da adoção por casais homoafetivos

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Hiléia: Revista do Direito Ambiental da Amazônia n 0 19 |Jan - Jun| 2013 271 DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS: UM BREVE ESTUDO COMPARADO DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS BRASILEIRO E PORTUGUÊS / ADOPTION BY HOMOSEXUAL COUPLES: A BRIEF COMPARATIVE STUDY OF JURISDICTIONS AND BRAZILIAN PORTUGUESE Patricia Fortes Attademo Ferreira 1 Laura Tuma de Athayde 2 Sumário: Da evolução do conceito de família no Direito Brasileiro; Da inclusão dos casais homoafetivos no conceito de família; Do tratamento jurídico das uniões homoafetivas em Portugal; Do histórico e da situação do instituto da adoção no Brasil; Do instituto da adoção em Portugal; Da adoção por casais homoafetivos no Brasil; Considerações Finais; Referências. 1 Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho - RJ, Professora efetiva da Universidade do Estado do Amazonas. 2 Bacharela em Direito pela Universidade do Estado do Amazoans, Pós-graduanda em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Resumo: A concepção de família evoluiu acompanhando a fluidez dos valores sociopolíticos e econômicos, resultando no conceito de família eudemonista, fundada na busca pela realização pessoal de seus membros e unida pelo afeto. Validou-se a diversidade de modelos que existe hodiernamente, dentre os quais destaca-se a entidade familiar oriunda da união estável entre homem e mulher, reconhecida pela Constituição Federal de 1988. O ordenamento jurídico português, influenciado pelos direitos romano e canônico, custou a reconhecer juridicamente tal entidade; inobstante, quando o fez, por meio da Lei das Uniões de Fato de 2001, tratou de equiparar as uniões heterossexuais às homossexuais, em notável avanço. A Lei n. 9 de 2010, por sua vez, legitimou o casamento civil Abstract: The concept of family has evolved following the fluidity of the sociopolitical and economic values , resulting in the concept of eudaemonistic family, founded in the quest for personal fulfillment of its members and united by affection. The diversity of models which we live with nowadays was validated, among which the civil union between man and woman stands out, recognized by the 1988 Constitution. The Portuguese law, strongly influenced by Roman and canon law, came to legally recognize this model later; when it did, though, through the law of de factual unions in 2001, it equaled the homosexual and heterosexual unions, in remarkable progress. The Law nº 9 of 2010 legitimized civil marriage for homosexual spouses;

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Page 1: Da Adoção Por Casais Homoafetivos

Hiléia: Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 19 |Jan - Jun| 2013 271

DA ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS: UM BREVE ESTUDO COMPARADO DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS BRASILEIRO E PORTUGUÊS / ADOPTION BY HOMOSEXUAL

COUPLES: A BRIEF COMPARATIVE STUDY OF JURISDICTIONS

AND BRAZILIAN PORTUGUESE

Patricia Fortes Attademo Ferreira 1

Laura Tuma de Athayde 2

Sumário: Da evolução do conceito de família no Direito Brasileiro; Da inclusão dos casais homoafetivos no conceito de família; Do tratamento jurídico das uniões homoafetivas em Portugal; Do histórico e da situação do instituto da adoção no Brasil; Do instituto da adoção em Portugal; Da adoção por casais homoafetivos no Brasil; Considerações Finais; Referências.

1 Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho - RJ, Professora efetiva da Universidade do Estado do Amazonas.

2 Bacharela em Direito pela Universidade do Estado do Amazoans, Pós-graduanda em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Resumo: A concepção de família evoluiu acompanhando a fl uidez dos valores sociopolíticos e econômicos, resultando no conceito de família eudemonista, fundada na busca pela realização pessoal de seus membros e unida pelo afeto. Validou-se a diversidade de modelos que existe hodiernamente, dentre os quais destaca-se a entidade familiar oriunda da união estável entre homem e mulher, reconhecida pela Constituição Federal de 1988. O ordenamento jurídico português, infl uenciado pelos direitos romano e canônico, custou a reconhecer juridicamente tal entidade; inobstante, quando o fez, por meio da Lei das Uniões de Fato de 2001, tratou de equiparar as uniões heterossexuais às homossexuais, em notável avanço. A Lei n. 9 de 2010, por sua vez, legitimou o casamento civil

Abstract: The concept of family has evolved following the fl uidity of the sociopolitical and economic values , resulting in the concept of eudaemonistic family, founded in the quest for personal fulfi llment of its members and united by affection. The diversity of models which we live with nowadays was validated, among which the civil union between man and woman stands out, recognized by the 1988 Constitution. The Portuguese law, strongly infl uenced by Roman and canon law, came to legally recognize this model later; when it did, though, through the law of de factual unions in 2001, it equaled the homosexual and heterosexual unions, in remarkable progress. The Law nº 9 of 2010 legitimized civil marriage for homosexual spouses;

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Da evolução do conceito de família no Direito brasileiro

A família é base da sociedade, conforme o que preceitua o art. 226 da Constituição Federal. O grau de importância ao qual é elevada a entidade familiar não é exclusivo do ordenamento brasileiro; pelo contrário, o direito romano já a considerava, juntamente com a liberdade e a cidadania, como condição imprescindível à aquisição da capacidade de direito.

A família romana compunha um núcleo social à parte, composto pelas pessoas submetidas ao poder do paterfamilias e pelo patrimônio deste. Nesse grupo doméstico, ou domus, tudo girava em torno do paterfamilias, ao qual eram subordinados todos os descendentes até a morte do chefe. Nos limites de seu domus, o patriarca era o sacerdote, dirigente econômico e magistrado, e detinha autoridade inclusive para determinar a contracepção, o aborto, o enjeitamento de crianças livres e o infanticídio de fi lhos de escravas (CRETELLA JÚNIOR, 1995, p.90, 106-107).

de nubentes homossexuais; entretanto, o mesmo diploma vedou, em seu art. 3º, a adoção por casais do mesmo sexo. Tal posicionamento é justifi cado pelo temor de que a orientação sexual dos pais tenha infl uência determinante na dos fi lhos; entretanto, inexistem estudos conclusivos corroborando a referida tese. No Brasil, o reconhecimento da união estável homoafetiva é progresso recente, consolidado por ocasião do julgamento da ADI nº 4.277 e da ADPF nº 132, e sua conversão em casamento somente foi reconhecida pontualmente em primeira instância. Entretanto, a jurisprudência pátria tem se mostrado atenta aos princípios da isonomia e do melhor interesse da criança e do adolescente, tendendo a permitir a adoção por casais do mesmo sexo.

Palavras-chave: Adoção. União homoafetiva. Direito português. Direito brasileiro. Conversão da união estável homoafetiva em casamento. Adoção por casal homoafetivo.

however, it banned, in its Article 3, adoption by same-sex couples. Said position is justifi ed by the fear that the parents’ sexual orientation may have decisive infl uence on the childrens’; nonetheless, there are no conclusive studies backing that up. In Brazil, the recognition of the civil union between people of the same sex is a recent progress, consolidated at the trial of ADI Nº 4277 and ADPF Nº 132, and its conversion into marriage has only been recognized in the fi rst instance. However, the Brazilian case law has shown to be attentive to the principles of equality and the best interests of children and adolescents, tending to allow adoption by same-sex couples.

Keywords: Adoption. Same-sex civil union. Portuguese law. Brazilian law. Conversion of same-sex civil unions into marriage. Adoption by same-sex couples.

