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Aldo Dantas Tásia Hortêncio de Lima Medeiros Introdução à Ciência Geográfica DISCIPLINA Pierre Monbeig – O nascimento da Geografia científica no Brasil Autores aula 14

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Aldo Dantas

Tásia Hortêncio de Lima Medeiros

Introdução à Ciência GeográficaD I S C I P L I N A

Pierre Monbeig – O nascimento da Geografia científica no Brasil

Autores

aula

14

Aula 14  Introdução à Ciência GeográficaCopyright © 2008 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa da UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da UEPB - Universidade Estadual da Paraíba.

Divisão de Serviços Técnicos

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Secretário de Educação a Distância – SEEDCarlos Eduardo Bielschowsky

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Vice-ReitorAldo Bezerra Maciel

Coordenadora Institucional de Programas Especiais - CIPEEliane de Moura Silva

Coordenadora da Produção dos MateriaisMarta Maria Castanho Almeida Pernambuco

Coordenador de EdiçãoAry Sergio Braga Olinisky

Projeto GráficoIvana Lima (UFRN)

Revisores de Estrutura e LinguagemEugenio Tavares Borges (UFRN)Janio Gustavo Barbosa (UFRN)Thalyta Mabel Nobre Barbosa (UFRN)

Revisora das Normas da ABNT

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Revisoras de Língua Portuguesa

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Revisor Técnico

Leonardo Chagas da Silva (UFRN)

Revisora TipográficaNouraide Queiroz (UFRN)

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Editoração de ImagensAdauto Harley (UFRN)Carolina Costa (UFRN)

Diagramadores

Bruno de Souza Melo (UFRN)Dimetrius de Carvalho Ferreira (UFRN)

Ivana Lima (UFRN)Johann Jean Evangelista de Melo (UFRN)

Dantas, Aldo.

Introdução à ciência geográfica: geografia / Aldo Dantas, Tásia Hortêncio de Lima Medeiros. –

Natal, RN : EDUFRN, 2008.

176 p.

1. Geografia – Brasil. 2. Geografia - teoria. 3. Geografia científica – Brasil. 4. Sociedade.

5. Prática pedagógica. I. Medeiros, Tásia Hortência de Lima. II. Título.

CDD 910RN/UF/BCZM 2008/35 CDU 918.1

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Copyright © 2008 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa da UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte e da UEPB - Universidade Estadual da Paraíba.

Apresentação

Em 2008, faz 74 anos de institucionalização da universidade brasileira e também da Geografia, que teve na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo o seu embrião. Em seu nascedouro, a Geografia tem a tutela da universidade

francesa através de dois jovens geógrafos: Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig. Deffontaines volta logo para a França, Monbeig permanece no Brasil durante 11 anos. É sobre esse geógrafo e sua obra que trata esta aula, o qual, fiel discípulo da Geografia francesa, recolhe a concepção de “paisagem” do mestre Vidal, no sentido em que a mesma reflete no espaço uma fisionomia de algo essencialmente dinâmico e que se amplia na região, dotada de personalidade. Entretanto, a sua análise vai mais longe ao acrescentar a esse conceito o jogo das combinações dos diversos elementos que compõem a paisagem. Considerando a multidimensionalidade do homem, Monbeig agrega ao seu pensamento a dimensão da cultura. Foi um geógrafo sério, modesto, mas firme em suas convicções. Nunca se arvorou revolucionário nem criador de “novas geografias”, entretanto, soube muito bem aproveitar o que de essencial havia sido deixado pelos mestres do passado e, em seus trabalhos, soube introduzir novas propostas.

ObjetivosCompreender a importância da formação das Universidades para a institucionalização da Geografia brasileira.

Entender como professores estrangeiros contribuíram para a afirmação da Geografia científica no Brasil.

Perceber a importância de Pierre Monbeig na formação de professores e no desenvolvimento da pesquisa geográfica nacional.

