curso ensino religioso · os a ores alberto calil elias junior. possui graduação...
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Curso ENSINO RELIGIOSO
Disciplina
MATRIZES RELIGIOSAS NA
CULTURA BRASILEIRA
Curso ENSINO RELIGIOSO
Disciplina
MATRIZES RELIGIOSAS NA CULTURA BRASILEIRA
Alberto CALIL Élcio SANT’ANNA
Hauley VAILIN Nólia RAMOS
Alessandro Rodrigues ROCHA
www.avm.edu.br
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ALBERTO CALIL ELIAS JUNIOR. Possui graduação em
Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal
Fluminense (1993), mestrado (2004) e doutorado (2009) em
Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Professor Adjunto do Departamento de Estudos Biblioteconômicos
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Tem experiência nas áreas de Antropologia e Biblioteconomia,
principalmente nos seguintes temas: Fontes de Informação,
Bibliografia, Web 2.0, Novas Tecnologias da Informação,
Antropologia da Religião e Antropologia do Ciberespaço.
Atualmente é coordenador do curso de Pós-Graduação latu-sensu
em Organização do Conhecimento para Recuperação da
Informação. Membro da Câmara de Pesquisa da UNIRIO
Oi, eu sou o ALESSANDRO RODRIGUES ROCHA. Tenho formação
em teologia (CES/JF) e filosofia (UCP), sou mestre doutor em
Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Tenho atuado como professor de Teologia e Filosofia, conduzido
por uma preocupação central com o diálogo interdisciplinar. Minha
tentativa tem sido propor uma abordagem metodológica capaz de
superar a desistoricização para a qual o discurso teológico tem
caminhado.
Olá, meu nome é NÓLIA RAMOS. Sou mestre pela UMESP –
Universidade Metodista de São Paulo. Concluí meu mestrado no
ano de 2008, desenvolvendo uma pesquisa na área de Ciências
Sociais e Religião. Sou graduada em Pedagogia (2003), e em
Teologia (1997), o que me habilitou a lecionar em instituições
livres e cursos populares de Teologia. História, Dogmática e
Movimentos Sociais são algumas das temáticas que ensino.
Participo do grupo de pesquisa Religião e Periferia, vinculado à
UMESP, que reflete questões próprias da realidade urbana e as
práticas religiosas no contexto da periferia das cidades.
HAULEY SILVA VALIM. Possui graduação em Teologia - Seminário
Teológico Batista do Sul do Brasil (2004), graduação em Ciências
Sociais pelo Instituto de Humanidades da Universidade Cândido
Mendes (2007) e mestrado em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo (2008). É pesquisador
associado ao Grupo de Estudos de Gênero e Religião
Mandrágora/NETMAL da Universidade Metodista de São Paulo -
UMESP. Atualmente faz parte da equipe multidisciplinar da
Ambiental Norte/ Instituto Arthur Tupinambá de Arqueologia e
Etnologia. Tem experiência na área de Sociologia e Antropologia,
atuando principalmente nos seguintes temas: sociedade e meio
ambiente.
Oi, eu sou o ELCIO SANT’ANNA. Sou mestre em Teologia pelo
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e em Ciências da
Religião pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo.
Tenho participado de diversos congressos brasileiros e
internacionais, onde venho abordando aproximações e iniciativas
interdisciplinares da pesquisa relativas à religião e literatura do
mundo bíblico. Ultimamente tenho estudado o perfil pluralista dos
cultos do Israel antigo e Oriente Médio. Desde 1988, leciono na
área de Bíblia em instituições de cunho confessional, livres
Su
mário
07 Apresentação
09 Aula 1
Religião e periferia
37 Aula 2
Candomblé
63 Aula 3
Espiritismo
95 Aula 4
Devoções populares
131
Aula 5
Novas configurações na religiosidade cristã brasileira
159
AV1 Estudo dirigido da disciplina
162
AV2
Trabalho acadêmico de aprofundamento
163 Referências bibliográficas
Matrizes Religiosas na
Cultura Brasileira
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ão
No caderno de Matrizes Religiosas na Cultura Brasileira, você
encontrará cinco aulas: Na primeira, você conhecerá a dinâmica
da religião nas periferias das metrópoles; na segunda terá uma
introdução às religiões afro-brasileiras, com ênfase maior no
Candomblé; na terceira aula será abordado o Espiritismo; logo
após, na quinta aula, estudaremos o mundo das devoções
populares; por fim, na quinta aula será abordado o universo dos
novos movimentos religiosos no Brasil.
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Este caderno de estudos tem como objetivo:
Perceber a importância do ensino religioso para a complexidade
da religião nas metrópoles e a tensão entre zonas urbanas e
periféricas;
Analisar a prática religiosa na periferia social, econômica e
cultural;
Discutir com propriedade a origem e o desenvolvimento do
candomblé, bem como suas principais características.
Compreender a dinâmica religiosa e social que ocorre ao
entorno dessa religião tão brasileira e ao mesmo tempo tão
desconhecida e, por isso mesmo, alvo de tantos preconceitos.
Religião e Periferia
Nólia Ramos
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ão
Nesta primeira aula, analisaremos o campo de atuação do ensino
religioso e sua dinâmica nas zonas metropolitanas, observando o
descompasso sociocultural entre centro e periferia, permeados
pela desigualdade social, trânsito, identidade e inventividade
religiosa. Para tanto, definiremos brevemente Religião e Periferia;
compreenderemos como o campo religioso difere e os conflitos
entre centro e periferia; analisaremos como a segregação espacial
incita à participação nos movimentos religiosos que promovam a
inclusão social.
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Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja
capaz de:
Analisar a prática religiosa na periferia social, econômica e
cultural;
Compreender a dinâmica socioeconômica e religiosa que torna
tensa a relação entre centros e periferias;
Educar para políticas de inclusão social e tolerância às nossas
matrizes culturais religiosas.
Entrar em contato com a riqueza da cultura popular.
Conhecer a diversidade religiosa no Brasil e a dinâmica do
surgimento de novas expressões e movimentos religiosos ainda
nos dias atuais.
Aula 1| Religião e periferia 10
Religião e periferia
Procuremos todos aprender o caminho
do diálogo na verdade e a união em
promover os valores da justiça e da
liberdade.
D. Luciano Mendes de Almeida
Iniciamos o curso de matrizes religiosas na
cultura brasileira com o propósito de conhecermos a
realidade social em que vivemos e, assim,
compreendermos melhor o campo de atuação com o
qual nos envolveremos. Para tanto, precisamos nos
aproximar do sujeito histórico que está imbuído de
significado do ponto de vista tradicional e oficial da
religião, como também adapta a tradição às devoções
da religiosidade popular, influenciado pelas matrizes
culturais.
Se desejamos adentrar o pensamento do nosso
público, necessitamos compreender seus anseios e
obstáculos ocasionados pela delimitação geográfica ou
mesmo segregacional. Em princípio, este estudo parece
apresentar teorias do mundo moderno, contudo, nos
incita ao envolvimento com a realidade religiosa e
político-social das metrópoles nas quais atuamos. A
paixão do educador por seu ofício promove no aluno o
desejo de entrar por um mundo desconhecido, guiado
por seu mestre.
O campo religioso brasileiro tem sofrido
transformações profundas desde o início do século XX.
Embora muitos cientistas acreditassem que o termo
religião estaria em desuso no terceiro milênio, o que
podemos observar é que, especialmente nos últimos 30
anos, essas transformações interferem na dinâmica
social e cultural no campo religioso.
As matrizes religiosas brasileiras com raízes
portuguesa, indígenas e africanas possuem uma
Importante
Com este curso queremos que você compreenda que as periferias urbanas, embora com características distintas dos centros das grandes metrópoles, reivindicam os direitos à inclusão social por meio de movimentos e associações religiosas.
Aula 1| Religião e periferia 11
variedade de símbolos incorporados aos novos
movimentos religiosos como, por exemplo, o
neopentecostalismo que, embora com raízes no
protestantismo de missão, é autônomo e distinto e tem
transformado o panorama religioso por exigir
exclusividade e comprometimento com a comunidade
de fé ou a irmandade que sustenta suas crenças.
http://christinaantunesfreitas.blogspot.com/2009_10_0
1_archive.html
O PROTESTANTISMO NO BRASIL
O protestantismo histórico surge no Brasil de duas
formas:
Protestantismo de imigração: se estabelece aqui na
primeira metade do século XIX, com a chegada dos
imigrantes alemães luteranos.
Protestantismo de missão: compreende
especialmente os missionários norte-americanos
chegados a partir da segunda metade do século XIX
com o objetivo de conquistar adeptos. São eles os
presbiterianos, batistas, metodistas e episcopais.
Segundo o IBGE (2000), com exceção dos batistas,
todos estão estagnados ou em declínio.
Já no século XX, por uma dissidência do
protestantismo de missão, nasce nos EUA o
Pentecostalismo que chega ao Brasil em 1910. São
eles a Congregação Cristã, a Assembleia de Deus e
o Evangelho Quadrangular.
A partir da década de setenta do século XX, surge o
Neopentecostalismo, caracterizado por igrejas locais
independentes, fundadas por líderes autônomos.
Destacam-se a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus.
Aula 1| Religião e periferia 12
Com essas transformações, verificamos um
descompasso nos bairros centrais da cidade, em
consequência do progresso do capitalismo
industrializado, da modernidade, do crescimento
urbano e do agressivo processo de exclusão social.
A constituição e sobrevivência das instituições
religiosas na periferia urbana propiciam transformações
das tradições religiosas e, portanto, o distanciamento
ou a recriação das tradições de origem e do espaço da
religião na sociedade contemporânea.
Para termos um panorama do nosso curso,
veremos a seguir breves referências dos termos religião
e periferia, para a compreensão de sua inter-relação e
do processo de secularização na modernidade.
Religião
A Religião tem um significado relevante na vida
da maioria das pessoas. A necessidade de realização e
a compreensão do sentido da vida incitam o ser
humano à busca da transcendência.
O ser humano é diverso. E a diversidade
religiosa existe entre religiões distintas, como judeus,
cristãos, budistas, muçulmanos, candomblé e outras.
Mas há expressões diferentes dentro de uma mesma
religião; como no Cristianismo, o Protestantismo e o
Catolicismo ou, ainda, no Catolicismo, a Renovação
Carismática e a Teologia da Libertação. A liberdade e a
tolerância ou o diálogo inter-religioso são relevantes
para que o pluralismo religioso seja considerado.
Aula 1| Religião e periferia 13
Periferia
Por periferia, entendemos um espaço físico,
não necessariamente distante dos centros, mas carente
de investimentos públicos e privados, como moradia,
saneamento básico, segurança e alto índice de
crescimento demográfico, gerando maior
vulnerabilidade social e acesso precário à cidadania.
As grandes cidades refletem ainda uma
realidade crítica, na qual os menos favorecidos são
segregados e condicionados nas periferias, atendidos
de forma ineficaz pelo poder civil, como também pelos
movimentos religiosos.
Como dissemos, a religião dá sentido à vida do
indivíduo crente. Mas há diferentes concepções de fé
entre indivíduos dos centros e das periferias?
LEITURA A
O termo “religião” origina-se da palavra latina
religio, cujo sentido primeiro indicava um conjunto
de regras, observâncias, advertências e interdições,
sem fazer referência a divindades, rituais, mitos ou
quaisquer outros tipos de manifestação que,
contemporaneamente, entendemos como religiosas.
Assim, o conceito “religião” foi construído histórica e
culturalmente no Ocidente, adquirindo um sentido
ligado à tradição cristã. O vocábulo “religião” -
nascido como produto histórico de nossa cultura
ocidental e sujeito a alterações ao longo do tempo –
não possui um significado original ou absoluto que
poderíamos reencontrar. Ao contrário, somos nós,
com finalidades científicas, que conferimos sentido
ao conceito. Tal conceituação não é arbitrária: deve
poder ser aplicada a conjuntos reais de fenômenos
históricos suscetíveis de corresponder ao vocábulo
“religião”, extraído da linguagem corrente e
introduzido como termo técnico. A definição mais
aceita pelos estudiosos, para efeitos de organização
e análise, tem sido a seguinte: religião é um sistema
comum de crenças e práticas relativas a seres
sobre-humanos dentro de universos históricos e
culturais específicos.
Fonte: SILVA, Elaine Mura. Revista de Estudos da
Religião – PUC - Rever: http://www.pucsp.br/rever/rv2_2004/p_silva.pdf
Importante
Redes sociais, segregação, migração, vulnerabilidade social, trânsito, identidade e inventividade religiosa são termos característicos na tensão entre centro e periferia urbana.
Aula 1| Religião e periferia 14
Como trataremos mais adiante, é evidente a
crise de algumas religiões. No entanto, a religiosidade
emerge mais intensamente nas periferias como
instrumento de associação e legitimação de seus
membros. A sociedade determina o status pelos bens
de consumo. Para a periferia desprovida destes bens, o
mundo moderno se torna injusto aos olhos da
economia. É necessário um subterfúgio que torne
possível a sua sobrevivência.
A secularização é um dos processos da
modernização, na qual os indivíduos são adaptados aos
tempos modernos. Isto é, o processo de emancipação
da vida cultural (política, ciência, economia, arte e
costumes) da tutela religiosa. É dentro desta acepção
que Weber fala de “desencantamento do mundo”,
teoria que abordaremos posteriormente. Assim, nos
tornamos secularizados e hedonistas. Relativizamos a
religião para que se ajuste ao nosso desejo e nos
tornamos subjetivos, individualistas. Neste caso, o
compromisso social, por exemplo, dá lugar à realização
pessoal.
Neste sentido, a secularização promove tanto o
afastamento da religião, para uma população
economicamente ativa, que substitui o SER pelo TER,
como também agrega semelhantes na esperança da
superação de suas dificuldades, que não serão
condições de TER, precisa SER aceito pela comunidade.
Um terceiro grupo vale-se das promessas de Deus para
prosperar e mudar sua condição social.
A Geografia sociopolítica e econômica passa pelo
processo de urbanização. Nos centros se concentram o
poder político e econômico, enquanto as periferias são
desprovidas de itens básicos de subsistência, além da
insuficiência do poder público. A periferia é o espaço
dos desempregados, idosos, órfãos, mendigos,
Dica do professor
Glossário Secularização:
Somos sujeitos às leis civis e dispensados dos votos religiosos.
Hedonismo: Doutrina filosófica que faz do prazer o objeto da vida.
Relativismo: Doutrina filosófica que admite que todo o conhecimento é relativo.
Subjetivismo: relativo ao sujeito que se preocupa consigo.
Aula 1| Religião e periferia 15
enfermos, entre tantos marginalizados. Mais do que
excluídos, são aqueles ignorados que não foram
integrados pela cidade.
Segundo Milton Santos, a urbanização se deu de
forma tão concentrada que cria condição territorial e
política de mudança. Desta forma, os pobres, a grande
maioria, reinventam formas de resistência:
Estamos convencidos de que a
mudança histórica em perspectiva
provirá de um movimento de baixo
para cima, tendo como atores
principais os países subdesenvolvidos
e não os países ricos; os deserdados e
os pobres e não os opulentos e outras
classes obesas; o indivíduo liberado
partícipe das novas massas e não o
homem acorrentado; o pensamento
livre e não o discurso único. Os pobres
não se entregam e descobrem a cada
dia formas inéditas de trabalho e de
luta; a semente do entendimento já
está plantada e o passo seguinte é o
seu florescimento em atitudes de
inconformidade e, talvez, rebeldia.
SANTOS, Milton. Por uma outra
globalização - do pensamento único à
consciência universal. São Paulo,
Record, 2000.
Essa resistência pode ser observada na forma
como os pobres recriam o ambiente em que vivem. Os
moradores da periferia se organizam na promoção da
integração da comunidade, seja em ONGs
(organizações não governamentais), bem como na
criação de meios de lazer, como as rodas de samba ou
bailes funk. Nas favelas, por exemplo, são os líderes da
comunidade ou o crime organizado que cumprem a
função de ordenamento e segurança, papel este que
deveria ser cumprido pelo poder público.
Aula 1| Religião e periferia 16
Pierre Bourdieu discorre sobre o poder simbólico
e as estratégias do indivíduo na legitimação de defesa
de seu território. Enquanto nos centros uma elite luta
pela dominação territorial e simbólica, pela manutenção
do seu espaço político-geográfico, a periferia - privada
do capital - se organiza pela manutenção dos princípios
étnicos e culturais:
Se a região não existisse como espaço
estigmatizado, como província definida
pela distância econômica e social (e
não geográfica) em relação ao centro,
quer dizer, pela privação do capital
(material e simbólico) que a capital
concentra, não teria que reivindicar a
existência é porque existe como
unidade negativamente definida pela
dominação simbólica e econômica que
alguns dos que nela participam podem
ser levados a lutar (e com probabilidades
MILTON SANTOS
Um dos mais destacados geógrafos, Milton Santos
(1926-2001) nasceu na Bahia. Da classe média,
formou-se em direito, tornou-se professor e editor
de jornais. Com o golpe militar de 1964, foi preso e
depois exilado. Em 1977, retornou para o Brasil,
trazendo já completa a obra "Por uma Geografia
Nova". Trabalhou em universidades na França, Peru,
Venezuela, EUA e Brasil. Recebeu o Prêmio Vautrim
Lud, considerado "o Nobel da geografia" e foi
agraciado com inúmeras honrarias, títulos e
medalhas, legando obras e atividades que inovaram
os estudos geográficos sobre globalização e
urbanização.
Fonte:
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u317.
jhtm
Dica do professor
Poder Simbólico Poder simbólico é um poder capaz de se impor como legítimo, dissimulando a força que há em seu
fundamento e só se exerce se for conhecido.
Aula 1| Religião e periferia 17
objetivas de ganho) para alterarem a
sua definição, para inverterem o
sentido e o valor das características
estigmatizadas, e que a revolta contra
a dominação em todos os seus
aspectos – até mesmo econômicos –
assume a forma de reivindicação
regionalista. (...) Falar de um espaço
social é dizer que não se pode juntar
uma qualquer pessoa com outra
pessoa qualquer, descurando as
diferenças fundamentais, sobretudo
econômicas e culturais. Mas isso não
exclui nunca completamente que se
possam organizar os agentes segundo
outros princípios de divisão – étnicos,
nacionais etc. (...) Entre o espaço
geográfico e o espaço social, (...)
nunca coincidem completamente; no
entanto, muitas diferenças que,
geralmente, se associam ao efeito do
espaço geográfico, por exemplo, à
oposição entre o centro e a periferia,
são o efeito da distância no espaço
social, quer dizer, da distribuição
desigual das diferentes espécies de
capital no espaço geográfico.
Fonte: BOURDIEU, Pierre, O poder
simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 3ª edição, 2000
PIERRE BOURDIEU
Nascido na França (1930-2002) formou-se em
Filosofia e como professor de Sociologia tornou-se
um dos maiores e mais influentes intelectuais da
atualidade na área das Ciências Sociais,
direcionando seu estudo para a análise do poder
simbólico.
Fonte:
http://www.editorazouk.com.br/trecho.asp?tipo=10&cod=66&rt=0
Aula 1| Religião e periferia 18
Modernidade, sincretismo e trânsito
religioso
Aqui no Brasil, o processo de secularização
constituiu um sincretismo singular, diferindo de outros
países, nos quais ainda prevalece certa hegemonia
católica. Apesar de o Brasil ser considerado a maior
nação católica, a diversidade religiosa se tornou uma
constante. A história da religiosidade no Brasil, como
em todo o mundo, tem configurado novos perfis com o
sincretismo religioso e neste contexto, observamos
uma heterogeneidade econômica nas grandes
metrópoles que apontam para similaridades
significativas quanto ao perfil religioso.
LEITURA B
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo
o mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas
todas. Por isso é que se carece principalmente de
religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é
que sara da loucura. No geral. Isso é que é a
salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá,
não perco ocasião de religião. Aproveito de todas.
Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca,
talvez não me chegue. Rezo cristão, católico,
embrenho a certo; e aceito as preces de compadre
meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas,
quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é
crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê
alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo
me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me
refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar
– o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham
que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe!
Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito
curial. E em cara de todos faço, executado. Eu não
tresmalho!
Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui
não mora, as rezas dela afamam muita virtude de
poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de
rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos
domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher
não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para
uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir
aqui, ouvi de que reza também com grandes
meremerências, vou efetuar com ela trato igual.
Quero punhado dessas, me defendendo em Deus,
reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo!
Quer saber mais?
Sincretismo Sincretismo é um sistema filosófico ou religioso que combina os princípios culturais de diversas doutrinas, com concepções heterogêneas. No Brasil, o processo de colonização contou com a procedência de diversos povos e culturas entre portuguesa, africanas e indígenas.
Aula 1| Religião e periferia 19
Conforme descreveu Guimarães Rosa, é muita
religião! E a cada dia cresce o número de
denominações religiosas.
O campo religioso é objeto de investigação nos
campos da sociologia, da antropologia, da economia, da
história e da geografia e complementados pelos dados
censitários em âmbito nacional, como os dois últimos
censos do IBGE e o Atlas da filiação religiosa e
indicadores sociais no Brasil que apontam, por
exemplo, a evasão dos fiéis da Igreja Católica.
Riobaldo Tartarana, personagem de Guimarães Rosa
em Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, 1ª edição, pp. 15-16.
GUIMARÃES ROSA
É considerado por muitos críticos o maior escritor
brasileiro da segunda metade do século 20. Em
1930, iniciou-se como médico, aos 22 anos em
Itaguara, (MG), localidade que passou a ter contato
com os elementos do sertão que serviram de
referência e inspiração para sua obra literária.
Serviu na Guerra e por várias vezes escapou da
morte. A superstição e o misticismo o
acompanhariam por toda a vida. Em maio de 1956,
publicou "Grande Sertão: Veredas", uma narrativa
épica sobre o ambiente e a gente do sertão mineiro.
Eleito membro da Academia de Letras, por
unanimidade (1963), adiou a cerimônia de posse até
1967, e faleceu três dias mais tarde na cidade do
Rio de Janeiro, aos 59 anos.
Fonte:
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u785.
jhtm
Aula 1| Religião e periferia 20
Esses dados nos mostram a diminuição da
eficácia do poder institucional religioso tradicional em
atender as exigências dos “novos fiéis”. O morador das
regiões social e economicamente periféricas não
encontra no espaço religioso tradicional a resolução de
suas necessidades.
Diversas religiões estão embasadas no plano
celeste, oferecendo melhorias ao indivíduo que sofre e
se sacrifica na vida. Entretanto, esses benefícios serão
usufruídos apenas depois de sua morte. O desejo de
realização plena na terra caracteriza o desencanto por
promessas incertas.
O sincretismo religioso talvez seja o maior
responsável em tolher os dados estatísticos referentes
a religiões de matrizes afro, como o Candomblé, pois é
comum a presença de cristãos nos terreiros e vice-
versa. Muitos, embora transitem por diversas religiões,
se declaram católicos para o censo do IBGE, como Mãe
Menininha do Gantois, um dos maiores ícones do
sincretismo religioso no país. Mãe de santo reconhecida
e respeitadíssima por sua liderança religiosa, utilizava
elementos de confissões diversas, pregando o diálogo
inter-religioso e a paz: “Deus é um só e todos podem
se unir através dele”.
MÃE MENININHA EM SEU QUARTO - SÍMBOLOS DO CATOLICISMO E DO CANDOMBLÉ
Aula 1| Religião e periferia 21
Na modernidade, os fiéis agem como
consumidores que utilizam a religião para seu conforto
e prazer espiritual e material. Para tanto, transitam por
diversos movimentos religiosos, reinventando aspectos
desejados ou permanecendo um tempo maior nas que
LEITURA C
Costumava acordar às 5 da manhã (...). Antes
mesmo de escovar os dentes, abria os búzios e
jogava para ver se estava bem na casa, com os
filhos e amigos (...). Rezava em ioruba para os
orixás e, em seguida, o terço – sempre de manhã e
antes de dormir. (...) Costumava também ouvir pelo
rádio um programa diário “dos crentes”. (...) Mesmo
nascida numa nobre família de ialorixás, era uma
mulher católica. A ponto de carregar no peito, junto
às contas de santo, o escapulário do Carmo. Aos
pesquisadores do IBGE declarava pertencer à
religião católica, uma atitude de prudência porque,
entre os praticantes do Candomblé, era comum não
se declarar a religião, consequência de anos de
discriminação. Foi devota de Nossa Senhora, São
Jerônimo, Santa Escolástica, São Jorge e outros
santos. Dedicava-lhes respeito e devoção, como
disse certa vez:
“Tenho um pouco da religião católica porque
encontrei na minha família muita crença no
catolicismo, fiz primeira comunhão, ouvi missa...”
De fato, Menininha se dizia Católica Apostólica
Romana. Na parede do seu quarto havia vários
terços pendurados.
