos trilhos originais delinea-

dos por Van Rensselaer Potter (16); com seus

novos escritos de 1988, foi mais uma vez o

referencial das idéias (17). No final do século

XX, portanto, a disciplina passa a expandir seu

campo de estudo e ação, incluindo nas análises

sobre a questão da qualidade da vida humana

assuntos que até então apenas tangenciavam

sua pauta, como a preservação da biodiversi-

dade, a finitude dos recursos naturais pla-

netários, o equilíbrio do ecossistema, os ali-

mentos transgênicos, o racismo e outras formas

de discriminação, bem como a questão da prio-

rização na alocação de recursos escassos, o aces-

so das pessoas a sistemas públicos de saúde e a

medicamentos, etc.

Até 1998, portanto, a bioética trilhou cami-

nhos que apontavam muito mais para temas

e/ou problemas/conflitos biomédicos do que

globais, mais individuais do que coletivos. A

maximização e o superdimensionamento do

princípio da autonomia tornou o princípio da

justiça um mero coadjuvante da teoria princi-

pialista, uma espécie de apêndice, embora indis-

pensável, mas de menor importância. O indi-

vidual sufocou o coletivo; o “eu” empurrou o

“nós” para uma posição secundária. A teoria

principialista se mostrava incapaz de desvendar,

entender e intervir nas gritantes disparidades

socioeconômicas e sanitárias coletivas e persis-

tentes verificadas na maioria dos países pobres

do Hemisfério Sul.

O contexto brasileiro e latino-ameri-

cano: a bioética de intervenção

A bioética brasileira que, especificamente, teve

um desenvolvimento que chamo de tardio, por

ter surgido de modo orgânico apenas nos anos

90, recuperou o tempo perdido com um vigor

129

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inusitado. Sua maioridade foi atingida com a

realização do Sexto Congresso Mundial de

Bioética promovido pela AIB e que contou

com o apoio decisivo da Sociedade Brasileira de

Bioética, realizado em Brasília, em novembro

de 2002. Se até 1998 a bioética brasileira

ainda era uma cópia colonizada dos conceitos

vindos dos países anglo-saxônicos do

Hemisfério Norte, a partir do surgimento e

consolidação de vários grupos de estudo,

pesquisa e pós-graduação pelo país sua história

começou a mudar.

A teoria dos quatro princípios – de certo modo

já revisada em seu “núcleo duro” e pretensa-

mente universalista por seus próprios propo-

nentes na 5a

edição do livro Principles of bio-

medical ethics (18) –, apesar de sua reconheci-

da praticidade e utilidade para a análise de

situações práticas clínicas e em pesquisa –, é

sabidamente insuficiente para: a) a análise con-

textualizada de conflitos que exijam flexibili-

dade para determinada adequação cultural; b) o

enfrentamento de macroproblemas bioéticos

persistentes ou cotidianos enfrentados por

grande parte da população de países com signi-

ficativos índices de exclusão social, como o

Brasil e seus vizinhos da América Latina.

Apesar de algumas críticas pontuais prove-

nientes de setores acomodados com a pratici-

dade do check list principialista, sua adequação

ao estudo dos conflitos e situações que ocorrem

nos países pobres da parte Sul do mundo é

indispensável e urgente. Categorias como

“responsabilidade”, “cuidado”, “solidariedade”,

“comprometimento”, “alteridade” e “tolerân-

cia”, dentre outras (19), além do que chamo de

quatro “pês” – prevenção (de possíveis danos e

iatrogenias), precaução (frente ao desconheci-

do), prudência (com relação aos avanços e

“novidades”) e proteção (dos excluídos sociais,

dos mais frágeis e desassistidos) – para o exercí-

cio de uma prática bioética comprometida com

os mais vulneráveis, com a “coisa pública” e

com o equilíbrio ambiental e planetário do

século XXI, começam a ser incorporadas por

bioeticistas latino-americanos críticos em suas

reflexões, estudos e pesquisas.