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Notas biográficas

Pierre Monbeig nasceu no norte da França, em Marissel, em 15 de setembro de 1908, era filho de professores. Logo cedo foi com os pais para Paris, onde passou sua infância e juventude. Viveu na Paris da Belle Epoque e conviveu com os infortúnios da Primeira

Grande Guerra. Foi nesse período de grandes agitações políticas e de ameaças sofridas pelo seu país que realizou seus estudos primários no Liceu Montaigne e o secundário no Luis le Grand, na capital francesa. Viveu na margem esquerda do rio Sena, conhecendo bem os bairros de Saint Michel e de Saint Germain, onde havia, nesse período, grande agitação intelectual e onde se situavam as escolas e institutos de ensino superior.

Suas inquietações intelectuais desde cedo o levaram para os estudos humanísticos. Fez seus estudos superiores na Universidade de Paris. Em 1927, com apenas 19 anos, concluiu o curso de História e Geografia e em 1929 obteve o título de “Agregé” (título acadêmico francês no qual se “agregam” cursos), preparando-se para a carreira de professor do ensino superior.

Entre 1929 e 1931 estudou na Escola de Autos Estudos Hispânicos, onde desenvolve trabalho de pós-graduação, o que contribui para o seu desempenho como professor, carreira que se inicia em 1931 no Liceu Malherbe, em Caen, na Normandia. Com a experiência adquirida através dos estudos desenvolvidos na Espanha e com a atividade do magistério, Monbeig qualifica-se profissional e intelectualmente. Essa qualificação lhe credencia para ser convidado a fazer parte da missão de grandes nomes franceses que viriam para o Brasil trabalhar na recém fundada Universidade de São Paulo-USP. Aqui, ele viveria a sua grande aventura intelectual, pois vem para uma Universidade que foi a primeira pensada e estruturada de forma moderna e aberta à formação profissional e intelectual das novas lideranças que surgiram no Brasil a partir daquele momento.

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Contexto geral de implantação da USP e da Geografia

A Revolução de Trinta abriu perspectivas de expansão e diferenciação da economia brasileira colocando em xeque as velhas estruturas, entre elas as do ensino baseadas em faculdades isoladas e com preocupação apenas de formação profissional. As reflexões científicas, o desenvolvimento da pesquisa, a procura de novos rumos científicos e sociais vão encontrar guarita nas Universidades, principalmente a partir das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras.

As lideranças paulistas, sobretudo após o insucesso da Revolução de 1932, procuraram implantar as sementes da renovação educacional, visando a uma transformação modernizadora da mentalidade e dos objetivos das lideranças das classes mais favorecidas. Daí a fundação da Universidade, no estado mais rico da federação, e a contratação de professores estrangeiros para ministrarem as disciplinas em um país que não dispunha de quadros suficientes e qualificados.

Na nova Universidade a disciplina Geografia foi inicialmente confiada a Pierre Deffontaines, geógrafo francês que teve uma grande influência no desenvolvimento do ensino desta disciplina no Brasil e que permaneceria apenas um anão na Universidade, transferindo-se em seguida para o Rio de Janeiro. Pierre Deffontaines, brilhante e comunicativo, não só exerceu influência sobre seus alunos como também, reunindo-se a intelectuais paulistas como Caio Prado Júnior e Rubens Borba de Morais, fundou uma Associação dos Geógrafos Brasileiros, inicialmente paulista, por atuar apenas naquele estado.

Através de viagens, de pesquisas e de conferências Deffontaines despertou o interesse pela geografia e preparou o terreno para o trabalho que seria desempenhado, a partir de 1935, por seu colega e compatriota Pierre Monbeig. Este chegou a São Paulo muito jovem, com a experiência apenas do ensino secundário, deparando-se com a responsabilidade de substituir um mestre bem mais experiente e dinâmico. Não desanimou e continuou o trabalho do seu antecessor, tendo a oportunidade de contribuir para a sistematização e consolidação da geografia brasileira, por um longo período de 11 anos, já que a Segunda Guerra, rebentando na Europa, forçou-o a permanecer no Brasil, podendo consolidar o curso de Geografia da Universidade de São Paulo e expandir em dimensões nacionais a Associação dos Geógrafos Brasileiros (ANDRADE,1994).