“Para mim, todas as religiões são verdadeiras, agora
cada um na sua. Não podemos dizer que a religião
católica é errada. A protestante eu não posso dizer
se é boa ou ruim porque eu não sei o que é, mas
não desfaço. De qualquer forma, essa história de
aproximação das religiões já devia ter acontecido há
mais tempo, porque o Deus é um só e todos podem
se unir através dele. Antigamente, as pessoas
pensavam tanta coisa ruim do Candomblé. Mas ele é
bom e não faz mal a ninguém. Os padres deveriam
entender isso. Se eu puder ajudar de alguma forma
pela união das seitas, ajudo, estou disposta. Se
precisarem de minha presença, me levem, eu vou,
essas poucas palavras eu direi.”
Fonte: NÓBREGA, Cida e ECHEVERRIA, Regina. Mãe
Menininha do Gantois: uma biografia. Rio de
Janeiro, Editora Ediouro Publicações, 2006. pp. 112-
113
Aula 1| Religião e periferia 22
o satisfaçam. A dupla filiação religiosa como, por
exemplo, uma mulher cristã, eventualmente, frequenta
um terreiro para desamarrar seu sucesso, desfazer um
trabalho ou reconquistar seu companheiro. O trânsito
religioso não é exclusividade da periferia, mas é nela
que o indivíduo tem mais liberdade, pois as religiões
com práticas tradicionais têm um controle menor por
parte das lideranças religiosas, especialmente pelo
difícil acesso à região. Já nos centros, locais em que é
mais fácil o controle do fiel, este é inibido à participação
em outros movimentos religiosos.
Soberano desde muitos séculos, o catolicismo
sofreu forte influência da diversidade religiosa em
tempos de globalização. Em 2003, os bispos católicos,
preocupados com o declínio da religião, elaboraram um
documento que apontou as causas da crise e sugerindo
TRÂNSITO RELIGIOSO
Até o início do século XX, 99% dos brasileiros se
diziam católicos. Houve uma queda para 83,3% em
1991 e para 73,89% em 2000. Dos católicos
declarados, há uma perda de 9,41 pontos
percentuais em menos de 10 anos. Pautado no
recenseamento do IBGE, o Atlas da filiação religiosa
indicou um fator que provocou a crise da Igreja
Católica na atualidade: o crescimento das igrejas
evangélicas pentecostais de 6% para 10,6% e para
o grupo dos "sem religião", que subiu de 4,7% para
7,4% da população. O crescimento dos “sem
religião” não traduz o crescimento do ateísmo, mas
o declínio das instituições tradicionais, dando espaço
para uma espiritualidade não institucionalizada
como, por exemplo, os adeptos do esoterismo e da
nova era. Na área rural, as religiões tradicionais,
com matrizes europeias se mantêm fortes. No
campo, 84,26% da população se declara católica,
enquanto 10,25% são evangélicas. Os dados do
IBGE demonstram clara desigualdade sócio-
econômica até no interior de bairros de uma mesma
cidade. Com base nesta premissa, observamos
também a transformação religiosa que ocorreu em
todo o mundo.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Site:
www.ibge.gov.br acesso em 23 de setembro de
2009
Aula 1| Religião e periferia 23
estratégias missionárias de ação. Esse Plano de Ação
Missionária Permanente teve por finalidade responder
aos desafios suscitados pelo recente mapa religioso.
Com isso, concluíram que: “Existem
necessidades religiosas que não estão recebendo
respostas adequadas por parte da ação evangelizadora
e pastoral, mais ainda nas periferias, onde a diminuição
do número de católicos é acentuada (...) é preciso
descobrir nossos limites e criar um projeto de ação
missionária permanente...”.
Sobre o crescimento da diversificação religiosa
no Brasil, Jacob diz: “Pode-se concluir que esse
processo, que teve início nos anos 1980, está
relacionado a três elementos fundamentais da dinâmica
da ocupação do território brasileiro: a preexistência de
espaços não católicos ligados à história do
povoamento; o avanço de frentes pioneiras, onde os
pastores pentecostais encontram terreno favorável
junto a uma população migrante desenraizada; e a
urbanização acelerada que favorece o surgimento de
novas religiões, ou a difusão de religiões vindas do
exterior.”
Junto à Igreja Católica, outras confissões
religiosas de cunho mais tradicionais observam o
decrescimento de seus fiéis, ocasionado pelas
deficiências em atingir as regiões mais periféricas. Com
isso, a ação missionária abrange apenas os centros das
grandes cidades.
Já muitos dos novos e menores movimentos
religiosos em ascensão têm o diferencial de se
localizarem na periferia, facilitando a locomoção dos
seus participantes.
Dica de leitura
O Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil é um excelente instrumento de pesquisa para o estudioso das religiões, associando a religião ao quadro geográfico das transformações sociais do país. Reúne diversos mapas, tabelas, gráficos do campo religioso brasileiro. JACOB, César Romero (org). Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Rio de Janeiro: PUC; São Paulo: Loyola, 2003.
Aula 1| Religião e periferia 24
A religião e a urbanização
Se observarmos os dados estatísticos,
perceberemos que a religião sofre uma regionalização.
Esta “administração periférica da religião” tem vindo,
aliás, a tornar-se cada vez mais importante. A atividade
religiosa na periferia é controlada pelas populações
locais. Cada região ou território se diferencia das outras
por apresentar particularidades próprias. No bairro
existem moradias e lugares de trabalho, além de infra-
estrutura e pontos de relacionamento social, como
igrejas, administração, lojas. Estes locais servem como
pontos de conexão entre as mais variadas relações e
práticas sociais. Neste sentido, regionaliza-se não
somente a estrutura da vida cotidiana, mas também as
práticas religiosas e o pentecostalismo assumem
matizes próprias ficando “reféns” da criatividade
simbólica das populações periféricas.
Em setores da região Norte e Centro-Oeste do
Brasil, por exemplo, os pentecostais atingem mais de
16% da população. Já o catolicismo teve uma queda
considerável nas regiões mais pobres e periféricas.
Desde a Idade Média, o saber era reservado à
Igreja Católica. Com a urbanização, o aumento de
redes sociais favoreceu o processo de inculturação. Na
globalização, temos o acesso à informação em tempo
real, bem como o avanço tecnológico e científico. Essas
conquistas da modernidade são alternativas que
certamente contribuem para o distanciamento da
religião.
Max Weber desenvolve o conceito de
desencantamento do mundo, a desmagificação na qual
o indivíduo passa a racionalizar a religião, deixando de
ser místico e não mais atribuindo a intervenção divina
na história. Por isso, o espaço da religião é perdido ou
Importante
Você já parou para pensar: Como seriam nossas vidas sem a globalização e os avanços da modernidade, como a medicina, a eletricidade e a internet?
Aula 1| Religião e periferia 25
transferido para a ciência. A partir desta ótica, as
instituições religiosas estão agora muito mais
conectadas à ação subjetiva do indivíduo, atendendo
seus desejos pessoais ou ainda comprometidos com a
ação coletiva na sociedade.
Contudo, houve uma migração de parte dos
seguidores das instituições religiosas para organizações
com ideologias mais comprometidas com causas sócio-
políticas como, por exemplo, nos partidos políticos e
ONGs. Essa ação gerou dissidências com os
movimentos que “esperam em Deus” como o provedor
da história, crendo que religião e política não se
misturam. Esse fato pode ter ocasionado um
esvaziamento das comunidades que se mobilizavam
mais para uma ação social que religiosa.
Dica de leitura
Para conhecer um pouco mais sobre o desencantamento do Mundo e as teorias de Weber: WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo, 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1985. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 1991.2000.
DESENCANTAMENTO DO MUNDO OU
DESMAGIFICAÇÃO
Em seu estudo sobre Sociologia da Religião, Max
Weber analisa a evolução da magia (coerção divina)
para a religião (serviço divino), dando espaço para a
ética religiosa.
O desencantamento do mundo pela religião confere
sentido ao mundo – é a desmagificação, o processo
no qual utilizamos a ciência e a racionalização para a
compreensão do mundo. O ser religioso, dotado de
ética, renuncia compreensões mágicas e utiliza a
ciência para a compreensão dos fenômenos antes
explicados pela teologia. Neste caso, Religião e
Ciência se complementam. A tempestade e os
trovões, por exemplo, não são sinais da fúria dos
deuses, mas um fenômeno natural explicado
cientificamente.
Já o desencantamento do mundo pela natureza – a
desnaturalização, relega a religião ao irracional.
Esse processo se aplica quando o cientista relega a participação de Deus na história.
Aula 1| Religião e periferia 26
Periferia e segregação
Entre os moradores de regiões periféricas, a
reflexão dos problemas sociais tem sido menos
importante que a aceitação social. Por isso, o
movimento mais crescente entre estes é o
neopentecostalismo, profundamente subjetivo e
intimista, que incita à autoajuda e envolve seus fiéis
em soluções imediatas para as angústias e os
problemas reais e cotidianos. Os segregados são
acolhidos e Deus fala com cada um, pessoalmente.
Ainda na periferia, o Atlas da Filiação Religiosa
observa o perfil dos fiéis: em sua maioria, são
mulheres, trabalhadores informais, não brancos, com
renda e escolaridade menor que nos centros.
Segundo o IBGE, cidades onde centro e periferia
se aproximam ou mesmo se fundem, como é o caso do
Rio de Janeiro, são os locais mais propícios para o
MAXIMILLIAN CARL EMIL WEBER
Nasceu na Alemanha (1864-1920). Jurista e
economista, é considerado, juntamente com Karl
Marx e Émile Durkheim, um dos modernos
fundadores da Sociologia. É conhecido, sobretudo,
pelo seu trabalho sobre a Sociologia da Religião. Seu
pai, protestante, era uma figura autocrata. Sua mãe
uma calvinista moderada. Weber escreveu a Ética
protestante e o espírito do Capitalismo, um ensaio
fundamental sobre as religiões e a afluência dos
seus seguidores.
Fonte:http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u508.jhtm
Aula 1| Religião e periferia 27
pluralismo religioso, comportando entre católicos
tradicionais, pentecostais e a maior população de
religiões afro-brasileiras.
Outro ponto a se analisar é que o paradigma de
religião única é insuficiente, considerando a constante
migração, principalmente de católicos. Estes, por sua
vez, visam a liberdade, não se satisfazem com a
imposição romana tradicional em temas como o aborto,
o divórcio e métodos contraceptivos. As formas de
controle moral-tradicional são reduzidas, imprimindo
uma pseudoautonomia dando lugar a outras formas de
controle social, como o consumismo e a televisão. O
indivíduo que se sente coagido pela religião desobedece
a determinadas decisões de sua igreja, mas nem por
isso abandona sua fé. Aceita o que lhe parece razoável
e descarta o que discorda. Isso enfraquece as matrizes
religiosas. Contudo, força cada religião a refletir sobre
sua missão efetiva, seus aspectos de doutrinação e a
dupla pertença religiosa.
EXERCÍCIO 1
Descreva o que significa desencantamento do mundo e
desmagificação.
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Os movimentos religiosos das grandes
metrópoles
As metrópoles se caracterizam por uma
realidade dinâmica, em constante mudança, com a
inter-relação de grupos sociais distintos devido à
Dica de filme
Para aprofundamento do tema, o filme “Fé” é um documentário sobre a religião e a fé no Brasil de hoje. Apresenta a importância da fé para uma significante parcela do povo brasileiro. FÉ, Documentário, 1999, 91 minutos, Direção: Ricardo Dias, Produção: Superfilmes.
Aula 1| Religião e periferia 28
aproximação entre centro e periferia, bem como a
segregação do pobre, condicionado à periferia.
O indivíduo marginalizado recorre à cultura
regional ou adere a organizações não governamentais
ou movimentos religiosos em busca de aceitação.
As grandes cidades possuem melhores recursos,
seja como meios de transporte, acesso à saúde,
proximidade ao comércio e lazer. E o processo de
inculturação se dá de forma mais eficiente do que nas
regiões do interior, pelo contato com uma pluralidade
de culturas.
A pobreza não é um fator para a adesão
religiosa. Mas para aqueles que estão inseridos na
sociedade de consumo, há opções materiais que os
saciem. Já os pobres precisam de um sentido de
inserção social que dificilmente se dará no capitalismo.
A periferia pode ser um espaço de promoção da
cidadania, de mobilização por melhores condições de
vida e fomento de solidariedade, reconhecendo as
habilidades de cada indivíduo.
Quanto mais alto o grau de formação e renda e
poder de consumo, menor a busca de participação em
instituição religiosa. A religião acaba sendo substituída
por centros culturais. Isso identifica que um indivíduo,
com maiores condições de formação acadêmica e
cultural, define para si a capacidade de realização e
prosperidade. Já entre alguns grupos religiosos de
segregados, a busca espiritual pela solução dos
problemas torna-se uma estratégia de atribuir às
divindades sua prosperidade.
A presença dos diversos templos de
denominação cristãos, centros espíritas e terreiros são
encontrados nas favelas e periferias, inúmeros grupos
Importante
A família é o primeiro e um dos mais fortes elos de socialização. Durante muito tempo foi responsável pela manutenção e reprodução da religião. No entanto, a adesão a novos valores religiosos tem fragmentado esse papel no qual a afiliação religiosa é menos importante que o grupo ideológico a que o indivíduo pertence.
Aula 1| Religião e periferia 29
religiosos de rap religioso, liturgia e terreiros, com
diferentes expressões religiosas.
Há uma grande concentração de pequenas
igrejas evangélicas nas periferias, facilitando a
locomoção dos indivíduos que preferem a proximidade
de suas residências. Já nas religiões orientais, bem
como entre os mais ricos, a pertença à tradição
religiosa familiar persiste.
A migração religiosa na periferia parece mais
intensa que nos grandes centros. Um indício é a
estratégia dos líderes religiosos que são mais incisivos
no papel de “pastores” que pastoreiam suas ovelhas. É
certo que os fiéis de hoje desejam essa presença mais
marcante da religião. Tanto que religiões como o
Islamismo e o Cristianismo da Assembleia de Deus e
Congregação Cristã, vistos como mais severas do ponto
de vista da liberalização de costumes, são religiões em
ascendência.
Há os movimentos religiosos que ultrapassam as
barreiras da piedade e religiosidade popular e se
inserem nos meios periféricos onde os pobres e
excluídos se articulam comprometidos com a justiça
social em instituições sociais e populares, em favor de
utopias sociais e políticas em luta pelos direitos
humanos. É esta forma de religião popular que motivou
os pobres e movimentos populares na busca de
mudança social. As CEBs (Comunidades Eclesiais de
Base), por exemplo, foram comunidades católicas que
impulsionaram a luta contra a ditadura militar e
especialmente na reivindicação de melhorias para as
periferias, como água, saneamento, transporte para os
menos favorecidos.
Outra religião a ser analisada é o Islamismo, a
religião que mais cresce no mundo devido à alta taxa
Dica de leitura
Para aprofundamento sobre as matrizes religiosas da cultura negra no Brasil, leia: BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. V. 1 e 2. São Paulo, Pioneira, 1971. LOPES, Ney. Malês – o Islã negro no Brasil. In NASCIMENTO, Elisa Larkin (org), Matrizes negras e africanas no Brasil. São Paulo, Selo Negro edições, 2008.
Aula 1| Religião e periferia 30
de natalidade nos países muçulmanos. No Brasil, o Islã
tem se inserido entre os pobres das periferias das
grandes cidades.
Um dos recursos para a reversão (termo
utilizado para os muçulmanos para a conversão) dos
jovens que se tornam ativistas como resposta à
desigualdade social é o rap, um estilo musical que
inspira os segregados, constituídos basicamente de
pobres e negros a descreverem a dura realidade das
periferias e a refletirem suas histórias marcadas pela
submissão.
Seus adeptos veem na religião a recuperação de
uma identidade sequestrada pela escravidão. Eles se
organizam para diminuírem a discriminação no país.
Estes seguidores - grande parte envolvida em
organizações solidárias e em movimentos negros -
veem nos Malês e em Malcolm X modelos de
resistência a serem seguidos.
Foto: O ISLÃ NA LAJE, Carlos Soares Correia
virou Honerê Al-Amin Oadq. Ele é um dos principais
divulgadores muçulmanos do ABC paulista. Na foto, na
periferia de São Bernardo do Campo, onde vive, reza e
faz política
A REVOLTA DOS MALÊS
A história do Islamismo no Brasil se dá desde a
escravidão, com a chegada dos africanos
muçulmanos. Em 1835, ocorreu a Revolta dos
Malês, liderada por escravos urbanos. Articulados,
tornaram-se uma ameaça à segurança dos
poderosos. Os escravos foram vencidos e
dispersados - muitos foram deportados, outros
mortos e os que ficaram tiveram suas práticas
religiosas proibidas.
A expressão Malê vem de imalê, que na língua
iorubá significa muçulmano. Diferiam dos outros
negros por não beberem, não fumarem e saberem escrever.
Carlos Soares Correia
Aula 1| Religião e periferia 31
Fonte:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI25
342-15228,00-
ISLA+CRESCE+NA+PERIFERIA+DAS+CIDADES+DO+B
RASIL.html acessado em 26/12/2009.
Com o crescimento do Islã na periferia das
cidades do Brasil, jovens negros se tornam ativistas
como resposta à desigualdade social. Utilizando do rap
para refletir suas histórias marcadas pela submissão,
seus adeptos veem na religião a recuperação de uma
identidade sequestrada pela escravidão.
Dugueto Sharif Al Shabazz, um dos militantes
islâmicos, em entrevista à Revista Época (Janeiro de
2009), questiona: “Dizem que não existe raça e somos
todos brasileiros, mas qual é a cor que predomina nas
cadeias, na Febem e nas favelas? Negros”, afirma. “Não
queremos vingança, só nosso lugar numa sociedade
que ajudamos a construir. O islã não tem cor, é para
todos. Mas somos negros numa sociedade racista.
Então temos problemas à parte para resolver e nos
posicionarmos.”
O mapa da diversidade socioeconômica identifica
o pobre como quem enfrenta preconceitos por sua
situação de pobreza, desigualdade social, econômica e
na cidadania, como sua condição racial ou aparência
física, como se veste, por morar na periferia ou nas
favelas. Por ser discriminado pela sociedade é tangido
para a periferia. Não há espaço para a pobreza nos
centros comerciais. Segregado à periferia, o pobre não
encontra trabalho nem conseguirá ser incluído pela
sociedade moderna e excludente.
É difícil discernir as causas da diversidade
religiosa, tão impressionante no país. Mas, se a
sociedade consumista ignora a periferia, ela reinventa
Dica de filme
Dica de Filme Malcolm X, um dos mais carismáticos ativistas negros, teve sua infância dividida entre guetos pobres e orfanatos nos EUA. Envolvido com tráfico e furtos, reverteu-se ao Islamismo na prisão.
Passou do ódio aos brancos a defender os direitos dos negros e a pacificação das raças. Após seu assassinato, sua militância religiosa se tornou referência para os jovens, negros e pobres que se identificaram com sua história. MALCOLM X, Drama, 1992, 192 minutos. Direção: Spike Lee
Aula 1| Religião e periferia 32
meios de ser aceita, e os movimentos sociais, incluindo
as religiões, são uns dos poucos espaços onde o pobre
pode se manifestar. Para ser aceito como é, na
condição de negro, pobre, desprovido dos bens
necessários para a sua inclusão no capitalismo
consumista ou para transformar essa situação, sair da
condição de pobre e ser bem-sucedido, como determina
a Teologia da Prosperidade.
O compositor Gilberto Gil, na música Guerra
Santa, critica a manipulação, ou melhor, a
comercialização da fé.
GUERRA SANTA - GILBERTO GIL
Ele diz que tem, que tem como abrir o portão do céu
Ele promete a salvação
Ele chuta a imagem da santa, fica louco-pinel
Mas não rasga dinheiro, não
Ele diz que faz, que faz tudo isso em nome de Deus
Como um Papa da Inquisição
Nem se lembra do horror da Noite de São
Bartolomeu
Não, não lembra de nada não
Não lembra de nada, é louco
Mas não rasga dinheiro
Promete a mansão no paraíso
Contanto que você pague primeiro
Que você primeiro pague o dinheiro
Dê sua doação, e entre no céu
Levado pelo bom ladrão
Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé
Só que faz da fé profissão
Aliás, em matéria de vender paz, amor e axé
Ele não está sozinho não
Eu até compreendo os salvadores profissionais
Sua feira de ilusões
Só que o bom barraqueiro que quer vender seu
peixe em paz
Deixa o outro vender limões
Um vende limões, o outro
Vende o peixe que quer
O nome de Deus pode ser Oxalá
Jeová, Tupã, Jesus, Maomé
Maomé, Jesus, Tupã, Jeová
Oxalá e tantos mais Sons diferentes, sim, para sonhos iguais.
Aula 1| Religião e periferia 33
PARA ENTENDERMOS MELHOR
Formaram-se diversos tipos de indivíduos no
campo religioso moderno. Entre eles estão:
Os que se afastaram da religiosidade popular
mítica, abandonando um mundo de magias e
usufruindo da Ciência. Para eles, a religião
passou a ser secundária ou mesmo
desnecessária;
Outros viram na religião formas de resistência
e luta coletiva por um mundo melhor. Militam
neste grupo pobres, segregados à margem da
sociedade;
Há aqueles que encontraram em Deus o
provedor da história. Para eles, a religião se
tornou um meio de inclusão social. São
ignorados pelo mundo, mas aceitos pela
comunidade religiosa;
Um grupo que denominamos “consumidor
religioso” utiliza elementos que lhes agradem
em cada religião e monta seu perfil religioso.
Somos convidados a promover a inclusão social
dos moradores das periferias, para isso, precisamos
estar atentos às dinâmicas sociais, erradicando a
segregação. Essa é uma tarefa árdua, mas necessária!
(...) A luta em favor dos famintos e
destroçados nordestinos, vítimas não
só das secas, mas, sobretudo, da
malvadez, da gulodice, da insensatez
dos poderosos, quanto a briga em
favor dos direitos humanos, onde quer
que ela se trave. Do direito de ir e vir,
do direito de comer, de vestir, de dizer
a palavra, de amar, de escolher, de
estudar, de trabalhar. Do direito de
crer e de não crer, do direito à
segurança e à paz.
Aula 1| Religião e periferia 34
FREIRE, Paulo. Pedagogia da
Indignação: cartas pedagógicas e
outros escritos. São Paulo: UNESP,
2000
Conclusão
Na modernidade, a Religião se tornou um meio
de contestação no espaço urbano no qual o indivíduo
busca aceitação na religião ou movimento religioso que
melhor se adapte.
Há a necessidade de se distinguir os desafios do
mundo de hoje. Devemos estar abertos ao diálogo num
espaço de encontro e reconhecimento da diversidade
respeitando o diferente como indivíduo passível de
igualdade.
Na cidade, o ensino religioso é desafiado a
promover a justiça, a solidariedade e a paz. A função
do educador comunitário é de defender a vida e a
integridade de todos. A inclusão social deve ultrapassar
as fronteiras geográficas e culturais.
É na periferia que podemos ter exemplos de
pessoas que se ajudam. Com a urbanização,
multiplicaram-se as cidades e, também, as periferias. É
lá que enfrentam as questões sociais e econômicas.
Desprovidos de apoio público, as comunidades têm na
vivência da fé o exemplo que devemos seguir.
Imbuídos de tradições, crenças diversas e significado,
adaptaram suas culturas com uma variedade de
símbolos. Como índios e negros escravos, foram
privados de suas crenças, mas resistiram inculturando
a religiosidade europeia. Cultivaram a terra para que
colhêssemos os frutos da prosperidade e da diversidade
religiosa. Edificaram nossas cidades, e nós os jogamos
à margem da sociedade. Mesmo assim, continuam a
crer em dias melhores, a crer num Deus ou em vários
Aula 1| Religião e periferia 35
Deuses que clamam pela justiça e paz. No dia em que
deixarmos de lado nossas verdades absolutas, talvez
possamos ouvir os Deuses celebrarem conosco, pobres
e ricos, por um mundo mais igual.
EXERCÍCIO 2
Descreva as principais características dos movimentos
sociais nas grandes metrópoles.
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
RESUMO
Vimos até agora:
A presença da religião nos meios urbanos e
sua relação com as periferias;
A questão da Modernidade, do sincretismo e
do trânsito religioso;
A religião e o processo de urbanização, bem
como a criação da periferia e a segregação
como fenômeno de marginalização;
Os movimentos religiosos das grandes
metrópoles.
Candomblé
Alessandro Rodrigues Rocha.
AU
LA
2
Ap
res
en
taç
ão
Nesta aula discutiremos uma importante expressão da religião e
da cultura brasileira: o candomblé. Para tanto percorremos relatos
de sua origem, história, liturgia e teologia. A partir de um estudo
descritivo dessa importante tradição religiosa procuraremos
oferecer subsídios para uma prática docente responsável.
