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TEORIA POLÍTICAUNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ
VICE-REITORIA DE GRADUAÇÃO – VRG
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – CEaD
Coleção Educação a Distância
Série Livro-Texto
Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil2008
Dejalma Cremonese
TEORIAPOLÍTICA
TEORIA POLÍTICA
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2008, Editora UnijuíRua do Comércio, 136498700-000 - Ijuí - RS - BrasilFone: (0__55) 3332-0217Fax: (0__55) 3332-0216E-mail: [email protected]
Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-adjunto: Joel Corso
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Designer Educacional: Liane Dal Molin Wissmann
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroestedo Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Catalogação na Publicação:Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
C915t Cremonese, Dejalma.
Teoria política / Dejalma Cremonese. – Ijuí : Ed. Unijuí,2008. – 220 p. – (Coleção educação a distância. Série li-vro-texto).
ISBN 978-85-7429-672-2
1. Política. 2. Estado. 3. Pensamento político. 4. Cida-dania. 5. Política brasileira. I. Título. II. Série.
CDU : 32 321
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TEORIA POLÍTICA
SumárioSumárioSumárioSumário
CONHECENDO O PROFESSOR ..................................................................................................7
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................9
UNIDADE 1 – O CONHECIMENTO É PRÓPRIO DO HOMEM ..........................................15
Seção 1.1 – O Homem, o Conhecimento e a Ideologia ............................................................15
1.1.1. O conhecimento empírico .............................................................................17
1.1.2. O homem da palavra sagrada .......................................................................18
1.1.3. O homem do pensamento mitológico ..........................................................18
1.1.4. O mito nosso de cada dia ..............................................................................19
1.1.5. O homem do pensamento filosófico.............................................................21
Seção 1.2 – Visões sociais de mundo ..........................................................................................22
1.2.1. A ideologia e a utopia ....................................................................................22
UNIDADE 2 – CONCEPÇÕES GERAIS SOBRE O ESTADO .................................................27
Seção 2.1 – Etimologia da palavra Estado ................................................................................27
Seção 2.2 – Diferentes entendimentos sobre o Estado .............................................................28
Seção 2.3 – Os elementos do Estado ..........................................................................................31
Seção 2.4 – O Estado e o poder ...................................................................................................35
Seção 2.5 – A função do Estado ..................................................................................................37
Seção 2.6 – Justificativas teóricas do Estado ............................................................................38
UNIDADE 3 – O PENSAMENTO POLÍTICO
DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS E ORIENTAIS ........................................41
Seção 3.1 – O Estado primitivo ...................................................................................................41
Seção 3.2 – O Estado oriental .....................................................................................................43
3.2.1. Exemplos de teocracias orientais .................................................................48
TEORIA POLÍTICA
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UNIDADE 4 – O PENSAMENTO POLÍTICO DA SOCIEDADE GREGA .............................59
Seção 4.1 – Os gregos: precursores da política e da democracia ............................................59
4.1.1. A etimologia da palavra política ..................................................................61
4.1.2. A origem do conceito democracia ................................................................65
4.1.3. Uma democracia escravista ...........................................................................70
Seção 4.2 – A origem da Filosofia na Grécia .............................................................................73
4.2.1. A Filosofia é “filha” da pólis .........................................................................73
4.2.2. Os pré-socráticos ............................................................................................74
4.2.3. A contribuição dos sofistas na construção da política grega ..................76
4.2.4. O método socrático ........................................................................................78
4.2.5. Platão e a busca do Estado ideal .................................................................80
4.5.6. A cidade como realidade perfeita em Aristóteles .......................................83
UNIDADE 5 – O PENSAMENTO POLÍTICO DA SOCIEDADE ROMANA .........................89
Seção 5.1 – A Política, o Direito e o Exército ............................................................................90
Seção 5.2 – Marco Túlio Cícero ..................................................................................................93
Seção 5.3 – Políbio .........................................................................................................................94
UNIDADE 6 – O PENSAMENTO POLÍTICO DA IDADE MÉDIA ........................................97
Seção 6.1 – O cristianismo primitivo ..........................................................................................98
Seção 6.2 – O fim do Império e a Idade Média ...................................................................... 100
Seção 6.3 – Santo Agostinho .................................................................................................... 102
Seção 6.4 – O fim do pensamento medieval e o início do Renascimento .......................... 104
UNIDADE 7 – MAQUIAVEL E O PENSAMENTO POLÍTICO RENASCENTISTA ........ 109
Seção 7.1 – Maquiavel: contexto histórico ............................................................................. 110
Seção 7.2 – Estrategista da arte da guerra ............................................................................. 113
Seção 7.3 – Fundador da Ciência Política Moderna ............................................................. 115
Seção 7.4 – A natureza humana ............................................................................................... 118
Seção 7.5 – A questão do Estado ............................................................................................. 121
Seção 7.6 – O estilo das obras de Maquiavel ......................................................................... 122
Seção 7.7 – Síntese das idéias de O Príncipe ......................................................................... 123
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TEORIA POLÍTICA
UNIDADE 8 – A DEFESA DAS IDÉIAS ABSOLUTISTAS .................................................. 127
Seção 8.1 – O Leviatã: o deus mortal de Thomas Hobbes .................................................... 127
UNIDADE 9 – A DEFESA DAS IDÉIAS LIBERAIS ............................................................. 141
Seção 9.1 – O liberalismo de Locke: o cidadão com direitos naturais ................................ 142
Seção 9.2 – O Estado democrático de Rousseau ................................................................... 147
Seção 9.3 – A democracia moderna: filha do Estado Liberal ............................................... 149
Seção 9.4 – A sociedade civil e o Estado ................................................................................. 152
Seção 9.5 – O direito à resistência: a tese de Hume.............................................................. 155
UNIDADE 10 – PARTICIPAÇÃO E INSTITUIÇÕES:
O Debate da Teoria Democrática Contemporânea .................................. 159
Seção 10.1 – Participacionistas e institucionalistas .............................................................. 159
Seção 10.2 – Participação na obra A Democracia na América de Aléxis de Tocqueville .... 162
UNIDADE 11 – A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL ...................... 169
Seção 11.1 – Brasil colonial: ausência de direitos e de poder público ................................ 171
11.1.1 A “conquista” da terra brasilis .............................................................. 171
11.1.2. A escravidão ............................................................................................ 172
11.1.3. O analfabetismo ..................................................................................... 175
Seção 11.2 – A Independência e a República no Brasil: participação incipiente ............. 176
11.2.1. Um Estado sem nação ........................................................................... 176
11.2.2. Uma República sem povo ...................................................................... 179
Seção 11.3 – Os vícios das instituições e da cultura política brasileira ............................. 180
Seção 11.4 – Os direitos sociais emergem quando os direitos civis e políticos fenecem .. 184
UNIDADE 12 – VICISSITUDES DA POLÍTICA BRASILEIRA ........................................... 189
Seção 12.1 – O caso Renan e a degeneração da política ..................................................... 189
Seção 12.2 – Maquiavel: o “Old Nick” anda solto! .............................................................. 191
Seção 12.3 – (In) fidelidade partidária .................................................................................... 192
Seção 12.4 – Reforma política: entraves e perspectivas ........................................................ 193
Seção 12.5 – Seria o fim do petismo? ....................................................................................... 195
TEORIA POLÍTICA
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Seção 12.6 – O lulismo é maior que o petismo ....................................................................... 197
Seção 12.7 – Para que reforma agrária? .................................................................................. 199
Seção 12.8 – Os desafios da democracia na América Latina ............................................... 200
Seção 12.9 – Mais Estado e menos mercado .......................................................................... 202
Seção 12.10 – O caráter individualista e pouco solidário do brasileiro ............................. 204
Seção 12.11 – O Capital Social: um ingrediente a ser considerado ................................... 205
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 209
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TEORIA POLÍTICA
Sou Dejalma Cremonese, tenho 39 anos, nasci no dia 7 de
dezembro de 1968 no Centro-Serra do Rio Grande do Sul, mais
precisamente no município de Arroio do Tigre (a uma distância de
243 Km de Porto Alegre). Sou o décimo terceiro filho de uma famí-
lia de pequenos agricultores e realizei meus primeiros estudos (En-
sino Fundamental) em uma escola interiorana da rede pública
(1976-1983). A continuidade dos estudos só foi possível graças ao
meu ingresso no Seminário Diocesano de Santa Maria – RS, onde
concluí o Ensino Médio, mais o curso propedêutico (1984-1987).
Continuando os estudos, graduei-me em Filosofia (Licenciatura e
Bacharelado) pela Fafimc de Viamão – RS (1988-1990). Ao retornar
a Santa Maria, cursei ainda 2 anos do curso de Teologia (1991-
1992) no Seminário Máximo Palotino. Minha Pós-Graduação foi
em “Pesquisa Científica” (nível de Especialização) na FIC (1993-
1994). Logo após iniciei o Mestrado em Filosofia pela UFSM, o
qual concluí em 1997. Quase uma década depois, em 2006, con-
cluí o Doutorado em Ciência Política pela UFRGS. Minha atua-
ção profissional iniciou em 1994 como professor nas turmas
secundaristas do Colégio Sant’Anna, em Santa Maria. Como pro-
fessor universitário, lecionei no Ensino de Graduação da FIC (hoje
Unifra) em Santa Maria; também atuei como professor substituto
na UFSM no ano de 1995; fui professor da Universidade de Cruz
Alta (Unicruz) no período de 1997-2002. Desde 1998 exerço as
atividades acadêmicas na Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Nesta Universidade, sou
professor Associado 1 (40 horas), atuando no Programa de Mestrado
em Desenvolvimento na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e
Desenvolvimento. Atuo também no Departamento de Ciências
Sociais da mesma Universidade nos seguintes componentes
Conhecendo o professorConhecendo o professorConhecendo o professorConhecendo o professor
TEORIA POLÍTICA
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curriculares: Ciência Política, Teoria Política, Teoria do Estado e
Sociedade, Política e Cultura. O meu eixo de pesquisa está centrado
nos temas da Democracia (teoria e processos democráticos), Cida-
dania (participação e inclusão social), Cultura Política (Capital
Social) e Desenvolvimento. Para maiores informações, disponibilizo
um site na Internet no seguinte endereço:
<www.capitalsocialsul.com.br>. Para contato direto informo o meu
endereço de e-mail: [email protected]
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TEORIA POLÍTICA
IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução
O homem é, por natureza, “um animal social e político” (zoon politikon). “Aquele que
não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou é
um bruto (selvagem)”, são afirmações atribuídas ao filósofo grego Aristóteles e encontram-
se na obra A Política (2002). Também é lapidar, neste sentido, a afirmação da filósofa Hannah
Arendt, constante na obra A condição humana (1995, p. 31), enaltecendo o caráter social e
político do homem: “Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida de um eremita em meio à
natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a
presença de outros seres humanos”. Essas citações ressaltam que nenhum de nós é uma
ilha, que necessitamos e carecemos da presença do outro para a nossa realização e, mais
ainda, toda ação do homem depende, inexoravelmente, da presença de outros.
Seguindo o pensamento de Aristóteles, não basta a convivência em sociedade para
caracterizar nosso aspecto social e comunitário, pois desta forma também vivem as formigas
e as abelhas. O que, então, pode nos diferenciar dos outros seres do mundo? Aristóteles
aponta para a conotação racional do homem, a utilização peculiar do pensamento (logos)
para a construção e transmissão do conhecimento. Adverte o filósofo que “todos os homens
têm o desejo de saber”, pois só o homem conhece e tem consciência de si mesmo.1 Além do
aspecto racional, o homem diferencia-se dos demais seres pelo senso ético (bem e mal, certo
e errado), senso estético (culto ao belo) e, o mais importante de todos, por viver na cidade
(pólis), pela politicidade (vida cívica).
O homem foi feito, assim, para a vida da cidade (bios politikós, derivado de pólis, a
comunidade política), ou seja, o fim último do homem é viver na pólis, onde se realiza como
cidadão (politai), manifestando a sua natureza, o termo de um processo de constituição de
sua essência, a sua natureza. Então, é próprio do homem não apenas viver em sociedade,
mas viver na “politicidade”. A verdadeira vida humana deve almejar a organização política,
que é uma forma superior e até oposta à simples vida do convívio social da casa (oikia) ou de
comunidades mais complexas. A partir da compreensão da natureza do homem, determina-
1 Conferir Aristóteles (1969, I, 980a 1-2).
TEORIA POLÍTICA
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dos aspectos da vida social adquirem um estatuto essencialmente político, tais como as
noções de governo, de dominação, de liberdade, de igualdade, do que é comum, do que é
próprio.
Por fim, é possível perceber que a reflexão de Aristóteles sobre a política não se separa
da ética, pois a vida individual está imbricada na vida comunitária; esta é a razão pela qual
os indivíduos se reúnem em cidades (e formam comunidades políticas), não apenas para
viverem em comum, mas para viver “bem” ou para a “boa vida”. O fim da cidade, portanto,
é não só assegurar aos cidadãos a vida e sua conservação (zein), mas o viver bem (euzein)
(Prélot, 1973, Livro 1, p. 135). Deste modo, a vida política destina-se a garantir a qualidade
e a perfeição da vida. Para que isso ocorra, é necessário que os cidadãos vivam o bem co-
mum, em conjunto ou por intermédio dos seus governantes. Se acontecer o contrário (a
busca apenas do interesse próprio), dá-se a degeneração do Estado.
Este livro-texto serve como uma introdução ao pensamento político ocidental. Preten-
de ser um apanhado sobre os pensadores clássicos da Filosofia e da Ciência Política. Expõe,
de forma sucinta, as teorias mais significativas sobre o tema em questão. Mesmo o leitor
com pouco contato com este componente curricular verificará que muitas discussões ocorri-
das, algumas há mais de dois mil anos, ainda contribuem muito para a compreensão da
sociedade e do mundo contemporâneo. Isso porque fazemos parte da cultura ocidental.
Carregamos, ainda, muito das civilizações passadas, principalmente dos gregos e romanos.
Sem contar a contribuição de mais de dois mil anos de religião cristã sobre nós. Conheça, a
seguir, um resumo sobre os assuntos que cada Unidade abordará.
A Unidade 1 trata da questão do homem e das diferentes formas de conhecimento:
conhecimento empírico, mítico e religioso e filosófico-científico. Este capítulo trata ainda
das visões sociais de mundo: ideologia e utopia. Trata-se de um apanhado das formas de
conhecimento humano e, ainda, da concepção clássica de ideologia e utopia. Optou-se por
abordar o tema ideologia neste capítulo para que se perceba que nos influenciamos por
nossos valores e outros interesses que, aparentemente, não fazem parte do objeto a ser co-
nhecido: interesses econômicos, políticos, etc. É um capítulo fundamental para a compreen-
são das idéias e temas dos próximos itens.
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TEORIA POLÍTICA
A Unidade 2 discorre sobre as concepções gerais do Estado. Neste capítulo você co-
nhecerá a etimologia do termo e dos diferentes entendimentos sobre o Estado: seus elemen-
tos, forma de poder, funções, além das relações de classes em seu interior. Há, também, uma
rápida exposição sobre os quatro paradigmas que justificam o Estado. O capítulo é uma
introdução às diversas teorias que justificam o Estado, dando ênfase à teoria contratualista,
pois seus autores serão estudados em capítulos posteriores.
Na terceira Unidade você conhecerá um pouco mais sobre a organização política das
sociedades primitivas. Ela começa abordando uma teoria sobre o Estado primitivo, logo a
seguir descreve o Estado oriental e o papel da teocracia, chegando às características do
poder do Estado antigo. Importante destacar que a fundamentação teórica deste capítulo
ampara-se, basicamente, nos argumentos das Lições sobre a Filosofia da História, do filósofo
alemão G. W. Friedrich Hegel.
A Unidade 4 trata do pensamento político da sociedade grega clássica. Nele você
estudará a etimologia do termo política, além de conhecer uma melhor elucidação do con-
ceito de democracia. Por exemplo, a “democracia escravista” dos gregos. Também será abor-
dada a origem da Filosofia: pré-socráticos, Sócrates e os sofistas, Platão e Aristóteles. Esta
Unidade deve ser bem compreendida para que se note a influência dessa civilização sobre o
pensamento ocidental e, também, como os gregos influenciaram os romanos, tema da uni-
dade seguinte.
A quinta unidade versa sobre o pensamento político da sociedade romana. Você des-
cobrirá que a idéia de que os romanos apenas assimilaram a cultura grega não se confirma.
Os romanos, por exemplo, deram grande contribuição ao Direito moderno e à política mo-
derna, por meio das teorias e idéias dos grandes pensadores. Você constatará ainda que com
o declínio do Império Romano o Ocidente vê surgir o cristianismo primitivo.
A Unidade 6 tem por objetivo analisar o pensamento político da Idade Média, e a
grande influência da Igreja neste período, em todos os setores da vida. Nesta Unidade você
conhecerá, também, um pouco do pensamento dos doutores da Igreja, principalmente San-
to Agostinho, e como o autor do livro Cidade de Deus e Cidade dos Homens aproveitou e
adaptou para o pensamento cristão a teoria de Platão. Por fim, você fará o estudo a respeito
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do pensamento cristão, que só perderá influência no século 15, com as pesquisas experi-
mentais, principalmente de Copérnico e Galileu, e conhecerá alguns pensadores do período
renascentista.
Na Unidade seguinte o tema é o pensamento político no período renascentista. Você
compreenderá por que este período foi denominado de Renascimento, o que os pensadores
da época buscavam e contra o que “se opuseram”. A Unidade também trata da teoria de um
dos maiores pensadores políticos da História: Maquiavel. É por meio dessa leitura que você
compreenderá por que a teoria política é dividida em antes e depois de Maquiavel. É impor-
tante lembrar que Maquiavel viveu num período de reunificação dos Estados, e a ele tam-
bém interessava a união da Itália, para que se tornasse um Estado forte.
A oitava Unidade aborda o Estado absolutista moderno. Basicamente é uma exposi-
ção sobre o maior teórico do Estado absolutista: Thomas Hobbes. A partir do estudo desta
unidade você terá condições de definir o que é o estado de natureza para este pensador, por
que Hobbes é um contratualista, qual a sua justificativa para o Estado. Hobbes viveu num
período conturbado da Inglaterra, e sua preocupação maior era com a melhor forma de
governo. O pensamento de Hobbes choca-se com a teoria liberal.
Na Unidade 9 você conhecerá os diferentes entendimentos sobre o liberalismo, quem
são seus maiores teóricos, quais as diferenças entre o pensamento de John Locke e de
Rousseau. Por que esses pensadores, à semelhança de Hobbes, são chamados de
contratualistas, o que significa o estado de natureza para esses pensadores e o que enten-
dem sobre sociedade civil. Note que o pensamento liberal é o que vai comandar a política
moderna. Até hoje esses autores são referências para o Estado moderno. É a partir desta
unidade que você perceberá a importância, por exemplo, do pensamento de Rousseau para
os debates sobre participação popular, democracia e cidadania.
A Unidade 10 analisa as diferenças entre duas escolas de pensamento, referentes à
democracia participativista e à democracia institucionalista. Você será apresentado aos
maiores defensores dessas duas escolas de pensamento e compreenderá por que esse tema
tem tanta relevância para os debates atuais em torno da melhor forma de democracia.
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TEORIA POLÍTICA
A Unidade 11 aborda inicialmente abordando o tema da cidadania em relação ao
nosso pais; como o tema da cidadania foi tratado nos diferentes períodos da história do
Brasil. É realizado um percurso histórico desde o Brasil Colônia, passando pela Independên-
cia e República até os dias atuais. Concluindo a Unidade você encontrará uma distinção
entre direitos civis e direitos sociais.
A última Unidade traz um olhar crítico da política brasileira atual. Você acompanhará
o quadro político brasileiro, os políticos de hoje e seus comportamentos perante o país. Te-
mas recorrentes, como ética na política, fidelidade partidária, reforma política, partidos, pre-
sidente da República, reforma agrária, serão abordados. Enfim, temas que não saem dos
noticiários. Assuntos que, pelo fato de estarmos habituados a eles – e, talvez, por isso mes-
mo, pelo hábito –, não damos a devida atenção.
Lembrando sempre que este livro serve de introdução ao tema da política ao tratar da
questão do Estado, da democracia e da cidadania. Para quem desejar aprofundar mais o
conhecimento a respeito destes temas, pode recorrer às referências bibliográficas disponíveis
na última parte deste livro. Que a leitura seja proveitosa não só para a formação acadêmica,
mas que contribua para todos que se interessam pelo tema da política: das origens ao deba-
te atual.
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TEORIA POLÍTICA
Unidade 1Unidade 1Unidade 1Unidade 1
O Homem, o Conhecimento e a Ideologia
Seção 1.1
O conhecimento é próprio do homem
Já Aristóteles (Metafísica, 1969, I, 980a 1-2) expressava que “todos os homens têm o
desejo natural de conhecer”, que é próprio do homem a descoberta, e a curiosidade sobre as
coisas faz com que o mesmo se realize no mundo. O homem, como ser-no-mundo, difere-se
dos demais animais e das coisas pelo seu aspecto pensante: conhece e tem consciência de si
mesmo. Ao pensar ele desoculta, desvela o sentido das coisas, se aproxima da essência, do
âmago, do ser das coisas. Além de conhecer, o homem tem a capacidade de criar e inovar,
por isso busca incansavelmente o novo, possibilitando o progresso com o avanço das ciências
e das novas tecnologias. Ontem, o homem vivia isolado nas cavernas, sofrendo as mais
variadas privações; hoje, vive organizado em sociedade, usufruindo comodidades, organiza-
do politicamente, criando e inovando tecnologias. E mais, avanços na aviação e na
informática fazem do homem um ser global: o mundo tornou-se uma pequena aldeia. Um
exemplo disso é a rede mundial de computadores (Internet), que possibilitou a aproximação
entre as pessoas das mais variadas partes do mundo.1
É notório também que, com o passar do tempo, o homem foi acumulando conhecimen-
to. Sabemos hoje muito mais do que os nossos antepassados sabiam graças ao espírito ino-
vador do homem e ao seu espírito de conquista. Se o homem pensa, cria o conhecimento,
quer dizer que é capaz de pensar por si mesmo, em síntese: que pode decidir o seu destino e
os rumos da humanidade.
1 Este primeiro capítulo foi inspirado nas aulas do saudoso professor doutor Dom Edmundo Luís Kunz, quando tive a oportunidade deconhecê-lo e ser seu aluno na Faculdade de Filosofia Imaculada Conceição de Viamão (RS) (primeiro semestre de 1988). Foi a últimaturma a que Dom Edmundo ministrou suas aulas. Logo após veio a falecer, no dia 12 de setembro do mesmo ano. Conferir, igualmente,Kunz (1986).
TEORIA POLÍTICA
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Pensar é buscar o âmago das coisas, é se apossar da essência
do objeto, do ser (aquilo que há de mais profundo). Para os filóso-
fos gregos o ser era denominado de logos,2 a alma das coisas, o
fundamento dos seres, o recolhimento do múltiplo na unidade.
Assim o homem desde o princípio se perguntou sobre as ori-
gens das coisas: de onde vem tudo e qual o elemento comum que
tudo constitui. Os gregos chamaram este princípio fundamental
de arché, princípio imperante de onde tudo nasce ou de que tudo
vem a ser.3 Nem sempre, contudo, foi assim, pois houve épocas
em que a busca da explicação para a origem das coisas não se
dava pela razão (logos). No princípio as explicações para as ques-
tões naturais (mundo) e existenciais da vida humana se davam
pelas idéias religiosas ou por narrativas mitológicas.
A passagem de um tipo de conhecimento para outro fez com
que a imagem do homem também passasse por transformações
(de uma mentalidade para outra). Essa mudança, entretanto, não
se deu de uma hora para outra. Longos foram os períodos de trans-
formações, e mais, sempre acompanhados por um processo inter-
mitente de profunda crise. É uma mentalidade da humanidade
(civilização) que termina e outra que começa a surgir. E, nesse
momento, surge a crise, isto é, quando o homem perde o funda-
mento sem ter ainda encontrado outro que o sustente. É nesse
momento de transição que a crise se estabelece e leva o homem a
se perguntar, assim como fez Santo Agostinho, logo após a que-
da do Império Romano: “Quid sum ego” (Quem sou eu)? Esta
questão leva o homem inexoravelmente a um novo paradigma,
um novo ser cheio de esperanças, pronto a consolidar uma nova
mentalidade, uma nova civilização.
Âmago
filosoficamente falando, estáligado à essência, ao ser das
coisas.
2 Conferir o trabalho de Abbagnano (2003, p. 630).
3 Conferir a obra clássica de Gaarder (1995, p. 45-60).
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TEORIA POLÍTICA
A seguir vamos estudar algumas dessas teorias e como elas se constituem.
1.1.1. O CONHECIMENTO EMPÍRICO
Sabemos que o conhecimento segue uma escada de diferentes degraus. O primeiro
deles chama-se conhecimento empírico ou, também, conhecimento ordinário. Essa forma de
conhecimento é proporcionada pela experiência ou o contato imediato de nossos sentidos
(audição, visão, percepção) com os seres individuais da realidade do mundo, contato esse
percebido e firmado pelo juízo e pela linguagem. Em síntese, o conhecimento empírico é
aquele adquirido pelos indivíduos no dia-a-dia. É o acúmulo de conhecimentos adquiridos
pelas práticas da vida, pela experiência da vida.
Por milhares de anos o ser humano se pautou por essa forma de conhecimento. O
homem de outrora carecia de informações mais apuradas (conhecimento filosófico ou cien-
tífico), por isso recorria à experiência dos mais velhos para solucionar questões de ordem
natural ou existencial. Dentro da comunidade os homens mais velhos detinham o saber,
sendo por isso mesmo respeitados e valorizados. Por essa razão hoje costumamos dizer: “vi-
vendo e aprendendo”, “Fulano ou Beltrano é um homem de experiência”, “a experiência é a
mestra da vida”, o que caracteriza esta forma de conhecimento.
O conhecimento empírico apresenta algumas características que lhe são próprias. Ini-
cialmente, é um conhecimento acima de tudo pragmático: brota das necessidades e dos inte-
resses da vida; conhecemos aquilo de que temos necessidade para viver: conhecer para viver
e não conhecer por conhecer. Segundo, é um conhecimento individual – não universal – que
vale rigorosamente só para casos vividos. Por exemplo: se uma determinada erva “curou” as
dores de fígado ou estômago de Maria ou Pedro, não significa que os resultados sejam alcan-
çados de maneira geral e universal e possam curar os males hepáticos e estomacais de toda a
humanidade. Terceiro, é um conhecimento trazido pela vida e não buscado intencionalmen-
te, como o conhecimento científico; por isso, é um conhecimento alógico, ametódico,
desordenado, assistemático e acrítico. Por fim, pode-se afirmar que o conhecimento empírico
fundamenta-se no senso comum, que consiste na apreensão de certos princípios e verdades
por todos que possuem uma natureza racional normal, pois brota espontaneamente da natu-
reza de todos os homens: são princípios ou verdades “sentidos” como evidentes.
TEORIA POLÍTICA
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1.1.2. O HOMEM DA PALAVRA SAGRADA
O mistério sempre cercou o homem e o conhecimento empírico (da experiência da vida)
não conseguiu responder às questões ligadas à origem e ao destino das coisas e da humani-
dade. A grande questão era: qual é o sentido da vida humana e da natureza? É assim que
surge o homem da palavra sagrada (homem religioso), aquele que recorre ao sobrenatural
para explicar os fatos da vida, do cotidiano. No decorrer da História, a religião sempre teve
um papel fundamental, pois ditou regras morais, estabeleceu juízos de valor (bem e mal),
“salvou” e “condenou” os hereges, enfim, foi capaz de determinar o caminho a ser seguido,
segundo os critérios das elites hierárquicas de cada instituição religiosa. Foi assim nas soci-
edades primitivas com o comando dos sacerdotes (xamãs), da mesma forma nas sociedades
teocráticas orientais (povos da Babilônia), no Egito e no povo hebreu. O panteísmo
antropomórfico dos gregos e romanos (deuses imortais) não deixava de influenciar e interfe-
rir diretamente na vida dos homens (considerados mortais). Por fim, a Igreja Católica Apostó-
lica Romana (cristianismo), bem como outras grandes religiões do mundo (hinduísmo,
maoísmo, islamismo) cumprem fielmente a conotação da dominação e controle das mentes e
corações de boa parte dos seres humanos. Diante disso questiona-se: Poderia o homem pres-
cindir do aspecto sagrado? A fé advém do temor (medo)? Como podemos explicar tais fatos?
1.1.3. O HOMEM DO PENSAMENTO MITOLÓGICO
O mito não é apenas uma história fantasiosa, ou uma narração fictícia. O mito pode
consistir em uma história que traz consigo um fundo de verdade, uma mensagem. Quase
sempre é imbuída de um princípio de valor de cunho ético, cujo objetivo é reger e manter
uma comunidade unida e organizada. O mito, nesse sentido, é buscado pela reflexão, para
chegar ao conhecimento.4 Platão empregou esse recurso na célebre passagem da República,
na alegoria da caverna, na qual o referido filósofo fez uma clara distinção entre o mundo
sensível (mundo real) e o mundo inteligível (mundo ideal). Os gregos por muito tempo se
utilizaram da prerrogativa mitológica, os mais eminentes dramaturgos foram Sófocles e
Eurípedes, que escreveram Édipo rei, Sísifo, Prometeu acorrentado, entre outros.
4 Para um estudo mais aprofundado sobre o mito ver Vernant (1973).
19
TEORIA POLÍTICA
1.1.4. O MITO NOSSO DE CADA DIA
O mito é histórico.5 Resultado de uma criação coletiva da
própria sociedade, os homens, desde os primórdios, o têm utiliza-
do para explicar o enigmático, o desconhecido. O mito serviu e
ainda serve para abrandar e acalmar os temores da existência
humana. Ele traz consigo uma resposta e, também, uma espe-
rança para os problemas da vida. Pode, no entanto, conduzir,
ditar valores e comportamentos em uma sociedade. Assim, o mito
não é mera ilusão ou fantasia, ele precisa ser examinado, desafi-
ado e refletido. Só a reflexão pode explicar o mundo e entender a
vida. Caso contrário, crenças e estereótipos, costumes e hábitos
passarão a ser considerados naturais, aceitos e justificados como
algo imutável ou incontestável.
Como veremos nos capítulos posteriores, a modernidade
emergiu da superação do mito religioso medieval (razão teológi-
ca) para o mito da razão instrumental. A razão desvelou e trans-
formou o mundo. O homem passou da “idade das trevas” para a
“idade das luzes”, do pensamento único para o pensamento di-
verso, plural e múltiplo. A razão impulsionou o pensamento ci-
entífico e, este, a técnica e o progresso.
O homem moderno acreditou que a ciência poderia resol-
ver todos os problemas da humanidade. Tornou-se um mito a
salvação pela ciência e pela tecnologia.6 A promessa, entretan-
to, não pôde ser cumprida. O certo é que as conquistas moder-
nas passam, em nossos dias, por um esgotamento e uma crise
acentuada. O conceito de progresso passa a ser questionado na
medida em que, por um lado, avançamos, e, por outro, pagamos
O Mito da Caverna, de Platão,também chamado de Alegoriada Caverna, é uma parábolaescrita pelo filósofo Platão, eencontra-se na obra intituladaA República (livro VII). Trata-se da exemplificação de comopodemos nos libertar dacondição de escuridão que nosaprisiona através da luz daverdade”.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Mito_da_caverna>.Acesso em: 10 jan. 2008.
Dramaturgos
Autores de peças de teatro;dramatista (D. Houaiss)
Édipo Rei
Édipo rei, Sísifo, PrometeuAcorrentado: todos sãopersonagens que integram amitologia grega.
5 Ver o trabalho de Campbell (1990).
6 Conferir Horkheimer (1976).
TEORIA POLÍTICA
20
um alto preço pelo consumo de boa parte dos recursos minerais e naturais, além da degra-
dação do meio ambiente. Vive-se como se esta fosse a última geração a habitar o planeta
Terra. O progresso fugiu do controle. A ciência que emancipou o homem pode destruí-lo a
qualquer momento, o perigo nuclear é iminente. Além disso, o progresso veio para uma
pequena parcela da população na medida em que cresce, a cada dia, o abismo entre ricos
e pobres.
O mundo tornou-se uma “aldeia global” (comunidade única), graças às novas
tecnologias da informática (Gonçalves; Gonçalves, 1995), no entanto os homens vêem-se
cada vez mais isolados, fragmentados, órfãos de esperanças. Não se tem um projeto de “co-
munidade” (projetos comuns). Vive-se, literalmente, em uma sociedade sem consenso. As
soluções tendem a ser individualizadas (pessoas, instituições, países), como se o problema
também fosse localizado e particularizado. Prevalece o individual em detrimento do coleti-
vo. Com o ceticismo em relação à ciência e ao progresso, o homem pós-moderno procura
preencher o vazio com novos mitos.
Apesar de todo o avanço dos últimos séculos, vê-se aumentar a angústia, a ansiedade
e a insegurança, juntamente com inúmeras perguntas que carecem de respostas convincen-
tes. Ninguém pode fugir do peso da própria existência humana. Para tentar preencher este
vazio surge, a cada dia, uma nova droga, uma nova crença, seita religiosa, ou uma nova
terapia que promete a “salvação” ou “solução” dos problemas espirituais e existenciais de
uma forma rápida e segura.
Nunca as clínicas médicas de cirurgia plástica tiveram tanta procura. Lutando contra
a natureza, ou contra a lei da gravidade, milhares de pessoas estão na lista de espera por
uma cirurgia que as faça sentir melhor (mais jovens), ou parecer com aquela modelo ou atriz
famosa. Se os meus heróis são belos, tenho de parecer com eles, por isso a padronização de
narizes, seios e bumbuns. O ser da pessoa foi substituído pelo “aparecer”, pois a “imagem é
tudo”. Por isso, “todos para a academia”. Não para formar e moldar o cérebro e a razão,
como faziam os gregos (embora também cultuassem o corpo belo), mas para malhar e mol-
dar os músculos. O que importa é a massa muscular, um corpo turbinado em detrimento dos
neurônios.
21
TEORIA POLÍTICA
Ao comprar objetos e bens supérfluos, espera-se comprar a própria felicidade. Precisa-
mos de uma nova roupa, um novo carro, uma nova casa. Quando não podemos consumir
nos sentimos fracassados e inúteis. Paga-se caro pelo lazer, mas sem jamais descansar. O
que importa é o hedonismo (prazer a qualquer custo), curtir a vida o máximo possível, pois
só temos o “hoje”, o amanhã é uma incógnita.7
Urge, então, a construção de um novo paradigma que restabeleça as relações entre os
homens, com a natureza e com o próprio universo. Não uma razão mitológica, nem mesmo
uma razão instrumental individualizada. É possível uma nova razão que se possa definir
para além dos mitos e da instrumentalidade? O desafio está lançado.
1.1.5. O HOMEM DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
Como vimos nas seções anteriores, no princípio a humanidade se amparou no conhe-
cimento mitológico para explicar as origens das coisas. Aos poucos, no entanto, o homem
evoluiu e com ele o nível de conhecimento: do conhecimento empírico para o conhecimento
da palavra sagrada, juntamente com o conhecimento mitológico. Mais tarde surge o ho-
mem do conhecimento filosófico que conheceremos agora, aquele que procura explicar os
fatos com argumentos lógicos, utilizando a razão como princípio fundamental, procurando
desvelar o ser alethéia (desocultação – desvelamento). Foi o filósofo grego Tales de Mileto
quem primeiro buscou elementos racionais para explicar a realidade cósmica. Tales, assim
como Pitágoras, Anaxímines, Anaximandro, integram o grupo de filósofos denominados de
pré-socráticos, que procuravam explicar questões cosmológicas a partir dos elementos da
natureza (água, fogo, ar, átomo).8
Surge, deste modo, o homem do pensamento filosófico, com características diferencia-
das dos demais tipos de conhecimento. O homem racional (filosófico) tem, primeiro, uma
visão da realidade a partir de si mesmo (autônoma), desvinculada do conhecimento trans-
7 “Vivemos presos ao imediato. À medida que o homem mais desconhece a razão de ser de sua vida, tanto mais ele se agarra às pequeninascoisas do cotidiano. Tanto menos ele conhece o sentido de sua vida, e mais é tomado de uma angústia e paixão, que deixam a impressãode uma pressa de chegar sem que ele saiba onde” (Mendonça, 1991, p. 17).
8 Conferir Barnes (1997) e Os Pensadores (1999).
TEORIA POLÍTICA
22
mitido pela tradição e baseada nas crenças e mitos; segundo, um
conhecimento que desoculta, desvela, busca a essência (arché);
terceiro, uma visão de totalidade (não parcial) que atinge a todos
os homens e não a alguns em particular. Ou é uma verdade uni-
versal ou não é verdade (assim pensavam e se defendiam do
relativismo dos sofistas). O debate do conhecimento filosófico se
fará presente nos capítulos subseqüentes deste trabalho. Por ora,
ainda é pertinente discutir dois temas que integram as visões so-
ciais de mundo dos nossos tempos: a questão da ideologia e da
utopia.
Seção 1.2
Visões sociais de mundo
1.2.1. A IDEOLOGIA E A UTOPIA
De compreensão diversa e muitas vezes arbitrária e comple-
xa, a palavra ideologia foi literalmente inventada por Destutt de
Tracy em (1801) na obra Eléments d’Idéologie (Elementos de ideo-
logia), e definida como “o estudo científico das idéias e as idéias
são o resultado da interação entre o organismo vivo e a nature-
za, o meio ambiente”, ou seja, uma parte da zoologia. Essa pri-
meira definição foi classificada como empirista e científico-natu-
ralista, isto é, positivista (Apud Löwy, 1998, p. 10).
Mais tarde o filósofo Karl Marx, na obra A ideologia alemã
(1846), retoma o termo, definindo-o, em sentido pejorativo, como
“ilusão ou falsa consciência”, correspondendo a interesses de clas-
se. A ideologia se constitui, assim, como processo de inversão
Sofistas
Na Grécia Clássica (século 4º a.C.) existiam mestres itinerantes
que ensinavam a arte daoratória (persuasão) aos filhos
dos atenienses, ou seja, astáticas de como vencer os seus
oponentes nos debatespúblicos.
Zoologia
A zoologia (proveniente dogrego Æþï, zoon “animal”, e
logos “estudo”) é a ciência queestuda os animais.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Zoologia>.Acesso em: 10 jan. 2008.
23
TEORIA POLÍTICA
que apresenta o imaginário como se fosse um ente real, num pro-
cesso de coisificação do ser humano. A “falsa consciência” é a
estrutura reificada da qual se sobressai o pensamento burguês.
O proletariado é contaminado por elementos da consciência bur-
guesa reificada, tal como se evidencia em sua separação entre
luta econômica e luta política (Apud McDonough, 1983, p. 53).
É necessário, portanto, ultrapassar a falsa consciência para che-
gar à consciência de classe.9 O difícil é “matar” o pequeno bur-
guês que existe dentro de cada trabalhador, dentro de cada um
de nós.
Ainda para Marx, “as idéias da classe dominante são em
todas as épocas as idéias dominantes, isto é, a classe que é a
força material dominante da sociedade é ao mesmo tempo a força
ideológica dominante” (Apud Hall, 1983, p. 64).
Na tradição da herança marxista, a ideologia designa o
conjunto de concepções de mundo ligadas às classes sociais: “luta
ideológica”, “ideologia revolucionária”, “formação ideológica”
são exemplos de entendimento dos significados de ideologia. Por
exemplo, para Lenin a ideologia estava vinculada aos interesses
de classe, seja ela burguesa ou proletária (Löwy, 1998, p. 10).
Já para Gramsci a ideologia pode ser reduzida a “concep-
ções de vida”, filosofias, concepções de mundo, sistemas de pen-
samento, formas de consciência e senso comum. Para o filósofo
italiano a função da ideologia é aglutinar as classes: “A ideolo-
gia contribui para ‘cimentar e unificar ’ o bloco social”. A ideo-
logia é vista principalmente como “cimento” que aglutina a es-
trutura (na qual a luta de classes tem lugar) e o domínio das
superestruturas complexas (Hall, 1983, p. 71). Em outras pala-
9 A ideologia no sentido pejorativo esteve sempre ligada às idéias de que serviria para obscurecer a verdade e manipular as pessoas por meiodo engano. Neste sentido, a ideologia quase sempre leva à defesa do status quo (Outhwaite, W.; Bottomore, T., 1996, p. 371).
Processo de coisificação
O quarto aspecto da alienaçãodo trabalho estudado porMarx. Quando há uma inversãode valores e os seres humanospassam a se tornar coisas/instrumentos, servindo apenaspara produzir objetos nosistema capitalista.
Superestruturas complexas
Conceito marxista. Donos dosmeios de produção (terra,indústria), donos do podereconômico.
TEORIA POLÍTICA
24
vras, a ideologia, segundo Gramsci, é a acumulação de “conhecimentos” populares e as
maneiras de ocupar-se com a vida cotidiana – o que ele chama de “senso comum” (Hall,
1983, p. 65).
Na concepção de Althusser (1987), outro pensador marxista, a ideologia está
institucionalizada em aparelhos que servem diretamente aos interesses da classe dominante
e da supremacia do Estado capitalista, os quais o autor chamou de Aparelhos Ideológicos de
Estado (AIE). Esses aparelhos ou instituições se utilizam das idéias e da persuasão (arte do
convencimento ou da famosa “cantada”) para alcançar os seus objetivos, isto é, produzir o
consenso e o entendimento entre as classes sociais e legitimar a ordem existente. Podemos
citar muitas instituições que são encarregadas pelo sistema de reproduzir as idéias domi-
nantes, entre elas a família (hierarquia e disciplina); a escola (elitismo, individualismo e
competição); a universidade (visão mercadológica do saber); os meios de comunicação soci-
ais (MCS), dentre os quais a televisão, o rádio, o jornal, as revistas (a propaganda, o consu-
mo, o supérfluo, o culto à imagem, a sociedade do espetáculo, o efêmero, a mediocridade, a
futilidade, o descartável; a religião: distorção do real e aprisionamento das mentes; o Direi-
to: os tribunais, os sindicatos.). Além dos recursos da persuasão, Aparelhos Ideológicos de
Estado (AIE), o poder dominante detém, ainda, o poder da coerção, da força e da violência.
Essas instituições são chamadas de Aparelhos Repressivos de Estado (ARE), prestando, com
seu aparato logístico e bélico, todo apoio necessário em caso de convulsão social. Pode-se
citar as Forças Armadas (Exército, Marinha, Aeronáutica), bem como os diferentes tipos de
polícia que existem para defender a propriedade privada ou os interesses dos poderosos ca-
pitalistas.
Na obra Ideologia e utopia (1956) Mannheim segue a concepção de ideologia de for-
ma semelhante à de Lenin, porém o autor restringe o conceito definindo como “os sistemas
de representação que se orientam na direção da estabilização e da reprodução da ordem
vigente”. Em outras palavras, para ele, a ideologia é o conjunto das concepções, idéias,
representações, teorias, que se orientam para a estabilização, legitimação ou ainda repro-
dução da ordem estabelecida. Ou seja, são todas aquelas doutrinas que têm certo caráter
conservador no sentido amplo da palavra. Que consciente, inconsciente, voluntária ou
involuntariamente servem à manutenção da ordem estabelecida.
25
TEORIA POLÍTICA
Diferentemente da ideologia, Mannheim entende utopia como aquela que define as
representações, aspirações e imagens-de-desejo que se orientam na direção da ruptura da
ordem estabelecida e que exercem uma função subversiva (apud Löwy, 1998, p. 11).
Michael Löwy, na obra Ideologias e Ciências Sociais, assim diferencia as visões sociais
de mundo:
Para Bourdieu, as diferentes classes sociais estão envolvidas numa luta propriamente
simbólica para imporem a definição do mundo social conforme os seus interesses... As ideo-
logias (...), produto coletivo e coletivamente apropriado, servem a interesses universais, co-
muns ao conjunto do grupo (apud Corrêa, 1999, p. 28).
Pode-se dizer que a ideologia é o instrumento de manipulação das massas populares,
objetivando a manutenção da ordem social vigente e que defende os interesses particulares
de grupos e classes dominantes. Ou seja, a ideologia é a ocultação da realidade, ou, como
destaca Warrat (apud Corrêa, 1999, p. 29), a ideologia é a coerção da persuasão.
Por fim, a palavra utopia vem da etimologia grega topos = lugar + eu/ou (em parte
alguma – espaço que não existe). Sem lugar, lugar inexistente, ainda não existente, mas
que pode vir a existir. Um exemplo de utopia é a obra de Thomas Morus intitulada A Utopia
(1516). Mais tarde, nos séculos 18 e 19 surgem outros filósofos utópicos: Charles Fourier,
Saint-Simon, Etiénne Cabet. No século 20, para Mannheim e Bloch, a utopia passa a ser
Visões sociais de
mundo
Utópicas Ideológicas
Quando têm uma função crítica, negativa, subversiva, quando apontam para uma realidade ainda não existente (Löwy, apud Corrêa, 1999, p. 23).
Quando legitimam, justificam, defendem e mantêm a ordem social do mundo.
TEORIA POLÍTICA
26
vista como forças subversivas e transformadoras da ordem histó-
rico-social existente (apud Corrêa, 1999, p. 30). Podemos citar
ainda os nomes de Bloch: O princípio da Esperança (Sonhos diur-
nos) e Huxley: Admirável Mundo Novo como exemplo de pensa-
dores utópicos. Para Löwy e Herkennhoff, a utopia é a represen-
tação daquilo que não existe ainda, mas que poderá existir se o
homem lutar para a sua concretização. Nesse sentido, a utopia é
o grande motor das revoluções.
As seções desta Unidade discorreram sobre as diferentes for-
mas de conhecimento e as visões sociais de mundo. O importan-
te, ao concluir este estudo, é perceber como os valores e interes-
ses desempenham funções-chave no ato de conhecer. Não esque-
ça que é de fundamental importância a assimilação deste con-
teúdo para a compreensão das Unidades subseqüentes.
Para você aprofundar seusestudos e entendimento sobre
“utopia” não deixe de leralguns clássicos sobre o tema:
Os Pensadores (1999),especialmente o capítuloUtopia: a arte de cultivar
sonhos?
A Utopia,
de Thomas Morus (1516).
O princípio da Esperança
(Sonhos diurnos),de Bloch.
Admirável Mundo Novo,
de Huxley.
27
TEORIA POLÍTICA
Concepções Gerais Sobre o Estado
Seção 2.1
Etimologia da palavra Estado
De pólis advém o conceito de política, que é a ciência/arte de
governar a cidade. Para os romanos, a civitas ou res pública é cha-
mada de status, que significa situação ou condição. E é na
modernidade que o Estado surgirá como instituição, tal como o
conhecemos atualmente. Assim como encontraremos diversas grafias
para a palavra (em francês Estado será État, Staat para o alemão,
Stato para o italiano e Estado para o espanhol e para o português),
também seu significado sofre alterações ao longo da História.
A definição etimológica de Estado feita por Dallari (1995,
p. 43) é que a palavra tem origem latina, status, que significa
estar firme, denotando situação permanente de convivência e li-
gada à sociedade política, aparecendo pela primeira vez em O
Príncipe, de Maquiavel, escrito em 1513. O conceito de Estado,
portanto, na forma que entendemos hoje, é recente, uma defini-
ção moderna. Nem sempre o Estado, do modo que o conhecemos
hoje, existiu. Foi apenas no início da Idade Moderna (séculos
16-17) que ele se tornou uma realidade. França, Inglaterra,
Espanha e Portugal foram os primeiros Estados a se unificarem.1
Unidade 2Unidade 2Unidade 2Unidade 2
Etimologia
Estudo das origens daspalavras. É a parte da gramáti-ca que trata da história ouorigem das palavras e daexplicação do significado depalavras por meio da análisedos elementos que asconstituem. Ou ainda, dito deoutra forma, é o estudo dacomposição dos vocábulos edas regras de sua evoluçãohistórica.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Etimologia>.Acesso em: 10 jan. 2008.
1 Segundo Schwartzman (1970), Portugal em 1600 já era Estado absoluto.
TEORIA POLÍTICA
28
Maquiavel, na obra O Príncipe (1513), inicia a discussão teórica
sobre o Estado: “Todos os Estados, todos os governos que tive-
ram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas
ou principados”.2 Isso não significa, entretanto, que antes da for-
mação do Estado moderno não existissem outras formas de go-
verno e de poder. A partir das seções seguintes conheceremos mais
sobre o assunto.
Seção 2.2
Diferentes entendimentos sobre o Estado
Entende-se o Estado como sendo um corpo de pessoas (uni-
do por laços sociais) vivendo em um determinado território, orga-
nizado politicamente, estando subordinado à autoridade de um
governo (poder jurídico e de coerção), capaz de garantir a sobe-
rania e o bem comum.
Para Azambuja (1971), o Estado é uma sociedade que se
constitui essencialmente de um grupo de indivíduos unidos e or-
ganizados, permanentemente, para atingir um objetivo comum.
Essa sociedade política é determinada por normas de Direito po-
sitivo, é hierarquizada na forma de governantes e governados e
tem como finalidade o bem público.
Esse Estado emerge na tentativa de superar o instinto na-
tural do homem e instituir definitivamente a sociedade política.
Na visão de Azambuja, o instinto social leva ao Estado, que a
2 Conferir a obra O Príncipe, de Maquiavel (1983), principalmente o Capítulo 1 De quantas espécies são os principados e de que modosse adquirem.
Direito Positivo
Entende-se por Direito Positivoo conjunto de normas
estatuídas oficialmente peloEstado (por meio das leis), oureconhecidas pelas pessoas
mediante os costumes. DireitoPositivo é o ordenamento
jurídico em vigor em determi-nado país e em determinada
época; é o Direito posto.Direito Positivo é apenas anorma legal emanada do
Estado; divide-se em nacionale internacional.
29
TEORIA POLÍTICA
razão e a vontade criam e organizam (1971, p. 3).3 O Estado, então, é uma criação artificial
do homem. O homem, desde seu nascimento, encontra-se submetido à tutela do Estado.
Mesmo contra a sua própria vontade o homem é obrigado a seguir os ditames do Estado,
razão pela qual “da tutela do Estado o homem não se emancipa jamais” (p. 3). Se eventual-
mente o homem transgredir as normas do Estado, ou não acatá-las, sofrerá as sanções de tal
procedimento. O Estado impõe pesados impostos, obriga ao serviço militar (sacrificar a vida
em uma guerra, “morrer pela pátria”), impõe a lei mesmo contra a vontade dos cidadãos: “O
Estado aparece, assim, aos indivíduos e à sociedade, como um poder de mando, como gover-
no e dominação. O aspecto coativo e a generalidade é que distinguem as normas por ele
editadas, suas decisões obrigam a todos os que habitam o seu território” (p. 5). Por fim,
Azambuja sintetiza a sua noção de Estado como “a organização político-jurídica de uma
sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado”.
Os termos nação e Estado também são tratados por Euzébio Queiroz Lima (1957).
Para este autor o “Estado é uma nação organizada”. O referido autor, ao iniciar sua obra,
começa pela definição do termo nação, entendendo-o como um conceito vasto e como a
mais complexa das formas por que as sociedades humanas se apresentam (1957, p. 2). O
que antecede a nação é uma ordem civil, não existe nacionalidade onde não existir
ordenamento civil. O conceito de nacionalidade, em Queiroz, fica subentendido nos con-
ceitos apresentados pelo mesmo nas afirmações de outros escritores. Assim, Queiroz Lima
cita H. Hauriou, que define o termo nação “como uma população fixada no solo, na qual
um laço de parentesco espiritual desenvolve o pensamento da unidade do grupamento”.
Cita, igualmente, o conceito de nação segundo o entendimento de Jellinek: “quando um
grande número de homens adquire a consciência de que existe entre eles um conjunto de
elementos comuns de civilização, e que esses elementos lhe são próprios (...). O conceito de
nação é essencialmente subjetivo, é resultante de um certo estado de consciência” (1957, p. 4).
O conceito de Estado, em Queiroz Lima, está ligado diretamente com a organização
política, em que as condições físicas, biológicas, psicológicas, econômicas, intelectuais, morais
e jurídicas giram em torno de um governo que administra sob o poder de coação, de uma
autoridade que provém do uso incontido da força. Queiroz Lima entende que o Estado está
igualmente ligado ao Direito, ou melhor, o Estado está a serviço do Direito.
3 “Assim, a causa primária da sociedade política reside na natureza humana, racional e perfectível” (Azambuja, 1971, p. 3).
TEORIA POLÍTICA
30
Outro autor a definir o Estado é Sahid Maluf (1995). Para
eles, não existe uma definição única de Estado. Há vários auto-
res que tratam do tema, cada um com uma concepção ou doutri-
na diferente. Segundo Maluf, o “Estado é o órgão executor da
soberania nacional (...) O Estado é apenas uma instituição naci-
onal, um meio destinado à realização dos fins da comunidade
nacional...” (1995, p. 11). Ainda conforme Maluf (p. 19-22), o
Estado é entendido ainda como a sociedade política necessária,
dotada de um governo soberano, a exercer seu poder sobre uma
população, dentro de um território bem definido, onde cria, exe-
cuta e aplica seu ordenamento jurídico, visando ao bem comum.
Já para José Geraldo Filomeno (1997), o Estado é um tipo
especial de sociedade, sendo fundamental analisá-lo nos aspec-
tos sociológico, político e jurídico. Com vistas a explicar sua ori-
gem, estrutura, evolução, fundamentos e fins, explicita: “o Esta-
do é um ser social e, portanto único, embora complexo e não
simples, em atenção aos diversos aspectos que apresente: método
científico, método filosófico, método histórico e método jurídico”
(Perez apud Filomeno, 1997, p. 17). O Estado deve estar a servi-
ço do homem: o Estado “é mero instrumento para a realização do
homem, tendo em vista sua fragilidade e impossibilidade de bas-
tar-se a si mesmo” (p. 18).
Aderson Menezes (1996) ensina que o Estado é uma socie-
dade de homens, fixada em território próprio e submetida a um
governo que lhe é originário: “O Estado é uma pessoa politica-
mente organizada da nação em um país determinado”.
Michael Mann (1992, p. 167) define o Estado como sendo
constituído de quatro elementos fundamentais: o Estado é um
conjunto diferenciado de instituições e funcionários, expressan-
do centralidade, no sentido de que as relações políticas se irradiam
Michael Thomas Mann
Cineasta estadunidense,nasceu na cidade de Chicago,Illinois, no dia 5 de fevereirode 1943. Costuma operar ele
próprio a câmera na fotografiade seus filmes.
Imagem disponível em:<http://www.adorocinema.com.br/
personalidades/diretores/michael-mann/corpo.asp>.Acesso em: 10 jan. 2008.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Michael_Mann>.Acesso em: 10 jan. 2008.