Nesse sentido, surgiu na região da América

Latina, entre outras, uma proposta episte-

mológica anti-hegemônica ao principialismo,

gerada na Cátedra Unesco de Bioética da

Universidade de Brasília. Essa nova proposta

conceitual e prática, denominada “bioética de

intervenção”, propõe uma aliança concreta

com o lado historicamente mais frágil da

sociedade,

“(...) incluindo a re-análise de diferentes dile-

mas, dentre os quais: autonomia versus

justiça/eqüidade, benefícios individuais versus

benefícios coletivos, individualismo versus so-

lidariedade, omissão versus participação e

mudanças superficiais versus transformações

concretas e permanentes” (1,5).

Assim, a bioética de intervenção defende como

moralmente justificável, entre outros aspectos:

a) no campo público e coletivo: a priorização de

políticas e tomadas de decisão que privilegiem o

maior número de pessoas, pelo maior espaço de

tempo e que resultem nas melhores conseqüên-

cias, mesmo que em prejuízo de certas situações

individuais, com exceções pontuais a serem dis-

cutidas; b) no campo privado e individual: a

busca de soluções viáveis e práticas para confli-

130

Page 7: Da bioética de princípios a.pdf

SIMPÓSIO

tos identificados com o próprio contexto onde

os mesmos acontecem (1,5).

A caminhada futura da bioética brasileira e dos

demais países da América Latina deve ser dire-

cionada para a negação da importação acrítica

e descontextualizada de “pacotes” éticos forâ-

neos. Na realidade, a bioética principialista

aplicada stricto sensu é incapaz e/ou insufi-

ciente para proporcionar impactos positivos

nas sociedades excluídas dos países pobres e,

conseqüentemente, nas suas organizações

políticas. Além disso, é necessário reforçar que

já foi plantada a semente da construção afir-

mativa de novas bases de sustentação episte-

mológica e prática de uma bioética compro-

missada com a realidade concreta do país e da

região, defendida pela Unesco (20), com a

qual nos defrontamos todos os dias e que,

segundo Berlinguer, não deveria mais estar

acontecendo nesta altura do desenvolvimento

histórico da humanidade (21).

Considerações finais

Apesar de fortes interesses contrários, com o

Sexto Congresso Mundial de Bioética a voz

regional daqueles que não concordavam com o

desequilíbrio verificado na balança tornou-se

mais forte a partir da definição da temática do

evento: “Bioética, poder e injustiça”. Os

embates travados trouxeram à tona a necessi-

dade da bioética incorporar ao seu campo de

reflexão e ação aplicada temas sociopolíticos da

atualidade, principalmente as agudas dis-

crepâncias sociais e econômicas existentes

entre ricos e pobres, entre as nações do Norte

e do Sul (22).

É conveniente recordar, ainda, que com as

transformações e o novo ritmo experimentado

nos campos científico e tecnológico no contex-

to internacional, a relação dos aspectos éticos

com os temas acima referidos deixou de ser

considerada como de índole supra-estrutural

para, ao contrário, passar a exigir participação

direta nas discussões, inclusive em saúde públi-

ca e na construção de propostas de trabalho

com vistas ao bem-estar futuro das pessoas e

comunidades. No caso dos países latino-ameri-

canos, especificamente, é imprescindível que

essa discussão (ética) passe a ser incorporada ao

próprio funcionamento dos sistemas públicos

de saúde no que diz respeito à responsabilidade

social do Estado; à definição de prioridades

com relação à alocação e distribuição de recur-

sos; ao gerenciamento do sistema; ao envolvi-

mento organizado e responsável da população

em todo o processo; à preparação mais adequa-

da dos recursos humanos; à revisão e atualiza-

ção de vetustos códigos de ética das diferentes

categorias profissionais envolvidas; às indispen-

sáveis e profundas transformações curriculares

nas universidades... Enfim, contribuindo dire-

tamente para a melhoria do funcionamento do

setor como um todo.