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O Direito romano foi a fonte primordial do Breviário de Alarico, que vigeu na Península Ibérica a partir do ano 506. No século XV passaram a vigorar em Portugal, então reino independente da Espanha, as Ordenações Afonsinas, substituídas pelas Ordenações Manuelinas e, posteriormente, pelas Ordenações Filipinas, todas diretamente inspiradas na legislação romana (RODRIGUES, 2007, v. 1, p. 10-11).

As Ordenações Filipinas vigoraram no Brasil até sua revogação pelo Código Civil de 1916, superando a vigência no próprio país de origem, onde foram revogadas pelo Código de 1867. A infl uência do direito português e, conseqüentemente, do direito romano, enquanto fontes da legislação pátria, foi notável (RODRIGUES, 2007, v. 1, p. 10-11).

Acerca da evolução do tratamento jurídico dispensado à família pelo direito brasileiro, a Constituição de 1824 absteve-se de abordar o tema. Já a de 1891 passou a tutelar o casamento civil. A de 1934 inovou ao dedicar um capítulo ao direito de família, já a dotando da proteção estatal, o que foi repetido nas seguintes.

A Constituição de 1937 previa o dever dos pais de educarem os fi lhos, equiparava a prole natural à legítima e assegurava o cuidado às crianças abandonadas pelo Estado, além de dotar de efeito civil o casamento religioso. A de 1946 garantia a assistência à maternidade, à infância e à adolescência, e a de 1967 estabelecia a indissolubilidade do casamento religioso, o qual podia ter efeitos civis (CASTRO, s.d.).

O Código Civil de 1916, consagrava um modelo familiar patriarcal, patrimonialista, hierarquizado e heterossexual, em que o homem detinha o poder familiar e à mulher cabia a administração do lar e criação da prole. Dispõem os arts. 233 e 240 do referido diploma, respectivamente:

Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos fi lhos (arts. 240, 247 e 251). [...]Art. 240. A mulher, com o casamento, assume a

condição de companheira, consorte e colaboradora do

marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar

pela direção material e moral desta. (grifos nossos). Ressalte-se que, nos termos do art. 229 do diploma civilista de 1916,

apenas o casamento tinha o condão de criar a família legítima, assim como o

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de legitimar os fi lhos comuns, inclusive os nascidos antes de sua realização. Derivam dessa disposição duas espécies de família: a legítima e a ilegítima, desprovida de amparo legal (RIBEIRO, 2002). Farias (2004, p. 249) caracteriza o modelo familiar rígido de 1916 com maestria:

Naquele ambiente familiar – hierarquizado, patriarcal, matrimonializado, impessoal e, necessariamente, heterossexual – os interesses individuais cediam espaço à manutenção do vínculo conjugal, pois a desestruturação familiar signifi cava, em última análise, a desestruturação da própria sociedade. Sacrifi cava-se a felicidade pessoal em nome da manutenção da “família estatal”, ainda que com prejuízo à formação das crianças e adolescentes e da violação da dignidade dos cônjuges.

A Constituição Federal de 1988 manteve a assistência estatal à criança e ao adolescente e ampliou signifi cativamente o conceito de família, tutelando, além do casamento civil, o religioso, a união estável entre homem e mulher e a entidade familiar monoparental. Tratou de igualar, também, as posições ocupadas pelo homem e pela mulher na seara conjugal e instituiu o divórcio em seu art. 226.

Ressalte-se que a doutrina já vislumbrava a inclusão da entidade familiar homoafetiva nesse rol antes mesmo de seu reconhecimento judicial, assim como o de outros paradigmas familiares não expressamente previstos:

[...] o art. 226 da Constituição Federal enu ncia expressamente algumas organizações familiares [...]. Entretanto, esse rol não pode ser entendido como taxativo. Ao contrário, ele deve ser interpretado como exemplifi cativo, de modo a propiciar o reconhecimento de inúmeras outras formas de arranjos familiares. [...] As vertentes que envolvem as relações sociais são complexas demais para que se possa idealizar que a Constituição fi xe róis taxativos. Aliás, esse detalhamento não é cabível nem mesmo em um texto constitucional analítico, como é o brasileiro, na medida em que a defi nição de família está ligada à complexidade da sociedade.Nesse sentido, a interpretação mais acertada é no sentido de que o art. 226 da Constituição Federal afi rma

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o princípio do pluralismo das entidades familiares, que reconhece a possibilidade de a família ser formada por diferentes estruturas e componentes, não se reduzindo ao modelo clássico de união pelo casamento entre homem e mulher e com o objetivo de gerar fi lhos [...]. Desta feita, a Constituição admite que sejam protegidas outras formas de organização, como a família homoafetiva (decorrente da união afetiva entre pessoas do mesmo sexo), e a família anaparental (ana=sem, parents=pais) – formada a partir de um grupo sem a presença de ascendentes (FARIAS, 2004, p. 249).

O Código Civil de 2002, por sua vez, aboliu a fi gura da bastardia ao proibir, em seu art. 1.596, qualquer discriminação relativa à fi liação, seja esta oriunda do casamento ou não, ou ainda de adoção.

O que se nota por meio da análise dessa evolução jurídico-histórica é que a família deixou de ser uma unidade produtiva composta por familiares e agregados, em que o pai representava o provedor e a mãe, a reprodutora, como se confi gurava na sociedade rural pré-século XVIII; evoluiu, a partir da Revolução Industrial, para um núcleo composto pelo casal e sua prole, agora sediado nas cidades. A consequente egressão da mulher do seio familiar para o mercado de trabalho levou a uma redistribuição dos papéis conjugais e à emancipação feminina. O progressivo distanciamento entre Estado e Igreja ocasionou o afrouxamento dos rígidos padrões morais que norteavam a constituição da família, resultando na diversidade de modelos contemporânea (COSTA, 2003). Segundo análise de Farias (2004, p. 19):

Sem dúvida, hoje a família é núcleo descentralizado, igualitário, democrático e, não necessariamente, heterossexual. Trata-se de entidade de afeto e entre-ajuda, fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana, que tem como diploma legal regulamentador à Constituição da República de 1988.[...] Ora, elegendo como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana, de forma revolucionária, a Lex Fundamentallis alargou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os membros e descendentes, sejam estes fruto do casamento ou não.

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Deste modo, a entidade familiar deve, efetivamente, promover a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade.

O afeto passou a ser o elemento fundamental da entidade familiar, que não se amolda mais ao arquétipo convencionado pelo casamento. Como bem expressam Rossato e Lépore (2009, p. 31):

A família é dotada de características não formais, como a afi nidade e a afetividade, aproximando-se aos conceitos de socioafetividade (relações sociais baseadas no afeto) e eudemonismo (conceito de busca da felicidade extraído da doutrina grega de Aristóteles), também já aclamados pelos juristas de vanguarda no Brasil.

Diante dessa nova realidade, sobressai-se na sociedade atual a diversifi cação dos modelos familiares, e não mais a predominância do núcleo clássico formado por mãe, pai e fi lhos.

Da inclusão dos casais homoafetivos no conceito de família

Na esteira da evolução e ampliação da ideia de família, foram abarcadas aquelas formadas por um único genitor e os fi lhos, pelos avós e os netos, apenas por irmãos, e as uniões estáveis entre homem e mulher.