31
TEORIA POLÍTICA
de um centro para cobrir uma área demarcada territorialmente,
sobre a qual ele exerce o monopólio do estabelecimento de leis
autoritariamente obrigatórias, sustentado pelo monopólio dos mei-
os de violência física. Tal posição encontra sustentação a partir
de uma visão mista, a qual foi referida originalmente por Max
Weber. Parte-se do princípio de que o Estado é um conjunto de
instituições decorrentes do desenvolvimento de desigualdades
sociais quanto ao exercício do poder de decisão e mando. É clas-
sicamente identificado com a idéia de soberano.
A idéia de Estado advém do desenvolvimento das formas de
governo como resultante das diversas maneiras de dividir o poder
entre governantes e governados. O Estado é um conjunto de insti-
tuições especializadas em expressar um dado equilíbrio e uma
condensação de forças favoráveis a um grupo e/ou uma classe soci-
al. Ele assegura a unidade de qualquer sociedade dividida em inte-
resses, particularmente de classes, mas também estamentais, pois
garante o monopólio (centralizado ou descentralizado) do uso da
força nas mãos do grupo, da classe ou do estamento dominante.
Para que o Estado funcione como tal, no entanto, é neces-
sário um conjunto de elementos que lhe dê sustentação, os quais
estudaremos na próxima seção.
Seção 2.3
Os elementos do Estado
Fazem parte do Estado, segundo a concepção de Azambuja
(1971), três elementos fundamentais: uma população, um territó-
rio e um governo independente, ou quase, dos demais Estados.
Estamentais
Conceito ligado ao Estadoentendido como poder político.
TEORIA POLÍTICA
32
Cada elemento é essencial, “não pode existir Estado sem um de-
les” (p. 18). Da mesma forma Azambuja define os conceitos povo
e nação como sendo integrantes da população de um Estado.
Povo é, segundo o autor, o grupo humano encarado na sua
integralidade, numa ordem estatal determinada, é o conjunto de
indivíduos sujeitos às mesmas leis. O elemento humano do Esta-
do é sempre um povo, ainda que com ideais e aspirações diferen-
tes. Já o conceito de nação é entendido como “indivíduos que se
sentem unidos pela origem comum, pelos interesses comuns e,
principalmente, por ideais e aspirações comuns” (p. 19). O povo
é uma entidade jurídica, nação é uma entidade moral, é uma co-
munidade de consciências unidas por um sentimento comum. O
patriotismo é citado por Azambuja como exemplo. Os conceitos
de raça, língua e religião são conceitos coadjuvantes, não cons-
tituem a característica fundamental da nação, mas o que une um
povo até constituir uma nação é a identidade de História e de
tradição, em que o passado comum é condição indispensável para
a formação nacional (p. 22).
Mancini, professor de Direito Internacional de Turim, em
1851, conceituou o termo nação da seguinte forma: “Nação é
uma sociedade natural de um homem, na qual a unidade de ter-
ritório de origem, de costumes, de língua e a comunhão de vida
criará a consciência social” (apud Azambuja, 1971, p. 22).
Considerando ainda outros comentadores pode-se citar, de
forma resumida, quatro elementos do Estado.4
O primeiro elemento do Estado é a população. Ela repre-
senta a massa total dos indivíduos que vivem dentro dos limites
territoriais de um país, incluindo os nacionais e os não-nacio-
Bascos
Grupo étnico que habita partedo norte da Espanha e do
Sudeste da França. São nativosde Navarra. A intenção dessanação é formar um Estado
independente (Pátria Basca eLiberdade, mais conhecidospela sigla ETA, grupo que
utiliza a prática da luta armadae o terrorismo como meio dealcançar a independência da
região do país Basco).
Disponível em:<wikipédia.org/wiki/ETA>.
Acesso em: 3 de mar. 2008.
4 Para Maluf, os elementos que constituem o Estado são os materiais, compostos pela população e território; os elementos formais,constituídos por um governo soberano (poder) e um ordenamento jurídico; e o elemento final, o bem comum (1995, p. 23).
33
TEORIA POLÍTICA
nais. É importante que a população de um determinado Estado torne-se uma nação. Por
nação entende-se o conjunto homogêneo de pessoas ligadas entre si por vínculos perma-
nentes de sangue, idioma, religião, cultura e ideais – ou um grupo de indivíduos que se
sentem unidos pela origem comum, pelos interesses comuns e, principalmente, por ideais e
aspirações comuns.
Existem exemplos de nações que não constituem um Estado: na Espanha, catalães
(Catalunha); os judeus até 1948 não haviam constituído um Estado; os bascos na França e
Espanha e na Irlanda o IRA, procuram formar um Estado: os eslavos, sérvios, albaneses e
croatas – Guerra da Bósnia (Bálcãs), gregos e turcos (Chipre), os curdos, muçulmanos (há
no mundo cerca 1,3 bilhão de muçulmanos, que formam a maioria da população ou mino-
rias significativas em quase 60 países. A Organização da Conferência Islâmica, que preten-
de “assegurar o progresso e o bem-estar de todos os muçulmanos do mundo”, tem 57 países
– membros). Dessa forma é possível afirmar que não existe Estado sem nação, mas há mui-
tas nações que não constituem propriamente um Estado.
O segundo elemento do Estado é o território. O território é a base física propriamente
dita, o âmbito geográfico da nação, onde ocorre a validade da sua origem jurídica. Também
não existe Estado sem território. Integram o território: o solo, o subsolo, o espaço aéreo, as
embaixadas, os navios e aviões de uso comercial ou civil e o mar territorial (200 milhas, no
caso brasileiro). Azambuja cita os judeus como um exemplo de povo que até há pouco tem-
po era uma nação, mas não consistia ainda um Estado, por faltar-lhe um território. Somen-
te em 1948 formou-se o Estado de Israel. Da mesma forma os nômades e os ciganos, por
exemplo, não constituem um Estado em função da falta de um território próprio.
O terceiro elemento é o governo. Por governo entendemos a instituição (de caráter
temporário) responsável pela efetivação de políticas públicas. O governo pode estar nas
mãos de um partido mais à esquerda, centro ou direita, nas mãos de líderes religiosos, chefes
tribais ou soldados armados. O governo é uma das mais antigas instituições humanas. Para
isso sempre nos voltamos para as primeiras civilizações orientais da Babilônia, Síria e do
Egito (6 mil anos atrás...). O governo é, positivamente, o conjunto das funções necessárias
à manutenção da ordem jurídica e da administração pública.
TEORIA POLÍTICA
34
Como formas de governo, podemos citar:
1) Unitário: governo centralizado, existente em mais de 50 Estados. A Grã-Bretanha é um
exemplo de Estado unitário.
2) Estado Democrático/Federal: é quando o poder do governo é dividido entre um governo
central e vários governos locais (divisão de poderes). Exemplo: Estados Unidos (e seus 50
Estados), Austrália, Canadá, México, Alemanha, Índia, Brasil.
3) Governos Confederados: que formam uma aliança de Estados independentes. O órgão
central do Governo Confederado tem o poder de tomar decisões pelos demais. A Comu-
nidade dos Estados Independentes, como os extintos em 1991 após a queda da União So-
viética, é um exemplo de Confederação.
Podemos citar como sistemas de governo o presidencialista e o parlamentarista. O
presidencialista está intimamente ligado à separação de poderes: Executivo, Legislativo
e Judiciário (agindo de forma independente). O presidente é o chefe maior. Já no sistema
parlamentarista o chefe maior é o primeiro ministro, o qual é escolhido pelo partido ma-
joritário ou pela coalizão de partidos que fizeram maior número de assentos no Parla-
mento.
Por fim, temos o último elemento do Estado, denominado de soberania. Por sobera-
nia entende-se, segundo Pinto (1975), “a capacidade de impor a vontade própria, em últi-
ma instância, para a realização do direito justo”. Em outras palavras, a soberania signifi-
ca autonomia, sem intervenções externas. A soberania é a forma suprema de poder: é o
poder incontestável e incontrastável que o Estado tem de, dentro de seu território e sobre
uma população, criar, executar e aplicar o seu ordenamento jurídico visando ao bem co-
mum.
Como veremos na próxima seção, dos elementos que constituem o Estado, o governo
será sempre o palco das maiores disputas e das decisões que mais repercutem na vida dos
indivíduos.
35
TEORIA POLÍTICA
Seção 2.4
O Estado e o poder
O Estado, sede do poder, torna-se palco de lutas políticas. Pelo fato de aqueles que
estão no poder gozarem de legitimidade, a oposição às vezes encontra-se na alternativa de
aceitar os procedimentos autorizados pelo aparelho do Estado ou de se arriscar a uma prova
de força.
É preciso ressaltar que nunca tivemos na História um Estado que interviesse tanto no
cotidiano pessoal do indivíduo como na atualidade. Michael Mann (1992, p. 169) descreve que
...o Estado pode avaliar e taxar nossa renda e riqueza na fonte, sem o nosso consentimento ou o
de nossos próximos ou parentes (o que o Estado, antes de 1850, nunca fora capaz de fazer); ele
estoca e pode usar imediatamente uma maciça quantidade de informações sobre cada um de
nós; pode fazer cumprir a sua vontade no mesmo dia em quase todos os lugares sob o seu domí-
nio; sua influência sobre a economia global é enorme; ele até provê diretamente a subsistência
da maioria de nós (via os empregos que oferece, as pensões previdenciárias, etc.).
O Estado atual penetra na vida cotidiana mais do que qualquer Estado histórico. Seu
poder infra-estrutural cresceu enormemente. Não há um lugar para se esconder do alcance
infra-estrutural do Estado moderno, conclui o autor. Pode-se levantar um questionamento
a partir dessas afirmações: mas afinal, quem controla esses Estados? Mann afirma que é
“uma elite estatal autônoma”.
Mann (p. 168-169) enumera duas características do poder do Estado. A primeira seria
o poder despótico da elite estatal. O autor apresenta o exemplo do imperador chinês, que,
como filho do Sol, “possuía” a totalidade da China e podia fazer o que desejasse com qual-
quer indivíduo ou grupo dentro de seu domínio. O imperador romano, apenas um “deus”
menor, adquiriu poderes que, em princípio, também eram ilimitados fora da área restrita de
afazeres nominalmente controlada pelo Senado.
Alguns monarcas do início da Europa moderna também reivindicaram poderes abso-
lutos, divinamente derivados (embora eles próprios não fossem divinos).
TEORIA POLÍTICA
36
Em contrapartida, o poder infra-estrutural – segunda característica do poder estatal –
“é a capacidade do Estado de realmente penetrar a sociedade civil e de implantar
logisticamente as decisões políticas por todo o seu domínio” (1992, p. 168-169). A existên-
cia do Estado, que fundamenta a legitimidade e garante a continuidade do poder, é também
a condição para que se possa afirmar a superioridade da competência dos governantes.
Com o surgimento da propriedade individual, nasce a divisão do trabalho, a sociedade
se divide em classes, como a dos proprietários e a dos que nada têm. Dessa divisão nasce o
poder político, o Estado, cuja função é essencialmente a de manter o domínio de uma classe
sobre outra, recorrendo, inclusive, à força e, assim, a de impedir que a sociedade dividida em
classes se transforme num estado de permanente anarquia. Mann apresenta três formas de
poder: o econômico – os que detêm a riqueza; o ideológico – os que se apossam do saber, e o
político – os que têm a força.
O poder econômico é aquele que se vale da posse de certos bens, necessários ou perce-
bidos como tais, numa situação de escassez, para induzir os que não os possuem a adota-
rem uma certa conduta. Na posse dos meios de produção reside uma enorme fonte de poder
por parte daqueles que os possuem contra os que não os detêm.
O poder ideológico é aquele que se vale da posse de certas formas de saber, doutrinas, co-
nhecimentos, às vezes apenas de informações, ou de códigos de conduta, para exercer uma influên-
cia sobre o comportamento alheio e induzir os membros do grupo a realizar ou não uma ação.
O poder político está ligado aos que detêm o poder de mandar ou comandar (uma minoria),
enquanto que aos demais (maioria) cabe obedecer e seguir os ditames do grupo que governa.
Essas três formas de poder contribuem, conjuntamente, para instituir e para manter
sociedades de desiguais, divididas em fortes e fracos, com base no poder econômico, e em
sábios e ignorantes, com base no poder ideológico. Mann (1992, p. 179) apresenta outras
funções do Estado, como a da manutenção da ordem interna, servindo diretamente à classe
dominante; a de defesa, a de agressão militar, dirigida contra o ataque dos inimigos estran-
geiros; a da manutenção das infra-estruturas de comunicação (estradas, rios, sistema de
mensagens, cunhagens, pesos, mercados...). A próxima seção abordará esse tema de forma
mais aprofundada.
37
TEORIA POLÍTICA
Seção 2.5
A função do Estado
Ao Estado compete manter o equilíbrio da sociedade de classes, atuando sempre e ga-
rantindo sua reprodução enquanto tal, “filtrando” as contradições em seu interior, uma vez
que para ele convergem as forças em choque. Só podemos entender um determinado tipo de
Estado a partir da análise das classes que o compõem. Assim, o Estado goza de certa autono-
mia. Ele tem a função de direção, que implica pensar a longo prazo. Como estudamos na
seção anterior, as funções do Estado podem ser: a) técnico-econômica: tem por objetivo
viabilizar o objeto econômico da(s) classe(s) dominante(s); b) função ideológica: de criar o
consenso e, c) função política: manutenção do nível da luta de classes por meio da coerção.
Para Max Weber, por Estado se há de entender uma empresa institucional de caráter
político, em que o aparelho administrativo leva adiante, em certa medida e com êxito, a
pretensão do monopólio da legítima coerção física, visando ao cumprimento das leis (eco-
nomia e sociedade).
Os objetivos da política são tantos quantas forem as metas a que se propõem os deten-
tores do poder em um determinado momento. Logo, o Estado não pode ser definido pelos
fins a que se propõe, mas pelos meios utilizados para a execução desses fins. O fim último da
política é a manutenção da ordem pública nas relações internas e da integridade territorial
em relação aos demais Estados.
O Estado legitimaria a divisão de classes sociais? Certamente. Esta foi a crítica feita
por muitos autores das Ciências Sociais.
E por classes sociais entende-se, segundo Theotônio dos Santos (1991, p. 41), os agre-
gados básicos de indivíduos numa sociedade, os quais se opõem entre si pelo papel que
desempenham no processo produtivo do ponto de vista das relações que estabelecem entre
si nas organizações do trabalho e quanto à propriedade.5 As classes sociais compõem uma
5 Analisar a obra de Santos (1991).
TEORIA POLÍTICA
38
comunidade de interesses em oposição aos outros agregados sociais (da mesma formação
social, ou sobreviventes de formações anteriores ou base de futuros agregados). Isto os faz
tender a uma comunidade de:
a) consciência de classe: unidade de concepção de mundo e de sociedade segundo seus
interesses gerais de classe, o que dá origem a uma ideologia;
b) situação social: formas de comportamentos, atitudes, valores, interesses imediatos, distri-
buição de renda, ação e interesse político diante dos partidos e do Estado.
Como “classe dominante” podemos citar ainda a burguesia: industrial (indústrias), a
financeira (bancos), a burguesia agrária (empresas rurais) e a burguesia comercial (lojistas
e atacadistas). Como “classe dominada” temos o proletariado (dedicam-se ao trabalho ma-
nual: operários, agregados, funcionários administrativos e não-manuais – trabalhadores
automatizados). Existem ainda camadas intermediárias compostas por pequenos empresá-
rios (prestação de serviços, alfaiates, taxistas, profissionais liberais). Por fim, existem as ca-
madas excluídas (sacoleiros, catadores de papel, bóias-frias, camelôs).
Você já parou para refletir sobre como surgiu o Estado?
Seção 2.6
Justificativas teóricas do Estado
Através dos séculos historiadores e teóricos da política, entre outros, têm-se questio-
nado sobre qual a possível origem do Estado, mas poucos chegaram a um consenso. O que
temos é uma resposta aproximada, porém não-conclusiva sobre a sua origem. Vamos elencar
as principais teorias que tentam responder a esta controversa questão.
5 Analisar a obra de Santos (1991).
39
TEORIA POLÍTICA
A primeira trata da Teoria da força. Esta teoria defende que
o Estado nasceu da força, quando uma pessoa ou grupo contro-
lou os demais (poucos submeteram muitos) o Estado surge com a
luta de classes (visão marxista). Na concepção marxista o Esta-
do defende os interesses daqueles que pertencem à classe domi-
nante (donos do poder econômico). Para Marx o Estado é visto
como dominação de classe.6 Igualmente para Max Weber, o Es-
tado não se deixa definir a não ser pelo específico meio que lhe é
peculiar, tal como é peculiar a todo outro agrupamento político,
ou seja, o uso da coação física (Weber, 1999b, p. 56). Consiste em
uma relação de dominação do homem sobre o homem, fundada
no instrumento da violência legítima. Definição de Estado para
Weber: “empresa institucional de caráter político onde o apare-
lho administrativo leva avante, em certa medida e com êxito, a
pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao
cumprimento das leis”.
A segunda teoria é a Teoria evolucionária. Segundo esta
teoria o Estado desenvolveu-se naturalmente a partir da união
de laços de parentesco, em que o mais forte (guerreiro mais hábil
ou caçador e pescador ou o mais velho) detinha o controle do
poder. Evolução do bando – clãs – tribos (caçadores e coletores
nômades) até agricultores e pastores (nascimento do Estado).
A terceira teoria é chamada de Teoria do direito divino. Para
os estudiosos que defendem esta teoria, o Estado nasceu na Eu-
ropa, entre os séculos 15 e 18. Defendem que o Estado foi criado
por Deus, e Deus delegou o poder divino de governar aos reis
(despotismo esclarecido). Como exemplo da Teoria do direito di-
vino temos as experiências dos governos absolutistas de Henrique
VIII e Luís XIV.
6 Da mesma forma, para Pateman, “o Estado está inescapavelmente comprometido com a manutenção e reprodução das desigualdadesda vida cotidiana, enviesando decisões em favor de interesses particulares” (Apud Held, 1991, p. 149).
Governos absolutistasHenrique VIIIe Luís XIV:
Principais reis absolutistasdos séculos XVI e XVII.
TEORIA POLÍTICA
40
Jean Bodin e Bossuet defendiam o poder divino dos reis para administrar o Estado.
Afirma Bodin:
Nada havendo de maior sobre a Terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos, e sendo por
Ele estabelecidos como seus representantes para governarem os outros homens, é necessário
lembrar-se de sua qualidade, a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes a majestade com toda a
obediência, a fim de sentir e falar deles com toda a honra, pois quem despreza seu príncipe
soberano, despreza a Deus, de quem ele é a imagem na Terra (Bodin, apud Chevallier, 1986, p. 61).
Da mesma forma, para Bossuet, o rei é a própria presença de Deus na terra:
Considerai o príncipe em seu gabinete. Dali partem as ordens graças às quais procedem
harmonicamente os magistrados e os capitães, os cidadãos e os soldados, as províncias e os
exércitos, por mar e por terra. Eis a imagem de Deus que, assentado em seu trono no mais alto dos
céus, governa a natureza inteira... Enfim, reuni tudo quanto dissemos de grande e augusto sobre
a autoridade real. Vede um povo imenso reunido numa só pessoa, considerai esse poder sagrado,
paternal e absoluto; considerai a razão secreta, que governa todo o corpo do Estado, encerrada
numa só cabeça: vereis a imagem de Deus nos reis, e tereis idéia da majestade real (Bossuet, apud
Chevallier, 1986, p. 97-98).
Em outras épocas da História Antiga tivemos, igualmente, a teocracia como forma de
governo, como nos impérios egípcio, chinês, bem como entre os astecas e maias. Mais próxi-
mo dos nossos tempos tem-se a experiência administrativa centralizada autocrática do
Mikado experienciada no Japão até 1945.
Por fim, a Teoria do contrato social, a mais significativa das teorias da origem do Esta-
do. O Estado nasce do contrato social. Nos séculos 17 e 18 os filósofos John Locke, Thomas
Hobbes e Jean-Jacques Rousseau desenvolveram esta teoria. Do “Estado de natureza” para
o “Estado civil”,7 sobre os quais aprofundaremos nosso estudo nas Unidades 8 e 9.
Como você pode constatar, esta Unidade teve por objetivo conceituar o Estado. Por isso
insistimos na análise do Estado (funções, poderes, forma de poder, relações de classe), e aborda-
mos, também, as principais teorias que o justificam. Na próxima Unidade vamos conhecer o
pensamento político das sociedades primitivas e também das sociedades orientais. Vamos lá?
7 As unidades 8 e 9 deste trabalho irão discorrer sobre a Teoria do contrato social. Para entender a evolução do Estado conferir,igualmente, o trabalho de Pasold (2004).
41
TEORIA POLÍTICA
Unidade 3Unidade 3Unidade 3Unidade 3
O Pensamento Político das Sociedades Primitivas e Orientais
Seção 3.1
O Estado primitivo
Ao analisarmos o Estado primitivo, convém lembrar a fragilidade de suas relações po-
líticas, as quais eram muito diferentes daquelas que conhecemos na atualidade. Inicialmen-
te é pertinente definir alguns conceitos, como bando, tribo, caçadores e coletores, agriculto-
res e pastores, que julgamos consistirem passos fundamentais para compreender a evolução
dessas sociedades até alcançarem o estágio final denominado Estado.1
Patrícia Crone (1992, p. 84) afirma que a primeira civilização da História, ainda em
tempos remotos, foi produto da religião, isto é, as suas relações não estavam submetidas aos
poderes de um chefe de ordem material, mas sim sob o domínio de uma imaginação detento-
ra de autoridade suprema: “Quem detinha o poder eram os deuses, e não seus escravos, que
possuíam a terra”. Assim, as manifestações religiosas estavam ligadas essencialmente aos
fenômenos da natureza, ou seja, tudo o que fosse misterioso, tudo o que o homem não
entendesse, o inexplicável, era atribuído à força divina: o sol, as estrelas, a lua, o trovão,
todos são exemplos de divindades da época.
Crone cita o bando como o primeiro estágio da evolução política da humanidade. No
bando, a organização é mínima; em contrapartida, a barbárie é uma constante. A tribo é
considerada o segundo estágio dessa evolução, pois são sociedades ordenadas em referên-
1 Importante lembrar que o Estado, como nós o conhecemos na atualidade, é uma criação da modernidade (séculos 16 e 17). Algunsautores, no entanto, defendem que o Estado surgiu juntamente com a própria civilização. Esta evolução é evidenciada nesta unidade.
TEORIA POLÍTICA
42
cia a parentesco, sexo e idade. Embora sendo um estágio superior ao bando, a tribo ainda
não alcança uma organização capaz de estruturar a comunidade no aspecto social e econô-
mico, nem mesmo no aspecto coercitivo: todos tomam as decisões ao mesmo tempo (1992, p.
84). Em conseqüência, há desunião, destruição e morte, pois “a atividade humana não pode
ser coordenada em larga escala e a fissão é uma parte normal do processo político” (p. 82).
Após iniciar pelo bando e chegar à condição de tribo, é necessário que a mesma seja destruída
para que realmente ocorra a estruturação do Estado.
Os pioneiros, contudo, na elaboração e na estruturação de uma forma precária de
Estado são os coletores e caçadores, que segundo a descrição de Gamble (1992), são socie-
dades originárias da pré-História e formam as primeiras manifestações de poder objetivadas
em uma comunidade humana. Com os coletores e caçadores temos a “sociedade de abun-
dância original”, caracterizada por uma curta semana de trabalho e poucas preocupações,
graças a uma despensa naturalmente bem abastecida, promovendo uma pequena popula-
ção. Da mesma forma, os coletores e caçadores eram vistos como sábios econômicos, toman-
do decisões perfeitamente sensatas, evitando o desperdício e, conseqüentemente, a crise e a
fome em tempos de escassez. Atualmente os estudiosos os recordam como povos providentes
e previdentes, são exemplos de bons administradores de recursos, guiados pelo princípio do
menor esforço e da eficiência na conservação das calorias dos alimentos. Pode-se presumir,
então, que o Estado não se iniciou com os coletores e caçadores, mas com os povos que
começaram a cultivar a terra, os agricultores, e os pastores a cuidar dos rebanhos, daí a
afirmação: “Os caçadores e coletores não constituíram os primeiros Estados, mas formavam
os primeiros ‘caçadores’ de Estado”.
É possível perceber então as origens neolíticas como fases importantes, em que aparece
a domesticação dos animais e plantas como fator central na transformação da sociedade em
relação à estatitude final. Surge, então, a transição da selvageria para a parceria decorrente
da revolução econômica e científica, oriundas das relações, primeiramente, dos caçadores e
coletores, para a agricultura e pastoris. A partir do desenvolvimento da agricultura e de seu
acúmulo, passa-se à criação de normas, direitos e deveres decorrentes dessa realidade.
As relações de poder e a organização política parecem ser uma atividade constante, já
nas sociedades primitivas. Neste sentido, os primeiros líderes da sociedade primitiva eram,
simplesmente, os mais fortes, que acabavam negociando, com os demais membros, certos
43
TEORIA POLÍTICA
privilégios. Assim, com o passar do tempo o homem, aos poucos,
desenvolve sua inteligência, o que proporciona o avanço
tecnológico, igualando-se ao detentor do poder por meio da for-
ça física: nessa fase, quem detém o machado ou as lanças tem,
igualmente, o poder, pois são utensílios que serão usados para a
caça (garantindo a sobrevivência), para a proteção do grupo e
para a conquista de novos territórios. A tecnologia estenderá seus
benefícios ao homem na produção eficiente dos alimentos e dos
agasalhos e, ainda, na incrementação do cultivo intencional e
organizado de plantas comestíveis (cultivo do arroz e do milho e,
na América, do trigo) e do pastoreio de animais (ovelhas, bois,
cavalos). Percebe-se então que “o poder não é só das forças ou
das armas, é muito mais dos que detêm a tecnologia do cultivo e
do pastoreio”. Os constantes conflitos entre tribos primitivas,
assim como os freqüentes ataques e saques aos rebanhos e ao
armazenamento de alimentos, possibilitaram o surgimento de uma
nova classe, a guerreira, em outras palavras, a classe militar. Desta
realidade surge a institucionalização e as relações entre os pode-
res, como o comandante versus comandado, e na escolha de um
novo comandante na ausência ou morte do anterior.
Seção 3.2
O Estado oriental
Os estudos de Gaetano Mosca (1968) remetem para antes
do início do terceiro milênio a.C. o surgimento das primeiras ma-
nifestações de corpos políticos capazes de se organizarem sob uma
direção única e fundarem vastos impérios com população nume-
rosa.
Neolítico
O Neolítico, também chamadode Idade da Pedra Polida (porcausa de alguns instrumentos,feitos de pedra lascada e pedrapolida), é o período da Pré-História compreendidoaproximadamente entre 12.000a.C. e 4.000 a.C. Durante esteperíodo surge a agricultura. Afixação inerente ao cultivo daterra provoca o sedentarismo(moradia fixa em aldeias) e odesenvolvimento da vida emsociedade, assim como oavanço cultural e o aumento dapopulação.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Neol%C3%ADtico>.Acesso em: 10 jan. 2008.
TEORIA POLÍTICA
44
Crescente Fértil2
Estudos atuais acenam para a região da baixa
Mesopotâmia, banhada pelos rios Tigre e Eufrates, e, no Egito,
pelo Nilo, como sendo as regiões nas quais se desenvolveram as
primeiras civilizações. Outras civilizações surgiram como uma for-
ma de organização política e formação de um tipo de Estado: na
Ásia Central e Meridional, igualmente ao norte da Babilônia e
na Ásia Menor; durante o segundo milênio nasceram os impérios
dos mitaneus e dos hititas (Mosca, 1968, p. 18-19).
Mosca cita os povos arianos, no segundo milênio a.C., como
formadores de Estados desenvolvidos. A China apresenta-se, sob
o governo de Confúcio (século 7º a.C.), como importante organi-
zação social e política. O autor (p. 19) apresenta algumas carac-
terísticas comuns aos Estados orientais:
2 Mapa da Crescente Fértil. Disponível em: <http://www.ff.ul.pt/paginas/jpsdias/histfarm/crescentefertil.gif>. Acesso em: dez. 2007.
Povos arianos
A palavra ariano, ao referir-se aum grupo étnico, tem váriassignificações. Refere-se, maisespecificamente, ao subgrupo
dos indo-europeus, que seestabeleceu no planalto iranianodesde o final do terceiro milênioa.C. e que povoou a penínsulada Índia por volta de 1500 a.
C., vindo do norte, peloPunjabe, disseminando-se pelaÍndia, Pérsia e regiões adjacen-tes. Estes são também chama-
dos de árias. A sua culturaficou particularmente expressa
nos Vedas e, principalmente, noRig Veda, considerado o mais
antigo. Por extensão, adesignação “arianos” (não o
termo “árias”) passou a referir-se a vários povos originários
das estepes da Ásia Central – osindo-europeus – que se
espalharam pela Europa e pelasregiões já referidas, a partir do
final do período neolítico. Otermo designa ainda osdescendentes dos indo-
europeus que fundaram acivilização indiana, subjugandoas populações locais, dando
origem ao sistema de castas e,mais especificamente, às castas
dominantes dos brâmanes,xátrias e vaixás.
O termo ganhou outro significa-do com a ideologia nazi que,baseando-se em teorias de
vários autores do século 19,empregou-o para classificar
uma suposta raça comum aosindo-europeus e aos seus
descendentes não miscigenadoscom outros povos. Deve-se a
este fato a vulgar confusão queidentifica arianos com os povosnórdicos e, mais especificamen-
te, germânicos.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/
Arianos>.Acesso em: 10 jan. 2008.
45
TEORIA POLÍTICA
1ª) o chefe do Estado era, ao mesmo tempo, chefe militar, juiz su-
premo e coletor de impostos;
2ª) as dimensões territoriais eram grandiosas, o que favorecia a
diferenciação entre as classes, que acabavam subordinando-se
umas às outras.
O império dos persas foi o primeiro Estado a conseguir uni-
ficar todos os países de civilização mais ou menos antiga, que se
estendiam do mar Egeu até os confins da Índia, compreendendo
também o Egito. A unificação do império persa compreendia os
impérios da Babilônia, Egito e Lídia sob o governo de Ciro (559
a.C.), até o governo de Dário de Hestapses (485 a.C.).
A forma de governo que dominava nos impérios orientais
era a monarquia absoluta ou o poder despótico assumido pela
autoridade de um homem que era a encarnação da própria divin-
dade e governava de forma autocrática e tirânica, suprimindo
qualquer resquício de liberdade dos súditos.
Do ponto de vista material, os povos orientais nos legaram
a domesticação de animais e a agricultura. A primeira serviu para
o desenvolvimento do homem no decorrer da História: o boi, o
asno, o cavalo e o carneiro foram úteis para o homem, não só
para o transporte como para alimentação e proteção contra o frio
(lã). A segunda, baseada no cultivo do trigo, cevada e arroz, ser-
viu para a alimentação do homem. Do ponto de vista cultural,
herdamos a Matemática e a Astronomia. Sob a visão das leis,
herdamos o Código de Hamurábi, em vigor na Babilônia desde
2.200 a.C., no qual foram numeradas e sancionadas as regras
mais indispensáveis à moral social, capaz de impor regras e pro-
piciar a boa convivência entre as sociedades. A religião dos po-
vos orientais foi de suma importância para a humanidade: pri-
meiro, o budismo; logo após, o cristianismo e o islamismo, pro-
vindas do velho judaísmo.
Código de Hamurábi
O Código de Hamurábi é umdos mais antigos conjuntos deleis já encontrados, e um dosexemplos mais bem preserva-dos deste tipo de documento.Proveniente da antigaMesopotâmia e, segundo oscálculos, estima-se que tenhasido elaborado por Hamurábipor volta de 1700 a.C.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_de_Hamurabi>.Acesso em: 10 jan. 2008.
TEORIA POLÍTICA
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Segundo Rubim et al (1988, p. 87):
As civilizações do Oriente próximo – chamado, igualmente, de Ásia Ocidental ou Ásia Anterior –
compreendiam os povos do Egito, da Arábia, da Síria, da Palestina, da Mesopotâmia, da Armênia,
do Irã e da Ásia Menor. Foi nessa região que surgiram as primeiras civilizações da Antiguidade
(região chamada Crescente Fértil), faixa de terra que forma a Mesopotâmia, a Síria e a Palestina.
O poder político oriental estava ligado, essencialmente, ao poder religioso: a autorida-
de se sustentava em uma religião (1988, p. 90).
O poder teocrático significa o governo de Deus (teo = Deus + cracia = governo, po-
der), ou seja, o imperador, faraó, patriarca, monarca, exerce o poder seguindo a vontade
divina, o que o torna um ser transcendente, imortal, imbatível, infalível, e conseqüentemen-
te incontestável, restando aos demais súditos acatar suas ordens.3 A teocracia, segundo
Queiroz Lima (1957), é a participação da autoridade divina no governo dos homens. Assim,
no Oriente pode-se exemplificar duas realidades: “ora o monarca é o representante da divin-
dade, a sua vontade é divina, a sua pessoa é a de um próprio deus, descendente de deuses,
com poderes ilimitados sobre a pessoa, a vida e a propriedade dos súditos; ora o poder do
monarca é subordinado ao poder divino e por ele rigorosamente limitado”. O autor conclui
afirmando que o Egito é o exemplo mais perfeito da primeira forma e o povo judeu é o
exemplo da segunda.
O Estado oriental é composto pelas civilizações mediterrâneas da Antiguidade orien-
tal, da qual fazem parte a Babilônia, o Egito, povos hititas e hebreus (3º ao 1º milênio a. C.),
China, Índia e Pérsia, que desembocariam na Grécia (territórios compostos pelas realezas
micenas e cretenses) e em Roma (formada por realezas etruscas). Como características prin-
cipais desse modelo de Estado podemos citar: a larga extensão territorial; o Estado unitário,
centralizado no rei (monarquia teocrática); o regime autoritário e totalitário e a ausência
quase total de garantias individuais das pessoas ante o Estado.
3 A palavra teocracia foi criada por Flavius Josephus, historiador judeu que viveu entre os anos 37 e 100 da Era Cristã, tendo chegado aassumir o posto de general e a exercer grande influência na Judéia. Josephus teve atuação muito importante como intermediário entreromanos e judeus, tendo, no final de sua vida, após a queda de Jerusalém, no ano 70, adotado a cidadania romana, vivendo em Roma erecebendo uma pensão do Estado. Sua principal obra, Antiguidade dos judeus, de caráter histórico, é um repositório de informaçõessobre a vida do povo judeu desde a criação do mundo; encontram-se aí também referências à organização e à vida de outros povosantigos (Jellinek apud Dallari, 1995, p. 53).
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TEORIA POLÍTICA
O poder nos impérios orientais era, segundo Chauí (1994), exercido por um chefe de
família ou de famílias (clã, tribo, aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo
sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo, sobre a posse e distribuição das
riquezas, a guerra e a paz, as alianças, o proibido e o permitido. O poder estava sempre nas
mãos dos que detinham o poder econômico (proprietários da terra e dos rebanhos). Além
disso, detinha o poder religioso, que servia de aparato ideológico para a perpetuação e a
incontestável supremacia do poder; e o poder militar, concentrando a chefia do exército e a
decisão sobre a guerra e a paz. Em decorrência disso, o chefe era rei, sacerdote e capitão.
O poder no Estado Antigo possuía as seguintes características, segundo a classifica-
ção de Chauí:
a) despótico ou patriarcal: exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele
ligadas por laços de dependência econômica e militar e por alianças matrimoniais;
b) total: o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quan-
to ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do chefe): “Aquilo que
apraz ao Rei tem força de lei”. Chefe do poder religioso, militar e econômico;
c) incorporado ou corporeificado: o detentor do poder figurava em seu próprio corpo as ca-
racterísticas do poder, apresentando-se como manifestação da própria comunidade: a
cabeça encarnava a autoridade que dirige; o peito, a vontade que ordena; os membros
superiores – encarnavam os delegados que lhe representavam (sacerdotes e militares) e os
membros inferiores – encarnavam os súditos, que o obedeciam. Essa divisão mostra a
hierarquia e a concentração do poder na cabeça e no peito do dirigente;
d) mágico: o detentor do poder possuía força sobrenatural ou mágica. A palavra, gestos e
desejos do rei tinham força para matar e curar, sua maldição destruía tudo quanto fosse
amaldiçoado por ele. Dele dependiam a fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na
guerra, início ou fim de uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;
e) transcendente: por ser de origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se em sua imor-
talidade, como condição da preservação da comunidade. Essa divinização o situava aci-
ma e fora da comunidade;
f) hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um membro da
família real.4
4 Classificação de Chauí (1994).
TEORIA POLÍTICA
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3.2.1. EXEMPLOS DE TEOCRACIAS ORIENTAIS
Hegel, em Lições sobre a Filosofia da História (1975), defende que a História universal
segue um caminho definido, inicia-se no leste e termina no oeste, tendo a Europa como
centro: “a Europa é o fim da História universal, e a Ásia é o começo”.5 Podemos entender
História Universal como sendo o “disciplinamento da arrogância da vontade natural”, rea-
lidade em que se encontram inseridos os impérios do Oriente (China, Índia, Pérsia), África e
o Novo Mundo (as Américas). Para o pensador germânico, esses povos estão submersos no
“puramente particular” (fechados aos conceitos universais), bárbaros, a-históricos, atrasa-
dos, enclausurados em si mesmos, não alcançando a “liberdade subjetiva”.6
Seguindo o pensamento hegeliano, o conceito “liberdade” é acessível somente para
alguns povos. No Oriente somente um é livre, isto é, o rei despótico; já no mundo grego e
romano alguns são livres em decorrência da participação efetiva dos cidadãos nas decisões
da pólis, e, finalmente, no mundo europeu moderno (impérios germânicos) todos são livres.
Dessa forma temos, inicialmente, o despotismo; logo após, surgem a democracia e a aristo-
cracia e, por último, a monarquia.
O Oriente é considerado por Hegel como a infância da humanidade, por estar subordi-
nado às determinações do soberano, que está no centro do poder exercendo o comando
centralizador, autoritário e despótico sobre os súditos. Nesse estágio visualiza-se um mo-
mento de estagnação e retrocesso em que os indivíduos permanecem como meros especta-
dores da História, comprovando-se a inexistência da reflexão em sua própria liberdade sub-
jetiva.
O mundo grego é comparado à adolescência da humanidade “porque é ali que as
individualidades se formam”. A Grécia é “o segundo princípio da História Universal”, na
medida em que o seu povo contempla a união da moralidade com a individualidade, ou seja,
estabelece aquilo que denota o livre querer dos indivíduos: “Eis aí a união do princípio
moral e da vontade subjetiva ou o reino da bela liberdade”.
5 Doravante a obra de Hegel Lições sobre a Filosofia da História Universal aparecerá no texto como LiFH.
6 Para um maior aprofundamento da teoria de Hegel sobre a Filosofia da História, conferir o trabalho de Hyppolite (1971).
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TEORIA POLÍTICA
O império romano é considerado o “áspero labor da idade viril da História”, ou seja, o
terceiro momento da universalidade abstrata, “porque o varão não depende do arbítrio do
senhor, nem do capricho individual da beleza, mas serve ao fim universal, no qual o indiví-
duo atinge o seu próprio fim”.
Ocorre, a seguir, uma mudança da perspectiva do indivíduo perante o Estado, uma
vez que o homem grego, o cidadão (dono de propriedade e de escravos) filosófico (reflexivo),
participa efetivamente nas decisões políticas da cidade, na qual encontra a “alegria e a
satisfação”, o que não acontece com o homem romano, em que o indivíduo encontra o
trabalho rude e áspero.
Se Roma conquistou a Grécia pelas “armas”, a Grécia conquista Roma pela cultura,
pelo saber e pela religião. Comprova-se tal afirmação analisando-se as divindades romanas,
que são as mesmas gregas: Roma torna-se um panteão de divindades e de todas as
espiritualidades herdadas da cultura grega. À internacionalização da cultura grega chama-
mos de helenismo.
No quarto momento da História Universal, Hegel apresenta o mundo germânico moder-
no como síntese da tese (Grécia) e da antítese (Roma). Corresponde à velhice, não como
fragilidade (natural), mas velhice no sentido da perfeita maturidade e força. Emerge o Esta-
do moderno como força autônoma desapegada aos ditames da Igreja, com uma política
laica: “o Estado não é mais inferior à Igreja, nem lhe é subordinado”. Hegel compreende
“Estado” como uma palavra que expressa mais do que estruturas políticas de uma comuni-
dade, de tal sorte que uma expressão de alcance maior como “cultura nacional” traduziria
melhor seu significado.
Pode-se afirmar que o Estado, para Hegel, é a base e o centro dos demais elementos
concretos da vida de um povo, uma vez que totaliza a Arte, o Direito, a Moral, a Religião e
a Ciência. O Estado é o “Todo Moral”, a “Realidade da Liberdade”, a “Objetividade do
Espírito”, a “Idéia Divina, tal como existe sobre a Terra”. Dessa maneira, o ápice da liberda-
de é o Estado, ou a Cultura Nacional, como verdadeiro “indivíduo histórico”, que é o objeto
de estudo próprio da Filosofia da História de Hegel.7
7 Conferir, igualmente, a explanação e o entendimento de Hegel sobre o Estado nas LiFH (1975, p. 101-126).
TEORIA POLÍTICA
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Ao contrário do mundo germânico de Hegel, o mundo oriental está caracterizado pelo
despotismo, do qual apenas um é livre, o chefe. O espírito dos demais encontra-se submerso
na particularidade indiferenciada. “A liberdade dos indivíduos existe somente como aciden-
te de uma substância que é, na verdade, a consciência natural na pessoa do chefe supremo,
o déspota, o teocrata” (Florez, 1983, p. 264). A figura do chefe é confundida com a própria
divindade, como se o próprio Deus fosse personificado para reger e comandar o Estado.
Três nações fazem parte do mundo oriental: a China, a Índia e a Pérsia. Somente a
última, contudo, terá a capacidade de intuir o “ser em si”, isto é, terá capacidade de chegar
a uma subjetividade. A China e a Índia não chegarão de forma alguma a atingir o status de
povos históricos do mundo, visto que, para Hegel, a história propriamente dita de um povo
começa quando este se eleva à consciência. Como não há consciência nesses povos, não há
oposição (contradição), e, como não há oposição, não há possibilidade de síntese (supera-
ção) (Weber, 1993, p. 204).
Hegel considera a China como sendo o princípio propriamente oriental. A história da
China, comenta Hegel, é uma história fechada em si mesma, tendo pouca relação com o
mundo exterior. A dependência do indivíduo perante o Estado é total, visto que este Estado
se baseia exclusivamente sobre uma relação social patriarcal, sustentada e caracterizada
pela piedade familiar objetiva.
Os chineses são denominados meros copiadores da cultura européia. O espírito se
encontra ausente na religião, na arte, na Geometria e na Medicina. Hegel conceitua a
religião como sendo a interioridade do espírito, porque na verdadeira religião o indivíduo é
livre. O que se nota é o contrário no homem chinês, o princípio da religião é de dependência
a respeito de um poder superior. “É que os chineses veneram a natureza como se fosse o
supremo” (Hegel, 1975, p. 254).
O homem não pode permanecer subordinado ao sensível, unicamente. Necessita, na
concepção de Hegel, ter algo mais interior, como o pensamento que penetra prontamente
no objeto, sendo que existe algo pensado que se transforma em algo universal e, num modo
geral, a religião da China se refere a uma substância natural e particular.
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TEORIA POLÍTICA
Os povos orientais não tiveram uma concepção definida sobre o Estado. A preocupa-
ção essencial da época não contemplava esse aspecto polarizador. É mister entender tam-
bém que a concepção de Estado que conhecemos na atualidade só passa a vigorar com o
entendimento do Estado Moderno, essencialmente com a Filosofia política de Maquiavel
(rompimento da política com os ditames morais da Igreja Católica), em que se sobressai o
Estado laico sobre o poder eclesiástico.
Segundo Hegel, o império chinês é o mais antigo de que se tem notícia e, desde o
princípio, encontra-se fora do processo que o pensador chama de histórico, por lhe faltar a
“oposição entre a existência objetiva e a liberdade subjetiva, fica excluída qualquer
mutabilidade, e o estático que sempre ressurge substitui aquilo que chamaríamos de histó-
rico” (1975, p. 105). Dessa maneira, Hegel exclui a China da História Universal à medida
que não existe a subjetividade da pessoa, uma vez que o substancial (que se apresenta
como moral) não é parte integrante do sujeito, mas subordinado ao despotismo do chefe
do governo.
Neste caso o indivíduo não possui liberdade e vontade, está inteiramente subordinado
ao chefe, “por isso, o elemento da subjetividade falta nesse todo do Estado, assim como este
não se baseia na convicção” (1975, p. 108). Quem representa a convicção neste Estado é
somente um sujeito, o imperador, e ao povo cabe acatar as suas ordens. O povo chinês
encontra-se subordinado ao poder estatal, pois “no Estado, eles têm ainda menos persona-
lidade, pois nele predomina a relação patriarcal, e o governo baseia-se no exercício do cui-
dado paternalista do imperador que mantém a ordem” (1975, p. 108).
É notável a subordinação e a dependência dos súditos em relação ao governo patriar-
cal despótico exercido na China. Não existem castas ou classes que defendam seus interes-
ses, mas sim o chefe, aquele que comanda e determina as leis, versus os súditos. A depen-
dência dos súditos afeta, igualmente, a dimensão religiosa, “o imperador é, ao mesmo tem-
po, o chefe do governo e da religião” (1975, p. 116). O que resta, então, é uma religião
estatal, isto é, assumida e direcionada pelo chefe. Hegel afirma que este não é o tipo de
religião que o homem moderno europeu cristianizado conhece, pois inexiste “o recolhimen-
to do espírito em si mesmo na contemplação de sua própria essência” (1975, p. 116).
TEORIA POLÍTICA
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Ao fazer referência à Índia, Hegel afirma que esta nação
tem muitas semelhanças com a China, ou seja, fechada em si
mesma e estagnada. A Índia, contudo, tem relações externas com
a História Universal, e esta nação é considerada como depósito
de riquezas que, desde os tempos mais remotos, tem servido para
a exploração e, o que é pior, para o enriquecimento das nações
ocidentais. “A Índia [conclui Hegel] só foi conquistada até hoje”
(1975, p. 280).
A Índia, como a China, é, igualmente, uma terra fechada
em si mesma, “permanece estática e fixa, atingindo o mais perfei-
to desenvolvimento para dentro de si mesma” (1975, p. 123). O
que se sobressai é o caráter da fantasia e do sentimento presentes
em seu território. A religião indiana, como um todo, é panteísta
universal, sobressai-se a religião hindu, que considera o sol, a
Lua, as estrelas, o rio Ganges, o rio Indo, os animais e as flores
como deuses.
A Índia foi importante e, por isso mesmo, mencionada pela
maioria dos pensadores modernos ocidentais, à medida que se
relaciona com os países europeus do mundo novo, fornecendo-
lhe produtos que serviram de comércio, intercâmbio cultural, do-
minação e riqueza.
Sobre a possibilidade de existir um Estado racional, Hegel
afirma que os indivíduos precisam chegar a uma liberdade subje-
tiva, isto é, que impõe diferenças entre si, realidade que não ocor-
re na Índia, onde as diferenças dão-se apenas entre classes. A
classe dos brâmanes é a principal, à medida que o divino é profe-
rido e aprovado (freqüentemente chegam ao poder). A segunda
classe é a dos guerreiros chatrias, que apresentará a força subje-
tiva e a coragem para manter o domínio sobre o povo restante e
perpetuar o Estado. A terceira classe, vaisias, encarregava-se da
Panteísta
Segundo o dicionário Houaiss,o termo foi criado em 1705
por J. Toland, filósofo inglês, apartir do gr. pân, pantós“cada um, totalidade” e gr.
Theós, ou “Deus, deus,divindade”.
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TEORIA POLÍTICA
agricultura, indústria e comércio. A quarta é a classe dos sudras, a classe do serviço, “cujo
objetivo é trabalhar para os outros, a troco de um salário que lhe garanta um meio de subsis-
tência” (1975, p. 127).
A forma de organização e o fundamento do Estado, na concepção hegeliana, constituem
“realidade espiritual em que se realiza o ser consciente do espírito, a liberdade da vontade
como lei” (1975, p. 139). Essa realidade não está presente na China, pois a lei é a vontade
moral do imperador, reprimindo e anulando a liberdade e a individualidade do sujeito.
Na Índia sobressai a imaginação como primeiro aspecto da subjetividade, que signifi-
ca a unidade do natural mais o espiritual. Na China há um despotismo moral, “na Índia um
despotismo sem qualquer princípio, sem regra de moralidade objetiva e a religião tem por
condição e fundamento a liberdade da vontade” (1975, p. 139).
No mundo oriental o princípio de evolução inicia-se, de fato, com a história da Pérsia, por
isso esta história constitui o verdadeiro começo da História Universal. Com o império persa come-
ça a franca conexão com a História Universal. Esta conexão, afirma Hegel, “não é aparente nem
externa, mas uma conexão de conceitos” (1975, p. 323). Sendo assim, o império persa é o primeiro
povo histórico submetido às evoluções e revoluções, únicos testemunhos de uma vida histórica.
Na Pérsia o homem pode separar-se da natureza, visto que sua religião não é a idolatria, não
adora as coisas individuais da natureza, como faziam os indianos, mas o universal.
Ao comparar a Pérsia com a China e a Índia, Hegel afirma a superioridade da primeira
sobre as demais; enquanto a China e a Índia encontram-se estáticas e fechadas em si mes-
mas, a Pérsia está “sujeita aos desenvolvimentos e transformações que por si só já demons-
tram uma situação histórica” (1975, p. 149). Por tal razão a Pérsia é considerada o império
que se inicia e desenvolve juntamente com o conceito de História Universal. Fazem parte do
império persa: os assírios, babilônios, medos e persas.
Ainda como Estado teocrático, temos o exemplo do Estado israelita, que tem a presen-
ça de Deus (Javé) como poder supremo, em que o rei era apenas chefe civil e militar, estan-
do, juntamente com os demais súditos, subordinado aos preceitos da lei ditadas por Deus
(Queiroz Lima, 1957, p. 60).
TEORIA POLÍTICA
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Na visão de Hegel, a História põe à mostra “uma dialética de princípios nacionais”.
Os princípios da Grécia e de Roma, por exemplo, são vistos como formas antitéticas de uma
tentativa de expressar a idéia de liberdade na sociedade, sendo a última uma reação contra
a visão da primeira. Nesse confronto dialético surge o quarto momento do espírito, o qual
alcança a totalidade na figura do Estado germânico, como síntese concreta da individuali-
dade livre dos gregos e do legalismo abstrato dos romanos. Graças ao cristianismo é que o
espírito alcançou sua plena maturidade.
O espírito germânico é o espírito do mundo moderno, cujo fim é a realização da verda-
de absoluta, como autodeterminação infinita da liberdade, que tem como conteúdo sua
própria forma absoluta... O princípio do império germânico deve ser ajustado à religião cris-
tã (Hegel, 1975, p. 571). Vê-se que, dessa forma, Hegel coloca o Estado germânico num
patamar transcendente, relacionando-o com a própria divindade.
O que uniu os povos germânicos foi o cristianismo e, com a religião cristã, o espírito
superior encerrou a reconciliação e a libertação, enquanto o homem adquiriu a consciência
em sua universalidade e infinitude. “O espírito realizou-se e, por isso, o fim dos dias chegou:
a idéia do cristianismo alcançou sua plena realização” (p. 568).
O Estado, segundo Hegel, “... simboliza a unidade da vontade universal e essencial
com a vontade subjetiva, estabelecendo, assim, a moralidade entre os indivíduos, pois so-
mente o Estado tem no homem existência racional... Somente neste tem sua essência. Todo
o valor que o homem tem, toda sua realidade espiritual, a tem mediante o Estado...”
O Estado é o fim e os cidadãos são os instrumentos (p. 101). O Estado, dessa forma, é
o momento mais elevado em que o espírito se realiza em um determinado povo, e esse povo
é, segundo Hegel, o povo germânico.
Por outro lado, ao se referir à África, Hegel a incluiu na participação da “trindade”
Europa, Ásia e África, como totalidades que estão unidas pelo Mar Mediterrâneo, mas a
exclui da História Universal. “A África não tem interesse histórico próprio, é o país filho,
envolvido na escuridão da noite, distante da luz da história consciente” (p. 264).
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TEORIA POLÍTICA
A concretização do Estado hegeliano precisa de uma base que unifique os elementos
da vida de um povo, como arte, Direito, moral, religião e ciência, e que constitua, assim, o
“todo moral”, a “realidade da liberdade” e a “idéia do divino” tal qual existe sobre a Terra.
Na África, conforme Hegel, inexiste uma realidade histórica. “Não há nenhum fim, nenhum
Estado que possa seguir; não existe nenhuma subjetividade, apenas sujeitos que se destro-
em” (p. 182).
A realidade da África é, segundo a posição de Hegel, como a realidade dos orientais,
fechada em si mesma, e a situação do negro não é suscetível de desenvolvimento e educa-
ção, pois permanece estagnada até os dias de hoje. Os africanos, diz Hegel, não têm chega-
do ao reconhecimento do universal. “Sua natureza consiste em estar enclausurada em si
mesma. O que nós chamamos de religião, Estado, o que é em si e por si, o que tem validade
absoluta, não existe todavia para eles” (p. 182).
Por fim, Hegel faz distinção entre o Velho do Novo Mundo, pelo fato de este ser pouco
conhecido dos europeus. O Novo Mundo compreende as Américas do Sul e do Norte e a
Austrália. É essencial a separação do Velho Mundo do Novo, pois este último é novo não
somente no relativo, mas em seu absoluto, evidenciado até mesmo nos caracteres próprios,
físicos e políticos.
Hegel diferencia a América do Norte da América do Sul. A primeira constitui a prospe-
ridade, visto que foi colonizada por povos de religiosidade protestante8 nos seus traços fun-
damentais. Progrediu graças ao desenvolvimento da indústria, da população, à ordem civil
e a uma firme liberdade; toda a Confederação constitui apenas um Estado e tem os seus
centros políticos. A América do Sul, espanhola, católica, em vez de ser colonizada, foi con-
quistada. As repúblicas repousam somente no poder militar, toda a sua história é uma revo-
lução constante; Estados confederados separam-se, unem-se de novo, e todas essas mudan-
ças são operadas por revoluções militares.