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A Geografia de Monbeig

A matriz regional

A Geografia regional, à qual Monbeig se vincula, nasce do quadro propiciado pelo Tableau de la Géographie de la France (1903), de Paul Vidal de la Blache e das primeiras teses de doutoramento (Doctorat d’Etat), orientadas por ele mesmo. Essas teses fizeram

grande sucesso entre 1919 e 1945 e correspondiam à necessidade de se dar uma dimensão concreta ao inventário do espaço através de uma descrição minuciosa e tão exaustiva quanto possível dos fatos observados sobre o terreno.

A Geografia regional “à francesa” retrata perfeitamente a sua época, a de uma França majoritariamente rural e estável, onde as regiões parecem imutáveis e congeladas pelo tempo. A primazia dada à Geografia regional faz com que outros quadros de estudo, em escalas diversas, não sejam desenvolvidos pelos geógrafos desse período.

Considerada como uma individualidade, como uma personalidade geográfica, como alguma coisa única, e até mesmo excepcional, a região leva a Geografia a ser vista apenas como uma disciplina pouco preocupada em fazer generalizações e sem instrumental capaz de agrupar as similitudes espaciais a fim de criar princípios gerais.

A França do entre-guerras é um país ainda rural: em 1931, a população rural francesa representa 49% do conjunto da população do país e apenas 17 cidades ultrapassam os 100.000 habitantes. Com um conjunto de cidades pouco extensas e com crescimento lento, não é espantoso que os geógrafos franceses dessa época tenham desenvolvido a Geografia rural como especialidade dominante da Geografia francesa.

Nos anos 1920 e 30, essa Geografia é feita de maneira multidirecional: formas de utilização do solo, habitat rural, gêneros de vida, sistemas de cultura etc. Depois, sob a influência de historiadores como Marc Bloch, a análise da formação das paisagens agrárias vai constituir abordagem central da Geografia rural e abrir a via de uma outra especialidade: a Geografia histórica.

Os geógrafos franceses têm o sentimento de que dispõem de dois instrumentos com os quais seriam capazes de tratar de todos os problemas que se pode encontrar: a análise regional, para tomar contato com as realidades em nível mais local e mais modesto; e a análise de situação, que permite assinalar as relações existentes entre um ponto ou uma região e os espaços que a cercam.

É com esses instrumentos que eles exploram novos domínios: a Geografia agrária, a Geografia urbana, a Geografia política e, em certa medida, a Geografia econômica e tropical.

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Através da análise de situação, a consideração das dimensões sociais e políticas das distribuições geográficas progridem, mas sem grandes rupturas. A Segunda Guerra Mundial constitui uma ruptura essencial. As questões com as quais a sociedade francesa se depara passam a ser as da reconstrução do país, da modernização de uma economia que se retardou com relação às dos países vizinhos, da descolonização e dos problemas do desenvolvimento do Terceiro Mundo.

A vinda para o BrasilComo afirmamos anteriormente, Monbeig, por sua formação, pertence à geração do

entre-guerras. Ele vem para o Brasil com a bagagem simples que os geógrafos, naquele momento, sabiam manejar – o trabalho de campo, a análise regional, a análise de situação – e aplica esses conhecimentos no intuito de conhecer e estudar o Brasil. O tema de sua tese inscreve-se na tradição regional. Ele ensina os jovens geógrafos brasileiros a fazerem pesquisa de campo e tenta compreender o país analisando sua situação sob o tabuleiro político e econômico mundial.

Estando no Brasil, Monbeig toma consciência dos desafios que se colocam à Geografia mais cedo do que se permanecesse na Europa. Sendo sensível à exigência de desenvolvimento que se apresenta no Brasil do Estado Novo, ele: mensura o papel das cidades na exploração do espaço brasileiro e é tocado pela rapidez do desenvolvimento desse espaço; percebe que o instrumento que constitui a análise dos gêneros de vida não dá conta do essencial num país de povoamento recente, onde a economia está em reconstrução permanente.