A união estável representa a ruptura defi nitiva com o modelo clássico de família originada com o casamento que vigorava no sistema de 1916. O Código Civil atual determina, em seu art. 1.723, que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, confi gurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. É equiparada ao casamento em todos os seus efeitos, inclusive quanto às causas impeditivas. O mesmo está previsto no já citado art. 226 da Constituição Federal, o qual determina ainda que deve haver a facilitação legal da conversão da união estável em casamento.

Ao vincularem o reconhecimento da entidade familiar à diversidade de sexos, tais disposições, apesar de inegavelmente modernizadoras e protetivas, afastaram do alcance da Justiça a considerável parcela da população composta por homossexuais. Da mesma maneira que a união estável entre homem e

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mulher já foi, um dia, considerada apócrifa e deixada à margem do direito, as uniões entre pessoas do mesmo sexo foram hipocritamente ignoradas.

É inaceitável tal omissão, tendo em vista que “a diversidade de sexos não é conditio sine qua non para a percepção conceitual da família. O principal fator de formação familiar é a afetividade” (FREITAS, 2002, p. 49). Se a biologia fosse o fator determinante nas relações jurídico-familiares, não se falaria em parentalidade socioafetiva.

A comunhão de vida homossexual é um fato inegável, e como tal pressupõe regulamentação pelo ordenamento jurídico. Portanto, agiu consentaneamente com a realidade social o Supremo Tribunal Federal ao reconhecer, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 132, a união estável homoafetiva e equipará-la à heterossexual.

Os ministros foram unânimes ao decidir em favor do reconhecimento jurídico da união estável homoafetiva. O relator, ministro Ayres Britto, em seu voto, argumentou que o art. 3º da Constituição Federal veda qualquer preconceito em virtude de raça, cor e sexo, de maneira que se reputa injustifi cada a discriminação contra pares homoafetivos simplesmente por reunirem pessoas do mesmo gênero. Nas palavras do magistrado, “o sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, donde conclui que qualquer cerceamento da união estável homoafetiva agride frontalmente a disposição constitucional supramencionada (STF, 2010).

A consequência lógica do reconhecimento da união estável homoafetiva é a legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Tal afi rmação baseia-se na disposição do já transcrito art. 226, § 3º, da Constituição Federal, segundo a qual compete à lei facilitar a união estável, enquanto entidade familiar, em casamento. Além disso, os mesmos fundamentos sociopolíticos, fi losófi cos e jurídicos que dão guarida à legalidade da união estável entre pares homoafetivos se adequam também ao casamento homossexual, sendo inconcebíveis, portanto, argumentos válidos que justifi quem o seu desprestígio pelo direito.

Nesse sentido, a decisão do juiz da 2ª Vara de Família de Jacareí, Fernando Henrique Pinto, que autorizou, no dia 27 de junho deste ano, a conversão da união estável entre Luiz André Rezende Moresi e José Sergio Sousa em casamento. O magistrado ressaltou que a conversão da união estável homoafetiva em casamento vai ao encontro das disposições internacionais acerca do tema, ratifi cadas pelo Brasil:

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Finalmente, cabe anotar que no último dia 17 de junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução histórica destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de orientação sexual. A resolução, que teve a aprovação do Brasil, embora sem sanções afi rmativas, dispõe que “todos os seres humanos nascem livres e iguais no que diz respeito a sua dignidade e cada um pode se benefi ciar do conjunto de direitos e liberdades sem nenhuma distinção (UOL, 2011).

O casal compareceu no 1º Cartório Civil de Jacareí no dia seguinte e ofi cializou o primeiro casamento homossexual celebrado no Brasil, cerca de dois meses após a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar, e, iconicamente, no Dia Mundial do Orgulho LGBT. As consequências legais do ato serão a assinatura e entrega de certidão de casamento, na qual constará a adoção do sobrenome de ambos, e a alteração do estado civil de solteiros para casados (UOL, 2011).

O deferimento da conversão em primeiro grau, entretanto, não encerra a questão. O exame do tema pelo Supremo Tribunal Federal é imprescindível, dado que as consequências jurídicas do casamento e da união estável, em particular no que tange à sucessão, são distintas e peculiares, havendo a necessidade de uma apreciação mais detalhada.

Do tratamento jurídico das uniões homoafetivas em Portugal

O legado português para o direito brasileiro é imenso e inegável; as ordenações, leis e decretos de Portugal continuaram vigentes no Brasil mesmo após a independência. As primeiras tentativas de organizar uma codifi cação própria do direito pátrio só ocorreram em 1845, com o estudo de Carvalho Moreira, e com o projeto de Teixeira de Freitas, concluído em 1858 (ATHAYDE, 2011).

O Direito português, por sua vez, foi notavelmente infl uenciado pela religião. O direito romano permaneceu vigorando, por infl uência da Igreja Católica, mesmo após a queda do Império Romano do Ocidente, e era aplicado no que não contrariasse o direito canônico. Essa tradição romanista foi mantida nas Ordenações Afonsinas de 1446, já que, conforme Francisco Amaral, o direito romano permanecia aplicável, subsidiariamente em relação às Ordenações e em matérias não religiosas, reservadas estas ao direito canônico (AMARAL apud PUSSI, 2008).

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Apesar da evidente e considerável ingerência da moral cristã sobre o Direito português, a Lei n. 7 de 11 de maio de 2001, ou Lei das Uniões de Facto, foi aprovada naquele país uma década antes de o Brasil dar seus primeiros passos no sentido do reconhecimento das uniões homoafetivas. Apesar de tardia em relação à legislação pátria legitimadora das uniões estáveis, o diploma em questão representou signifi cativo avanço para os casais homossexuais ao regular, segundo seu art. 1º, “a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos” (PORTUGAL, 2011).

A referida lei previa, dentre outros direitos, a proteção do bem de família, a equiparação ao regime de férias, faltas e licenças dos servidores públicos e demais trabalhadores com os respectivos cônjuges, a aplicabilidade do regime geral da seguridade social ao cônjuge em caso de morte de benefi ciário e prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profi ssional.

Quanto à residência do casal, fi cava assegurado o direito real de habitação do convivente por cinco anos e direito de preferência na sua venda, quando da morte do proprietário do imóvel. A exceção fi ca por conta da existência de descendentes do falecido que contem com menos de um ano de idade ou que com ele convivessem há mais de um ano e tivessem intenção de habitar a casa, ou em caso de disposição testamentária nesse sentido.

A Lei n. 7 de 2001 também trouxe disposições específi cas acerca da adoção por casais do mesmo sexo. Em seu art. 7º, determina que é reconhecido apenas aos conviventes em união de fato heterossexual o direito de adoção.

A Lei número 9 de 2010 legitimou o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, determinando a substituição da expressão “duas pessoas de sexos diferentes” por apenas “duas pessoas” nos arts. 1577º e 1591º:

Artigo 1577.º [...]Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código. [...]Artigo 1591.º […]O contrato pelo qual, a título de esponsais, desposórios ou qualquer outro, duas pessoas se comprometem a contrair matrimónio não dá direito a exigir a celebração do casamento, nem a reclamar, na falta de cumprimento, outras indemnizações que não sejam as previstas no

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artigo 1594.º, mesmo quando resultantes de cláusula penal.

Também foi alterado o art. 1690º, em cuja redação original constava a expressão “tanto o marido como a mulher”, e que passou a vigorar com o seguinte texto:

Artigo 1690.º […]1 — Qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro.