Hegel reconhece que os povos que habitaram as terras no Novo Mundo tinham entre
si uma cultura, embora rude, limitada por suas tradições, leis adivinhatórias, seus ritos,
cultos, deuses, os quais repetem em sua consciência, mas ao entrarem em contato com os
8 Sobre a ligação entre religião protestante e capitalismo ver Weber (2004).
TEORIA POLÍTICA
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europeus, pelos quais foram “descobertos”, perderam a sua individualidade cultural. “A con-
quista desses países assinalou a ruína de sua cultura da qual conservamos notícia” (1975,
p. 171).
O Novo Mundo, assim como a África, ficará também fora da História Universal, pois é
necessário que estes povos deixem o espírito dos interesses particulares e orientem-se pelo
espírito da razão e da liberdade. Os americanos não desejam formar Estados jurídicos e uma
lei jurídica formal. Para Hegel, um verdadeiro Estado e um verdadeiro governo somente se
produzem quando já existem diferenças de classes, “quando for grande a riqueza e a pobre-
za, e se der uma relação tal que uma grande massa já não possa satisfazer suas necessida-
des da maneira que estava acostumada” (p. 175).9
Outro exemplo de teocracia foi o Egito. Predominou neste povo a monarquia despóti-
ca, em que o soberano era considerado um Deus (Chauí, 1994, p. 96). O soberano era dono
de todas as terras dos círculos aristocráticos; estes eram responsáveis pelo culto das divinda-
des, acumularam poder e riqueza e desfrutavam de privilégios (isenção de impostos).
No Egito temos, igualmente, o poder teocrático, exercido pelo faraó, o grande rei, que
detinha o poder do Estado dominando os demais. O Estado detinha o poder de administrar
a irrigação da agricultura a partir do Rio Nilo, onde controlava a produção dos alimentos.
O rei dirigia o Estado como divindade, detinha o poder centralizando-o em suas mãos;
da mesma forma incutia a ideologia de que tudo dependia dele; comandava a natureza,
protegia e castigava os cidadãos, exercia poder sobre o tempo de bonança e miséria; por isso
o faraó era chamado de o “Filho do Sol”.10 É importante lembrar que o faraó detinha, igual-
mente, o poder religioso, nomeando os demais sacerdotes como assistentes do “grande”
sacerdote, e o poder militar, decidindo sobre a arte da guerra e da paz.
9 Conferir a crítica de Enrique Dussel sobre o preconceito de Hegel ao se referir à África e às Américas como povos que não alcançarama consciência histórica (Dussel, 1993, p. 13-58).
10 O faraó era um deus, filho de deuses, e sua autoridade era divina. No Egito, entretanto, a existência simultânea de muitos deusesdeterminava um engenhoso sistema de limitações das prerrogativas reais. Se o faraó tinha sobre as outras divindades a incontestávelsuperioridade de ser uma entidade viva, nem por isso lhe era fácil invadir o campo de privilégios dos outros deuses, defendidos porpoderosos colégios sacerdotais, pouco dispostos a consentir em tais invasões. E como as diversas divindades tinham competênciaespecializada, a ação de uma criava para outras limitações intransponíveis (Villeneuve apud Queiroz Lima, 1957, p. 61).
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TEORIA POLÍTICA
No modo de produção asiático, o Estado é o grande detentor da propriedade da terra,
e os que participam dele automaticamente podem usufruir dos seus benefícios, o que não
acontece ao restante do povo, do qual convém servir ao Estado, ser explorado, pagar impos-
tos e trabalhar em serviços forçados (Barbosa; Mangabeira, 1985, p. 81-98).
Na visão de Diakov e Kavalev (1987, p. 97), as classes sociais e o Estado surgem em
épocas e em condições diferenciadas. E, para confirmar essa tese, constata-se que o Estado
surge na medida em que há diferenças de classes, o que ocorreu no Egito no fim do 4º
milênio antes da nossa era, quando se iniciou a irrigação com as águas do Rio Nilo propician-
do o cultivo agrícola em seu vale. A produção excedente absorvida pelo Estado tornou pos-
sível a diferença de classes.
Segundo Marx, o indivíduo, na comunidade oriental, “não passa de um acidente ou
um elemento puramente natural”, pois encontra-se submetido à vontade não de si próprio,
mas à vontade do déspota real (encarnação visível de deus) (Marx, apud Pinsky, 1984, p. 14).
O Estado, segundo o entendimento de Engels, em Origem da família, da propriedade
privada e do Estado, é a força de coesão da sociedade civilizada e que, no decorrer da Histó-
ria, serviu aos interesses da classe dominante: “uma máquina destinada a reprimir a classe
oprimida e explorada” (Engels, apud Pinsky, 1984, p. 21). O que faz a História mover-se,
desde os tempos mais antigos, é a ambição: “seu objetivo determinante é a riqueza – mas
não a da sociedade e sim de tal ou qual mesquinho indivíduo” (p. 22).
É, contudo, quase uma unanimidade afirmar-se que o Estado seja um instrumento
que possibilita a uma classe exercer sua dominação violenta sobre as demais (Clastres, apud
Pinsky, 1984, p. 73).
É necessário, inicialmente, para o surgimento do Estado, “que exista antes divisão da
sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por relação de exploração”, o que
significa que a classe dominante exerça uma relação de exploração sobre a classe domina-
da. Tal situação será possível em sociedades que ultrapassarem o necessário para a sua
sobrevivência, acumulando produtos na propriedade privada, privatizando o excedente da
agricultura, priorizando o econômico. Neste sentido, o Estado só é possível nas sociedades
TEORIA POLÍTICA
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civilizadas, então toda sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado, não importan-
do o modelo social e econômico a ser seguido, em oposição às sociedades primitivas, que
“são sociedades sem Estado”, pois não se preocupam em acumular e a gerar desigualdades.
Nas sociedades primitivas, o chefe não dispõe de “nenhum poder de coerção, de nenhum
meio de dar uma ordem”, não é desse modelo que surgirá o poder despótico.
Esta Unidade procurou analisar a “evolução” do Estado. Trouxe pensadores das ciên-
cias políticas e da Filosofia que discorreram sobre o tema, especialmente Hegel e sua Lições
sobre a Filosofia da História. O importante, para você, estudante, é perceber as transforma-
ções do Estado não só nos períodos históricos, mas também as concepções de Estado para
as diferentes sociedades e civilizações. Vencida esta etapa, passamos ao estudo detalhado
da sociedade grega, que influenciou por meio de sua Filosofia, arte, História e a Política,
muitos outros povos, inclusive todo o Ocidente.
59
TEORIA POLÍTICA
Unidade 4Unidade 4Unidade 4Unidade 4
O Pensamento Político da Sociedade Grega
Seção 4.1
Os gregos: precursores da política e da democracia
Partimos para a análise do mundo grego e, à medida que o conhecemos, vamos aos
poucos notando as razões que nos aproximam desse povo. Os conceitos de Filosofia, Histó-
ria, arte e política que conhecemos na atualidade têm sua origem na civilização grega. Por
tal razão, como vimos na unidade anterior, Hegel, nas Lições sobre a Filosofia da História
Universal, afirmava que, “entre os gregos, sentimo-nos de imediato em casa, pois nos en-
contramos na região do espírito” e no referido povo dá-se a “verdadeira ascensão e por real
renascimento do espírito” (Hegel, 1975, p. 189).
A história grega é dividida por Hegel em três momentos decisivos: inicialmente, com a
formação da real individualidade; em um segundo momento, com a autonomia e a prosperi-
dade na vitória externa e, em um terceiro, com o período de decadência. O fator geográfico
foi preponderante para a formação cultural, econômica e política da Grécia. O litoral
entrecortado e o mar favoreceram o intercâmbio comercial e cultural com outros povos (na-
vegação, migração, contemplação).
Ao se falar em Estado grego consideramos que o mesmo inexistia como Estado úni-
co, isto é, que englobasse toda a civilização helênica. A característica que realmente har-
moniza esta realidade é a cidade-Estado, ou seja, “a pólis, como a sociedade política de
maior expressão” (Dallari, 1995, p. 54). Em termos cronológicos, podemos mencionar o
século 6º a.C. como o início da civilização grega e o século 3º a.C. como o término da
mesma.
TEORIA POLÍTICA
60
O Estado grego apresenta algumas características fundamentais:
a) em oposição ao Estado oriental, temos na Grécia uma reduzida expressão territorial (na
forma de pólis ou cidade-Estado);
b) o conjunto de cidadãos é que toma as decisões políticas;
c) o conceito e a prática da democracia surgem no tempo de Péricles, pela primeira vez na
História;
d) surge o pensamento político;
e) os cidadãos usufruem intensamente dos direitos que a participação política proporciona.
Foi na antiga Grécia que se iniciaram os argumentos lógico-racionais, ultrapassando,
dessa forma, a visão mítica pela qual o homem, até então, se orientava. Os aspectos geográ-
ficos, políticos e sociais contribuíram, intensamente, para que a antiga Grécia fosse o berço
da racionalidade ocidental. Hegel comenta que a “Grécia é a mãe da filosofia, isto é, da
consciência de que o ético e o jurídico se revelam no mundo divino e de que também o
mundo tem validade” (Hegel, 1975, p. 400).
A História começa com os gregos, porque com eles se inicia a consciência e a realiza-
ção de um fim de natureza universal e não de qualquer fim, ao contrário das nações do
Oriente, nas quais a História encontra-se submersa em uma consciência natural e particu-
lar. Assim, como os orientais são considerados povos infantis, isto é, devem aprender o cami-
nho para alcançar a História Universal, a Grécia é considerada a adolescência, que começa
a negar o estabelecido e procura afirmar-se com uma identidade própria. O entendimento
de Thadeu Weber vai nessa direção, ao descrever que os gregos representam o espírito juve-
nil, porque começam a fazer-se livres por meio da consciência. Com a juventude iniciam-se,
propriamente, as contradições. Superá-las significa elevá-las e guardá-las num nível superior
(Weber, 1993, p. 208).
Assim, o homem grego alcança o espírito universal na medida em que se desprende
dos fatos de natureza particular e começa a produzir as coisas por si mesmo.
61
TEORIA POLÍTICA
A cidade grega deixa transparecer a autêntica face do Estado, determinada e instituída
por um acordo entre os indivíduos que, reconhecendo-se mutuamente, fazem um contrato e
se definem como livres: é uma “obra-de-arte política”.
Para que os cidadãos gregos exercessem a participação efetiva na pólis, seriam neces-
sárias a permanência e a perpetuação de escravos para mantê-los e sustentá-los. Argumen-
ta Hegel: A escravidão era a condição necessária de semelhante democracia, onde todo
cidadão tinha o direito e o dever de escutar e pronunciar na praça pública discursos sobre a
administração do Estado, de exercitar-se nos estádios e tomar parte das festas (1975, p.
460). O homem grego, para alcançar sua plena cidadania, deveria estar livre dos trabalhos
manuais da vida cotidiana, deixando estes encargos para os escravos.
4.1.1. A ETIMOLOGIA DA PALAVRA POLÍTICA
A palavra “política” provém dos vocábulos gregos pólis, politeia, política, politikè, ê
Pólis: a cidade, a região, ou ainda a reunião dos cidadãos que formam a cidade; – ê politeia:
o Estado, a Constituição, o regime político, a República, a cidadania (no sentido do direito
dos cidadãos); – ta política: plural neutro de políticos, as coisas políticas, as coisas cívicas,
tudo o que é inerente ao Estado, à Constituição, ao regime político, à República, à sobera-
nia; – ê politikè (techné): a arte da política (Prélot, 1964, p. 7). Em sentido comum, a política
é essencialmente a vida política, a luta em torno do poder; é o fenômeno em si mesmo.1
Para Kitto (1970), a formação da pólis grega resulta, entre outros fatores, de migrações
dos dórios, beócios e tessálios (1200 a.C. em diante). Os núcleos urbanos, construídos em
torno das fortalezas micênicas, se transformam em comunidades político-religiosas autôno-
mas. Ática, Argos, Atenas, Esparta, Tebas, Mileto e Corinto estabelecem relações comerciais
entre si e através de todo o Mediterrâneo. Em torno de 1000 a.C., o intercâmbio comercial
transforma-se num processo de colonização e escravização de outros povos; “pólis é a pala-
vra grega que traduzimos por cidade-Estado. É uma má tradução porque a pólis comum
não se assemelhava muito a uma cidade e era muito mais que um Estado” (p. 107).
1 Para Moses Finley os gregos foram os verdadeiros fundadores da política (1998, p. 31-32).
TEORIA POLÍTICA
62
Na concepção de Chauí (1994, p. 371), pólis significa cida-
de, entendida como comunidade organizada, formada pelos ci-
dadãos (politikos), isto é, pelos homens nascidos no solo da cida-
de, livres e iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis: a
isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito de expor
e discutir em público opiniões sobre ações que a cidade deve ou
não realizar).2 Ser cidadão, para os gregos, significava usufruir
de certas vantagens que nenhum outro homem conhecera. Como
afirma Minogue (1998, p. 19): “Os cidadãos tinham riqueza, be-
leza e inteligência diversas, mas como cidadãos eram iguais”.3
É exatamente na pólis grega (cidade) que se tem uma for-
ma mais acabada e apurada da vida social organizada, o que a
diferencia, e muito, das sociedades anteriores. Segundo Jaeger
(2003), é da pólis que deriva o que entendemos atualmente por
“política” e “político”, e mais, “foi com a pólis grega que apare-
ceu, pela primeira vez, o que nós denominamos Estado – con-
quanto o termo grego se possa traduzir tanto por Estado como
por cidade. Sendo Estado e pólis equivalentes” (p. 98).
Segundo a descrição de Chauí (1994, p. 371), ta politika
são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis,
erário público, organização da defesa e da guerra, administração
dos serviços públicos (abertura de ruas, estradas e portos, cons-
trução de templos e fortificações, obras de irrigação, etc.) e das
atividades econômicas da cidade (moeda, impostos e tributos, tra-
tados comerciais, etc.).
2 Sobre a “palavra” (a importância da discussão), observa Aristóteles (Pol. I; 2): “É evidente que o homem é um animal mais político doque as abelhas ou qualquer outro ser gregário. A natureza, como se afirma freqüentemente, não faz nada em vão, e o homem é o únicoanimal que tem o dom da palavra. E mesmo que a mera voz sirva para nada mais do que uma indicação de prazer ou de dor, e sejaencontrada em outros animais..., o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente, assim como o justo e o injusto.Essa é uma característica do ser humano, o único a ter noção do bem e do mal, da justiça e da injustiça. E é a associação de seres que têmuma opinião comum acerca desses assuntos que faz uma família ou uma cidade”.
3 O trabalho de Minogue (1998) é uma excelente síntese do pensamento político ocidental.
Erário público
Erário = Fazenda, fisco.Público = relativo ou perten-
cente ao governo de um país;repartição pública; cargo
público.
63
TEORIA POLÍTICA
Civitas é a tradução latina de pólis, portanto, a cidade, como ente público e coletivo.
Res publica é a tradução latina para ta politika, significando, portanto, os negócios públicos
dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou cidadãos livres e iguais, nascidos no
solo de Roma.
Pólis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político atual,
chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário público, serviços
públicos) e sua administração pelos membros da cidade. Ta politika e res publica
correspondem (imperfeitamente) ao que se designa, contemporaneamente, por práticas
políticas, referindo-se ao modo de participação no poder, aos conflitos e acordos nas to-
madas de decisão e na definição das leis e de sua aplicação, no reconhecimento dos direi-
tos e das obrigações dos membros da comunidade política às decisões concernentes ao
erário ou fundo público.4
Afirmar que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que, antes
deles, não existissem o poder e a autoridade política propriamente dita.5 Para compreender-
mos o que se pretende dizer com isso, convém examinarmos como era concebido e praticado
o poder nas sociedades que não as greco-romanas.6
Chauí afirma que os gregos e romanos foram os pioneiros na política, mesmo que, no
começo, ambos tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou
patriarcal, próprio das civilizações orientais (1994, p. 374). Assim, um conjunto de medidas
foi tomado pelos primeiros dirigentes – os legisladores –, de modo a impedir a concentração
do poder e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça, das armas, repre-
sentante da divindade.7
4 Para Châtelet (1985, p. 13), a pólis, a cidade grega, é entendida como um dos produtos mais marcantes do “milagre grego”.
5 Segundo Minogue (1998, p. 20), os gregos foram os pioneiros na política. O que vem antes deles, o despotismo oriental, não é política.
6 Conferir a análise de Chauí (1994, p. 371-381) sobre o conceito de política, segundo a etimologia. A invenção da política, segundo aautora, dá-se com os gregos e romanos, bem como todo o vocabulário político que conhecemos atualmente refere-se aos gregos eromanos. A política é entendida pelos gregos como “vida boa”, como racional, feliz e justa, própria dos homens livres. Para os gregos,a finalidade da vida política é a justiça (entendida como concórdia) na comunidade.
7 Não apenas a política inicia-se com os gregos, mas “a poesia épica, a história, o drama, a filosofia com todos os seus ramos, desde ametafísica até a economia, a matemática e muitas das ciências naturais – tudo isto começa com os gregos” (Kitto, 1970, p. 14).
TEORIA POLÍTICA
64
Afirmar que os gregos e romanos foram os inventores da política não significa a insti-
tuição de uma “sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos
nossos” (Chauí, 1994, p. 376). Em primeiro lugar, a “economia era agrária e escravista, de
sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída dos direitos políticos e da
vida política. Em segundo lugar, a sociedade era patriarcal e, conseqüentemente, as mulhe-
res também estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também
estrangeiros e miseráveis” (p. 376-377).
Quem realmente participava da pólis? A cidadania era exclusiva dos homens adultos,
livres e nascidos no território da cidade. Como nos esclarece Chauí (1994, p. 377):
A diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres tivessem direitos políticos.
Assim, para muitos cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades porta-
doras de prestígio que somente os ricos poderiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia
grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas,
construção de templos e teatros, patrocínios de jogos esportivos, de trabalhos artísticos.
Como vimos, o conceito de política, no sentido originário, provém de pólis (politikos),
cidade e tudo o que se refere a ela; conseqüentemente, a tudo que é urbano, civil e público.
O filósofo Platão, na obra A República, tratou da política e do Estado ideal.8 Abordou
as formas ideais e degeneradas de política. Também Aristóteles tratou sobre o tema na obra
A Política. Este foi o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisões do Estado sobre as
várias formas de governo. Originalmente, a política é apenas uma ciência do Estado.
Aristóteles tratou das três formas de poder: o poder paterno, pelo interesse dos filhos; o poder
despótico, pelo interesse do senhor, e o poder político, pelo interesse de governantes e gover-
nados. Atualmente o conceito de política se ampliou e refere-se a atividades que de alguma
forma têm por referência a pólis.
8 Sobre a questão do Estado em Platão, Jaeger, na Paidéia (2003, p. 1.330) afirma que: “... para Platão o Estado nunca é o mero poder,mas sempre a estrutura espiritual do homem que o representa”. E o governante, para Platão, deve conhecer os valores supremos, “...isto é, das coisas de que vale a pena preocupar-se na ação” (Jaeger, 2003, p. 1.372).
65
TEORIA POLÍTICA
4.1.2. A ORIGEM DO CONCEITO DEMOCRACIA
A palavra democracia, de origem grega, significa, pela etimologia, demos – povo, e
kratein – governar. Foi o historiador Heródoto quem utilizou o termo democracia pela pri-
meira vez no século 5 antes de Cristo (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 179).9
Há um entendimento unânime sobre as várias e possíveis “invenções” da democracia
em períodos e espaços determinados da História e da Geografia do Ocidente: “como o fogo,
a pintura ou a escrita, a democracia parece ser inventada mais de uma vez, em mais de um
local [...] depende das condições favoráveis” (Dahl, 2001, p. 19). Grécia e Roma consolida-
ram por séculos seus sistemas de governos, possibilitando e permitindo a participação de um
significativo número de cidadãos. Com o desaparecimento das civilizações clássicas, a de-
mocracia desaparece com elas e por um bom tempo ficará fora de cena no Ocidente.
A democracia grega era uma democracia direta em que os próprios cidadãos tomavam
as decisões políticas na pólis. O modelo de democracia dos antigos foi denominado de de-
mocracia pura, pois consistia em uma sociedade com um número pequeno de cidadãos, que
se reunia e administrava o governo de forma direta. Já as democracias modernas nascem
com a formação dos Estados nacionais e tendem a se configurar de maneira um tanto di-
ferenciada. A complexidade da sociedade moderna exige uma outra forma de organização
política, a da democracia indireta (também chamada de democracia representativa): “essa
combinação de instituições políticas originou-se na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países
Baixos, na Suíça e em qualquer outro canto ao norte do mediterrâneo” (Dahl, 2001, p. 29).
Já do ano 600 ao ano 1000 d.C., os vikings, na Noruega, faziam experiências com Assem-
bléias locais, mas só os homens livres participavam: “abaixo dos homens livres estariam os
escravos” (p. 29). Também na Inglaterra, ainda no período medieval, emerge o Parlamento
Representativo das Assembléias, convocadas esporadicamente, sob a pressão de necessida-
des, durante o reinado de Eduardo I, de 1272 a 1307.
9 O propósito deste capítulo não é aprofundar o debate sobre a origem da democracia clássica dos gregos e romanos (democracia antiga),no entanto sugerimos alguns autores que tratam o tema: Anderson (1998), Arendt (1995), Hegel (1975), Minogue (1998), Kitto(1970), Jaeger (s.d), Chauí (1994), Aranha e Martins (1993), Barker (1978), Aquino et al (1988), Pinsky (1984) e Coulanges (s.d.). Odesdobramento dos debates sobre o desenvolvimento do conceito de democracia, bem como os limites de seus pressupostos desde ademocracia clássica ateniense até as vertentes contemporâneas, já foram muito bem expostos nos trabalho de Held (1987) e Dahl(2001), entre outros.
TEORIA POLÍTICA
66
Bem mais tarde, nos séculos 15 e 16, a democracia reaparece gradativamente nas ci-
dades do Norte da Itália no período renascentista:
Durante mais de dois séculos, essas repúblicas floresceram em uma série de cidades italianas. Uma
boa parte dessas repúblicas, como Florença e Veneza, eram centros de extraordinária prosperida-
de, refinado artesanato, arte e arquitetura soberba, desenho urbano incomparável, música e poesia
magnífica, e a entusiástica redescoberta do mundo antigo da Grécia e de Roma (Dahl, 2001, p. 25).
É assim que, lenta e gradativamente, a democracia vai consolidando-se nas socieda-
des avançadas da modernidade. Impulsionado pelas revoluções liberais, como a Revolução
Gloriosa na Inglaterra (1688/89), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa
(1789), o homem moderno passa a ver garantida, nas suas respectivas Constituições, a defe-
sa dos direitos individuais (vida, liberdade e propriedade). Tem-se aí a consolidação da de-
mocracia liberal, defendida, principalmente, por John Locke. É certo, porém, que tais direi-
tos foram restritos a uma pequena parcela da população e que a desigualdade perdurou por
muito tempo: na Inglaterra, em 1832, o direito de voto era para apenas 5% da população
acima dos 20 anos de idade. O que está em jogo nas Constituições liberais e nos sistemas
políticos modernos são única e exclusivamente os interesses da classe burguesa e o freamento
da participação para o restante da população.
Nota-se que, mesmo que a democracia inventada pelos gregos nos séculos 5º e 4º a.C.
fosse elitista e escravista (participação restrita), ela não deixou de significar um avanço em
relação às tiranias teocráticas das civilizações orientais que a antecederam. Logo após esse
período, a democracia desapareceu por séculos e, depois disso, foi só no final do século 18 e
no século 19 que a idéia voltou a se tornar importante; e apenas no século 20 ela se viu
devidamente afirmada na prática.10 É somente depois da Primeira Guerra Mundial que a
desaprovação geral da democracia foi substituída pela aprovação generalizada (Outhwaite;
Bottomore, 1996, p. 180).
É necessário ressaltar, ainda, que as civilizações greco-romanas eram, de certa forma,
mediterrâneas, ou seja, dependiam desse mar para o intercâmbio comercial e cultural: “O
transporte marítimo era o único meio viável para a troca de mercadorias a média e a longa
10 É claro que houve muitas experiências democráticas, como vimos anteriormente, mas a afirmação da democracia é recente.
67
TEORIA POLÍTICA
distância” (Anderson, 1998, p. 20). É inconcebível entender as civilizações antigas sem o
mar, pois o mesmo era, segundo Anderson, “condutor do brilho duvidoso da Antiguidade”
(Idem, p. 21).
Como vimos, a democracia foi uma criação da genialidade dos gregos, mais precisa-
mente da pólis (cidade-Estado) de Atenas. O termo foi concebido a partir das profundas
reformas sociais e políticas de Clístenes, no final do século 6º a.C. É importante ressaltar
que o termo “democracia” não pode ser entendido sob a tradução cômoda e reducionista de
“governo do povo”. Para os gregos, “democracia” representava o governo dos demos, que
eram um tipo de distrito territorial composto por homens livres, capazes de tomar as decisões
da “cidade” (pólis), isto é, uma forma direta de exercer a ação política, sem as formas repre-
sentativas das democracias modernas.11
No chamado período arcaico (séculos. 8º a 6º a.C.), ocorreram grandes alterações com
o desenvolvimento das atividades comerciais, o que determinou o aparecimento de diversas
pólis (cidades-Estados) na Grécia Antiga. A passagem da predominância do mundo rural da
aristocracia (donos de terras) para o mundo urbano vem acompanhada de outras mutações
igualmente importantes, como o surgimento da escrita, da moeda, das leis escritas, e culmi-
nou com o aparecimento de uma nova racionalidade, a Filosofia (logos), que deu autono-
mia ao homem grego de pensar por si só. A origem do cosmos e do homem não será mais
explicada a partir dos mitos e das divindades, mas a partir da própria razão do homem.
A conseqüência de tais alterações para a política se faz sentir de maneira diferente
conforme o lugar. Em Atenas, porém, desenvolveram-se sobretudo as concepções de cidada-
nia e de democracia, que viveram o seu momento de apogeu no século 5º a.C.12 Em oposi-
ção à idéia aristocrática de poder, o cidadão poderia e deveria atuar na vida pública inde-
pendentemente da origem familiar, classe ou função.13 Todos são iguais, tendo o mesmo
direito à palavra e à participação no exercício do poder.
11 Conferir o artigo de Karnikowski (2000).
12 No século 5º havia talvez de uns 80 mil a 100 mil escravos em Atenas para 30 a 40 mil cidadãos (Wetermann, apud Anderson, 1998,p. 176).
13 Hannah Arendt (1995, p. 41) apresenta uma diferença substancial entre a pólis e a família. Na pólis todos são iguais, na família hádiferenças: “A pólis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer ‘iguais’, ao passo que a família era o centro da maissevera desigualdade”.
TEORIA POLÍTICA
68
Na verdade, eram considerados cidadãos aproximadamen-
te 10% da população ativa da cidade, sendo excluídos os estran-
geiros, as mulheres e os escravos.14 O importante, no entanto, é
que se desenvolveu uma nova concepção do poder, opondo a de-
mocracia à aristocracia e o ideal do cidadão ao do guerreiro.15
O homem (cidadão) era detentor do saber – o ser da Filosofia
tinha direito de filosofar, de participar da academia (culto à beleza
física), do estudo e do poder (direito de comandar politicamente
todos os interesses da pólis, por meio da sugestão/criação de leis e
normas administrativas). A produção cultural, o pensamento filo-
sófico, a academia, eram uma exclusividade dos varões, isto é, de
uma minoria. Cidadão, segundo o teórico Coulanges (s/d),
é todo o homem que segue a religião da cidade, que honra os
mesmos deuses da cidade, (...) o que tem o direito de aproximar-se
dos altares e, podendo penetrar no recinto sagrado onde se reali-
zam as assembléias, assiste às festas, acompanha as procissões, e
participa dos panegíricos, participa dos banquetes sagrados e re-
cebe sua parte das vítimas. Assim esse homem, no dia em que se
inscreveu no registro dos cidadãos, jurou praticar o culto dos deu-
ses da cidade e por eles combater (s/d, p. 135).
Os escravos e os bárbaros não podiam tomar parte dos am-
bientes sagrados.
Segundo alguns teóricos, apenas 10% dos habitantes eram
considerados cidadãos em Atenas. A fim de reduzir as despesas
do Estado, o governo restringiu o direito de cidadania: somente
os filhos de pai e mãe atenienses seriam considerados cidadãos.
14 Os dados sobre o número exato de habitantes (cidadãos, escravos e bárbaros) de cada cidade-Estado são divergentes entre os estudiosos.Diz Kitto (1970, p. 110) que “só três poleis tinham mais de 20 mil cidadãos – Siracusa, Acragas (Agrimento), na Sicília, e Atenas”.Segundo Anderson (1998, p. 176), Atenas talvez tivesse uma população de 250 mil pessoas.
15 Segundo Aranha e Martins (1993, p. 191), apenas 10% dos atenienses eram considerados cidadãos (cerca de meio milhão dehabitantes), trezentos mil eram escravos e cinqüenta mil metecos (estrangeiros).
Panegíricos
Discurso público em louvor aalguém ou a um ser abstrato.Elogio solene. Que louva, que
contém louvor; elogioso,laudatório. A etimologia do
termo, segundo o dicionárioHouaiss, vem do gr.
panégurikós, é, ón “que dizrespeito a uma festa nacional,em assembléia geral, daí festasolene; elogio público pronun-ciado em festa nacional”, pelolat. panegyrìcus, i “discurso
laudativo”.
69
TEORIA POLÍTICA
As mulheres, os metecos (estrangeiros) e os escravos continuaram desprovidos de quais-
quer direitos políticos (Aquino et al, 1988, p. 200).16 A mulher era considerada o “não-
ser”. Equiparada aos escravos, cuidava dos afazeres “domésticos”, servia como instru-
mento de procriação, não participando, portanto, das decisões da pólis.17 O filho, de prefe-
rência, deveria ser homem, sendo candidato em potencial a exercer a cidadania. O escravo
servia de mão-de-obra para sustento e manutenção dos cidadãos (60 mil para 30 mil cida-
dãos).18
Algumas características principais da pólis grega: reduzida extensão territorial; o cen-
tro da vida política é o povo, ou o conjunto dos cidadãos; surge nas cidades-Estado gregas,
pela primeira vez na História, o conceito e a prática da democracia ateniense (no tempo de
Péricles); nasce, igualmente, o pensamento político e o Direito Constitucional; os cidadãos
gozam intensamente de direitos de participação política. Em síntese, o grego é, por excelên-
cia, o homem dado aos debates na Agora, aos discursos e às discussões políticas (Prélot,
1973, Livro 1, p. 32).19
16 “O cidadão era o homem cujos pais fossem ambos atenienses natos, sendo 20% da população, os outros 80% eram considerados‘bárbaros ou comuns’ (Thomas, 1967, p. 62); “É verdade que havia ali uns 80.000 escravos de ambos os sexos, e apenas 40.000cidadãos, o que daria dois escravos para cada cidadão” (Barker, 1978, p. 45). Ainda sobre a população de Atenas: “A população totalde Atenas na época pode ser estimada de 300.000 a 400.000 habitantes. Este total inclui: i) cidadãos, suas esposas e seus filhos,totalizando mais de 160.000 pessoas; ii) os metecos, ou estrangeiros residentes, a quem os atenienses dispensavam tratamentogeneroso, e que chegavam a 45.000, contanto só os adultos, ou a mais de 90.000, incluindo as crianças; iii) os escravos, cujo númerose estima em 80.000”.
17 A função essencial das mulheres, na Grécia, era apenas a procriação, além de serem equiparadas aos escravos: Aristóteles descreve quemulheres e escravos eram mantidos fora da vista do público, eram os trabalhadores que “com o seu corpo, cuidavam das necessidades(físicas), da vida” (Política 1254b25). “As mulheres que, com seu corpo, garantem a sobrevivência física da espécie. Mulheres eescravos pertenciam à mesma categoria e eram mantidos fora das vistas alheias – não somente porque eram propriedade de outrem,mas porque a sua vida era “laboriosa”, dedicada a funções corporais” (Aristóteles, apud Arendt, 1995, p. 82-83).
18 A democracia ateniense, segundo Aquino et al (1988, p. 196), era uma democracia escravista, pois o trabalho escravo era a base da vidaeconômica da sociedade, e os trabalhadores escravos, que consistiam senão a maioria, pelo menos uma parcela considerável dapopulação da Ática, não possuíam quaisquer direitos civis ou políticos.
19 Péricles faz o elogio da democracia. Segundo o estadista, a democracia ateniense é a escola da Grécia e ressalta seu aspecto original:“não imitamos a Lei dos nossos vizinhos” (Prélot, 1973, Livro 1, p. 56). Também Eurípedes e Isócrates deixaram seu testemunho emfavor da democracia. Diz Isócrates: “Estabelecemos entre os outros a nossa Constituição” (p. 64).
TEORIA POLÍTICA
70
Agora (Praça Pública) de Atenas20
4.1.3. UMA DEMOCRACIA ESCRAVISTA
A brilhante civilização grega no período clássico (séculos 5º e 4º a.C.) emergiu sob o
regime escravista. Não existe cidadão nem pólis sem a contribuição maciça dos escravos;
por isso, costuma-se afirmar que a democracia grega era escravista. Os escravos eram em-
pregados na manufatura, na indústria, na agricultura e na vida doméstica. O número de
escravos para cada cidadão difere de comentador para comentador. Alguns afirmam que
existiam de 3 a 7 escravos para cada cidadão. Aristóteles e Platão, dois grandes pensadores
da Antiguidade, são unânimes ao afirmar a necessidade do trabalho escravo para o ócio do
cidadão: “O melhor Estado não fará de um trabalhador manual um cidadão, pois a massa de
trabalhadores manuais é hoje escrava ou estrangeira” (Aristóteles, apud Anderson, 1998, p.
26). Platão excluía os artesãos dos benefícios de participar da pólis: “O trabalho permanece
alheio a qualquer valor humano e em certos aspectos parece mesmo a antítese do que seja
essencial ao homem” (apud Anderson, 1998, p. 27).
Como vimos, é preciso considerar a democracia grega dentro da lógica da escravidão.
Em vista disso muitos pensadores da Antiguidade clássica não apenas aceitaram, mas justi-
ficaram a existência da escravidão.
20 Ao centro a Agora (praça pública = debate público), acima, à direita, vê-se o Parthenon, símbolo do poder ateniense no fim do século5º. O Parthenon era um dos templos da acrópole de Atenas. Ictinos e Calícrates foram os arquitetos; Fídias foi o diretor da obra, viveuentre os anos de 447/433 a. C.
71
TEORIA POLÍTICA
Jaime Pinsky (1984) relata, no capítulo primeiro de sua obra, 100 Textos da História
Antiga, que o comércio de escravos era uma prática comum entre os amoritas já no século
19 a.C. e que o Código de Hamurábi justificava a escravidão: “Se um homem comprou um
escravo ou escrava e (se) este não tiver cumprido um mês (de serviço) e (se) uma moléstia
(dos membros) se apossou dele, ele retornará a seu vendedor e o comprador que despendeu.
Se um homem comprou um escravo ou uma escrava e (se) surgir reclamação, seu vendedor
satisfará a reclamação” (Código de Hamurábi, GG. 278 / 282, apud Pinsky, 1984, p. 9).
Entre os hebreus, a prática da escravidão seguia algumas regras estabelecidas. Primei-
ra: os escravos trabalhariam seis anos para seu patrão e, no final do último ano, seriam
libertos (ano sabático). Segunda: os escravos não poderiam ser maltratados, vindo, se isso
acontecesse, o seu dono (o patrão) a sofrer duras penas. Geralmente os escravos provinham
dos hebreus de outras nações ou eram comprados como forasteiros que peregrinavam por
terras hebraicas.21
Até mesmo o grande filósofo grego Aristóteles justificava a escravidão por considerar
que há homens escravos pela sua própria natureza e somente um poder despótico (legítimo)
é capaz de governar.22
A necessidade do Estado é decorrente, segundo Aristóteles, das necessidades individuais.
O homem só sentiu falta do Estado quando a satisfação de suas necessidades elementares
não bastava. Só o Estado poderia dar ao indivíduo proteção para que ele realizasse seus
ideais éticos, morais e políticos.
A família apenas dá ao homem a sobrevivência física. O Estado é, portanto, utilitário.
A escravidão não era só admitida como até justificada. Os governantes deveriam ser os
dotados de aptidões espirituais. Àqueles que não possuíam dotes intelectuais – escravos e
estrangeiros – estavam reservados os trabalhos mais humildes. O escravo era considerado
incapaz para exercer a cidadania.
21 Pode-se conferir o Livro do Êxodo (21.1-11, 20-21, 26-27); Levítico (25.39-52). (In: Bíblia Sagrada).
22 A visão que Aristóteles tem sobre a mulher, os escravos e os estrangeiros (bárbaros) é de seres excluídos da cidadania. Conferir Minogue(1998, p. 22).
TEORIA POLÍTICA
72
O escravo, para Aristóteles, era considerado um bem animado que estava a serviço de
outros instrumentos. Aristóteles também distingue os instrumentos de produção dos instru-
mentos de ação: o escravo pertence ao segundo grupo e as máquinas ao primeiro. O escravo
é propriedade de seu senhor, isto é, faz parte do mesmo, então pertence ao senhor por com-
pleto. Por natureza, “o escravo não pertence a si mesmo, senão a outro, sendo homem, esse
é naturalmente escravo; é coisa de outro, aquele homem que, a despeito de sua condição de
homem, é uma propriedade e uma propriedade sendo de outra, apenas instrumento de ação,
bem distinta do proprietário” (Aristóteles, A política, Livro I, 4, 1253b 25ss, apud Pinsky,
1984, p. 12).
No Império Romano, o escravo é uma espécie de homem de segunda categoria, utiliza-
do como mão-de-obra para a sustentabilidade dos cidadãos. Os escravos estavam submeti-
dos ao poder de seus amos. Esta norma já estava estabelecida como direito dos povos, “pois
podemos observar que, de um modo geral, em todos os povos, o amo tem sobre os escravos
poder de vida e de morte, e tudo aquilo que se adquire por intermédio do escravo pertence ao
amo” (Pinsky, 1984, p. 15). O bárbaro que, sendo estrangeiro,23 não tendo sangue grego,
nem ser humano era considerado.24
A Grécia, entretanto, não se tornou importante referência apenas por ser precursora
da política e da democracia. Em seus méritos também está a criação da Filosofia, como
veremos na seção seguinte.
23 Se ao cidadão dá-se o direito de participar das decisões e dos cultos da cidade, ao estrangeiro, o contrário: “O estrangeiro é aquele quenão tem acesso ao culto, a quem os deuses da cidade não protegem e nem sequer tem o direito de invocá-los” (Coulanges, s/d, p. 135).“Admitir um estrangeiro entre os cidadãos é ‘dar-lhe participação na religião e nos sacrifícios’” (Demóstenes, in: Neaeram, 89, 91,92, 113, 114, apud Coulanges, s/d, p. 136); “Ninguém podia naturalizar-se cidadão de Atenas, quando já o fosse de outra cidade”(Plutarco, Sólon, 24. Cícero, Pro Caecina, 34, apud Coulanges, s/d, p. 136): “O estrangeiro não tinha direito algum. Se entrava norecinto sagrado que o sacerdote havia delimitado para a assembléia, era punido com a morte. As leis da cidade não existiam para ele.Se cometesse algum delito, tratavam-no como um escravo e puniam-no sem processo, pois a cidade não lhe devia nenhuma justiça”(Aristóteles, A Política, III, I,3. Platão, Leis, VI, apud Coulanges, s/d, p. 136): “Podia-se acolher bem o estrangeiro, velar por ele,estimá-lo mesmo se fosse rico ou honrado, mas não se lhe dava parte na religião e no direito. O escravo, de certa maneira, era maisbem tratado que o estrangeiro; na verdade, sendo membro de uma família, da qual participava do culto, estava ligado à cidade porintermédio de seu senhor; os deuses protegiam-no. Por isso a religião romana dizia que o túmulo do escravo era sagrado, mas nãoconsiderava igualmente sagrado o do estrangeiro” (Digesto, liv. XI, tít. 7, 2; Liv. XLVII, tít. 12, 4, apud Coulanges, s/d, p. 137).
24 É importante mencionar que a palavra bárbaro, para os gregos, não contém o mesmo significado que lhe damos atualmente, não eraum termo de desprezo ou repugnância, mas apenas era considerado bárbaro “aquele que não falava grego”, ou “pertencesse a algumatribo selvagem da Trácia, ou a uma das luxuosas cidades do Oriente, ou do Egito, que, como os gregos bem sabiam, tinha sido um paísorganizado e civilizado muitos séculos antes de a Grécia existir (Kitto, 1970, p. 12); “O estrangeiro (bárbaro) não era cidadão” (Aquinoet al, 1988, p. 191).
73
TEORIA POLÍTICA
Seção 4.2
A origem da Filosofia na Grécia
Para Werner Jaeger (2003, p. 1.062), “[em] última instân-
cia, foi do ventre materno da poesia, a mais antiga paidéia dos
gregos, que tanto a Filosofia como a Retórica brotaram, e à mar-
gem desta origem não poderiam ser compreendidas”. Em nota
(nota 6, p. 1062) acrescenta Jaeger: “A Filosofia grega só pode
ser avaliada na sua importância como membro do organismo da
cultura, desde que seja ligada, da maneira mais íntima, à histó-
ria da cultura grega”.
4.2.1. A FILOSOFIA É “FILHA” DA PÓLIS
O homem grego abandonou, aos poucos, a explicação mi-
tológica (religião) e passou a dar justificação racional para os
problemas de ordem cosmológica (origem do mundo) e antropo-
lógica (origem do homem).25 Os filósofos fundamentavam suas
idéias em conceitos universais. Por exemplo, o conceito de justi-
ça deveria contemplar a justiça a todos os homens e não apenas
a interesse de grupos, como defendiam os sofistas. Os filósofos
trouxeram importantes contribuições para o pensamento políti-
co. Críticos dos costumes e da sociedade do seu tempo, foram
também adversários do regime democrático, por entenderem que
a sua base não era o saber verdadeiro, pois permitia que a falsi-
dade e a incompetência, desde que apoiadas na vontade da maio-
ria, se impusesse.26 Pesou também, na sua oposição à democra-
25 Sobre os gregos e a história da Filosofia conferir o trabalho de Finley (1998), especialmente o capítulo 8º.
26 Para Platão, por exemplo, há um paralelismo entre Estado e homem. Nas “formas estatais da timocracia, da oligarquia, da democraciae da tirania, Platão distingue um tipo de homem timocrático, oligárquico, democrático e tirânico; e entre esses tipos de Homem, talcomo as diversas formas de Estado, estabelece diferentes graus de valor, até chegar ao tirano, último grau da escala e reverso do homemjusto” (Jaeger, 2003, p. 928-929).
Paidéia
segundo Werner Jaeger, era o“processo de educação em suaforma verdadeira, a formanatural e genuinamentehumana” na Grécia antiga.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Paid%C3%A9ia>.Acesso em: 10 jan. 2008.
TEORIA POLÍTICA
74
cia,27 a existência de concepções elitistas acerca da natureza
humana: eles não acreditavam na igualdade fundamental entre
os seres humanos. Aristóteles, por exemplo, defendia a escravi-
dão e o predomínio masculino como uma decorrência da própria
natureza: há pessoas que, por natureza, tendem para o mando;
outras para obedecer – entre estas últimas coloca os escravos.
Essa visão negativa acerca da democracia perdurou entre os in-
telectuais até por volta do século 17.
Nesse sentido é correto afirmar que política e Filosofia nas-
ceram na mesma época. Por serem contemporâneas, diz-se que
“a Filosofia é filha da pólis” e muitos dos primeiros filósofos (os
chamados pré-socráticos) foram chefes políticos e legisladores de
suas cidades. Por sua origem, a Filosofia não cessou de refletir
sobre o fenômeno político, elaborando teorias para explicar sua
origem, sua finalidade e suas formas. A esses filósofos que estu-
daremos na seqüência devemos a distinção entre poder despótico
e poder político.28
4.2.2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS
Pode-se afirmar, inicialmente, que a preocupação essenci-
al dos primeiros pensadores gregos era com o cosmos (nature-
za), no qual procuravam a arché (origem, essência) de todas as
coisas.
27 Sobre a concepção de “Homem Democrático” para Platão: “Tão cedo viverá entre canções e vinho, como beberá água e emagrecerá;tão cedo se dedicará ao esporte como se sentirá mole e inativo ou entregue apenas aos interesses especiais. Às vezes lança-se napolítica, levanta-se e fala, outras vezes retira-se para o campo, por achar formosa a vida rural, ou então dedica-se à especulação. A suavida carece de ordem, mas ele a chama de vida formosa, liberal e feliz. Este homem é uma antologia de diversos caracteres e albergaum tesouro de ideais que se excluem uns aos outros” (Platão, apud Jaeger, 2003, p. 950).
28 Ser filósofo é ser, segundo Castoriadis (1987, p. 114), cidadão por excelência: “O filósofo foi, na Grécia, durante um longo períodoinicial, nada mais nada menos que um cidadão. Por isso, às vezes, foi chamado a “dar leis” à sua cidade ou a uma outra. Sólon é oexemplo mais célebre”.
Heráclito de Éfeso
Disponível em:<http://
www.educacion.yucatan.gob.mx/images/fotos/
tn_200411183168.jpg>.Acesso em: 28 nov. 2007.
75
TEORIA POLÍTICA
O primeiro grande filósofo que a História apresenta é Tales de Mileto, nascido no
século 6º29 , que procurou, pela razão, o primeiro princípio – a arché – que pudesse explicar
toda a realidade cósmica. Foi o primeiro a lançar as bases do materialismo espontâneo ou
da Filosofia da natureza: “Tudo na Natureza derivava de um elemento básico, a água”
(Aquino et al, 1988, p. 212). E chega a esta conclusão: uma vez que as chuvas geram a
fecundidade e todos os seres vivos têm necessidade de umidade, é a água o elemento pri-
mordial de onde nascem todos os seres e que compõe os mesmos.
Outros importantes pensadores surgem neste período: Anaxímines teorizava que a
natureza se desenvolveu a partir do ar (a própria alma é ar); Anaximandro30 afirmava que o
apeiron (matéria) é a base do mundo.
Na segunda metade do século 6º a.C. surgiram os pitagóricos (escola fundada por
Pitágoras). Acreditavam que o número era a essência do Universo, “a medida de todas as
coisas” (a Matemática = Geometria e Aritmética).31 Com Heráclito (fim do século 6º a.C. e
começo do século 5º), foram criados os fundamentos da concepção dialética do mundo, pois
“tudo está em constante movimento”, devir (vir-a-ser).
Para Parmênides de Eléia (que vivei na 1ª metade do século 5º a.C.), o ser é e o não-ser
não é (o devir é impossível). Procurou distinguir aquilo que era objeto puramente da razão
(o que chamou Verdade) e o que era dado pela observação, pelos sentidos – o que denomi-
nou opinião. Na visão de Aquino et al (1988, p. 213), Parmênides abriu discussões que
ainda hoje persistem, como as questões entre a razão e a experiência, entre teoria e prática,
idealismo e materialismo.
29 Ver também Os Pensadores. História da Filosofia. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. Especialmente, cap. Os PrimeirosFilósofos.
30 Para Jaeger (2003, p. 183), Anaximandro é a figura mais importante dos físicos milesianos, para elucidarmos o espírito daquelaFilosofia arcaica. É o único de cuja concepção do mundo podemos obter uma representação exata. Nele se revela a prodigiosaamplitude do pensamento jônico. Foi ele quem primeiro criou uma imagem do mundo de verdadeira profundidade metafísica e rigorosaunidade arquitetônica. Foi ele também o criador do primeiro mapa da Terra e da Geografia científica. Remonta, igualmente, aostempos da Filosofia nascida em Mileto, a origem da Matemática grega.
31 Pitágoras também esboça uma teoria da harmonia musical, ligada aos números: “Conta-se que Pitágoras, examinando a música, teriadescoberto que o som varia de acordo com o comprimento da corda, numa relação proporcional simples: diminuindo pela metade ocomprimento da corda obtém-se uma oitava acima; um acorde (ou harmonia) mais simples é produzido quando o comprimento dascordas está na razão de 3:4:5. a música, em suma, é uma relação numérica, e se desagradável, sem harmonia, é porque a relação entreos números não se encontra em uma proporção justa” (Os Pensadores, 1999, p. 28).
TEORIA POLÍTICA
76
Por fim ainda podemos citar Demócrito (470 a.C. – 370 a.C),
que afirmava ser a natureza composta de partículas sólidas e
indivisíveis – os átomos –, cujos arranjos e movimentos
condicionavam a diversidade dos fenômenos naturais e sociais.
4.2.3. A CONTRIBUIÇÃO DOS SOFISTAS NA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA GREGA
A partir da metade do século 5º, após as guerras persas até
o final do século seguinte, o poder político da antiga aristocracia
e da tirania foi substituído, em várias cidades gregas, pela demo-
cracia escravocrata, comandada pela oligarquia32 que, pela pri-
meira vez, assume a vida política de Atenas. Atenas é o centro da
vida cultural grega. O desenvolvimento da nova ordenação de-
mocrática, com comícios, assembléias e tribunais, tornou possí-
vel a participação dos cidadãos comuns na administração da pólis.
Essa participação, no entanto, estava limitada àqueles que ti-
nham eloqüência e persuasão, como os antigos representantes
aristocráticos, cuja cultura e formação política provinham da tra-
dição familiar, o que não é o caso dos novos detentores do poder.
Como eles não tinham essa formação, foi necessário educá-los
para poderem competir em igualdade de condições e alcançar o
objetivo colimado na pólis. Em decorrência dessa necessidade,
surgiram em Atenas mestres que propugnaram a constituição de
técnicas de persuasão. Esses novos mestres se chamavam sofistas.
Sofista significa educador. Não para uma educação popu-
lar, mas formação de elites (educação dos nobres), de chefes polí-
ticos. Para se ter esta instrução, pagava-se, por vezes, bastante
caro. Esses mestres eram itinerantes, circulavam de terra em ter-
Protágoras
O mais eminente sofista.
Disponível em:<http://www.mundocitas.com/
fotos/968.jpg>.Acesso em: 27 nov. 2007.
32 Ricos proprietários de terras (Os Pensadores, 1999, p. 16).
77
TEORIA POLÍTICA
ra, tinham acesso a várias formas culturais, aos usos e costumes de diferentes povos e luga-
res. Nesses contatos tiveram oportunidade de comparar as diversas instituições políticas,
éticas e religiosas. Constataram a convenção humana, por acordo e pelo hábito, na cultura,
costumes e leis; em conseqüência dessa observação, acabaram difundindo a idéia de que
tudo é relativo.33
Segundo Cotrim (2002),34 os sofistas destacaram-se como mestres do saber político e
da retórica.35 Eles deveriam propiciar aos alunos as habilidades da polêmica e da oratória,
sem as quais um político estava privado de sua principal virtude. Esta é a capacidade da
oratória de cada um que determina o que é justo e não o conhecimento profundo das leis. As
técnicas de discurso não procuravam a verdade, mas provar um determinado ponto de vista;
em alguns casos, falseavam-na conscientemente. Essa indiferença ao tema de que se trata-
va e a tese que se defendesse levou ao desprezo às doutrinas, devendo o aluno ser capaz de
defender qualquer tese, verdadeira ou falsa, boa ou ruim. Assim, atribuíram relatividade a
todas as noções, regras básicas e valores humanos. O aluno deveria conhecer as disciplinas
que consideravam a palavra como tal: Gramática e Retórica. Persuadir era tão importante
que Protágoras chegou a afirmar: “Devemos tornar a parte mais fraca em mais forte”. E,
segundo Górgias, a palavra é o dom com o qual podemos fazer tudo, envenenar e encantar.
O trabalho com a palavra dependia do ensino da gramática, de que eles são os iniciadores,
da crítica literária, da prosa artística, com o ritmo próprio e distinto da poesia, que é também
criação deles, tudo isso tendo em vista a eloqüência. Não descuravam, porém, da Matemá-
tica, Aritmética, Geometria, Astronomia e Música.
Dentre os principais sofistas destacam-se: Protágoras de Abdera, Górgias de Leôncio,
Trasímaco de Calcedônia, Pródico de Cléos, Hípias de Hélade, Crítias de Atenas, Cálices,
Antifonte, Lecrafonte, Alicidamos e Hipódamos de Mileto. Os sofistas contribuíram para o
33 “Os sofistas foram considerados os fundadores da ciência da educação. Com efeito, estabeleceram os fundamentos pedagógicos, e aindahoje a formação intelectual trilha, em grande parte, os mesmos caminhos” (Jaeger, 2003, p. 349).
34 Ver o livro de Cotrim (2002).
35 Escreve Jaeger (2003, p. 366): “Antes dos sofistas não se fala de gramática, de retórica ou de dialética. Devem ter sido eles os seuscriadores.” Ainda Jaeger (p. 368): “Unida à gramática e à dialética, a retórica tornou-se fundamento da formação formal do Ocidente.Desde os últimos tempos da Antiguidade formam juntas o chamado trivium, que juntamente com o quadrivium constituíra as sete artesliberais, que, sob esta forma escolar, sobreviveram a todo o esplendor da arte e cultura gregas...”. O quadrivium dizia respeito àAritmética, Geometria, Música e Astronomia.
TEORIA POLÍTICA
78
abandono da filosofia da natureza, não somente pela mudança na circunstância filosófica,
mas também pelas necessidades criadas pela prática democrática da sociedade ateniense. O
advento da democracia trouxera consigo uma notável mudança na natureza da liderança:
já não bastava a linhagem, mas a liderança política passava pela aceitação popular. Numa
sociedade em que as decisões são tomadas pela assembléia do povo e onde a máxima aspi-
ração é o triunfo, o poder político, depressa se fez sentir a necessidade de se preparar para
ele. Qual era a preparação idônea para o ateniense que pretendia triunfar na política? Um
político necessitava, indubitavelmente, ser um bom orador para manipular as massas. Ne-
cessitava, ainda, possuir algumas idéias acerca da lei, sobre o que é justo e conveniente,
acerca da administração e do Estado. Este era, precisamente, o tipo de treino que os
ensinamentos dos sofistas proporcionavam.
Como contribuição dos sofistas tem-se o abandono do pensamento mítico-religioso; a acei-
tação do racionalismo heracliteano da ordem do universo (uso da razão); a convicção de que as
leis e as instituições são resultados do acordo ou decisão humana: convencional. Os sofistas
eram relativistas, isto é, não acreditavam na possibilidade de os seres humanos chegarem a um
saber objetivo, universal, de modo que “tudo é relativo”. Esta posição – o relativismo – combina-
va com a sua forma de ensinar a argumentar: não interessava tanto o conteúdo científico, mas a
capacidade de convencer os demais. Os filósofos foram severos adversários dos sofistas, exata-
mente por não concordarem com o seu relativismo. Outra característica era o convencionalismo
das instituições políticas e das idéias morais (tudo se resolve por convenções).