Ob
jeti
vo
s
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja
capaz de:
Discutir com propriedade a origem e o desenvolvimento do
candomblé, bem como suas principais características;
Compreender a dinâmica religiosa e social que ocorre ao
entorno dessa religião tão brasileira e ao mesmo tempo tão
desconhecida e, por isso mesmo, alvo de tantos preconceitos.
Aula 2| Candomblé 38
Candomblé – Introdução.
O que é o candomblé, como se prepara a festa,
quem são os orixás, como funciona um terreiro, os
rituais de iniciação, a sabedoria dos búzios e sua
origem e misturas.
Os navios negreiros que chegaram entre os
séculos XVI e XIX traziam mais do que africanos para
trabalhar como escravos no Brasil Colônia. Em seus
porões, viajava também uma religião estranha aos
portugueses. Considerada feitiçaria pelos colonizadores,
ela se transformou, pouco mais de um século depois da
abolição da escravatura, numa das religiões mais
populares do país.
Candomblé – Um pouco de sua história.
O Candomblé é uma religião originária da África,
trazida ao Brasil pelos negros escravizados na época da
colonização brasileira. A presença das religiões
africanas é uma conseqüência imprevista do tráfico dos
escravos, que determinou a afluência de cativos Gegês
e Nagôs (Daomeanos e Yorubás), trazidos da Costa dita
dos Escravos e desembarcados, principalmente, na
Bahia e em Pernambuco. A extraordinária resistência
oposta pelas religiões africanas às formas de alienação
e de extermínio haveria de surpreender. A religião foi
tolerada porque os senhores julgavam as danças e os
batuques simples divertimentos de negros nostálgicos,
úteis para que eles guardassem a lembrança de suas
origens diversas e de seus sentimentos de aversão
recíproca.
O Candomblé se difundiu no Brasil no século
passado, com a migração de africanos como escravos
para os senhores de terra. A população escrava no
Brasil consistia quase totalmente de negros de Angola.
Dica de leitura
BASTIDE, Roger - As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição para uma Sociologia das Interpenetrações de Civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (Org.) - Candomblé Desvendando Identidades: Novos Escritos sobre a Religião dos Orixás. São Paulo: EMW, 1987.
Aula 2| Candomblé 39
No momento da chegada dos nagôs, um século e meio
de escravidão havia passado, distribalizando o negro e
apagando seus costumes, crenças e sua língua
nacional. Mas o elemento africano, resistiu e criou uma
forma de cultuar seus deuses através do sincretismo
com os santos católicos.
Mesmo levando em conta a pressão social e
religiosa, era relativamente fácil para os escravos, na
sonolência geral, reinstalar na Bahia as crenças e
práticas religiosas que trouxera da África, pois, a igreja
católica estava cansada do esforço despendido na
criação de irmandades de negros como tentativa de
anular toda sua cultura, mas todos os meses novas
levas de escravos, adeptos ao culto aos Orixás,
desembarcavam na Bahia.
Por volta de 1830 três negras conseguiram
fundar o primeiro templo de sua religião na Bahia,
conhecida como Ylê Yá Nassó, casa da mãe Nassó.
(Nassó seria o título de princesa de uma cidade natal
da costa da África). Esta seria a primeira a resistir às
opressões católicas, desta casa se originam mais três
que sobrevivem até hoje e que fazem parte do grande
Candomblé da Bahia, sendo elas: O Engenho velho ou
Casa Branca, Gantóis, cuja ilustre dirigente foi mãe
menininha do gantóis (falecida em 1986) e do Alaketu.
Os Candomblés se diversificaram desde 1830, a
medida que a religião dos nagôs se firmava, primeiro
entre os escravos e for fim, no seio do povo. Hoje há
quatro tipos de Candomblé ou Candomblé de quatro
nações: Kêtu (povo nagô), Jêje (povo nagô, mas
obedientes a uma outra cultura), Angolacongo (povo
bantu, este culto é mais abrasileirado) e de caboclo
(cultuam mais os caboclos, mistura-se com a
Umbanda).
Aula 2| Candomblé 40
O Candomblé baseia-se no culto aos Orixás,
deuses oriundos das quatro forças da natureza: Terra,
Fogo, Água e Ar. Os Orixás são, portanto, forças
energéticas, desprovidas de um corpo material. Sua
manifestação básica para os seres humanos se dá por
meio da incorporação. O ser escolhido pelo orixá, um
dos seus descendentes, é chamado de elegum, aquele
que tem o privilégio de ser montado por ele. Torna-se o
veículo que permite ao orixá voltar à Terra para saudar
e receber as provas de respeito de seus descendentes
que o evocaram. Cada orixá tem as suas cores, que
vibram em seu elemento visto que são energias da
natureza, seus animais, suas comidas, seus toques
(cânticos), suas saudações, suas insígnias, as suas
preferências e suas antipatias, e aí daquele que
devendo obediência os irrita.
A síntese de todo o processo seria a busca de
um equilíbrio energético entre os seres materiais
habitantes da Terra e a energia dos seres que habitam
o orum, o suprareal (que tanto poderia localizar-se no
céu - como na tradição cristã - como no interior da
Terra, ou ainda numa dimensão estranha a essas duas,
de acordo com diferentes visões apresentadas por
nações e tribos diferentes).
Cada ser humano teria um orixá protetor, ao
entrar em contato com ele por intermédio dos rituais,
estaria cumprindo uma série de obrigações. Em troca,
obteria um maior poder sobre suas próprias reservas
energéticas, dessa forma teria mais equilíbrio. Cada
pessoa tem dois Orixás. Um deles mantém o status de
principal, é chamado de orixá de cabeça, que faz seu
filho revelar suas próprias características de maneira
marcada. O segundo orixá, ou ajuntó, apesar de
distinção hierárquica, tem uma revelação de poder
muito forte e marca seu filho, mas de maneira mais
sutil. Um seria a personalidade mais visível
Aula 2| Candomblé 41
exteriormente, assim como o corpo de cada pessoa,
enquanto o outro seria a face oculta de sua
personalidade, menos visível aos que conhecem a
pessoa superficialmente, e às potencialidades físicas
menos aparentes.
Como qualquer outra religião do mundo, o
Candomblé possui cerimoniais específicos para seus
adeptos, porém, esses ritos mostram singularidades
especialíssimas, como a leitura de búzios (um primeiro
e ocular contato com os Orixás), a preparação e
entrega de alimentos para cada uma das entidades ou
as complexas e prolongadas iniciações dos filhos-de-
santo. Através da observância desses procedimentos é
que o Candomblé religa os humanos aos seres astrais,
proporcionando àqueles o equilíbrio desejado na
existência.
O CANDOMBLÉ a uma estrutura de culto às
forças da natureza, a um hino à vida como Eterno
Movimento, que se manifesta nas danças, nas cores
dos ORIXÁS, nos alimentos sacramentais. Ritual
comunitário de cantos, danças e alimentos sagrados na
sua forma pública, o Candomblé é sacramentado pelo
Pai ou Mãe de Santo, pelos Filhos de Santo, pelos
tocadores de atabaque (OGAN), que entoam os cantos
sagrados possibilitando a vinda do ORIXÁ, com a
participação da comunidade dos mais velhos às
criancinhas. Todos cantam e saúdam os ORIXÁS,
executam a dança sagrada, num hino à Alegria, Amor e
Partilha.
O CANDOMBLÉ se expressa nos terreiros ou
roças, onde se cultuam os ORIXÁS e os ancestrais
ilustres. O terreiro contém dois espaços, com
características e funções diferentes: (a) um espaço
urbano, construído, onde se dá a dança; (b) um espaço
virgem (árvores e uma fonte, equivalentes à floresta
Aula 2| Candomblé 42
africana), que é considerado sagrado. O chefe supremo
do terreiro é o BABALORIXIÁ ou IYALORIXÁ (pai ou
mãe que possuem o ORIXÁ). Eles são detentores de um
poder sobrenatural - o AXÉ, a força propulsora de todo
Universo. O AXÉ impulsiona a prática sagrada que, por
sua vez, realimenta o AXÉ, pondo todo sistema em
movimento. O AXÉ sendo principio e força é neutro.
Transmite-se, aplica-se e combina-se aos elementos
naturais, que contam e expressam o AXÉ do terreiro,
que pode ser: (a) o AXÉ de cada ORIXÁ, realimentado
através das oferendas e da ação ritual; (b) o AXÉ de
cada membro do terreiro, somado ao do seu ORIXÁ,
recebido na iniciação, mais o AXÉ do seu destino
individual (ODU) e o herdado dos próprios ancestrais;
(c) o AXÉ dos antepassados ilustres.
O AXÉ como força pode diminuir ou aumentar
dependendo da prática litúrgica e rigorosa observância
dos deveres e obrigações. A força do AXÉ é contida e
transmitida através de elementos representativos do
reino vegetal, animal e mineral (oferendas) e podem
ser agrupados em três categorias: (a) sangue vermelho
do reino animal (sangue), vegetal (azeite de dendê) e
mineral (cobre); (b) sangue branco do reino animal
(sêmen, a saliva), vegetal (seiva), mineral (giz); (c)
sangue preto do reino animal (cinzas de animais),
vegetal (sumo escuro de certos vegetais) e mineral
(carvão, ferro). Estes três tipos de sangue, por onde
veicula o AXÉ, com sua coloração, vai determinar a
fundamental importância da cor no culto. Resumindo: o
AXÉ é, portanto, um poder que se recebe, partilha-se e
distribuí-se através da prática ritual, da experiência
mística e iniciática, conceitos e elementos simbólicos
servindo de veículo. É a força do AXÉ que permite que
o ORIXÁ venha e realize-se.
A existência transcorre em dois planos: o AIYE
(mundo, habitação do homem) e o ORUN (além,
Aula 2| Candomblé 43
habitação dos ORIXÁS, mundo paralelo ao mundo real,
que coexiste com todos os conteúdos deste). Cada
indivíduo, árvore, animal, cidade etc, possui um duplo
espiritual e abstrato no ORUN. Os mitos revelam que,
em épocas remotas, o AIYÉ e o ORUN estavam ligados,
e os homens podiam ir e vir livremente de um local a
outro. Houve, porém, a violação de uma interdição e a
conseqüente separação e o desdobramento da
existência. Um mito da criação nos conta que nos
primórdios, nada existia além do ar. Quando OLORUN
começou a respirar, uma parte do ar transformou-se
em massa de água, originando ORIXALÁ - o grande
ORIXÄ FUNFUN do branco. O ar e as águas moveram-
se conjuntamente e uma parte deles transformou-se
em bolha ou montículo uma matéria dotada de forma -
um rochedo avermelhado e lamacento. OLORUN soprou
vida sobre ele e com seu hálito deu a vida a EXU, o
primeiro nascido, o procriado, o primogênito do
Universo.
OLORUN abrange todo espaço e detém três
poderes que regulam e mantém ativos a existência e o
Universo: IWÁ, que permite ao Universo genérico o ar,
a respiração; AXÉ, que permite a existência advir
dinâmica; ABÁ, que outorga propósito e dá direção. Ou
como diz o poeta Moraes Moreira em "Pensamento
Ioruba": Para tudo ser tem que ter IWA. Para vir a ser
tem que ter AXÉ. Para o sempre ser tem que ter ABÁ.
Ao combinar esses três poderes de forma específica,
OLORUN transmite-os aos IRUNMALÉ, entidades divinas
que remontam aos primórdios de universo,
encarregados de mantê-las nas diferentes esferas de
seu domínio. Os IRUNMALÉ seriam em número de
seiscentos, quatrocentos da direita (os ORIXÁS,
detentores dos poderes masculinos) e duzentos da
esquerda (os EBORAS, detentores dos poderes
femininos). Os ORIXÁS são massas de movimentos
lentos, serenos, de idade imemorial. Estão dotados de
Aula 2| Candomblé 44
um grande equilíbrio que controlam as relações do que
nasce, do que morre, do que é dado, do que deve ser
resolvido. São associados à Justiça e ao equilíbrio,
principio regulador dos fenômenos cósmicos, sociais e
individuais.
EXERCÍCIO 1
Defina em suas palavras o que é o Candomblé e, quais
os seus principais elementos.
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Entendendo o que é o Candomblé.
A principal diferença entre os vários tipos de
candomblé é a origem étnica.
Há quatro tipos de candomblé:
O Queto, da Bahia,
O Xangô, de Pernambuco,
O Batuque, do Rio Grande do Sul,
O Angola, da Bahia e São Paulo.
O Queto chegou com os povos nagôs, que falam
a língua iorubá. Saídos das regiões que hoje
correspondem ao Sudão, Nigéria e Benin, eles vieram
para o Nordeste. Os bantos saíram das regiões de
Moçambique, Angola e Congo para Minas Gerais, Goiás,
Rio de Janeiro e São Paulo (em amarelo, no mapa).
Criaram o culto ao caboclo, representante das
entidades da mata.
Importante
Informações mais completas sobre o candomblé, bem como sua liturgia, história e teologia podem ser dadas pela Federação do Candomblé do Brasil (FECAB) http://www.fecab.org.br/cultura/index.asp
Aula 2| Candomblé 45
Candomblé não é umbanda. As duas são
religiões afro-brasileiras. Umbanda é a mistura do
candomblé com espiritismo.
Candomblé
Deuses: Orixás de origem africana. Nenhum
santo é superior ou inferior a outro. Não
existe o Bem e o Mal, isoladamente.
Culto: Louvação aos orixás que incorporam
nos fiéis, para fortalecer o axé (energia vital)
que protege o terreiro e seus membros.
Iniciação: Condição essencial para participar
do culto. O recolhimento dura de sete a 21
dias. O ritual envolve o sacrifício de animais,
a oferenda de alimentos e a obediência a
rígidos preceitos.
Música: Cânticos em língua africana,
acompanhados por três atabaques tocados
por iniciados do sexo masculino.
Umbanda
Deuses: As entidades são agrupadas em
hierarquia, que vai dos espíritos mais baixos
(maus) aos mais evoluídos (bons).
Culto: Desenvolvimento espiritual dos
médiuns que, quando incorporam, dão passes
e consultas.
Iniciação: Não é necessária. O recolhimento é
de apenas um ou dois dias. O sacrifício de
animais não é obrigatório. O batismo é feito
com água do mar ou de cachoeira.
Música: Cânticos em português,
acompanhados por palmas e atabaques,
tocados por fiéis de qualquer sexo.
Importante
Informações mais completas sobre o Umbanda, bem como sua liturgia, história e teologia podem ser dadas pela Federação Brasileira de Umbanda. http://www.fbu.com.br/
Aula 2| Candomblé 46
EXERCÍCIO 2
Descreva as principais diferenças entre o Candomblé e
a Umbanda.
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A hierarquia de uma casa-de-santo. Como
se organiza o Condomblé
Cada iniciado tem uma função dentro do terreiro
e, nem todos recebem santo.
Abiã - Noviço, primeiro degrau da hierarquia.
Após iniciado, será filho-de-santo.
Iaô - Filho-de-santo, segundo degrau na
hierarquia. Podem ou não receber santo.
Ebômi - Terceiro degrau. Iaô que cumpriu as
obrigações de sete anos. Recebe santo.
Iabassê - Quarto degrau. Não recebe. É a
responsável pela cozinha do terreiro.
Agibonã - Mãe criadeira. Também quarto
degrau. Cuida dos iaôs durante o ritual de iniciação.
Não recebe santo.
Ialaxé - Quinto degrau. Zela pelas oferendas e
objetos de culto aos orixás. Não recebe santo.
Baba-quequerê e Iaquequerê - Sexto degrau.
Pai ou mãe-pequena. Recebe. Ajuda o pai ou mãe-de-
santo no comando do terreiro.
Aula 2| Candomblé 47
Baba-lorixá e Ialorixá - Pai ou mãe-de-santo,
chefe do terreiro, último degrau da hierarquia. Recebe
santo e joga búzios.
Ajudantes sagrados - Pais e mães terrenos
dos orixás ficam fora da hierarquia.
Ogã - Filho-de-santo que não recebe. O Ogã
pode ser Axogum ou Alabê, conforme sua tarefa.
Axogum Ogã - responsável pelo sacrifício de
animais a serem ofertados aos orixás. Não recebe
santo.
Alabê Ogã - tocador dos atabaques e
instrumentos rituais. Não recebe santo.
Equede - Paralela ao Ogã. Não recebe. Cuida
dos orixás incorporados e de seus objetos.
O calendário litúrgico
No Candomblé muitas festas não têm dia certo
para acontecer. Elas normalmente estão associadas aos
dias santos do catolicismo. Mas as datas podem variar
de terreiro para terreiro, de acordo com a
disponibilidade e as possibilidades da comunidade. De
maneira geral, o que importa é comemorar o orixá na
sua época. As principais festas, ao longo do ano, são as
seguintes:
Abril: Feijoada de Ogum e festa de Oxóssi
(associado a São Sebastião), em qualquer
dia.
Junho: Fogueiras de Xangô (associados a São
João e São Pedro), dias 25 e 29.
Agosto: Festa para Obaluaiê (associado a São
Lázaro e São Roque) e festa de Oxumaré
(associado a São Bartolomeu), em qualquer
dia.
Dica do professor
Um bom aprofundamento sobra a liturgia do candomblé e de outras religiões afro-brasileiras pode ser encontrada em: http://www.fbu.com.br/cultos.htm
Aula 2| Candomblé 48
Setembro: Começa um ciclo de festas
chamado Águas de Oxalá, que pode seguir
até dezembro. Festa de Erê, em homenagem
aos espíritos infantis (associados a São
Cosme e Damião). Festa das iabás (esposas
de orixás) e festa de Xangô (associado a São
Jerônimo), em qualquer dia.
Dezembro: Festas das iabás Iansã (Santa
Bárbara), dia 4, Oxum e Iemanjá (associadas
a Nossa Senhora da Conceição), dia 8.
Iemanjá também é homenageada na
passagem de ano.
Janeiro: Festa de Oxalá (coincide com a festa
do Bonfim, em Salvador), no segundo
domingo depois do dia de Reis, 6 de janeiro.
Quaresma: O encerramento do ano litúrgico
acontece durante os quarenta dias que
antecedem a Páscoa, com o Lorogun, em
homenagem a Oxalá.
Os antropomorfismos do Candomblé
Em qualquer terreiro, a entrada dos orixás na
festa segue sempre a mesma seqüência da ordem do
xirê. Depois de despachar Exu, o primeiro a entrar na
roda é Ogum, seguido de Oxóssi, Oba- luaiê, Ossaim,
Oxumaré, Xangô, Oxum, Iansã, Nanã, Iemanjá e
Oxalá.
Segundo a tradição, os deuses do candomblé
têm origem nos ancestrais dos clãs africanos,
divinizados há mais de 5 000 anos. Acredita-se que
tenham sido homens e mulheres capazes de manipular
as forças da natureza, ou que trouxeram para o grupo
os conhecimentos básicos para a sobrevivência, como a
caça, o plantio, o uso de ervas na cura de doenças e a
fabricação de ferramentas.
Dica do professor
Antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a Deus, deuses, elementos da natureza, animais e constituintes da realidade em geral.
Aula 2| Candomblé 49
Os orixás estão longe de se parecer com os
santos cristãos. Ao contrário, as divindades do
candomblé têm características muito humanas: são
vaidosos, temperamentais, briguentos, fortes,
maternais ou ciumentos. Enfim, têm personalidade
própria. Cada traço da personalidade é associado a um
elemento da natureza e da sua cultura: o fogo, o ar, a
água, a terra, as florestas e os instrumentos de ferro.
Na África Ocidental, existem mais de 200 orixás.
Mas, na vinda dos escravos para o Brasil, grande parte
dessa tradição se perdeu. Hoje, o número de orixás
conhecidos no país está reduzido a dezesseis. E,
mesmo desse pequeno grupo, apenas doze são ainda
cultuados: os outros quatro Obá, Logunedé, Ewa e
Irôco raramente se manifestam nas festas e rituais.
Os principais ritos do Candomblé
1 – Iniciação
As diversas fases da iniciação. Primeiro, o santo
indica a pessoa a ser iniciada. Depois, é preciso cumprir
outros três passos:
A - Bolar no santo
É o mesmo que cair no santo. Este é o sinal que
indica a necessidade de iniciação de uma pessoa no
candomblé. Acontece sem previsão, normalmente
numa festa: durante a dança e os cânticos o orixá se
manifesta no futuro filho-de-santo, que é agitado por
tremores e sobressaltos violentos. Quem já bolou conta
que sentiu arrepios, calor, fraqueza e sensação de
desmaio. Quando acorda no roncó (o quarto do terreiro
reservado à pessoa que bolou), o abiã não consegue se
lembrar de nada do que aconteceu.
Dica de leitura
VERGER, Pierre. Saída de Iaô - Cinco ensaios sobre a religião dos Orixás. Prefácio de Luis Pellegrini. São Paulo: Axis Mundi Editora, 2002.
Aula 2| Candomblé 50
B - O bori
É a cerimônia que reforça a ligação entre o orixá
e o iniciado. O abiã se senta numa esteira, rodeado de
alimentos secos, aves, velas e objetos de seu orixá.
Ajudado pelos filhos já feitos, o pai ou a mãe-de-santo
sacrifica aves. O sangue é usado para marcar o corpo
do noviço e para banhar as oferendas ao orixá.
A cerimônia só termina quando as aves são
servidas aos membros da família-de-santo. Depois do
bori, o futuro filho-de-santo passa a assistir às
cerimônias e a preparar o enxoval (a roupa e os
adereços de seu orixá) para terminar a iniciação, com
as saídas de iaô.
C - Orô
Confinado ao quarto de recolhimento (roncó),
por 21 dias, o noviço conhece a hierarquia da casa, os
preceitos, as orações, os cânticos, a dança de seu
orixá, os mitos e suas obrigações. Durante esse tempo
ele toma infusões de ervas, que o deixam num estado
de entorpecimento e abrem espaço na sua mente para
o orixá. A cabeça é raspada e o crânio marcado com
navalha: é por esses cortes que o orixá vai entrar,
quando for incorporado. No final, o iniciado é batizado
com sangue de um animal quadrúpede, sacrificado.
Os iaôs são apresentados à comunidade, como
num baile de debutante. Na primeira saída, os iaôs
vestem branco em homenagem a Oxalá, pai de todos.
Saúdam o pai-de-santo, os atabaques e os pontos
principais do barracão e vão-se embora. Na segunda
saída, os iaôs voltam com roupas coloridas e a cabeça
pintada, segundo seus orixás. Dançam e deixam o
barracão, em seguida. Na terceira saída, os orixás
anunciam oficialmente seus nomes. Os iaôs entram em
Aula 2| Candomblé 51
transe e se retiram para vestir as roupas do santo
incorporado.
2 - Por meses, o noviço só come com as
mãos
Os filhos-de-santo são os sacerdotes dos orixás,
da mesma forma como, na Igreja Católica, os padres
são os representantes de Deus. Nem todos, porém, são
preparados para receber os santos. Existem os que
cuidam dos filhos-de-santo quando os orixás baixam,
os que sacrificam os animais, os que tocam os
atabaques e os que preparam a comida. Os búzios,
usados como instrumento de adivinhação, é que vão
dizer qual a função de cada um.
A entrada para essa hierarquia é a indicação do
orixá. É o que se chama bolar no santo. A partir daí, o
abiã (noviço) tem de se submeter aos rituais de
iniciação cerimônias do bori, orô e saídas de iaô.
Um recém-iniciado passa de um a seis meses
vivendo dentro de severas restrições. É o tempo de
quelê o período em que o abiã usa um colar de contas
justo ao pescoço. Enquanto usar o quelê, ele deve
vestir branco, comer com as mãos e sentar-se só no
chão. Estão proibidas as relações sexuais e os pratos
que não sejam os de seu orixá.
Nem todos os terreiros seguem à risca todas as
imposições. Mas pelo menos algumas têm de ser
obedecidas: é parte do compromisso do abiã com seu
orixá e seu pai ou mãe-de-santo. As obrigações não
terminam por aí: o iniciado, que agora se chama iaô,
terá de cumprir ainda três rituais depois de um ano,
três anos e sete anos , com sacrifícios, toques e
oferendas. Só depois ele pode se candidatar a ebômi, o
degrau seguinte da hierarquia.
Aula 2| Candomblé 52
3 - O toque
É o mesmo que festa e se refere à batida dos
atabaques, que convoca os orixás. A estrutura da
cerimônia, chamada ordem do xirê (brincadeira, na
língua iorubá), divide a festa em três partes. A primeira
acontece à tarde, com o sacrifício, a oferenda e o padê
de Exu. A segunda é a festa em si, à noite, na presença
do público, quando os filhos-de-santo incorporam os
orixás. E a terceira fase, o encerramento, com a roda
de Oxalá, o deus criador do homem.
4 - O sacrifício
Acontece apenas diante dos membros da
comunidade de santo e envolve no mínimo dois
animais: um, de duas patas, para Exu, e outro, de
quatro patas, macho ou fêmea, dependendo do sexo do
orixá a ser homenageado. Quem realiza o sacrifício é o
ogã axogum, um iniciado no candomblé especialmente
preparado para isso. Os bichos são mortos com um
golpe na nuca. Depois, a cabeça e os membros são
cortados fora e o animal sacrificado vai sangrar até a
última gota antes de ser destinado à oferenda.