O art. 3º da lei em análise dedica-se a disciplinar a adoção, nos seguintes termos:

Artigo 3.º Adopção

1 — As alterações introduzidas pela presente lei não

implicam a admissibilidade legal da adopção, em

qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas

com cônjuge do mesmo sexo.2 — Nenhuma disposição legal em matéria de adopção pode ser interpretada em sentido contrário ao disposto no número anterior (grifos nossos).

A adoção por casais homoafetivos, portanto, ainda é expressamente impedida no ordenamento português, denotando posicionamento surpreendentemente retrógado, levando-se em consideração que admitiu tão amplamente os direitos dos casais homossexuais antes mesmo de o Brasil regulamentar a união estável homoafetiva.

Do histórico e da situação do instituto da adoção no Brasil

São escassas as disposições acerca da adoção anteriores ao Código Civil de 1916. Este, por sua vez, dedicava seu Capítulo V ao instituto, e distinguia o parentesco natural do meramente civil, constituído pela adoção. O vínculo criado era relativamente frágil, podendo ser desconstituído pelo próprio adotado, quando cessasse sua incapacidade, nos termos do art. 373. Tampouco cessavam os direitos e deveres oriundos do parentesco natural, à exceção do pátrio poder, que passava a ser exercido pelo adotante, ressaltando a precariedade do laço familiar criado pelo instituto (BRASIL, Código Civil, 1916).

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Segundo seu art. 370, “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher”, e o parentesco resultante era restrito ao adotante e ao adotado, nos termos do art. 376, exceto no que fosse pertinente aos impedimentos matrimoniais. Também era restrita a adoção àqueles que tivessem atuado como tutor, enquanto não prestassem contas de sua administração. O fi lho adotado, quando concorresse com fi lhos legítimos supervenientes à adoção, teria direito apenas à metade da herança cabível a cada um destes, de acordo com o disposto no art. 1.605.

É notável a discriminação instituída pelo Código Civil anterior quanto ao fi lho adotado. A justifi cativa para isso era o caráter patrimonialista que permeava o referido diploma, que tratava a adoção como uma oportunidade de continuação da família e dos respectivos bens para o casal sem fi lhos (ROSSATO, 2009). Essa tendência fi ca nítida na redação original do art. 368, segundo o qual “só os maiores de cinquenta anos, sem prole legítima, ou legitimada, podem adotar”. O adotante, então, tinha de ser 18 anos mais velho que o adotado, nos termos do art. 369.

O Decreto nº 17.943-A de 1927 instituiu o primeiro Código dos Menores a vigorar no país, que enfatizou a proteção à criança abandonada, ou “infantes expostos”, ao delimitar a atuação das instituições destinadas ao seu recolhimento e as hipóteses de perda do pátrio poder, assim como da remoção de tutela. Também procedeu à regulamentação do trabalho do menor e à instituição do Juízo de Menores no Distrito Federal, incumbido de processar e julgar o abandono, ordenar medidas de tratamento, guarda e educação de menores abandonados ou delinquentes, decretar a perda ou suspensão do pátrio poder e a destituição da tutela, suprir o consentimento parental para o casamento, conceder a emancipação e fi scalizar o trabalho dos menores, dentre outras atribuições (BRASIL, Decreto n. 17.943-A, 1927).

Além das instituições de abrigo, também foi prevista a fi gura da família substituta, no art. 23 do Código, segundo o qual “os expostos que não forem recolhidos a estabelecimentos a esse fi m destinados, fi carão sob a tutela das pessoas que voluntária ou gratuitamente se encarreguem da sua criação, ou terão tutores nomeados pelo juiz”.

A Lei nº 3.133, de 1957, veio alterar substancialmente as disposições do Código Civil relativas à adoção. A idade mínima para o adotante passou a ser de 30 anos, e a diferença etária entre ele e o adotado, de 16 anos. As pessoas casadas só poderiam adotar quando decorridos, pelo menos, 5 anos após o casamento. Passou a ser exigível, conforme o art. 372, o consentimento do menor para

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sua adoção, ou de seus responsáveis legais, em se tratando de nascituro. Foram acrescentadas duas hipóteses ao art. 374 em que seria desfeito o vínculo criado pela adoção, quais sejam, a convenção pelas partes ou a deserdação. Por fi m, fi cou estabelecido na letra do art. 377 que “quando o adotante tiver fi lhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de adoção não envolve a de sucessão hereditária” (BRASIL, Decreto n. 17.943-A, 1927).

A Lei nº 4.655 de 1965, que dispunha sobre a legitimação adotiva, representou um grande avanço em prol da isonomia, ao diminuir as discrepâncias entre os direitos do fi lho natural e os do adotado. Permitia a legitimação do menor abandonado cujos pais fossem desconhecidos ou tivessem declarado por escrito que dele abriam mão, assim como dos menores de até 07 anos cujos pais tivessem sido destituídos do pátrio poder, dos órfãos da mesma idade e dos fi lhos naturais reconhecidos apenas pela mãe. A legitimação adotiva era possível também àqueles maiores de 07 anos que, quando os completaram, já estivessem sob a guarda dos legitimantes.

A legitimação só era deferida após um período de guarda de 03 anos, e aos casais que desejassem adotar era imposta a condição de estarem casados há, no mínimo, 05 anos, e de que um cônjuge fosse maior de 30 anos, de maneira a respeitar o disposto no Código Civil de 1916. O prazo de 05 anos somente era dispensado se fosse provada a esterilidade de um dos cônjuges (BRASIL, Lei Ordinária n. 4.655, 1965).

A petição para a legitimação deveria ser instruída com folha de antecedentes, prova de idoneidade moral e fi nanceira e atestado de inexistência de fi lhos, dentre outros documentos pertinentes. A sentença que julgasse o pedido procedente deveria ser inscrita no Registro Civil, e os nomes dos legitimantes e de seus antecedentes seriam consignados como os dos pais legítimos. Feita a inscrição, cessariam os vínculos da fi liação anterior, conforme o §3º do art. 6º (BRASIL, Lei Ordinária n. 4.655, 1965).

A legitimação era irrevogável, e o fi lho adotado seria equiparado aos naturais supervenientes para todos os efeitos legais, exceto quanto à sucessão, quando seria observada a disposição do art. 1.605 do diploma civil, já citado. Com a adoção, cessavam os direitos e obrigações fundados na relação de parentesco do adotado com sua família de origem (BRASIL, Lei Ordinária n. 4.655, 1965).

O Código de Menores, instituído pela Lei n. 6.697 de 1979, estabeleceu duas formas de adoção: a Simples e a Plena. A primeira, conforme o art. 27 do diploma em questão, dependia de autorização judicial e estava sujeita a um

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período de convivência, a ser fi xado pela autoridade judiciária, que poderia ser dispensado caso o adotando não contasse ainda com mais de um ano de idade. A segunda, por sua vez, veio substituir a legitimação adotiva, atribuindo status de fi lho ao adotado e desligando-o de qualquer vínculo com sua família originária, de acordo com o art. 29 da Lei. A adoção plena era condicionada à duração de cinco anos do casamento dos adotantes, bem como à idade de pelo menos trinta anos de um deles (BRASIL, Código de Menores - Lei no 6.697, 1979).