É fácil compreender a transcendência destas reflexões da Sofística. Com elas, inaugu-
ra-se o eterno debate acerca das normas morais, acerca da lei natural (phisis) e da lei posi-
tiva (nomos). O debate começa com os sofistas na Filosofia Grega, mas não termina com
eles, como veremos.
4.2.4. O MÉTODO SOCRÁTICO
Sócrates (470-399 a.C.) foi considerado o homem mais sábio da Antiguidade clássi-
ca. Era filho de Sofronisco (escultor) e Fenarete (parteira). A profissão de sua mãe o influ-
enciou a ser “parteiro”, não de crianças, mas de idéias, de conhecimento (ajudou os seus
79
TEORIA POLÍTICA
discípulos a pensar de maneira diferente). Sócrates não fundou
escola filosófica, tinha o método do diálogo (na Agora e nos
ginásios). Fascinou jovens, homens e mulheres da época.36
O tema central de sua Filosofia eram as questões antropo-
lógicas (o conceito que o homem pode ter do próprio homem).
Enquanto os pré-socráticos perguntavam “o que é a natureza ou
o fundamento último das coisas?”, Sócrates indagava: “o que é a
natureza ou a realidade última do homem?”. A resposta a que
Sócrates chegou é de que a essência última do homem é a sua
alma, psyche, nossa sede racional, inteligente e eticamente
operanti, ou consciência, a personalidade intelectual e moral. O
pensamento socrático influenciou todo o Ocidente, da Antigui-
dade até os dias de hoje. Diz Sócrates: “É do aperfeiçoamento da
alma que nascem as riquezas e tudo o que mais importa ao ho-
mem e ao Estado”.
O método de Sócrates seguia dois passos: primeiro ele ado-
tava uma posição de ignorante diante do interlocutor, dava a
entender que era ignorante, fingia que não sabia; com o desen-
rolar das acaloradas discussões ia, aos poucos, colocando o
debatedor, que achava que sabia, em contradição até este se dar
conta de sua própria ignorância. A partir desse momento provi-
nha o segundo passo, que era o processo da “maiêutica”, ou seja,
o momento de dar à luz novas idéias. Dessa forma, o filósofo con-
quistou amigos e inimigos.37
Sócrates
Disponível em:<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/a4/Socrates_Louvre.jpg/300px-Socrates_Louvre.jpg>.Acesso em: 28 nov. 2007.
36 Para maiores informações sobre a vida e a Filosofia de Sócrates conferir a obra de Sócrates: Vida e obra (1999).
37 “No diálogo Ménon, Platão descreve Sócrates praticando a maiêutica com um escravo e levando-o a conceber noções sobre intrincadaquestão matemática (relativa aos ‘irracionais’). Mesmo que não se trate, no caso, do relato de uma fato efetivamente ocorrido, ou seteria sido outro o conteúdo da conversação de Sócrates e o escravo, não importa: a situação descrita por Platão é certamenterepresentativa do menosprezo de Sócrates pelos preconceitos sociais da própria democracia ateniense. Demonstrar publicamente queum escravo era capaz, se bem conduzido pelo processo educativo, de ter acesso às mais importantes e difíceis questões científicas erasem dúvida provar que ele era pelo menos igual, em sua alma, a qualquer cidadão” (Sócrates. In: Os Pensadores, 1999, p. 27).
TEORIA POLÍTICA
80
A característica da Filosofia socrática é a introspecção: “co-
nhece-te a ti mesmo” (torna-te consciente de tua ignorância), que
foi retirado do oráculo de Delfos (templo). É preciso, diz Sócrates,
“bem pensar para bem viver”. Sócrates não deixou nada escrito,
conhecemos sua obra graças aos seus discípulos Platão e
Xenofonte.
Sócrates tomou parte dos assuntos políticos de sua época,
foi um combativo guerreiro. Foi também um crítico da democra-
cia de sua época, combateu os vícios existentes na pólis, por isso
foi perseguido e condenado à morte. Teve a oportunidade de fugir
(pena do ostracismo = exílio político), mas preferiu morrer. O sábio
grego foi condenado à morte sob a acusação de corromper os jo-
vens e pregar falsos deuses (ateísmo). Quem o condenou foram
os poderosos da época (os acusadores: Anito, Mileto e Licon).
Foi obrigado a ingerir um veneno mortal chamado cicuta. 38
Josten Gaarder, no livro O Mundo de Sofia, traça um para-
lelo entre Cristo e Sócrates: ambos eram pessoas carismáticas e
considerados enigmáticos em vida; nenhum deixou algo escrito,
o que sabemos deles foi escrito por seus discípulos; ambos eram
mestres da retórica; ambos desafiaram os poderosos, bem como
criticaram os costumes de sua época; ambos acabaram pagando
com a vida e, paradoxalmente, permanecem vivos, influenciando
todo o Ocidente com a sua Filosofia.
4.2.5. PLATÃO E A BUSCA DO ESTADO IDEAL
Platão nasceu em Atenas em 428 a.C., quando a civiliza-
ção grega se encontrava em declínio. A falta de uma tradição
biográfica confiável compromete a verdade sobre este ilustre filó-
Platão
Disponível em:<http://upload.wikimedia.org/
wikipedia/commons/4/4a/Plato-raphael.jpg>.
Acesso em: 28 nov. 2007.
38 Para acompanhar os últimos momentos da vida de Sócrates é necessário ler a Apologia de Sócrates escrita por Platão (Lisboa: Ed. 70,2000).
81
TEORIA POLÍTICA
sofo. Sabe-se que no ano 380 Platão funda uma Academia (Escola de Formação Filosófi-
ca).39 O filósofo não tomou parte em assuntos políticos.40 Teve como mestre Sócrates, cuja
preocupação era, exclusivamente, as questões humanas, ao contrário dos filósofos anterio-
res, que se preocupavam com o cosmos (ver pré-socráticos).41
Uma das principais passagens da Filosofia platônica está expressa na alegoria da ca-
verna, na qual Platão faz oposição entre o mundo ideal e o real. Para Platão, o mundo ideal
é o verdadeiro: “A terra é uma profunda caverna que a luz da razão não consegue atravessar.
Somos prisioneiros acorrentados nessa caverna e os objetos que vemos são meras sombras
da realidade, a passar nas paredes escuras, diante de nossa vida. O mundo perfeito, o mun-
do real, existe numa idéia (no céu) e o mundo em que vivemos é apenas uma imagem imper-
feita”.42
Após a leitura da obra A República, escrita por ele, pode-se concluir que o diálogo da
obra é uma descrição da república ideal, que consiste na composição harmônica de três
categorias (os governantes filósofos, os guerreiros e os que se dedicam aos trabalhos produ-
tivos). Conclui-se, igualmente, que o Estado de Platão inexiste no plano terreno, existe
apenas no plano ideal, ou seja, o Estado ideal de Platão é o perfeitamente justo. Platão, no
Livro VIII da República, trata sobre as formas de governo e as classifica em ideais e corrom-
pidas. As formas ideais de governo são: a monarquia, considerada a melhor de todas (é o
governo bom de um só); aristocracia (governo bom de um grupo) e a timocracia (desejo de
honrarias). Já as formas de governo consideradas corrompidas são: a tirania (governo mau
de um só), a oligarquia (governo mau de um grupo, governo dos ricos) e, por fim, a repúbli-
39 Platão argumenta que todo processo educativo de uma criança, ou a iniciação cultural da mesma, esbarra na falta de interesse emaprender. Platão menciona que esta falta de interesse não deve ser combatida pela coação ou por medo servil ou por castigo, mas deve-se aplicar métodos condizentes aos alunos à medida que “aprendem como quem brinca” (Jaeger, 2003, p. 915).
40 Platão é um crítico da pólis: “Platão calunia Atenas o máximo possível: graças a seu imenso gênio de diretor de teatro, de retórico, desofista e demagogo, conseguirá impor, por séculos futuros, esta imagem: os homens políticos de Atenas – Temístocles, Péricles – eramdemagogos; seus pensadores, sofistas (no sentido que ele impôs); seus poetas, corruptores da cidade; seu povo, um vil entregue àspaixões e às ilusões. Platão falsifica, com conhecimento de causa, a história” (Castoriadis, 1987, p. 115).
41 “Platão permanecerá, segundo se crê, oito anos ao pé do mestre” (Prélot, 1973, Livro 1, p. 89).
42 Sobre a filosofia política, Platão elaborou três obras que mencionam e enfocam a política: – A República, O Político e As Leis (maisespecificamente em A República e As Leis). Embora tenha tratado de temas políticos em outras obras, é sobretudo nessas duas queele desenvolve uma teoria do Estado, na qual princípios éticos e políticos são combinados. Considera, Platão, a política como artede tornar os homens justos e virtuosos, porém sob o governo dos melhores). Na obra Política, Platão apenas questiona se aautoridade final no Estado deve recair num indivíduo – alguém que personifique a arte de governar – ou na lei. Conferir Rowe (1989,p. 26).
TEORIA POLÍTICA
82
ca/democracia (governo das multidões). A democracia é a pior das boas e a melhor das más
formas de governo.43 Platão distingue um governo bom de um ruim pelo consenso e a força
(legalidade ou ilegalidade).
A função principal dos governantes, na República, consiste em assegurar a felicidade
aos governados, dando-lhes saúde, contentamento e descanso. Platão concebe um Estado
ideal no qual a justiça atende aos desejos e necessidades humanos, satisfazendo-os, e
posiciona-se contra os ideais políticos sofísticos, para os quais o direito nasce da força.
Platão dividia o Estado em três classes: dos lavradores, que fornecem os alimentos; dos
guerreiros, que protegem os lavradores e garantem a integridade territorial do Estado, e dos
magistrados, que se encarregam do bem-estar geral dos habitantes do Estado. A classe
governante, composta de homens idosos, desapegados dos interesses materiais e familiares,
tem, para Platão, mais importância do que a dos trabalhadores e a dos guerreiros.
No Estado platônico, não há propriedade privada nem laços familiares. Para assegurar
uma “sadia” descendência, o Estado é que decidia quem poderia ter ou não ter filhos. Era de
competência do Estado, também, preparar física e intelectualmente a juventude. Os magistrados
fiscalizavam a educação para que o indivíduo fosse preparado a fim de exercer uma função para
a qual tivesse melhor capacidade. Eram os magistrados que escolhiam os mais notáveis para
participar do grupo de filósofos e governantes. Platão entendia que só os mais inteligentes seriam
capazes de governar e, entre os mais capazes, ele incluía o filósofo.44 Vê-se, assim, que Platão era
adepto da sofocracia, ou seja, o poder dos sábios. Somente eles teriam condições de administrar
e comandar o Estado. O poeta, no entanto, não estava incluído na condução do Estado.45
Embora o pensamento político de Platão contivesse idéias utópicas, ele expressava
uma confiança na força fundamental do Estado. A convite de Dion, tirano de Siracusa,
Platão tentou pôr em prática seu ideário político. Não durou muito. Seu modo austero de
conduzir negócios públicos incompatibilizou-o com o governante.46
43 Norberto Bobbio (1997, p. 45-48), capítulo II, referente a Platão; Prélot (1973, Livro I, p. 87-120); Durant (2000, p. 29-68).
44 Platão defende, no livro A República, que o governo ideal seria o governo dos filósofos. “A proposta de Platão, no que se refere aogoverno filosófico: que os filósofos se tornassem governantes, ou os atuais governantes se tornassem filósofos” (Rowe, in: Rechead,1989, p. 17-28).
45 Para Platão, a poesia fala às paixões e instintos humanos, e o homem moralmente superior domina os seus sentimentos e, quando sevê submetido a fortes emoções esforça-se por refreá-las (Jaeger, 2003, p. 985).
46 Thomas (1967, p. 72-82), no capítulo VIII, “Platão, que sonhou com um mundo melhor,” apresenta o idealismo platônico, Platãocomo discípulo de Sócrates e menciona a obra A República como a primeira utopia da História.
83
TEORIA POLÍTICA
Assim como Sócrates, Platão teceu acaloradas críticas às
lideranças políticas que conheceu ou que foram anteriores a ele.
Nem Péricles, nem Címon, nem Milcíades, nem Temístocles en-
contram mérito aos seus olhos, porque nenhum deles tornou
melhores os seus concidadãos, bem pelo contrário (Prélot, 1973,
Livro I, p. 104).
4.2.6. A CIDADE COMO REALIDADE PERFEITA EM ARISTÓTELES
Como vimos anteriormente, Platão projetou na República o
Estado ideal, construindo assim a primeira utopia da História.
Já Aristóteles, ao contrário, afirmou que “este” é o verdadeiro
mundo e a realidade está neste mundo, nos seus objetos, aconte-
cimentos e ações. Segundo Prélot (1973, Livro 1, p. 123), “Platão
simboliza o ideal, Aristóteles, o real; Platão representa a Filoso-
fia, Aristóteles a ciência”.
A principal obra de Aristóteles sobre a teoria clássica das
formas de governo é A Política, que está dividida, segundo a com-
preensão de Bobbio, em oito livros (Bobbio, 1997, p. 55). Destes,
dois (o terceiro e o quarto) são dedicados à descrição e à classifi-
cação das formas de governo; o primeiro trata da origem do Esta-
do; o segundo da crítica às teorias políticas precedentes, em es-
pecial a platônica; o quinto aborda as mudanças das constitui-
ções; o sexto estuda as várias formas de democracia e de oligar-
quia; o sétimo e o oitavo tratam das melhores formas de consti-
tuição (lei fundamental de um Estado).47
Aristóteles
Disponível em:<http://mundofilosofico.arteblog.com.br/images/mn/1181965835.jpg>.Acesso em: 28 nov. 2007.
47 Aristóteles pode ser considerado o fundador da Ciência Política, tal a sua observação metódica da realidade. Foi o primeiro autor doDireito Constitucional. Escreveu A Constituição de Atenas, na qual registrou as várias formas e alterações constitucionais por quepassou a cidade de Atenas (Prélot, 1973, Livro 1, p. 175). A obra também pode ser lida como uma história política de Atenas.
TEORIA POLÍTICA
84
Para Aristóteles, assim como Platão, três são as formas de governo e três são os desvios
e corrupções dessas formas: as formas boas são a monarquia (governo bom de um só); a
aristocracia (governo bom de um grupo) e a terceira aquela que se baseia sobre a vontade
popular, que parece apropriado chamar de “timocracia”, mas que a maioria chama apenas
de “politie”, que significa Estado ou Constituição. As formas más ou as degeneradas são: a
tirania (governo ruim de um só); oligarquia (governo mau de poucos) e a democracia. Três
são as formas boas de governo e três são os desvios e corrupção dessas formas: o reino e o
desvio tornam-se tirania; a aristocracia e o desvio torna-se oligarquia e a timocracia com
seu desvio torna-se democracia.
O critério para distinguir uma forma boa ou má de um governo é o interesse comum e
o interesse pessoal, ou seja: quando um governo comanda pensando somente em seu bene-
fício, temos o desvio e a degeneração; quando o governante governa em favor do interesse
de todos, temos um governo bom e ideal. Aristóteles, na Ética a Nicômano, afirma que das
formas de governo citadas anteriormente “delas a melhor é o reino, e a pior é a timocracia
(...) e a democracia é o desvio menos ruim: com efeito, pouco se afasta da forma de governo
correspondente” (Aristóteles, apud Bobbio, 1997, p. 58).
A reflexão de Aristóteles sobre a política é de que ela não se separa da ética, pois a vida
individual está imbricada na vida comunitária. Afirma Aristóteles que o objeto da ética é
uma espécie de política.48 A razão pela qual os indivíduos se reúnem nas cidades (e formam
comunidades políticas) não é apenas a de um viver em comum, mas a de viver “bem” ou a
boa vida.49 Para que isso aconteça é necessário que os cidadãos vivam o bem comum, ou em
conjunto ou por intermédio dos seus governantes; se ocorrer o contrário (a busca do interes-
se próprio), está formada a degeneração do Estado.50 O homem, para Aristóteles, é um “ani-
mal político”; isto significa que o homem tinha a necessidade de conviver na pólis, pois
somente na “cidade” é que ele pode realizar a virtude (capacidade), o que é peculiar dos
48 “E vê-se que esta conclusão está em conformidade com o que dizíamos, no início, isto é, que a finalidade da vida política é o melhordos fins, e que o principal empenho dessa ciência é fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações” (Aristóteles. Éticaa Nicômaco, 1099b, p. 30).
49 O fim da cidade, conforme a descrição de Prélot (1973, Livro 1, p. 135), é não só assegurar aos cidadãos a vida e a sua conservação(zein), mas o viver bem (euzein). A vida política destina-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida.
50 Aristóteles define a cidade grega como aquela que condiz em “viver como convém que um homem viva” (Aristóteles, apud Châtellet,1985, p. 14).
85
TEORIA POLÍTICA
gregos, sendo que os “bárbaros” não viviam assim.51 Para Aristóteles, a vida política desti-
nava-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida (Prélot, 1973, Livro 1, p. 135). O homem
é o verdadeiro cidadão: “corajoso, moderado e liberal, magnânimo, praticando a justiça,
observando a eqüidade, comportando-se como perfeito amigo, em suma, o homem bom e
belo” (p. 136).
Nota-se que os filósofos gregos tratavam a política como um valor e não como um
simples fato, considerando a existência política como finalidade superior da vida humana,
como a vida boa, entendida como racional, feliz e justa, própria dos homens livres. A vida
superior só existe na cidade justa e, por isso mesmo, o filósofo deve oferecer os conceitos
verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a cidade.52
Aristóteles justifica a escravidão por considerar que há homens escravos pela sua pró-
pria natureza53 e somente um poder despótico (legítimo) é capaz de governar.54 Seu pensa-
mento político está registrado nas obras A Política e Ética a Nicômaco, e também nas 150
constituições que elaborou, das quais só restam fragmentos. O estilo prático, lógico e siste-
mático de Aristóteles contrasta com o de Platão, que era imaginativo, literário, poético e
alegórico.
A política (pólis – cidade), para Aristóteles, é uma ciência que deve procurar o bem-
estar do homem.55 Ela deve oferecer aos governantes condições para adaptar sua forma de
governo às necessidades do povo. Esse pensamento é decorrente do estudo e da observação
dos diferentes métodos dos governos e das distintas formas de condução de reformas admi-
nistrativas. O seu livro A Política é resultado da observação dos governos de Creta, Cartago,
51 A pólis, para Aristóteles, é, segundo a descrição de Kitto (1970, p. 129), “o único ambiente dentro do qual o homem pode concretizaras suas capacidades morais, espirituais e intelectuais”; Barker (1978, p. 16), afirma que a “pólis era uma sociedade ética”.
52 Uma das razões para que o homem se una na pólis, “não é apenas a de viver em comum, mas a de viver bem” (Aristóteles, apud Bobbio,1997, p. 58).
53 “É evidente, portanto, que alguns homens são livres por natureza, enquanto outros são escravos, e que para estes últimos a escravidãoé conveniente e justa” (Aristóteles, A Poítica, I, p. 20).
54 A visão que Aristóteles tem sobre a mulher, os escravos e os estrangeiros (bárbaros) é a de seres excluídos da cidadania. ConferirMinogue (1998, p. 22).
55 “Cumpre-nos tentar determinar mesmo que em linhas gerais, o que seja esse bem e de que ciências ou faculdades ele é objeto. E, ao queparece, ele é objeto da ciência mais prestigiosa e que prevalece sobre tudo. Ora, parece que esta é a ciência política, pois é ela quedetermina quais as ciências políticas que devem ser estudadas em uma cidade-estado...” (Aristóteles. Ética a Nicômaco, 1094a, p. 25).
TEORIA POLÍTICA
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Esparta e Atenas, e de estudos de obras de pensadores do passado, como Faleas, Hipódamo
e Platão. A obra é um tratado da arte de governar. Sugere medidas práticas para superar
impasses e mostra os defeitos dos sistemas políticos nas sociedades gregas.
As necessidades dos indivíduos, segundo Aristóteles, são satisfeitas apenas dentro do
Estado.56 O homem só sentiu falta do Estado quando inexistia a possibilidade de satisfação
de suas necessidades elementares. Só o Estado poderia oferecer ao indivíduo proteção para
que ele realizasse seus ideais éticos, morais e políticos, enquanto que a família apenas dava
ao homem a sobrevivência física. O Estado é, portanto, utilitário. A escravidão não era só
admitida como justificada. Os governantes deveriam ser os dotados de aptidões espirituais.
Quanto à propriedade privada, Aristóteles não comungava com Platão, que defendia
sua abolição; ao contrário, pugnava por uma organização adequada da propriedade dentro
do Estado. Para que o indivíduo pudesse realizar o seu bem-estar, o Estado deveria favorecer
a liberdade individual para o progresso da instituição humana.57
Para cumprir bem suas funções, o Estado deveria:
a) ter um governo que ordenasse e regulasse a vida do próprio Estado;
b) distribuir entre os cidadãos os órgãos administrativos do Estado.
Para Aristóteles, cada povo é que deve escolher a sua forma de governo. Isso porque
distinguia Estado e governo. O Estado é o conjunto dos cidadãos e o governo o conjunto de
pessoas que ordenam e regulam a vida do Estado, mediante o exercício do poder. Para um
bom governo é necessário bem distribuir o poder entre os órgãos que administram esse ente
público. A idéia de um poder Legislativo, Executivo e Judiciário nasceu dessa concepção
administrativa.58
56 “A prova de que o Estado é uma criação da natureza e tem prioridade sobre o indivíduo é que o indivíduo, quando isolado, não é auto-suficiente; no entanto, ele o é como parte relacionada com o conjunto. Mas aquele que for incapaz de viver em sociedade, ou que nãotiver necessidade disso por ser auto-suficiente, será uma besta ou um deus, não uma parte do Estado” (Aristóteles, A Política, II, p. 10).
57 Ver Aristóteles. A Política, II, p. 5-24.
58 “Obviamente, as atividades do estadista e do legislador concernem de perto ao Estado. A constituição é um modo de organizar aquelesque vivem no Estado”. “... O Estado é a soma total dos cidadãos” (Aristóteles, Política, III, 1-2).
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TEORIA POLÍTICA
Para a formação do Estado Aristóteles relacionou alguns critérios: ter um pequeno
território, com poucos habitantes, para que todos pudessem se conhecer e ter acesso à vida
pública. Com isso, evitar-se-ia que uns se tornassem muito ricos e outros, extremamente
pobres. Para Aristóteles, a desigualdade social é fonte de injustiça. Ele não deu, contudo,
maiores atenções às questões tributárias, às dívidas públicas, ao custo dos exércitos, às
esquadras permanentes e às relações internacionais (talvez porque admitisse guerras de
conquista). A cidade deveria estar perto do mar, para facilitar o intercâmbio comercial. Os
que participassem do governo deveriam ser proprietários de terra.59
A Grécia clássica, com sua política, sua democracia, seus pensadores, serve de referên-
cia até os nossos dias. É, portanto, um capítulo que você deverá compreender muito bem
para que perceba a influência dessa civilização sobre o pensamento ocidental. Na próxima
Unidade você estudará como se deu essa influência sobre os romanos.
59 Para um aprofundamento da teoria política de Aristóteles, conferir o Capítulo II de Durant (2000, p. 69-107)
TEORIA POLÍTICA
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89
TEORIA POLÍTICA
Unidade 5Unidade 5Unidade 5Unidade 5
O Pensamento Político da Sociedade Romana
O mundo romano é caracterizado, por Hegel, com aspectos de virilidade inicial no
desenvolvimento da personalidade. A formação do Estado romano originou-se da delibera-
da união de bandos predadores nômades e, na sua origem, sua permanência tornava neces-
sária a mais severa disciplina e o sacrifício pessoal em prol do grande objetivo: a união de
todos.
Todo cidadão, no período inicial, era incentivado à carreira militar, com o objetivo de
fortalecer o Estado, visando à conquista de outros povos por meio da luta armada. Com o
mundo romano tem-se a terceira forma de realização do espírito, pois o pensamento e a
reflexão elevam-se ao nível universal. Há, no mundo romano, uma submissão do indiví-
duo à constituição do Estado: aqui o Estado se destaca sobre os indivíduos e constitui um
fim abstrato em si ao qual os indivíduos devem servir. O universal sobrepõe-se ao indiví-
duo [...] não existe aqui alegria e brincadeira, senão duro e amargo labor (Florez, 1983, p.
266).
O homem romano, dessa maneira, vê-se submetido ao poder do império, fundamen-
tando o seu ser na mais pura exterioridade.
Como vimos, Hegel considerou o Oriente como sendo a infância da humanidade,
submersa ainda no despotismo; o mundo grego, como a juventude; a idade adulta é repre-
sentada pelos impérios romano e germânico; o mundo cristão corresponde à velhice. Aqui,
diz Hegel, não se deve tomar o exemplo biológico ao pé da letra. A velhice natural é a
fraqueza, mas a velhice do espírito é a sua maturidade perfeita. Assim, somente o povo
germânico estaria apto a se identificar com a história universal, sendo a concretização da
manifestação do espírito. “Graças ao cristianismo, esse povo alcançou a consciência de que
o homem é livre como homem e que a liberdade de espírito constitui sua mais própria natu-
reza” (Hegel, 1975, p. 68).
TEORIA POLÍTICA
90
Seção 5.1
A Política, o Direito e o Exército
Se o homem grego era um cidadão contemplativo com di-
reito à reflexão filosófica, à participação nos interesses da pólis,
o homem romano era voltado para a práxis; em outras palavras,
um espírito essencialmente prático, fundamentando sua seguran-
ça em valores externos.1 A praticidade romana baseava-se em três
sólidos pilares: a) a legislação social e individual, da qual os ro-
manos foram mestres inigualáveis, compilada no Direito Roma-
no, que garantia os direitos do cidadão e apontava os seus deve-
res para com o Estado; b) a organização política: era o modelo
admirável de administração, que dava unidade ao vasto império;
c) as águias romanas (força militar): davam proteção aos cida-
dãos contra agressões externas.2
A partir destes fundamentos, o homem romano teve uma
visão imperialista do mundo, tendo a cidade de Roma como cen-
tro do império. E, sem dúvida, a organização política dos roma-
nos teve importância decisiva para a manutenção do seu poder,
haja vista que perdurou por vários séculos.
Como já exposto na subseção 4.1.1, que trata de etimologia
da palavra política, civitas é a tradução latina de pólis, portanto a
cidade como ente público e coletivo. Res publica é a tradução lati-
na para ta politika, significando, portanto, os negócios públicos
dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou cidadãos
livres e iguais, nascidos no solo de Roma. Pólis e civitas
correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político
O Coliseu Romano
Vista lateral do Coliseu,símbolo do poder romano.
Disponível em:<http://www.ctiturismo.com.br/
figuras%20gerais/europa/italia%20coliseu.gif>.
Acesso em: 4 dez. 2007.
1 Segundo Arendt (1995, p. 69), ser filósofo não tinha muita importância na república romana.
2 Ver Funari (1993), especialmente o capítulo 2º.
91
TEORIA POLÍTICA
atual, chama-se de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário público, serviços
públicos) e sua administração pelos membros da cidade. Ta politika e res publica correspondem
(imperfeitamente) ao que se designa contemporaneamente por práticas políticas, referindo-se
ao modo de participação no poder, aos conflitos e acordos nas tomadas de decisão e na defini-
ção das leis e de sua aplicação, no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros
da comunidade política às decisões concernentes ao erário ou fundo público.
Em termos gerais, a idéia filosófica dos romanos procede da Grécia. O ideário
expansionista dos romanos com sua máxima divide et impera – divide e reina – não favore-
cia a reflexão filosófica. Orientados para uma vida prática, governamental e jurídica, por
exemplo, sua estrutura representava avanços em relação ao pensamento grego.
Para os romanos, o Estado é um organismo necessário e vital à vida social; portanto,
não anula o indivíduo, segundo o entendimento da teoria platônica. No Estado não se
reconhece o direito à rebelião aos poderes públicos, porque a relação dos indivíduos com o
Estado está fundada num “contrato” em que a delegação dirige o governo do Estado. Os
romanos entendem a lei como um pacto dos órgãos constitutivos do Estado.
Mapa do Império Romano no tempo de Cristo3
3 Disponível em: <http://www.pilb.t5.com.br/mapas/mapa11.jpg>. Acesso em: 4 dez. 2007.
TEORIA POLÍTICA
92
O termo Direito, etimologicamente, vem da palavra latina jus e significa aquilo que é
ordenado, consagrado e sagrado. Da mesma raiz vem justo, justiça. Justo é o que está de
acordo com jus, e justiça é a “vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”.
Em latim existe a palavra directus, que significa ficar em linha reta, direito, sem desvio.
A expressão “Direito Romano” designa pelo menos três fatos: a) o conjunto de leis
que vigoraram no Império Romano por cerca de 12 séculos, desde a fundação de Roma,
em 753 a.C., até a morte do Imperador Justiniano, em 565 d.C.; b) o Direito privado, que
atingiu grande esplendor, o mesmo não ocorrendo com o Direito público; c) o corpo jurídi-
co organizado por Justiniano, no século 6º, que se tornou conhecido como Corpus Juris
Civilis.4
Nos 12 séculos de existência do Direito Romano, ele não permaneceu imutável, pelo
contrário, sofreu contínuas e sucessivas modificações em função do tempo e dos interesses
da “classe dominante”, que se revezava no poder. O Direito Romano também não era o
mesmo nas diferentes regiões do Império. Sem contar que também as lutas sociais contribu-
íram para as modificações profundas no Direito privado. Em função dessas modificações
políticas, o Direito Romano pode ser dividido nos seguintes períodos: Realeza (754 a.C. a
510 a.C.); República no Alto Império (510 a.C. a 27 a.C.); Principado no Baixo Império (27
a.C. a 284 d.C.) e Dominato (284 a.C. a 564 d.C.). O Direito Romano formado nesses 12
séculos pode ser dividido em: Jus publicum (público) e privatum (privado). O jus privado
divide-se em jus civile (Direito Civil), jus naturale (Direito Natural) e jus gentium (Direito dos
Povos).
Os exércitos formados por tropas mercenárias ou próprios eram os mais bem treinados
e preparados. Da força do exército romano emergiu o grande Império Romano. Mais tarde,
no entanto, as tropas mercenárias acabaram se rebelando contra o próprio Império.
4 “A grande obra do pensamento romano é o Direito. Ao contrário das leis da Grécia clássica – (...) –, o Direito Romano tem um caráterimpessoal e técnico. Forma um todo coerente e sistemático, de forma que cada parte não conflita com as demais. Nesse sentido, porém,ele é de certo modo herdeiro do pensamento abstrato dos gregos, com seu ideal de um todo harmônico e bem proporcionado” (OsPensadores, 1999, p. 85).
93
TEORIA POLÍTICA
Seção 5.2
Marco Túlio Cícero
Cícero (106-43 a.C.) foi um patrício romano e governante da República, escritor, ora-
dor, estudioso da retórica, epistológrafo e pensador. Embora tivesse qualidades inerentes à
atividade filosófica, como o gosto pela especulação e pela abstração, dedicou-se aos proble-
mas políticos, procurando agir sobre a opinião pública. Escreveu, no entanto, várias obras
morais, políticas e metafísicas, quase sempre relativas à situação vivida pelos romanos na-
quela época.5
O seu pensamento político está registrado em duas obras: De República e As Leis,
ambas, até no título, de inspiração platônica. Sob a forma de diálogo, no De República
expõe a melhor forma de governo. Conclui que a República Romana é a melhor. Afirma,
também, que o Direito Natural provém da natureza racional do homem, e que este é fonte
de todos os direitos, como também todos os homens são iguais por compartilhar da mesma
comunidade humana. No De Legibus, discute as relações entre o Direito Positivo e a justiça
ideal. Nesse livro distingue: a) jus naturale (Direito Natural), lei de acordo com a natureza
racional e a ética do homem; b) jus gentium (Direitos dos Povos), são leis de cada Estado,
cidade, povo; c) jus civile (Direito Civil), é a legislação elaborada pelo Estado.
Cícero também segue a divisão tradicional no que se refere às formas de governo.
Divide-as em: realeza (todos os assuntos públicos estão na mão de um só); aristocracia
(quando a autoridade pertence a algumas pessoas escolhidas) e governo popular (aquele em
que o poder pertence ao povo). O fim do Estado é, para Cícero, tal como para Aristóteles, o
bem-estar da cidade (Prélot, 1973, Livro 1, p. 204).
5 Para Prélot (1973, Livro 1, p.179), Cícero é um romano helenizado. Considerado o maior orador latino, escreveu As Leis e ARepública, em que estudou o Estado, o ideal do melhor governo e do melhor cidadão (p.192). Ver capítulo“A Filosofia de Cícero (p. 83a 85) em: Os Pensadores (1999), e Chevallier (1982), especialmente o Livro II: Dos Impérios aos Estados-Nações.
TEORIA POLÍTICA
94
Pronunciamento de Cícero.6
Seção 5.3
Políbio
Políbio (201-120 a.C.) foi um homem de ação e historiador. Foi discípulo de Aristóteles.
Era de origem grega, mas sofreu a influência direta da cultura romana. A obra principal de
Políbio é Histórias, em que descreve os acontecimentos desde o princípio da II Guerra Púnica
(no ano 221 a.C.) até a tomada de Corinto (146 a.C.). Acrescenta uma introdução até a
época da I Guerra Púnica (246 a.C.), tornando-se assim o historiador da Roma vitoriosa
sobre sua rival Cartago (Prélot, 1973, Livro 1, p. 182).
Grego de nascimento, foi deportado para Roma depois da conquista da Grécia. Em Histó-
rias, o autor faz uma exposição pormenorizada da Constituição Romana, redigindo um peque-
no tratado de Direito Público Romano, no qual descreve as várias funções públicas. O motivo
da descrição da constituição do povo, cuja história narra, é explicitado: “Deve-se considerar a
constituição de um povo como causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações”.7
6 Cícero denunciando Catilina. Afresco de Cesare Maccari (1840/1919). Data: 1882/1888. Roma, Senatto della Repubblica. Disponívelem: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/biografia_hbernardelli_arquivos/cicero.jpg>. Acesso em: 28 nov. 2007.
7 Escreve Chevallier (1982, p. 149): “Esse grego romanizado (...) busca em suas histórias explicações para a superioridade de Roma, que, emmeio século, subjugou quase toda a terra habitada. Encontra-a em sua Constituição e fez da análise desta a preocupação central de sua obra”.
95
TEORIA POLÍTICA
8 “De resto os romanos não haviam chegado a esta forma mista, produto da mistura feliz de três formas puras, através apenas doraciocínio. A experiência tivera seu papel... Foi em meio às numerosas lutas e dificuldades que os romanos aprenderam, à sua própriacusta, qual o melhor partido a seguir” (Chevallier, 1982, p. 149).
O historiador mostra a importância que teve a excelência da Constituição Romana
para explicar o sucesso da política de um povo que em menos de 53 anos conquistou todos
os outros Estados, impondo-lhes o seu domínio.
Políbio vê a História como cíclica (repetição contínua de eventos que tornam sempre
sobre si mesmos – o eterno retorno do mesmo). O mesmo ocorre com as formas políticas, que
se transformam com o tempo. A teoria das formas políticas como ciclo é deduzida da história
das cidades gregas (crescimento, esplendor, decadência). Políbio aposta no governo misto
(Rei “tirano”, a aristocracia e a democracia). A Constituição mista romana é citada como
exemplo, pois Roma teve êxito em suas conquistas em virtude de um governo misto.8
Malgrado a influência dos gregos sobre Roma, pode-se notar que os romanos deram
importantes contribuições para o pensamento político e jurídico. A influência de Roma só
decai com o nascimento de outro grande movimento espiritual: o cristianismo, tema da
próxima unidade.
TEORIA POLÍTICA
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TEORIA POLÍTICA
Guilherme de Occam ouWilliam de Ockham
(1285 em Ockham, Inglaterra –9 de abril de 1347, Munique),foi um filósofo da lógica e umteólogo escolástico inglês.
Imagem disponível em: Foto:<http://www.aquinate.net/figuras-aquinate/guilherme-de-ockham1.jpg>.Acesso em: 10 jan. 2008.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/William_de_Ockham>.Acesso em: 10 jan. 2008.
Dante Alighieri
(Florença, m ou j de 1265 —Ravena, 13 ou 14 de setembrode 1321) foi um escritor,poeta e político italiano. Éconsiderado o primeiro emaior poeta da língua italiana,definido como il sommo poeta(“o sumo poeta”).
Foi muito mais do que apenasum literato: numa época emque apenas os escritos emlatim eram valorizados, redigiuum poema, de viés épico eteológico, La DivinaCommedia (A Divina Comé-dia), que se tornou a base dalíngua italiana moderna eculmina com a afirmação domodo medieval de entender omundo.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Alighieri>.Acesso em: 10 jan. 2008.
Unidade 6Unidade 6Unidade 6Unidade 6
O Pensamento Político da Idade Média
Tanto na teoria política romana – como na de Cícero, ainda
na Antiguidade – quanto na teoria política medieval, é mantida
a preocupação normativa que prevalece no pensamento grego.
Nesse sentido, também na Idade Média se busca definir as virtu-
des do rei justo e bom.
A Idade Média tem como característica fundamental a pre-
dominância do pensamento religioso e como conseqüência as
teorias políticas enfatizam a supremacia do poder espiritual so-
bre o poder temporal e toda ação se acha atrelada à ordem moral
cristã. Por exemplo, Santo Agostinho, no final do Império Roma-
no, já afirmava que todo o poder vem de Deus.
A interferência da Igreja nos assuntos políticos provocou
diversos atritos entre papas e imperadores, determinando a for-
mação de facções opostas entre aqueles que defendiam o poder
do papa e os defensores da autonomia do imperador.
Mais tarde, porém, houve a ruptura. Nomes como Dante
Alighieri (1265-1321), Marsílio de Pádua (1280-1341) e Guilher-
me de Occam contribuem para o rompimento com o pensamento
político medieval. Alighieri, autor do clássico A Divina Comédia,
também escreveu um livro sobre política no qual defendeu a au-
tonomia do poder temporal.1 Mais radical ainda é Marsílio de
1 “A Dante (não nos iludamos sobre isso) agradava que o papado guardasse fidelidade ao seu papel,sem entregar-se à usurpação, da mesma forma que lhe agradava um Império que instalasse a pazmundial e a justiça. Queria-os independentes um do outro, mas em harmonia, cooperação ecoordenação. Marsílio, ao contrário, sente pelo papado como instituição, e também por todaa organização e hierarquia clericais, um ódio profundo, inesgotável. Propõe-se a desmascarar a
TEORIA POLÍTICA
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Pádua (1280-1341), que defendeu novos valores desligados da tutela religiosa e fundados
na vontade do povo. Nas palavras de Prélot (1973, Livro 3, p.13), Marsílio era um inimigo
irreconciliável da hegemonia sacerdotal – precursor da liberdade de pensamento e da demo-
cracia moderna. Teria sido, segundo certos autores, o primeiro a “libertar a sociedade laica
da pressão do clero”.
Seção 6.1
O cristianismo primitivo
A Palestina, na época, estava sob o domínio dos romanos.2 A dependência se fazia
valer na política e na economia, com o governador sendo nomeado pelo próprio imperador
romano. As taxas de impostos cobradas eram altas. Elas deveriam ser depositadas direta-
mente nos cofres do Império. Os israelitas habitavam a Palestina e tinham como crença
religiosa a fé no Deus Javé (onipresente, onisciente, mas, ao mesmo tempo, fazendo parte
da luta de seu povo). Esse povo era regido por patriarcas (inspirados por Deus) que tinham
a função de unir o povo e manter a crença no Deus Javé (desde Abraão, Isaac, Jacó e
descendência). Por muito tempo esse povo esperava o Messias (enviado de Deus, o escolhi-
do, o ungido), que teria a missão de salvar e redimir os pecados da humanidade. Esse mo-
mento chegou. Boa parte do povo de Israel acreditou que um homem chamado Jesus seria o
messias, o Salvador.3
Este “enviado” de Deus deixou, no curto período de sua vida pública, por um lado
uma mensagem de amor e fraternidade, mas por outro fez denúncias contra os poderes reli-
giosos, econômicos e políticos da época. O ativismo profético e libertador de Jesus o levou
intromissão do poder eclesiástico na comunidade civil (numa palavra: Estado). Visa absorver ao máximo o eclesiástico no secular,substituindo, por uma notável inversão do estado das coisas, o monismo ‘teocrático’ por uma monismo laico” (Chevallier, 1982, p.240).
2 Como sabemos, a religião oficial dos romanos era o politeísmo panteísta (diversidade de deuses), herdado da cultura grega. Ver Funari(1993, p. 15-20), cap. “Os Homens e o Sobrenatural”.
3 Jesus Cristo nasce sob o reinado de César Augusto (Prélot, 1973, Livro I, p. 208).
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TEORIA POLÍTICA
aos tribunais, sendo julgado e condenado à crucificação (pena capital romana). Ao morrer,
o “Messias” deixou aos seus amigos mais próximos (apóstolos e discípulos) a missão de
levar adiante seu projeto.4 Foram os apóstolos e discípulos que formaram as primeiras co-
munidades cristãs. São Pedro e São Paulo (romano convertido ao cristianismo) foram os
mais importantes arquitetos do cristianismo primitivo.5 O cristianismo surge, assim, como
uma seita clandestina dentro do Império Romano, uma religião de escravos.6
Nos primeiros séculos da era cristã, havia uma grande interação entre fé e política ou
entre fé e vida cotidiana. O próprio Livro dos Atos dos Apóstolos evidencia isso ao afirmar
que os cristãos tinham uma vida em comum, partilhavam o pão, eram unidos pela oração e
refletiam sobre a palavra de Deus. Esse estilo de vida e empenho social foi motivo de muitas
perseguições contra os cristãos.
Essas perseguições levaram à morte milhares de cristãos. No início do século 4º, entre-
tanto, o Império Romano começa a sua decadência, os dias estão contados para a sua gran-
de ruína, os bárbaros (godos, visigodos e estrogodos) estão prestes a tomar a grande capital
Roma.7 Num golpe político extraordinário, o imperador romano Constantino assimila os
cristãos ao seu governo, em 313.8 Isso significa afirmar que os cristãos ganham a liberdade
condicional para exercer seu culto livremente, algo inédito até então. Claro que o ato de
Constantino foi mais de natureza política do que propriamente de bondade. Vendo que o
Império Romano entrava em decadência e o número de cristãos aumentava, Constantino
concedeu-lhes a liberdade.9 No fim do século 4º da nossa era, a religião cristã passa ser a
4 “Antes de voltar ao Pai, no dia da Ascensão, Jesus ordenou aos discípulos que pregassem o Evangelho a toda a criatura através do mundointeiro” (Nunes, 1978, p. 1). “Essa doutrina revelada por Jesus Cristo foi ensinada e difundida pelos seus Apóstolos nos quatroEvangelhos, nos Atos, nas Epístolas e no Apocalipse” (Nunes, 1978, p. 3). É bem clara a mensagem de Cristo para os cristãos:conquistem todas as almas do mundo. O mundo inteiro deve ouvir a palavra de Deus.
5 No Novo Testamento aparecem as cartas de São Paulo e São Pedro às comunidades cristãs recém-formadas: Coríntios, Efésios,Tessalonicenses, Gálatas, Romanos...).
6 Prélot (1973, Livro 2, p. 238) afirma que as primeiras comunidades cristãs eram células clandestinas, que não tinham nenhumaorganização no plano jurídico.
7 O trabalho de Lot (1980) discute de maneira detalhada o fim do mundo antigo e o princípio da Idade Média.
8 O Edito de Milão, emitido pelo imperador romano Constantino, marca o fim das perseguições e inaugura a era da tolerância para como culto cristão, o dever de obediência às ordens do soberano (Prélot, 1973, Livro 2, p. 238-239).
9 “Pelo documento de 313 (Edito de Milão), a religião cristã torna-se legal, lícita, adquirindo finalmente o direito de existência, apósrenhido e prolongado combate. O culto cristão passa a ter a mesma liberdade concedida aos demais. Restituem-se às Igrejas os lugaresde culto que foram objeto de confisco e alienação, assim como outros arrestados. Cristãos e pagão são colocados em pé de igualdade”(Chevallier, 1982, p. 170).
TEORIA POLÍTICA
100
religião oficial do Ocidente. Forma-se a Igreja Católica (universal) Apostólica (proveniente
dos apóstolos) Romana. A partir de então, tem-se a unificação entre Igreja e Estado. Unifi-
cam-se os poderes temporais e espirituais. Adotando as palavras de Prélot (1973, Livro 2, p.
274), “houve uma cristianização do império”.
Entra-se, assim, em um novo período da História. Chega-se ao fim do período clássico
greco-romano e se inicia o período denominado de Idade Média.10 A mentalidade medieval,
que perdurará por quase mil anos, será sustentada pelo teocentrismo (Deus como centro). A
religião fará parte da totalidade da vida do homem europeu, incluindo o latim (língua oficial
da Igreja), a música (gregoriana), até a arte (gótica). A visão do homem será marcada pelo
dualismo: corpo e alma, céu e inferno, bem e mal.
Na política, o sonho foi sempre de realizar a “Cidade de Deus”. E o sacro-império, que
tinha o imperador ungido pelo papa, proclamava bem alto esta intenção: realizar a idéia
medieval de cristandade pela cooperação harmônica dos dois poderes supremos, o poder do
império no temporal e o poder do papado no espiritual. Só mais tarde acontecerá a ruptura
da unidade política e religiosa, finalizando o período medieval.
Seção 6.2
O fim do Império e a Idade Média
O homem romano não conseguiu dar continuidade ao seu poderoso Império. A grande
extensão territorial, razão do sucesso imperial, foi, ao mesmo tempo, o ponto fraco da sua
própria administração política. Muitos povos acabaram reconquistando a sua emancipa-
ção. Outra razão da decadência seria o desleixo de alguns imperadores, voltados apenas
para a satisfação de seus interesses pessoais (pão e circo ao povo). Em 410 da Era Cristã, os
10 “A Idade Média é caracterizada como uma era de obscurantismo pela época seguinte, que, arrogante, se autodenomina Renascimento. Aprópria expressão “Idade Média” já traz embutida essa carga de desprezo: indica que o período, que se estende por cerca de mil anos, nãopassa de um intervalo entre o esplendor do mundo greco-romano e seu “renascimento” posterior... É impossível, porém, ignorar asrealizações culturais dessa época. A própria Igreja, quase sempre acusada como a principal culpada pelo retrocesso da cultura, é tambémresponsável pela conservação de quase tudo o que se preservou do pensamento clássico greco-romano” (Os Pensadores, 1999, p. 104).
101
TEORIA POLÍTICA
bárbaros invadiram e incendiaram a capital do mundo (Roma), decretando, mais tarde, em
476, a queda do Império.11 Neste momento surge o homem da transição, que haveria de
“salvar” a humanidade do colapso total: o último dos romanos e o primeiro medieval na
pessoa de Santo Agostinho. Cai, neste sentido, o homem da segurança exterior e surge o
homem da segurança interior.
Como vimos, o imperador Constantino, no século 4º, concedendo a paz à Igreja, une-
a com o Estado. Desde então, o governo e a Igreja começaram a se ajudar. Aos poucos, por
influência de certas idéias filosóficas racionalistas, foi se formando a concepção de que a fé
estaria desligada da realidade e da razão, assim como a separação entre o corpo e o espírito.
O corpo era coisa ruim e só servia como morada do espírito. Essas idéias afetaram fortemen-
te a Igreja, que começou a praticar um tipo de religião que desligava a fé da vida diária do
cristão. Segundo esta concepção, o cristão poderia viver a fé sem se comprometer com a
realidade em que estivesse inserido. Criou-se, assim, a prática de uma fé sem ação e uma
política sem valores éticos.
Ao mencionar a Idade Média nos vem à mente um período histórico compreendido
entre os séculos 5º e 15, desde a decadência do Império Romano do Ocidente, invadido
pelos bárbaros do Norte da Europa, do qual foi decretada a queda final em meados do ano
de 476.
Não custa lembrar que o Império Romano foi o centro e o coração do mundo, construído
por um homem com espírito prático, que desde a infância fora treinado para a arte da guerra
e o respeito à pátria. Esse homem conquistador fez de Roma sua própria casa e o mundo
estava subjugado aos seus pés. Sobre a religião, os romanos a herdaram dos gregos (politeísmo
panteísta). Uma das virtudes dos guerreiros romanos era a conquista de povos vizinhos sem
destruir-lhes a cultura (herdavam o que o povo havia conquistado de melhor).
Com a queda do Império o homem entra em crise. É necessário construir um novo
homem, uma nova mentalidade. Por isso mencionamos o nome de Agostinho de Hipona, o
homem que fundamentou o pensamento religioso medieval.
11 “A voz fica-me na garganta e os soluços interrompem-me ao ditar estas palavras. Foi conquistada a cidade que conquistou o mundo”.Assim São Jerônimo (347-420) anuncia a invasão e a pilhagem de Roma (Os Pensadores, 1999, p. 103).
TEORIA POLÍTICA
102
Seção 6.3
Santo Agostinho
Santo Agostinho foi considerado o “último dos antigos e o
primeiro dos modernos”. Viveu a crise e a transição do Império Ro-
mano. Em sua vida pessoal, Agostinho passou por diferentes fases:
do paganismo, neoplatonismo até a conversão ao cristianismo.
Agostinho viveu até os 30 anos gozando dos prazeres do
mundo. Como bom romano soube usufruir dos jogos, bebidas e
mulheres. Após passar por crises existenciais e diversas escolas
filosóficas, converteu-se ao cristianismo: a primeira frase de sua
obra As Confissões expressa tal realidade: “Inquieto está o meu
coração enquanto não repousar em vós”.12 É nesse contexto que
surgirá o período Medieval.
Por mil anos o período medieval terá um tipo de pensamen-
to, ou seja, o teocentrismo (Deus é o centro de tudo) na cultura,
na política, na sociedade, tudo está voltado para Deus em termos
hierárquicos; os valores terrenos vêm em segundo plano, segui-
dos pela política e, por último, pelo indivíduo.
O período medieval é marcante também no que se refere ao
dualismo herdado, já anteriormente, da tradição filosófica platô-
nica e agostiniana, em que os conflitos dão-se entre dois pólos
bem fundamentados: corpo x alma, luz x trevas, bem x mal, pe-
cado x ascese, matéria x essência; neste sentido, tudo o que per-
tence ao corpo é pejorativo e pecado (a negação do corpo), pois
tudo o que provém da natureza é essencialmente mau, e a salva-
ção depende apenas da ascese individual e da graça de Deus.
Santo Agostinho de Hipona
Disponível em:<http://heritage.villanova.edu/
vu/heritage/history/saints/augustine1.jpg>.
Acesso em: 28 nov. 2007.
12 “A vida de Santo Agostinho, minuciosamente narrada por ele próprio em Confissões, é quase uma demonstração, na prática, de seupensamento: experimentou o ceticismo quanto ao conhecimento, sofreu o abismo do homem em pecado, reencontrou a esperança nagraça divina, conheceu a felicidade e a certeza da verdade na fé” (Os Pensadores, 1999, p. 97).
103
TEORIA POLÍTICA
Em termos filosóficos, aparece a Filosofia como serva da
Teologia. São necessários argumentos racionais para fundamen-
tar a fé; assim, temos a conciliação entre fé e razão.13 Duas cor-
rentes de pensamento destacam-se no período medieval: a
patrística, formada pelos padres da Igreja e a escolástica. A
patrística tinha como objetivo de defender os ideais cristãos pe-
rante os pagãos e convertê-los ao cristianismo, os padres herda-
ram essencialmente a Filosofia de Platão. Entre os nomes mais
proeminentes, citamos Santo Agostinho, Boécio, Isidoro, João
Damaceno. A Escolástica retoma a Filosofia aristotélica. São
Tomás de Aquino elaborou a síntese magistral do cristianismo
com o aristotelismo, fornecendo bases filosóficas para a Teologia
cristã numa tentativa de compatibilizar a fé e a razão.
A partir dos séculos 11 e 12, inicia-se o crescimento do co-
mércio, a expansão das cidades e a inevitável ascensão de uma
nova classe, a burguesia, que durante vários séculos fora domi-
nada pelos senhores feudais. As Cruzadas foram fundamentais
para o intercâmbio comercial com o Oriente. A criação de cen-
tros culturais laicos impulsionou um novo conhecimento, total-
mente independente dos poderes da Igreja. As Universidades de
Oxford, Cambridge, Bolonha, Salerno, Paris e Coimbra são exem-
plos dos Centros Culturais Europeus. Por fim, o pensamento me-
dieval dava sinais evidentes de fraqueza, não tardando a consti-
tuição de um novo pensamento: o Renascimento e a Modernidade
já embrionários de um novo paradigma.
As Cruzadas
Chama-se Cruzada a qualquerum dos movimentos militares,de caráter parcialmente cristão,que partiram da EuropaOcidental e cujo objetivo eracolocar a Terra Santa (nomepelo qual os cristãos denomi-navam a Palestina) e a cidadede Jerusalém sob a soberaniados cristãos. Estes movimen-tos estenderam-se entre osséculos 11 e 13, época em quea Palestina estava sob controledos turcos muçulmanos.
Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzadas>.Acesso em: 10 jan. 2008.
13 Ver Os Pensadores (1999), capítulo “Entre a Fé e a Razão”.
TEORIA POLÍTICA
104
Seção 6.4
O fim do pensamento medieval e o início do Renascimento
Como vimos, a característica principal da Idade Média estava centralizada no pensa-
mento religioso (teocentrismo = Deus no centro de tudo). A instituição Igreja regeu a vida em
todas as suas dimensões. Já no Renascimento, o que predominou foi o pensamento
antropocêntrico (o homem no centro do universo). O “humano” como forma negativa, vista
anteriormente na Idade Média, passa, agora, a ser exaltado. A expressão da beleza física do
homem inspirou escultores e pintores renascentistas, juntamente com a Filosofia humanista
(expressão máxima do homem em suas diversas formas). A visão de um mundo medieval limi-
tado, finito e enclausurado em si mesmo dá lugar à transparência, à clareza e à inovação.