5 - A oferenda
Depois do sacrifício, a moela, o fígado, o
coração, os pés, as asas e a cabeça são separados e
oferecidos ao orixá homenageado num vaso de barro,
chamado alguidar. O sangue, recolhido numa quartinha
de cerâmica (espécie de moringa), é derramado sobre
o assentamento do santo, ou seja, o local onde ficam
seus objetos e símbolos. As partes restantes são
destinadas ao jantar oferecido aos orixás, ainda à
tarde, e aos participantes, ao final da festa pública, à
noite.
Aula 2| Candomblé 53
6 - O padê de Exu
Este é também um ritual fechado ao público.
Significa despacho de Exu. É ele quem faz a ponte
entre o mundo natural e o sobrenatural. Portanto, é ele
quem convoca os orixás para a festa dos humanos.
Para isso, é preciso agradá-lo, oferecendo comida
(farofa com dendê, feijão ou inhame) e bebida (água,
cachaça ou mel). As oferendas são levadas para fora do
barracão e a porta de entrada é batizada com a bebida,
já que Exu é o guardião da entrada e das encruzilhadas
(por isso é comum ver oferendas em esquinas nas ruas
e em encruzilhadas nas estradas).
7 – Sucessão
A sucessão numa casa-de-santo é sempre
tumultuada: basta o pai-de-santo morrer para ter início
uma verdadeira guerra entre orixás. Os filhos que não
concordam com a indicação dos búzios costumam
abandonar o terreiro e fundar sua própria casa. Foi
assim que nasceu, no início do século, o Gantois uma
das casas mais conhecidas em Salvador. A partir da
década de 70, mãe Menininha do Gantois se tornou
conhecida no Brasil inteiro, cantada por compositores,
como Dorival Caymmi e Caetano Veloso, e venerada
por intelectuais, como Jorge Amado. Mãe Menininha
morreu aos 92 anos de idade, em 1986. Deixou em seu
lugar mãe Creusa.
EXERCÍCIO 3
Qual é a origem dos Orixás e suas principais
características?
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Aula 2| Candomblé 54
EXERCÍCIO 4
Resuma o processo de iniciação ao candomblé e
estabelece aproximações e distanciamentos com os
ritos de iniciação do cristianismo.
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Candomblé e sincretismo
Existem diferentes tipos de candomblé no Brasil,
cada um deles saído de uma nação. A palavra nação
aqui não tem nada a ver com o conceito político e
geográfico, mas com os grupos étnicos daqueles que
foram trazidos da África como escravos. As diferenças
aparecem principalmente na maneira de tocar os
atabaques, na língua do culto e no nome dos orixás.
Os povos que mais influenciaram os quatro tipos
de candomblé praticados no Brasil são os da língua
iorubá. Os rituais da Casa Branca, em Salvador, e da
casa de Cotia, em São Paulo, descritos nesta
reportagem, pertencem ao tipo Queto.
A mistura com o catolicismo foi uma questão de
sobrevivência. Para os colonizadores portugueses, as
danças e os rituais africanos eram pura feitiçaria e
deviam ser reprimidos. A saída, para os escravos, era
rezar para um santo e acender a vela para um orixá.
Foi assim que os santos católicos pegaram carona com
os deuses africanos e passaram a ser associados a eles.
A partir da década de 20, o espiritismo também entrou
nos terreiros, criando a umbanda, com características
bem diferentes.
Dica do professor
Sincretismo é uma fusão de doutrinas de diversas origens, seja na esfera das crenças religiosas, seja nas filosóficas. Na história das religiões, o sincretismo é uma fusão de concepções religiosas diferentes ou a influência exercida por uma religião nas práticas de uma outra.
Aula 2| Candomblé 55
Assim, o candomblé já se incorporou à alma
brasileira. Tanto é que o país inteiro conhece o grito de
felicidade a saudação mágica que significa, em iorubá,
energia vital e sagrada: Axé!
Os orixás mais cultuados no Brasil
No Brasil são doze os orixás mais cultuados.
Cada um deles tem o seu símbolo, o seu dia da
semana, suas vestimentas e cores próprias. Como os
homens, são temperamentais
Exu
Orixá mensageiro entre os homens e os deuses,
guardião da porta da rua e das encruzilhadas. Só
através dele é possível invocar os orixás.
Elemento: fogo
Personalidade: atrevido e agressivo.
Símbolo: ogó (um bastão adornado com
cabaças e búzios).
Dia da semana: segunda-feira
Colar: vermelho e preto
Roupa: vermelha e preta
Sacrifício: bode e galo preto
Oferendas: farofa com dendê, feijão, inhame,
água, mel e aguardente.
Ogum
Deus da guerra, do fogo e da tecnologia. No
Brasil é conhecido como deus guerreiro. Sabe trabalhar
com metal e, sem sua proteção, o trabalho não pode
ser proveitoso.
Elemento: ferro
Símbolo: espada
Aula 2| Candomblé 56
Personalidade: impaciente e obstinado
Dia da semana: terça-feira
Colar: azul-marinho
Roupa: azul, verde escuro, vermelho ou
amarelo
Sacrifício: galo e bode avermelhados
Oferendas: feijoada, xinxim, inhame
Oxóssi
Deus da caça. É o grande patrono do candomblé
brasileiro.
Elemento: florestas
Personalidade: intuitivo e emotivo
Símbolo: rabo de cavalo e chifre de boi
Dia da semana: quinta-feira
Colar: azul claro
Roupa: azul ou verde claro
Sacrifício: galo e bode avermelhados e porco
Oferendas: milho branco e amarelo, peixe de
escamas, arroz, feijão e abóbora
Obaluaiê
Deus da peste, das doenças da pele e,
atualmente, da AIDS. É o médico dos pobres.
Elemento: terra
Personalidade: tímido e vingativo
Símbolo: xaxará (feixe de palha e búzios)
Dia da semana: segunda-feira
Colar: preto e vermelho, ou vermelho, branco
e preto
Roupa: vermelha e preta, coberta por palha
Sacrifício: galo, pato, bode e porco
Oferendas: pipoca, feijão preto, farofa e
milho, com muito dendê
Aula 2| Candomblé 57
Oxum
Deusa das águas doces (rios, fontes e lagos). É
também deusa do ouro, da fecundidade, do jogo de
búzios e do amor.
Elemento: água
Personalidade: maternal e tranqüila
Símbolo: abebê (leque espelhado)
Dia da semana: sábado
Colar: amarelo ouro
Roupa: amarelo ouro
Sacrifício: cabra, galinha, pomba
Oferendas: milho branco, xinxim de galinha,
ovos, peixes de água doce
Iansã
Deusa dos ventos e das tempestades. É a
senhora dos raios e dona da alma dos mortos.
Elemento: fogo
Personalidade: impulsiva e imprevisível
Símbolo: espada e rabo de cavalo
(representando a realeza)
Dia da semana: quarta-feira
Colar: vermelho ou marrom escuro
Roupa: vermelha
Sacrifício: cabra e galinha
Oferendas: milho branco, arroz, feijão e
acarajé
Ossaim
Deus das folhas e ervas medicinais. Conhece
seus usos e as palavras mágicas (ofós) que despertam
seus poderes.
Aula 2| Candomblé 58
Elemento: matas
Personalidade: instável e emotivo
Símbolo: lança com pássaros na forma de
leque e feixe de folhas
Dia da semana: quinta-feira
Colar: branco rajado de verde
Roupa: branco e verde claro
Sacrifício: galo e carneiro
Oferendas: feijão, arroz, milho vermelho e
farofa de dendê
Nanã
Deusa da lama e do fundo dos rios, associada à
fertilidade, à doença e à morte. É a orixá mais velha de
todos e, por isso, muito respeitada.
Elemento: terra
Personalidade: vingativa e mascarada
Símbolo: ibiri (cetro de palha e búzios)
Dia da semana: sábado
Colar: branco, azul e vermelho
Roupa: branca e azul
Sacrifício: cabra e galinha
Oferendas: milho branco, arroz, feijão, mel e
dendê
Oxumaré
Deus da chuva e do arco-íris. É, ao mesmo
tempo, de natureza masculina e feminina. Transporta a
água entre o céu e a terra.
Elemento: água
Personalidade: sensível e tranqüilo
Símbolo: cobra de metal
Dia da semana: quinta-feira
Colar: amarelo e verde
Aula 2| Candomblé 59
Roupa: azul claro e verde claro
Sacrifício: bode, galo e tatu
Oferendas: milho branco, acarajé, coco, mel,
inhame e feijão com ovos
Iemanjá
Considerada deusa dos mares e oceanos. É a
mãe de todos os orixás e representada com seios
volumosos, simbolizando a maternidade e a
fecundidade.
Elemento: água
Personalidade: maternal e tranqüila
Símbolo: leque e espada
Dia da semana: sábado
Colar: transparente, verde ou azul claro
Roupa: branco e azul
Sacrifício: porco, cabra e galinha
Oferendas: peixes do mar, arroz, milho,
camarão com coco
Xangô
Deus do fogo e do trovão. Diz a tradição que foi
rei de Oyó, cidade da Nigéria. É viril, violento e
justiceiro. Castiga os mentirosos e protege advogados e
juízes.
Elemento: fogo
Personalidade: atrevido e prepotente
Símbolo: machado duplo (oxé)
Dia da semana: quarta-feira
Colar: branco e vermelho
Roupa: branca e vermelha, com coroa de
latão
Sacrifício: galo, pato, carneiro e cágado
Oferendas: amalá (quiabo com camarão seco
e dendê)
Aula 2| Candomblé 60
Oxalá
Deus da criação. É o orixá que criou os homens.
Obstinado e independente, é representado de duas
maneiras: Oxaguiã, jovem, e Oxalufã, velho.
Elemento: ar
Personalidade: equilibrado e tolerante
Símbolo: oparoxó (cajado de alumínio com
adornos)
Dia da semana: sexta-feira
Colar: branco
Roupa: branca
Sacrifício: cabra, galinha, pomba, pata e
caracol
Oferendas: arroz, milho branco e massa de
inhame
EXERCÍCIO 5
Descreva como ocorreu o sincretismo entre as religiões
africanas e o catolicismo no Brasil.
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EXERCÍCIO 6
Qual era sua compreensão sobre candomblé antes
dessa aula e, como você o compreende agora? Faça
uma pequena síntese de suas principais impressões.
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Aula 2| Candomblé 61
RESUMO
Vimos até agora:
A história do candomblé desde de sua origem
até sua consolidação como importante
expressão religiosa brasileira;
As principais características litúrgicas e
teológicas do candomblé, bem como sua
distinção com relação à umbanda
Os momentos mais importantes da vivência
religiosa no interior do candomblé: sua
hierarquia, seus principais ritos e, os
principais orixás cultuados no Brasil.
O Espiritismo no Brasil e no Mundo,
uma Aproximação
Alberto Calil
AU
LA
3
Ap
res
en
taç
ão
Nesta aula trataremos de um importante aspecto da religião no
Brasil: o Espiritismo. Tal expressão religiosa tem uma crescente
acolhida nos mais diversos extratos sociais de nosso país. Aqui
buscar-se-á, de forma introdutória, um conhecimento das origens
do Espiritismo, bem sua história e desenvolvimento.
Ob
jeti
vo
s
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja
capaz de:
A mentalidade que revela a crença num mundo repleto de
fantasmas, assombrações e afins.
A cosmologia espírita e sua explicação da realidade
As causas primárias da existência de todas as coisas: Deus,
espírito e matéria
A imortalidade da alma, reencarnação e evolução
A mediunidade e sua importância em toda a concepção espírita
da realidade.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 64
Um mundo repleto de fantasmas,
assombrações e afins
Iniciaremos nossa aula lembrando um dos
recentes sucessos da teledramaturgia brasileira. Em
finais de 2006 e início de 2007, a Rede Globo de
Televisão exibiu uma telenovela em seu horário nobre
que atraiu a atenção de muitos espectadores por um
dos temas que abordava. Vejamos a descrição de uma
cena dessa novela:
Ao chegar a casa naquela tarde Helena
é surpreendida por uma "presença" em
seu apartamento. Ela sente algo
estranho no ar e tem a impressão de
que não está sozinha. Em seguida
escuta um barulho, como se alguém
estivesse cruzando a sala... um vulto,
uma sombra. De repente, coisas
estranhas começam a ocorrer por toda
a casa. Utensílios caem das estantes e
mesas, objetos trocam de lugar, o
fogão acende, as luzes piscam, sem
contar com aquele cheiro, o cheiro de
rosas que já há algum tempo
penetrava eventualmente os cômodos
do apartamento. Helena que estava
com uma fisionomia que era um misto
de medo e curiosidade resolve fazer
uma pergunta:
O que você quer? Você está tentando
me dizer alguma coisa?
É então que tal como uma resposta
daquela 'presença invisível' - que já
vinha 'frequentando' a casa de Helena
há algum tempo - o retrato de sua
filha adotiva, Clarinha, se espatifa no
chão. Ato contínuo, Helena, agora
entre o desespero e a preocupação,
pega o telefone e liga para saber de
sua filha. Ao tomar conhecimento de
que ela estava sendo trazida para
casa, Helena pede que a levem para
um Centro Cultural do bairro, onde ela
as encontraria depois.
Esta foi uma das cenas da telenovela “Páginas
da Vida”. Apesar de ter morrido no início da trama,
Nanda - a "presença invisível", o "fantasminha", o
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 65
"espírito" - foi, durante a exibição da referida
telenovela, uma das personagens mais populares, com
aparições garantidas, quer seja na história ou nas
diversas mídias que falavam sobre a mesma.
"Nanda" é apenas uma das "presenças
invisíveis" que entram cotidianamente na casa de
milhões de brasileiros através das telas da TV, com
relativa aceitação. Pelo menos desde finais da década
de 1980, os fenômenos sobrenaturais vêm ganhando
cada vez mais espaço nas diversas mídias. Desde
programas de auditório, em que é possível ouvir e até
fazer consultas em rede nacional aos especialistas do
assunto, até seriados e filmes de produção estrangeira
em que videntes e espíritos são centrais na trama.
A reflexão sobre personagens e situações
pertencentes à esfera do sobrenatural no Brasil não é
uma particularidade de uma sociedade midiatizada.
Referências a este mundo que transcende o plano do
real já vêm de longa data. Desde os primeiro sinais
“civilizatórios” trazidos pelos colonizadores, as “almas
do outro mundo” fazem parte da paisagem nacional.
Essa presença tem sido uma constante, de tal forma
que por aqui todos parecem crer nas forças do
sobrenatural, encontrando eco em muitas das
descrições sobre o Brasil.
Quer saber mais?
Até a década de 1990, as questões relacionadas ao sobrenatural apareciam no mercado cinematográfico sob a ótica do humor ou do terror. A partir de finais dos anos 1990, é possível notar um deslocamento em relação às questões ligadas ao sobrenatural. Produções como “Amor além da vida” ou “o Sexto Sentido” procuram retratar este “mundo invisível” e as relações que com ele estabelecemos como sendo realidades possíveis.
Para navegar
Durante a exibição da novela foram veiculadas inúmeras reportagens sobre a questão da vida após a morte como, por exemplo, em uma matéria de 18
de novembro de 2006, publicada na coluna Zapping do jornal Folha Online, intitulada: “Fantasma de Nanda aumenta a audiência de ‘Páginas’”. http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/zapping/ult3954u91.shtml
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 66
Voltemos ao Brasil Colonial. No século XVIII, nas
Minas Gerais, vivia Paulo Gil, conhecido por seus
conterrâneos por ter feito pacto com o demônio.
Conforme nos conta Laura de Mello e Souza, foi João
Batista, outro pardo forro de 20 anos, quem narrou
detalhadamente as feitiçarias de Paulo Gil, que
o interpelara 'se queria ter mandinga
para ninguém ter com ele', oferecendo-
lhe pedra d'ara moída para se beber em
infusão. João Batista recusou, mas Paulo
Gil continuou insistindo por mais oito
dias; por fim, aquiesceu, acompanhando
o feiticeiro numa excursão noturna até
certa encruzilhada, onde ficou sozinho
enquanto Paulo Gil se ausentava por
pouco tempo. Voltou momentos depois
acompanhado de sete ou oitos figuras
negras, todas de forma humana,
dizendo: 'Aqui estão os nossos amigos'.
Apavorado, João Batista disse ao
feiticeiro que ia se retirar um instante,
mas que voltaria logo; sumiu, enfiando-
se em casa. Tornando a encontrá-lo,
Paulo Gil o repreendeu asperamente,
dizendo que fizera muito mal em
desaparecer; insistiu mais uma vez na
mandinga, sem que João Batista se
decidisse. Dias depois, dormia quando
acordou com forte dor no quadril: Paulo
Gil o ferira para tirar seu sangue e dá-lo
aos 'amigos', que em troca lhe
asseguravam força desmesurada. João
Batista renegou dos amigos, não os
queria como tais. Imediatamente,
sobreveio um rodamoinho terrível, e o
rapaz, apavorado, pôs-se a chamar por
Sant'Ana. Desde então, nunca mais
falou com Paulo Gil.
(Melllo e Souza, 1986, p. 255)
Por toda a parte e em todas as épocas da
história brasileira, essa presença é iluminada por
jornalistas, literatos e analistas da vida social.
Atravessando a Colônia, o Império e a República, novos
"Paulos Gil" serão encontrados em profusão. Ao que
parece, no Brasil teríamos uma relação estreita, difusa
e permanente entre o “mundo dos vivos” e o “mundo
dos mortos”. Em nossa sociedade, conforme já indicou
Gilberto Freyre,
Dica de leitura
Historiadores e Cientistas Sociais vêm assinalando que entre nós, os fenômenos sobrenaturais sempre estiveram presentes. Yvonne Maggie, por exemplo, no livro “Medo de Feitiço: ... assinala que "a crença na magia e na capacidade de produzir malefícios por meios ocultos e sobrenaturais é bastante generalizada no
Brasil desde os tempos coloniais" (Maggie, 1992, p. 22). Para maiores detalhes ver: MAGGIE, Yvonne. Medo de Feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1992 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo : Companhia das Letras, 1986.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 67
(...) abaixo dos santos e acima dos
vivos ficavam, na hierarquia patriarcal,
os mortos, governando e vigiando o
mais possível a vida dos filhos, netos e
bisnetos. Em muita casa-grande
conservavam-se seus retratos no
santuário, entre as imagens dos
santos, com direito à mesma luz votiva
de lamparina de azeite e às mesmas
flores devotas.
(Freyre apud Matta, 1986, p.157)
Atravessando a “Colônia” e o “Império”, os
relatos sobre esses “seres extraordinários” persistem.
As “almas do outro mundo” são personagens cativas
das descrições dos literatos, jornalistas e analistas
sociais na jovem República. Espalhados por todos os
cantos, médiuns, "assombrações" e "fantasmas" eram
notados no cotidiano do nascente país. O Rio de Janeiro
do início do século XX, capital política e cultural da
República, de acordo com a lente de João do Rio, era
"uma tenda de feiticeiros brancos e negros, de religiões
de animais, de pedras animadas, o rojar de um povo
inteiro diante do amanhã" (Rio, 1951, p. 59). De seus
passeios pela capital nascem as crônicas, em que o
jornalista nos leva a "flanar pela alma encantadora das
ruas", conhecendo pessoas, lugares e situações que,
como ele, se movimentavam pela cidade. Das crônicas,
surgiram os livros, cujo primeiro título publicado,
emblematicamente, foi "As religiões do Rio".
Vejamos uma das descrições do autor.
Acompanhando João do Rio, conhecemos um Rio de
Janeiro que, apesar de supostamente católico,
"pulula[va] de religiões" e, consequentemente, de
personagens ligados ao "mundo do sobrenatural".
Segundo o cronista,
Basta parar em qualquer esquina,
interrogar. A diversidade de cultos
espantar-vos-á. São Swendeborgianos,
pagãos literários, fisiolatras,
defensores de dogmas exóticos,
autores de reformas da vida, revelado-
Quer saber mais?
Gilberto Freyre é considerado um dos grandes intelectuais brasileiros do século XX. Nascido em Recife, em março de 1900, publicou obras importantes sobre a sociedade brasileira. Entre elas: Casa-Grande & Senzala, 1933; Sobrados e Mucambos, 1936; Ordem e Progresso, 1957.
Dica de leitura
João do Rio foi o pseudônimo utilizado por João Paulo Emílio Coelho Barreto, jornalista e cronista carioca do início das primeiras décadas do século XX. Redator de importantes jornais da época, suas crônicas se constituem em importantes fontes sobre o cotidiano da
capital da República durante aqueles anos. Ver: Rio, João do. As Religiões do Rio; Rio, João do. A alma encantadora das ruas.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 68
res do futuro, amantes do diabo,
bebedores de sangue, descendentes
da rainha de Sabá, judeus, cismáticos,
espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres
que respeitam o oceano, todos os
cultos, todas as crenças, todas as
forças do susto. Quem através da
calma do semblante lhes adivinhará as
tragédias da alma? Quem no seu
andar tranquilo de homens sem
paixões irá descobrir os reveladores de
ritos novos, os mágicos, os
nevrópatas, os delirantes, os
possuídos de Satanás, os mistagogos
da Morte, do Mar e do Arco-Íris? Quem
poderá perceber, ao conversar com
estas criaturas, a luta fratricida por
causa da interpretação da Bíblia, a luta
que faz mil religiões à espera de Jesus,
cuja reaparição está marcada para
qualquer destes dias, e à espera do
Anticristo, que talvez ande por aí?
Quem imaginará cavalheiros distintos
em intimidade com as almas
desencarnadas, quem desvendará a
conversa com os anjos nas
chombergas fétidas?
(Rio, 1951, p. 1)
O relato de João do Rio não era algo isolado.
Descrições da capital da República povoada por seres
de outros mundos não se restringiam às crônicas dos
jornais. A lista é vasta. Nos jornais, nas revistas, na
Literatura, nas Ciências Sociais, o sobrenatural marca a
sua presença nos diversos cantos do país, tanto nos
1800 quanto nos dias atuais.
Como exemplo, podemos citar a "presença" dos
"espíritos" em autos processuais que corriqueiramente
é noticiada pelos meios de comunicação. Em maio de
2007, circularam na imprensa duas notícias sobre
cartas psicografadas que foram utilizadas nos tribunais
como peças de processos com o intuito de inocentar os
respectivos réus, denunciados por homicídio. Abaixo, é
possível ler o trecho de uma das reportagens, publicada
na “Folha on-line”, em 30 de maio de 2007:
Dica de leitura
Algumas obras da literatura brasileira fazem menção a esse outro mundo. Por exemplo, no livro de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, a personagem principal é um “defunto”, que “depois de morto resolveu escrever suas memórias, trabalhadas lá no outro mundo”. Outro exemplo pode ser visto no livro Grandes Sertões Veredas, de João Guimarães Rosa, em que logo nas primeiras páginas vemos Riobaldo falando no “capiroto” e nos “baixos espíritos desencarnados”, sem contar os tantos
homens e mulheres “em endemoninhamento ou com encosto”, se perguntando se “o diabo existe ou não existe”.
Dica de leitura
A literatura sócio-antropólogica sobre as religiões mediúnicas é vasta. Aqui cito alguns textos para uma introdução ao tema. BIRMAN, Patricia. O que é Umbanda. São Paulo : Brasiliense, 1983. GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1997. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo : Companhia das Letras, 2001.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 69
FONTE:
HTTP://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/FOLHA/COTIDIANO
/ULT95U122179.SHTML
No interior deste contexto surgiram no país
vários grupos e indivíduos que foram se colocando
como legítimos intérpretes dos fenômenos relacionados
à esfera do sobrenatural. Médicos, juristas, jornalistas,
advogados, espíritas, umbandistas, candomblecistas,
para citar alguns, muitas vezes se envolveram em
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 70
debates no espaço público condenando ou defendendo
os referidos fenômenos. Um exemplo da penetração
destas questões no cotidiano da nação pode ser
encontrado na leitura do Código Penal de 1890, que foi
o primeiro grande conjunto de leis da nova ordem
jurídica instituída pelo regime republicano, e que
criminalizou o espiritismo, tal como prescreve o art.
157:
Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios,
usar de talismãs e cartomancias, para despertar
sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e
subjugar a credulidade pública:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e
multa de 100$000 a 500$000.