A Constituição Federal de 1988 rompeu com a tendência, até então consagrada, de estabelecer distinções entre os fi lhos naturais e os adotados, ao dispor, na redação original de seu art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado colocar a criança e ao adolescente a salvo de qualquer discriminação. Tal espírito se traduziu na promulgação, em 1990, da Lei 8.069, sob a alcunha de Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado um dos mais avançados do mundo na matéria.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, em seu art. 41, que “a adoção atribui a condição de fi lho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”. A igualdade entre os fi lhos naturais e adotados englobava também os direitos sucessórios, conforme o parágrafo 4º do referido artigo.

As condições para a adoção foram alteradas, e a idade mínima para adotar passou a ser de 18 anos, independentemente do estado civil, sendo mantida a obrigatoriedade da diferença etária de 16 anos. Para a adoção conjunta, bastava que fosse comprovado o casamento civil ou a união estável e a estabilidade da família. O estágio de convivência teria sua duração estipulada judicialmente.

É nítida a mudança ocorrida entre os primeiros diplomas legais que previam a adoção no Brasil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que se refere ao princípio norteador do instituto. Antes de cunho patrimonialista, a adoção passou a privilegiar os interesses da criança e o seu direito de ser criada no seio de uma família, quando, por alguma razão, não lhe seja possível fi car sob a proteção de seus pais biológicos. Segundo Costa (2003, p. 69),

A adoção é uma fi cção jurídica, na qual se tenta criar para a criança uma situação familiar, que, por algum motivo, tenha sido desprovida. É a tentativa de se oferecer à criança a possibilidade de estabelecer laços afetivos próximos com pessoa ou pessoas capazes de

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amá-la e a quem possa amar como se fosse(m) seu(s) pai(s), permitindo-lhe uma educação e desenvolvimento saudável e feliz.

Refo rçando tal caráter protetivo, o art. 43 é explícito ao dispor que “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”.

O atual Código Civil seguiu a mesma linha do Estatuto da Criança e do Adolescente e estabeleceu, em seu art. 1.596, que “os fi lhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualifi cações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à fi liação”.

A Lei nº 12.010 de 2009 determinou algumas mudanças no texto do ECA, no sentido de ampliar a proteção ao menor adotando. Acresceu os parágrafos do art. 28, passando a determinar que, sempre que possível, o menor será previamente ouvido por equipe interprofi ssional e terá sua opinião considerada, sendo seu consentimento determinante se contar com mais de doze anos. Levar-se-á em consideração, também, o grau de parentesco e afi nidade entre o adotando e os adotantes, e os irmãos serão, preferencialmente, colocados sob a guarda da mesma família substituta.

A legislação pertinente à adoção, principalmente no que tange à proteção da criança e do adolescente, evoluiu de maneira fulgente no Brasil. Entretanto, há de se reconhecer que, na prática, a situação que é imposta ao menor abandonado ou retirado do convívio familiar não é ideal.

Segundo a redação dada pela Lei 12.010/09 ao art. 34, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, é preferencial a inclusão da criança em programa de acolhimento familiar ao institucional, sendo assegurado em ambos os casos o caráter provisório da medida. Tal disposição é reiterada no art. 101, parágrafo 1º, do ECA, segundo o qual “o acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais”, a serem empregadas como meio de reintegração familiar ou colocação em família substituta, o que aprouver ao interesse do menor.

O que ocorre, de fato, é que muitos menores passam anos nas instituições, e muitas vezes atingem a maioridade sem que lhes tenha sido dada a oportunidade da convivência familiar. Segundo a Associação dos Magistrados Brasileiros, cerca de 80.000 crianças e adolescentes vivem em abrigos, e 10% delas estão aptas à adoção. Em contrapartida, apenas 15,5% das pessoas consultadas no mesmo levantamento afi rmaram que, de fato, adotariam uma criança (FRANÇA , s.d.).

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Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) buscou traçar um perfi l das instituições dedicadas ao acolhimento de crianças e adolescentes que recebem recursos do governo federal. Foram analisadas 589 instituições, que abrigam cerca de 20.000 menores. Concluiu-se que se tratam, majoritariamente, de instituições não-governamentais, de cunho religioso, e cujo custeio provém principalmente de recursos próprios e privados. Cerca de 86,7% dos menores abrigados tinham família, estando apenas 5,8% impedidos, por ordem judicial, de manter contato com as suas (SILVA, 2005).

O que se verifi cou foi a situação paradoxal de estar juridicamente vinculado a uma família que, na prática, já abrira mão da responsabilidade de cuidar das crianças, muitas vezes por não ter condições econômico-fi nanceiras. Dessa maneira, somente 10,7% do contingente estudado estava em condições legais de ser encaminhado para a adoção (SILVA, 2005).

As instituições pesquisadas buscam assegurar o direito à convivência familiar dos jovens acolhidos: 79,8% delas mantêm de sistemas contendo as informações de contato das famílias; 65,9% promovem visitas dos menores aos lares familiares; e 41,4% permitem a visitação no abrigo (SILVA, 2005).

Independentemente das condições oferecidas nas instituições, a convivência no seio familiar é reconhecidamente mais benéfi co para a criança e o adolescente; não é à toa que o retromencionado art. 34 do ECA determina ser a colocação em família substituta preferível ao recolhimento institucional. É inegável que nas instituições de acolhimento a quantidade de abrigados e a limitação de recursos comprometem o pleno desenvolvimento do menor, e o tratamento individualizado e com carinho é impraticável.

Do instituto da adoção em Portugal

A adoção é disciplinada nos arts. 1.973º a 2.002º do Código Civil português, e é semelhante ao modelo adotado pelo Brasil no Código de Menores de 1979; assim como este diploma previa as fi guras da adoção simples e plena, o português institui a adoção plena e restrita.

A constituição do vínculo adotivo ocorre através de sentença judicial, nos termos do art. 1.973º, e no processo devem constar atestados acerca da personalidade e saúde do adotante e do adotado, assim como sobre a idoneidade e a situação familiar e econômica daquele, bem como as razões determinantes do pedido de adoção.

Da mesma maneira que o Estatuto da Criança e do Adolescente procurou enfatizar que o princípio norteador da adoção é o da busca do bem estar do

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menor em situação de risco, o art. 1.974º do diploma lusitano dispõe que:

A adopção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros fi lhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptado se estabelecerá um vínculo semelhante ao da fi liação.

O artigo mencionado também prevê a obrigatoriedade de período de convivência, que, assim como no ordenamento brasileiro, não tem duração estipulada em lei, mas deve ser apto para avaliar a conveniência da constituição do vínculo.

Assim como previsto no art. 44 do Estatuto da Criança e do Adolescente, também no ordenamento português é defeso ao tutor ou administrador legal de bens adotar o menor antes de aprovadas as contas de sua administração e saldada a sua responsabilidade, conforme o art. 1.976º do Código Civil.

No art. 1.977º estão defi nidos os dois tipos de adoção – a plena e a restrita – ressalvada a possibilidade de, a qualquer tempo, ser convertida a segunda na primeira. Dentre os aptos para adotar plenamente, estão arroladas as pessoas maiores de 30 anos ou, caso o adotando seja fi lho de seu cônjuge, 25 anos, que desejem adotar individualmente, ou as pessoas casadas há mais de 4 anos e não separadas judicialmente ou de fato, desde que ambas contem com mais de 25 anos, que desejem adotar conjuntamente. A impossibilidade de pessoas separadas ou divorciadas adotarem conjuntamente destoa da permissão expressa no art. 42, §4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Outra restrição trazida pelo ordenamento português e inexistente no brasileiro é a vedação da adoção plena por pessoas maiores de 60 anos quando da data em que o menor lhe tenha sido confi ado; além disso, contando o adotante com 50 anos ou mais, a diferença de idade mandatória em relação ao adotado passa a ser de 50 anos. Essa última hipótese é excepcionada, podendo a diferença de idade ser superior a 50 anos, quando a adoção for favorecida por motivos expressivos (PORTUGAL, Código Civil Português - Decreto-Lei n.º 47344/66, 1966).