O Deus medieval, religioso-cristão, aos poucos foi ultrapassado por outra “divinda-
de”, a razão, que ordenara uma mudança radical na visão de mundo na modernidade. A
razão não será a contemplativ4a ou teológica, que dava sustentação à revelação divina e ao
poder da Igreja sobre os homens; ela será instrumental, a fim de objetivar, modificar e trans-
formar a natureza que, antes, era intocável. A confiança na razão impulsionou a pesquisa
pelo método experimental, que favoreceu a ciência. Em conseqüência, temos a tecnologia e
o progresso. Se antes tínhamos o geocentrismo (a terra como centro do universo), no
Renascimento teremos o heliocentrismo (o Sol como centro) desde o método experimental
de Copérnico (1473-1543) e da sua comprovação por Galileu Galilei (1564-1642).14
A razão traz consigo uma nova imagem do mundo: com a invenção da bússola e a
descoberta da pólvora, o homem europeu lançou-se à navegação, conquistando as terras do
Ocidente, ou o “Novo Mundo”, possibilitando o comércio (mercantilismo) com outros po-
vos. Com as revoluções astronômicas de Copérnico e Kepler e a Física de Galileu, o desco-
brimento das Índias, a inovação da tipografia (imprensa), surge a era das técnicas, substitu-
indo a era medieval da contemplação, orientada e dominada pela figura de Deus.15 Os fenô-
14 Ver Nicola Abbagnano (1982), vol. 6º, especialmente o capítulo 7º.
15 “O resultado último do naturalismo do Renascimento é a ciência. Nela confluem: as pesquisas naturalísticas dos últimos Escolásticosque tinham dirigido a sua atenção para a natureza, desviando-a do mundo sobrenatural considerado desde então inacessível à pesquisahumana; o aristotelismo renascentista, que elabora o conceito de ordem necessária da natureza; o platonismo antigo e novo, queinsistira na estrutura matemática da natureza; a magia, que havia patenteado e difundido as técnicas especulativas destinadas asubordinar a natureza ao homem; e, finalmente, a doutrina de Telésio, que afirma a autonomia da natureza, a exigência de explicar anatureza por meio da natureza” (Abbagnano, 1982, p. 7).
105
TEORIA POLÍTICA
menos naturais não serão explicados pela Teologia ou pela “vontade de Deus”, mas por eles
mesmos: “A natureza é um livro aberto pronto para ser pesquisado e explorado”, não se
cansam de afirmar os pensadores. Defende-se, assim, a observação e a experimentação uti-
lizando hipóteses lógico-racionais, cálculos matemáticos e princípios geométricos como ins-
trumentos fundamentais para a compreensão dos fenômenos naturais.
É preciso lembrar que a passagem de uma mentalidade para outra sempre gera a crise
no ser humano, uma vez que as idéias do passado são colocadas em xeque e busca-se uma
nova fórmula para dar sustentação ao novo pensamento. O homem passa e, passando, não
leva consigo a bagagem dos velhos valores, e é urgentemente necessário solidificar e fun-
damentar a sua vida em novos valores que dêem segurança a este “novo” homem. Os anti-
gos valores vão-se desmantelando, o sonho da cidade eterna não se concretiza, grandes
rupturas ocorrem na Igreja, como o Cisma da Cristandade (1379-1417), quando um papa
comanda a Igreja de Roma e outro lidera a de Avinhão. A Reforma Protestante coopera com
a fragmentação religiosa.16 Novas formas de interpretações bíblicas fazem do homem um ser
com novas possibilidades diante do mundo.
A marca referencial da política moderna será a laicização, ou seja, uma política laica,
desligada dos ditames autoritários da tradição da Igreja. Como vimos anteriormente, a polí-
tica estava diretamente ligada à Igreja, não diferindo muito um príncipe de um bispo, ou um
rei de um papa. Na modernidade o poder político não é fruto de favor divino. Na Modernidade
tem-se a afirmação dos grandes Estados monárquicos unificados (exemplo: França, Ingla-
terra, Espanha). Pela primeira vez na História aparece expresso o vocábulo “Estado”, como
o entendemos hoje, na expressão de Nicolau Maquiavel, com O Príncipe (1513/1514): “to-
dos os domínios que tiveram e têm impérios sobre os homens são Estados, e são Repúblicas
ou Principados” (O Príncipe, 1983, cap. I).
Aumenta então a teorização dos filósofos em busca de um rei competente e implacável
que fosse capaz de unificar os Estados, então fragmentados. Em conseqüência disso, temos
uma rápida concentração dos poderes do Estado no rei. Luís XIV, no século 17 dirá: “L’Etat c’est
16 Reforma liderada por Martinho Lutero (1483-1546). “O individualismo religioso de Lutero é uma reação ao forte enraizamento socialda Igreja, que progressivamente foi adotando padrões mundanos de organização. Isso, em certo sentido, explica-se pelas necessidadespolíticas do papado, que passa a ressaltar os rituais e as aparências em detrimento do conteúdo sobrenatural da religião”. Luterocontesta a autoridade papal e dos “representantes de Deus” na Terra (Os Pensadores, 1999, p. 176-177).
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moi” (O Estado sou eu). Aparece, igualmente, o conceito de soberania de Jean Bodin (1576)
como poder supremo na ordem interna.17 Contra o feudalismo e o regime senhorial, contra a
submissão ao papado e ao império, a razão do Estado cresce em decorrência desses teóricos.
Na Filosofia, a partir do século 17, surge o cartesianismo (Filosofia de René Descar-
tes), “a dúvida metódica” e a famosa frase: “Penso, logo existo”; a ciência da natureza de
Galileu, a experimentação e a razão teórica, bem como a elaboração acerca da origem e das
formas de sabedoria política, a partir das idéias do Direito Natural, do Direito Civil hobbesiano
e da política laica ou profana de Maquiavel.
Depois de mil anos tendo o poder teocêntrico sido hegemônico na mentalidade do ho-
mem ocidental, surge na História o Renascimento (séculos 15-16), considerado por alguns
cientistas como marco intermediário entre a Idade Média e a Modernidade. Uns apresentam
as particularidades desse período afirmando que o mesmo traz características próprias. Outros
destacam que o Renascimento representa um retorno às tradições greco-romanas, ou seja,
uma redescoberta da Antiguidade clássica pelos humanistas, que buscam fontes para argu-
mentos históricos, culturais, políticos e filosóficos visando à fundamentação desse novo saber.
No período renascentista, como já vimos, o homem viverá uma profunda crise, pois
vai, aos poucos, perdendo os “valores” que lhe davam segurança e ainda não conseguia
alcançar um porto seguro. O mundo europeu religioso, fechado, dá sinais de esgotamento.
As transformações ocorrem em diversas áreas: nas artes (do gótico para o humanismo); nos
conflitos entre os intelectuais ateus e religiosos nas universidades religiosas e laicas (cultu-
ral); na formação dos Estados nacionais, separação entre Igreja e Estado (política); na visão
de mundo (do geocentrismo = Terra no centro do universo, para o heliocentrismo = Sol
como centro do universo, com a revolução de Copérnico e de Galileu Galilei); na economia,
em que o feudalismo é substituído gradativamente pelo mercantilismo, possibilitando o en-
riquecimento da burguesia favorecido pelas navegações, ao descobrirem novas rotas comer-
ciais com o Oriente e, posteriormente, com as Américas.18
17 “Assim como o navio não é mais do que a madeira, sem forma de embarcação, quando lhe tiramos a quilha, que sustenta o costado, aproa, a popa e o convés, também a República”, sem um poder soberano que una todos os seus membros e partes, e todos os lares ecolégios, num só corpo, não é mais República’. Tal é, para Bodin, o ponto principal e mais necessário para que se compreenda bem,partindo da definição notável e clássica que ele deu de república (evidentemente no sentido de coisa pública, ou comunidade política,ou, em suma: Estado): República é um reto governo de vários lares e do que lhes é comum, com poder soberano” (Bodin, apudChevallier, 1982, p. 316).
18 Estado Moderno como detentor da força/autoridade racional e territorialmente universal foi um fator-chave no desenvolvimento dosEstados capitalistas contemporâneos. Conferir o trabalho de Nunes (2003).
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TEORIA POLÍTICA
O humanismo renascentista encontra-se estreitamente ligado a uma exigência de re-
novação política. Pretende-se renovar o homem não apenas na sua individualidade, mas
também na sua vida em sociedade. O regresso às origens é, por um lado, entendido como o
regresso de uma comunidade histórica determinada, povo ou nação, as suas origens históri-
cas, nas quais poderá ir buscar nova força e novo vigor, e, por outro, como regresso à base
estável de toda e qualquer comunidade.
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TEORIA POLÍTICA
Unidade 7Unidade 7Unidade 7Unidade 7
Maquiavel e o Pensamento Político Renascentista
O sonho de construir a “cidade terrena” torna-se irrealizável, em virtude do esfacela-
mento da unidade político-religiosa, tão esperada pelos reis e papas, representantes da en-
tidade temporal e espiritual. Os imperadores nomeavam bispos e influenciavam na escolha
dos papas. A ruptura se dá também dentro do próprio Estado. Com a descoberta da pólvora
o regime feudal entra em falência, porque termina a segurança dos castelos. As nações,
originárias da Idade Média, organizam-se em Estados e conquistam autonomia completa.
Os filósofos da época dão início a um novo tipo de pensar (cultura) baseado na expe-
riência de um homem que buscava a verdade na própria natureza e não somente na revela-
ção divina. A experiência desvenda os segredos da natureza, desocultada a partir de si mes-
ma. Pode-se afirmar que o homem moderno é o homem da razão experimental, pois exalta a
razão natural e a natureza. Galileu Galilei, Giordano Bruno1 e Campanella inovam no mé-
todo de explorar a natureza mediante a experimentação. Antes, a natureza era apenas con-
templada a partir da revelação divina.
A verificação dos fenômenos e dos fatos é o novo caminho para se chegar ao conheci-
mento da realidade, pois a razão humana introduz, agora, um novo modo de compreender o
universo. Dessacralizou-se o mundo, que perdeu o senso de mistério e não apela para uma
causa transcendente de explicação: explica-se por si mesmo e para si mesmo. Deus, na
Idade Moderna, é uma causa supérflua, pois a visão exclusivamente experimental e positiva
não tem lugar para valores espirituais (Deus), que não é objeto físico, atingível pela experiên-
cia externa.2 “Deus está morto; nós o matamos”, nos dirá Nietzsche, mais tarde; o Deus da
1 “Mas... se a terra não é o centro do universo, por que insistir num centro? Se a hierarquia do mundo se rompe, para que buscar umahierarquia? Por que não haveria outro mundo com outros sóis e outras vidas?... As indagações são de Giordano Bruno” (Os Pensadores,1999, p. 153). São questões representativas do “espírito” do Renascimento.
2 “Galileu pretende desimpedir a via da investigação científica dos obstáculos da tradição cultural e teleológica. Por um lado, polemizacontra ‘o mundo de papel’ dos aristotélicos; por outro, quer subtrair a investigação do mundo natural aos limites e aos estorvos daautoridade eclesiástica. Contra os aristotélicos, afirmava a necessidade do estudo direto da natureza. Nada é mais vergonhoso nasdisputas científicas, diz ele (VII, p. 139), do que recorrer a textos que amiúde foram escritos com outro propósito e pretender utilizá-lospara responder a observações e experiências diretas” (Abbagnano, 1982, p. 14).
TEORIA POLÍTICA
110
ordem moral morreu. O que é válido é a razão “penso, logo exis-
to” de Descartes, o homem moderno é o homem da certeza mate-
mática. Na política surge o realismo de Nicolau Maquiavel, o
fundador da ciência política moderna. Maquiavel tratou a políti-
ca como ela é, e não como fizeram os pensadores anteriores
(Platão e Santo Agostinho), que imaginaram a política como de-
veria ser (plano ideal). Diz Prélot (1973, p. 43): “O método de
Maquiavel é a observação direta e indireta, feita de contatos e
leituras”.
Seção 7.1
Maquiavel: contexto histórico
Nicolau Maquiavel nasceu em meio a uma grande crise eco-
nômica e política, no dia 3 de maio de 1469, em Florença, na Itália
renascentista.3 Naqueles tempos a Itália sentia a ausência de um
Estado central, reinando uma grande confusão e imperando a ti-
rania em diversos e pequenos principados. Estes não tinham di-
nheiro para financiar exércitos regulares, e acabavam socorrendo-
se de mercenários que, ao bel-prazer e conforme seus próprios in-
teresses, terminavam por conquistar os próprios principados que
deveriam defender. A Itália era uma vítima impotente perante di-
versos impérios, como o franco, o germânico, o hispânico, entre
outros. Também na área econômica a decadência é visível. A or-
dem comercial está calcada nos feudos, e estes estão em declínio,
cada vez com menos poder e em ascensão está a burguesia.4
Nicolau Maquiavel
Imagem de Nicolau Maquiavel.Disponível em:
<http://n.i.uol.com.br/licaodecasa/ensmedio/
historiageral/maquiavel.jpg>.Acesso em: dez. 2007.
3 Ver Sadek (1991, p. 14-17).
4 Sobre a concepção de Estado em Maquiavel, Hobbes, Locke e Marx, conferir o trabalho de Gruppi (1996).
111
TEORIA POLÍTICA
A produção manufatureira instalada em territórios antigos clientes da Itália amplia
mercados, oferecendo produtos mais baratos. Outro aspecto que atingia a Itália era a pri-
mazia dos espanhóis e portugueses nas descobertas além-mar. Em 1494, quando Lourenço
(o Magnífico) e Júlio de Médicis são expulsos de Florença, instala-se o regime republicano
do monge Savanarola, oportunizando a Maquiavel iniciar sua vida pública, trabalhando
em um cargo na chancelaria. Quatro anos depois a oposição, com o apoio do papa Alexan-
dre VI, derruba e mata Savanarola, sobrando para Maquiavel o cargo de chanceler. Enfren-
ta inúmeros problemas decorrentes da decadência florentina em relação às cidades vizi-
nhas. O filho do papa Alexandre VI, César Bórgia, avançava sobre Florença exigindo o
retorno dos Médicis. Este personagem inspirou Maquiavel a escrever O Príncipe, e impressi-
onou tanto, que Maquiavel acreditava que Bórgia seria o homem providencial, capaz de
unir a Itália, opondo barreiras às intervenções estrangeiras. Em 1506 Maquiavel escreve um
discurso sobre a preparação militar florentina, defendendo a criação de uma milícia nacio-
nal. Apesar de todos os esforços, porém, ele é derrotado por um conluio envolvendo o papado
e os espanhóis, juntamente com um levante interno exigindo a volta dos Medícis ao poder.
Maquiavel é preso, torturado e exilado em sua propriedade particular em San Casciano.
Procurando reconquistar os favores da família tirana, escreve O Príncipe e oferece-o a Lou-
renço de Médicis. Não atinge seu objetivo, mas lhe é permitido retornar a Florença.
Maquiavel buscava a unificação da Itália, que então era dividida em uma série de pe-
quenos principados, com regimes políticos, desenvolvimento econômico e cultura variados.
Isso fazia com que ela fosse alvo de constantes conflitos e invasões por parte dos estrangeiros.
Aos 29 anos, durante o governo de Soderini, ele passou a ocupar o posto da Segunda Chan-
celaria, na qual cumpriu uma série de missões, tanto fora da Itália como internamente, desta-
cando-se sua preocupação em instituir uma milícia nacional. Com o retorno dos Médicis ao
poder, no entanto, e com o exílio de Soderini, suas tarefas diplomáticas sofreram uma brusca
interrupção. Em 1512 ele foi demitido e, ainda, proibido de abandonar o território florentino
por um ano e de freqüentar qualquer prédio público. Em fevereiro de 1513 foi considerado
suspeito de participar de uma conspiração contra o governo dos Médicis, sendo por isso tortu-
rado e condenado à prisão e a pagar uma pesada multa. Ainda nesse ano ele sai da prisão,
mas não consegue retornar à vida pública. Exilado em sua própria terra, impedido de exercer
sua profissão, passa a morar na propriedade que herdara de seu pai em San Casciano. No
tempo em que ficou retirado em sua propriedade, ele escreveu suas obras, textos que resultam
de sua experiência prática e do convívio com os clássicos.
TEORIA POLÍTICA
112
O pensador florentino percebeu que a instabilidade italiana estava na fragmentação
do poder (cada cidade tinha uma família no poder).5 O Vaticano estabelecia a unidade.
Maquiavel propõe a unificação da Itália criando um centro único de poder, o que traria a
estabilidade. A Itália e a Alemanha ficam atrasadas quanto à unificação, ao passo que as
demais nações européias a fazem, colocando em risco a soberania destes países sem centra-
lização do poder e tornando-os alvos fáceis de constantes ocupações. É nesse contexto de
insegurança que Maquiavel se encontra em sua Itália, na República de Florença.6
Maquiavel era filho de Bernardo, um advogado pertencente aos ramos mais pobres da
nobreza. Possuía estatura média, magro, fronte larga, olhos penetrantes e lábios finos.7 Muito
pouco se sabe de sua infância, apenas que leu muito os clássicos latinos e italianos, mas
que não dominou o grego. Do fim da adolescência em diante sua biografia se confunde com
a história de Florença e da Itália. Amava, sobretudo, a cidade que o viu nascer e os assuntos
de Estado. Por isso faz o possível para voltar à vida pública, da qual foi excluído em 1513.
Nesse ano, na cidade italiana de San Casciano, este exilado político ocupa-se todas as
manhãs em administrar a pequena propriedade a que estava confinado e, à tarde, joga car-
tas numa hospedaria com pessoas simples do povoado. A noite, vestia trajes de cerimônia e
passava a conviver, por meio da leitura, com homens ilustres do passado. A oportunidade de
voltar à política chegou em 1526, quando foi nomeado secretário dos Cinco Provedores das
Muralhas, cargo no qual deveria cuidar das fortificações da cidade e tratar da defesa em
geral.
Em 1527 Maquiavel, acreditando que o saque de Roma pelas forças do imperador
Carlos V libertaria Florença do jugo dos Médicis, tenta voltar à Chancelaria, mas não obtém
êxito. Isso debilita sua saúde e provoca seu óbito no dia 21 de junho de 1527, com 58 anos
de idade. Maquiavel morreu sem ver realizados os ideais pelos quais lutou toda a sua vida.
Deixou, porém, um valioso legado: o conjunto de idéias elaboradas no seu exílio. Talvez
nem ele mesmo soubesse a importância desses pensamentos. Apesar disso, revolucionou a
história das teorias políticas, dividindo-a em duas fases distintas.
5 A Itália no tempo de Maquiavel estava dividida, muito semelhante às cidades-Estados dos gregos.
6 Enquanto a Itália permanecia dividida, semelhantes às cidades-Estados gregas, a França, Espanha e Inglaterra já haviam se unificado.
7 Ver Maquiavel – vida e obra. In: Maquiavel, Nicolau. O príncipe: escritos políticos. São Paulo: Abril, 1983. (Os Pensadores).
113
TEORIA POLÍTICA
Nicolau Maquiavel não foi apenas filósofo, foi também historiador, estudioso, estrate-
gista, poeta e artista. Com boa parte dos intelectuais renascentistas pesquisou sobre as
guerras que ocorreram em momentos passados de sua época.
Seção 7.2
Estrategista da arte da guerra
Como desatcamos na seção anterior, Maquiavel viveu num período de constantes guer-
ras e de fragmentações territoriais. Os problemas financeiros foram uma constante em sua
vida.8 Os fatos mais marcantes da sua biografia foram a precoce participação na política,
isso em 1507, quando foi indicado como chanceler. Maquiavel também tornou-se um espe-
cialista em assuntos militares.9 A Renascença italiana, além de ser reconhecida pelo seu
brilhantismo artístico, foi marcada pelo interesse literário, filosófico e tático pela guerra. A
guerra nesse tempo surgirá como um trabalho de arte, a guerra começa a ser uma preocupa-
ção essencial de mentes privilegiadas que a consideram como qualquer outra coisa a sua
volta. Os homens influentes das mais diferentes áreas, dramaturgos, poetas, músicos, pinto-
res ou escultores, “escreveram sobre estratégias e táticas de guerra e sobre isso davam con-
selhos” (Nisbet, 1982, p. 70).
O interesse pela guerra provinha do declínio de todo o sistema feudal na Europa e do
limitado tipo de arte da guerra, do gênero milícia, bem típico da Idade Média, em que a
guerra era o esporte de uma pequena classe: a cavalaria. No século 15, porém, especialmen-
te na Itália, a arte da guerra tornou cada vez mais importante o trabalho de soldados e
oficiais mercenários. Muitas tropas mercenárias eram contratadas por cidades-Estados e
principados, a guerra era “providenciada” no sentido de tirar proveito de tal acontecimento:
“Tendo tudo a ganhar com participação na guerra, os mercenários providenciavam – ou
assim pensava Maquiavel, entre outros renascentistas – para que houvesse guerras em nú-
8 Conferir o trabalho de Sartori (1965, p.47), principalmente o capítulo 3º “O Qüiproquó do realismo político”.
9 Ver Sadek (1991).
TEORIA POLÍTICA
114
mero suficiente, com suas oportunidades de pilhagem e saques”
(Nisbet, 1982, p. 70). Maquiavel propõe algo diferente ao escre-
ver A Arte da Guerra, pois até então as batalhas eram feitas por
mercenários que lutavam para quem pagasse mais.
A Itália foi pioneira na utilização das tropas mercenárias
como organização, assim como no emprego de armas de fogo, o
que transformou a guerra numa atividade democrática, ou seja,
os fortes castelos não resistiram mais aos constantes bombardei-
os. Surge a função essencial dos engenheiros, do fundidor de ar-
mas e do artilheiro, homens que pertenciam a classes sociais su-
balternas, passando a desempenhar um papel fundamental para
a arte da guerra.
Os humanistas i talianos contribuíram, durante o
Renascimento, para que houvesse uma consagração literária à
arte bélica, o que chegou a glorificá-la. Era uma oportunidade
nova que os humanistas vislumbravam como meio de libertação
do homem, seus talentos e poderes do sistema eclesiástico e feu-
dal, tido como inimigo número um dos humanistas. Como é sabi-
do, o conceito moderno de individualidade buscava a ruptura a
tudo o que era imposto pelas estruturas dominantes medievais e
que acabavam confinando a individualidade humana. No
Renascimento importantes serão a ousadia de atitudes, a liber-
dade, a “obtenção de fama e celebridade, e acima de tudo, liber-
dade de mente e imaginação das tradicionais obrigações para com
a cavalaria, bem como para com a guilda, o mosteiro, a igreja e o
solar” (Nisbet, 1982, p. 70).
A própria guerra tornou-se um meio de brilhante realização
individual na medida em que houvesse alguma contribuição para
“o aperfeiçoamento da Filosofia e da arte de guerra”. Leonardo
da Vinci orgulhou-se não só de suas pinturas ou esculturas, mas
Guilda
Associação que agrupava, emcertos países da Europadurante a Idade Média,
indivíduos com interessescomuns (negociantes,
artesãos, artistas) e visava aproporcionar assistência e
proteção aos seus membros(D. Houaiss).
115
TEORIA POLÍTICA
das contribuições tecnológicas e estratégias para a arte da guerra. Os administradores
renascentistas incentivavam, chegavam a pagar boas quantias, por inovações e estratégias
que contribuíssem para os tempos de guerra.
Em síntese, Maquiavel foi um observador, um mestre na tática da guerra. Condenou
as tropas mercenárias, acreditava que o príncipe deveria confiar em um exército próprio e
nunca ficar nas mãos dos mercenários, pois estes eram muito ambiciosos, bastando alguém
pagar mais para que passassem para o lado dos inimigos. Mostra também que, mesmo não
estando em guerra, o príncipe deve estar preparado para ela, construindo estratégias, co-
nhecendo a história de outras batalhas, sabendo por que tiveram grandes vitórias ou gran-
des derrotas, para corrigir os erros nas derrotas e imitar as estratégias vitoriosas, e por esse
fato Maquiavel chegou a organizar e chefiar o exército florentino.
Seção 7.3
Fundador da Ciência Política Moderna
Maquiavel foi um realista, não se preocupou com o que se deveria fazer, mas com o
que se faz. Até então a teoria do Estado e da sociedade não ultrapassava os limites da
especulação filosófica. Em Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino ou Dante, o estudo desses
assuntos vinculava-se à moral, constituindo-se em uma teoria de ideais de organização
política e social. À mesma regra não fogem seus contemporâneos, como Erasmo de Rotterdam,
no Manual do Príncipe Cristão, ou Thomas More, na Utopia, que constroem modelos ideais
do bom governante com base em um humanismo abstrato. Em todas as obras sua preocupa-
ção era a construção do Estado italiano, por isso tratou a política tal qual ela é, sendo um
seguidor de Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio, examinando a verdade como ela é.
O universo mental de Maquiavel é bem diverso. Observa que a experiência jamais
engana e o erro é produto do pensamento especulativo; o objeto de suas reflexões é a reali-
dade política, a busca do entendimento de como as organizações políticas se fundam, de-
senvolvem– se, persistem e decaem. Conforme Maquiavel, quem observa com cuidado os
TEORIA POLÍTICA
116
fatos do passado pode prever o futuro em qualquer república e usar os remédios aplicados
desde a Antiguidade. Atualmente os estudos têm procurado romper com a tradição de críti-
ca do ponto de vista moral, ou com a utilização da obra de Maquiavel como instrumento
ideológico. Procura-se mais amplamente determinar a contribuição específica que ele deu à
história das idéias, especialmente no que se refere à ciência política.
Maquiavel lia muito sobre os antigos historiadores. Ele rejeitava o idealismo de Platão,
Aristóteles e São Tomás de Aquino. Acreditava numa realidade concreta, tal como ela é, e
não como se gostaria que ela fosse. A história política se divide em duas partes, uma antes e
outra pós– Maquiavel. Os valores que antecedem a Maquiavel são de ordem religiosa: Deus
era o centro, a política seguia em segunda ordem e, por último, o indivíduo. Após Maquiavel,
a política torna-se o valor mais importante, juntamente com a valorização do indivíduo, e
não se abordou ou tratou de valores espirituais.
Rompendo com todos os dogmas da tradição religiosa, o autor florentino afirma que
qualquer um pode chegar ao poder, tendo dinheiro, é claro. Considerou o homem como
fundamentalmente mau, corrupto, ingrato e covarde. Com Maquiavel começa a ganhar
importância a individualidade. Ele separa ética de política, argumentando que a primeira
diz respeito às questões do indivíduo e a última, às coisas públicas. A ética é a-política, já a
política pode ser ética ou a-ética.10 O poder político fascina, pois por meio dele as pessoas
podem destinar recursos que nenhuma outra pode, mandar atacar, fazer isto ou aquilo. Já a
religião é pouco citada em sua obra, mas o autor a percebia como um valor, uma vez que
poderia ser manipulada e utilizada como argumento político, por lidar com paixões e dese-
jos humanos.
Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formu-
lar teorias políticas, e também dos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clás-
sicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real do seu tem-
po. O fundamento do seu pensamento político é o contexto moderno, porque busca oferecer
10 “A política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel descortina um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadrano tradicional moralismo piedoso. A resistência à aceitação da radicalidade de suas proposições é seguramente o que dá origem ao‘maquiavelismo’. A evidência fulgurante deste adjetivo acaba velando a riqueza das descobertas substantivas” (Sadek, 1991, p. 24).
117
TEORIA POLÍTICA
respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam com-
preender lendo autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que
ocorriam diante de seus olhos.
Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior da política (Deus, natureza
ou razão). Toda a cidade, diz ele, tem, originariamente, dois pólos: o desejo dos grandes de
oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado.11 Essa divisão
prova que a cidade não é homogênea e nem nascia da vontade divina, da ordem natural ou
da razão humana. Na realidade, a cidade é feita por lutas intensas que obrigam a instituir
um pólo superior que passa a unificá-la e dar-lhe identidade. Assim, a política nasce das
lutas sociais e é tarefa da própria sociedade dar-lhe identidade. A política resulta da ação
social a partir das divisões sociais. Não aceita a idéia de boa comunidade política constitu-
ída para o bem comum e a justiça. Para ele, a política é a divisão entre os grandes e o povo.
A sociedade é dividida e não uma comunidade una, homogênea. Segundo Maquiavel, a
imagem de una é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enga-
nar, oprimir e comandar o povo. A finalidade da política é a tomada e a manutenção do
poder e não a justiça e o bem comum.
Quando Maquiavel eternizou seus conhecimentos, ele apenas observou o passado (as
guerras), localizou onde estavam os erros e acertos das mesmas: neste contexto, analisou como
os reis e príncipes agiam antes, durante e depois das conquistas. Enviando suas conslusões à
família Médicis, expressou o que um príncipe deveria ou não fazer para conquistar novos reinos
e mantê-los. Assim mudou a forma de fazer política, só que isso rendeu-lhe várias críticas a sua
obra mais conhecida, O Príncipe, na qual relata suas “experiências” de governos.
A democracia é a tentativa de horizontalizar o poder, tornar o indivíduo cidadão e isso
implica ser responsável com a dimensão pública, o que torna difícil este processo de fazer
democracia, pois as pessoas não gostam de se comprometer com o público. Maquiavel não era
democrata, pois em sua época não existia democracia; ele percebe o homem com seus interes-
ses e a necessidade de um poder centralizado para evitar os interesses particulares. Maquiavel
propõe a monarquia; na pior das hipóteses, a aristocracia como melhor forma de governo.
11 Extraído de Chauí (1994).
TEORIA POLÍTICA
118
Maquiavel, tendo convicções republicanas, participa do
governo, é atuante e circula diplomaticamente pelos países vizi-
nhos e internamente em seu país. Vislumbra um modelo a ser
seguido em César Borgia, condottiere empenhado na ampliação
dos Estados pontifícios. De regra, era o que a Itália precisaria
seguir para chegar à unificação. Defensor das idéias republica-
nas, Maquiavel admite que a extrema corrupção (como a “insta-
lada” na Itália) é a causa e o efeito da queda dos impérios, e que
com a virtude (virtú) de um grande homem, de “pulso quase real”,
somente assim poder-se-ia restabelecer a ordem.
Acreditava na república e referia-se a esta enfatizando a
sucessão dos governantes. E, acima de tudo, preocupou-se com o
exército. Ditador e sábio, percebia o valor do exército natural.
Afirmava sua brutalidade e insensibilidade pela incansável valo-
rização da guerra, e tinha como grande trunfo o conhecimento
das paixões e fraquezas humanas, meios (considerados por ele)
de dominação e atração do povo, que tinha de ser adaptado aos
interesses do Estado, ou, então, aniquilado.
Seção 7.4
A natureza humana
Algumas das conclusões de Maquiavel, em 1513, quando
escreveu O Príncipe, é de que:
1) os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da
prática do mal quando coagidos pela força da lei;
2) os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades
e em todos os povos;
3) quem observa os fatos do passado pode prever o futuro em qual-
quer república.
Condottiere
“capitães-de-aventura”, comose chamavam os chefes dastropas mercenárias na épocade Maquiavel. Especialistas na
técnica militar.
119
TEORIA POLÍTICA
Para Maquiavel, a natureza humana é intrinsecamente maligna. Os homens, os indi-
víduos, são dotados de atributos negativos, de paixões, instintos negativos e malévolos, tais
como a ingratidão para com os seus benfeitores, a volubilidade do caráter, a simulação das
intenções, a covardia ante os perigos e a avidez do lucro.12 Não vê, pois, como Aristóteles, a
sociabilidade como um impulso associativo natural (“O homem é, por natureza, um animal
político”, necessariamente ligado aos vínculos sociais).
Pessimista, Maquiavel define seus semelhantes como inconstantes, egoístas e maldo-
sos; mais propensos ao mal do que ao bem, fazendo este último somente sob coerção. Tam-
bém são invejosos, ineficientes, mentirosos e ambiciosos. E, assim, também o são os
governantes. Mesmo assim, ainda há esperança para ensinar aos homens um comporta-
mento político efetivo. Maquiavel, adotando o método comparativo em suas obras, compa-
rou o comportamento presente com o passado, acreditando que o comportamento humano
permanece o mesmo ao longo da História.13
A contradição básica está na sua visão da natureza humana. Os homens fazem o bem
apenas por coação. São mentirosos e facilmente iludidos, sentem inveja, são mais propen-
sos para o mal do que para o bem... “Os homens ‘são ingratos, volúveis, simuladores, covar-
des ante os perígos, ávidos de lucro’” (O Príncipe, apud Sadek, 1991, p. 19).
Com base em sua leitura e reinterpretação de textos clássicos da história humana, Maquiavel
conclui que as pessoas não mudam; em todos os tempos, os homens são iguais, movidos pela
apaixonada e intuitiva busca de poder, prestígio e posses, que os faz serem “ingratos, volúveis,
simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de lucro”. Nesta visão negativa da natureza hu-
mana – que ele afirma ser realista – Maquiavel não está sozinho. Um provérbio de Confúcio já
indagava: “Por que me odeias, se nada fiz para ajudar-te?” A visão religiosa do Antigo Testa-
mento também é de um homem essencialmente mau, “pecador”, que quer se sobrepor aos ou-
tros matando, roubando, cobiçando tudo o que é dos outros. Isto desde Caim e Abel.
12 “E é exatamente assim que Maquiavel os pinta. Sem deixar de acrescentar traços suplementares. Ávidos os homens, sim, e interesseiros:resignam-se mais facilmente com a morte de um pai do que com a perda de um patrimônio. E invejosos, ciumentos, insaciáveis nos seusdesejos, eternos descontentes que só aspiram ao que não possuem. E ingratos, inconstantes. E dissimulados, mentirosos, velhacos:basta-lhes um pretexto para faltarem à palavra empenhada. E medrosos, covardes: somente uma coisa lhes cala fundo – é o medo docastigo” (Chevallier, 1982, p. 267).
13 “Aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmosmeios que os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados, imaginar outros novos, segundoa semelhança dos acontecimentos” (Discursos, Livro I, cap. XXXIX, apud Sadek, 1991, p. 19).
TEORIA POLÍTICA
120
Para Maquiavel, só o poder político, terreno, mundano, pode enfrentar o conflito e a
anarquia decorrentes das paixões e instintos humanos, porém apenas de forma precária e
transitória.14 Em seu entendimento, aquele que detém o poder político – o Príncipe, o chefe
de Estado – pode aumentar o tempo de duração das formas de convívio entre os homens – e
manter-se no poder. Para tanto, deve ele estudar cuidadosamente a História passada. Com o
que poderá prever os acontecimentos que se sucederão – dada a natureza humana imutável
– e antecipar-se ou preparar-se para estes acontecimentos, tomando as mesmas medidas
antes já tomadas por outros governantes, ou iniciativas (remédios) semelhantes. Pode-se
aprender com a História: sobre a natureza humana, sobre como conquistar o poder e sobre
como mantê-lo.
O poder é uma relação entre os homens, uma relação temporal, mutável e sensível que
pode ser rompida a qualquer momento. Esse poder, que é exercido no mínimo por um ho-
mem sobre o outro, pode também ser praticado por grupos sociais, pelas classes sociais, para
estabelecer uma ordem mais ampla conforme sua ideologia. Possuir o poder significa ter a
possibilidade de ser obedecido, gerando com isso também a detenção da faculdade de permitir.
O que viabiliza o exercício do poder é a possibilidade real do uso da violência. O que,
na verdade, viabiliza o exercício do poder não é o emprego direto e generalizado da violên-
cia, do poder nu e cru, mas a ameaça, a possibilidade de seu uso, após alguns casos de
efetiva aplicação.
O primeiro fator que se sobressai como determinante do poder é a força. Quem detém
a força detém a possibilidade de represália em caso de desobediência, Quem possui a força
pode sancionar, ameaçar, punir e até mesmo matar, individual e coletivamente. A força pode
se apresentar como força bruta, física, militar, religiosa ou econômica. O segundo fator
determinante do poder é a influência. Regra geral, a influência advém da própria força,
religiosa, econômica ou política. Nas sociedades mais complexas, contudo, a influência
pode advir de fatores mais inesperados, que vão desde a convergência ideológica até a
corrupção ou chantagem.
14 “Mas onde fica a religião em tudo isso? Percebe-se facilmente que ela só interessa a Maquiavel sob o ângulo do Estado, da suaconservação e da sua grandeza. Serva da política, ela é uma insubstituível polícia do Estado, um admirável meio disciplinar do qual acoisa pública não poderia abrir mão” (Chevallier, 1982, p. 270).
121
TEORIA POLÍTICA
Seção 7.5
A questão do Estado
Como é possível perceber, Maquiavel foi um dos maiores defensores do Estado inde-
pendente. Buscou o conhecimento por si só. Foi um pensador da modernidade. Esse período
da História foi marcado pelo poder e pela influência da Igreja no Estado, em que Deus é o
centro de tudo e os papas exercem poder sobre os governantes e sobre o povo.15 Maquiavel,
porém, buscou exatamente o contrário, ele defendeu uma política laica (leiga, do povo, sem
nenhuma ligação com a Igreja); rompeu com a tradição religiosa e com a moralidade, mas
ocupou-se da realidade da maneira como ela é, do modo como as coisas realmente são e não
como elas deveriam ou poderiam ser.
Para Maquiavel, os domínios que existiram e existem sobre os homens foram ou são
repúblicas e principados. Os principados ou são hereditários (o príncipe é senhor pelo san-
gue) ou novos (récem-fundados). Ele afirma que é mais fácil manter Estados herdados cujos
súditos já estão acostumados a uma família reinante, mas que é de bom alvitre não trans-
gredir os costumes tradicionais e saber adaptar-se a situações imprevistas: “A dificuldade
está nos principados novos” (O Príncipe, capítulo III, Dos principados mistos). Os homens
mudam de governantes com facilidade e sempre esperam melhorias. Com o passar do tempo,
percebem que não melhoram, voltando-se contra os mesmos. O soberano fará, assim, inimi-
gos, pois não poderá manter a amizade dos que o ajudaram a conquistar o poder e também
não poderá aplicar medidas drásticas contra eles. Por isso, o príncipe precisará sempre man-
ter-se ao lado dos habitantes de um território para dominá-lo. Maquiavel, partindo do pres-
suposto de que os Estados anexados são previamente existentes, e quando são da mesma
região é mais fácil dominá-los, especialmente se não estiverem habituados à liberdade, ad-
verte que para isso basta eliminar a antiga dinastia governante. Quando se trata de mesma
língua e costumes o domínio é mais fácil; para tanto deve-se extinguir a linhagem dos anti-
gos governantes e manter as mesmas leis e os mesmos tributos. Na hipótese de conquistar
uma província com língua, leis e costumes diferentes, aconselha, como meio para manter a
dominação, que o príncipe ali se fixe.
15 É claro, como já foi mencionado, que o poder da Igreja estava em franco declínio no século XVI.
TEORIA POLÍTICA
122
Recomenda Maquiavel que o governante de um território estrangeiro (organizado em
forma de colônia) deve liderar e defender os vizinhos mais fracos, procurando debilitar os
mais poderosos. Os romanos, onde instalaram colônias, apoiaram os menos poderosos –
sem aumentar-lhes as forças – e abateram os mais fortes, impedindo que os Estados estran-
geiros exercessem sobre suas colônias alguma influência. Com isso, preveniram-se de dispu-
tas futuras. Nesse sentido, afirma Maquiavel que o mal identificado no início é de fácil cura,
mas difícil de diagnosticar e que, quando não é logo identificado, torna-se de fácil identi-
ficação mas de difícil, senão impossível, cura. E conclui que é isso que ocorre com os negócios
do Estado.
Seção 7.6
O estilo das obras de Maquiavel
As obras de Maquiavel são instigantes, desconexas e paradoxais. Com julgamentos
sempre exatos e decisivos, empregando um número reduzido de palavras que podem sugerir
vários sentidos. Maquiavel é, também, contraditório em suas relações com os mesmos exem-
plos da História. A obra de Maquiavel prima por argumentos confusos e pela ambigüidade.
Por exemplo: os Estados, ou são repúblicas ou são principados, os príncipes devem escolher
entre o amor e o medo, a clemência e a crueldade, a atitude liberal ou a mesquinhez. Os
soldados em batalha devem conquistar ou morrer. Os súditos serão bem tratados ou oprimi-
dos, as medidas extremas podem ser bem ou mal utilizadas.
Dentre as principais obras de Maquiavel destacam-se: O Príncipe (1512 a 1513); Os
discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1513 a 1519); a Arte da guerra (1519 a
1520), e, por último, sua História de Florença (1520 a 1525).16 Ao lado destas publicações,
escreveu a comédia A mandrágora, considerada obra-prima do teatro italiano, uma biogra-
fia sobre Castruccio Castracani e uma coleção de poesias e ensaios literários.
16 Em 1520 torna-se historiador oficial da república indicado pela Universidade de Florença. Ver Os Pensadores. História da Filosofia(1999). Especialmente capítulo “Um Cenário de Luz e Sombra” (156ss.) “Um príncipe maquiavélico”.
123
TEORIA POLÍTICA
A preocupação de Maquiavel, como pensador político, era documentar a corrupção;
explicá-la e estabelecer se poderia ou não ser remediada. Adotou um método comparativo
em suas obras, estudando o comportamento passado e presente. Como já foi exposto, a sua
principal obra é O Príncipe, destinada a mostrar ao “novo” príncipe dos Médicis como ga-
nhar, manter e aumentar o poder político. Esse príncipe triunfará apenas se dedicar suas
energias à guerra: “pois a força é justa, quando necessária”. A obra O Príncipe, segundo
Prélot (1964, p. 23), é o título da obra que, de fato, significativamente, abre a politologia
moderna.
Para muitos, a obra de Maquiavel é considerada lunática, atéia e satânica, pois a
idéia de que a finalidade da política é a retomada e conservação do poder e de que este não
provém de Deus nem de uma ordem natural feitas de hierarquias fixas, exigiu que os
governantes justificassem a ocupação do poder assumido.
Seção 7.7
Síntese das idéias de O Príncipe
O Príncipe (1513) foi publicado somente em 1532, cinco anos após a morte de seu
autor. Neste livro, Maquiavel expõe todo o seu conhecimento e sua experiência, buscando
ensinar a arte da guerra. Nele o autor explica como conquistar, aumentar e manter o poder,
e avisa também dos perigos que existem em se manter no poder.
O Príncipe divide-se em 26 capítulos, subdivididos em cinco temas centrais: apresenta-
ção das diversas espécies de principados e do modo pelo qual o poder pode ser adquirido e
mantido; discussão sobre a organização militar do Estado; debate sobre a conduta do prín-
cipe; aconselhamento sobre assuntos de especial interesse para o príncipe e, por fim, exame
da situação italiana da época.
TEORIA POLÍTICA
124
DESCRÉDITO COM AS TROPAS MERCENÁRIAS
O descrédito com as tropas mercenárias aparece evidenciado em suas obras. Para
Maquiavel, a utilização dos mercenários pelos governantes, para a prática da guerra, era
um desperdício e uma inutilidade, em termos militares, além de destruir o verdadeiro concei-
to de cidadania.
Maquiavel condena as tropas mercenárias, bem como os generais que as empregam,
por entender que os mesmos não buscam a paz porque esta não lhes interessa; muito pelo
contrário, é pela arte da guerra que é possível o lucro, para isso as qualidades menos eleva-
das, como a avidez, a desonestidade, a violência, serão uma constante. Os homens honra-
dos e bons não combaterão, pois não se sujeitarão a tal prática. Uma leitura mais atenta da
sua obra A Arte da Guerra mostra-nos a preocupação com a estruturação de um exército de
cidadãos e com a eliminação definitiva dos exércitos mercenários.17
A VIRTÚ E A FORTUNA
Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do mundo serem governadas
pela sorte ou por Deus, que os homens não possam corrigi-las nem remediá-las. Sustenta
como mais provável, entretanto, que a sorte (fortuna) seja árbitra de metade das ações hu-
manas, deixando aos homens o comando da outra metade (virtú).18 A sorte mostra seu po-
der, não se depara com a resistência da “Virtude Ordenada” e dirige os seus ímpetos para
onde não houver defesa para contê-la. A ação humana – parece dizer Maquiavel – não pode
eliminar todos os riscos, mas pode e deve eliminar as reviravoltas inconcludentes e transfor-
mar o risco numa possibilidade de êxito. O homem que se compromete com a História tem
uma tarefa precisa e jamais deverá desesperar: o resultado da sua ação transcende-o e pode
conduzi-lo, por atalhos e caminhos distantes, à vitória da tarefa que lhe é cara.19
17 Maquiavel, além de suas realizações teóricas a respeito das milícias tenta, em 1498, quando ocupa um cargo na Segunda Chancelaria,posição considerável na herarquia do Estado, instituir uma milícia nacional (ver Sadek, 1991, p. 15).
18 Ver Sadek (1991, p. 21-24). Virtú x Fortuna.
19 “Não ignoro ser crença antiga e atual de que a fortuna e Deus governam as coisas deste mundo, e de que nada pode contra isso a sabedoriados homens... Todavia, para que não se anule o nosso livre arbítrio, eu, admitindo embora que a fortuna seja dona da metade das nossasações, creio que, ainda assim, ela nos deixa senhores da outra metade ou pouco menos” (Maquiavel. O príncipe, apud Weffort, 1991,p. 43).
125
TEORIA POLÍTICA
O ENTENDIMENTO SOBRE O ESTADO
Maquiavel foi o criador do termo Estado tal qual é entendido na concepção moderna.
Sobre a compreensão de Estado em Maquiavel, pode-se afirmar que diferentes foram as
opiniões sobre o problema do Estado, cada filósofo entendeu de maneira diferente o concei-
to de Estado, de acordo com o pensamento e o contexto histórico da época. Para Maquiavel,
entretanto, “O Estado passa a ter suas próprias características, faz política, segue sua técni-
ca e suas próprias leis”. Trata-se já da linha do pensamento experimental: as coisas como
elas são, a realidade política e social como ela é, a verdade efetiva. Maquiavel faz uma obra
descritiva e prescritiva com alternativas ao poder para obter a estabilidade e unificar a Itália.
Maquiavel não foi o único pensador desse período. É possível afirmar, contudo, que
foi o mais importante, tal a pertinência de suas idéias em relação à política. A seguir apre-
sentamos Thomas Hobbes, outro nome a ser considerado na teoria política moderna.
TEORIA POLÍTICA
126
127
TEORIA POLÍTICA
Unidade 8Unidade 8Unidade 8Unidade 8
A Defesa das Idéias Absolutistas
Esta Unidade trata, especificamente, de Thomas Hobbes,
um dos principais defensores das idéias absolutistas na
Modernidade. Considerado um pensador contratualista (passa-
gem do estado de natureza para o estado civil), Hobbes escreveu
O Leviatã, no qual defende as idéias monárquicas da Inglaterra.
Seção 8.1
O Leviatã: o deus mortal de Thomas Hobbes
Thomas Hobbes nasceu em 5 de abril de 1588 na cidade
inglesa de West Port1. Estudou na Universidade de Oxford, onde
se formou em 1608. Foi preceptor de uma família de nobres ingle-
ses e esta ligação revelou-se fundamental para a formação da
base da sua teoria política, pois permitiu que ele se aprofundasse
nos estudos e, principalmente, viajasse pelo continente europeu.
Hobbes era um defensor do regime monárquico, dizia que
um rei era mais capaz que uma república. Achava que a demo-
cracia era um perigoso sistema de governo. Foi o primeiro teórico
considerado contratualista, ou seja, defendia a idéia de que a
origem do Estado e/ou sociedade está em um contrato. Suas prin-
cipais obras foram O Leviatã, De Cive e Os Elementos do Direito
Natural e Poético. Morreu em 4 de dezembro de 1679.
Thomas Hobbes.
Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/d/d8/Thomas_Hobbes_(portrait).jpg/250px-Tomas_Hobbes_(portrait).jpg>.Acesso em: dez 2007.
Preceptor
Que ou aquele que dá preceitosou instruções; educador,mentor, instrutor; que ouaquele que é encarregado daeducação e/ou da instrução deuma criança ou de um jovem,geralmente na casa deste (D.Houaiss).
1 Sobre os dados biográficos e bibliográficos ver Hobbes (1997, 1993).
TEORIA POLÍTICA
128
Filósofo e cientista político, inglês de origem pobre, Hobbes teve sua infância marcada
pela ameaça da invasão espanhola. Estudou em Oxford, onde dedicou a maior parte do seu
tempo à leitura de livros de viagens e a estudar cartas e mapas. Foi preceptor do Duque de
Devonshire, com quem viajou à França e à Itália, e fez outras viagens, nas quais teve conta-
to com Francis Bacon e René Descartes.
Em Paris, onde se encontrava devido aos descontentamentos que causou na Inglater-
ra, Hobbes escreveu sua obra-prima O Leviatã, livro que englobava todo o seu pensamento.
Apesar de defender o absolutismo monárquico, esta obra causou mal-estar a Carlos II, que
também se encontrava exilado. Hobbes volta então para a Inglaterra e vive em paz com o
regime lá instaurado. Com o retorno da monarquia algum tempo depois Hobbes, apesar da
desconfiança, volta a gozar da proteção de Carlos II, que lhe pede apenas que evite atritos,
como os que já havia promovido com o clero. O seu pensamento crítico, muitas vezes, fez
com que parecesse confuso: era cristão e criticou a Igreja, era monarquista e criticou erra-
das formas de monarquia. Hobbes desgostou-se com a direção dos acontecimentos de sua
pátria e desejava o restabelecimento da monarquia.
Para Hobbes, a liberdade fora do Estado é ilimitada, livre de qualquer princípio moral,
humanitário ou ético. Assim, do mesmo modo como o indivíduo pode vitimar pela sua liber-
dade, pode também ser vítima. O indivíduo vive amedrontado, pois a qualquer instante
pode perder seu bem maior, que é a vida. Existe, para Hobbes, esta cisão, optativa, entre a
liberdade, que significa guerra geral, e a limitação da liberdade, mas com paz e segurança.
Há para ele, portanto, um estado natural, em que a liberdade é a ausência de oposição, o
homem livre é o que não é impedido de fazer a sua vontade; se a ânsia por liberdade, no
entanto, está em cada ser humano, por que limitá-la na constituição do Estado civil? Por-
que o homem livre torna-se o mais selvagem dos animais, tendo a liberdade como valor
supremo, e sendo ela condição para a guerra, pode então acarretar a perda absoluta dela.
Entre a perda de um valor maior que é a vida e a limitação da liberdade, a segunda é a
preferível. Só existe liberdade, segundo Hobbes, dentro do Estado soberano. Ela se dá na
estruturação do Estado, com o soberano freando as liberdades de cada um.2
2 “O dever do homem enquanto cidadão é renunciar ao poder indiscriminado e arbitrário sobre todas as coisas, subordinando-se ao Estado”(Rosenfield, 1993, p. 28).
129
TEORIA POLÍTICA
A sua principal obra, O Leviatã, apresenta uma espécie de síntese de seu pensamento.
Nele Hobbes reafirma a sua convicção de que o Estado é um monstro poderoso, um Leviatã.
Ele determina toda a postura de um Estado monárquico.
O livro divide-se em quatro partes. Na primeira ele trata das características e dos re-
cursos empregados pelo homem na sua relação com os outros. Na segunda parte faz refle-
xões sobre os fenômenos que engendram as relações entre os homens. Na terceira, justifica
a tese da vontade do Estado e na quarta reflete sobre a religião civil. O ideal mais demons-
trado nesta obra é a teoria contratualista, que afirma ser o Estado formado pelo acordo
hipotético entre os homens, apoiados na idéia de que só ficaria exposto à barbárie, pois
contaria somente com as suas forças para defender-se de uma humanidade sem regras, na
qual cada um poderia proceder diante do outro da maneira que as suas forças permitissem.
Essa concepção é fruto do seu conceito de liberdade.
Em O Leviatã Hobbes explicita sua visão de Estado, segundo a qual é preciso ter um
Estado dotado de espada, armado, para forçar os homens ao respeito. O Leviatã é quem tem
liberdade, oferecendo segurança. Seu maior objetivo era fundir a sociedade e o poder (Esta-
do), de modo quee um não pudesse viver sem o outro. Nesse Estado o príncipe, ou governante,
tem poderes ilimitados; ele é absoluto, ele é quem decide o futuro do seu povo (súditos).
O Leviatã, que significa monstro marinho, dá o título a um estudo filosófico do abso-
lutismo (centralização do poder de um monarca). Leviatã é o governo soberano, que tem a
função de garantir a segurança, o avanço econômico, a saúde e o bem-estar dos súditos. Na
obra Hobbes defende a idéia de que os homens primitivos viviam no seu estado natural,
onde não existiam leis, sabedoria e tecnologia. Por isso, lutavam uns contra os outros pelo
desejo de poder, de riquezas e de propriedades (homo homini lúpus, ou “o homem é o lobo do
homem”). O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina
(com ou sem razão) poderoso, perseguido, traído.3
3 “Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos emrespeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens.Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalhaé suficientemente conhecida” (Hobbes, 1997, Leviatã, cap. XIII, p. 109).
TEORIA POLÍTICA
130
Para o título de sua principal obra Hobbes escolheu o nome de Leviatã, indicativo de
sua concepção de Estado como um monstro todo-poderoso. Todas as associações dentro do
Estado, declarava ele, são meros “vermes nas entranhas do Leviatã”. A essência da Filosofia
política de Hobbes está diretamente ligada a sua teoria da origem do governo. Pensava que,
no início, todos os homens tinham vivido em estado natural, sujeitos não a uma lei, mas ao
próprio interesse. Muito longe de ser um paraíso de inocência e de bem-aventurança, o
“estado de natureza” era uma condição de miséria universal. Para escapar da guerra de
cada um contra todos, os homens, por fim, se uniram entre si para formar uma sociedade
civil.
Hobbes pretendia a formação de um contrato, submetendo todos os direitos naturais
dos indivíduos a um único poder soberano, um monarca suficientemente poderoso, que
fosse capaz de coagir todos os indivíduos para a prática da ordem. Desse modo o soberano,
embora não fosse uma parte do contrato, tornava-se a sede da autoridade absoluta. 4
O povo, por seu lado, concederia tudo pela grande bênção da segurança.5 Hobbes não
reconheceu nenhuma lei da Igreja ou de Deus como limitação da autoridade do príncipe,
chegando à conclusão de que ao poder assim formado é permitido governar despoticamente,
não por ter sido ungido por Deus, mas porque o povo lhe deu autoridade absoluta. Como o
homem no estado de natureza é um inimigo em potencial, há a necessidade de um contrato
que estabeleça um acordo entre eles. Um contrato para constituírem um Estado que refreie
os lobos, que impeça o egoísmo e a destruição mútua.
Nesse contexto nasce o Estado, com o intuito de refrear os lobos e impedir o desenca-
dear dos egoísmos e a conseqüente destruição mútua. O Leviatã pretende dar uma justifica-
ção racional e, portanto, universal, da existência do Estado e, ainda, indicar as razões pelas
quais os seus comandos devem ser obedecidos. É o Estado o elemento positivo do desenvol-
vimento histórico da humanidade. A teoria do Estado em Hobbes é a seguinte: quando os
4 Afirma Hobbes, em De Cive (1993, p. 55): “Qualquer um que julgasse ser preferível ao homem ficar naquele estado, quando tudo épermitido a todos, estaria em contradição consigo mesmo. Pois, por uma necessidade natural cada qual deseja o que é bom para si, nãohavendo ninguém que considere um bem para si essa guerra de todos contra todos que é inseparável do estado natural”.