Aqui, trouxemos apenas um trecho do art. 157,
associado a outros dois, o 156 e o 158 que
relacionavam o espiritismo com a prática ilegal da
medicina. Tanto a perseguição àqueles ligados às
práticas tidas como sobrenaturais (mesmo depois da
introdução na Constituição de artigo decretando a
liberdade de culto no país) quanto à diversidade de
atores que se consideravam como os competentes para
analisar e emitir pareceres sobre os referidos
fenômenos perdurará até os dias de hoje. No âmbito
das religiões, é comum a associação dos referidos
fenômenos basicamente a três grupos e seus adeptos,
a saber: o espiritismo (Kardecismo), a umbanda e o
candomblé. Tais generalizações trazem consequências
tanto para as práticas desses grupos bem como para as
relações que eles estabelecem com o restante da
sociedade. Considerando-se que, do ponto de vista de
cada um dos grupos, eles não podem ser confundidos
com outros grupos / religiões que lidam com os
fenômenos espirituais, é importante o entendimento
Dica de leitura
Alguns livros que refletem sobre o espiritismo do ponto de vista das Ciências Sociais: AUBREE, M., ;LAPLANTINE, F.
La table, le livre et les Esprits. Paris: JCLattés, 1990. GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. LEWGOY, Bernardo. O Grande Mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Florianópolis: Edusc, 2004. STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: Edusp, 2003.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 71
das particularidades de cada um dos grupos. Neste
sentido, nos deteremos a partir deste momento no
espiritismo que, no Brasil, acabou por ganhar um
qualificativo e para muitos é conhecido como
espiritismo kardecista ou kardecismo.
Primeiras vozes
A foto acima é uma reprodução de um fenômeno
que se espalhou como verdadeira coqueluche por
grande parte do Ocidente, principalmente Europa e
EUA, na segunda metade do século XIX e que ficou
conhecido como as mesas girantes. Nos salões em que
a nobreza e a burguesia costumavam se reunir para
reuniões sociais, homens e mulheres se sentavam ao
redor de uma mesa e formulavam perguntas que eram
respondidas por batidas nas mesas ou movimentos
destas ao redor do salão. Das explicações que surgiram
para o fenômeno, a que ganhou mais popularidade era
a que afirmava se tratar de espíritos. Conforme relatam
Marion Aubrée e François Laplantine em livro sobre o
espiritismo, é difícil para nós imaginarmos o
entusiasmo causado pelas mesas girantes nos salões
europeus do século XIX. O trecho de uma notícia
veiculada no jornal Diário de Pernambuco, na edição de
dois de julho de 1853, explicita o frenesi causado pelas
mesas girantes:
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 72
Em Paris, não se pode entrar em um
salão sem encontrar toda a sociedade
ao redor de uma mesa, cada qual com
os dedos próximos aos dedos de seu
vizinho e todos aguardando em
silêncio por um movimento da mesa.
Apesar de rapidamente ter se difundido entre
nobres e burgueses das principais cidades europeias, o
evento que deu início a esta propagação de fenômenos
sobrenaturais aconteceu do outro lado do Atlântico, em
um pequeno vilarejo do estado de Nova Iorque, nos
EUA. A narrativa constante da literatura espírita nos
transporta para dezembro de 1847. Naquele ano, John
D. Fox, um camponês de origem alemã, mudou-se com
sua esposa e com as duas filhas caçulas - Margareth e
Kate, para uma casa no vilarejo de Hydesville, no
Estado de Nova Iorque. Poucos meses após a
mudança, os novos inquilinos passaram a ouvir ruídos
estranhos, de causa desconhecida, por toda a casa.
Ouviam-se batidas, arranhões nas paredes, sons de
móveis sendo arrastados, certas vezes, as camas
tremiam. Os estranhos ruídos foram crescendo de
intensidade, de tal forma que toda a família passou a
dormir no mesmo quarto, intrigados e assustados com
os fenômenos. Na noite de 31 de março de 1848,
houve uma irrupção desses sons inexplicáveis, foi então
que Kate, a caçula da família, observando que quando
seu pai sacudia a persiana, em busca da causa
daqueles sons, o ruído como que o repetia, resolveu
tentar uma espécie de contato com o "som". Vejamos o
relato de uma das testemunhas dos "estranhos
fenômenos", a Senhora Fox, que descreveu a cena em
seu depoimento dado a uma comissão constituída para
investigar aquelas ocorrências:
Na noite da primeira perturbação,
todos nos levantamos, acendemos
uma vela e procuramos pela casa
inteira, enquanto o barulho continuava
e era ouvido quase que no mesmo
lugar. Conquanto não muito alto, produ
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 73
zia um certo movimento nas camas e
cadeiras a ponto de notarmos quando
deitadas. Era um movimento em
trêmulo, mais que um abalo súbito....
eu não dormi até quase meia - noite.
Os rumores eram ouvidos por toda a
casa (...) Na noite de sexta-feira, 31
de março de 1848, resolvemos ir para
a cama um pouco mais cedo e não nos
deixamos perturbar pelos barulhos...
Meu marido não tinha ido para a cama
quando ouvimos o primeiro ruído
naquela noite. Eu apenas me havia
deitado. A coisa começou como de
costume. Eu o distinguia de quaisquer
outros ruídos jamais ouvidos. As
meninas, que dormiam em outra cama
no quarto, ouviram as batidas e
procuraram fazer ruídos semelhantes,
estalando os dedos. Minha filha, Kate,
disse, batendo palmas: 'Sr. Pé
Rachado, faça o que eu faço'.
Imediatamente seguiu-se o som, com
o mesmo número de palmadas.
Quando ela parou, o som logo parou.
Então Margareth disse brincando:
Agora faça exatamente como eu.
Conte um, dois, três, quatro' e bateu
palmas. Então os ruídos se produziram
como antes ... Então pensei em fazer
um teste que ninguém seria capaz de
responder. Pedi que fossem indicadas
as idades de meus filhos,
sucessivamente. Instantaneamente foi
dada a exata idade de cada um,
fazendo uma pausa de um para o
outro, a fim de os separar até o
sétimo, depois do que se fez uma
pausa maior e três batidas mais fortes
foram dadas, correspondendo à idade
do menor, que havia morrido (...)
(Doyle, 2002)
Os fenômenos de Hydesville abriram as portas
para muitos outros que vieram logo em seguida, de tal
forma que estes eventos ficaram conhecidos entre os
espíritas como “uma invasão programada do mundo
espiritual”.
A moda das mesas girantes chamou a atenção
não somente dos frequentadores dos salões europeus.
Muitos pensadores e homens ligados às atividades
Dica do professor
A Revue Spirite, ou Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, foi um periódico editado por Kardec nos moldes dos periódicos científicos da época. Constitui-se no principal espaço de divulgação do nascente espiritismo.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 74
científicas se interessaram pelos fenômenos e tentaram
encontrar explicações para aqueles eventos tidos como
sobrenaturais. Entre eles estava Hippolyte León
Denizard Rivail, renomado pedagogo francês que
também estudava o magnetismo. Rivail, que mais tarde
adotaria o pseudônimo de Allan Kardec, a convite de
um amigo, foi assistir a uma sessão das mesas girantes
e ao se deparar com mesas que giravam, se
movimentavam e respondiam a perguntas, ele se
pergunta como pode um ser inanimado, a mesa,
responder a perguntas inteligentes. Passa, então, a
frequentar algumas reuniões em que se produziam tais
fenômenos e, juntamente com outros interessados,
inicia um estudo metódico dos referidos fenômenos.
Não decorreu muito tempo o grupo capitaneado por
Allan Kardec fundou a Sociedade Espírita de Paris e a
Revue Spirite, que assumiu importante papel no
desenvolvimento e divulgação do espiritismo.
Ao lado do estudo da mediunidade, dos médiuns
e das mensagens por eles recebidas, a Sociedade
Espírita de Paris passa a receber diversas
correspondências de outros grupos espíritas espalhados
por outros países, contendo anotações das mensagens
recebidas por estes grupos. Kardec, então, após
insistência dos companheiros, sistematiza aquelas
mensagens e a partir delas formula questões para
serem respondidas pelos espíritos nas reuniões
mediúnicas, não somente em Paris, mas também
naquelas tantas outras cidades. Foi a partir destes
estudos e reuniões que Allan Kardec publica, em abril
de 1857, aquela que é considerada a primeira obra e o
marco de fundação do espiritismo, O Livro dos
Espíritos. Organizado na forma de perguntas e
respostas, em sua primeira edição continha 550 itens.
Três anos depois, em março de 1860, é lançada a
segunda edição contendo 1019 perguntas e respostas.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 75
O Livro dos Espíritos foi o primeiro de uma série
de cinco livros que ficou conhecida como a codificação
espírita ou as obras básicas do espiritismo. Obras que,
de acordo com os espíritas, trazem o cerne da Doutrina
dos Espíritos. Os outros livros da codificação são: O
Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo,
O Céu e o Inferno e A Gênese. Mas do que exatamente
tratam estes livros? O que seria esta Doutrina, que se
coloca como sendo ao mesmo tempo uma Ciência, uma
filosofia e uma religião? Conforme as palavras de Allan
Kardec:
O Espiritismo é ao mesmo tempo
ciência experimental e Doutrina
Filosófica. Como ciência prática, tem a
sua essência nas relações que se
podem estabelecer com os espíritos.
Como filosofia compreende todas as
consequências morais decorrentes
dessas relações.
(Kardec, A. O que é o Espiritismo)
Dica de leitura
Além das obras básicas e da Revue Spirite, Kardec publicou outros livros sobre o espiritsmo. Abaixo o título das obras com as referidas datas de publicação: O Livro dos Espíritos - 18 de abril de 1857; O Livro dos Médiuns - janeiro de 1861; O Evangelho Segundo o Espiritismo - abril de 1864; O Céu e o Inferno – 1865; A Gênese, os milagres e as predições - janeiro de 1868; Revue Spirite – periódico publicado mensalmente de 1858 a 1869; O que é o espiritismo – 1859;O Espiritismo em sua expressão mais simples – 1862; Viagem Espírita de 1862 – 1862; Obras Póstumas – publicado após o seu falecimento em 1890.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 76
Vejamos, a partir de agora, com mais cuidado
do que trata o espiritismo.
A cosmologia espírita
Para nos aproximarmos do espiritismo, utilizo
como ponto de partida o sumário de “O Livro dos
Espíritos”. Conforme vimos na aula anterior, além de se
tratar de uma das obras básicas do espiritismo, os
outros livros da codificação espírita aprofundam os
temas tratados em O Livro dos Espíritos, que é
composto por 1019 itens que foram organizados na
forma de perguntas e respostas e divididos em quatro
partes. Na primeira parte, o autor estuda as causas
primárias, Deus, o espírito e a matéria. O princípio vital
e da criação. Na parte segunda, o Mundo dos Espíritos;
a encarnação, a desencarnação, a missão e ocupação
dos Espíritos e seu inter-relacionamento com os
homens. A terceira parte tem um caráter
eminentemente moral, pois Kardec vai examinar a Lei
Natural, subdividida em dez Leis Morais que regem as
relações humanas: Adoração, Trabalho, Reprodução,
Conservação, Destruição, Sociedade, Progresso,
Igualdade, Liberdade e Justiça, Amor e Caridade. Na
última parte, o codificador se preocupa com as
Esperanças e Consolações e a Lei de Causa e Efeito,
tratando dos temas relacionados à destinação do
espírito após a morte, existência do céu e do inferno. A
partir da leitura das obras da codificação é possível
chegar aos chamados “princípios básicos da doutrina
espírita”; princípios que para os espíritas conteriam as
principais ideias trazidas pelo espiritismo. Apesar de ser
possível encontrar na literatura autores que falam em
sete ou mais princípios, para efeitos de nossa
exposição, vamos trabalhar com aqueles que são
consenso, a saber:
A existência de Deus;
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 77
A imortalidade da alma;
A comunicabilidade dos espíritos;
A pluralidade das existências ou
reencarnação;
A evolução universal e infinita.
Vejamos, então, cada um desses princípios.
As causas primárias: Deus, espírito e
matéria
Que é Deus? É com essa pergunta que Kardec
inicia a primeira parte de O Livro dos Espíritos, cuja
principal proposta é caracterizar a existência de Deus
como o princípio basilar do espiritismo e como o ponto
de partida de toda a Doutrina Espírita. Além disso,
Kardec procura assinalar com a pergunta uma distinção
em relação a outros sistemas religiosos que também
apregoam a existência de Deus.
Ao perguntar que é Deus, e não Quem é Deus,
Kardec retira da pergunta a pressuposição, tradicional
em muitas culturas, de um Deus antropomórfico. E a
resposta que obtém dos espíritos parece confirmar as
suspeitas de Kardec:
Deus é a inteligência suprema, causa
primária de todas as coisas.
Quer saber mais?
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec nos traz um axioma
constantemente acionado pelos espíritas para falar da união entre a fé e a razão. De acordo com Kardec, “Fé inabalável só é a que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade”.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 78
E é em torno da existência de Deus que vai
versar a primeira parte de O Livro dos Espíritos. De
fato, a principal proposta do capítulo é buscar provas
da existência de Deus. Procurando fundamentar a
crença na existência de Deus em argumentos
baseados na razão, tais como “não há efeito sem
causa” ou “todo efeito inteligente tem que decorrer de
uma casua inteligente” Kardec demonstra logo no
primeiro capítulo do livro base da doutrina espírita uma
de suas principais características: a proposta de realizar
a aliança entre a Religião e a Ciência, ou como
preferem os espíritas, entre a fé e a razão.
No livro “A Genêse, os milagres e as predições”,
será desenvolvido este tema. Tendo por base os
padrões científicos da época, ou seja, a experimentação
e o positivismo, Kardec organiza uma obra, onde os
espíritos não somente fundamentam a “fé raciocinada”,
mas também uma metodologia para a construção do
conhecimento espírita, demandando para o espiritismo
o estatuto de uma ciência, a ciência que estuda o plano
espiritual e as suas relações com o plano material.
Como coloca Kardec:
Como meio de elaboração, o
Espiritismo procede exatamente da
mesma forma que as ciências
positivas, aplicando o método
experimental. Fatos novos se
apresentam, que não podem ser
explicados pelas leis conhecidas; ele
os observa, compara, analisa e,
remontando dos efeitos às causas,
chega à lei que os rege; depois,
deduz-lhes as consequências e busca
as aplicações úteis. Não estabeleceu
nenhuma teoria preconcebida; assim,
não apresentou como hipóteses a
existência e a intervenção dos
Espíritos, nem o perispírito, nem a
reencarnação, nem qualquer dos
princípios da doutrina; concluiu pela
existência dos Espíritos, quando essa
existência ressaltou evidente da
observação dos fatos, procedendo de i-
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 79
gual maneira quanto aos outros
princípios. Não foram os fatos que
vieram a posteriori confirmar a teoria:
a teoria é que veio subsequentemente
explicar e resumir os fatos. É, pois,
rigorosamente exato dizer-se que o
Espiritismo é uma ciência de
observação e não produto da
imaginação. As ciências só fizeram
progressos importantes depois que
seus estudos se basearam sobre o
método experimental; até então,
acreditou-se que esse método também
só era aplicável à matéria, ao passo
que o é também às coisas metafísicas.
Ao lado do diálogo sobre a existência de Deus,
na primeira parte do Livro dos Espíritos, Kardec nos
apresentará os elementos gerais do universo,
afirmando que todas as coisas que existem no universo
podem ser sintetizadas em três elementos
fundamentais, que ele denomina de Trindade Universal.
Esses elementos são: Deus, espírito e matéria.
O espírito, na definição da Doutrina Espírita, é o
princípio inteligente do universo, individualizado, com
moralidade própria. O espírito é distinto de Deus, seu
criador, e da matéria, a qual se une para que possa se
manifestar. Já a matéria seria uma espécie de
instrumento para a atuação do espírito, ou seja, o
intermediário, com a ajuda do qual e sobre o qual o
espírito atua.
Mas o que seria exatamente este elemento
material? A matéria de acordo com o espiritismo pode
variar conforme, o que vamos chamar aqui, seu grau
de condensação. Por exemplo, a mesa sobre a qual
apoiamos nossos cadernos é parte desse elemento
material. Mas o caderno, também, o é. A caneta, a
tinta, também. Luz, sons, odores, também são
variações do elemento material. Dada essa grande
variedade, é possível dividir a matéria em três tipos:
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 80
Ponderável - É a matéria física, que preenche
o mundo dos encarnados, e dá origem aos
corpos e elementos;
Imponderável - Também denominada matéria
psi, matéria mental ou matéria
quintessenciada, é a matéria do mundo
espiritual, num tônus vibratório mais elevado;
Fluido Cósmico Universal - Constitui-se na
própria matéria primitiva, da qual derivam
todas as demais formas de matéria e
energias. Também exerce o papel de
intermediário entre o espírito e a matéria
propriamente dita. Por ser o elemento
gerador de todo o restante das manifestações
materiais e energéticas, guarda similaridade e
afinidade com estas, podendo, muito
facilmente, sob a ação de uma vontade,
interagir com todas, inclusive mudando suas
propriedades físicas, temporária ou
permanentemente. Os espíritos utilizam-se do
FCU para realização de muitas ações,
inclusive como “matéria-prima” para suas
intervenções sobre a matéria, no plano
espiritual e no plano material.
A partir da definição do fluido cósmico universal
é possível notar certo deslizamento na noção de
espírito. Anteriormente, vimos o Espírito como sendo
um dos elementos gerais do universo. Contudo, ao lado
dessa noção, o espiritismo apresenta e utiliza outra
definição de espírito. Vejamos o que nos diz a questão
de número 76 de O Livro dos Espíritos:
76. Como podemos definir os Espíritos?
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 81
- Podemos dizer que os Espíritos são os seres
inteligentes da Criação. Eles povoam o Universo, além
do mundo material.
NOTA: A palavra Espírito é aqui empregada para
designar os seres extracorpóreos e não mais o
elemento inteligente universal.
Ou seja, o espírito é uma individualidade. Eu,
você, todos aqueles que conhecemos somos espíritos,
preexistimos e sobrevivemos ao corpo material.
Passemos então, agora, a outros dos princípios básicos
da Doutrina Espírita.
EXERCÍCIO 1
De forma sucinta apresente as principais teses
teológicas do espiritismo.
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A imortalidade da alma, reencarnação e
evolução
Você tem alma?
Esta parece ser daquelas perguntas que mesmo
se nos deslocarmos no tempo e no espaço
encontraremos uma quase unanimidade. Ao longo da
história, os diversos sistemas religiosos vêm
apregoando a ideia da existência de uma alma. No
Egito, na Grécia, entre os Cristãos, para os Judeus,
enfim do oriente ao ocidente, a resposta a essa
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 82
pergunta seria afirmativa. Porém, não podemos
considerar tal resposta como a única. Para aqueles não
ligados às religiões, as cores seriam outras. Uma
negativa seria provável. A Alma não passaria de uma
quimera ou de algo que ainda precisa ser comprovado.
Contudo, entre os espíritas, apesar de serem
considerados como adeptos de um sistema religioso, a
resposta seria dada de forma diferente. Vejamos um
hipotético diálogo com um espírita a respeito da
questão:
Conforme já vimos, os espíritos são definidos
como sendo “os seres inteligentes da Criação”. São
criados por Deus permanentemente, sendo eternos e
indestrutíveis, ou seja, mantêm a sua individualidade.
São criados em igualdade de condições, simples e
ignorantes e dotados de potencialidades que serão
desenvolvidas ao longo das experiências
reencarnatórias. Dessa forma, para os espíritas, não há
dúvidas em relação à existência do espírito (que
quando encarnado é chamado de alma), contudo a
ênfase é colocada na separação entre o espírito (o ser,
Luciana, me diga uma coisa, você tem alma?
Se eu tenho alma, Lucas? Não.
- Mas como não, você não é
espírita?
- Deixe-me explicar, Lucas, a questão está no verbo utilizado. Na verdade, nós não temos uma alma, cada um de nós é uma alma que no momento habita um corpo físico, ou seja, um espírito encarnado. Eu não tenho, eu sou. Entendeu a diferença?
Dica do professor
Para que o elemento espiritual atue no elemento material, torna-se necessário algo que os ligue. Este elemento de ligação é o Perispírito que é definido pelos espíritas como sendo um corpo fluídico que envolve o espírito. Mais grosseiro que o espírito e mais sutil que o corpo físico, seria o responsável, entre outras funções, pela transmissão da vontade daquele para este e das sensações do corpo para o espírito. Enfim, é o elo de ligação entre o espírito e a matéria.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 83
a inteligência) e o corpo (matéria que só ganha vida
com a presença do espírito). O corpo físico não passa
de um instrumento para a atuação do espírito.
Chegamos a mais um dos elementos centrais do
espiritismo: a ideia de reencarnação ou a pluralidade
das existências. Mas o que seria exatamente a
reencarnação, conforme a doutrina dos espíritos?
A reencarnação não é uma ideia gestada pelos
espíritas. Ela faz parte de várias tradições religiosas e
culturais, como o hinduísmo, por exemplo. E, conforme
os espíritas, esta ideia também está presente nos
ensinos de Jesus Cristo. Para eles, a reencarnação é
uma Lei Natural e queiramos ou não, acreditemos ou
não, todos nós reencarnamos e reencarnaremos. Como
é possível ler no túmulo de Allan Kardec: “Nascer,
viver, morrer, renascer ainda, progredir sempre, tal é a
Lei”.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 84
Os Espíritos são criados simples e ignorantes,
isto é, sem ciência e sem conhecimento do bem e do
mal, porém perfectíveis e com igual aptidão para tudo
adquirirem e tudo conhecerem, com o tempo. A
princípio eles se encontram numa espécie de infância,
carentes de vontade própria e sem a consciência
perfeita de sua existência. A encarnação é imposta aos
espíritos para que haja a possibilidade do
desenvolvimento de suas “n” potencialidades. Dessa
forma, podemos entender que o aperfeiçoamento do
Espírito é fruto do seu próprio esforço, ele avança na
razão de sua maior ou menor atividade ou da boa
vontade em adquirir as qualidades que lhe faltam.
Na questão de número 132 de O Livro dos
Espíritos, Kardec irá perguntar:
132. Qual o objetivo da encarnação dos
Espíritos?
Deus lhes impõe a encarnação com o
fim de fazê-los chegar à perfeição.
Para uns, é expiação; para outros,
missão. Mas, para alcançarem essa
perfeição, têm que sofrer todas as
vicissitudes da existência corporal:
nisso é que está a expiação. Visa ainda
outro fim a encarnação: o de pôr o
Espírito em condições de suportar a
parte que lhe toca na obra da criação.
Para executá-la é que, em cada
mundo, toma o Espírito um
instrumento, de harmonia com a
matéria essencial desse mundo, a fim
de aí cumprir, daquele ponto de vista,
as ordens de Deus. É assim que,
concorrendo para a obra geral, ele
próprio se adianta.
E na medida em que ocorre esse avanço, ele vai
adquirindo o livre-arbítrio, isto é, a liberdade de escolha
e a consequente responsabilidade em torno das
escolhas realizadas. É desse princípio que decorre um
conhecido jargão: “Aqui se faz, aqui se paga”, ou a Lei
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 85
de ação e reação. Ao agirmos contra o nosso próximo
ou contra as coletividades, por exemplo, sendo
corruptos; nossa própria consciência nos exigirá uma
reparação, quer seja na mesma existência ou em uma
futura, pois só após o completo desenvolvimento de
nossas potencialidades é que atingiremos a perfeição,
ou a felicidade. Dessa forma, estamos todos fadados à
evolução, outro dos princípios básicos, o que varia é o
tempo que cada um de nós demanda para esta
caminhada.
EXERCÍCIO 2
Descreva as origens e o significado da reencarnação
para a doutrina espírita.
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A mediunidade
Entre todos os princípios da Doutrina Espírita,
sem dúvida o mais conhecido é a comunicabilidade dos
espíritos. Conforme colocado, a mediunidade,
juntamente com os médiuns, faz parte de nossa
paisagem. Na televisão, nos jornais, nos folhetos
distribuídos nas ruas, nos templos das diversas
religiões, o plano espiritual – tal qual é chamado pelos
espíritas – constantemente se manifesta. No Brasil,
médiuns famosos se notabilizaram e acabaram também
por divulgar o espiritismo. Entre estes, sem dúvida o de
maior expressão foi Francisco Cândido Xavier, o Chico
Xavier. Tendo psicografado mais de 400 livros, Chico é
considerado, por muitos, um dos maiores médiuns da
história e também o principal responsável pela
divulgação e pelo desenvolvimento do espiritismo em
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 86
terras brasileiras. A partir dos livros e mensagens por
ele psicografados, estabeleceu-se não somente uma
estreita comunicação entre os “vivos” e os “mortos”,
mas também passamos a conhecer com detalhes a
dinâmica dos acontecimentos, destinação e lugares
para os quais vamos após a morte.
Apesar de, no Brasil, a mediunidade ter ganhado
visibilidade com Chico Xavier, esta não é um patrimônio
do espiritismo. Pelo contrário, fenômenos envolvendo o
sobrenatural foram registrados ao longo de toda a
história da humanidade. Na Índia, na China, no Egito,
na Grécia, no mundo antigo ou durante a Idade Média,
anotou-se toda gama de episódios envolvendo a
comunicação com o “mundo dos mortos”. Para citar
apenas um exemplo, cerca de 15 séculos antes do
nascimento de Jesus Cristo; Moisés procurou disciplinar
a evocação dos mortos entre os Hebreus, através de
uma lei. A existência de uma proibição em relação à
comunicação com os mortos indica que tal fenômeno
era comum entre aquele povo.