Antes da Segunda Guerra Mundial, o método regional quase não havia sido aplicado fora da Europa e do mundo mediterrâneo, onde alguns geógrafos haviam produzido excelentes teses.

Por volta da Segunda Guerra Mundial, dois geógrafos franceses tentam aplicar a démarche regional no Novo Mundo: Pierre Monbeig, no Brasil, e Jean Gottmann, nos Estados Unidos. Virginia at mid-century é o resultado da tentativa de Gottmann, que é bastante consciente das insuficiências dos métodos que havia aprendido na França, um meio tão industrializado, urbanizado e com economia tão flexível quanto a do lado leste dos Estados Unidos. Ele continua, pois, a se interessar pela abordagem regional, no sentido mais amplo do termo aplicado ao Novo Mundo. Publica, então, em 1958, Megalopolis, que é o resultado dessa reflexão.

Pierre Monbeig se dá conta muito rapidamente da insuficiência das ferramentas de que dispõe e toma emprestado da Geografia americana a idéia de front pioneiro, zonas de expansão de fronteira agrícola, e constata que ela permite compreender uma parte da dinâmica brasileira, mas que o povoamento que caracteriza o front pioneiro é geralmente apenas provisório.

É através da evidência do papel da rede ferroviária – a rede ferroviária que ainda não existia, e começa efetivamente por São Paulo, no Brasil teve papel fundamental para

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a circulação de pessoas e mercadorias – e das cidades de São Paulo, em particular, que Monbeig chega a fazer sentir a especificidade desse espaço brasileiro. Ele permanece, em certo sentido, fiel ao espírito regional, mas apelando para um arsenal de métodos que ele teve de improvisar durante sua estada no Brasil.

Trabalho de campo e paisagemUma das originalidades das geografias da primeira metade do século XX é demarcada

pelo trabalho de campo.

Em uma época em que os estudos de Letras e de Ciências Sociais eram exclusivamente livrescos, o contato com o campo dava à Geografia uma forte especificidade. O romancista Julien Gracq, que era inicialmente – sob seu verdadeiro nome, Jean Poirier – um geógrafo, conta com emoção suas primeiras experiências de campo, sob a batuta de Martonne, por volta dos anos 1930.

Para geógrafos como Monbeig, o campo constituía verdadeiramente uma das especificidades essenciais da disciplina. Poderíamos mesmo falar, em relação aos geógrafos de sua geração, de uma verdadeira mística do campo – não existiria trabalho científico em Geografia sem trabalho de campo. A mística do campo caminhava junto com a da unidade da Geografia. Sobre o terreno, o que a paisagem revela é uma mistura de traços físicos, de traços ligados à vida, à vegetação, à vida animal e, numa certa medida, aos solos e às marcas da ação humana. O geógrafo deveria, idealmente, ser capaz de abordar todos esses aspectos.

Monbeig distingue-se dos geógrafos que trabalham então na França pela atenção que dá ao meio como realidade viva. Ele insiste no papel da floresta e no cortejo de doenças que lhe são associadas e sublinha, ainda, os problemas que causa o esgotamento dos solos. É um dos primeiros a compreender que, se os geógrafos podem continuar a fazer pesquisa, ao mesmo tempo, no domínio físico e no domínio humano, eles devem guardar presente no espírito o papel que o meio tem na vida dos homens.

A exemplo de seus mestres e dos geógrafos de sua época, Monbeig perseguia dois objetivos: encontrar um “terrain” e ensinar Geografia. Inicialmente, ele acreditava que o seu “terrain” seria a Espanha, mais especificamente as ilhas Baleares, no entanto, as circunstâncias o trouxeram ao Brasil, país que lhe abria várias possibilidades para o trabalho de campo e para a implantação de uma Geografia “científica” numa Faculdade em processo de criação.