5 “... Contudo, ninguém deve duvidar que os homens, caso não existisse o medo, seriam levados por sua natureza mais sofregamente paraa dominação do que para a sociedade” (Hobbes, 1993, De Cive, cap. I, p. 52).
131
TEORIA POLÍTICA
homens primitivos vivem no estado natural, como animais, eles se jogam uns contra os
outros pelo desejo de poder, de riquezas, de propriedades. É um impulso à propriedade bur-
guesa que se desenvolveu na Inglaterra, onde cada homem é um lobo para seu próximo.
Thomas Hobbes foi materialista e empirista, deu valor somente ao que é provado pela
experiência. Afirma que há leis eternas, e que essas leis são simples nomes, palavras vazias.
Antropologicamente, afirma que entre o homem e o animal há apenas uma diferença de
grau e não de essência. Em sentido do agradável (sentimento, sensibilidade), aprovamos ou
reprovamos algo. A religião é somente uma esfera do sentimento, a ciência explica tudo,
desaparece a fé. “Se se alcança a ciência, se elimina a fé”.
Em 1640 deu-se um período de crise na Inglaterra, no reinado de Carlos I, que vê sua
posição ou sistema sendo ameaçado, questionado por idéias liberais parlamentaristas. Em
1689 as idéias liberais tomam conta da Inglaterra. Hobbes optou por defender as idéias da
monarquia, as idéias absolutistas, decorrentes de uma situação vigente. Distingue o Estado
Natural e o Contrato Social6.
No estado de natureza existe insegurança; não há lei ou norma, cada um faz o que
bem entende. No estado natural o homem goza de liberdade total, tendo todos os direitos e
nenhum dever. Sendo, porém, sua natureza egoísta, cada um busca satisfazer os seus pró-
prios instintos, sem nenhuma consideração pelos outros. Segue-se uma luta de uns contra
outros, na qual o homem se porta em relação ao outro como um lobo. Os homens são iguais
em capacidades de espírito e corpo e na esperança, porém aí surge a desconfiança, a guerra
de uns contra outros. Insegurança: “Quem pode mais, chora menos”. A própria disposição
para o conflito já é uma guerra. Existe uma ausência de leis, uma antecipação tomando
medidas para que não se transgrida alguma coisa. Assim sendo, a melhor forma de precaver-
se é antecipar-se, dada a ausência de legislação.
6 “As idéias de Hobbes sobre a religião, assim como toda a sua teoria da natureza humana e da organização política, não podem sercompreendidas sem se levar em conta duas ordens de fatores. Por um lado suas idéias constituem elementos que se vinculam à suametafísica materialista e à sua teoria nominalista da natureza do conhecimento... Por outro lado, as teorias do homem e do Estado,formuladas no Leviatã e em Sobre o Cidadão, inserem-se num processo histórico de lutas sociais e econômicas bem definido: osconflitos entre o poder real e o poder do Parlamento na Inglaterra do século XVII” (Hobbes, 1997, Introdução, p. 17).
TEORIA POLÍTICA
132
Os homens, segundo Hobbes, são considerados, por natureza, todos iguais quanto a
suas capacidades e faculdades7: inteligência e capacidade física. São iguais quanto a seus
desejos e quanto ao fim. Quando dois homens querem usufruir um só objeto ao mesmo
tempo, eles se tornam inimigos. As causas desta discórdia são a competição, a desconfiança
e a glória. O homem, para Hobbes, contrariando a tese de Aristóteles, não é um ser essencial-
mente político, “feito para viver com os outros em sociedade politicamente estruturada”;8
para Hobbes, os homens são diferentes uns dos outros, são separados entre si pelo egoísmo,
ódio e inveja. Assim o Estado não é natural entre os homens, por isso é urgente que se
construa um Estado artificial com a finalidade de organizar, preservar e proteger o homem
do próprio homem.
A condição natural em que os homens vivem entre si é uma condição de guerra de
todos contra todos, de inimizade constante e, o que é mais terrível, o medo da morte, sob
forma violenta: “Cada qual tende a se apropriar de tudo aquilo que necessita para sua pró-
pria sobrevivência e conservação” (Reale; Antiseri, 1990, p. 498). É importante lembrar que,
no Estado natural, não existe progresso nem empreendimento:
O homem trava uma luta constante na tentativa de sobreviver, acaba confrontando-se com o
interesse ou a vontade do outro, fazendo com que o conflito e a destruição seja inevitável no
estado natural, em que vive. O homem, por estar essencialmente preocupado com a ameaça do
perigo de morte, acaba esquecendo-se de outros empreendimentos, como as atividades industri-
ais e comerciais, cujos frutos permanecem sempre incertos, nem pode cultivar as artes e tudo
aquilo que é agradável; em suma, cada homem permanece só, com o seu terror de poder a, cada
instante, perder a vida de modo violento (Reale; Antiseri, 1990, p. 498).
Para Hobbes o homem, no estado de natureza, iguala-se em suas paixões, isto é, no
esforço de satisfazer o desejo e de afastar o indesejável. Assim ele se expressa sobre o conflito
entre os homens: “O mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta
maquinação, quer aliando-se com outros” (Hobbes, apud Abraão, 1999, p. 237).
7 “Que cada um reconheça os outros como seus iguais por natureza. A falta a este respeito chama-se orgulho” (Hobbes, 1997, CapítuloXV, p. 129).
8 O argumento contra Aristóteles é: “Bem sei que Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, (...), afirma que por natureza algunshomens têm mais capacidade de mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios (...), e outros têm mais capacidade para servir (...);como se o senhor e o servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela diferença de inteligência, o que nãosó é contrário à razão, mas também contrário à experiência. Pois poucos há tão insenssatos que não prefiram governar-se a si mesmosdo que ser governados por outros” (Hobbes, 1997, Leviatã, cap. XV, p. 129).
133
TEORIA POLÍTICA
Para a salvação do homem, que está em constante conflito no estado de natureza, é
necessária a construção de um homem artificial, ou seja, a instituição de um corpo político,
que é o Estado Soberano.9 O objetivo principal do Estado é garantir a paz, evitando assim a
guerra. A guerra será justificada à medida que restaure a paz e a concórdia em um estado de
natureza, em que o homem permanece num eterno conflito. Em síntese: “O Estado repre-
senta, na mesma medida, o fim do Estado de natureza e a inauguração da sociedade civil”
(Abraão, 1999, p. 239).
O Leviatã contempla conceitos que até então não haviam entrado em cena: vislumbra
o monopólio da força utilizada pelo Estado, a soberania centralizada, a supremacia dos
territórios nacionais. Em sua teoria, Hobbes se opõe à visão aristotélica, afirmando que o
homem está em estado de natureza, em que “o homem é lobo do homem”, que, por natureza,
se encontra em estado de guerra, que a luta é de todos contra todos e que, por meio de um
pacto ou contrato social, estrutura-se o Estado (artificial), um Estado com organização,
regras, leis e que forma uma sociedade.
Outro fator fundamental para o autor é a liberdade, pela qual o homem afirma o pacto
social. Ele deixa de lado o seu estado de natureza e passa a fazer parte de uma nova socie-
dade, o Estado.
Para Hobbes, a propriedade privada não existe no estado de natureza, em que todos
têm direito a tudo e, na verdade, ninguém tem direito a nada.10 O poder do Estado, no
entanto, tem que ser pleno, é a condição para existir a própria sociedade, a sociedade nasce
com o Estado. A igualdade é um fator que leva à guerra de todos. Apresenta o Estado como
monstruoso e o homem como belicoso, mas é também porque nega um direito natural ou
sagrado do indivíduo a sua propriedade privada. No seu tempo, e ainda hoje, a burguesia
vai procurar fundar a propriedade privada num direito anterior e superior ao Estado: por
9 “O Estado deduz-se desta a-sociabilidade originária, sendo uma instância ‘artificial’, não-natural, que marca a diferença específica doshomens em relação aos animais” (Rosenfield, 1993, p. 27).
10 “Pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar,e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por nenhum de seus cidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade.Porque antes da constituição do poder soberano (conforme já foi mostrado) todos os homens tinham direito a todas as coisas, o quenecessariamente provocava a guerra” (Hobbes, 1997, p. 148).
TEORIA POLÍTICA
134
isso, ele endossará Locke, advertindo que a finalidade do poder público consiste em proteger
a propriedade. Se existe Estado é porque o homem o criou. Se houvesse sociabilidade
natural, jamais poderíamos ter ciência dele, porque dependeríamos dos equívocos da ob-
servação.
Levando em conta que a natureza do homem não é amigável como a dos animais que
vivem em comunidade, surge a necessidade de um pacto social, um contrato realizado entre
súditos, que cria o Leviatã (o Estado), em que todos concedem seus direitos para o Estado
governar, unindo assim as forças de todas as pessoas em uma só pessoa, o Leviatã, tornan-
do-o o deus terreno, o qual somente fica submisso ao Deus imortal. O deus mortal, o Leviatã,
terá a função de proteger o homem, de permitir a convivência harmoniosa na sociedade,
tornando possível a construção de moradias confortáveis, o comércio, o desenvolvimento do
homem e da Terra.
Desse modo constituiu-se o Estado, que governa pelo temor que apresenta a seus
súditos, pois sem esse temor ninguém abriria mão da liberdade natural. Com o medo da
morte violenta e da dor, todos se refugiam no Estado, no qual os homens não podem levan-
tar-se contra o soberano, pois não pode alguém se queixar do que ele mesmo construíra e, se
alguém rebelar-se, haverá castigo. Assim, para os súditos terem um pouco de liberdade,
criaram-se, mediante pactos mútuos, leis artificiais que permitem ao súdito escolher qual a
sua profissão, o lugar onde vai morar, ou seja, o súdito aparenta-se senhor de sua vida,
mesmo que seja servo do soberano.
É desse modo que o Estado consegue reinar e passar por cima de qualquer um. Nada
que o Estado faça pode ser chamado de injustiça, pois ele é o soberano instituído pelo povo,
o qual lhe deu todo o poder de decidir o que é melhor e a força para fazer cumprir a decisão,
caso necessário.
O estado de natureza é uma condição de guerra – porque cada um se imagina, com
razão ou sem, poderoso, perseguido, traído – causada por três motivos principais: a compe-
tição, o homem busca o lucro; a desconfiança: o homem busca a segurança e, por isso, age
por antecipação; e a glória: o homem busca a reputação.
135
TEORIA POLÍTICA
Pela teoria de Thomas Hobbes, no estado de natureza os indivíduos vivem isolados, há
perigo constante, há insegurança, estão em luta permanente, ou seja, o homem vive em
estado de guerra, devido ao medo da morte violenta. Para se proteger usavam armas e cerca-
vam as propriedades, mas somente essas garantias não eram suficientes porque havia uma
percepção social, como a luta entre fracos e fortes, e, por isso, o que vigora é o poder da
força.
A lei natural é um preceito ou regra geral estabelecida pela razão, mediante a qual se
proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessá-
rios para preservá-la.11
O que leva as pessoas a se organizarem é o medo da morte. A razão sugere sempre a
vida. Três pontos são importantes na lei natural: primeiro, é de procurar a paz e seguir;
segundo, é a autodefesa, a intenção não é a morte; e, terceiro, é que os homens cumpram os
pactos que celebram. Nesta situação é impossível conseguir a felicidade, porque todos vi-
vem perseguidos pelo temor de serem atacados uns pelos outros. Assim, os homens fazem
um pacto, um contrato social, no qual renunciam a alguns direitos colocando-os nas mãos
de um só homem, o soberano. Assim nasce o Estado. Hobbes foi identificado como o ideólogo
do Estado Absoluto.
A alternativa para que o homem possa salvar-se em comunidade e não perecer é a
instituição de leis naturais, que o homem deverá cumprir. Três delas são essenciais: a primei-
ra regra é que se esforce para buscar a paz, mas se não a obtiver é justificável que a busque
sob todos os recursos e benefícios da guerra; a segunda é a imposição de renúncia do direito
sobre tudo, cada homem deve abrir mão de todos os seus direitos, tendo em vista que o
direito individual é causador de todos os males; a terceira lei, depois que o homem renun-
ciou a todos os seus direitos, é “que se cumpram os acordos feitos”, da qual decorrem dois
conceitos fundamentais: a justiça e a injustiça. A primeira é quando os acordos são feitos,
respeitados e mantidos entre os homens; a injustiça é a transgressão dos mesmos.
11 “Definindo, portanto, lei natural é um ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para garantir-se, quando possível, apreservação da vida e das partes do corpo” (Hobbes, 1993, p. 58-59).
TEORIA POLÍTICA
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Para o cumprimento desses acordos, entretanto, para que a lei seja aplicada e respei-
tada, é necessária a coação, ou seja, o uso da força para se obter um resultado esperado
diante dos acordos previamente estabelecidos. “Não existe pacto sem a espada”.12 Faz-se
necessária a entrega dos direitos particulares na mão de um único homem ou de uma as-
sembléia capaz de governar e representar os anseios de todos os homens. É importante res-
saltar que esse pacto é apenas hipotético, não é firmado entre os súditos e o soberano, mas
somente entre os súditos. O soberano é excluído do pacto, cabendo a ele cumprir a paz e o
governo. “O poder do soberano ou da assembléia é indivisível e absoluto” (Reale; Antiseri,
1990, p. 500). Talvez esteja aí a novidade do Estado Absolutista, sendo governado por reis
com direitos ilimitados, sem vínculo com a Igreja, mas sim como conseqüência de um pacto
social.
As leis não são deduzidas, por Hobbes, de um instinto natural, nem de um consenti-
mento universal, mas da razão que procura os meios de conservação do homem; elas são
imutáveis, por constituírem conclusões tiradas do raciocínio. A obediência moral é um meio
para uma “vida social pacífica e confortável”. As leis, no entanto, necessitariam de um
reforço como garantia de seu cumprimento em salvaguarda do pacto social. Torna-se, en-
tão, indispensável um governo que fosse seguido por todos os componentes do corpo social,
e isto haveria de requerer que esse governo tivesse toda a força, porque somente assim seria
capaz de corresponder a sua finalidade de exercício de forma despótica.
Hobbes define que “uma lei de natureza é um preceito ou regra geral, estabelecida
pela razão, mediante a qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida
ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contri-
buir melhor para preservá-la” (Hobbes, 1997, p. 113).
Hobbes é um contratualista. Acredita que a origem do Estado está no contrato. Os
homens viveram naturalmente, sem poder e sem organização, o que somente surgiu depois
de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação
política.
12 “E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem a força para dar a menor segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis danatureza (...), se não for instituído um poder suficientemente grande para a nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamenteconfiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção para todos os outros” (Hobbes, 1997, p. 141).
137
TEORIA POLÍTICA
O contrato só é possível quando há noções nascidas de uma longa experiência da vida
em sociedade. O contrato social é um Estado artificial, produto de uma convenção. É um
pacto, um acordo. Para pôr fim a esse conflito, o autor apresenta o contrato social, que é
uma renúncia do estado de natureza para então estabelecer regras e leis, formando, assim,
o Estado artificial. O contrato é feito entre os súditos. Esse pacto social consiste na transfe-
rência do poder de governar a si próprio a um terceiro – o Estado – para que este governe a
todos, impondo ordem, segurança e direção à conduta da vida social.
O Leviatã, governo, pode ser um homem ou uma assembléia de homens que reduz
suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O soberano se conserva
fora e isento de qualquer obrigação, não faz parte do pacto social, pois, no momento da
realização do contrato não existe ainda o soberano, que surge devido ao contrato. Os súditos
acatarão todas as ações do Soberano, pois reconhecem serem dos próprios súditos tais ações.
Daí surge a necessidade de um pacto. O contrato social ocorre quando uma multidão
de homens concordam e pactuam, cada um, com cada um dos outros, que a qualquer ho-
mem, ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a
pessoa de todos eles, sem exceção, deverão autorizar todos os atos de decisões, tal como se
fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem
protegidos do restante dos homens. Pacto social, portanto, é o processo intermediado do
estado de natureza para o Estado artificial, tendo o consentimento de todos os súditos.
Hobbes afirma que não existe pacto sem espada. Ninguém tem a liberdade de resistir à
espada do Estado em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Por essa liberdade priva a
soberania dos meios para nos proteger, sendo, portanto, destrutiva da própria essência do
Estado. É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado, para forçar os homens
ao respeito. Dessa maneira, a imaginação será mais bem regulada, porque cada um receberá
o que o soberano determinar. Os súditos têm garantia de serem protegidos pelo soberano,
porque lhe devem fidelidade. O súdito prometeu obedecer a fim de não morrer na guerra
generalizada; por isso, tanto faz a sua vida ser ameaçada por um soberano impiedoso e
ímpio, ou por um governante que o julgou concedendo-lhe a mais ampla defesa.
O Estado resulta de um contrato social e os contratos sem ameaça de espada são
apenas palavras, impotentes para garantir a segurança dos homens. O único meio de reali-
zar este propósito consiste em defendê-los da invasão dos outros Estados e defendê-los de si
TEORIA POLÍTICA
138
mesmos, conferindo todo o poder e potência a um só homem ou a uma só assembléia de
homens, ou seja, reduzir todas as vontades a uma só vontade, nomear um homem ou uma
assembléia de homens para representar a pessoa de todos, assumindo tudo o que diz respei-
to à paz e à segurança comuns.
O resultado é a verdadeira união de todos na mesma pessoa, feita por contrato de todo
homem com todo homem. É como se cada um dissesse a cada um: “Cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a
condição de transferir a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas
ações” (Hobbes, 1997, p. 144). Feito isso, a multidão se une de tal maneira em uma só
pessoa, o que é chamado de Estado. Pelo contrato, o povo é obrigado a permanecer fiel ao
compromisso assumido e não pode, de maneira nenhuma, voltar à confusão da multidão
desunida, nem transferir o poder a outro.
O homem possui certas diferenças em relação aos animais. A formiga e a abelha, por
exemplo, exercem uma sociedade natural, ou um acordo natural. Já em relação ao homem
dá-se um acordo artificial, pois todos são instituídos a serem uns mais que os outros; dá-se
então a competição e a lei do mais forte é que vence.
Para que um Estado funcione o soberano deve ser juiz das opiniões e das doutrinas,
conduzir a paz e regulamentar as ações, de onde resulta a concórdia. É ao Estado que
compete prescrever as regras sem as quais ninguém teria segurança na posse da proprieda-
de, isto é, as regras do meu e do teu, do bem e do mal, do legal e do ilegal nas ações, ao que
se denomina leis civis. A ele compete o direito de julgar, ouvir e decidir todas as controvérsi-
as que surgem a respeito da lei, civil ou natural, ou com respeito aos fatos. A ele incumbe o
direito de declarar e executar a guerra e a paz com outros Estados e tomar as providências
para realizá-la. A ele cabe escolher todos os conselheiros, ministros, magistrados e oficiais.
O Estado soberano é o Deus mortal, somente ele detém todos os direitos, está acima
da justiça, tem poder de interferir nas opiniões, “julgar, aprovar ou proibir determinadas
idéias. Todos os poderes devem se concentrar em suas mãos” (Reale; antiseri, 1990, p. 501).
Nem mesmo a Igreja lhe retira o poder; assim, o Estado também pode interferir em matéria
de religião.
139
TEORIA POLÍTICA
Hobbes afirma que o Estado deve ser absoluto, o seu poder deve ser pleno – condição
absoluta e necessária para existir a sociedade. Hobbes vai beber na fonte de Jean Bodin –
século 16 –, primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver um poder soberano, como
referimos anteriormente.
O instinto de conservação é peça fundamental na Filosofia de Hobbes, quanto à sua
idéia de força genética do comportamento. Governa também no homem o instinto de con-
servação que, por sua vez, este leva ao desejo da paz. No plano das relações morais, é que
cada um “não faça aos outros o que não gostaria que lhe fizessem a si” (Hobbes, 1997, cap.
XXI). É preciso evitar a ingratidão, os insultos, o orgulho, enfim, tudo o que prejudique a
concórdia.
As leis são deduzidas, por Hobbes, como razão para a conservação dos homens, ou
seja, todos devem obediência às leis do Estado, do soberano. Hobbes foi o pioneiro do
utilitarismo, porque justificava a obediência moral como meio para uma “vida social pacífi-
ca e confortável”. Era indispensável, portanto, um governo absoluto que fosse seguido por
todos os integrantes (súditos) do corpo social. Os homens não poderiam contrariar o “Leviatã”,
pois ele garantia a paz, a segurança, a liberdade. Se alguém tentar destruir ou conspirar
contra o soberano e for morto, ele próprio é o autor da sua morte. A liberdade e a garantia da
vida estão no cumprimento e obediência às leis. Todos os poderes encontram-se nas mãos
do soberano, inclusive o poder de decisão em matéria religiosa.
No Estado Artificial, não basta o fundamento jurídico. É necessário que exista um
Estado dotado de espada. Aliás, a imaginação será mais bem regulada, porque cada um
receberá o que o soberano determinar, mas este deve resolver todas as pendências e arbitrar
qualquer decisão. Hobbes desenvolve essa idéia e monta um Estado que é condição para
existir a própria sociedade. A sociedade nasce com o Estado. Não há alternativa: ou o poder
é absoluto ou continuamos na condição de guerra, entre poderes que se enfrentam. O sobe-
rano não assina o contrato, este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não pelo
beneficiário, por uma razão simples: no momento do contrato não existe ainda soberano,
que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva fora dos compromissos e
isento de qualquer obrigação. No Estado absoluto de Hobbes, o indivíduo conserva um
direito à vida talvez sem paralelo em nenhuma outra política moderna. Hobbes esclarece
TEORIA POLÍTICA
140
que o soberano governa pelo temor que impõe a seus súditos, porque sem medo ninguém
abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a morte violenta, o
homem não renunciaria ao direito que possui por natureza.
Segundo a teoria de Thomas Hobbes, a função do soberano é garantir: 1° – a defesa
dos ataques estrangeiros e das injúrias recíprocas; 2° – a paz e o progresso (industrial) e a
satisfação do bem viver; 3° – a centralização dos poderes, que se dará nas mãos de um
homem (ou assembléia) na medida em que representam toda a vontade coletiva, por meio da
pluralidade de vozes, a uma só vontade; 4° – o pacto entre os homens, que é fundamental
para a estruturação de um governo soberano: “Eu autorizo e cedo o meu direito de gover-
nar-me a mim mesmo a esse homem ou a essa assembléia de homens, com a condição de que
tu lhe cedas o teu direito e autorizes todas as tuas ações da mesma forma”; 5° – a superação
do medo e da morte pela esperança, que garantirá a segurança e o direito à vida.
Hobbes é considerado o maior teórico do Estado absolutista. O interessante é que
você perceba que o desejo de Hobbes por um Estado forte decorre de sua Filosofia da natu-
reza humana. Abordaremos também na próxima Unidade que o teoria hobbesiana choca-se
com a teoria liberal e que o principal mentor da teoria liberal também era inglês e viveu
quase no mesmo período de Hobbes. Trata-se de John Locke.
141
TEORIA POLÍTICA
Unidade 9Unidade 9Unidade 9Unidade 9
A Defesadas Idéias Liberais
Há vários entendimentos sobre o conceito “liberal”. Por isso inicialmente pretende-se
definir o que se entende por liberalismo. A primeira idéia considera que o liberalismo está
ligado à democracia burguesa.
O liberalismo é um fenômeno histórico que se manifesta na Idade Moderna e tem seu
epicentro na Europa, na área Atlântica, mas que exerceu influência notável nos países
colonizados pelos europeus. Antes do século 19, o termo indicava uma atitude aberta. Tole-
rante e/ou generosa. Ou as profissões exercidas por homens livres. Hoje, a palavra assume
muitos significados, de acordo com o país. Na Inglaterra e Alemanha designa um
posicionamento entre a esquerda e a direita. Nos EUA, refere-se à esquerda, detentora de
velhas e novas liberdades civis. Na Itália, os liberais são os defensores da livre iniciativa
econômica e da propriedade intelectual. Assim, em termos de idéias, o conceito é ambíguo.
O liberalismo jurídico preocupa-se principalmente com determinada organização do Esta-
do, capaz de garantir direitos aos indivíduos. O liberalismo político trata da luta política
parlamentar, baseada no chamado “justo meio” como expressão da arte de governar; capaz
de promover mudanças, porém nunca a revolução. Síntese entre conservação e inovação. O
liberalismo econômico defende que o máximo de felicidade comum depende da livre busca
de cada indivíduo, da própria felicidade, principalmente a livre iniciativa econômica. O libe-
ralismo, em síntese, prioriza o indivíduo em contraposição ao coletivismo.
TEORIA POLÍTICA
142
Seção 9.1
O liberalismo de Locke: o cidadão com direitos naturais
John Locke nasceu na Inglaterra no ano de 1632.1 A Ingla-
terra, a partir da segunda metade do século 17, transformou-se
num império mercantil promissor. Nesse período a burguesia, como
classe social, começa a ascender economicamente e a buscar os
direitos individuais, os direitos cidadãos. Nasce, neste sentido, o
cidadão, justamente com a Inglaterra, sendo Locke o seu teórico.
Em 1689 Locke publicou três grandes obras: Dois Tratados
sobre o Governo Civil, Ensaio Filosófico sobre o Entendimento
Humano e a Carta sobre a Tolerância.2 O Ensaio Filosófico sobre
o Entendimento Humano é a principal obra de Locke e versa sobre
a sua compreensão do espírito humano, ou melhor, da capacida-
de de conhecer. Essa obra foi considerada a Bíblia do Iluminismo.
Locke combateu duramente a doutrina das idéias inatas
defendidas por Platão e Descartes. Para Platão, o homem já tra-
zia consigo (ao nascer) o conhecimento impregnado em sua alma,
ao qual teria acesso por meio da reminiscência (recordação).
Locke combateu ferozmente tais idéias. Defendeu que nossa men-
te, no instante do nascimento, é como uma tábua rasa (papel em
branco) que vai adquirindo conhecimento à medida que os senti-
dos se confrontam com a realidade: “nada existe em nossa mente
que não tenha sua origem nos sentidos”. Locke defende a idéia
empirista de que tudo provém da experiência. A reflexão é o nos-
so “sentido interno”, que se desenvolve quando a mente se de-
bruça sobre si mesma, analisando suas próprias operações.
John Locke
Disponível em: <http://www.geocities.com/
rationalargumentator/John_Locke.jpg>. Acesso em:
dez. 2007.
1 Ver Almeida Mello (1991).
2 Ver Chevallier (1983, p. 29). Tomo II.
143
TEORIA POLÍTICA
Nota-se que Locke lutará para derrubar as idéias inatas, que podem justificar uma
ideologia, uma dominação. Por exemplo, os poderosos têm idéias inatas, já nascem com a
idéia que irão dominar e explorar o povo e nós devemos aceitar isso?
São conhecidas algumas críticas que Locke tece contra os teóricos que defendem as
idéias inatas (já nascemos com o conhecimento). De fato, se houvessem idéias inatas, elas
deveriam estar presentes na mente das crianças e do selvagem crescido longe da civilização.
A experiência, porém, mostra claramente o contrário. A sua verdade não pode ser averigua-
da: admitida a existência de idéias inatas, não provenientes da experiência, torna-se impos-
sível verificar o seu valor, como também distinguir o verdadeiro do falso, porque não pode-
mos confrontá-la com a experiência, que é o único modo de estabelecer se alguma coisa é
verdadeira ou falsa.
Locke também examina o processo cognitivo (intelecto). No momento do nascimento
a alma é uma tábua rasa: não tem nenhuma idéia. O conhecimento humano começa com a
experiência sensível e é condicionada por ela. Nada está na mente sem antes passar pela
experiência. Advoga também que as capacidades do conhecimento são inatas, mas as idéias
são adquiridas pela experiência. Locke ataca frontalmente o princípio das idéias inatas,
como também todo o pensamento a priori, pois se a verdade fosse inata em nossas mentes,
de nada valeriam a observação e a experiência. Na melhor das hipóteses, elas podem confir-
mar o nosso conhecimento, mas nunca lhe acrescentar nada.3
Segundo Locke, adquirimos as nossas idéias de fora e todas elas provêm da sensação.
Assim resta indagarmos: De onde vieram nossas idéias, se não são inatas? Como poderemos
saber se nossas idéias, assim surgidas, são verdadeiras? Quanto pode o entendimento hu-
mano compreender e que tipo de conhecimento está ao seu alcance? Conhecer, para Locke,
significa perceber uma relação entre as idéias. Ora, as idéias são de dois tipos: há idéias
simples, que derivam diretamente da sensação ou de uma experiência interior, que é a refle-
3 Para Locke, o espírito humano é uma tabula rasa ou um white paper, onde nada está escrito. “As idéias que se gravam nessa tabula ounessa folha só podem promanar da experiência. É nela que o espírito vai buscar todos os seus materiais para depois os modelar,combinar, transformar, com uma habilidade infinita” (Chevallier, 1983, p. 32, Tomo II).
TEORIA POLÍTICA
144
xão. Também existem idéias complexas, que são combinações das idéias simples. Antes de
experimentarmos a sensação não podemos pensar, pois tudo aquilo que se encontra no
intelecto deve passar, primeiramente, pelos sentidos.
Não há princípios práticos inatos, pois estes não alcançam uma recepção universal,
sendo impossível para uma mesma coisa ser ou não ser. Notemos que os princípios práticos
são passageiros, se fossem inatos teriam de permanecer sempre. Vislumbramos como princí-
pio moral, de prova e exemplarmente, o aborto, que é uma idéia adquirida; se fosse inata
deveria permanecer.
O não matar é um princípio evidente, mas não é inato. Locke contesta o acordo uni-
versal dos inatistas e refuta-os advertindo que isso não prova o que é inato, diz que a razão
não descobre coisa alguma.
A outra obra importante de Locke chama-se Dois Tratados sobre o Governo Civil. É nela
que Locke teoriza contra as idéias absolutistas. A vontade intelectual de Locke é de demolir a
doutrina do direito divino dos reis de governar. Locke considerava esta teoria um veneno para
a política. Procurava ele um contraveneno que fosse capaz de destruir tais idéias.
Assim como Hobbes e Rousseau, John Locke é considerado um pensador contratualista,
ou seja, defendia que a sociedade civil moderna será instituída e organizada a partir de um
contrato entre todos os indivíduos. Locke também parte do estado de natureza, passando
pelo contrato, até chegar ao governo civil. O estado de natureza de Locke não é de inimiza-
de e guerra, como o de Hobbes. No estado de natureza de Locke os indivíduos estão regula-
dos pela razão, há uma organização pré-social e pré-política, segundo a qual todos nascem
com os direitos naturais: vida, liberdade e propriedade privada. Sobre a razão natural: “En-
sina a todos os homens, que, sendo todos iguais e livres, nenhum deve prejudicar o outro,
quanto à vida, à saúde, à liberdade, ao próprio bem”. E, para que ninguém intente ferir os
direitos alheios, a natureza autorizou cada um a proteger e conservar o inocente, reprimin-
do os que fazem o mal, dando-lhes o direito natural de punir.4
4 “O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissãopelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade,trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã. Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento emque os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que provémoriginalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estãomelhor protegidos sob o manto da lei, do arbítrio e da força comum de um corpo político unitário” (Almeida Mello, 1991, p. 86).
145
TEORIA POLÍTICA
O direito de propriedade, segundo Locke, é a extensão de terra que cabe a cada ho-
mem, é o que ele tem capacidade de lavrar, semear e cultivar. Locke não fala em acumulação
da propriedade para fins especulativos. Ele afirma que os homens se juntam em sociedades
políticas e submetem-se a um governo com a finalidade principal de conservar suas propri-
edades, pois o Estado natural não a garante. O Estado é soberano, mas sua autoridade vem
somente do contrato que o faz nascer: este é o fundamento liberal do pensamento de Locke.
John Locke foi médico, filósofo e político, defendeu idéias liberais e influenciou o sis-
tema político da sua época. Sustentou que o poder não é somente do soberano, mas, de
todos. A idéia de Locke era de que se formassem Estados por livre associação para produzir
mais. É nesse período que ocorre a ascensão da burguesia que, mais tarde, estará à frente da
Revolução Francesa (1789).
Na visão de Locke, os homens se juntam em sociedades políticas e se submetem a um
governo com a finalidade principal de conservar suas propriedades. O Estado natural (isto
é, a falta de um Estado) não garante a propriedade. Locke foi um teórico relacionado com a
monarquia parlamentar liberal.
O contexto histórico em que nasceu John Locke não se caracterizou pela tranqüilida-
de, muito pelo contrário, o século 17 foi marcado por constantes lutas entre a “coroa”,
tendo o rei como representante do poder soberano (representado na Inglaterra pela dinastia
Stuart, defensora do absolutismo) versus o “Parlamento”, tendo como representante a bur-
guesia ascendente, partidária do liberalismo. Em toda a sua vida Locke posicionou-se
contrariamente ao absolutismo, principalmente ao governo Stuart, vindo a ser perseguido,
o que o levou a se exilar, só retornando a sua pátria após o triunfo da Revolução Gloriosa,
com a instituição da República na Inglaterra, ou seja, o triunfo do liberalismo político sobre
o absolutismo.
Jonh Locke é chamado também de filósofo contratualista, uma vez que entende que
para a boa regulamentação de uma sociedade, ou para a mesma garantir direitos, ou até
mesmo ser feliz, tornam-se necessárias a elaboração e a construção de um contato social
que conceda de fato todas as garantias possíveis para a realização concreta de tais empre-
endimentos. Assim, Locke parte do estado de natureza, no qual o homem vive num estágio
pré-social e pré-político com liberdade e igualdade.
TEORIA POLÍTICA
146
O estado de natureza de Locke é diferente do estado de natureza hobbesiano (uma vez
que este é baseado na insegurança e na violência: “guerra de todos contra todos”). Para
Locke, o estado da natureza é de relativa paz, concórdia e harmonia. Um dos direitos do
homem no Estado Natural é a propriedade privada. Por teoria da propriedade, em Locke,
entende-se a posse de bens móveis e imóveis. Como vimos, a propriedade já é realidade no
estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do
indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. Já para Hobbes, quem detém a propriedade
é o soberano e os súditos não têm direito algum; em Locke o objetivo final é que o Estado
garanta o direito de propriedade.5
Como a razão natural, na compreensão de Locke, ensina que todos os homens são
iguais e livres, porém com direito aos bens, sempre surge o perigo iminente da invasão e da
tomada dos bens de uns sobre os outros, na medida em que todos são proprietários. A saída
é estabelecer um contrato entre os homens que dê total segurança e proteção aos proprietá-
rios, não vindo a ocorrer a usurpação de uns sobre os outros. Então, o contrato social é a
realização da passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil e visa exclu-
sivamente a preservar e proteger a comunidade tanto dos perigos internos quanto externos.
O contrato é, igualmente, um “pacto de consentimento em que os homens concordam
livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar os direitos que possuíam
originalmente no estado de natureza”. Assim, o homem concebe “a sociedade política ou
civil”. O próximo passo é a escolha de uma forma de governo capaz de garantir efetivamente
os direitos dos cidadãos. Observa Locke: pode ser qualquer forma de governo, desde que “o
governo não possua outra finalidade a não ser de conservação da propriedade”.
O governo civil contará com o poder Legislativo, considerado o mais importante entre
os demais. A ele caberá a elaboração das leis, tendo como sustentação o poder delegado
pelo povo, tornando possível a existência de
5 “Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para aformação do governo, a proteção do direito de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle dogoverno pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamentos da sociedade civil” (Almeida Mello, 1991, p. 87).
147
TEORIA POLÍTICA
leis e regras estabelecidas como guarda e proteção às proprieda-
des de todos os membros da sociedade, a fim de limitar o poder e
mudar o domínio de cada parte e de cada membro da comunida-
de; pois não se poderá nunca supor seja vontade da sociedade que
o legislativo possua o poder de destruir o que todos intentam asse-
gurar-se entrando em sociedade e para o que o povo se submeteu a
legisladores por ele mesmo criados (Locke, 1973, p. 77, 96, 127).
Em síntese, para Locke, a função do Estado é garantir os
direitos naturais (vida, liberdade, propriedade). Entre os direitos
que, segundo Locke, o homem possuía quando no estado de na-
tureza, está o da propriedade privada, que é fruto de seu traba-
lho. O Estado deve, portanto, reconhecer e proteger a proprieda-
de. Locke defende também que a religião seja livre e que não
dependa do Estado.
Locke passou para a História como o teórico da monarquia
constitucional, um sistema político baseado, ao mesmo tempo,
na dupla distinção entre as duas partes do poder, o Parlamento e
o rei, e entre as duas funções do Estado, a Legislativa e a Executi-
va, bem como na correspondência quase perfeita entre essas duas
distinções – o poder Legislativo emana do povo representado no
Parlamento; o poder Executivo é delegado ao rei pelo Parlamento.
De Locke passamos a descrever algumas idéias de outro im-
portante teórico contratualista chamado Jean-Jacques Rousseau.
Seção 9.2
O Estado democrático de Rousseau
Com Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasce a concep-
ção democrático-burguesa do Estado. Assim como para Hobbes
e Locke, também para Rousseau existe uma condição natural
Jean-Jacques Rousseau.
Disponível em:<www.alcoberro.info/imatges/rousseau.jpg>. acesso em:mar. 2008.
TEORIA POLÍTICA
148
dos homens, mas é uma condição de felicidade, de virtude e de liberdade, que é destruída e
apagada pela civilização.6 É a concepção oposta àquela de Hobbes. Para Rousseau, é a
civilização que perturba as relações humanas, que violenta a humanidade, pois os homens
nascem livres e iguais (eis o princípio que vai se afirmar na revolução burguesa), mas em
todo lugar estão acorrentados.
A sociedade nasce, igualmente, de um contrato, ele apresenta a mesma mentalidade
comercial e o mesmo individualismo burguês. O indivíduo é preexistente e funda a socieda-
de por meio de um acordo, de um contrato.
Para Rousseau o único órgão soberano é a Assembléia, e é nesta que se expressa a
soberania.7 A Assembléia, representando o povo, pode confiar a algumas pessoas determi-
nadas tarefas administrativas, relativas à administração do Estado, podendo revogá-las a
qualquer momento. O povo, todavia, nunca perde a sua soberania, nunca a transfere para
um organismo estatal separado.8
A afirmação da igualdade é fundamental para Rousseau. O homem só pode ser livre se
for igual: assim que surgir uma desigualdade entre os homens, acaba-se a liberdade. Para o
liberal, há liberdade na medida em que se leve em consideração a desigualdade entre pro-
prietários e não– proprietários, e a igualdade mataria a liberdade. Já que, para Rousseau, o
único fundamento da liberdade é a igualdade: não há liberdade onde não existir a igualdade.9
Rousseau não compreende que o surgimento da propriedade privada foi um grande
progresso em relação à sociedade dos bárbaros – embora um progresso doloroso. O que
originou a propriedade privada não foi um ato isolado, pelo qual um indivíduo colocou um
6 Ver Nascimento (1991).
7 Escreve Nascimento (1991, p. 197-198): “Rousseau não admite a representação ao nível da soberania. Uma vontade não se representa.‘No mundo em que um povo se dá representante, não é mais livre, não mais existe’”.
8 “O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: ‘Isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para crê-lo, foi overdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênerohumano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seu semelhantes: ‘Guardai-vos de escutar esteimpostor; estais perdidos se esquecerdes que os frutos são para todos, e que a terra é de ninguém (Rousseau, apud Weffort, 1991, p. 201).
9 “Um povo, portanto, será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediênciaa essas leis signifique, na verdade, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo deindivíduos” (Nascimento, 1991, p. 196).
149
TEORIA POLÍTICA
marco e se declarou proprietário da terra: a propriedade é fruto de um processo econômico
de desenvolvimento das forças produtivas. Rousseau não soube indicar como se superaria a
propriedade privada.
Rousseau tem em vista a democracia da antiga Atenas, porém vê, igualmente, limita-
ções neste modelo (cidadão versus escravo). Afirma Rousseau: “a democracia de que falo
não existe, nunca existiu e talvez nunca existirá; também essa condição natural, a que
devemos aspirar, não existe, nunca existiu e nunca vai existir”. A sociedade, para Rousseau,
nasce de um contrato, também com uma mentalidade comercial e o mesmo individualismo
burguês.
Em síntese, algumas idéias conclusivas de Rousseau: tem-se, com o autor, o debate da
democracia ideal e pura (a sabedoria do povo e o governo democrático); o pacto social dá
origem à vontade geral do povo soberano; o contrato social faz nascer a sociedade civil, que,
por isso, enraíza-se sempre na vontade geral do povo; a idéia de soberania liga-se à idéia de
vontade geral; a vontade geral soberana é inalterável e pura; em seu dever-ser, que é sua
única maneira de ser, ela não pode falhar nem errar; todo governo legítimo é republicano,
seja ele uma monarquia, uma aristocracia ou uma democracia e, por fim, a conclusão de
que “nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá”.10
Seção 9.3
A democracia moderna: filha do Estado Liberal
Pode-se apresentar duas diferenças básicas para o termo democracia. Para os antigos,
ela era entendida como democracia direta; já para os modernos, como representativa.11
10 Para aprofundar o debate sobre Rousseau conferir a obra de Goyard-Fabre (2003).
11 Este debate segue a idéia de Bobbio (2000).
TEORIA POLÍTICA
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O termo democracia vai além do entendimento simplista de um conceito que é lembra-
do apenas em época de eleições, quando, num “gesto” democrático, todos vão às urnas
“exercer a democracia”. Ou quando se ouve, pela mídia, que “caiu um governo ditador e
instaurou-se um regime democrático”. Segundo Bobbio, “o voto não é para decidir, mas
para eleger quem deverá decidir”. Isso significa afirmar que a maioria da população votará
consciente ou não em um grupo, delegando, assim, a esta minoria, o poder de governá-la.
Democracia não significa que “todos” participem do processo eleitoral. Para Kelsen, um dos
maiores teóricos da democracia moderna, a eleição é o elemento essencial da democracia
real, pois possibilita a seleção dos líderes para o progresso (apud Bobbio, 2000, p. 372).
Bobbio cita uma frase ilustrativa da Corte Suprema dos EUA, por ocasião das eleições
no ano de 1902, para demonstrar o caráter “sagrado” do processo eleitoral daquele país,
mesmo que quem dela participe seja apenas uma minoria: “A cabine eleitoral é o templo das
instituições americanas, onde cada um de nós é um sacerdote, ao qual é confiada a guarda
da arca da aliança e cada um oficia do seu próprio altar” (2000, p. 272). É possível perceber
que a democracia ocidental é um processo relativamente novo, e as revoluções americana e
francesa marcam seu início.12
A democracia na Modernidade fez algumas “promessas” que até agora, na visão de
Bobbio (1997, p. 27), não foram cumpridas. A primeira é de que a democracia ainda conti-
nua subordinada a um poder “invisível”, isto é, interesses que submetem os poderes políti-
cos. Aqui se pode entender a superioridade de um grupo ou pessoa, que detém o controle do
poder econômico ou ideológico: “A democracia não conseguiu derrotar por completo o po-
der oligárquico, é ainda menos capaz de ocupar todos os espaços nos quais se exerce um
poder que toma decisões vinculatórias para um inteiro grupo social”. A segunda, os “mes-
mos” permanecem no poder. De eleições em eleições acabam se elegendo sempre os “mes-
mos”. Terceiro, “ausência do crescimento da educação para a cidadania”, cada vez mais o
povo vê-se desacreditado dos meios políticos, ou seja, a apolitização virou uma constante.
Tocqueville, citado por Bobbio, lamenta a degeneração dos costumes públicos em decorrên-
cia da qual “as opiniões, os sentimentos, as idéias comuns são cada vez mais substituídas
12 Bobbio apresenta o conceito de democracia em dois sentidos: a democracia pode ser entendida no sentido “ideal” e no sentido “real”.
151
TEORIA POLÍTICA
pelos interesses particulares” e indaga “se não havia aumentado o número dos que votam
por interesses pessoais e diminuído o voto de quem vota à base de uma opinião política”,
denunciando esta tendência como expressão “de uma moral baixa e vulgar”, segundo a
qual “quem usufrui os direitos políticos pensa em deles fazer uso pessoal em função do
próprio interesse”. Quarto, os mais “sábios”, os mais “honestos” e os mais “esclarecidos”
são escolhidos (Bobbio, 1997, p. 27).
Seguindo a concepção de Bobbio, pode-se definir a democracia como “um conjunto
de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem ‘quem’ está autorizado a tomar as
decisões coletivas e com quais procedimentos”. Para que se realize a “verdadeira” democra-
cia, deve-se dar as reais condições para se escolher. Para isso, “é necessário que aos chama-
dos a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de
expressão das próprias opiniões, de reunião; de associação, etc.” (Bobbio, 2000, p. 20).
A democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade e do Estado. Para
isso, ocorreram três eventos que caracterizaram a Filosofia social da Idade Moderna: o
contratualismo (séculos 16 e 17), o nascimento da economia política (Smith) e a Filosofia
utilitarista (de Bentham a Mill). Neste sentido,
O Estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do Estado democrático... Estado
liberal e Estado democrático são interdependentes... é pouco provável que um Estado não liberal
possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte, é pouco provável
que um Estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais (Bobbio,
2000, p. 20).
Um dos principais obstáculos ao projeto político-democrático atual é a complexidade
das sociedades, “que passaram de uma economia familiar para uma economia de mercado,
de uma economia de mercado para uma economia protegida, regulada, planificada, que
aumentaram os problemas políticos que requerem competência técnicas” (p. 34).
Tecnocracia e democracia são antitéticas. Defende Bobbio (2000, p. 34) que “a demo-
cracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos possam decidir a respeito de tudo. A
tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles pou-
cos que detêm conhecimentos específicos”. Ou seja, há uma “sensível” mudança nos rumos
TEORIA POLÍTICA
152
da política atual, inverteram-se os termos; ao invés da democracia, tem-se a tecnocracia. O
segundo obstáculo citado por Bobbio é o crescimento do aparato burocrático: “Estado de-
mocrático e Estado burocrático estão historicamente muito mais ligados um ao outro do
que a sua contraposição pode pensar” (p. 34). O terceiro obstáculo é a “ingovernabilidade”
da democracia. Isso significa que o Estado é incapaz de solucionar as demandas oriundas
da sociedade civil. Como vimos, foi o Estado liberal que alargou o Estado democrático e
ambos contribuíram para emancipar a sociedade civil do sistema político. A democracia,
portanto, é uma criação da classe burguesa.
Seção 9.4
A sociedade civil e o Estado
O conceito “sociedade civil” vem sendo muito aplicado por comentadores e teóricos
das Ciências Sociais e Ciências Humanas nos diais atuais, porém aparece hoje como sendo
exatamente o oposto do que era no princípio.
Primeiramente, a expressão “sociedade civil”, no sentido original, nos remete para o
início da Modernidade (séculos 16-17), mais precisamente para os teóricos jusnaturalistas
como Thomas Hobbes e John Locke. Para estes pensadores, a sociedade civil contrapõe-se à
“sociedade natural”, sendo sinônimo de sociedade política, ou seja, o próprio Estado (Bobbio,
1983, p. 1.206). A sociedade civil nasce com o jusnaturalismo de Hobbes, varia sensivel-
mente entre os pensadores posteriores, sem perder o seu sentido original, estendendo-se até
a posição de Kant.
Entende-se por “estado de natureza”, de modo geral, tudo o que se refere a um estágio
de pré-sociedade, pré-político, em que não existe progresso, nem técnica, e o medo da morte
é uma constante, a paz está sempre ameaçada... Já a sociedade civil é entendida como a
constituição do Estado propriamente dita, existe uma Constituição, que garante a proprie-
dade, a segurança, a paz, a decência, a participação, a ciência e a benevolência.
153
TEORIA POLÍTICA
Quando os teóricos contratualistas querem dar um exemplo do “estado de natureza”
citam os povos da América. Hobbes assim se refere: “Em muitos lugares da América os selva-
gens não têm nenhuma forma de governo, a não ser o governo de pequenas famílias, cuja
concórdia têm como fundamento a concupiscência natural”.13 Da mesma forma, John Locke
afirma que “em muitos lugares da América não havia nenhum governo”, e “aqueles ho-
mens... por longo tempo, não tiveram nem rei, nem repúblicas, vivendo apenas em ban-
dos”.14 Assim, o conceito de sociedade civil adquire um novo significado, como sendo uma
sociedade de “civilizados”, em que civil não é mais adjetivo de “civitas” (cidade), mas de
“civilitas” (civilizados).
Para os contratualistas, “sociedade política” e “sociedade civilizada” são dois significa-
dos que se sobrepõem. O Estado se contrapõe ao estado de natureza e ao estado selvagem.
Rousseau emprega a expressão “sociedade civil” no sentido de “sociedade civilizada”.
É importante perceber que “civilizada”, para Rousseau, tem uma conotação negativa. Ob-
serva o teórico: “o primeiro que, após haver cercado um terreno e passou a dizer isto é meu e
achou os outros tão ingênuos que acreditaram, foi o verdadeiro fundador da sociedade ci-
vil”. Já para Hobbes e Locke, a sociedade civil é a sociedade política e ao mesmo tempo a
sociedade civilizada. Segundo Rousseau, a sociedade civil é a sociedade civilizada, mas não
necessariamente ainda a sociedade política, que surgirá do contrato social e será uma recu-
peração do estado de natureza e uma superação da sociedade civil (Bobbio, 1983, p. 1.208).
A sociedade civil de Rousseau é, do ponto de vista hobbesiano, uma sociedade natural.
Hegel aborda a questão da sociedade civil no livro Filosofia do Direito. Para este autor,
a sociedade civil é o momento preliminar para a estruturação do Estado. Ela não é mais a
família (sociedade natural) e ainda não é o Estado (forma mais ampla da eticidade). A socie-
dade civil se coloca em Hegel entre a forma primitiva e a forma definitiva do Espírito Abso-
luto. Sendo assim, a sociedade civil, em Hegel, já possui algumas características do Estado,
mas não é ainda propriamente Estado. Ele a define como “Estado externo”, ou “Estado do
intelecto”. O que falta à sociedade civil para ser um Estado é a característica da organicidade
(Bobbio, 1983, p. 1.206).
13 Conferir Hobbes, T. Leviathan, cap. XIII (apud Bobbio, 1983, p. 1.207).
14 Conferir Locke, J. Segundo tratado. Parágrafo 102 (apud Bobbio, 1983, p. 1.207).
TEORIA POLÍTICA
154
A sociedade civil de Hegel é mais extensa e abrange tam-
bém a regulamentação externa (estatal) dessas relações, sendo,
portanto, já uma forma preliminar e, por isso, insuficiente de Es-
tado. Para Locke, a sociedade civil é a sociedade política (Esta-
do), que não passa de uma associação de proprietários, bem dife-
rente da concepção hegeliana de Estado.
Em Marx é que se dá a passagem do significado de socieda-
de civil para sociedade burguesa. Destaca Marx: “A emancipação
política foi, ao mesmo tempo, a emancipação da sociedade bur-
guesa da política e da aparência de um conteúdo universal” (apud
Bobbio, 1983, p. 1.209). É necessário afirmar que o conceito “ci-
vil”, em alemão bürgerlich, significa “burguês”. Para Marx a so-
ciedade civil é o espaço onde têm lugar as relações econômicas,
ou seja, as relações que caracterizam a estrutura de cada socie-
dade, ou a “base real” sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política. Sintetizando, a sociedade civil, a partir de Marx,
passa a significar a sociedade pré-estatal.
Na visão de Gramsci, a sociedade civil e o Estado diferem
entre si. A sociedade civil, para este teórico, é o conjunto de or-
ganismos vulgarmente denominados privados, enquanto a socie-
dade política ou Estado é o conjunto de organismos que
correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante
exerce em toda a sociedade e ainda ao domínio direto ou de co-
mando que se expressa no Estado ou no governo jurídico. Para
Marx, a sociedade civil compreende a esfera de relações econô-
micas e, portanto, pertence à estrutura. Gramsci entende por so-
ciedade civil apenas um momento da superestrutura, particular-
mente o da hegemonia, que se distingue do momento do puro
domínio como momento da direção espiritual e cultural, que
acompanha e se integra de fato nas classes efetivamente domi-
nantes, e que deve acompanhar e se integrar nas classes que ten-
dem ao domínio, o momento da força pura (1983, p. 1210).
Superestrutura
Aqueles que detêm os meiosde produção (poder
dominante).
155
TEORIA POLÍTICA
Gramsci chama de sociedade civil o momento da elabora-
ção das ideologias e das técnicas de consenso, às quais deu par-
ticular relevo e modificou o significado marxista da expressão,
voltando parcialmente ao significado tradicional, segundo o qual
a sociedade civil, sendo sinônimo de Estado, pertence, segundo
Marx, não à estrutura, mas à superestrutura.
Hoje entende-se a sociedade civil como a esfera das rela-
ções entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se
desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam
as instituições estatais. Bobbio cita Max Weber para explicar a
sociedade civil nos nossos dias. Segundo este autor, a sociedade
civil é o espaço das relações do poder de fato e o Estado é o espaço
das relações do poder legítimo. Assim entendidos, sociedade civil e
Estado não são duas entidades sem relação entre si, pois entre
uma e outra existe um contínuo relacionamento (1983, p. 1.210).
A sociedade civil organizada garante a possibilidade do
surgimento e organização de inúmeras instituições e movimen-
tos sociais capazes de atuar, em suas respectivas atividades, na
transformação das realidades sociais em que se encontram. De
fato, a sociedade civil é, por definição, o espaço das lutas sociais.
Seção 9.5
O direito à resistência: a tese de Hume
Diante da imposição de uma cultura dominante e dos pos-
síveis descasos e desmandos do Estado, é possível haver alguma
manifestação de resistência e direito de rebelar-se? São legítimas
tais posições?
David Hume
Disponível em: <http://www.centrofilosofia.org/images/david_hume.gif>.Acesso em: dez 2007.
TEORIA POLÍTICA
156
David Hume (1711-1776), filósofo empirista escocês, em seu livro Ensaios Morais, Po-
líticos e Literários, trata sobre a questão, entre outras, da obediência passiva, isto é: como é
possível um pequeno grupo, instituído de poder, governar, de maneira irrestrita e muitas
vezes unilateral, a maioria?
Para Hume (1996), as origens do governo são normalmente obscuras e freqüentemente
legitimadas por meio do uso do controle da opinião e, na prática, da coação, mediante todo
tipo de atos de violência. Refutou, igualmente, o absolutismo (direito divino de governar da
monarquia) e, ao mesmo tempo, a teoria liberal de John Locke, que pregava a idéia de que a
sociedade funda-se num contrato primitivo. Na visão de Hume, tal teoria implicaria a “pos-
sibilidade de revogação de contrato”, isto é, a possibilidade e a aceitação incondicional do
direito de se rebelar.