E foi justamente o fenômeno mediúnico que
atraiu a atenção de Allan Kardec e de outros
pesquisadores. E, conforme já vimos, foi também a
partir do estudo sistemático dos referidos fenômenos e
das mensagens que eram recebidas por médiuns
espalhados por todo o planeta que irá surgir o
espiritismo. Kardec, já na introdução de O Livro dos
Espíritos, enfatiza a relevância da possibilidade de
comunicação com o plano espiritual para a constituição
da Doutrina dos Espíritos:
Os Espíritos exercem sobre o mundo
uma ação incessante. Agem sobre a
matéria e sobre o pensamento e
constituem uma das forças da
natureza, causa eficiente de uma
multidão de fenômenos até agora
inexplicados ou mal explicados,
que não encontram solução racional.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 87
Com os homens, as relações dos
Espíritos são constantes. Os bons
Espíritos nos convidam ao bem, nos
sustentam nas provas da vida e nos
ajudam a suportá-las com coragem e
resignação; os maus nos convidam ao
mal: é para eles um prazer ver-nos
sucumbir e cair no seu estado.
(Livros dos Espíritos, p. 34)
A palavra médium, uma expressão latina que
significa intermediário ou meio, foi utilizada por Allan
Kardec para designar aquelas pessoas portadoras da
faculdade mediúnica, ou seja, indivíduos capazes de
colocarem em contato mais direto os dois planos de
vida - o plano dos encarnados e o dos desencarnados.
Para o espiritismo, a mediunidade não é um dom, algo
especial que apenas uns poucos escolhidos possuem,
mas uma faculdade inerente ao homem, que se
manifesta em alguns mais ostensivamente do que em
outros. Assim, todos nós nos comunicamos com o
chamado plano espiritual. A questão é que muitas
vezes tal comunicação se dá de forma imperceptível.
Por exemplo, através do pensamento. Conforme nos
contam os espíritas, é comum termos pensamentos
dissonantes ao longo do dia. Estamos pensando em ir
estudar, ato contínuo pensamos em ir à praia, logo em
seguida, bate uma preguiça e cogitamos ficar em casa
e assim vai. Essa profusão de ideias díspares pode ser
resultado da influência dos espíritos, ou seja, fruto de
um ato de comunicação entre um espírito que está
desencarnado e nós.
Nas páginas do Novo Testamento, em Hebreus
12:1, vamos encontrar outro exemplo dessa constante
comunicação. Paulo de Tarso afirma que nós “estamos
cercados por uma nuvem de testemunhas”. Para os
espíritas, esta “nuvem de testemunhas” seriam
justamente os espíritos, que nos influenciam
constantemente. Tal influência pode ser boa ou má,
fugaz ou duradoura e se estabelece através de uma
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 88
corrente mental. O Espírito identifica o seu pensamento
com o nosso e vai introduzindo em nosso campo mental
as suas ideias, sugestões e emoções. Neste sentido, é
fundamental a compreensão de que esta influência só
se concretiza através da sintonia mental, estando o
Espírito e o encarnado em condições morais
equivalentes.
Assim como ocorre entre os encarnados,
existem espíritos bem intencionados e mal
intencionados. Uma imagem interessante para
exemplificar esta dupla influência é a de um desenho
animado, já clássico e que muitos de nós vimosquando
crianças. Falo daquele desenho do Pato Donald em que
aparece, ao lado dele, um anjinho e um diabinho que
tentam influenciá-lo durante todo o tempo da história.
Tal como ocorreu com o Pato Donald, cabe a cada um
de nós decidirmos quais serão as sugestões que
acolheremos.
Ao lado dessa influência sutil, temos a chamada
mediunidade ostensiva, que é aquela em que um
espírito se manifesta através de um médium. Kardec
estabeleceu uma classificação tanto da mediunidade
quanto dos médiuns, tendo por base o tipo de
fenômeno produzido. Vejamos esta classificação:
a) Médiuns de Efeitos Físicos: são aqueles aptos
à produção de fenômenos que sensibilizam
objetivamente os nossos sentidos, tais como:
movimento de corpos inertes, ruídos. Trata-
se de uma categoria de médiuns quase
inexistente nos dias atuais, mas que teve
fundamental importância na fase de
implantação da Doutrina Espírita. Podem ser
divididos em:
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 89
Tiptólogos: os que produzem ruídos e
pancadas. Mesmo sem que o médium tome
conhecimento, os Espíritos podem se utilizar
de certos recursos fluídicos que eles possuem
para produzir o fenômeno;
Motores: os que produzem movimentos dos
corpos inertes;
De Translação e Suspensão: os que produzem
a translação de objetos através do espaço ou
a sua suspensão, sem qualquer ponto de
apoio. Há também os que podem elevar-se a
si mesmos (levitação);
De Transporte: os que podem servir aos
Espíritos para o transporte de objetos
materiais através de lugares fechados;
Pneumatógrafos: os médiuns que permitem a
escrita direta (espécie de mediunidade onde
os Espíritos, utilizando-se do ectoplasma do
médium, escrevem sobre determinados
objetos sem se utilizarem de lápis ou caneta);
Pneumatofônicos: os médiuns que permitem
a voz direta (fenômeno mediúnico onde os
Espíritos emitem sons e palavras através de
uma "garganta ectoplásmica", sem a
utilização do aparelho vocal do medianeiro);
De Materialização: são aqueles que doam
recursos fluídicos (ectoplasma) para a
materialização do Espírito ou de parte do
Espírito, ou, ainda, de certos objetos;
De Bicorporeidade: são aqueles capazes de
materializarem seu corpo perispirítico em
local FORA do corpo físico;
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 90
De Transfiguração: são aqueles aptos a
promoverem modificações temporárias em
seu corpo físico, através da vontade e do
pensamento.
b) Médiuns Sensitivos: são aqueles capazes de
registrar a presença de Espíritos por uma
vaga impressão. Ora esta impressão é boa
ora é ruim, dependendo da natureza da
entidade desencarnada. Esta variedade não
apresenta caráter bem definido, pois todos os
médiuns são mais ou menos sensitivos;
c) Médiuns Intuitivos ou Inspirados: são aqueles
que recebem comunicações mentais
estranhas às suas ideias, vindas da esfera
imaterial. Na realidade, todos nós somos
médiuns intuitivos, pois podemos assimilar
inconscientemente o pensamento dos
Espíritos, mas, em algumas pessoas, essa
capacidade é mais evidente. Os médiuns de
pressentimento são uma variedade dos
intuitivos, onde há uma vaga impressão de
acontecimentos futuros;
d) Médiuns Audientes: são os médiuns que
ouvem os Espíritos. Em algumas vezes, é
como se escutassem uma voz interna que
lhes ressoasse no foro íntimo; doutras vezes,
é uma voz exterior, clara, distinta;
e) Médiuns Videntes: são aqueles aptos a verem
os Espíritos em estado de vigília. Kardec fazia
referência à raridade desta faculdade e em
nossos dias continua pouco comum;
f) Médiuns Falantes ou Psicofônicos: são
aqueles que possibilitam aos Espíritos a
comunicação oral com outras pessoas encarna
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 91
das, utilizando dos recursos vocais do
médium. É a variedade de médiuns mais
comum em nossos dias;
g) Médiuns Escreventes ou Psicógrafos: são os
médiuns aptos a receberem a comunicação
dos Espíritos através da escrita. Foi pelos
médiuns escreventes que Allan Kardec
montou os pilares básicos da Codificação
Espírita;
h) Médiuns Curadores: são aqueles aptos a
curarem, através do toque, por um ato de
vontade e pelo passe. Em realidade, todos
somos capazes de curar enfermidades pela
prece e pela transfusão fluídica, mas,
também aqui, esta designação deve ficar
reservada para aquelas pessoas onde a
capacidade de curar ou aliviar as doenças é
bem evidente;
i) Médiuns Psicômetras: são aqueles aptos a
identificarem os fluidos presentes em
determinados objetos e locais (Psicometria);
j) Médiuns Sonambúlicos ou de Desdobramento:
são aqueles capazes de emanciparem seu
corpo espiritual deixando a organização física
num estado de sonolência ou apatia. Segundo
Kardec, estes médiuns "vivem por
antecipação a vida espiritual", pois são
capazes de realizar inúmeras tarefas no
mundo dos Espíritos.
Na busca pelo entendimento dos fenômenos
mediúnicos, o espiritismo procura estabelecer quais
seriam as principais finalidades deste. Enfim, qual seria
o propósito dessa comunicação ostensiva do plano
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 92
espiritual com o plano material? Segundo a Doutrina
Espírita, as principais finalidades da comunicabilidade
dos Espíritos são:
Esclarecimento, Instrução e Orientação aos
Homens: Lembra Kardec que a mediunidade
assume hoje o papel que assumiram, no
passado, duas grandes descobertas, o
telescópio e o microscópio. O primeiro deveria
fornecer ao homem informações concernentes
ao macrocosmo e ao segundo detalhar o
mundo infinitamente pequeno, o microcosmo.
Cabe à mediunidade estudar o “Psicocosmo”,
o mundo dos Espíritos;
Socorro a Espíritos em sofrimento: muitos
indivíduos ao desencarnarem, por não terem
desenvolvido uma consciência de eternidade,
encontram dificuldades na sua adaptação ao
mundo extrafísico. Ansiedade, medo,
sofrimentos morais diversos, perturbação,
inconsciência da morte podem ser
identificados em muitos desencarnados. A
prática mediúnica, exercida através das
reuniões mediúnicas nos diversos centros
espíritas, é um dos recursos utilizados pela
Espiritualidade Maior para socorrer e assistir a
estes Espíritos;
Contribuir no aprimoramento moral do
médium: aprendemos com a Doutrina Espírita
que a faculdade mediúnica por si só não
basta. O importante está na conduta moral
daquele que é seu portador. Porque na base
do intercâmbio espiritual está a lei de sintonia
que diz que cada um será assistido por
Espíritos em afinidade com seus sentimentos
e suas emoções.
Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 93
A título de conclusão
Vimos aqui uma pequena introdução ao
espiritismo. Tendo nascido na França no século XIX,
aquela França que foi o berço do Iluminismo e que era
o centro cultural e intelectual do ocidente, o espiritismo
chega ao Brasil ainda, no século XIX, tal como
chegaram aqui, vindas da Europa, principalmente de
Paris, outras novidades do campo intelectual e outras
correntes de pensamento. No Brasil, assinalam os
diversos analistas, o Espiritismo ganha corpo, se
desenvolve em estreita relação com outras visões de
mundo aqui presentes, tais como o catolicismo ou
mesmo o positivismo (para citar apenas duas) e ganha
um colorido bem particular, ao mesmo tempo em que
também colore de forma singular o nosso cotidiano em
aspectos que, por muitas vezes, transcendem a esfera
do religioso, tais como, a relação da religião com a
ciência, aspectos ligados à formação da identidade
nacional, as ações de assistência social, entre outras.
Hoje, o Brasil é o país com maior número de adeptos
do espiritismo no mundo e um grande “exportador”
deste, na medida em que não são poucos os espíritas
que têm viajado a outros países divulgando a Doutrina
Espírita. Dessa forma, o conhecimento em torno da
cosmologia espírita e de seu lugar no cotidiano de
nosso país coloca-se como importante elemento para a
compreensão do panorama religioso brasileiro.
EXERCÍCIO 3
Descreva as principais características da mediunidade a
partir do pensamento de Alan Kardec.
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Aula 3| O espiritismo no Brasil e no mundo, uma aproximação 94
RESUMO
Vimos até agora:
A história do espiritismo desde de sua origem
até sua consolidação como importante
expressão religiosa brasileira;
As principais características teológicas do
espiritismo
Os momentos mais importantes da vivência
religiosa no interior do espiritismo;
A compreensão de mediunidade e sua ação
de plausibilidade e organização do mundo.
Religiosidades
Populares
Hauley Vailin
AU
LA
4
Ap
res
en
taç
ão
Nesta aula será apresentada a variedade de ritos que
compõem o que chamamos de religiosidade popular. A
expressão de fé mantida muitas vezes a revelia das grandes
instituições religiosas tem enorme importância para a
construção da religiosidade brasileira, estando mesmo em suas
origens, constituindo-se numa das matrizes do sentimento
religioso em nosso país. De forma especial será abordada
religião dos caboclos e as expressões rituais da congada.
Ob
jeti
vo
s
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja
capaz de:
A importância da cultura popular para a compreensão das
matrizes da religiosidade brasileira;
Breves aspectos teórico-metodológicos;
Análise de caso a partir da Etnografia da Festa de Caboclo
Bernardo;
O tupiniquim como a segunda faceta do herói que se revelou
na pesquisa empírica e se remete à matriz indígena;
O tema da entidade e sua ação estruturadora em tal ramo da
religiosidade brasileira.
Aula 4| Religiosidades populares 96
Considerações
Quando refletimos a cultura religiosa no Brasil,
sem esforços nosso imaginário elabora um quadro
marcado pela diversidade sociocultural. Multiplicidades
de sons, tons, ritmos, símbolos e ritos aparecem
tecidos àquilo que imaginamos como grandes matrizes
da cultura brasileira. Apesar dos encontros e
desencontros, pensamos principalmente nos negros,
portugueses e indígenas com suas diferenciadas
vivências religiosas, contribuindo de forma efetiva para
a construção daquilo que chamamos cultura brasileira
(Freire, 1975), neste caso, a religiosa.
Esta mesma diversidade aparece enquanto
pensamos a religiosidade popular. Conforme a
mentalidade vai deixando a centralidade urbana – o
que não significa que devoções populares não estejam
ali presentes – uma variedade de performances pode
ser visualizada e diferenciada, dependendo da região
imaginada. Cultos aos Caboclos e aos santos de casa,
Pajelanças e Encantarias, Umbandas, devoções aos
mortos e a personagens históricos, além das mais
variadas expressões do catolicismo, inclusive, aquelas
religiosidades que estão por trás dos movimentos da
cultura popular como as Congadas, Maracatus, Folias
de Reis, Cavalhadas.
Apesar da presença relativamente marcante
destas expressões no nosso imaginário, inclusive no
acadêmico, as populações correspondentes ocupam
geralmente espaços às margens dos sistemas
políticos/econômicos/religiosos organizados no Brasil.
Apesar da forçosa invisibilidade social e política que os
acometem, estes movimentos sociorreligiosos estão
cada vez mais conscientes de sua força social, que se
materializa crescentemente em associações,
Aula 4| Religiosidades populares 97
organizações, federações e incipientes representações
políticas.
Precisamos extrapolar os limites de
compreensão da religião popular para além da
“experiência religiosa” e da “estética”, tomar estes
movimentos como fatos sociais totais (Mauss, 0101), e
para isso é necessário empregar categorias de análise
mais concretas como “sentido”, “identidade” e “poder”
(Geertz, 2001). Pois, a religião tem aparecido, com
cada vez mais força, como importante ferramenta de
reivindicação política, ação afirmativa e,
consequentemente, de visibilização de populações
marginalizadas.
A cultura popular
Antes de tudo, precisamos definir mesmo que
brevemente um termo muitas vezes visitado e
revisitado por intelectuais, historiadores e cientistas
sociais, do qual a religiosidade popular é tributária,
trata-se da categoria cultura popular.
Segundo o historiador Peter Burke, somente no
final do século 18 e início do século 19, os intelectuais
começaram despertar interesse por manifestações
culturais diferenciadas daquela comumente presente
nos grandes centros de vivência da elite europeia
(Burke, 1989:31). Quando foi cunhada, a categoria
cultura popular pretendeu “circunscrever e descrever
produções e condutas situadas fora da cultura erudita”
(Chartier, 1995:179).
Os intelectuais notaram, neste contexto, que o
processo de industrialização provocava um importante
deslocamento populacional do campo para a cidade.
Diante das populações camponesas, que se
urbanizavam, viram o risco de, ao longo do tempo, as
Aula 4| Religiosidades populares 98
práticas culturais destes grupos viessem a “extinguir”.
Quando a cultura popular tradicional estava justamente
começando a desaparecer, que o “povo” (o folk) se
converteu num tema de interesse para os intelectuais
europeus, os artesãos e camponeses de certo ficaram
surpresos ao ver suas casas invadidas por homens e
mulheres com roupas e pronúncias de classe média,
que insistiam para que cantassem canções tradicionais
ou contassem velhas estórias (Burke, 1989:31).
No encontro entre membros da classe intelectual
e da camponesa, surgiu este movimento de
“valorização da cultura popular”, segundo Burke. Um
processo de aceitação de determinadas manifestações
culturais consideradas inferiores por uma parte da
população considerada pensante na Europa. Movidos
por um ímpeto classificatório, coletaram, colecionaram
e publicaram inúmeras canções, contos e literaturas,
que inspiraram muitas outras produções deste tipo que
acabaram caindo de bom grado no contexto dos
movimentos nacionalistas europeus, que buscavam
para si uma “autodefinição”, uma identidade “original”
que motivasse as lutas e reflexões políticas (Burke,
1989: 40).
Entre aqueles que simpatizaram com a recém
“descoberta” cultura popular estiveram grandes nomes
da política e da arte como os irmãos Grimm, Goethe,
Napoleão Bonaparte, Rousseau, Chateaubriand, entre
outros (Burke, 1989: 37). Neste sentido, no encontro
destas perspectivas, a popular e a intelectual, se
constituiu um terreno propício ao surgimento de uma
dinâmica de interação que contribuiu para o
fortalecimento das identidades que, consequentemente,
tiveram papel importante na formação dos estados
nacionais na Europa.
Aula 4| Religiosidades populares 99
Isso quer dizer que, a partir de um dado
momento histórico, práticas culturais ancestrais de uma
determinada população passaram a ser tratadas como
“cultura popular” no contexto dos debates intelectuais.
A “cultura popular”, neste sentido, nem sempre existiu
como um objeto de investigação e reflexão intelectual,
mas como experiência cotidiana vivida.
Breves aspectos teórico-metodológicos
Imagine-se em uma festividade religiosa
popular, por exemplo, tendo de analisar pelo menos um
entre os vários grupos religiosos certamente presentes,
expressos em atores e símbolos, reunidos em um
espaço sacralizado, dramatizando simultaneamente
suas crenças em performances rituais públicas?
Interpretar esta “efervescência coletiva” (Durkheim:
2003), criativa e dinâmica, no calor do ritual é uma
tarefa no mínimo confusa, em princípio.
Como toda expressão cultural humana, as
religiosidades populares não podem ser tomadas como
um fenômeno resultado de uma construção sincrônica,
harmoniosa e homogênea, imagem que o processo de
invenção das tradições se esforça em elaborar
(Hobsbawn, 2002). A cultura, segundo o antropólogo
Clifford Geertz, deve ser analisada como um tecido
inacabado, onde são perceptíveis as variadas camadas
de sentido, que se sobrepõem umas às outras,
resultado da espessa interação simbólica (Geertz,
1989:07); neste caso, entre as religiosidades
populares, os intelectuais socialmente engajados, o
tempo e o espaço, as instituições sociais e os dramas
vivenciados cotidianamente por estas populações.
Semelhante à imagem caleidoscópica, multicolorida e
multifacetada, existe nas expressões populares uma
lógica e uma dinâmica cultural passível de ser descrita
e analisada, desde que observadas atentamente.
Aula 4| Religiosidades populares 100
Além da rugosidade das expressões culturais
humanas, outro aspecto de análise útil para pensar a
dinâmica das religiosidades populares é a noção de
“grupo étnico”. Segundo Max Weber, “étnicos são
aqueles grupos humanos que em virtude de
semelhanças no habitus externo ou nos costumes (...)
nutrem uma crença subjetiva na procedência comum,
que de tal modo que esta se torna importante para a
propagação das relações comunitárias” (Weber,
2004:270). Importa perceber, na etnografia que em
breve apresentaremos, como os grupos, que
representam matrizes diferenciadas presentes no
interior da cultura popular, lançam sobre um único
personagem, pouco conhecido na história do Brasil, as
bases para a propagação de relações comunitárias e
culturais que estruturam os grupos, tanto internamente
quanto em relação uns com os outros, em processos
interligados de construção de identidades religiosas.
Os grupos étnicos compartilham, neste sentido,
além da origem em comum, outra série de aspectos
que os ajudam a definir as pertenças sociais. Tomar a
etnicidade como caminho para compreender as
religiosidades populares significa reconhecer que cada
expressão ou grupo constitui-se como “um recipiente
organizacional que pode receber conteúdo em
diferentes quantidades e formas nos diversos sistemas
culturais” (Barth, 2000:33).
Segundo Roberto Damatta (2001:115), por
exemplo, um importante predicado das tradições
religiosas no Brasil, certamente presente nas
religiosidades populares, é a ambiguidade devocional –
nem um pouco contraditória, do ponto de vista do
religioso – que permite combinar artifícios de diferentes
religiosidades em favor de suas próprias experiências.
Uma narrativa curiosa, coletada pelo sociólogo Pedro
Ribeiro, apresenta bem esta dinâmica, que chamou de
Aula 4| Religiosidades populares 101
“permissividade religiosa”. Segundo seu informante,
todas as religiões são boas, mas cada uma para uma
coisa. Para quem não tem problemas na vida, a melhor
religião é a católica: a gente se pega com os santos, vai
a igreja quando quer e ninguém incomoda agente. Para
quem tem dificuldade financeira, a melhor religião é a
dos crentes, porque eles ajudam a gente como irmão,
só que não pode beber, fumar, dançar, nem nada.
Agora para quem tem dor de cabeça, a melhor religião
é a dos espíritas; ela é exigente, não se pode faltar às
sessões, mas cura mesmo. Se Deus quiser, quando eu
ficar curada de tudo, eu volto para o catolicismo
(Ferretti, 0101).
O informante revela que, a depender da
necessidade, recorre a uma determinada expressão
religiosa, acumulando, assim, em sua experiência, uma
combinação de especialidades que capitaliza em seu
favor. Quando tomamos a noção de grupo étnico e o
pensamos como um “recipiente organizacional” (que
recebe conteúdos de diversas fontes), precisamos nos
atentar para este conteúdo, que certamente caracteriza
as culturas religiosas populares no Brasil.
Quando observamos a dinâmica das culturas
populares, notamos uma rica combinação de elementos
que compõem os processos de construção de
identidades. Estas edificações identitárias são resultado
de um árduo trabalho simbólico constituído da
interação entre religião e cultura em resposta às mais
diferenciadas demandas sociais como eventos
dramáticos, conflitos, necessidades de adaptação à
sociedade em transformação.
Estas práticas revelam repertórios simbólicos
que oferecem alternativas diferenciadas para a
resolução das mesmas questões que ameaçam a
engenharia social dos grupos (Turner, 2008). Se os
Aula 4| Religiosidades populares 102
sujeitos que compõem, inventam e reinventam estas
manifestações são, sobretudo, sujeitos religiosos e
estes vivem “num mundo suscetível a tornar-se
sagrado” (Eliade, 2002:21), as ações coletivas diante
dos dramas vivenciados no cotidiano, se não são
revestidas de caráter religioso, são ao menos
motivadas ou explicadas pela cultura religiosa.
Esta dinâmica é possível dada as circunstâncias,
por exemplo, da experiência histórica da transmissão
do catolicismo no Brasil desde o século 16. Podemos
dizer que a vivência religiosa romanizada, moralizante,
dogmática e tridentina, em grande parte, marcaram os
centros administrativos do Brasil Colônia,
principalmente a elite política. Distante destes
ambientes, o catolicismo desenvolveu-se com
significativa liberdade e com feição popular facilmente
perceptível “em suas manifestações de piedade
ruidosas e sinceras, em seu gosto por procissões
festivas e, evidentemente, em sua perfeita intimidade e
familiaridade com os santos de devoção” (Guttilla,
2006:46).
Dados estes pressupostos – e outros que serão
apresentados paulatinamente ao longo do caminho
etnográfico – interpretaremos um caso paradigmático
de cultura religiosa popular. Importa notar agora em
um incipiente caso de canonização, no imaginário,
como se constitui a dinâmica da cultura religiosa
popular. Apresentaremos dados coletados em campo
que serão interpretados à luz das correntes teóricas da
antropologia, especialmente a interpretativa.
Aula 4| Religiosidades populares 103
EXERCÍCIO 1
Descreva com suas palavras a tensão entre
religiosidade popular e religião institucional.
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Análise de caso
Etnografia da Festa de Caboclo Bernardo:
religiosidade, etnicidade e devoção
O EVENTO FUNDANTE
Na noite tempestuosa de 7 de setembro de
1887, o cruzador da Marinha Imperial Brasileira,
Imperial Marinheiro, naufragou no pontal da foz do Rio
Doce, Linhares - ES. As narrativas contam que
Bernardo José dos Santos depois de várias tentativas
alcançou o navio em frangalhos nadando em meio à
tormenta com uma corda amarrada à cintura. Cento e
vinte oito dos 142 náufragos foram resgatados em uma
pequena chalana conduzida pelo herói através do
improvisado cabo de vai e vem.