Não há qualquer dúvida de que esse estudioso foi formado na tradição das grandes teses regionais da Escola Francesa de Geografia. No entanto, devemos reconhecer que sua obra vai além da simples descrição empírica: chega a um nível explicativo geral e constantemente enriquece a disciplina introduzindo elementos novos para a discussão geográfica, como foi o caso, em sua tese, da pequena discussão que fez sobre a psicologia bandeirante, a qual passou quase despercebida (ou foi propositadamente deixada de lado) pela banca examinadora, o que provocou certa indignação por parte do examinado. Monbeig considera que as “atitudes do

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espírito” constituem um elemento fundamental e essencial para se compreender os modos de ocupação do espaço e, nesse sentido, devem ser objeto de pesquisa na Geografia. Para ele, os modos de pensar e os modos de vida caminham juntos, portanto, devem ser estudados como um par. Monbeig escapa, assim, da crítica feita à tradição das monografias regionais, acusadas de negligenciar a interação dos elementos explicativos.

Com o passar do tempo e com a influência que sofre do “terrain” que adota para desenvolver as suas pesquisas, a sua inserção na tradição da Escola Francesa exprime-se não somente na importância que dá à história como elemento explicativo, mas também pela descrição minuciosa da paisagem e dos homens, chamando a atenção, principalmente, para o fato de que a caracterização dos tipos e personagens da sociedade local é de fundamental importância para a análise geográfica.

Para Monbeig, “o campo de estudo do geógrafo é a paisagem”. O domínio do geógrafo é, primeiramente, o que se pode ver na superfície da Terra: as rochas, os solos, as águas, o relevo, os vegetais, os animais, os homens. Mas paisagem é também o que se pode sentir: a atmosfera, os ventos, os cheiros e odores. O geógrafo é aquele que ama viajar, olhar em torno dele mesmo, farejar odores, sentir a atmosfera; é também o homem do “corpo-a-corpo”, sempre pronto para interrogar as pessoas e para ouvi-las.

Indiscutivelmente, a noção de paisagem comporta pontos frágeis. Costuma-se reduzir a paisagem à análise do visível. Sabemos que algumas realidades escapam à visão, mas cabe ao geógrafo perceber na paisagem fatos da subjetividade e da cultura, assim como as estruturas sociais. Para Monbeig, a paisagem é o reflexo das civilizações e evolui com estas.

Como a cultura de um grupo evolui, sua paisagem também evolui: o mesmo suporte natural viu sucederem-se paisagens diferentes, sendo cada uma reflexo da civilização do grupo em dado momento de sua história. Assim a paisagem não é mais considerada como produto da geologia e do clima, mas como reflexo da técnica agrícola ou industrial, da estrutura econômica ou social [...] (MONBEIG, 1940, p. 238-239).

O entendimento do autor é de que o geógrafo deve desenvolver a visão de observador face à paisagem. Essa observação dar-se-ia através da escolha que ele faz entre os objetos presentes na superfície do globo. Sua atenção deve voltar-se, por exemplo, na direção daqueles elementos que são bastante grandes para serem claramente visíveis: os movimentos do terreno, córregos e riachos, rios etc.; ele leva em consideração as plantas – mas percebidas em seu conjunto –, estepes, pradarias, florestas, charneca, matagal e outras formas de vegetação silvestre. Uma grande árvore chama sua atenção apenas se estiver isolada e servir de sinal na paisagem. O geógrafo nota as culturas, as fazendas e suas construções, as vilas e as cidades.

Como sabemos, a especificidade da Geografia é caracterizada pela tensão entre as ciências da natureza e as ciências humanas. A Geografia que se constitui no fim do século XIX e que é praticada durante cerca de 60 anos sob o modelo da Escola Francesa de Geografia desenvolve uma estratégia epistemológica do misto, ou melhor, do entre-dois, da passagem, entre o físico e o social.