A função essencial da justiça é a promoção da paz entre os homens e a busca pelo
interesse coletivo:
Dado que a obrigação de justiça se assenta inteiramente nos interesses da sociedade, os quais
exigem a mútua abstinência da propriedade, a fim de preservar a paz entre os homens, é evidente
que, se acaso a execução da justiça implicar conseqüências altamente perniciosas, essa virtude
deve ser suspensa e substituída pela utilidade pública, nessas emergências extraordinárias e
urgentes (p. 213).
Fica evidente que a obrigação da justiça é servir aos interesses da sociedade, mas, se
tal execução da justiça implicar conseqüências maléficas para a maioria do povo, ela deverá
ser imediatamente suspensa e substituída pela utilidade pública. Da mesma forma Hume
condena a subordinação irrestrita dos homens em relação à lei, pois esta só é válida quando
considerar o bem público, caso contrário, o homem tem o direito de se rebelar e resistir: “A
máxima que a justiça seja cumprida mesmo que o universo seja destruído é evidentemente
falsa e, sacrificando os fins aos meios, revela uma idéia absurda da subordinação dos deve-
res” (p. 213).
Para Hume, o governo obriga o homem a ser obediente e fiel aos seus ditames (mandos
e desmandos) desde que aquele esteja cumprindo a utilidade pública, isto é, cumprindo sua
função; caso contrário, lhe é permitido, em casos extraordinários, desobedecer e ser infiel:
157
TEORIA POLÍTICA
“... O senso comum nos ensina que, como o governo nos obriga à obediência apenas porque
esta é favorável à utilidade pública, esse dever terá sempre se submeter, nos casos extraordi-
nários em que a obediência acarretar de modo evidente a ruína pública, à obrigação primei-
ra e original” (p. 213).
Dessa forma, o filósofo admite e recomenda resistência em casos extraordinários. Quan-
do o povo não tem mais a quem recorrer e se esgotam todas as alternativas possíveis, pode-
se organizar a insurreição. Embora Hume alerte para que se conserve a fidelidade dos ho-
mens perante o governo, fica uma lacuna, para que em última instância, atos de revolta
ocorreram: “Nos casos desesperados em que o povo encontra-se em perigo iminente de so-
frer violência e tirania... Admitindo-se, portanto, a resistência em casos extraordinários, o
único problema que merece ser discutido entre bons pensadores é qual o grau de necessida-
de capaz de justificar a resistência, tornando-a legítima e recomendável” (p. 214). Assim, é
lícito prescindir das regras da justiça em caso de necessidade urgente.
É função de um governo, adverte Hume, preocupar-se com o andamento de sua admi-
nistração e deixar de lado a preocupação excessiva e os cuidados de quando se pode permi-
tir, ou não, a resistência. Hume condena os filósofos que trataram de maneira acentuada a
questão da resistência, e acredita que esses filósofos teriam maior êxito acaso se dedicassem
à difusão da doutrina geral do governo: “Devemos, além disso, considerar que sendo a obe-
diência um dever, em circunstâncias normais, é nela que, sobretudo se deve insistir; nada
poderia ser mais absurdo do que enumerar com excessiva preocupação e cuidados de todos
os casos em que se pode permitir a resistência” (p. 214).
Hume se pergunta: Por que alguns pensadores insistem no direito à resistência? Ele
mesmo tenta responder ao apresentar duas razões fundamentais para tal resistência: “A
primeira é que seus adversários levaram a doutrina da obediência a tais extremos, não só
nunca referindo as exceções em casos extraordinários (o que poderia ser discutível), mas
chegando até a negá-las expressamente, que se tornou necessário insistir nessas exceções,
em defesa do direito à verdade e de liberdade ofendidas”. A segunda razão “assenta na
natureza da constituição e da forma de governo da Inglaterra”. O pensador refere-se aqui
aos magistrados e príncipes ingleses que estão acima das leis, imunes a qualquer
questionamento e punição por qualquer injúria ou delito que possam cometer. Nestes casos
TEORIA POLÍTICA
158
de abusos, é legítima a prática da resistência: “(...) e assim, para este caso há a solução
excepcional da resistência, sempre que se chegue à situação extrema de só por esse meio se
poder defender a constituição” (p. 214).
Uma das questões que mais surpreendia e intrigava o pensador era sobre a facilidade
com que a minoria pode governar com o consentimento da maioria. Nada mais surpreen-
dente, diz Hume, “do que a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos,
assim como a implícita submissão com que os homens abdicam de seus próprios sentimen-
tos e paixões em favor dos seus governados” (p. 217). Como a maioria pode resignar-se?
Como podem concordar com mandos e desmandos da minoria? Só há um meio para tal
êxito, diz Hume, e esse meio é o controle da opinião: “Se investigarmos que, como a força
está sempre do lado dos governados, os governantes se apóiam unicamente na opinião. O
governo assenta, portanto, apenas na opinião; e essa máxima se aplica tanto aos governos
mais despóticos e militares como aos mais livres e populares” (p. 213).
Vimos que, na Modernidade, o tema da participação e da representatividade ocupou
um espaço substancial nas teorias de Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau. No período
contemporâneo, estes temas não perderam a relevância. Muito pelo contrário, são temas
atuais que, por um lado, são defendidos e, por outro, refutados por estudiosos da democra-
cia. Apresentar este debate é o que será feito na próxima unidade.
159
TEORIA POLÍTICA
Participação e Instituições:O Debate da Teoria Democrática Contemporânea
Seção 10.1
Participacionistas e institucionalistas
Um debate que tem pautado a discussão da Ciência Política nas últimas décadas diz
respeito a duas concepções sobre a democracia: a corrente institucionalista (também chama-
da de elitismo democrático) e a corrente participacionista. A primeira considera a necessida-
de de maior institucionalização das organizações políticas democráticas (partidos políticos,
eleições, poderes Legislativo, Executivo e Judiciário) como condição indispensável para a
conquista de tal estado.1 Para os institucionalistas, o problema central da construção da
ordem política democrática refere-se à criação de mecanismos que assegurem o processo de
institucionalização de políticas democráticas. Quanto maior for o grau de institucionalização
das instituições democráticas, maior será a possibilidade da existência de uma sociedade
desenvolvida política e democraticamente.
A segunda concepção defende um maior grau de participação da sociedade civil, dire-
tamente, na função de governo, como condição fundamental para a construção de um Es-
tado democrático, desenvolvido politicamente.
A vertente institucionalista (elitismo democrático) foi inaugurada por Weber e
Schumpeter (1961), que definem a democracia como um arranjo institucional para chegar a
decisões políticas e constituiu-se antes de tudo, numa competição entre elites. Os dois teóri-
Unidade 10Unidade 10Unidade 10Unidade 10
1 Sobre o debate entre as teorias participacionista e a institucionalista, conferir Limana (1992) e Rover e Seibel (1998). Entre os teóricosinstitucionalistas, Samuel Huntington é seu maior representante.
TEORIA POLÍTICA
160
cos advogam que a ampliação da democracia poderia ter como
conseqüência a ineficácia administrativa. A democracia seria,
antes de mais nada, um antídoto contra o avanço totalitário da
burocracia (Weber) ou uma proteção contra a tirania
(Schumpeter). Dahl e Lipset herdaram essa vertente, renomeada
por Held (1987, p. 176) de “democratas empíricos”. Eles aceitam
a visão de Schumpeter sobre a democracia como um processo de
seleção de lideranças, mas rejeitam a idéia da liderança exclusi-
va das elites, insistindo que a democracia ancora-se num com-
plexo processo de consensos sobre valores que estipulam os
parâmetros da vida política. Mais recentemente, e principalmen-
te em função da crise do Estado de Bem-Estar, surgem na esteira
da concepção elitista, aquilo que Held denomina de “Nova Di-
reita”, as concepções de Hayeck e Nozick, que representaram as
idéias liberais de Locke e John Stuart Mill. Contra esse projeto
elitista de direita (democracia legal), surgem teóricos contra mo-
delo da esquerda que desenvolvem a teorização da “democracia
participativa”, como Poulantzas, MacPherson e Pateman (apud
Rover; Seibel, 1998).2
Limana (1992), ao tratar da teoria participacionista, recorre
às idéias de Rousseau e Tocqueville desenvolvidas no Contrato
Social e na obra A democracia na América, respectivamente. A
origem da teoria participacionista pode ser encontrada em
Rousseau na defesa teórica da democracia direta em Contrato
Social e em Tocqueville, na abordagem que trata do associativismo
e da participação em A democracia. Como observa Limana: “para
os autores que se enquadram nesta teoria interpretativa, um Es-
tado democrático politicamente desenvolvido só é possível de ser
construído se houver participação direta, do conjunto dos cida-
dãos na gestão da coisa pública, onde o nível de desenvolvimen-
to político pode ser medido pelo grau de participação” (p. 4).
Estado de Bem-Estar
Estado que intervém naeconomia e garante ganhossociais (saúde, empregos,
educação, aposentadoria...)
2 Sobre as atuais concepções de democracia e os limites da participação de atores sociais, conferir Rover e Seibel (1998).
161
TEORIA POLÍTICA
Considerado um dos mais importantes teóricos contratualistas, assim como Hobbes e
Locke, Rousseau entende a participação dos indivíduos como essencial para a estruturação
do contrato social a fim de instituir o Estado democrático. Da mesma forma, para Rousseau,
existe uma condição natural dos homens, mas, diferentemente de Hobbes, é uma condição
de felicidade, de virtude e de liberdade, que é destruída e apagada pela civilização. Segundo
este pensador, é a civilização que perturba as relações humanas, que violenta a humanida-
de, pois os homens nascem livres e iguais (eis o princípio que vai se afirmar na revolução
burguesa), mas em todo lugar estão acorrentados. Assim, o único órgão soberano é a as-
sembléia e é nela que se expressa a soberania. A assembléia, representando o povo, pode
confiar a algumas pessoas determinadas tarefas administrativas, relativas à administração
do Estado, podendo revogá-las a qualquer momento. O povo, entretanto, nunca perde a
sua soberania, nunca a transfere para um organismo estatal separado. Rousseau defende
que “a soberania não pode ser representada”, ao mesmo tempo em que a entende como o
exercício da “vontade geral” (soma das vontades individuais). A vontade geral (aquilo que
há de comum em todas as vontades individuais) “jamais pode alienar-se, na medida em que
o soberano (um ser coletivo), só pode ser representado por si mesmo” (Rousseau, 1978, p.
43-44). Desse modo, Rousseau deixa clara sua preferência por um regime democrático que
tem na participação direta dos indivíduos sua virtude maior.
Encontramos, no capítulo XV do Livro II do Contrato Social, argumentos de desprezo
pelo regime representativo de governo. Rousseau argumenta que, “desde que o serviço pú-
blico deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir com sua
bolsa a servir com sua pessoa, o Estado já se encontra em ruína... À força de preguiça e de
dinheiro terá, por fim, soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la”
(Rousseau, apud Limana, 1992, p. 6). Sobre a representação dos deputados em relação ao
povo, alerta Rousseau que “os deputados não são, nem podem ser seus representantes; não
passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que o
povo diretamente não ratificar; em absoluto não é lei” (p. 6).
Rousseau tinha como modelo a democracia direta dos atenienses, mesmo vendo certas
limitações nesse modelo na medida em que a sociedade era dividida entre cidadão e escravo.
Talvez por essa razão o próprio autor reconheça o caráter utópico de sua teoria: “a democra-
cia que de fato não existe, nunca existiu e talvez nunca existirá; também essa condição
natural, a que devemos aspirar, não existe, nunca existiu e nunca vai existir”.
TEORIA POLÍTICA
162
Da mesma forma Alexis de Tocqueville, em A democracia
na América, discute algumas idéias que podem nos aproximar da
teoria participacionista, além de tratar de conceitos como igual-
dade de condições, liberdade e participação cívica, que funda-
mentam sua concepção sobre a democracia.
Seção 10.2
Participação na obra A Democracia na Américade Aléxis de Tocqueville
Vamos abordar nesta seção as principais idéias da obra A
democracia na América (1962), de Alexis de Tocqueville. Nesta
obra o autor tratou das condições sociais (organizações
sociopolíticas) como fundamento da construção da democracia
norte-americana.3
Com o objetivo de estudar o funcionamento do regime polí-
tico e analisar a vida sociopolítica dos norte-americanos,
Tocqueville chegou a Nova York, em 1831, com 25 anos de idade.
Como síntese dos seus estudos, surgiu a sua principal obra, A
democracia na América (La démocratie en Amerique), cujo pri-
meiro volume é impresso em 1835 e o segundo, em 1840. Munido
de instrumentos empíricos, Tocqueville procurou construir teori-
camente um “tipo ideal” de democracia.
Alexis de Tocqueville
Disponível em: <http://faculty.frostburg.edu/phil/forum/Tocquevillealt.gif>.
Acesso em: dezembrode 20007.
3 É importante destacar que a conexão entre os costumes de uma sociedade e suas práticas políticas, idéias expostas na obra clássica deTocqueville, já fora discutida suficientemente por outros teóricos como Putnam (2000), Galvão Quirino (2001), Limana (1992),Higgins (2005). Assim sendo, não há necessidade de aprofundar este tema neste momento.
163
TEORIA POLÍTICA
À primeira vista, o que mais impressionou a Tocqueville foi a igualdade das condições
entre os americanos: “a igualdade, e não a liberdade, constitui o verdadeiro sinal da demo-
cracia”.4 Ao mesmo tempo em que exalta a igualdade, Tocqueville se contrapõe à aristocra-
cia e ao individualismo, definindo-o como a “ferrugem das sociedades”, esvazia o cidadão
de toda substância, de civismo; estanca-lhe a fonte das virtudes públicas; dele torna a fazer
um súdito, se não um escravo, oscilando sem dignidade entre a servidão e a licença.
Na referida obra Tocqueville inicia descrevendo os hábitos e os costumes, assim como
a organização social e política dos americanos, para depois tratar da estrutura de domina-
ção, de suas instituições políticas e das relações do Estado com a sociedade civil.5 Tocqueville,
ao elaborar o conceito de democracia, apresenta-o como um processo universal, duradouro,
e todos os acontecimentos, como todos os homens, servem ao seu desenvolvimento. Já na
introdução de A democracia na América, Tocqueville (1962) atribui um caráter sagrado à
democracia ao afirmar que querer detê-la seria como lutar contra o próprio Deus, e só resta-
ria às nações acomodar-se ao Estado social que lhes impõe a Providência. Tocqueville cita a
América como exemplo e deseja ver a França tornar-se como os Estados Unidos: “Parece-me
fora de dúvida que, cedo ou tarde, chegaremos como os americanos, à igualdade quase
completa” (p. 19). O objetivo do autor foi estudar os hábitos e os costumes dos americanos
na intenção de abstrair os ensinamentos fundamentais daquela experiência democrática.
Tocqueville discordou, em outra passagem, das várias formas de socialismo da época,
assim como condenou o Estado intervencionista, para ele o único responsável pela direção
política da nação. Para ele, esse Estado interventor é um Estado despótico, no qual a liber-
dade dos cidadãos tende a desaparecer. Da mesma forma, Tocqueville acredita que a demo-
cracia e o socialismo não se vinculam senão por uma palavra, a igualdade, mas observa a
diferença: a democracia quer a igualdade na liberdade e o socialismo quer a igualdade na
sujeição e na servidão (p. 187).
4 Para Tocqueville, liberdade e igualdade significam o mesmo que democracia.
5 Conferir o artigo intitulado “Tocqueville: sobre a liberdade e a igualdade”, de Célia Galvão Quirino (2001), em que a autora comenta asprincipais idéias de A democracia na América (p. 149-188).
TEORIA POLÍTICA
164
No prefácio de sua obra, Tocqueville deixa claro que o objetivo central é tratar do
próximo advento, irresistível e universal, da democracia no mundo. O autor estudou a de-
mocracia norte-americana com o objetivo de compreender e tirar proveito dos exemplos bem-
sucedidos daquele país, principalmente os princípios sobre os quais repousam as constitui-
ções americanas de ordem e equilíbrio de poderes e de profundo e sincero respeito ao Direi-
to, que são indispensáveis a todas as repúblicas e que a todos devem ser comuns; e pode
afirmar-se desde logo que, onde estes não se encontrarem, cedo terá a república deixado de
existir (p. 10).
Tocqueville tratou, igualmente, da situação social dos anglo-americanos e da origem
da democracia, que nasceu junto com a Colônia e permanece até nossos dias. Argumenta,
igualmente, sobre o princípio da soberania do povo na América e as leis que estão subordi-
nadas à soberania do povo. O autor descreve que o poder emana do povo e observa que este
participa da composição das leis, pela escolha dos legisladores, e da sua aplicação mediante
a eleição dos agentes do poder Executivo; pode-se afirmar que ele mesmo governa, tão frágil
e restrita é a parte deixada à administração, tanto se ressente esta da sua origem popular e
obedece ao poder de que emana. “O povo reina sobre o mundo político americano como
Deus sobre o universo. É ele a causa e o fim de todas as coisas; tudo sai do seu seio, e tudo
se absorve nele”, conclui Tocqueville (p. 52).
Sobre o tema da soberania do povo, Tocqueville entende que é este que tem o controle
do governo em suas mãos: “é o povo que governa”, pois, “na América, o povo designa aque-
le que faz a lei e aquele que a executa; constitui ele mesmo o júri que pune as infrações à
lei” (p. 136). Percebe-se, no decorrer da obra, que a América é sempre tratada como o exem-
plo da democracia ideal.
Outro tema que Tocqueville considera importante é o da associação política. Observa
o autor que os Estados Unidos são o país do mundo de onde mais se tirou partido da asso-
ciação e onde se tem aplicado esse poderoso meio de ação à maior diversidade de objetos.
Essa tradição associativa dos norte-americanos vem de berço, “desde o seu nascimento,
aprende o habitante dos Estados Unidos que precisa apoiar-se sobre si mesmo para lutar
contra os males e os embaraços da vida” (p. 146). A associação visa a alcançar vários fins
com o objetivo de obter a segurança pública, comércio, indústria, moral e religião. Nada há
165
TEORIA POLÍTICA
que a vontade humana se desespere de atingir pela ação simples do poder coletivo dos indi-
víduos. A associação é causa de união e progresso: “A associação enfeixa os esforços dos
espíritos divergentes e os impele com vigor para uma única finalidade claramente indicada
por ela” (p. 147).
Esse interesse coletivo dos norte-americanos é enaltecido pelo autor francês:
Como se explica que, nos Estados Unidos, aonde os habitantes apenas ontem chegaram ao solo
que ocupam, aonde não levaram nem costumes nem lembranças, aonde se encontraram pela
primeira vez sem se conhecer, aonde, numa palavra, o instinto da pátria pode apenas existir,
como se explica que todos se mostrem interessados pelos negócios de sua comuna, de seu cantão,
e do Estado inteiro como se fossem deles próprios? (p. 183).
Assim, é o interesse coletivo que mais se sobressai entre os imigrantes:
Mal desembarcamos no solo americano, vemo-nos no meio de uma espécie de tumulto; de todas
as partes, eleva-se um confuso clamor; mil vozes chegam ao mesmo tempo aos nossos ouvidos,
cada qual a exprimir algumas necessidades sociais. Em nossa volta, tudo se movimenta: aqui é o
povo de um bairro que se reúne para saber se há de construir uma Igreja; ali, trabalha-se para
escolher um representante; mais além, os delegados de um cantão dirigem-se à cidade a toda
pressa, a fim de deliberar sobre certos melhoramentos locais; noutra parte, são os agricultores
de uma aldeia que abandonaram seus arais para discutir o plano de uma estrada ou de uma
escola. Reúnem-se cidadãos com a finalidade exclusiva de declarar que desaprovam a marcha do
governo, ao passo que outros se reúnem a fim de proclamar que os homens da administração são
os pais da pátria. E eis que outros ainda, considerando a embriaguez como a principal fonte dos
males do Estado, vêm comprometer-se solenemente a dar o exemplo da temperança (p. 187-188).
A idéia principal da obra A democracia na América resume-se na importância que
Tocqueville atribuiu à experiência prática dos americanos, aos seus hábitos, as suas opini-
ões, aos seus costumes, à manutenção das suas leis. Ou seja, os hábitos e os costumes dos
americanos são as bases da manutenção das leis: “A minha finalidade foi mostrar, pelo exem-
plo da América, que as leis, e, sobretudo os costumes, podiam permitir a um povo democrá-
tico permanecer livre” (p. 242).
Nos estudos de Tocqueville percebe-se também o orgulho dos anglo-americanos em
pertencer àquela nação, inclusive acreditam que são um povo “escolhido”, diferente dos
demais povos do mundo:
TEORIA POLÍTICA
166
Ao mesmo tempo que os anglo-americanos estão assim unidos por ideais comuns, estão separa-
dos de todos os demais povos por um sentimento, o orgulho. Há cinqüenta anos, não se pára de
repetir aos habitantes dos Estados Unidos que constituem o único povo religioso esclarecido e
livre [...] acreditam que se constituem uma espécie à parte do gênero humano (p. 287).
Sobre a democracia dos gregos, Tocqueville tem a seguinte concepção:
Em Atenas, todos os cidadãos tomavam parte dos negócios públicos; havia ali, porém, apenas
vinte mil cidadãos, em mais de trezentos e cinqüenta mil habitantes; todos os outros eram escra-
vos e desempenhavam a maior parte das funções que hoje em dia pertencem ao povo e mesmo às
classes médias. Atenas, com o seu sufrágio universal, não era, pois, afinal de contas, senão uma
república aristocrática, onde todos os nobres tinham direito igual ao governo (p. 360).
Todo o empenho pessoal e comunitário dos americanos está em manter a democracia
por meio de uma cada vez maior igualdade e liberdade; por isso, procuram se esforçar para
manter a coisa pública e a ajuda mútua: “Devo dizer que muitas vezes vi americanos faze-
rem grandes e verdadeiros sacrifícios à coisa pública, e observei cem vezes que, quando
necessário, quase nunca se furtam de prestar fiel apoio uns aos outros” (p. 391). O espírito
público dos americanos sobressaía aos olhos de Tocqueville, além do apoio mútuo. Mais à
frente, fica ainda mais explícito o caráter associativo da vida civil dos americanos:
Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, estão constante-
mente a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais tomam parte,
como ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito
pequenas. Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir hotéis, edifí-
cios, igrejas, distribuir livros, enviar missionários aos antípodas; assim também criam hospitais,
prisões, escolas (p. 391-392).
Foi esse espírito cívico que fez dos Estados Unidos uma democracia participativa.
Neste mesmo argumento Tocqueville descreve que a ação recíproca é fundamental
para a edificação do sentimento comunitário: “Os sentimentos e as idéias não se renovam, o
coração não cresce e o espírito não se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens
uns sobre os outros” (p. 393). Da mesma forma, “para que os homens permaneçam civiliza-
dos ou assim se tornem, é preciso que entre eles a arte de se associar se desenvolva e aperfei-
çoe na medida em que cresce a igualdade de condições” (p. 394).
167
TEORIA POLÍTICA
Esta Unidade trouxe ao seu conhecimento os debates atuais entre democracia
participativista e democracia institucionalista. É o grande debate dos pensadores da atuali-
dade sobre a melhor forma de democracia. Na seqüência trataremos da difícil construção da
cidadania no Brasil.
TEORIA POLÍTICA
168
169
TEORIA POLÍTICA
Unidade 11Unidade 11Unidade 11Unidade 11
A Difícil Construção da Cidadania no Brasil
Discorrer sobre a construção da cidadania no Brasil é tocar num ponto nevrálgico da
nossa História. Passados mais de 500 anos da chegada dos portugueses por estas paragens,
percebe-se que a consolidação da cidadania ainda é um desafio para todos os brasileiros.
Muito se tem discutido na academia e fora dela, o jargão da cidadania está na moda nas
instituições políticas e na opinião pública, mas, concretamente, é um conceito ainda a ser
construído.
Após a ditadura militar (1964-1985), pensava-se que, finalmente, os ares da democra-
cia e da cidadania iriam pairar no cenário político-social nacional. A democracia poliárquica,
no entanto, descrita pelo cientista político Robert Dahl (2001) (eleições livres, partidos po-
líticos consolidados, Congresso Nacional autônomo), não garantiu avanços significativos e
a democracia social (igualdade étnica, emprego, saúde, lazer, moradia...) ainda é utopia
para milhões de brasileiros. Prevalece apenas uma democracia eleitoral sobre a democracia
social (cidadã). Por essa razão, as instituições políticas e os políticos têm passado por um
alto grau de descrédito junto a opinião pública do país. Da mesma forma, a cidadania é
incipiente num país onde predominam a exclusão social e econômica, a desigualdade social
e a violência difusa.
Diante dessa situação, pergunta-se: Quais os principais obstáculos para a construção
da cidadania brasileira? A difícil construção da cidadania no Brasil está ligada exclusiva-
mente ao “peso do passado” (herança maldita), ou outras variáveis podem influenciar essa
realidade? A cidadania está meramente ligada à conquista de direitos sociais, civis e políti-
cos? Como se deram as conquistas desses direitos no Brasil, comparadas com outros países?
Procurar responder a algumas dessas questões é o objetivo maior desta Unidade. Para tanto,
recorremos à fundamentação teórica de autores das Ciências Sociais, reconhecidos estudio-
sos do tema.
TEORIA POLÍTICA
170
A origem do conceito “cidadania” no contexto histórico-cultural e político provém dos
gregos, especificamente por volta do ano 380 a.C. (período do apogeu daquela civilização).
Embora a cidadania fosse limitada a uma parcela social minoritária, pode-se afirmar que
tanto a democracia quanto a cidadania gregas, não deixam de ser conquistas inéditas e
avanços significativos para a História ocidental.1 No entanto, a evolução e a real consolida-
ção da cidadania dá-se na Modernidade.2 Junto com a cidadania moderna nascem os direi-
tos naturais (vida, propriedade, liberdade) do homem liberal burguês, garantidos pelas con-
secutivas “Declarações de Direitos” elaboradas a partir das revoluções liberais na Inglaterra
(Revolução Gloriosa, 1688-89), Estados Unidos (emancipação política, 1776) e França (Re-
volução Francesa, 1789).3
Este texto está dividido em quatro seções. A primeira trata da ausência de direitos e de
poder público no Brasil colonial. A conquista lusitana, o latifúndio, a monocultura de ex-
portação, o analfabetismo e a escravidão são “pesos negativos do passado” que ainda deter-
minam a vida social, econômica e política do Brasil. A segunda seção apresenta os dois
fatos históricos mais relevantes do Brasil do século 19, a Independência e a República, des-
tacando-se a quase nula participação de grande parte do povo neste processo. A terceira
seção discute os vícios institucionais e culturais da política brasileira. Males como o
patrimonialismo, coronelismo, populismo, serão discutidos a partir de alguns clássicos das
Ciências Sociais do Brasil. Por fim, descreve-se que, diferentemente de outros países, os
direitos sociais emergem no Brasil em regimes políticos ditatoriais, que excluem
inexoravelmente os direitos políticos e civis.4
1 O objetivo desta Unidade, porém, não é tratar deste ponto, posto que o mesmo tem sido suficientemente analisado por renomadosteóricos como Minogue (1998), Coulanges (s/d), Aquino et al (1998), Barker (1978), Kitto (1970), entre outros.
2 Sobre a evolução do conceito cidadania na modernidade conferir o trabalho de Domingues (2001).
3 Da mesma forma, não nos convém tratar aqui deste assunto. Pode-se aprofundar este tópico com os seguintes autores: Saes (2000),Moisés (2005) e Marshall (1967).
4 Para esta seção foram utilizados argumentos dos seguintes autores: Vianna (1955, 1956), Holanda (2000) Faoro (2001), Leal (1975),Prado Júnior (1994) e, principalmente, Carvalho (1996, 1997, 2000a, 2000b, 2002).
171
TEORIA POLÍTICA
Seção 11.1
Brasil colonial: ausência de direitos e de poder público
Inicialmente é preciso referir que, no Brasil, a construção da cidadania não seguiu a
lógica da trajetória inglesa. Houve no Brasil, segundo José Murilo de Carvalho (2002), pelo
menos duas diferenças importantes: a primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos,
o social, em relação aos outros; a segunda refere-se à alteração na seqüência em que os
direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros (p. 12).
Uma das razões fundamentais das dificuldades da construção da cidadania está liga-
da, como explicita Carvalho, ao “peso do passado”, mais especificamente ao período coloni-
al (1500-1822), quando “os portugueses tinham construído um enorme país dotado de uni-
dade territorial, lingüística, cultural e religiosa. Mas tinham deixado uma população anal-
fabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado
Absolutista” (p. 18). Em suma, foram 322 anos sem poder público, sem Estado, sem nação e
sem cidadania.
11.1.1 A “CONQUISTA” DA TERRA BRASILIS
Já no princípio da História do Brasil as contradições apareceram. Primeiro, pode-se
dizer que o Brasil não foi “descoberto”, conforme comumente é mencionado, mas, sim, “con-
quistado” pelos europeus (portugueses). O encontro dessas duas culturas (a européia versus
a dos povos nativos das Américas) foi o confronto trágico de duas forças em que uma pere-
ceu necessariamente, um encontro pouco amigável entre duas civilizações: uma considera-
da “desenvolvida”, por conhecer certas tecnologias (a irrigação, o ferro e o cavalo) versus a
nativa (“desconhecida” e, por isso mesmo, considerada “bárbara”). Os nativos viviam em
contato com a natureza, com uma religião diferente do cristianismo europeu. Suas crenças
eram mescladas com os elementos da natureza: a Lua, o Sol, as estrelas. Até mesmo a pala-
vra “índio” foi o nome dado pelos europeus ao se confrontarem com o “outro” e quem deu o
nome, no caso, acabou se apossando, ficando dono.5
5 Sobre o encobrimento do outro, conferir Dussel (1993).
TEORIA POLÍTICA
172
Bem antes de o europeu chegar a estas terras, o índio tinha suas normas morais e seus
ritos religiosos. Ele respeitava a si próprio e aos outros, à mãe-terra, às águas e à natureza
como um todo. Os espanhóis e, mais tarde, os portugueses, chegaram, impuseram sua força
e conquistaram com a violência (armas) e a ideologia (religião): em uma das mãos, a cruz do
Cristo europeu, simbolizando o poder da Igreja; na outra, a espada para a conquista. O
resultado foi o extermínio, pela guerra, escravidão e doenças (sífilis, varíola, gripe), de mi-
lhões de índios.6 Grande parte da população indígena foi dizimada rapidamente pelo ho-
mem “civilizado”. Calcula-se que havia no Brasil, na época da “descoberta”, cerca de 4
milhões de índios. Em 1823 restavam menos de 1 milhão (Carvalho, 2002, p. 20). A demografia
indígena, porém, depois de ter sido reduzida drasticamente, tem crescido de forma significa-
tiva nos últimos anos. Segundo o censo de 2000, realizado pelo IBGE, 734 mil pessoas
(0,4% dos brasileiros) se auto-identificaram como indígenas, um crescimento absoluto de
440 mil indivíduos em relação ao censo de 1991, quando apenas 294 mil pessoas (0,2% dos
brasileiros) se diziam indígenas.7
Outra característica do período colonial está ligada à conotação comercial. O Brasil
serviu à produção de monocultura para resolver o problema da demanda européia, forne-
cendo a cana-de-açúcar. Isto exigia largas extensões de terras e mão-de-obra escrava dos
negros africanos. Foi assim que no Brasil se configurou o latifúndio monocultor e exporta-
dor de base escravista. Outros ciclos de exploração se sucederam no Brasil, como o da mine-
ração (século 18), do gado, da borracha, do café..., servindo assim, por muito tempo, apenas
como fornecedor de matérias-primas à metrópole (Portugal).8
11.1.2. A ESCRAVIDÃO
No período colonial, a cidadania foi negada à quase totalidade da população; os mais
afetados, contudo, foram os escravos negros provenientes do continente africano. Para Car-
valho (2002), “o fator mais negativo para a cidadania foi a escravidão” (p. 19). Foi por volta
6 Callage Neto (2002, p.29) argumenta que as sociedades Ibéricas (Espanha e Portugal) foram marcadas pelo “hibridismo do absolutismoautoritário contra-reformista católico, o despotismo corporativo muçulmano dos séculos que o precederam na Península Ibérica e umincipiente liberalismo que se gerava com a presença judaica nos marcos da Revolução Mercantil”.
7 Para maiores informações sobre a situação do indígena na sociedade brasileira atual, consultar relatório do IBGE intitulado: Uma análisedos indígenas com base nos resultados da mostra dos censos demográficos. Este estudo está disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tendencia_demografica/indigenas/indigenas.pdf. Acesso em junho de 2005.
8 Para esclarecer este tema, é fundamental a leitura de Raymundo Faoro (2001), principalmente o capítulo IV “O Brasil até o governoGeral”.
173
TEORIA POLÍTICA
de 1550 que os escravos começaram a ser importados. Essa prática continuou até 1850, 28
anos após a Independência. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia
cerca de 3 milhões de escravos. Na época da Independência, numa população de cerca de 5
milhões, incluindo 800 mil índios, havia mais de 1 milhão de escravos (idem, p. 19). É impor-
tante destacar que em todas as classes sociais desse período havia escravos.9
Depois de mais de 300 anos o Brasil aboliu a escravidão, mais por pressão externa do
que por um amadurecimento da consciência social da população. Neste sentido, a extinção
da escravatura no Brasil, no dia 13 de maio de 1888, foi um grande engodo, uma farsa. O
Brasil foi o último país de tradição cristã ocidental a abolir a escravidão. A Inglaterra, essen-
cialmente por interesses comerciais, exigiu, em 1850, o término do comércio negreiro, insti-
tuído com a Lei Eusébio de Queiroz, que se constituiu num passo importante para a aboli-
ção – que só viria a acontecer 38 anos depois.
Por essas razões, a data mais significativa para celebrar a história do povo negro, sua
cultura, seu anseio por liberdade e sua verdadeira participação na sociedade, é dia 20 de
novembro, data da morte de Zumbi, martirizado em 1695 sob as forças expedicionárias do
bandeirante Domingos Jorge Velho. Zumbi, que significa a força do espírito presente, foi o
principal líder da resistência da comunidade de Palmares. Esse quilombo foi a mais impor-
tante organização de resistência do povo negro no país, sendo, dentre vários, aquele que
ocupou a maior extensão de terra e teve o maior tempo de existência (1600-1695). Por volta
de 1654 o quilombo dos Palmares (região acidentada e de difícil acesso no interior de Alagoas),
era composto por muitas aldeias, nas quais os negros viviam em liberdade. Eis o nome de
algumas comunidades: Macaco, na Serra da Barriga, com 8 mil habitantes; Amaro, no no-
roeste de Serinhaém, com 5 mil habitantes; Sucupira, a 80 km de Macaco; Zumbi, a noroes-
te de Porto Calvo, e o Senga, a 20 km de Macaco. A população total de Palmares, na época,
atingiu mais de 20 mil habitantes, o que representava 15% da população do Brasil.
Pela utilização da mão-de-obra escrava nas colônias foi possível a formação e o de-
senvolvimento dos Estados Nacionais na Europa e a construção das cidades. Além disso,
realizou-se a Revolução Industrial na Inglaterra, devido à importação de negros africanos,
9 Sobre o tema da questão racial no Brasil, conferir o trabalho de Fernandes (1972).
TEORIA POLÍTICA
174
que eram mestres ferreiros, marceneiros e carpinteiros, o que propiciou o acúmulo de rique-
za, geradora do capitalismo. O sistema capitalista soube tirar proveito dessa situação, na
conquista, na pirataria, no saque e na exploração. Huberman (1986, p. 160) descreve que a
acumulação de riquezas deveu-se “ao trabalho e ao sofrimento do negro, como se suas mãos
tivessem construído as docas e fabricado as máquinas a vapor”.10
O escravo africano, além de sofrer a dominação econômica e religiosa, foi excluído,
igualmente, do pensamento filosófico europeu. Foi considerado povo a-histórico, irracional,
bárbaro, fechado em si mesmo, não tendo condições de ascender ao “espírito universal”.
Hegel, no início do século 19, escreveu a obra Filosofia da história universal, na qual se
percebe a ideologia racista, superficial e eurocêntrica do filósofo alemão em relação à Áfri-
ca. Páginas preconceituosas, que maculam a história da Filosofia mundial.
A situação do negro, hoje, continua sendo de marginalização e exclusão. Por isso, há
a necessidade de medidas não apenas afirmativas, mas, também, transformativas na eman-
cipação da etnia negra no país.11 Há muito a fazer para que a verdadeira abolição da escra-
vidão aconteça, principalmente na questão da educação, acesso ao trabalho e à renda.
Dados comprovam que o analfabetismo ainda é maior entre os negros: segundo dados do
IBGE, em 1999 a taxa de analfabetismo das pessoas com 15 anos de idade ou mais era de
8,3% para brancos e de 21% para pretos e a média de anos de estudo das pessoas com 10
anos de idade ou mais é de quase 6 anos para os brancos e cerca de 3 anos e meio para os
negros.
Na questão do acesso ao trabalho as diferenças também são expressivas: 6% de bran-
cos com 10 anos de idade ou mais aparecem nas estatísticas da categoria de trabalhador
doméstico, enquanto os pardos chegam a 8,4% e os pretos a 14,6%. Por outro lado, na cate-
goria empregadores encontram-se 5,7% dos brancos, 2,1% dos pardos e apenas 1,1% dos
10 Segundo o sociólogo Florestan Fernandes (1978, p.9), os negros e os mulatos foram os que tiveram “o pior ponto de partida” natransição da ordem escravocrata à competitiva. Isso significa afirmar que as condições estruturais dos negros e mulatos foraminferiores em relação aos brancos, causando marginalidades e desigualdades na sociedade brasileira.
11 Nancy Fraser (2001) analisa as estratégias, chamadas, por ela, de afirmação ou de transformação. Para vencer os dilemas entreredistribuição e reconhecimento, podem-se adotar medidas afirmativas ou transformativas. As medidas afirmativas têm por objetivoa correção de resultados indesejados sem mexer na estrutura que os forma. Já os remédios transformativos têm por fim a correção dosresultados indesejados mediante a reestruturação da estrutura que os produz (Matos, 2004).
175
TEORIA POLÍTICA
pretos. Quanto ao rendimento mensal familiar per capita e à distribuição das famílias por
classes, os dados indicam que 20% das famílias cujo chefe é de cor branca tinham rendimen-
to de até 1 salário mínimo contra 28,6% dos chefes das famílias pretas e 27,7% das pardas
(IBGE, 2000). Segundo ainda dados do IBGE, em 1999 a população branca que trabalhava
tinha rendimento médio de cinco salários mínimos. Pretos e pardos alcançavam menos que
a metade disso: dois salários. Essas informações confirmam a existência e a manutenção de
uma significativa desigualdade de renda entre brancos, pretos e pardos na sociedade brasi-
leira.12
11.1.3. O ANALFABETISMO
Outra marca registrada do período colonial foi o analfabetismo. A maioria da popula-
ção, segundo Carvalho (2002) era analfabeta: em 1872, meio século após a Independência,
somente 16% da população era alfabetizada.
Apenas a elite brasileira da época era portadora do conhecimento, enquanto o analfa-
betismo predominava nas classes mais pobres: “quase toda a elite possuía estudos superio-
res, o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num mar de
analfabetos” (Carvalho, 2000b, p. 55). Entre os letrados, principalmente, era comum a for-
mação jurídica feita em Portugal: primeiro em Coimbra e, depois, em Lisboa. Além disso,
Portugal proibiu o Brasil de abrir universidades em seu território; em contrapartida, a Espanha
permitiu, desde o início, a criação de universidades em suas colônias (p. 16).
Tal contraste pode ser percebido, entre Espanha e Portugal, no que se refere ao núme-
ro de matrículas: “Calculou-se que até o final do período colonial umas 150.000 pessoas
tinham-se formado nas universidades da América Espanhola. Só a Universidade do México
formou 39.367 estudantes até a independência. Em vivo contraste, apenas 1.242 estudan-
tes brasileiros matricularam-se em Coimbra entre 1772 e 1872”, quadro esse que será rever-
tido apenas após a chegada da família real ao Brasil, em 1808 (p. 62). No final do século 18
12 Além desses dados, pode-se encontrar outras estatísticas sobre desigualdades raciais na publicação Síntese de Indicadores – 2000,editada também pelo IBGE.
TEORIA POLÍTICA
176
somente 16,85% da população brasileira entre 6 e 15 anos freqüentava a escola (p. 70). É
perceptível, de imediato, a formação de bacharéis em Direito desde o início de nossa Histó-
ria. Somente em 1879 houve uma reforma que o dividiu em Ciências Jurídicas e Ciências
Sociais: “A reforma de 1879 dividiu o curso em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais, as
primeiras para formar magistrados e advogados, as segundas diplomatas, administradores e
políticos” (p. 76).
É importante mencionar ainda que somente os advogados e médicos recebiam o título
de doutores, “que podia referir-se tanto a médicos como a doutores em Direito” (p. 90). Os
cargos políticos ocupados na esfera estatal pertenciam à elite, principalmente aos proprietá-
rios rurais. Essa mesma elite circulava pelo país e por postos no Judiciário, Legislativo e
Executivo, buscando assegurar vantagens pessoais. Como conclui Carvalho (2002, p. 129),
a burocracia foi a vocação da elite imperial brasileira.
Seção 11.2
A Independência e a República no Brasil: participação incipiente
Inicialmente cabe destacar que os dois fatos históricos de maior relevância do Brasil
no século 19, a Independência e a República, respectivamente, ocorreram sem a real parti-
cipação da maioria da população. Ao contrário, a elite portuguesa, aliada à elite nacional,
tomou as decisões políticas necessárias para a manutenção dos seus próprios interesses. O
objetivo desta seção é demonstrar tais acontecimentos.
11.2.1. UM ESTADO SEM NAÇÃO
Acredita-se que a construção da cidadania esteja ligada essencialmente à instauração
de uma nação e de um Estado. Isto é, tem a ver com a formação de uma identidade entre as
pessoas (tradição, religião, língua, costumes), com a construção de uma nacionalidade ou,
sob o aspecto jurídico, na formação de um Estado. Assim, o sentimento de pertencer a uma
nação é um indicativo importante para tal construção. Sentir-se parte de uma nação e de
177
TEORIA POLÍTICA
um Estado é condição fundamental para o surgimento da cidadania: “Isto quer dizer que a
construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação.
As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de
um Estado” (Carvalho, 2002, p. 12).
No Brasil, como veremos, o Estado precedeu a formação da nação. A formação do
Estado deu-se exclusivamente pela vontade da elite portuguesa, que aceitou e negociou
com a Inglaterra e com a elite brasileira a “independência” do país: “Graças à intermediação
da Inglaterra, Portugal aceitou a independência do Brasil mediante o pagamento de uma
indenização de 2 milhões de libras esterlinas” (p. 27).
A relação de dependência da Colônia com Portugal não permitiu formar uma identida-
de própria, nem edificar uma nação propriamente dita. A primeira manifestação de nossa
nacionalidade ocorreu, segundo Carvalho (2000b), apenas em 1865, na Guerra do Paraguai.
A luta contra o inimigo externo, a formação de uma liderança política (chefe inspirador), o
culto ao símbolo nacional (a bandeira) e a união dos voluntários de todo o Brasil possibili-
taram o advento de um sentimento comum: o orgulho e a criação da primeira idéia de iden-
tidade nacional: “não vejo consciência nacional no Brasil antes da Guerra do Paraguai” (p.
11). Os principais fatos políticos do Brasil ocorreram para atender a interesses individuais,
ou de pequenos grupos hegemônicos. Assim foi na Independência, como explicita Costa
(1981): “as coisas vão simplesmente acontecendo: no jogo das circunstâncias e das vonta-
des individuais, no entrechoque de interesses pessoais, de paixões mesquinhas e de sonhos
de liberdade, faz-se a independência do país” (p. 65). É importante ressaltar que a notícia
da emancipação política do Brasil só chegou a lugares mais distantes após três meses do
fato ocorrido.
O poder político concentrou-se nas mãos dos proprietários. A vinda da família real para
o Brasil, em 1808, não passou de uma manobra (abertura dos portos) para beneficiar os ingle-
ses e franceses. Alguns anos mais tarde as condições mostravam-se favoráveis para a indepen-
dência do Brasil, o que veio a ocorrer em 7 de setembro de 1822, porém à revelia do povo.13
13 Caio Prado Júnior procurou entender o país sob o enfoque da interpretação marxista, com o materialismo histórico tendo servido defundamento teórico para explicar o Brasil. Já Sérgio Buarque de Holanda faz sua análise em Raízes do Brasil, partindo da Economiae da sociedade, de Max Weber. Celso Furtado, Nestor Duarte e Raymundo Faoro herdam a vertente do patrimonialismo de Weber. ParaFaoro, a formação do Estado português está na origem do Brasil, que é, essencialmente, estadocêntrico, centralizado no poder daautoridade, pois é dela a distribuição do mesmo.
TEORIA POLÍTICA
178
Em sua obra A construção da ordem (1996), José Murilo de Carvalho trata, igualmen-
te, entre outras questões, do processo de colonização, do Brasil Imperial e da elite política.
O autor apresenta, logo na introdução, a diferença entre a evolução das colônias espanhola
e portuguesa na América. Para ele, a diferença básica é que os territórios espanhóis frag-
mentaram-se politicamente, tornando-se Estados independentes, ao passo que os portu-
gueses concentraram-se. Enquanto os espanhóis passaram por períodos anárquicos (insta-
bilidade e rebeliões), os portugueses não recorreram a essas formas violentas. O domínio
político português sobre a Colônia foi intenso, sendo que os capitães-gerais eram nomeados
diretamente pela Coroa e a ela respondiam (p. 12).
Deste modo, o Brasil herdou, na construção de seu Estado, a burocratização do Esta-
do moderno, conforme fora descrito por Max Weber: “A ordem legal, a burocracia, a jurisdi-
ção compulsória sobre um território e a monopolização do uso legítimo da força são carac-
terísticas essenciais do Estado moderno”. O Estado moderno utilizou quatro mecanismos: a
burocratização, o monopólio da força, a criação de legitimidade e a homogeneização da
população dos súditos (Weber apud Carvalho, 2000b, p. 23).
No período imperial existiam dois partidos políticos com ideologias semelhantes: o
Conservador e o Liberal. O primeiro defendia os interesses da burguesia reacionária prove-
niente dessa mesma classe, dos donos das terras e senhores de escravos (domínio agrário),
enquanto o segundo defendia os interesses da burguesia progressista, representada pelos
comerciantes (domínio urbano) (p. 182). Afirma Carvalho que, até 1837, não se pode falar
em partido político no Brasil, existindo apenas a maçonaria.
No período colonial, assim como na República Velha (1890-1930), a grande maioria
da população ficou excluída dos direitos civis e políticos, com um reduzido sentimento de
nacionalidade. Isso não significa que não houve resistência por parte de alguns grupos
oposicionistas (abolicionistas, separatistas, monarquistas, anti-republicanos, luta pela ter-
ra...). Eram muitas as formas de luta, no entanto todos os movimentos foram duramente
reprimidos e aniquilados pelo poder central: a Balaiada no Maranhão e a Cabanagem no
Pará (a mais violenta, que vitimou 30 mil pessoas), a Farroupilha no Rio Grande do Sul,
além de Canudos na Bahia, o Contestado em Santa Catarina e a Revolta da Vacina no Rio
de Janeiro, são alguns exemplos de revoltas localizadas.
179
TEORIA POLÍTICA
11.2.2. UMA REPÚBLICA SEM POVO
Assim como a emancipação política (Independência), a Proclamação da República
brasileira apresentou características sui generis ao ser instituída, haja vista o seu caráter
golpista e elitista. O povo, por sua vez, não só não participou como foi pego de surpresa com
a proclamação do novo regime. A frase de Aristides Lobo é bastante elucidativa: “O povo
assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acre-
ditavam sinceramente estar vendo uma parada militar” (Lobo, apud Carone, 1969, p. 289).
Sobre o caráter golpista da Proclamação da República, assim também se expressou Murilo
de Carvalho (2002): “Além disso, o ato da Proclamação em si foi feito de surpresa e coman-
dado pelos militares que tinham entrado em contato com os conspiradores civis poucos dias
antes da data marcada para o início do movimento” (p. 80)
O processo eleitoral (participação política) entre os eleitores durante os períodos im-
perial e republicano foi insignificante. De 1822 até 1881 votavam apenas 13% da população
livre. Em 1881, privou-se o analfabeto de votar. De 1881 até 1930 – fim da Primeira Repúbli-
ca –, os votantes não passavam de 5,6% da população. Foram 50 anos de governo, imperial
e republicano, sem povo.14
Assim, até o final da República Velha (1930), a participação política popular foi restri-
ta. Não havia propriamente um povo politicamente organizado, nem mesmo um sentimento
nacional consolidado. Os grandes acontecimentos na arena política eram protagonizados
pela elite, cabendo ao povo o papel de mero espectador, assistindo a tudo sem entender
muito bem o que se passava.15
14 Quanto à participação política dos brasileiros no processo eleitoral, tem-se os seguintes dados: em 1950 – 16%; 1960 – 18%; 1970 –24%; 1986 – 47%; 1989 – 49%; 1998 – 51% (Carvalho, 2000b, p. 17).
15 Nos anos de 1920 a 1930, boa parte da intelectualidade, como Alberto Torres, Francisco Campos, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral,defendia o fortalecimento do Estado para fazer as mudanças sociais necessárias. Para Alberto Torres, “a sociedade brasileira eradesarticulada, não tinha centro de referência, não tinha propósito comum. Cabia ao Estado organizá-la e fornecer-lhe esse propósito”(apud Carvalho, 2002, p. 93).
TEORIA POLÍTICA
180
Seção 11.3
Os vícios das instituições e da cultura política brasileira
Outro aspecto da vida política brasileira que marcou não apenas o período colonial e
republicano, mas, de certa forma, nossa história política atual, está ligado aos “males” ou
“vícios”, como o patrimonialismo, o coronelismo, o clientelismo, o populismo e o personalismo
das nossas instituições e lideranças políticas.16 Por exemplo, segundo DaMatta (2000), o
populismo está vivo, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. As lideranças
políticas carregam consigo, além do personalismo, uma boa dose do elemento messiânico,17
que tem suas longínquas raízes históricas no sebastianismo português. Vive-se ainda na
esperança de que algum “herói sagrado”, ou um “salvador da pátria”, desça do Olimpo e
resolva os problemas da população. Como bem afirma Renato Janine Ribeiro (2000, p. 66),
as pessoas carregam a “expectativa messiânica no surgimento de algum pai da pátria que
as livrará do desamparo”. É preciso parar de esperar por um milagre sobrenatural: “a ques-
tão brasileira é a necessidade da laicização” (p. 80). DaMatta, igualmente, trata da espe-
rança messiânica da sociedade brasileira ao afirmar que “espera-se um salvador da pátria”
(p. 104).18
Depende-se sempre de um líder: “Já que somos incapazes de construir nossa grande-
za, quem sabe se um novo Dom Sebastião não o pode fazer por nós” (Carvalho, 2000b, p.
24). Este autor insiste na herança lusitana, que encontrou terreno fértil por estas paragens
16 O tema do clientelismo e do personalismo também é discutido pelo antropólogo Roberto DaMatta (2000, p. 94): “O Brasil, até hoje,combina clientelismo com liberalismo e personalismo com lealdade ideológica”. Investigação de opinião realizada nos últimos 20 anosna América Latina tem mostrado que mais de 60% dos eleitores, na hora de escolher seu candidato, levam em consideração muito maisa pessoa do candidato e não o partido ao qual pertence (apud Baquero, 2004, p. 156).
17 Entende-se por messianismo a esperança da salvação coletiva posta nas mãos dos indivíduos vistos como dotados de dons especiais.
18 Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (2000), tratou, igualmente, das origens da sociedade e da cultura política brasileira,vendo nelas a continuidade da herança das nações ibéricas (Espanha e Portugal), que priorizavam uma cultura personalista (responsabilidadeindividual) na qual imperavam os vínculos pessoais nas relações sociais e políticas, deixando os interesses coletivos em segundo plano.Buarque de Holanda tratou, ainda, da repulsa ao trabalho, em que o ócio é mais importante do que o negócio. E da promiscuidade entreo público e o privado na vida política do país.
181
TEORIA POLÍTICA
para crescer e proliferar: o exemplo mais evidente foi, e continua sendo, a promiscuidade
entre o público e o privado; assim, corrupção, clientelismo e patrimonialismo parecem se
perpetuar na terra brasilis.19
A análise de Caio Prado Júnior evidencia, da mesma forma, alguns vícios da política
brasileira, como o clientelismo e a dependência da metrópole.20
No período colonial, cerca de 60% da população ainda vivia no litoral, mas, aos pou-
cos, houve uma migração para o interior (ciclo da mineração); esta, porém, com a decadên-
cia desse modelo econômico, volta-se para o litoral novamente. A economia, no período
colonial, era baseada na monocultura junto com o trabalho escravo. A Colônia devia forne-
cer matéria-prima à metrópole, deixando a maioria da população brasileira com os parcos
excedentes. Quanto à organização social do Brasil, era constituída de escravos (totalmente
excluídos) e mulatos (com possibilidade de ascender socialmente por intermédio da Igreja).
Caio Prado Júnior buscou explicitar, igualmente, a base material do Brasil, evidenciando os
pecados capitais do país: latifúndio, monocultura, afã fiscal da metrópole, trabalho braçal/
desqualificação e escravidão.
Na Evolução política do Brasil (1993), Prado Júnior tratou da Colônia e do processo de
ocupação da terra pelas capitanias, para ele “um ensaio de feudalismo que não deu certo”.
No Império estimulou-se a agricultura e a pecuária, mas acabou prevalecendo o clientelismo
político com a doação de sesmarias. O clientelismo não foi uma prática recorrente apenas
do Brasil Colonial. Encontramos tal vício em diferentes momentos do cenário político, evi-
denciado, inclusive, nas últimas eleições gerais (2006). Esse fenômeno é mais amplo e atra-
vessa toda a história política do país. É um tipo de relação que envolve a concessão de
19 “O Estado português delegou poderes da metrópole, preferiram manter a vinculação patrimonial a rebelar-se [...]. O patrimonialismotambém não sofreu contestação no momento da independência, graças à natureza do processo de transição” (Carvalho, in: Cordeiro;Couto, 2000, p. 24). Da mesma forma, para Raymundo Faoro (2001), o patrimonialismo é um dos principais eixos da cultura políticabrasileira. Com a instituição do capitalismo, surgiu um Estado de natureza patrimonial, cuja estrutura estamental gerou uma elitedissociada da nação: o patronato político brasileiro, que atua levando em conta os interesses particulares do estamento burocrático oudos “donos do poder”. O sistema patrimonial coloca os empregados em uma rede patriarcal na qual eles representam a extensão da casado soberano. Para Faoro, essa estrutura política e social tem permanecido na política brasileira desde o Estado Novo (Baquero, 2006).Sobre o clientelismo, conferir o trabalho de Andrade (2005).