A pedido dos marinheiros resgatados, Bernardo
foi levado ao Rio de Janeiro e homenageado em ato
solene por sua ação de humanidade pela Princesa
Isabel (Reis, 2003: 72), com a medalha de ouro
correspondente ao ato de “1ª classe designada pelo
artigo 1 das instruções a que se refere o decreto de
1579 de 14 de março de 1887, 66° ano da
independência do Império” (Arquivo Público Nacional -
RJ, 1887: 150). Cumprindo a sina de muitos heróis, em
Quer saber mais?
Festa de Caboclo Bernardo hoje é um dos Encontros das Bandas de Congo do Estado do Espírito Santo e está em sua décima nona versão. Como são chamadas no Estado de Minas Gerais, as congadas são resultado da fusão da teologia congolesa com os ritos católicos, originárias no processo de cristianização do Congo (país) pela coroa portuguesa, a partir do ano de 1441. No Brasil, as congadas tornaram-se movimentos de manutenção e, mais tardiamente, de afirmação de identidade negra intimamente relacionado às confrarias religiosas que se formaram nos Estados de Minas Gerais . No Estado do Espírito Santo, as bandas de congo estão relacionadas não só às confrarias negras,
mas também à cultura indígena e cabocla.
Aula 4| Religiosidades populares 104
junho de 1917, Bernardo foi assassinado com um tiro
de garrucha no peito, dentro de sua própria casa, por
Lionel Ferreira de Almeida (Reis, 2003: 87).
Hoje, o evento mais importante relacionado ao
feito heroico e à memória de Bernardo que,
certamente, jamais foi esquecido na vila desde o
naufrágio, é a Festa de Caboclo Bernardo. Na primeira
semana de junho, na data de aniversário da morte do
herói, encontram-se na Vila de Regência bandas de
congo de todo Estado com o intuito de prestarem
homenagens ao “grande herói”. É na continuidade
narrativa e ritual deste evento que esta etnografia se
baseia, pretendendo demonstrar a dinâmica das
religiosidades populares e as íntimas relações
socioculturais que facilmente são estabelecidas entre
aquelas que acreditamos serem as matrizes da
religiosidade popular no Brasil.
QUEM É O HERÓI?
Acompanhar a religiosidade popular na Festa de
Caboclo Bernardo nos quatro últimos anos significou
acumular, através da observação dos ritos e da análise
das fontes narrativas, ao menos cinco versões que
remontam de diferentes formas à origem étnica do
herói. Serão descritas, cada uma delas, com o intuito
de desvelar os encontros entre as matrizes da cultura
popular brasileira, além de demonstrar a tênue região
de fronteira que geralmente caracteriza os estudos
deste tipo.
Partir do pressuposto de que o termo caboclo,
que antecede o nome de Bernardo, define a perspectiva
em que os grupos sociais percebem o herói seria não só
uma redução da diversidade étnica que pode ser notada
na Festa de Caboclo Bernardo, mas também seria
reduzir consequentemente as múltiplas facetas
Aula 4| Religiosidades populares 105
socialmente em formação que o herói possui. O que
não significa que, no processo de constituição do
universo religioso em torno dele, as formas de percebê-
lo sejam necessariamente contraditórias, conflitivas ou
excludentes.
O CABOCLO
Caboclo é um termo polissêmico e amplamente
utilizado em boa parte do território nacional. No
contexto amazônico ao se referir a uma determinada
população, o termo pode carregar forte conotação
pejorativa garantida pela oposição entre “cidade” e
“meio rural”, ou mesmo, entre “civilizado” e “primitivo”
(Oliveira Filho, 1999:164-196). Não é esta a conotação
que a palavra possui no contexto que interessa.
Descrever os aspectos positivos que o termo
possui na região permitirá reconstruir o sentido da
palavra, cuja importância se revela no uso que a
população faz dela e por se tornar parte integrante do
nome de Bernardo. Interessa, então, a palavra em seu
sentido “nativo” como um termo constituído
historicamente carregado de valores morais e
atribuições físicas, que através dele os habitantes deste
determinado espaço se autorreconhecem.
Importante
Uma versão curiosa sobre o que motivou Bernardo a nadar até o Navio Imperial foi-me contada por um antigo funcionário da Petrobras que trabalhou na região. A versão negava o intuito “humanitário” do salvamento, afirmava que a motivação de Bernardo teria sido a de saquear o navio, o salvamento teria sido somente uma consequência da presença dele na embarcação em frangalhos.
Aula 4| Religiosidades populares 106
O “Auto de Caboclo Bernardo” é apresentado por
moradores(as) da vila durante a Festa de Caboclo
Bernardo. A vida de Bernardo é dramatizada da
gestação até o assassínio. A imagem acima mostra
Bernardo recém-nascido sendo apresentado aos
pescadores da vila saciando a expectativa, semelhante
à messiânica, que demonstravam. No ápice da
representação teatral, o herói vai e vem agarrado à
corda estendida entre a praia e o navio de guerra,
realizando o salvamento dos 128 náufragos. O ator que
interpreta a juventude de Bernardo é um dos
pescadores mais ativos da nova geração.
Na Vila de Regência, o termo caboclo está
intimamente ligado ao modus vivendi local. Um
determinado trecho do documentário “Assim Caminha
Regência” (Salles Sá, 2005) introduz um importante
aspecto contido na categoria étnica caboclo (Barth,
2000:33). Uma cena importante é dedicada a José de
Sabino, um personagem bem conhecido tanto da
população da vila quanto dos turistas. Segundo ele,
“quem nasce na beira de praia é caboclo, eu sou
caboclo porque nasci em Regência”, definição
compartilhada por uma boa parte dos pescadores com
quem dialoguei. A continuidade das imagens do
documentário, após o depoimento, descreve o lugar,
seus habitantes, o sentimento religioso e as expressões
históricas da vila, realçando a imagem de um morador
de um determinado espaço afetivo intimamente ligado
ao mar. O desfecho do fragmento focaliza um lugar
chave para a constituição da identidade cabocla. A cena
mostra José de Sabino conduzindo o barco em direção
à boca do rio, um lugar dramático por excelência em
dois sentidos. É ali o principal espaço de reprodução
econômica dos pescadores da vila, onde diariamente
precisam enfrentar as intempéries climáticas para
garantir um bom pescado e, além disso, foi próximo à
foz do rio que aconteceu, entre outros, o naufrágio do
Aula 4| Religiosidades populares 107
navio Imperial Marinheiro, aspectos que agregam valor
sagrado àquele espaço, dados os sentimentos de
respeito e devoção que, geralmente, acompanham as
atividades de pesca.
A navegação na foz do Rio Doce fica
praticamente impossível nos dias de “virada”, pois a foz
fica totalmente exposta às ondulações, tornando
inviável qualquer incursão ao mar. Somente os mais
valentes se aproximam da foz nestes dias. É esta
condição adversa que cria o ambiente propício para
alguns pescadores demonstrarem sua “valentia”,
garantindo a reprodução econômica de várias famílias
na vila. O naufrágio do navio Imperial Marinheiro
aconteceu a quatrocentos metros sul de onde o capitão
do barco “Deus Dará”, José de Sabino, e seu filho
miram as redes de espera. Geralmente, os barcos
usados na pesca são de pequeno porte comparado com
as proporções da boca do rio em determinadas épocas.
(Foto: Hauley Valim, 2006).
A economia na peixaria de José de Sabino não
se reduz à monetária, a venda do pescado fresco, ali
circulam importantes valores simbólicos (Bourdieu,
2003) nas narrativas, nas relações sociais e nas
representações do caboclo. Num mural próximo ao
freezer estão estampadas suas façanhas, fotografias
Aula 4| Religiosidades populares 108
com cações de até 300 quilos pescados na foz do rio.
As fotografias servem de cenário enquanto Sabino
narra a pesca dos “grandes tubarões”, que se torna um
tanto dramática quando o expectador observa as
arcadas dentárias dos tubarões postas sobre a mesa ou
dependuradas no teto; prova da periculosidade da
atividade e da valentia do pescador.
A relação entre esta população com o espaço
dramático da foz do Rio Doce é um aspecto territorial e
simbólico da identidade étnica, que desperta a atenção
para outro aspecto de cunho moral. O caboclo ao se
deparar com o mar bravio lança mão das atribuições
que o caracterizam: fibra moral, coragem, vigor físico,
intrepidez, previsibilidade climática, aspectos
necessários para garantir o sucesso do seu
empreendimento.
De igual modo, são imputados a Bernardo os
predicados de bravura, força física, coragem e
intrepidez, como qualidades inerentes ao herói, que
viabilizou à administração os infortúnios marítimos
durante o naufrágio do Navio Imperial. O drama social
do naufrágio é atualizado cotidianamente no
enfrentamento das intempéries climáticas para garantir
o pescado, que, por sua vez, atualiza na memória as
atribuições do herói que também estão presentes nos
pescadores.
O que parece acontecer é que, quando um
grande processo dramático público começa, as pessoas
(seja consciente, pré-consciente ou
inconscientemente), assumem papéis que trazem
consigo se não roteiros estabelecidos com precisão,
constituem tendências profundamente marcadas de
agir ou falar de maneiras suprapessoais ou
“representativas” adequadas ao papel assumido, e
pavimentam o caminho para um certo clímax que se
Aula 4| Religiosidades populares 109
aproxima do clímax ocorrido em algum mito central da
morte ou vitória de um herói ou de heróis (Turner,
2006:95).
Segundo as proposições do antropólogo Victor
Turner, o herói Caboclo Bernardo seria para uma parte
da população da vila de Regência um paradigma-raiz,
“um mito arquetípico”, que se torna, em si, “um mito
gerador de padrões de ou para os processos individuais
e corporativos” (2006:95). O herói é criado pelos(as)
moradores(as) da vila com atribuições morais,
religiosas e físicas que, por sua vez, recria o grupo
social com estas qualidades (Berger, 1985).
Em decorrência do sentido étnico da categoria
nativa caboclo, foi possível constatar que, quando
adscrita ao nome próprio de Bernardo, o termo associa
intimamente o herói aos(as) moradores(as) da vila,
servindo como modelo paradigmático de ação e como
elemento fundamental da construção da identidade,
principalmente sob viés religioso, conforme veremos.
EXERCÍCIO 2
Apresente uma síntese sobre a experiência religiosa
acima exposta.
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O TUPINIQUIM
Tupiniquim foi a segunda faceta do herói que se
revelou na pesquisa empírica e se remete à matriz
indígena. A partir de um acaso na pesquisa etnográfica
descobri, entre tantos outros aspectos, um que, de
Dica do professor
Os Tupiniquim contemporâneos passaram a figurar nos documentos da FUNAI em meados da década de 70, com base em uma política indigenista e no movimento conhecido como etnogênese ou sociogênese, que põe em destaque as ações próprias aos povos indígenas, buscando coerências e historicidades específicas, reivindicando a herança e o pertencimento a grupos dos séculos passados e tendo a reorganização no espaço como característica fundamental
Aula 4| Religiosidades populares 110
forma especial, relacionava a etnogênese tupiniquim
aos caboclos de Regência.
Não é novidade que a vila de Regência e o
Território Tupiniquim de Comboios estejam interligados
por aspectos sociais como, por exemplo, a
descendência das antigas populações que ali habitava
no passado, além das atuais relações de parentesco, os
fluxos populacionais e pequenas trocas comerciais
Porém, um aspecto cultural destacou-se e fez com que
as preocupações da investigação se ampliassem de
alguma forma, já que as representações do herói
Caboclo Bernardo iam se ampliando.
Segundo Barth sempre existe interdependência
e articulações entre os grupos étnicos em interação,
mesmo que através de expressões de contrastes.
Pensar etnicidade demanda compreender as fronteiras
étnicas, áreas de encontro e tensão cultural (Barth,
2001:16).
No caso analisado, a etnicidade dos grupos
abordados se constrói não só através de diferenças e
contrastes étnicos, conforme é perceptível nas
diferentes versões narrativas sobre a origem étnica do
herói. Mas, a construção da identidade na vila está
intimamente associada ao vínculo cultural entre os
grupos, personificado nas múltiplas facetas do herói
anualmente dramatizadas na Festa de Caboclo
Bernardo. Estas interações significam não só formas de
socialização e associação étnica, tendo como
intermediário o herói homenageado, mas também
intercâmbios simbólicos, onde são compartilhados os
sentidos que Bernardo possui para cada grupo,
acumulando em cada versão dramatizada na festa as
atribuições das outras. Interessa-nos, então, a variante
tupiniquim de Caboclo Bernardo.
Aula 4| Religiosidades populares 111
Os tupiniquim vivenciaram processos de
aculturação desde o século XVI, com as missões
jesuíticas na província do Espírito Santo, onde foram
submetidos à política de catequese e miscigenação que
resultou na perda de referenciais de identidade, como a
língua e a religião, a ponto de serem reconhecidos e até
mesmo se autorreconhecerem como caboclos (Veiga &
Valim, 2005:05). Ser tratado como caboclo, no
imaginário popular deste contexto, significava que a
pessoa havia atingido um grau mais elevado na “escala
evolutiva”, deixando de ser índio, termo pejorativo que
possuía o sentido de primitividade, intimamente
associado às práticas antropofágicas que aconteciam na
região, como pensavam os colonizadores e naturalistas
(Saint-Hilaire, 1974:86). Por outro lado, tornar-se
caboclo sinalizava que significativas perdas culturais
haviam acontecido.
A partir dos anos 70, o grupo localizado em
Comboios que se reconhecia como caboclo passa a
reivindicar sua identidade “originária” Tupiniquim,
tendo como pano de fundo a questão fundiária e os
direitos dos povos indígenas no Brasil, e neste bojo o
mesmo personagem reverenciado na Vila de Regência
tornou-se um dos mitos fundantes das reivindicações
fundiárias do grupo. De acordo com o depoimento de
seu José Barbosa, 88 anos, um dos mais antigos
moradores da aldeia de Comboios,
Isso aqui [a terra reivindicada] era
antiguíssimo, mas não era
reconhecido, não tinha medição, isso
foi a parte do Caboclo Bernardo. Eu
conheci ele, menino de sete anos, era
muito simples, morava em casebre na
beira do rio e vestia camisola. A casa
de meu pai era pouso de viajantes
pela restinga, ele passava na casa de
meu pai e dormia lá. Caboclo Bernardo
morava em Regência e salvou o navio
Imperial Marinheiro. [...]. O navio veio
com uns homens, Marechal, Príncipe,
que vieram pra fazer pesquisa em Por-
Aula 4| Religiosidades populares 112
to Seguro, mas eles beiraram muito a
praia entre as fazendas e as
Cacimbinhas, perto de Regência. O
navio encalhou quando Caboclo
Bernardo e Pedro Alvarenga bebiam e
pescavam mero de madrugada. Ele
ouviu o alarme e endoidou, era um
caboclo muito forte. O navio encalhou
num sequeiro, Caboclo Bernardo viu
encalhar e caiu n’água, rompeu 150
metros de água pra lá. Trouxe um
cabo muito grande de linha e
despejou, no cômoro da praia, um
mourão bem forte, apanhou um outro
cabo de linha bem grosso e levou ao
navio e atravessou todo mundo. Um
mais afobado se jogou no mar, aí ele
agarrou o cabelo dele e salvou.
(Veiga & Valim: 2005: 2)
Seu José Barbosa prossegue sua narrativa,
dando ênfase à etnicidade do herói, cuja origem
indígena se incorpora ao seu próprio nome,
construindo, por contraste e por aproximação em
relação à versão de Regência, um dos fundamentos
para a territorialidade Tupiniquim, certamente evocada
desde a primeira demarcação da Terra Indígena, em
1979:
Foi então que colocaram o nome dele
de Caboclo Salvador, quando foi
chamado pelo Rei no Rio de Janeiro. O
Príncipe de um lado, ele no meio e o
Rei do outro. Perguntaram no palácio o
que queria e ele disse: “nada”.
Puseram duas moças para ele escolher
para casar, mas ele não quis, porque
já era casado com a Moça Maria. Mas
ele fez um pedido: do pontal do rio
Preto até o pontal da Barra do Riacho,
pediu as terras para os índios
trabalharem. Então o Rei deu os
papéis para ele e até hoje não sei onde
esses papéis estão. O Caboclo
Bernardo era filho da barra de
Regência, era Tupiniquim, lá e aqui era
a mesma coisa, depois é que
modificou. Além da terra, deram uma
medalha pro Caboclo Bernardo de 250
gramas de ouro.
(Veiga & Valim: 2005: 2)
Importante
A Constituição de 1988 estabelece um conceito para regulamentar e reconhecer as terras indígenas. Será considerado território indígena as terras ocupadas de forma regular com atividades tradicionais segundo os usos e costumes indígenas comprovados por perícias técnicas
Aula 4| Religiosidades populares 113
A narrativa reconstrói o processo histórico de
perda, reivindicação e recuperação de parte do
território que estas populações habitavam no passado,
hoje em posse de grande empresa produtora de
celulose. Por “antiguíssimo” entende-se que eles já
ocupavam aquelas terras com práticas tradicionaisantes
mesmo da chegada da multinacional Aracruz Celulose
S/A. As expressões “não era reconhecido” e “não tinha
medição” já fazem parte do contexto de disputa pela
terra, pois até ali eles não precisavam comprovar
através dos títulos de propriedade que aquelas terras
pertenciam a eles. No ensejo de legitimar juridicamente
a propriedade, fazem de Bernardo o intermediário entre
eles e o Império, que, segundo a tradição, era o
verdadeiro dono daquelas terras.
O ato de salvar o “marechal” e o “príncipe”,
segundo a narrativa, garantiu a Bernardo uma situação
privilegiada em relação ao Império. Diante do “rei” do
Brasil, autoridade máxima do Estado, o único pedido foi
um pedaço de “terra para os índios trabalhar”.
Reivindicar a ancestralidade com Bernardo significa
afirmar o direito legal sobre aquelas terras, afiançado
pela consanguinidade entre Bernardo e os tupiniquim,
garantindo através da herança de direito o benefício
concedido pelo Império. O último trecho da narrativa
nos fornece a segunda faceta do herói, a da perspectiva
indígena que afirma que “Caboclo Bernardo é
tupiniquim”. Dizer que Bernardo é tupiniquim excluindo
a categoria caboclo significaria perder as atribuições de
“civilidade” contidas no termo, conforme discutido
anteriormente. Além do mais, manter o termo acoplado
ao nome continua garantindo a representação das
relações de parentesco do grupo com o herói.
Aula 4| Religiosidades populares 114
A imagem retrata a homenagem tupiniquim na
capelinha de Caboclo Bernardo, da perspectiva onde o
herói é um caboclo tupiniquim. Como o cocar é recriado
sem as penas de aves silvestres, e não deixam de ser
original por isso, a etnogênese tupiniquim recria sua
identidade tendo como pano de fundo a questão
fundiária e os direitos dos povos indígenas no Brasil. As
narrativas recriam as relações de parentesco entre o
herói e os indígenas. Bernardo é quem viabiliza, de
alguma forma, o acesso às terras com seu ato heróico
(Foto: Hauley Valim, 2005).
O BOTOCUDO
De Botocudos foram denominados pelos
portugueses os povos que habitavam parte dos Estados
do Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia, que tinham
como principal característica descritiva os bodoques
auriculares e labiais que usavam como ornamento
(Reis, 2003: 47).
Apesar da perspectiva romântica em que os
indígenas botocudos são tratados nos livros didáticos, a
perspectiva histórica ensinada nas escolas da região
afirma que desenvolvimento só chegou à cidade após o
processo decorrente da “Guerra Justa”, autorizada pelo
governo Imperial por volta do ano de 1808 (Reis,
Aula 4| Religiosidades populares 115
2003:47). Este numeroso grupo foi reduzido à
etnogênese Krenak, de aproximadamente 150
indivíduos, que ocupa hoje uma pequena área
demarcada no Estado de Minas Gerais, próxima à
fronteira com o Espírito Santo (Paraíso, 1988).
O jornalista Rogério Medeiros é o principal
defensor da perspectiva que afirma que o herói Caboclo
Bernardo era um “autêntico” indígena botocudo, um
“belo exemplar” (Medeiros, 2002:01). O herói teria sido
“transformado”, isto é, teria sua verdadeira identidade
étnica disfarçada para que, afeiçoado de caboclo, fosse
à Corte e condecoração por Princesa Isabel, já que o
próprio Império havia declarado “Guerra Justa” contra
os indígenas botocudos desde o início do século XIX.
Segundo Medeiros, trocaram a sua identidade racial de
propósito para ele poder figurar no panteon dos nossos
heróis. Esse último caso é o do índio botocudo
Bernardo, que subiu ao pódio dos nossos heróis depois
de salvar, por volta de 1887, 128 náufragos do vaso de
guerra da Marinha Imperial, na foz do Rio Doce.
Canibais eram também os avós do caboclo Bernardo,
como canibais foram ainda os seus pais, enquanto ele,
personagem de outra época na foz do rio Doce,
assombrava uma pequena população, composta de
brancos e mestiços, com os seus hábitos tribais.
Esse rolo todo quanto à sua origem foi feito pela
elite capixaba, que fraudou a sua identidade a fim de
livrá-lo da ira da Corte para com os botocudos, dos
quais era, em verdade, um belo exemplar (Medeiros,
2002:01).
A narrativa de Medeiros afirma que eram
“canibais” os avós e os pais de Bernardo e que, apesar
de morar em uma vila, continuavam com seus “hábitos
tribais” “assombrando” a população local,
provavelmente cristãos convertidos. Entretanto, o
Aula 4| Religiosidades populares 116
salvador (do naufrágio) nesta perspectiva é quem é
salvo. O grande feito aqui é da elite capixaba, pois é ela
quem maquia de caboclo o índio viabilizando a
condecoração, pois, caso contrário, um feito heróico
“botocudo” não seria reconhecido pelo Império.
Esta versão associa duas perspectivas, uma
intelectualizada e uma popular, que nos remete, a
última, à Banda de Congo São Benedito do Rosário da
Vila do Riacho, município de Aracruz, a alguns
quilômetros de Regência. Ali, ser Botocudo é um estado
a ser criado em contraste com os indígenas Tupiniquim.
Parte do conhecimento sobre as questões
indígenas que Antônio possui, segundo ele, deve-se ao
tempo em que atuou informalmente como
representante da etnogênese tupiniquim em reuniões,
encontros e congressos, onde eram discutidas as
implicações jurídicas das reivindicações fundiárias dos
grupos indígenas. No entanto, ao reunir orientações
jurídicas, antropológicas e históricas, sob o amálgama
da tradição oral, como fora certamente socializado por
sua mãe, Antônio tornou-se não só um intermediador
de conhecimentos, mas também um produtor de
histórias. Os livros didáticos, principalmente de História
do Brasil, e as tradições orais são as fontes para
reconstruir 500 anos de história que seus ancestrais, os
indígenas botocudos, ocuparam tradicionalmente suas
terras na região.
Os botocudo devem sua elementar insipiência ao
que George Simmel chamou de natureza
sociologicamente positiva do conflito (Simmel, 1983). O
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no
Brasil despertou no grupo social uma autoconsciência
identitária por aproximação étnica. Por similaridade,
perceberam que possuíam verossimilhanças culturais,
estreitas relações sociais e de parentesco, além de
Aula 4| Religiosidades populares 117
grande semelhança fenotípica com os reconhecidos
institucionalmente indígenas tupiniquim. Em
conseqüência disso reclamaram com seus “parentes” o
direito de participar das reivindicações fundiárias do
grupo. O que foi prontamente negado pelos tupiniquim,
sob a alegação de que eles já não eram indígenas, por
morarem na vila do riacho, por estarem urbanizados
teriam perdido os direitos fundiários. Contra-
argumentaram afirmação que eram “índios
desaldeados”, o que não resolveu o impasse.
O fato de não serem reconhecidos pelos
“parentes” tupiniquim como descendentes dos povos
originários foi a motivação que encontraram para a
etnogênese botocudo. A identidade que inicialmente
fora despertada pela semelhança agora fundamenta-se
pela diferenciação e pelo contraste étnico, aspecto
considerado por Fredrik Barth como fundamental para a
constituição dos grupos étnicos (2001:16). Aqui dois
grupos que representam, no imaginário, uma única
matriz constroem sua religiosidade através de
aproximações e contrastes.
Em setembro de 2006, estive com Dona
Astrogilda e o capitão Antônio no centro espírita de
orientação umbandista que presidem na Vila do Riacho,
curiosamente ao lado de uma igreja batista. A mesa de
santo e outros paramentos sagrados revelaram a
relação que existia entre aquela religiosidade e a da foz
do rio.