Podem ser adotados plenamente os menores fi lhos do cônjuge do adotante e aqueles cuja guarda lhe tenha sido confi ada. O adotando deve contar com menos de 15 anos quando do requerimento judicial da adoção, ou com menos de 18 anos, desde que tenha sido confi ado com menos de 15 anos aos

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adotantes ou a um deles, ou ainda quando seja fi lho do cônjuge do adotante. Novamente, nota-se uma restrição etária dissonante da imposta no Brasil, em que podem ser adotados os menores de 18 anos e até mesmo os maiores de idade, se antes de completada a maioridade estivessem sob a guarda ou tutela dos adotantes, conforme art. 40 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

É imprescindível o consentimento do adotando maior de 12 anos, assim como no ordenamento pátrio. O art. 1.981º impõe, também, a necessidade do consentimento do cônjuge do adotante não separado judicialmente, dos pais do adotando, ainda que menores de idade e destituídos do poder familiar, exceto se contra eles tiver sido imposta medida de segurança, e do ascendente, do colateral até o 3º grau ou do tutor do adotando, quando forem falecidos seus pais (PORTUGAL, Código Civil Português - Decreto-Lei n.º 47344/66, 1966).

O Tribunal pode dispensar o consentimento se as pessoas que o devessem dar forem completamente incapazes, ou caso os pais do adotando que tiverem sido destituídos do poder familiar não o tenham requerido novamente dentro do prazo legal. O consentimento deve ser prestado perante o juiz, independentemente da instauração do processo de adoção e da identifi cação do futuro adotante, e a mãe só pode dá-lo decorridas 6 semanas do parto. Caduca o consentimento se, dentro de 03 anos, o menor não for adotado ou confi ado a instituição.

O art. 1.986º lista os efeitos da adoção plena, dentre os quais a aquisição da situação de fi lho pelo adotado e a extinção das relações familiares com seus ascendentes e colaterais naturais, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais. Quando o adotado é fi lho do cônjuge do adotante, mantêm-se as relações entre este e aquele. A adoção plena também se caracteriza pela irrevogabilidade, inclusive mediante acordo entre adotante e adotado. Tal instituto é, portanto, idêntico à adoção como se afi gura no Brasil.

A adoção restrita, por sua vez, impõe menos exigências em relação ao modelo anterior. Por exemplo, o art. 1.993º determina que os aptos a adotar restritamente são todos aqueles maiores de 25 anos e menores de 60, salvo, neste último caso, se o adotando for fi lho do cônjuge do adotante. Ao instituto se aplicam as mesmas condições impostas à adoção plena no que tange à idade do adotando e ao consentimento.

A maior diferença entre a adoção restrita e a plena é que, naquela, mantêm-se todos os direitos e deveres do adotado em relação à sua família natural, ressalvadas as exceções legais. O adotado e seus descendentes, nesse

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caso, não são herdeiros legítimos do adotante e de seus parentes, e vice-versa, nem fi cam reciprocamente vinculados à prestação de alimentos, nos termos do art. 1.996º. O adotado restritamente e seus descendentes só serão chamados à sucessão quando o adotante não deixar cônjuge ou herdeiros naturais. O mesmo se aplica à prestação de alimentos ao adotante pelo adotado e seus descendentes.

O efeito principal da adoção restrita é a transferência do poder familiar para o adotante, com todos os direitos e obrigações inerentes aos pais, salvo no que se refere ao usufruto dos rendimentos dos bens do adotado. Neste caso, o adotante somente poderá despender da quantia fi xada pelo Tribunal para os alimentos do adotado, conforme disposição do art. 1.998º.

A adoção restrita, diferentemente da plena, é revogável a requerimento do adotante ou do adotado, desde que verifi cadas as condições permissivas da deserdação. Caso seja o adotado menor de idade, a revogação da adoção poderá dar-se mediante pedido dos pais naturais, do Ministério Público ou da pessoa que, antes da adoção, detinha sua guarda, desde que o adotante tenha deixado de cumprir com seus deveres ou se tenha tornado a adoção inoportuna aos interesses do adotado. Assim está previsto no art. 2.002º-C.

Conforme mencionado anteriormente, o art. 3º da Lei 9 de 2010 proíbe expressamente a adoção, seja ela de restrita ou plena, por casal homoafetivo, apesar de inexistirem impedimentos quanto à adoção individual por homossexual. Há de se questionar se tal vedação está de acordo com a disposição do art. 1.974º do Código Civil português ou é contrária ao “superior interesse da criança” que se visa tutelar.

O argumento basilar dos defensores da referida proibição, como destaca Jane Justina Maschio, é a possibilidade de identifi cação psicológica das crianças com a orientação sexual dos pais, o que poderia levá-las, por lealdade afetiva, a tornarem-se homossexuais. Justifi cam-se citando estudos psicológicos e psiquiátricos que afi rmam que a personalidade se forma até os três anos de idade, e que a diversidade de sexos dos pais contribui para essa formação (MASCHIO, s.d.).

Tal argumento é facilmente refutável. Afi nal, se o exemplo dos pais determinasse categoricamente a orientação sexual dos fi lhos, seria inexplicável a frequência com que indivíduos gerados e criados por pais heterossexuais revelam-se homossexuais. Destaque-se que a ciência ainda não determinou a que se deve a orientação sexual – se a fatores, genéticos, biológicos, psicológicos, ambientais ou mesmo a outros que nem sequer foram cogitados.

Dessa maneira, é inconcebível que uma noção preconceituosa, enraizada

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no direito pela infl uência milenar da Igreja Católica nos países ibéricos, venha a prejudicar crianças que sofrem abusos no seio de suas famílias naturais, ou que tenham sido abandonadas, e que têm a chance de serem criadas em um lar em que lhes sejam providas todas as necessidades materiais, intelectuais e emocionais.

Da adoção por casais homoafetivos no Brasil

Ao contrário do que ocorre em Portugal, no Brasil não há proibição explícita quando à adoção por casais homossexuais. Não há determinação em qualquer dispositivo legal pátrio que imponha óbice à adoção por pessoa homossexual, seja ela individual ou conjunta. Tal impedimento, ademais, violaria diretamente os arts. 3º, inciso IV, e 226, §3º, da Constituição Federal, os quais asseguram, respectivamente, o tratamento igualitário independente de sexo e a natureza de entidade familiar da união estável. O reconhecimento da união estável homoafetiva pelo Superior Tribunal Federal veio a consolidar o entendimento, já manifestado jurisprudencialmente, de que qualquer distinção entre casais homossexuais e heterossexuais, por fundamentarem-se no sexo e na orientação sexual de seus integrantes, é ilícita, e que, portanto, não pode constituir impedimento não previsto em lei para a adoção:

EMBARGOS INFRINGENTES. PEDIDO DE HABILITAÇÃO. ADOÇÃO CONJUNTA POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Sendo admitida, pela jurisprudência majoritária desta corte, a união estável entre pessoas do mesmo sexo, possível admitir-se a adoção homoparental, porquanto inexiste vedação legal para a hipótese.Existindo, nos autos, provas de que as habilitandas possuem relacionamento estável, bem como estabilidade emocional e fi nanceira, deve ser deferido o pedido de habilitação para adoção conjunta.