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Monbeig, sem nenhuma dúvida, entende a Geografia como essa tensão, como esse misto entre sociedade e natureza/entre senso comum e ciência, como é possível perceber no trecho que segue:

Ver como a paisagem é reflexo da civilização, tal é uma das principais tarefas do geógrafo; é um trabalho de análise que ele precisa fazer para distinguir o que provém do solo, do clima e também da técnica agrícola, da organização social. A análise da paisagem apresenta-se como um jogo de quebra-cabeças; mas, enquanto o jogo se torna logo fastidioso, é apaixonante o estudo da paisagem: apaixonante porque nos põe em contato com a humilde tarefa quotidiana e milenar das sociedades humanas; ela mostra o homem lutando sem cessar para aperfeiçoar-se (MONBEIG, 1940, p. 248).

A prática vidaliana de trabalho de campo e a incorporação em suas pesquisas mostram muito bem como o “terrain”, em certa medida, substitui o livro, o texto e, até mesmo, o arquivo histórico. Ele adquire um valor heurístico fundamental, visto que constitui o substrato no qual se lê a relação homem/meio, que se torna, a partir do início do século XX, a problemática explícita da Geografia humana francesa. Desde então, as manifestações elementares da vida, as formas de trabalho, dos deslocamentos, do habitat, da vestimenta e, mesmo, dos lazeres são consideradas como sinais das interações entre as sociedades locais e o meio ambiente. São elementos do “gênero de vida”, forma particular de uma ecologia específica, que Vidal transforma em um conceito fundamental da Geografia humana.

Geografia e culturaA idéia de que o papel da Geografia é o de localizar, descrever e comparar é um lugar

comum da Geografia da época. Monbeig retoma isso à sua maneira e incorpora à análise os elementos da cultura. Dessa maneira, caminha em direção à idéia de que a Geografia não estuda relações de causalidade simples, mas recíprocas.

De maneira geral, a Geografia francesa, tal qual se desenvolveu no início do século XX, mobilizava instrumentos que se adaptavam bem às realidades do mundo pré-industrial, mas não eram capazes de dar conta de formas de organização do espaço que resultavam da modernidade.

Monbeig é sensível aos limites da abordagem regional e do instrumental de análise geográfico da época, o que o leva constantemente a buscar respostas em dimensões não consideradas pela Geografia vidaliana. Uma dessas buscas é o interesse pelas questões da cultura.

O interesse pelas dimensões culturais da realidade geográfica é tão velho quanto pela Geografia humana. Na primeira metade do século XX, no entanto, a concepção morfológica ou naturalista, que prevalecia na disciplina, fazia com que se retivesse da cultura apenas seus aspectos materiais – lugares de culto, em matéria de religião, e nada de doutrinas, da fé, das práticas etc. Monbeig, aliás, lastima o fato de não se levar em consideração todas as dimensões da vida religiosa. É um dos aspectos pelos quais ele se mostra o mais moderno.

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A curiosidade pelos fatos culturais não deixa de mover os trabalhos desse homem de ciência e inquieto. Ele parece antecipar o que é idéia dominante hoje: que não há fatos ecológicos, demográficos, sociais, econômicos, políticos que não estejam situados num certo contexto cultural. Monbeig parece sempre querer construir uma Geografia a partir de pressupostos mais críticos que os de seu tempo. A cena geográfica monbeigana não é concebida como sendo estática; ele a concebe como um feito de uma pluralidade de indivíduos cujas trajetórias se inscrevem no espaço. O que se apreende não é a paisagem, mas uma série de paisagens superpostas, uma sucedendo à outra. Para compreender essas paisagens, essa realidade geográfica, é necessário partir dos dados de base, que constituem os indivíduos (ou agrupamentos) e as trajetórias que eles descrevem.

Qual o contexto em que se desenvolve a Geografia no Brasil e qual a importância de Pierre Monbeig?