A discussão bioética surge, assim, para con-

tribuir na procura de respostas equilibradas

ante os conflitos atuais e os das próximas

décadas. Já tendo sido sepultado o mito da neu-

tralidade da ciência, a bioética requer aborda-

gens pluralistas baseadas na complexidade dos

fatos. Para os países do Hemisfério Sul, no

entanto, não é suficiente a aceitação acrítica,

tampouco as amarras (ou limitações) concei-

tuais sobre bioética, vindas dos países do Primeiro

131

Page 8: Da bioética de princípios a.pdf

Mundo, onde as discussões giram preferencial-

mente em torno de avançadas situações-limite

decorrentes do desenvolvimento científico e

tecnológico. Os estudiosos do assunto têm o

compromisso de aproveitar a abrangência e

oportunidade que a bioética proporciona, em se

tratando de um movimento (ou uma nova dis-

ciplina, se os leitores preferirem...) que estuda a

ética das mais diferentes situações de vida,

ampliando seu campo de influência teórica e

prática do exclusivo âmbito biomédico/biotec-

nológico até o campo ambiental, passando,

inequivocamente, pelo campo da bioética

social.

Neste início de século XXI, portanto, a questão

ética adquire identidade pública. Não pode

mais ser considerada apenas como questão de

consciência a ser resolvida na esfera da autono-

mia, privada ou particular, de foro individual e

exclusivamente íntimo. Hoje, ela cresce de

importância no que diz respeito à análise das

responsabilidades sanitárias e ambientais e na

interpretação histórico-social mais precisa dos

quadros epidemiológicos, sendo essencial na

determinação das formas de intervenção a

serem programadas, na priorização das ações,

na formação de pessoal... Enfim, na respon-

sabilidade do Estado frente aos cidadãos, prin-

cipalmente aqueles mais frágeis e necessitados,

bem como frente à preservação da biodiversi-

dade e do próprio ecossistema, patrimônios que

devem ser preservados de modo sustentado para

as gerações futuras.

132

RESUMEN

De la bioética de principios a una bioética interventiva

La bioética, de origen estadounidense, se volvió mundialmente conocida por estar apoyada en cua-

tro principios básicos pretensamente universales y reconocida como una bioética principalista. A par-

tir de los años 90, comenzaron a surgir críticas a la universalidad de los principios y a sus limitaciones

frente a los macroproblemas colectivos, principalmente sanitarios y ambientales, especialmente ver-

ificados en los países periféricos del Hemisferio Sur. Por ello, surge en Latinoamérica, en los últimos

años, una nueva propuesta epistemológica - la bioética de intervención - de base filosófica utilitarista

y consecuencialista, intentando suplir esa laguna. A partir de un análisis histórico del proceso de con-

solidación del principialismo y de la importación acrítica de teorías éticas foráneas, el presente artícu-

lo se propone mostrar la necesidad de construir bases conceptuales diferenciadas para la bioética,

para establecer un adecuado enfrentamiento de los problemas persistentes rutinariamente detecta-

dos en las naciones en desarrollo.

Unitérminos: bioética principialista, contextualización, alternativa crítica, justicia, derechos humanos,

cuestiones colectivas, bioética de intervención

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SIMPÓSIO

ABSTRACT

From principle-based bioethics to an intervention bioethics

Bioethics, a discipline of US origin, became globally known for being founded on four basic princi-

ples that are supposedly universal and is known as principle-based bioethics. In the beginning of the

90s, critiques started to come out about the universality of such principles and their limitations in

face of collective macroproblems, mostly of sanitary and environmental nature, verified especially in

peripheral countries in the South Hemisphere. In this sense, a new epistemological proposal has

dawned in Latin America in recent years - the intervention bioethics, a proposal based on utilitarian

and consequential philosophy that tries to fill this void. From a historical analysis of the principle-

based approach consolidation process and of disregardful importation of foreign ethical theories,

this article seeks to show the need for building differentiated conceptual bases for bioethics in order

to adequately face persistent problems that are routinely detected in developing nations.

Uniterms: principle-based bioethics, contextualization, critical alternative, justice, human rights, col-

lective issues, intervention bioethics

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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

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