Trecho do voto do Des. Claudir Fidélis Faccenda (revisor):

Mesmo que o § 3º, do artigo 226, da Constituição Federal fale explicitamente em união estável entre homem e mulher, não se pode ignorar que essa mesma Constituição traz princípios fundamentais superiores, como o da construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”

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(artigo 3º, inc. I); da promoção do bem de todos, “sem

preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º, inc. IV); da dignidade da pessoa humana (artigo 3º, inc. III); e da igualdade, pois “todos são iguais perante

a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5º, caput).[...] Concluindo-se pelo reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, não existe óbice à adoção, porquanto se o casal possui os requisitos para habilitação e, considerando que se trata de uma família, deve ser acolhida a tese das autoras.Segundo ensinamento de Maria Berenice Dias, “A restrição não se justifi ca. As únicas exigências para o deferimento da adoção (CC 1.625 e ECA 43) são que esta apresente reais vantagens para o adotado e se fundamente em motivos legítimos. Ora, excluir a possibilidade de adoção, e manter o infante institucionalizado, só vem em seu prejuízo. Não se pode olvidar que a lei não veda a possibilidade de duas pessoas adotarem, ainda que não sejam casadas ou vivam em união estável. Como o divórcio dissolve o vínculo do casamento (CC 1.571, §1º), a permissão da adoção conjunta por ex-cônjuges acaba por autorizar que duas pessoas, sem qualquer liame legal ou mesmo afetivo, adotem o mesmo infante. Por outro lado, diante do conceito aberto de família substituta (ECA 28), nada impede que duas pessoas adotem, independentemente da identidade sexual.”Dessa forma, reconhecido que duas pessoas do mesmo sexo podem constituir família, superados os requisitos para a adoção, não há razões para impedi-la, ainda que a recente lei 12.010/2009 não tenha contemplado a possibilidade de casais do mesmo sexo fi gurarem como adotantes (grifos nossos) (RIO GRANDE DO SUL, 2010).

A realidade social brasileira há de ser levada em consideração para que se determine qual é, verdadeiramente, o melhor interesse da criança em situação de vulnerabilidade. Considerando-se que a adoção é defi nitivamente o meio mais legítimo para a garantia do direito à vida familiar e comunitária,

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em oposição à institucionalização, que oferece condições materiais e morais precárias, a obstrução da adoção por pessoas de orientação homossexual logicamente contrapõe-se ao interesse do menor.

Diante de tais argumentos, não é surpreendente a nítida tendência jurisprudencial de deferir a adoção por homossexual, seja ela individual, conjunta ou do fi lho do parceiro:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇAO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL. SITUAÇAO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DEFERIMENTO DA MEDIDA.1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por parte de requerente que vive em união homoafetiva com companheira que antes já adotara os mesmos fi lhos, circunstância a particularizar o caso em julgamento. [...]6. Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema, fundados em fortes bases científi cas (realizados na Universidade de Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de Pediatria), “não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores”. [...]9. Se os estudos científi cos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe (STJ, 2010).

A despeito da concordância em conceder a adoção a pares

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homossexuais demonstrada pela doutrina e jurisprudência pátrias, tem sido levantado o argumento de que, por tratar-se de arquétipo familiar não usual, o consentimento do adotando seria imprescindível. Dessa maneira, existiria um limite etário, restringindo a adoção a adolescentes maiores de 12 anos que, em interpretação conforme o art. 28, parágrafo 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, seriam dotados de maturidade intelectual sufi ciente para tomar tal decisão conscientes de todas as suas implicações.

Tal restrição, acertadamente, não vem sendo acolhida pelos Tribunais:

APELAÇÃO CÍVEL HABILITAÇÃO PARA ADOÇÃO ADOTANTE HOMOSSEXUAL LIMITAÇÃO DE IDADE DO ADOTANDO AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. RECURSO DESPROVIDO. A adoção é um ato que envolve a criação de vínculos afetivos, onde pais e fi lhos se adotam na nova relação, independentemente da orientação sexual dos adotantes.

Trecho do voto do Desembargador Costa Barros (relator):

No caso, entende a douta Promotora de Justiça que somente a criança com 12 anos de idade ou mais poderia escolher se quer fazer parte de uma família sem os contornos da família tradicional com enfrentamento de todas as ordens, referindo-se ao fato do pretenso pai ser homossexual, f. 64/76. Ora, em que pese a preocupação da douta promotora de justiça, ela não se mostra impeditiva do direito do apelante pretender adotar criança com menor idade, a fi m de criar vínculos afetivos de pai em relação ao fi lho.Certo é que, quanto mais idade tem a criança, mais difícil é a sua adaptação num ambiente familiar diverso do modelo tradicional, posto que ela já tenha conceitos e preconceitos formados, muitas vezes estigmatizados pela sociedade.Por outro lado, não se pode dizer que essa forma de relação familiar traga prejuízos à criança, sejam de ordem moral, social ou afetiva.Acerca do tema, ANA CARLA HARMATIUK MATOS, leciona: “O que deve importar são as características

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pessoais dos pais (ou dos candidatos à adoção), sua capacitação, sua habilidade nos âmbitos emocional e patrimonial quanto às questões tão peculiares exigidas pelo universo da paternidade e maternidade.” E, mais adiante, observa: “(...) pesquisas realizadas pela Associação Americana de Psicologia indicam que ‘não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo signifi cativo em relação às crianças de pais heterossexuais’”.[...] Em caso semelhante, já tive a oportunidade de acompanhar o voto do ilustre juiz, hoje Des. D’Artagnan Serpa Sá, cuja ementa cita-se: “APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO. HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO. [...] Do seu conteúdo, extrai-se: “Quando invocamos o artigo 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente e propagamos o direito destes de se manifestar sobre a própria adoção e sobre a família a que irão pertencer, o fazemos nos casos em quem as crianças a serem, facultativamente, adotados têm idade e discernimento para tanto. Agora, impor aos apelantes crianças com estas características porque capazes de manifestar os seus preconceitos e aceitar ou não as intempéries de ter como pais um casal homossexual, é contrariar todo o discurso sobre igualdade e isonomia, princípios primordiais de garantia e direitos fundamentais. Veja-se, ainda, que é muito mais fácil para uma criança de pouca idade crescer amando e respeitando seus pais adotivos, quaisquer que sejam, com todas as suas particularidades, pautadas em valores éticos e morais apropriados à nova sociedade que se apresenta em lenta, mas gradual, mutação e com a qual temos a obrigação de contribuir, do que para as crianças e

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adolescentes que já têm enraizados os seus preconceitos e falsas impressões sobre uma relação homoafetiva” (PARANÁ, 2010).

O entendimento que tem prevalecido entre os operadores do Direito, portanto, é o de que a adoção por casais homossexuais, nos exatos termos em que é deferida aos heterossexuais, sem a imposição de maiores restrições, se adequa ao princípio do melhor interesse do menor. Mais do que isso, é verdadeiramente representativa da isonomia livre de preconceitos que se almeja conquistar, enquanto principio fundamental da República Federativa do Brasil.