Mostre de que maneira a vinda para o Brasil contribui para que Monbeig mude a sua maneira de fazer Geografia.

sua

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Resumo

Leitura complementarAB’SÁBER, Aziz. Pierre Monbeig: a herança intelectual de um geógrafo. Estudos Avançados, v. 8, n. 22, p. 221-232, 1994.

Neste artigo, o também geógrafo Aziz Ab’Sáber faz uma grande homenagem póstuma ao seu mestre Monbeig, mostrando como ele era um professor diferenciado e que marcou, além da Geografia brasileira, a memória de seus discípulos: “difícil relembrar a figura do bom, seguro e inteligente mestre que adotou o Brasil como sua segunda pátria, até o fim de seus dias”. Além da homenagem, Ab’Sáber faz uma retrospectiva que vai da chegada de Monbeig ao Brasil, passando por suas atividades extraclasse, sua carreira acadêmica, o exemplo que foi como intelectual e sua preocupação com os estudos geográficos no Brasil.

SALGUEIRO, Heliana Angotti (Org.). Pierre Monbeig e a geografia humana brasileira. Bauru: EDUSC, 2006.

Coletânea que reúne ensaios de historiadores e geógrafos brasileiros e franceses de renome internacional em torno da obra de Pierre Monbeig. Os autores realçam o caráter fundador e antecipatório da obra de Monbeig que, já em sua época, colocava em evidência complexos problemas vividos por nós até hoje. Os ensaios trazem ainda inúmeras sugestões de pesquisas.

A aula traz um breve histórico da trajetória pessoal e intelectual de Pierre Monbeig, mostrando em que contexto este chega ao Brasil; a influência do pensamento vidaliano em sua formação; e como a sua estada e contato com a Geografia de um país em formação – o Brasil – influenciaram a sua forma de pensar.

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Auto-avaliaçãoElabore um pequeno texto sobre a importância de Pierre Monbeig para a Geografia brasileira, considerando:

a) que a Geografia no Brasil surge no contexto de implantação das universidades na década de 1930, permitindo a vinda da missão francesa para a estruturação acadêmica das mesmas;

b) que, no caso específico da Geografia, a vinda de Pierre Monbeig é um marco;

c) que é fundamental entender que esse geógrafo é filho da Escola Francesa de Geografia e traz consigo uma bagagem intelectual calcada no pensamento de Paul Vidal de la Blache (veja as aulas 10 – A Geografia vidaliana e o seu contexto – e 11 – A abordagem regional vidaliana), mas que ao chegar ao Brasil percebe a insuficiência dessa abordagem e, embasado em largo trabalho de campo, cria novos conceitos para dar conta da nova realidade.

ReferênciasANDRADE, Manuel Correia de. Pierre Monbeig e o pensamento geográfico no Brasil. Boletim Paulista de Geografia, n. 72, p. 63-82, 1994.

DANTAS, Aldo. Pierre Monbeig: um marco da geografia brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2005.

MONBEIG, Pierre. Ensaios de geografia humana brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1940.

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Anotações

Aula 14  Introdução à Ciência Geográfica

Ementa

n Aldo Dantas

n Tásia Hortêncio de Lima Medeiros

A construção do conhecimento geográfico. A institucionalização da geografia como ciência. As escolas do pensamento geográfico. A relação sociedade/natureza na ciência geográfica. O pensamento geográfico e seu reflexo no ensino. A geografia brasileira. Atividades práticas voltadas para a aplicação no ensino.

Introdução à Ciência Geográfica – GEOGRAFIA

Autores

Aulas

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01 O saber geográfico

02 A ação humana

03 A Geografia na Antiguidade

04 A Geografia na Idade Média

05 Os tempos modernos

06 Espaço e modernidade

07 A institucionalização da Geografia

08 A Geografia de Humboldt e Ritter

09 A Geografia ratzeliana e seu contexto

10 A Geografia vidaliana e o seu contexto

11 A abordagem regional vidaliana

12 Os movimentos de renovação

13 A institucionalização da Geografia no Brasil

14 O nascimento da Geografia científica no Brasil

15 Milton Santos: o filósofo da técnica