20 Caio Prado Júnior (1907-1990), em sua obra Formação do Brasil contemporâneo (1994), discorreu acerca do povoamento do Brasil,do Tratado de Tordesilhas e do Tratado de Madri. No Norte, segundo o autor, prevaleceu a cultura do cacau e da Companhia de Jesus;em São Paulo, o bandeirantismo. Refletiu ainda sobre a aliança entre Espanha e Portugal.
TEORIA POLÍTICA
182
benefícios públicos entre atores políticos. O clientelismo aumentou com o fim do coronelismo,
quando a relação passa a ser diretamente entre políticos e setores da população, sem a
intermediação do coronel, que perdeu sua capacidade de controlar os votos da população.
Na vigência do coronelismo o controle do cargo público era visto como importante instru-
mento de dominação e não como simples empreguismo. O emprego público irá adquirir
importância como fonte de renda nas relações clientelistas (Carvalho, 1997).
A questão do coronelismo, outra característica da política brasileira, foi tratada por
Victor Nunes Leal na obra Coronelismo, enxada e voto, publicada originalmente em 1948.
Na concepção de Leal, o coronelismo é visto como um sistema político, uma complexa rede
de relações que vai desde o coronel até o presidente da República, envolvendo compromis-
sos recíprocos. Leal se expressa da seguinte forma: “o que procurei examinar foi, sobretudo,
o sistema. O coronel entrou na análise por ser parte do sistema, mas o que mais me preocu-
pava era o sistema, a estrutura e as maneiras pelas quais as relações de poder se desenvolvi-
am na Primeira República, a partir do município” (Leal, apud Carvalho, 1997).
O autor tratou da relação entre o poder local e o poder nacional, na qual o coronelismo
estava inserido. Para ele, o coronelismo surge dentro de um contexto histórico específico,
incrustado na conjuntura política e econômica do Brasil no período da República Velha
(1889-1930). No âmbito político cria-se o federalismo, que fora instituído em substituição
ao centralismo imperial. A partir do federalismo criou-se um novo ator político com amplos
poderes, o presidente de Estado. No âmbito econômico, segundo Leal, vivia-se a decadência
dos fazendeiros, que também é comentada por Carvalho:
Esta decadência acarretava enfraquecimento do poder político dos coronéis em face de seus
dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava, então, a exigir a presença do Estado,
que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de terra. O coronelismo
era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo e significava
o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do coronel.21
21 O artigo de Carvalho (1997) também encontra-se disponível em http://www.scielo.br/scielo. Acesso em 10 mar. 2005.
183
TEORIA POLÍTICA
Fica explícito, a partir das considerações de Leal, que o coronelismo foi um sistema
político nacional baseado na “troca de favores” entre o governo central e os detentores do
poder local. As relações entre o poder local (coronéis) e o governo podem ser descritas como
um caminho de mão dupla, ou seja, um necessitava do outro para sobreviver:
O governo estadual garantia, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais,
sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a profes-
sora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima,
os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste seu
domínio no Estado. O coronelismo é a fase de processo mais longo de relacionamento entre os
fazendeiros e o governo (Leal, apud Carvalho, 1997).
Leal (1975) seguiu a definição de Basílio de Magalhães para explicar a origem do
conceito de coronelismo no Brasil:
o tratamento de “coronel” começou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer
chefe político, a todo e qualquer potentado, até hoje recebem popularmente o tratamento de
“coronéis” os que têm em mãos o bastão de comando da política edilícia ou os chefes de partidos
de maior influência na comuna, isto é, os mandões dos corrilhos de campanário (p. 20-21).
Leal acredita que o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto e a desorganiza-
ção dos serviços públicos locais sejam características próprias do coronelismo. Ao coronel
estão ligados o voto de cabresto e a capangagem (p. 23).
Os trabalhadores rurais, desprovidos de qualquer estrutura que lhes possibilitasse
mudança de vida, eram dependentes do coronel: “completamente analfabeto, ou quase,
sem assistência médica, não lendo jornais, nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras,
o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é
dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece” (p. 25).
A troca de favores era a essência do compromisso coronelista, que consistia em apoiar os
candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais: “enquanto que, da parte da
situação estadual, vinha carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da
facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomea-
ção de funcionários estaduais do lugar” (p. 50).
TEORIA POLÍTICA
184
Ao concluir esta seção, constata-se que muitos outros vícios permanecem na vida po-
lítica brasileira. São necessárias, além da participação dos setores organizados da sociedade
civil e do olhar crítico e imparcial da mídia, outras formas de controle e responsabilização
dos atos administrativos das pessoas que ocupam cargos públicos. Trata-se aqui de inserir o
conceito de accountability, “que quer dizer autoridades politicamente responsáveis, autori-
dades que podem ser responsabilizadas pelos seus atos, que devem prestar contas dos seus
atos”. O accountability (controle democrático) pode ser vertical (relação governantes e go-
vernados) e horizontal, quando poderes externos podem punir o próprio governo. Por meio
da autonomia dos poderes, autoridades estatais podem controlar o próprio poder, empreen-
dendo ações que vão desde o controle rotineiro até sanções legais ou inclusive impeachment,
conforme o caso.22
Seção 11.4
Os direitos sociais emergem quando os direitos civis e políticos fenecem
A partir dos anos 20 inicia-se, paulatinamente, uma nova era na história política na-
cional. Os tempos agora são outros, influências internas, como o processo crescente de
urbanização e industrialização, o aumento do operariado, a criação do Partido Comunista e
a Semana de Arte Moderna, bem como influências externas, como a crise da Bolsa de Valo-
res de Nova York, acabam modificando as relações econômicas e políticas no Brasil. Assim,
na década de 30 o Brasil vê emergir, gradativamente, os direitos sociais: “A partir desta data,
houve aceleração das mudanças sociais e políticas, a história começou a andar mais rápido”
(Carvalho, 2002, p. 87), principalmente com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio e a Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943.23 Fica evidente que, no Brasil,
os direitos sociais não foram conquistados, mas conseqüência de concessões de governos
22 Ver estudos de Marenco dos Santos (2003) e O’Donnell (1998).
23 Diferentes autores que tratam do tema da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) são unânimes em afirmar que essa legislação foi,em grande parte, copiada da “Carta del Lavoro” adotada pelo regime fascista italiano.
185
TEORIA POLÍTICA
centralizadores e autoritários. Os sindicatos foram atrelados ao Estado de aspiração fascis-
ta. Em termos políticos tivemos retrocesso, pois em 1937 Vargas instaura uma ditadura apoiada
pelos militares, instituindo o Estado Novo, que só termina em 1945. Logo após esse período
o país passou pela primeira experiência democrática (1945 até 1964), tendo como principal
característica política o populismo e o nacionalismo.
Depois da breve experiência democrática o Brasil entrou, do ponto de vista dos direitos
civis e políticos, nos anos mais sombrios da sua História, o da ditadura militar. Houve perse-
guição, cassação dos direitos políticos, tortura e assassinatos das principais lideranças po-
líticas, sociais e religiosas. Os Atos Institucionais (AIs) deram a tônica do governo. O AI 1,
de 1964, cassou os direitos políticos. O AI 2, de 1965, aboliu a eleição direta para a Presi-
dência da República, dissolveu os partidos políticos criados a partir de 1945 e estabeleceu
um sistema bipartidário. Já o AI 5, de 1968, foi considerado o mais radical de todos, o que
mais fundo atingiu direitos políticos e civis. O Congresso foi fechado, passando o presiden-
te, general Costa e Silva, a governar ditatorialmente. Foi suspenso o habeas corpus para
crimes contra a segurança nacional (Carvalho, 2002, p. 162), houve cassações de manda-
tos, suspensão de direitos políticos de deputados e vereadores, além da demissão sumária de
funcionários públicos, censura à imprensa e a instituição da pena de morte por fuzilamento.
No que se refere aos direitos sociais, percebe-se que houve uma sensível melhora na
época dos militares. Foram criados o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), Fun-
do de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS), Banco Nacional de Habitação (BNH) e, em 1974, o Ministério da Previdência e
Assistência Social (p. 172).
Aos poucos, porém, o período da ditadura militar dá sinais de esgotamento e os ares de
novos tempos começam a soprar no cenário político do Brasil. Depois da pressão política da
oposição, da opinião pública, de intelectuais, artistas e da população em geral, os militares
deixam o poder, de forma negociada, no ano de 1985. Novos partidos foram criados e a nova
Constituição Federal foi promulgada em 1988. Essa Constituição, apesar da resistência de
alguns setores conservadores da sociedade (como o “Centrão” – deputados que defendiam
as grandes propriedades rurais), foi considerada a mais liberal de todas. O presidente da
Constituinte, Ulisses Guimarães, na época a chamou de “Constituição Cidadã”.
TEORIA POLÍTICA
186
Apesar dos avanços políticos, no entanto, os direitos civis e sociais são deficientes
desde 1985. Há precariedade na questão da segurança e no acesso à Justiça, além das altas
taxas de homicídios: “A taxa nacional de homicídios por 100 mil habitantes passou de 13 em
1980 para 23 em 1995, quando é de 8,2 nos Estados Unidos” (p. 212). O Judiciário não
cumpre seu papel: além da morosidade nos trâmites e decisões, há, também, um número
reduzido de defensores públicos.
Deu-se no Brasil, diferentemente de outros países, a lógica inversa: primeiro os direitos
sociais, depois os políticos e civis. Como bem argumenta Carvalho:
Aqui primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos
políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os
direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em
outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em
peça decorativa do regime (p. 220).
Além disso, os direitos civis continuam inacessíveis: “Finalmente, ainda hoje muitos
direitos civis, a base da seqüência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da popu-
lação. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo” (p. 220).24
Esta Unidade procurou apresentar argumentos que comprovam a difícil construção
da cidadania no país. Como sabemos, o conceito de cidadania sempre esteve e ainda está
ligado à conquista de direitos, tanto civis (individuais), quanto políticos e sociais. Percebe-
se isso na história das civilizações clássicas (greco-romanas); durante a Modernidade (con-
quistas da sociedade liberal burguesa), e, especificamente, o caso aqui exposto (experiência
do Brasil).
Tem-se consciência de que este estudo poderia ter avançado, principalmente no deba-
te teórico atual da questão da cidadania global e da cidadania cosmopolita. Optou-se, po-
rém, por investigar em responder quais os principais obstáculos para a construção da cida-
dania brasileira. Pensa-se, em outra oportunidade, contemplar tais questões.
24 No entendimento de José Murilo de Carvalho, a ordem de institucionalização clássica dos direitos de cidadania com base em Marshall(civis, políticos e sociais) não obedeceu à mesma lógica seqüencial no Brasil.
187
TEORIA POLÍTICA
Constatou-se que o latifúndio agroexportador do período colonial, bem como o
escravismo e o analfabetismo, marcaram negativamente nossas origens e, até hoje, dificul-
tam avanços no âmbito político-social e econômico. Além dessas, outras razões foram e
continuam sendo entraves para a consolidação das instituições políticas, impedindo os avan-
ços necessários para uma cidadania plena. Na ordem política permanecem ainda algumas
mazelas históricas, como o patrimonialismo (promiscuidade entre o público e o privado), o
personalismo (messianismo), o coronelismo com sua nova roupagem, o clientelismo, além
da corrupção, entre outros...
Percebeu-se também que as conquistas dos direitos no Brasil, comparadas com as de
outros países, deram-se de maneira tardia e inversa. Somente em 1824, mais de 320 anos
após a chegada dos portugueses, aparecem os primeiros direitos civis e políticos (antes disso
estávamos submetidos à lei da Coroa portuguesa). Aos poucos surgiram os direitos sociais,
mas exatamente no momento em que os direitos civis e políticos estavam sendo negados, no
período da ditadura de Vargas (1937-1945) e na ditadura militar (1964-1985).
Por fim, haveremos de concordar com Benevides (1994, 2000), quando este afirma que,
no intuito de reverter a realidade político-social excludente, ou de uma cidadania passiva
ou sem “povo”, é necessário recorrer a mecanismos institucionais, como o referendo, o ple-
biscito e a iniciativa popular para a construção do que a autora chama de uma cidadania
ativa ou democracia semidireta: “Assim, discuto a participação política, através de canais
institucionais, no sentido mais abrangente: a eleição, a votação (o referendo e plebiscito) e
a apresentação de projetos de leis ou de políticas públicas (iniciativa popular), como defen-
do a complementaridade entre representação e participação direta, adoto, em decorrência, a
expressão ‘democracia semidireta’” (1984, p. 10). Embora com grandes dificuldades, é pos-
sível reverter o processo por meio da educação política – entendida como educação para a
cidadania ativa e plena.
Esta Unidade abordou o tema da cidadania com referência ao nosso país.
TEORIA POLÍTICA
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TEORIA POLÍTICA
Vicissitudes da Política Brasileira
Esta última Unidade apresenta, de forma sucinta, um debate sobre os principais temas
que estiveram na pauta da política e da opinião pública no segundo semestre do ano de
2007. O capítulo inicia-se tratando do caso Renan Calheiros, presidente do Senado, acusa-
do de quebra de decoro parlamentar, que acabou renunciando à Presidência da Casa para
escapar da cassação. Por duas vezes os senadores absolveram Calheiros. Ainda tratando
sobre os desmandos da política brasileira, apresentamos os “ensinamentos” de Maquiavel
para conquistar e manter-se no poder, exemplo seguido por muitas lideranças políticas atu-
ais. Outro tema que esteve na mídia foi a questão da reforma política: essencialmente, a
questão da fidelidade partidária. Não houve avanços na dita reforma, mas o Supremo Tribu-
nal Federal (STF) ratificou a posição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que o voto
dado pelo eleitor pertence ao partido e não ao político. Presenciamos, ainda, o afastamento
do governo Lula da proposta ideológica de seu partido, o PT. Constatou-se que os votos dos
candidatos do PT têm declinado sensivelmente no Congresso Nacional, enquanto o voto
dado ao candidato Lula tem evoluído, caracterizando uma nova onda de populismo, o
lulismo. O tema polêmico da reforma agrária voltou a ser manchete. De um lado, a pressão
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), com ocupações e marchas na
luta pela terra; por outro, as milícias armadas dos fazendeiros. O governo revelou-se, mais
uma vez, omisso, mostrando pouca eficiência nesta problemática. Outros temas, como a
democracia, a questão do Estado, o caráter pouco solidário e a necessidade de construir
capital social no Brasil também foram abordados.
Seção 12.1
O caso Renan e a degeneração da política
A origem da palavra política, a partir de sua etimologia, provém do grego politikos
(pólis, cidade-Estado) e se refere a tudo o que é urbano, civil e público. O homem político é
aquele que não apenas vive na cidade, mas faz desta a sua principal preocupação. E o
Unidade 12Unidade 12Unidade 12Unidade 12
TEORIA POLÍTICA
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homem grego era, por excelência, o homem dado aos debates na Agora, aos discursos e às
discussões políticas. Também é da genialidade grega a criação da democracia (demos +
cracia), governo do povo que garantia ao homem a isonomia (igualdade perante a lei), a
isegoria (liberdade de opinião) e a filantropia (fraternidade entre os cidadãos). Por isso o
elogio de Péricles: “Não imitamos a Lei dos nossos vizinhos”; bem pelo contrário, como
testemunha Isócrates: “Estabelecemos entre os outros a nossa Constituição”. Nesse senti-
do, a política entre os gregos destinava-se a garantir a qualidade e a perfeição da vida.
Como esclarece Prélot (1973), “o fim da política não é, pois, a conquista ou o enriquecimen-
to geral, mas sim a virtude coletiva. Ela não está acima da moral, mas prolonga-se”. Isto é,
a política é a arte de tornar melhor os cidadãos.
Analisando a conjuntura política brasileira de nossos dias, temos assistido exatamen-
te ao inverso da proposta grega sobre o real entendimento da política. Por aqui, os interesses
individuais sobrepõem-se aos coletivos, o bem comum é substituído pelo bem privado e os
vícios e mazelas tão antigos das instituições e da cultura política, como o clientelismo, a
corrupção, o patrimonialismo e, agora, o lobbysmo, é o que domina. Entende-se por lobbysmo
a prática que representa o interesse de grupos (empresas) e procura influenciar nas votações
legislativas e nas decisões dos administradores governamentais. Em outras palavras, o
lobbysmo consiste em dirigir todas as energias de quem o pratica a obstaculizar, emendar e
aprovar as propostas legislativas e as normas das agências reguladoras. Os lobbystas ope-
ram ante governos municipais, estaduais e federais.
Foi o caso do presidente do Senado, Renan Calheiros (representante das velhas oligar-
quias regionais alagoanas), acusado de utilizar dinheiro de uma empresa privada (empreiteira)
para pagar despesas pessoais. Por isso o Conselho de Ética do Senado recomendou a vota-
ção da perda de mandato de Renan por quebra de decoro. Renan, no entanto, foi absolvido
por duas vezes consecutivas por seus pares no Senado. Com sua absolvição, perde a demo-
cracia, perdem as instituições políticas, também perdem todos os eleitores e cidadãos do
país. Fica apenas o sentimento de impotência misturado com o sentimento de frustração e
impunidade pairando no ar, e a triste constatação de que tudo é possível e permitido no
Brasil: enganar, corromper, apadrinhar, mentir.
191
TEORIA POLÍTICA
Por fim, entende-se que a política no seu sentido originário destina-se a garantir a
qualidade e a perfeição da vida, e que, para isso acontecer é necessário que os cidadãos
vivam o bem comum, ou em conjunto ou por intermédio dos seus governantes; se ocorrer o
contrário (a busca do interesse próprio), está formada a degeneração da política. Infeliz-
mente essa é hoje a realidade política brasileira.
Seção 12.2
Maquiavel: o “Old Nick” anda solto!
O renascentista Nicolau Maquiavel (1469-1527) ganhou notoriedade na História e
nas Ciências Sociais por ter escrito O Príncipe (1513-1514), no qual não tratou de questões
e valores espirituais e talvez por esta razão o seu Príncipe tenha sido posto, em 1559, pela
Igreja Católica, na lista de livros proibidos (Índex). É do sentido pejorativo dado pela Igreja
à obra de Maquiavel que surgiu o adjetivo maquiavélico, aplicado a quem tem um procedi-
mento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Em inglês, a expressão “Old Nick” significa, literal-
mente, uma abreviação de “Velho Nicolau”, termo com o qual, na Inglaterra, desde a época
elizabetana, a literatura passou a designar Maquiavel: como o próprio “Velho Diabo”.
O objetivo de Maquiavel era a unificação da Itália. Para isso, precisava de uma lide-
rança política (príncipe) destemida, engenhosa, habilidosa e forte (virtú), mesmo que, para
alcançar este fim, fosse necessário empregar certos meios pouco lícitos (pois os fins justifi-
cam os meios). O príncipe (liderança política) situa-se além do bem e do mal. Em nome do
poder, tudo se justifica: cupidez, rapacidade (avidez de lucro), fraude, dolo, roubo, libertina-
gem, deboche, velhacaria, perfídia, traição, dissimulação. Tudo é permitido desde que se
alcance o resultado desejado; por isso, todos os meios são considerados honestos.
Neste sentido, acredita-se que os “ensinamentos” de Maquiavel e seu Príncipe foram
assimilados e postos em prática por uma boa parte das nossas lideranças políticas atuais.
Muitos o têm como “livro de cabeceira”, um manual de sobrevivência na política. Infeliz-
mente trocou-se a ética pelo ardil, a astúcia e o cinismo. O mau exemplo do Senado brasi-
TEORIA POLÍTICA
192
leiro absolvendo o presidente da Casa, Renan Calheiros, acusado de diversas irregularida-
des (tráfico de influência, enriquecimento ilícito, favorecimento a empresas) e o esforço
empreendido pelo partido do governo para salvá-lo, levam-nos a crer, lamentavelmente, que
as práticas do “Velho Diabo” têm encontrado guarida nos corações e mentes de muitos...
Sim, ele anda solto pelas bandas do “planalto” e até nas mais recônditas “planícies”.
Seção 12.3
(In) fidelidade partidária
A migração partidária ou o conhecido “troca-troca” é a prática seguida pelos políticos
para se “acomodarem-se” em um partido no qual possam tirar proveito pessoal, indepen-
dentemente de manter a fidelidade à legenda pela qual foram eleitos. A infidelidade partidá-
ria tem sido uma marca da política brasileira desde o período da democratização. Essa “na-
turalidade” do “troca-troca”, no entanto, tem causado prejuízos às instituições políticas,
revelando-se a principal causa do descrédito dos políticos diante da opinião pública. Se-
gundo a pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMD, 2007), 81,9% não acre-
ditam nos políticos.
Estudos mostram que, de 1985 a outubro de 2001, quando foi encerrado o prazo de
filiação partidária tendo em vista a eleição de 2002, nada menos que 846 parlamentares,
entre titulares e suplentes, mudaram de partido na Câmara dos Deputados. Traduzindo es-
ses números em percentuais, chega-se a 28,8% dos políticos que assumiram uma cadeira na
Câmara e trocaram de legenda durante o mandato. Nos últimos 12 anos (desde 1995), fo-
ram registradas 854 migrações partidárias – média de 67 por ano. No primeiro mandato do
presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), foram 211. Na segunda gestão (1999-
2002), 302. E, no primeiro Governo Lula (2003-2006), 291. A atual legislatura, que come-
çou em fevereiro (2007), já contabiliza 50 (dados do Acervo da Câmara, publicados na Fo-
lha de São Paulo de 7/10/2007).
193
TEORIA POLÍTICA
Segundo o cientista político André Marenco dos Santos, a migração partidária era
insignificante no primeiro sistema multipartidário brasileiro, especialmente entre 1950 e
1962, mas, aos poucos, tem evoluído nas últimas legislaturas: quase 60% dos deputados,
quando eleitos, já haviam pertencido a mais de um partido no mesmo sistema partidário.
Especialmente a partir de 1995, constata-se nitidamente o crescimento de um tipo de migra-
ção que pode ser interpretada, segundo o estudioso, como “adesão ao governo”. Ou seja,
partidos da base aliada acabam sendo cobiçados e inflados por parlamentares da oposição
obcecados por emendas e cargos públicos. Por exemplo, na atual gestão, o PR e o PTB (base
aliada do governo) são os destinos prediletos dos infiéis (oposição). Essas siglas têm juntas,
na Câmara, 80% de suas bancadas formadas por deputados que trocaram de partido com o
mandato em curso.
Por fim, a lúcida decisão dos magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) em
ratificar a posição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que o voto dado pelo eleitor pertence
ao partido e não ao político pode, com o tempo, beneficiar as instituições políticas do país.
O TSE decidiu também que a fixação de regras de fidelidade partidária recaiam sobre os
cargos majoritários: presidente da República, governadores, prefeitos e senadores. Esta de-
cisão foi aprovada e todos os parlamentares que trocaram de partido a partir de 27 de março
de 2007 (quando o TSE decidiu que o mandato pertence ao partido e não ao candidato
eleito) poderão perder o mandato (salvo quando o parlamentar alegar perseguição interna
do partido ou que o partido mudou a sua ideologia).
Seção 12.4
Reforma política: entraves e perspectivas
“Você conhece alguém que fabrica uma chibata para apanhar com ela?”
Ex-deputado João Caldas (PL-AL)
O debate sobre o Projeto de Lei 2.679 de 2003, da chamada reforma política, tem ocu-
pado um lugar de destaque no meio político, na opinião pública e nas organizações sociais
nos últimos anos, no entanto pouco se tem avançado no consenso e na efetividade da mes-
TEORIA POLÍTICA
194
ma. O que temos, até o momento, são apenas dúvidas, desconfianças ou mesmo ceticismo
sobre tal reforma. Diante disso pergunta-se: se a reforma política vier a ser concretizada,
pode-se esperar que ela resolva as mazelas culturais e institucionais da política brasileira?
O Projeto de Lei, elaborado pela Comissão Especial de Reforma Política, dispõe sobre
a fidelidade partidária, pesquisas eleitorais, o voto de legenda em listas partidárias
preordenadas, a instituição de federações partidárias, o funcionamento parlamentar, a pro-
paganda eleitoral, o financiamento de campanha e as coligações partidárias, alterando a
Lei n.º 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei n.º 9.096, de 19 de setembro
de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei n.º 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das
Eleições).
Da forma como a reforma política está sendo proposta, contudo, é pouco provável que
alcance resultados satisfatórios. O próprio presidente Lula acredita que a reforma política só
sairá do papel caso seja convocada uma nova Assembléia Constituinte (paralela), com no-
vos representantes escolhidos pelo povo para tratar especificamente deste assunto. A idéia
também foi defendida pelo próprio PT no último Congresso do Partido. Como se fosse possí-
vel a neutralidade, a isenção e a imparcialidade dos novos constituintes nas tomadas das
decisão: estariam eles defendendo os reais interesses dos eleitores ou continuariam sendo
meros lacaios dos grupos privados?
Considerando o momento atual das instituições e dos atores políticos (alta desconfi-
ança por parte do eleitorado: 82% não confiam nos políticos), são mínimas as chances de
que a reforma política venha a ser realizada, mas, se vier, será pouco provável que alcance o
êxito esperado. Nem mesmo a idéia esdrúxula de convocar uma nova Constituinte resolve-
ria o problema. A frase do ex-deputado João Caldas, do PL de Alagoas, é elucidativa, ou
seja, ninguém vai aprovar um projeto que, daqui a alguns meses, ou nas próximas eleições,
possa prejudicar ou comprometer a sua (re)eleição. Assim, haveremos de concordar com a
afirmação de Benevides: A julgar pelo andar modorrento dos pretensos reformistas, caímos
num círculo vicioso: não consolidamos a democracia porque nos faltam verdadeiros partidos,
não temos partidos porque nos falta a verdadeira democracia. Como nos diria Eça de Queiroz:
estamos bem arranjados.
195
TEORIA POLÍTICA
Apesar do quadro desolador, porém, é preciso manter a mobilização e não desacredi-
tar. Como nos ensina Comparato (1993), citando Gramsci: É preciso ser absolutamente pes-
simista no diagnóstico, mas manter a mais acesa esperança na ação. Qual a saída? Acredita-
se que somente com a participação popular e a sociedade civil organizada a reforma política
chegará a bom termo. Sem a participação popular (diálogo com os eleitores), acredita-se
que a reforma política tenderá a manter os vícios culturais e institucionais da política brasi-
leira (personalismo, clientelismo, patrimonialismo e tantos outros “ismos”), vindo a enfra-
quecer ainda mais nossas instituições políticas.
Por fim, a coerente e acertada posição do Supremo Tribunal Federal ao decidir que o
voto dado pelo eleitor pertence ao partido e não ao político (embora não tenha punido os
políticos infiéis) ameniza, em parte, o problema do troca-troca de partido (infidelidade par-
tidária), prática comum no meio político. Somente em 2007 50 parlamentares trocaram de
partidos: 46 deputados na Câmara Federal e 4 senadores (alguns, inclusive, trocando mais
de uma vez de partido).
Seção 12.5
Seria o fim do Petismo?
O Partido dos Trabalhadores (PT) surgiu no início dos anos 80, com uma proposta
ideológica socialista e com bandeiras alternativas aos partidos tradicionais da história polí-
tica brasileira conhecida até então. As lideranças do partido eram provenientes, principal-
mente, dos movimentos sociais, das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), fundamentadas
na Teologia da Libertação (ala progressista da Igreja Católica), de boa parte da
intelectualidade brasileira e, ainda, das principais Centrais Sindicais do país, de onde emer-
giu seu principal líder, Luiz Inácio Lula da Silva.
Durante as décadas de 80 e 90 o PT consolidou-se como um dos principais partidos de
oposição do Brasil, tendo a ética e a luta social como sua principal bandeira. O partido, no
entanto, cresceu e aspirou a maiores possibilidades, inclusive a de chegar ao centro do po-
TEORIA POLÍTICA
196
der (Presidência da República). A expressiva votação do candidato Lula para presidente em
1989, indo ao segundo turno e desbancando nomes como Brizola e Quércia, velhos conhe-
cidos da política brasileira, credenciou o candidato petista a sonhar sim, concretamente,
com o cargo máximo do país, no entanto as derrotas nas eleições gerais de 1994 e 1998,
respectivamente, foram cruciais para mudar os rumos do partido. A mudança da “esquerda”
para o “centro” do espectro político foi uma questão de tempo. O próprio presidente reco-
nheceu, recentemente, a sua própria mudança e a mudança no programa do partido: “Eu
perdi três eleições, e cada eleição que eu perdia, perdia por 15%. Chegou um dia em que
alguém me convenceu de que eu não precisava mais ficar fazendo discurso para agradar ao
PT, que eu não precisava mais ficar fazendo discurso para agradar aos 30% ou 35% que eu
tive em todas as eleições. Era preciso que eu me preparasse para ter do meu lado os 15% que
faltavam. E eu me preparei e ganhei a eleição”.
De fato, a evolução do voto petista de 1989 a 2006 foi bastante expressiva: em 1989,
no primeiro turno para a Presidência da República, o partido totalizou 11,6 milhões de
votos, 16,1% do total dos votos válidos. Na segunda tentativa, em 1994, foram 17,1 milhões
(27%); em 1998, 21,4 milhões de votos (31,7%). Sempre faltavam, contudo, alguns percentuais
e, em 2002, depois de uma mudança radical no programa, bem como a formação de alianças
com partidos de centro e até de direita (PL), o candidato Lula somou nada menos do que
39,4 milhões de votos (46,5%) no primeiro turno e venceu as eleições, no segundo turno,
com mais de 52 milhões de votos (61,2%). Em 2006, depois de quatro anos no poder, o
candidato petista fez 46.662 milhões de votos (48,6%) no primeiro turno, e se reelegeu, no
segundo turno, contabilizando mais de 60% dos votos válidos.
E agora, para onde caminha o PT? Voltará as suas origens socialistas ou dará conti-
nuidade ao seu governo de coalizão? O eleitor poderá esperar ainda um projeto de desenvol-
vimento para o país, ou assistirá a práticas de rentismo à elite financeira nacional e interna-
cional e ao assistencialismo aos mais pobres (Bolsa Família)? Ao que tudo indica, depois do
3º Congresso do partido (3/9/2007), a tendência é permanecer “tudo como dantes, no quar-
tel general de Abrantes...”. Embora tenha sido aprovada uma resolução reafirmando o cará-
ter socialista, democrático e popular do partido, parece que nada mudará, pois é preciso
manter tudo “do jeito que está pra ver como é que fica”. No quesito manter as coisas como
estão, o partido até acenou inicialmente para a possibilidade de uma candidatura própria
197
TEORIA POLÍTICA
para a Presidência em 2010, mas logo após, pressionado por Lula, amenizou o discurso,
recuou e aceitou a possibilidade de apoiar uma candidatura a partir de partidos da base
aliada (coalizão governista). Aliás, a única “novidade” foi a aprovação do Código de Ética
do partido... Conceito que anda meio escasso ultimamente no próprio PT, bem como no
meio político como um todo. Dentro desta lógica, pode-se afirmar que assistimos, sim, à
morte da ideologia da esquerda do petismo para ficarmos apenas com o “lulismo”, o que
não interessa à democracia brasileira.
Seção 12.6
O Lulismo é maior que o Petismo
Segundo pesquisa do Instituto Sensus (12 de outubro de 2007), a popularidade do
presidente Lula e a aprovação do seu governo continuam altas. A pesquisa encomendada
pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) mostra números positivos, tanto para a
avaliação do presidente quanto para seu governo. Mais de 61,% dos brasileiros aprovam o
governo do presidente Lula e 46,5% avaliam o desempenho do seu governo como positivo.
Apesar das crises e turbulências pelos quais o partido do presidente (PT) passou nos
últimos tempos, a imagem de Lula continua inabalável. Se o cenário político e econômico
se mantiver estável nos próximos anos, é bem provável que, em 2010, o presidente Lula
venha a fazer seu sucessor ao Palácio do Planalto. Alguns nomes já estão sendo cogitados:
Dilma Rousseff, Marta Suplicy e Tarso Genro (do próprio PT), Ciro Gomes ou Nelson Jobim
(da base aliada), ou, quem sabe, o dele próprio (caso mexa na Constituição). Não se descar-
ta, também, a possibilidade de que Lula volte a concorrer à Presidência da República em
2014.
O fenômeno do lulismo pode ser associado a uma nova onda de personalismo (culto à
pessoa) e populismo (fenômeno político caracterizado pela liderança de uma pessoa que
geralmente expressa carisma – popularidade), muito presente no cenário político da Améri-
TEORIA POLÍTICA
198
ca Latina. O culto à pessoa é maior que a ideologia dos seus próprios partidos. Por exemplo,
no Brasil, prevalece a imagem carismática e messiânica do presidente Lula, mesmo que a do
próprio partido, o PT, não vá tão bem assim.
Apesar de ter conquistado a Presidência da República, cinco governos estaduais e ter
eleito a segunda bancada da Câmara dos Deputados (83), percebe-se que os votos dados ao
PT na Câmara Federal têm declinado. Foram 2,1 milhões de votos a menos, se comparados
com as eleições de 2002, quando totalizou 16.094 milhões contra 13.990 milhões de 2006.
Isto significa que o PT perdeu no Congresso Nacional 13% de seu eleitorado entre uma
eleição e outra. As perdas mais significativas deram-se no Sul, 675 mil a menos (-22%) e no
Sudeste, menos 1.90 milhão de votos (-23%). Somente no Estado de São Paulo o declínio foi
de 1.06 milhão de votos (-21,5%). O declínio poderia ter sido maior caso as regiões Norte e
Nordeste do país não houvessem incrementado a votação pró-Lula. No Nordeste (influencia-
do pelo Bolsa Família), o PT fez 374 mil votos a mais (13%) e, no Norte 207 mil votos (31%).
Por outro lado, se traçarmos um paralelo entre o voto petista no Congresso Nacional
com o voto petista para presidente, constatamos que a votação de Lula foi duas vezes maior
do que os votos atribuídos aos candidatos petistas a deputado federal. Lula fez, nas eleições
de 2006, mais de 46 milhões no primeiro turno contra 13 milhões de votos para o Congresso.
Se compararmos ainda os votos recebidos por Lula nas eleições de 2002 com as eleições de
2006, percebe-se que houve um crescimento de 39.455, em 2002, para 46.662, em 2006, um
crescimento de 7.207 milhões de votos (18,26%).
Em síntese, o lulismo pode ser caracterizado como uma forma de administração volta-
da para a manutenção das políticas de mercado (política econômica ortodoxa: controle da
inflação, remessas recordes de lucros ao estrangeiro, benefícios aos banqueiros); do
burocratismo estatal, gerenciado pelos companheiros sindicalistas (45% dos cargos de con-
fiança são compostos por sindicalistas), e pela prática populista assistencial do “Bolsa Fa-
mília” (beneficiando os extremamente pobres). Talvez por essas razões tenha ocorrido a ree-
leição e a manutenção de percentuais de avaliação tão positivos. Por outro lado, o PT não
consegue o mesmo êxito conquistado pela sua principal liderança, o presidente Lula, que
pode sobreviver politicamente sem o PT. Pergunta-se, no entanto: o PT sobreviveria sem
Lula?
199
TEORIA POLÍTICA
Seção 12.7
Para que reforma agrária?
Novamente a questão agrária está na pauta das discussões da opinião pública brasi-
leira. reforma agrária, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Via Campesina,
agronegócios, marchas e ocupações conquistam espaço na mídia em geral. Nesse sentido, é
correto afirmar que, no Brasil, a questão agrária é um problema histórico que nos remete ao
período colonial (capitanias hereditárias) e permanece até nossos dias como uma das prin-
cipais mazelas sociais do país. Diante disso, a necessidade de a reforma agrária ser institu-
ída no Brasil se justifica pelas seguintes razões:
a) Gera desenvolvimento. Enquanto os Estados capitalistas desenvolvidos efetivaram a
reforma agrária diversas vezes no tempo e nos referidos espaços territoriais (pois entendi-
am que a distribuição da terra beneficiava o próprio sistema), o Estado brasileiro opta
pelo atraso, trata a reforma agrária com desdém e até com coação e violência. Foi o caso
da infeliz, retrógrada e inconseqüente afirmação do subcomandante-geral da Brigada
Militar do Rio Grande do Sul, coronel Paulo Roberto Mendes (20-9-2007), ao pedir o fim
da marcha dos sem-terra à fazenda Guerra, no município de Coqueiros do Sul (314 km de
Porto Alegre): “Estou fazendo este pedido para que a marcha seja parada pela força da lei,
antes que seja parada pela força da bala”. Entende-se que no Estado Democrático de
Direito o indivíduo tenha, perante o Estado, não só direitos privados, mas também direi-
tos públicos. O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos (Bobbio, 2000). Assim sendo, a
função do Estado é garantir os direitos públicos de todos e não apenas os direitos priva-
dos de poucos.
b) Resolve o problema da concentração da terra. Existem mais de 371 milhões de hectares
disponíveis para a agricultura no país, mas o que é otimizado para a produção é coisa
ínfima; além do mais, metade dessa área é adequada para a criação de gado. Ao mesmo
tempo em que a vocação do Brasil é a agricultura, tem-se uma população faminta. Dados
estatísticos mostram que quase metade da terra cultivável está nas mãos de apenas 1%
dos fazendeiros (poucos), enquanto uma pequena parcela, menos de 3% da terra, perten-
ce a 3,1 milhões de produtores rurais (muitos). Dados do Instituto Nacional de Coloniza-
TEORIA POLÍTICA
200
ção e Reforma Agrária (Incra) comprovam, igualmente, que cerca de 10% dos 4,9 milhões
de imóveis rurais cadastrados no Brasil correspondem à média e grande propriedade, ocu-
pando quase 80% da área total das terras cadastradas. Já os pequenos imóveis, que repre-
sentam cerca de 90%, ocupam pouco mais de 20% dessa área total.
c) Os minifúndios são produtivos, o latifúndio não. Indicadores comprovam que os peque-
nos agricultores produzem mais. Boa parte dos alimentos vem dos proprietários que pos-
suem até 10 hectares de terra. Dos donos de mais de 1.000 hectares sai uma parte relativa-
mente pequena do que se come. Ou seja: eles produzem menos, embora tenham 100 vezes
mais terra. O latifúndio (agronegócio) produz monoculturas de exportação, gera poucos
empregos, agrega pouco valor e os lucros não são socializados. Neste quesito, percebe-se
que o governo Lula tem priorizado mais o avanço do agronegócio no Brasil do que a
agricultura familiar. Este setor foi o que mais recebeu incentivos do governo. Por exemplo,
no plano safra 2006/2007 foram cerca de R$ 50 bilhões destinados aos grandes produtores.
d) Ajuda a resolver os problemas sociais. É importante que as pessoas possam viver no
campo tendo condições dignas de plantar e colher. Se as nossas cidades já apresentam
déficits habitacionais, saneamento, educação e emprego, imaginem se a população urba-
na se expandiu drasticamente: não aumentaria o desemprego, a marginalidade, a violên-
cia? O que faremos se o êxodo rural acentuar-se ainda mais? Como serão nossas cidades?
Por esses e outros motivos acreditamos que a reforma agrária, junto com outras políti-
cas mais audaciosas, possa contribuir para o desenvolvimento econômico e social, além de
fortalecer a democracia do Brasil; sem reforma agrária estamos fadados ao atraso econômi-
co, político e social.
Seção 12.8
Os desafios da democracia na América Latina
Vive-se um momento peculiar no cenário político nacional. A eleição geral de 2006 foi
a quinta eleição direta consecutiva para presidente da República. Isso representa um avan-
ço na história política do Brasil, profundamente marcada por governos oligárquicos, populistas
201
TEORIA POLÍTICA
e autoritários. Ao concluir o segundo mandato do governo Lula, completam-se 24 anos de
democracia ininterrupta. Algo inédito até então. É preciso, no entanto, aprimorar o regime
democrático, resolvendo os problemas de ordem estrutural (econômico e social).
É possível afirmar que se conquistou, no Brasil, até o momento, uma democracia for-
mal poliárquica (eleições livres e freqüentes; liberdade de expressão; fontes de informações
diversificadas; autonomia para associações e cidadania inclusiva), segundo o pensamento
de Robert Dahl, entretanto, como questiona Saramago, “até que ponto se permite que esse
sistema seja substancial?”, isto é, alcançamos uma democracia eleitoral e suas liberdades
básicas; trata-se, agora, de avançar para a consolidação de uma democracia cidadã e inclu-
siva (é preciso passar da condição de meros espectadores para a de cidadãos participantes).
A democracia é muito mais que um regime governamental, é mais do que um método para
eleger e ser eleito. O sujeito, mais do que eleitor, é cidadão. De que adiante democracia se os
problemas sociais e econômicos da maioria da população ainda persistem?
Talvez por isso, segundo a pesquisa do PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, 2004) feita na América Latina, 54,7% dos cidadãos estariam dispostos a
aceitar um regime autoritário se este resolvesse a situação econômica de seus países e res-
pondesse as suas demandas sociais; 56,3% avaliam que o desenvolvimento é mais importan-
te que a democracia e 58,1% concordam, também, que o presidente possa ignorar as leis
para governar. A democracia ideal pressupõe que a participação pública e o espírito cívico
dos cidadãos (associativismo, confiança e cooperativismo) sejam aprimorados em busca de
justiça social e da emancipação humana. E mais, como observa Hélgio Trindade: “A cons-
trução da democracia participativa supõe uma combinação entre cidadania democrática e
representação política plena” (2003).
A democracia latino-americana não pode ser uma democracia que facilita os procedi-
mentos, porém fracassa, para proporcionar liberdades cívicas e garantir os direitos huma-
nos, a que Larry Diamond denomina democracia iliberal (illiberal democracies), ou, ainda, a
que Marcello Baquero chama de democracia inercial: com inexistência de instituições sóli-
das, comportamento político emocional e subjetivo, falta de fiscalização e predomínio de tra-
ços clientelísticos, personalistas e patrimonialistas entre os representantes eleitos. É necessá-
rio que se estruture na América Latina, nas palavras de Pablo González Casanova, uma de-
mocracia dos de baixo, em que os pobres vejam garantida a segurança social e econômica.
TEORIA POLÍTICA
202
Além do autoritarismo democrático que se vive na cultura política latino-americana,
pode-se afirmar que impera uma típica democracia delegativa (Guillermo O’Donnell). Isso
significa afirmar a existência de frágeis instituições políticas, em que se sucedem crises de
ordem socioeconômica (sucessivos planos econômicos), deterioração da autoridade presi-
dencial, corrupção do aparelho do Estado e violência generalizada. Isto é, a responsabilida-
de pelo sucesso ou fracasso de suas políticas é exclusiva do presidente da República que,
com a sua equipe pessoal, são o alfa e o ômega da política (o presidente isola-se da maioria
das instituições políticas) e os problemas da nação são tratados por técnicos e burocratas,
especialmente no que se refere à política econômica. A oposição e a resistência das ruas, da
sociedade, do Congresso ou de associações de representação de interesse são silenciadas ou
ignoradas. Prevalecem a centralização política e a personificação do poder do presidente, o
que Hélgio Trindade chama de hiperpresidencialismo: “o presidente se considera legitimado
por um poder delegado pelo voto para implementar, por mecanismos autoritários, suas deci-
sões políticas” (2003).
A democracia pressupõe, igualmente, alternância de poder. A proposta de eleição
ininterrupta de Hugo Chávez na Venezuela e a cogitação de um plebiscito para o terceiro
mandato de Lula no Brasil diminuem as chances da consolidação e do fortalecimento da
democracia no continente.
Seção 12.9
Mais Estado e menos mercado
Nos anos 90 a América Latina passou por profundas reformas estruturais (neoliberais),
a partir das políticas de livre mercado impostas pelo Consenso de Washington. Fizeram par-
te desse programa de reestruturação (ajustes) a reforma administrativa e previdenciária, que
exigiram um rigoroso esforço de equilíbrio fiscal; a redefinição do papel do Estado na eco-
nomia, que causou, ao contrário do que seus defensores alardeavam, recessão econômica,
ingresso do capital externo, desemprego, aumento do trabalho informal, conflitos sociais,
flexibilização dos direitos trabalhistas, precariedade e, ao mesmo tempo, o desmonte dos
sistemas de seguridade social, de saúde e de educação.
203
TEORIA POLÍTICA
No Brasil, as políticas de reestruturação do Estado ocorreram em meados dos anos 90.
A principal delas foi a chamada reforma administrativa, também conhecida como reforma
“Bresser-Pereira” (coordenada por Luiz Carlos Bresser-Pereira, então ministro da Adminis-
tração Federal e da Reforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso).
Mais tarde, contudo, o próprio Bresser-Pereira, em artigo publicado na Folha de São
Paulo (2002), reclamava da baixa confiança dos mercados internacionais perante a econo-
mia brasileira e da sua vulnerabilidade diante das constantes crises econômicas mundiais.
Talvez por isso Bresser-Pereira tenha lamentado que sua Reforma Administrativa não tivesse
alcançado os resultados esperados. Em suas palavras: “cumprimos uma parte desse progra-
ma, mas, em vez de reconstruir financeiramente o Estado, endividamo-lo ainda mais”. Em
relação ao processo de privatização, Bresser também reclamou: “em vez de privatizarmos
apenas setores competitivos, privatizamos também monopólios naturais”. No Brasil, houve
a “flexibilização” do mercado e a multiplicação da dívida: “em vez de controlar a entrada de
capitais e reduzir a dívida externa, ampliamo-la; ao invés de mantermos um câmbio relati-
vamente desvalorizado, como fizeram todos os países que iniciavam seu desenvolvimento,
deixamos que a entrada de capitais valorizasse nossa moeda e aumentasse artificialmente
salários e consumo”. Seguimos, de joelhos, as normas das instituições internacionais: “E
tudo, nos anos 90, com o apoio do FMI, do Banco Mundial e dos mercados financeiros
internacionais”, conclui Bresser-Pereira.
A política das privatizações foi a principal medida das reformas estruturais, as quais
reduziram, consideravelmente, o tamanho e a função do Estado. O Brasil, desde os anos 90,
tem privatizado mais de 70% de suas empresas estatais. Essa política, no entanto, tem en-
contrado resistência na opinião pública: até há pouco tempo os serviços prestados por em-
presas públicas eram considerados ineficientes, de baixa qualidade e mal administrados. Por
outro lado, os serviços prestados pela iniciativa privada eram sinônimos de qualidade e con-
fiança. Essa percepção parece estar mudando em nossos dias. Segundo dados do Instituto
Ipsos, a maioria do eleitorado brasileiro prefere que o Estado controle os serviços, além do
que 62% se mostraram contrários à política de privatizações. Apenas 25% a aprovaram.
Podem-se atribuir esses percentuais, entre outras razões, ao alto custo e à questionável
qualidade dos serviços privados, principalmente nos setores da energia elétrica, telefonia,
estradas, água e esgoto.
TEORIA POLÍTICA
204
Se, nos anos 90, presenciamos a uma onda que pregava o afastamento do Estado das
funções e do gerenciamento dos serviços públicos, agora pede-se que o Estado volte e cum-
pra sua função social. Segundo a mesma pesquisa, 74% acreditam que o Estado deve ser
responsável pelos serviços essenciais da população. Em síntese, a maioria da população
quer um Estado forte com maior proteção social.
Seção 12.10
O caráter individualista e pouco solidário do brasileiro
O Informe do Latinobarômetro 2007, mediante um estudo realizado em 18 países da
América Latina, revelou que, entre 2003 e 2007, o desempenho econômico e social dos lati-
no-americanos tem melhorado nos últimos anos. Houve uma redução da pobreza, diminui-
ção do desemprego, melhor distribuição de renda, redução da inflação e um aumento no
nível de consumo da população. Por outro lado, os percentuais ligados à dimensão da soli-
dariedade têm piorado. O estudo mostra que, ao se examinar efetivamente as atitudes indi-
viduais da região, esta se situa como pouco solidária e individualista (as pessoas têm-se
ocupado apenas com seus próprios problemas e não tratam de ajudar os outros). Há uma
evidente tensão entre as atitudes coletivas e as atitudes individuais. Entre os mais solidários
encontram-se os venezuelanos e porto-riquenhos. Os chilenos, equatorianos e paraguaios
são os mais individualistas. Os brasileiros ocupam a 11ª colocação no quesito solidarieda-
de, ficando abaixo da média dos demais países do continente.
Aliás, esse caráter pouco solidário do brasileiro não chega a ser novidade. Já em mea-
dos do século passado, Oliveira Vianna (1955) havia percebido tal característica. O autor
considerou o insolidarismo como o traço mais marcante de nossa gente, razão pela qual
defendia o papel coativo e educador do Estado na formação do que ele chamava de um
comportamento culturológico, capaz de sobrepor-se ao espírito insolidarista. Vianna escre-
veu Instituições políticas brasileiras (1955), no qual efetuou, na segunda parte, intitulada
Morfologia do Estado, um estudo pertinente sobre o significado sociológico do antiurbanismo
colonial (gênese do espírito insolidarista).
205
TEORIA POLÍTICA
Para o autor, o espírito insolidarista tem sua origem nos primórdios da “colonização”.
Dessa maneira criou-se, no Brasil, o homo colonialis, tendo como característica fortes traços
de individualismo e desconfiança: “um amante da solidão, do deserto, rústico e antiurbano”.
Na questão do trabalho o homem brasileiro, comparado com outros homens do mundo,
caracterizou-se pelo particularismo e individualismo: “O trabalho agrícola, em nosso país –
ao contrário do que aconteceu no mundo europeu – sempre foi essencialmente particularista
e individualista: centrifugava o homem e o impelia para o isolamento e para o sertão” (1955,
p. 151). Não houve a formação da solidariedade social, hábitos de cooperação e de colabo-
ração, nem mesmo espírito público. O que houve, na verdade, foi uma solidariedade social
negativa. Em relação a outros povos latino-americanos, e também na formação social e
econômica, o brasileiro é, segundo Vianna, essencialmente individualista, não necessita da
ajuda comunitária e vive de forma isolada. Estas manifestações têm raiz na tradição cultu-
ral. O que existe, no Brasil, é apenas uma solidariedade parental, isto é, desde que se man-
tenham os interesses fechados entre as famílias dominantes: “Essa solidariedade interfamiliar
e clânica é, assim, peculiar e exclusiva à classe senhorial” (p. 272).
No âmbito do comportamento político-partidário percebe-se, igualmente, a carência
de motivações coletivas. Além disso, são muitas as citações em que Oliveira Vianna queixa-
se da inexistência da cooperação do povo do Brasil, da sua escassa participação na vida
pública, que se mantém desde o Império até a República e, porque não dizer, até os nossos
dias. Por fim, o pioneirismo dos estudos de Oliveira Vianna, mais os dados do Informe do
Latinobarômetro 2007, evidenciam que práticas individualistas e insolidárias persistem nas
relações interpessoais dos brasileiros. Sem a dimensão da solidariedade, do civismo e do
espírito público, o projeto da construção de um Estado-nação estará sendo novamente adia-
do, ou, na pior das hipóteses, suplantado.
Seção 12.11
O Capital Social: um ingrediente a ser considerado
A aplicabilidade das políticas neoliberais globalizantes trouxe relações verticais auto-
ritárias, impostas pelas leis do mercado, que obtiveram crescimento econômico pouco signi-
ficativos e, conseqüentemente, levaram a um agravamento dos problemas sociais em boa
TEORIA POLÍTICA
206
parte dos países latino-americanos. Como resposta, suscitou a criação e o fortalecimento de
antigos e novos movimentos sociais contestatórios, que passam a utilizar os benefícios do
capital social, proliferando relações horizontais de confiança mútua, redes de cooperação,
associativismo e voluntarismo. Desta maneira, o capital social tem sido um instrumento
eficiente para se contrapor à hegemonia da política econômica e, aos poucos, indicar novas
relações sociais que direcionam para um novo modo de agir, mais solidário e participativo,
fortalecendo a sociedade civil e o processo democrático.
Ao mesmo tempo que se constata uma desilusão com o desempenho da democracia,
bem como um elevado descrédito e desconfiança dos cidadãos diante do desempenho dos
governantes e instituições políticas, nada melhor que, por meio do capital social, se possa
pensar estratégias que recuperem a credibilidade das instituições ante as demandas e exi-
gências dos cidadãos contribuintes. Nesse sentido, há uma conclusão geral, aceita no meio
acadêmico, de que a consolidação e solidez da democracia de um país dependem de uma
sociedade civil dinâmica e participativa, orientada para a valorização das normas democrá-
ticas, baseada na ética, na moral e nos costumes. Como afirma Baquero (2006), o capital
social, diante da crise por que passam as instituições democráticas, surge como um bem
público capaz de gerar um novo contrato social, baseado na cooperação recíproca, solidária
e coletiva.
O debate em torno do capital social não é propriamente novo nas Ciências Sociais.
Teóricos, como Adam Smith, Tocqueville e Coleman, já haviam sugerido que, quanto maior
a participação dos indivíduos em associações comunitárias, com a valorização das normas e
regras democráticas, maior seria a contribuição positiva para o funcionamento e consolida-
ção da democracia. É, no entanto, com a obra Making democracy work: civic traditions in
Modern Italy (1993), de autoria do cientista político norte-americano Robert Putnam, que o
conceito ganha notoriedade no meio acadêmico. Putnam investigou, por mais de 20 anos,
as instituições públicas e a diferença do funcionamento do sistema democrático italiano. Os
resultados evidenciaram que, em algumas regiões (Norte), foi possível o bom funcionamen-
to da democracia; em outras (Sul) não se evidenciou o mesmo sucesso em razão justamente
do sentimento de solidariedade e do engajamento em associações comunitárias no primeiro
caso e sua ausência no segundo.
207
TEORIA POLÍTICA
Por fim, é importante mencionar que, nos últimos anos, a temática do capital social
tem evoluído para um nível de acalorados debates entre os teóricos das Ciências Sociais:
alguns o têm empregado como instrumento para suas pesquisas, outros se empenham na
crítica e na contestação do conceito. O certo é que a análise do capital social continuará
sendo, por um bom tempo, uma inspiração teórica entre os cientistas sociais (para o bem e
para o mal).
Esta Unidade final faz uma análise crítica da política brasileira. Ela está situada no
fim do livro para que o leitor, acompanhando o quadro político brasileiro, pudesse refletir
sobre como as teorias políticas das Unidades precedentes podem explicar (se puderem) tal
quadro. Depois de ter lido uma introdução à história do pensamento político, com quais
“olhos” o leitor percebe a realidade política brasileira atual? É possível aplicar as teorias
analisadas para explicar o caso brasileiro? Ou os pensadores e teorias nada têm de relevante
para nossa realidade?
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