Considerações Finais

A família sempre desempenhou, desde os primórdios da civilização, papel de suma importância enquanto núcleo de organização social. Os arquétipos familiares têm sua pedra angular nos valores coletivos, e estes, por sua vez, são fl uidos, evoluindo em consonância com os padrões econômicos e políticos. Dessa maneira, o paulatino distanciamento entre a política e a Igreja experimentado nos últimos séculos, atrelado à igualação jurídica e profi ssional entre homens e mulheres, contribuiu para a consolidação de um modelo familiar ocidental calcado na individualidade, na afeição e na busca pela realização pessoal.

A palavra “modelo”, inclusive, destoa do caráter particularizado que permeia as relações familiares hodiernamente. Não existe mais a predominância do modelo clássico, consagrado pelo nosso Código Civil de 1916, em que o casamento era o único meio legítimo para a constituição da família. As entidades familiares tampouco estão adstritas àquelas previstas na Constituição Federal de 1988, a qual, por si só, representou notável avanço ao tutelar, além da família constituída pelo casamento – tanto civil quanto religioso – a formada pela união estável entre homem e mulher e aquela composta por apenas um dos genitores e pelos fi lhos.

A melhor doutrina já vislumbrava o caráter exemplifi cativo das entidades familiares arroladas na Carta Magna, defendendo a existência e validade de inúmeros outros modelos e antevendo o reconhecimento da união estável homoafetiva. O Supremo Tribunal Federal veio a convalidar essa possibilidade, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132, nas quais foi decidido pela equiparação entre a entidade heterossexual e a homossexual.

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Um passo além já foi dado na 2ª Vara de Família de Jacareí, pelo magistrado Fernando Henrique Pinto, que, em julho deste ano, determinou a conversão de união estável homoafetiva em casamento.

Nesse sentido, o ordenamento português sempre esteve à frente do brasileiro, denotando notável afastamento do conservadorismo que se esperaria de um país tão fortemente infl uenciado pelo direito canônico e pela moral cristã. Em 2001 foi aprovada em Portugal a Lei das Uniões de Fato, em que se reconheceu a união estável entre duas pessoas que, independentemente do sexo, convivessem há mais de dois anos, equiparando, portanto, os companheiros homossexuais aos heterossexuais. A Lei n. 9 de 2010, por sua vez, legitimou o casamento civil de nubentes homossexuais, algo que, como visto, ainda é incipiente no Brasil.

Entretanto, no que tange ao instituto da adoção, o Direito português se mostra conservador, adotando modelo assemelhado ao do Código de Menores brasileiro de 1979 ao prever, nos arts. 1.973º a 2.002º de seu Código Civil, duas formas de adotar: a plena e a restrita. A primeira tem efeitos análogos aos da adoção como regulamentada no Direito brasileiro. Na adoção restrita, por outro lado, permanecem todos os direitos e deveres do adotado em relação à sua família natural, ressalvadas as exceções legais. O único efeito da adoção restrita, em verdade, é a transferência do poder familiar para o adotante, e ainda assim, com caráter revogável. É um instituto inadmissível à vista dos arts. 227 da Constituição Federal brasileira e 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O ordenamento português também impõe uma série de empecilhos à adoção. Para que se adote restritivamente – instituto comparável à tutela no direito pátrio – é exigível que o adotante seja maior de 25 anos e menor de 60, salvo, neste último caso, se o adotando for fi lho de seu cônjuge.

Para adotar plenamente, estão aptos os maiores de 30 anos ou, caso o adotando seja fi lho de seu cônjuge, 25 anos, que desejem adotar individualmente, ou as pessoas casadas há mais de 4 anos e não separadas judicialmente ou de fato, desde que ambas contem com mais de 25 anos, que desejem adotar conjuntamente. A impossibilidade de pessoas separadas ou divorciadas adotarem conjuntamente também é estranha ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que traz permissão expressa em seu art. 42, §4º. A diferença de idade entre adotado e adotante com 50 anos ou mais deve ser de 50 anos, a não ser que a adoção seja favorecida por motivos expressivos.

Em ambos os casos, o adotando deve contar com menos de 15 anos

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quando do requerimento judicial da adoção, ou com menos de 18 anos, desde que tenha sido confi ado com menos de 15 anos aos adotantes ou a um deles, ou ainda quando seja fi lho do cônjuge do adotante. No Brasil, em maneira diversa, são aptos à adoção os menores de 18 anos e os maiores de idade que, antes de completada a maioridade, estivessem sob a guarda ou tutela dos adotantes, conforme art. 40 do ECA.

Finalmente, cumpre trazer à colação a restrição prevista no art. 3º da Lei n. 9 de 2010, que proíbe expressamente a adoção, seja ela de restrita ou plena, por casal homoafetivo.

O Código Civil lusitano afi rma, em seu art. 1.974º, priorizar o interesse da criança através da adoção. As severas e numerosas restrições impostas ao instituto, entretanto, depõem contra a referida intenção. Quanto à vedação de adoção por casal homoafetivo, certamente é a mais injustifi cada delas. Seus defensores afi rmam que existe a possibilidade de identifi cação psicológica das crianças com a orientação sexual dos pais, o que poderia levá-las, por lealdade afetiva, a tornarem-se homossexuais.

Entretanto, estudos a respeito da origem da orientação sexual ainda são inconclusivos. Não se sabe que fatores infl uenciam na preferência sexual do indivíduo – se genéticos, ambientais ou psicológicos. O que se sabe é que o desenvolvimento da criança e do adolescente no seio familiar é mais completo, individualizado, e por isso preferível ao acolhimento institucional.

No Brasil, a proibição da adoção por parte de casais homoafetivos violaria frontalmente o espírito igualitário da Constituição Federal, que, em seus arts. 3º, inciso IV, e 226, §3º, garante o tratamento igualitário independente de sexo e a natureza de entidade familiar da união estável.

Tais disposições, por si sós, autorizam a adoção por companheiros do mesmo sexo. Se levarmos em conta as reais condições do sistema institucional brasileiro, no qual as crianças e adolescentes permanecem por anos afastados do convívio familiar e sem o suporte material e moral adequado, e a garantia do direito à vida familiar e comunitária previstos no art. 4º do ECA, a imposição de empecilhos à adoção por casal homossexual infringe o princípio norteador do Estatuto, qual seja: o do melhor interesse do menor.

Os Tribunais pátrios têm adotado esta visão, refl etida em diversos julgados, anteriores, inclusive, ao reconhecimento da união homoafetiva. É posicionamento mais que acertado; é o único verdadeiramente compatível com os preceitos de isonomia que norteiam o Estado de Direito brasileiro. E representa a preocupação em verdadeiramente privilegiar os interesses do

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menor e o seu direito de ser criado no seio de uma família.A doutrina e a jurisprudência pátrias, portanto, ao permitir a adoção

por casais homoafetivos, vêm demonstrando repulsa pelo preconceito vazio de fundamentos e respeito aos princípios constitucionalmente resguardados de isonomia e prevalência dos direitos do menor. Tal posicionamento se alicerça em bases científi cas e éticas internacionalmente defendidas e coaduna-se com os valores compartilhados pela sociedade eudemonista, defensora do bem-estar individual em contraposição à imposição de padrões sociais, não apenas a nível nacional, mas mundial.

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