Astrogilda falava com liberalidade sobre os
santos que ocupavam a mesa e as devoções religiosas
do grupo e Antônio permanecia sempre atento ao que
versávamos. Para ela, o santo mais importante daquela
mesa era Santo Expedito, elevado por trás dos outros,
pronto para qualquer “causa justa e urgente”. Em
momento oportuno, Antônio me olhou nos olhos com ar
Aula 4| Religiosidades populares 118
de quem deseja revelar um segredo, curvou-se para o
meu lado e disse baixinho: “Santo Expedito atingiu um
grau de luz tão alto que já não baixa no terreiro, agora
a guia principal é o Caboclo Sete Flechas quem faz os
serviços”. Conforme a etnogênese botocudo vai se
constituindo e a geração subsequente vai se
legitimando na liderança, Expedito vai perdendo
capacidade de ação na realidade humana e o Caboclo
Sete Flechas, de feições indígenas, vai ocupando o
lugar central no imaginário.
O caboclo que ali tem vez não é somente o Sete
Flechas. Hasteadas em lugar de destaque na parede
frontal do altar duas bandeiras com a imagem de
Caboclo Bernardo ocupavam sozinhas os lados opostos
da mesa de santo. Após comentar as performances das
bandas de congo na Festa de Caboclo Bernardo naquele
ano, Antônio me chamou a atenção para a terceira
versão do herói. Perguntou o mestre da banda de
congo: “você sabia que Caboclo Bernardo era um índio
botocudo? Pois é, ele era!”, respondendo sua própria
pergunta. E acrescentou: “Não demora ele faz milagre
lá em Regência, vai depender da fé do povo”, sem
esforço um relevante dado antropológico se apresentou
naquele momento.
Aula 4| Religiosidades populares 119
Na fotografia, a Bandeira de Caboclo Bernardo
da Banda de Congo São Benedito do Rosário
empunhada por uma devota. Somente na Festa de
Caboclo Bernardo, a bandeira deixa o centro espírita de
umbanda dirigido por dona Astrogilda e por seu filho
Antônio. A imagem traz o busto de Bernardo e o
naufrágio em segundo plano; a maioria das ilustrações
remonta esta perspectiva, semelhante ao busto em
bronze que a Marinha do Brasil presenteou a Vila de
Regência. No detalhe do naufrágio: no lado direito do
herói nadam desorientados aqueles que serão tragados
pelas águas; do lado esquerdo, Bernardo agarrado ao
cabo de vai e vem traz pelo pescoço um náufrago
(Foto: Hauley Valim, 2006).
No entanto, manifestações religiosas de Caboclo
Bernardo não são novidades para Dona Astrogilda. Nas
últimas versões da Festa de Caboclo Bernardo,
documentei duas experiências protagonizadas por ela.
No ano de 2004, após falar sobre a importância da
festa para a “cultura popular”, descreveu a visão
religiosa que presenciou no caminho:
Quando a gente vinha ali na estrada, eu olhei
para a praia, e o ônibus fez uma meia paradinha por
causa dos buracos. Tinha uma banda de congo, mais
uma coisa bonita mesmo, aquelas roupas branca e
azul, mas a calças dos homens era tipo de marujo, tudo
fofinha por baixo. E eu estou esperando até agora,
neste momento, esta banda chegar aqui, mas não
chegou ainda. Mas o que esta banda de congo estava
fazendo na praia? Estou com 73 anos nas costas e não
estou doida não, estou vendo visão. Isso aí deve ser
uma representação, porque hoje é dia do grande
tripulante Caboclo Bernardo, deve de ser algum marujo
por lá brincando, só pode. Representando ele porque
estamos com alegria (Veiga &Valim, 2006:04).
Aula 4| Religiosidades populares 120
No ano de 2006, presenciei a descrição de outra
experiência religiosa na costumeira prédica de
Astrogilda na festa de Caboclo Bernardo. Porém, desta
vez, ela vivenciou uma cura direta protagonizada pelo
herói e por Nossa Senhora. Tanto a visão da banda de
congo na praia quanto a intervenção direta foram
dramatizadas por Dona Astrogilda em performances
públicas no interior da capelinha de Caboclo Bernardo.
Experiências religiosas como estas protagonizadas no
interior de outro grupo étnico incidem diretamente
sobre a religiosidade local, já que outros sentidos são
compartilhados coletivamente nas festividades.
A ENTIDADE
A antropóloga Véronique Boyer (1999), no texto
“O pajé e o caboclo: de homem a entidade”, fez um
breve levantamento bibliográfico e percebeu,
principalmente na região amazônica, que a
multiplicidade de sentidos que o termo caboclo carrega
transita entre o “caboclo-homem” e o “caboclo-
entidade”. A depender da região onde está sendo
pronunciado, refere-se qualitativamente a uma
determinada população ou a um “ser invisível” oriundo
da tradição do candomblé com influência ameríndia
(1999:30).
Tanto o “caboclo-homem” quanto o “caboclo-
entidade” são personagens familiares para as
religiosidades populares. A multiplicidade de possíveis
sentidos que a palavra caboclo carrega aliado à
interação simbólica, característica do imaginário
religioso popular, pode ter sido um dos gatilhos da
constituição da quarta versão de Caboclo Bernardo que
descreveremos.
Foi um dia de domingo. Eu cheguei do lado de
fora de casa e vi um pessoal de branco na pracinha e
Aula 4| Religiosidades populares 121
fui perguntar para Sangalha [esposo]: “tem uma banda
de congo por aí? Tem alguma coisa marcada para hoje?
Acho que não tem nada não?! Fiquei curiosa e fui lá
olhar, para saber de onde era aquela banda de congo.
Quando cheguei percebi que não era banda de congo,
mas um pessoal do centro espírita de umbanda lá de
Uberlândia, Minas Gerais. A gente foi conversando com
eles e os curiosos foram chegando, o pessoal daqui da
vila, né. Eles falaram que, neste centro, há muito
tempo eles ouviam falar de Regência e Caboclo
Bernardo, e que tinha uma senhora no centro que
incorporava a entidade de Caboclo Bernardo. Eles
sempre quiseram vir aqui, mas não tinham
oportunidade porque o ônibus era muito caro...
A senhora que incorporava Caboclo Bernardo
estava operada. Ela estava sentada num banco ali na
praça e contava do naufrágio. Sobretudo ela falava
assim: “olha quando tem festa, quando é a minha
festa...”, aliás, ele falava assim através dela: “Quando
tem festa eu fico sentado ali naquela árvore, atrás dela,
fico ali olhando...”, e apontou a árvore – ela nem existe
mais porque a prefeitura reformou a praça, arrancou a
árvore e plantou outra, “eu fico ali atrás observando
tudo, olhando tudo e sei tudo”. Ela apontava para cá e
falava: “olha, eu morava ali, por ali assim, morei ali e
foi ali que me mataram”.
Mas ninguém se interessou, ninguém teve a
curiosidade de perguntar, se alguém anotou o endereço
deles eu não sei. Eles foram lá em casa duas vezes,
tomaram água, tomaram suco... Eu fiquei tão pasma...
Foi uma coisa tão surpreendente que eu não tive a
curiosidade de perguntar o endereço deles. Eles
falaram que iriam voltar na Festa de Caboclo Bernardo,
isso foi em noventa e oito, noventa e nove, mas até
hoje não voltaram, nem a gente teve mais notícias
deles (Vila de Regência, 06/2005).
Aula 4| Religiosidades populares 122
O evento descrito por Bibiu aconteceu na praça
da vila de Regência próximo à Igreja Católica, nos
finais da década de 90. A narrativa apresenta um caso
clássico de uma médium incorporada por uma entidade
espiritual. Segundo a descrição da historiadora, a
senhora recém-operada recebeu a “entidade de Caboclo
Bernardo”, representação até ali desconhecida para a
população da vila. A experiência mediúnica narrada
suscita uma variante que, diferente das outras, não
vindica determinada origem étnica do herói.
A narração não deixa de fora os dois aspectos
elementares do fenômeno: o naufrágio, o mito
fundante, e a Festa de Caboclo Bernardo, o ritual
religioso que atualiza na memória a narrativa mítica. A
descrição também destaca o lugar de origem do grupo,
a tradição religiosa e, consequentemente, a força da
experiência, que motiva um deslocamento de
aproximadamente 1300 quilômetros, entre a cidade de
Uberlândia – MG, e a vila de Regência.
Segundo Reginaldo Prandi, “a umbanda juntou o
catolicismo branco, a tradição dos orixás da vertente
negra e símbolos, espíritos e rituais de referência
indígena, inspirando-se, assim, nas três fontes básicas
do Brasil mestiço”. Neste sentido, a dinâmica da
descrição narrativa poderia, sem esforço, ser
recomposta dentro da tradição de umbanda e até
mesmo do candomblé caboclo, onde a presença deste
tipo de entidade e este tipo de experiência são comuns.
Antropologicamente, não estamos preocupados
se a narrativa apresenta um “fato histórico”, o que
também não pode ser descartado, o importante é o
sentido que ela produz ao ser contada e recontada.
Durante uma entrevista, abordei o assunto com Dona
Mariquinha e antes mesmo que eu concluísse a questão
sobre a médium, ela interrompeu minha fala com a
Dica do professor
Guardião da alma de Caboclo Bernardo e Rainha das bandas de congo são autotitulações que passaram a conter posteriormente as atribuições rituais de Seu Miúdo e Dona Mariquinha, respectivamente. Com o tempo, as titulações caíram no uso dos participantes da
Festa de Caboclo Bernardo. Dona Mariquinha é a organizadora da Festa de Caboclo Bernardo, assim como idealizadora da capelinha de Caboclo Bernardo, e se responsabiliza, em parte, pela dimensão ritual do sistema simbólico. Seu Miúdo, durante sua vida, dedicou-se à manutenção das narrativas que remontam o ato heróico. Foi responsável, por sua vez, pela dimensão do mito.
Aula 4| Religiosidades populares 123
afirmação: “sei que ela foi visitar a tumba de Caboclo
Bernardo e recebeu a entidade”, e acrescentou “tem
que saber quem é para convidar para a festa, mandar
um ofício para eles virem”. A visita ao jazigo do herói,
mencionada por Mariquinha, não aparece na versão de
Marly, assim como se difere o local onde aconteceu a
epifania.
Porém, mais curiosa é a apropriação que Seu
Miúdo faz do acontecimento. Em uma cena do
documentário “Assim Caminha Regência” (trecho
26’36”), o Guardião da Alma de Caboclo Bernardo
afirma que “ele abaixou [Bernardo] em um centro
espírita lá em Uberlândia, Minas, então abaixou ele e
um companheiro, eu e ele, aí fizeram muita oração,
para ele, pra mim”. Se para Dona Mariquinha interessa
acrescentar mais grupos na incipiente devoção ao
Caboclo Bernardo, para Seu Miúdo importante é
adquirir, através de autoatribuições, relações e
semelhanças com o herói do naufrágio.
Bernardo na vila constitui-se como um
personagem histórico, um “caboclo-homem” conforme
classificou Véronique de Boyer, que adquire outra
substância e status religioso com esta versão, além das
contribuições da versão tupiniquim. No vai e vem de
sentidos e símbolos, o “caboclo-homem”
metamorfoseou-se em “caboclo-entidade”, oferecendo,
em termos qualitativos, outro insumo para a
constituição do sistema cultural investigado, que
caracteriza, em suma, a religiosidade popular brasileira,
que, conforme o sociólogo, Pedro Ribeiro, acumula os
fatores eficientes das mais variadas contribuições em
favor de sua própria perspectiva religiosa.
Aula 4| Religiosidades populares 124
O NEGRO
O que inicialmente apresentou-se como uma
displicência jornalística me desperta para mais uma
intricada versão do herói, que o associa simbolicamente
a um personagem religioso bem conhecido pelas
populações afrodescendentes. Folheando o livro
“Negros do Espírito Santo” (Osório; Bravin & Santanna,
1999) em uma livraria, deparei-me com uma figura
muito familiar. Seu Miúdo, figura póstuma bem
conhecida na vila, posava ao lado da imagem de São
Benedito em uma fotografia tirada na igreja de São
Benedito, em Regência. A imagem trazia a seguinte
legenda:
Devoto. Ele é o guardião da memória de Caboclo
Bernardo, o escravo negro que, em 7 de setembro
1887, salvou do naufrágio o navio Imperial Marinheiro
na barra do Rio Doce, em frente à Vila de Regência, em
Linhares. Chegou a ser condecorado pela princesa
Isabel e hoje é reverenciado com uma festa em seu
nome. Seu Miudinho não deixa a história morrer e
segue cantando jongos em homenagem ao herói negro
e a Bino Santo [São Benedito] (Osório; Bravin &
Santanna, 1999:112).
Sentido narrativo semelhante encontrei no
carnaval da capital capixaba no ano de 2002. A “Escola
de Samba Independentes de Boa Vista” trazia como
tema “O congo e o jongo: o mais capixaba dos
enredos”. O tema contava a importância do congo
como uma contribuição das três raças para a formação
da identidade capixaba, em consonância com o tríptico
estrutural da identidade brasileira, o negro, o branco e
o índio, de Gilberto Freire (1975). No entanto, o
interessante foi uma outra forma de assimilação do
herói presente na dinâmica carnavalesca.
Aula 4| Religiosidades populares 125
O carnavalesco descrevia no perfil da escola o
carro alegórico Congo da Serra:
Carro Congo da Serra – Fantasia Caboclo
Bernardo – Este carro representa toda uma lenda que
diz que um navio negreiro de nome "Palermo" quando
se aproximava da costa serrana começou a naufragar e
os negros começaram a clamar por São Benedito e
conseguiram se salvar agarrando-se ao mastro do
navio.
Logo após, apresentou o destaque do carro
“Congo da Serra”:
Destaque Principal: José Áureo – Caboclo
Bernardo foi uma pessoa que nadou até o navio que
naufragava com uma corda amarrada ao corpo a qual
amarrou ao mastro no qual os negros estavam
agarrados e as pessoas que estavam na praia os
puxaram.
Disparidade alguma haveria se juntássemos
duas narrativas. Existe uma clara continuidade na
descrição do evento, a não ser em relação ao
protagonista que, em determinado momento, é
abruptamente substituído por outro. Na primeira
perícope, quem protagoniza o evento é São Benedito,
quem, após clamor, solta o mastro do navio para os
escravos se agarrarem. Na segunda parte, no entanto,
no desfecho do salvamento, em vez do santo, quem
aparece é o herói, quem nada até os náufragos com a
corda amarrada à cintura finalizando o salvamento.
A relação entre o santo e o herói na descrição
começa a fazer sentido quando resgatadas as
narrativas míticas que relatam os feitos destes dois
personagens. O principal milagre atribuído a São
Benedito, no Estado do Espírito Santo, é o salvamento
Para navegar
http://www.vitoria.es.gov.br/secretarias/cultura/perfil2002.htm, acessado dia em 10/2006. http://www.vitoria.es.gov.br/secretarias/cultura/perfil2002.htm, acessado dia em 10/2006.
Aula 4| Religiosidades populares 126
de oitos escravos no naufrágio do navio Palermo – a
aproximadamente 80 quilômetros da foz do Rio Doce,
no município da Serra. As narrativas contam que os
negros foram salvos ao se agarrarem ao mastro que se
soltou do navio submerso, após interpelarem ao santo.
O evento que fez de Bernardo herói, semelhantemente,
foi o salvamento de 128 marinheiros náufragos do
navio Imperial Marinheiro na foz do Rio Doce. A
estratégia utilizada por Bernardo foi levar até os
destroços do navio uma corda por onde os náufragos
chegaram até a praia.
A continuidade da descrição carnavalesca
permite pensar que, no ato do salvamento do navio
Palermo, estiveram presentes os dois personagens, o
santo e o herói. A narrativa divide em duas partes o
evento, descreve as duas estratégias usadas, os dois
protagonistas estão presentes na descrição, entretanto,
a construção do texto funde as distintas tradições em
consequência da verossimilhança das narrativas. A
confluência narrativa é possível porque não existe
contradição étnica na afirmação “Caboclo Bernardo é
um escravo negro”, presente na legenda da foto e no
imaginário religioso popular, claro.
A similaridade da narrativa dos naufrágios
sintetiza em um lugar comum a origem dramática das
populações afrodescendentes e caboclas no Estado do
Espírito Santo. A presença de Bernardo no mito de
origem do direito fundiário tupiniquim também remonta
um drama social. O milagre e o ato heróico viabilizam a
passagem de um período dramático para um período de
redenção dos grupos. Estes fatos assinalam as trocas
simbólicas (Bourdieu, 2003) que capacitam ou orientam
grupos na administração dos próprios conflitos, criando
heróis, gerando símbolos e paradigmas de
comportamento (Turner, 1974:03). Fazer de Bernardo
um escravo negro significa acrescentar um importante
Aula 4| Religiosidades populares 127
vulto da história do Espírito Santo no processo de
resistência e de reconstrução da identidade afro-
descendente capixaba.
QUAL DAS VERSÕES É A MAIS IMPORTANTE? E O
QUE TUDO ISSO TEM A VER COM AS MATRIZES DA
RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL?
Segundo Fredrik Barth, as categorias étnicas
oferecem “um recipiente organizacional que pode
receber conteúdo em diferentes quantidades e formas
nos diversos sistemas culturais” (2000:33). Com as
várias facetas do herói descritas, é possível afirmar que
Bernardo está longe de ser uma figura homogênea. Na
verdade, sua hibridez está em consonância com a
multifacetada religiosidade popular. A Festa de Caboclo
Bernardo, neste sentido, é um lugar de interação social
e simbólica, onde os sentidos sobre o herói se
sobrepõem uns sobre os outros gerando e agregando
novas formas de percebê-lo. Assim como nos cultos de
caboclo na Amazônia, a Festa de Caboclo Bernardo
parece incorporar as distintas “representações relativas
a vários grupos de população” (Boyer, 1999:35), sem
que haja conflitos ou contradições aparentes. A
dinâmica das várias facetas em constituição que o herói
possui constitui-se como “trabalho simbólico árduo
sobre a multiplicidade de sentidos da palavra caboclo”
(Boyer, 1999:30).
Na temporalidade ritual da Festa de Caboclo
Bernardo, é possível perceber as variadas atribuições
que o herói possui de perspectivas étnicas distintas e
de forma alguma simplificada. Na Festa de Caboclo
Bernardo, é possível se deparar com uma
“multiplicidade de estruturas conceituais complexas,
muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às
outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares
e inexplícitas” (Geertz, 1989:07).
Aula 4| Religiosidades populares 128
É nesta tensão polissêmica que a identidade
religiosa na vila de Regência se constitui, assim como
se constituíram inúmeras outras identidades, dadas as
estruturas da religiosidade popular no Brasil. Por isso,
não se deve circunscrever o sentido que o herói possui
à perspectiva da população de Regência, pois seria
ignorar as versões que de alguma forma são
assimiladas na interação simbólica que acontece entre
os grupos étnicos. Interessam sim, neste sentido, as
variadas versões do herói, pois cada uma delas atende
as necessidades tácitas da construção das identidades
socioreligiosas de cada grupo, caracterizando assim a
dinâmica religiosa presente nas interações entre as
culturas religiosas populares no Brasil.
EXERCÍCIO 3
Em sua opinião como seria possível integrar a
religiosidade popular em sua prática docente junto ao
ensino religioso.
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_______________________________________
_______________________________________
RESUMO
Vimos até agora:
A importância da cultura popular para a
compreensão das matrizes da religiosidade
brasileira;
Breves aspectos teórico-metodológicos;
Análise de caso a partir da Etnografia da
Festa de Caboclo Bernardo;
Aula 4| Religiosidades populares 129
O tupiniquim como a segunda faceta do herói
que se revelou na pesquisa empírica e se
remete à matriz indígena;
O tema da entidade e sua ação estruturadora
em tal ramo da religiosidade brasileira.
Novas Configurações nas Religiosidades
Cristãs Brasileiras
AU
LA
5
Ap
res
en
taç
ão
Nesta aula vamos fazer uma reflexão aplicada ao estudo das
novas configurações dos cristianismos emergentes de diversos
matizes, situando as hibridações como possibilidades dentro da
complexidade religiosa, compondo o quadro maior exemplar e
representativo das diversidades das religiosidades na cultura
brasileira.
Ob
jeti
vo
s
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja
capaz de:
Discutir a configuração dos cristianismos emergentes a partir
de da construção de um quadro de referência;
Situar as hibridações como possibilidades dentro da
complexidade religiosa;
Identificar matizes exemplares das religiosidades na cultura
brasileira.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 132
Novas configurações nas religiosidades
cristãs brasileiras
Seremos forçados a concluir que nosso
mundo não se secularizou, mas antes
que os deuses e esperanças religiosas
ganharam novos nomes e novos
rótulos, e seus sacerdotes e profetas,
novas roupas, novos lugares e novos
empregos.
(Rubem Alves)
Começando...
Nesta aula vamos fazer verificações, análises e
interpretações com respeito às novas configurações
religiosas que vêm surgindo no contexto da cultura
brasileira, considerando os cristianismos e as demais
religiões que vêm emergindo, com matizes diversos.
Nossos objetivos são: os de a) Discutir a configuração
dos cristianismos emergentes a partir de da construção
de um quadro de referência; b) Situar as hibridações
como possibilidades dentro da complexidade religiosa;
e c) Identificar matizes exemplares das religiosidades
na cultura brasileira.
O fenômeno religioso se apresenta hoje
renascido. Renasceu como uma força operativa. Este
dado é facilmente verificável. O conjunto das ações no
campo acadêmico dentre outros, que têm se dedicado a
religião é tão notável que não se pode ter qualquer
dúvida de quão patente é o fenômeno no mundo
contemporâneo. Se verificarmos o número de Trabalhos
de Conclusão de Cursos, a quantidade de dissertações e
teses de importantes instituições de ensino que têm se
detido nesta temática, podemos perceber que este é
um objeto de pesquisa em voga. Sendo assim, vale a
pena o estudarmos. Mas antes, analise a seguinte
provocação:
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 133
E aí, você se sente provocado? Que idéias
importantes o texto lhe traz? Este texto acima busca
espelhar de forma lúcida as novas possibilidades em
termos culturais que temos vivido hoje. Na verdade,
“Híbrido” do grego hybris, corresponde a uma
mistura que violava as leis naturais. Para os gregos
o termo correspondia à desmedida, ao ultrapassar
das fronteiras, ato que exigia imediata punição.
Híbrido é também o que participa de dois ou mais
conjuntos, gêneros ou estilos. Considera-se híbrida
a composição de dois elementos diversos
anomalamente reunidos para originar um terceiro
elemento, que pode ter as características dos dois
primeiros (reforçadas ou reduzidas).
O termo híbrido tem vindo a ser utilizado, sobretudo
pela crítica pós-moderna preferentemente aos
termos mestiçagem ou sincretismo, uma vez que o
termo mestiçagem estaria, sobretudo associado à
mistura de raças, no sentido de miscigenação,
enquanto que o termo sincretismo estaria sobretudo
associado à mistura de diferentes credos religiosos.
Assim, hibridação seria a expressão mais apropriada
quando queremos abarcar diversas mesclas
interculturais.
A fronteira é o limite entre duas partes distintas, por
exemplo, dois países, representando muito mais do
que uma mera divisão e unificação de pontos
diversos.
As fronteiras determinam a área territorial exata de
um Estado e a sua base física, podendo ser naturais,
geométricas ou arbitrárias.
(...)
A permeabilidade das fronteiras convencionais que
separam os vários níveis de cultura, os gêneros
culturais, a ciência e a tecnologia, e ainda o emergir
de fenômenos e objetos híbridos são das mais
importantes manifestações das dinâmicas culturais
no mundo contemporâneo. Essas dinâmicas
desenvolvem-se numa área marcada pela tensão
entre a globalização cultural e rearticulação local de
configurações culturais, e têm dado lugar ao
aparecimento e confrontação de diferentes formas
de pensar a condição pós-moderna, opondo a
celebração dessa condição à tentativa de construir
um pensamento crítico pós-moderno, que permita
explorar os novos territórios da cultura, as formas
de associação e dissociação ligadas aos novos
repertórios culturais e às configurações culturais
emergentes e as suas implicações sociais e políticas.
http://pt.shvoong.com/humanities/1740173-hibridismo-fronteira/ Acessado em 16/03/2011
Hibrido na Religião
Pluralidade na Religião
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 134
como tudo em nossa cultura, pegamos palavras antigas
para dar-lhes novos sentidos. É assim que acontece.
A palavra “híbrido” que antes tinha o sentido de
mistura, e fenômeno que produzia coisa ruim, que só
podia trazer confusão. Agora passou a ter o sentido de
acontecimento novo, tanto que merece inclusive
admiração. Por isto que a ocorrência que é chamada de
“composição de elementos diversos anomalamente
reunidos” não assusta mais ninguém. Com muita
facilidade você encontra quem ria da tentativa de se
achar quem posse ser considerado “normal”. O
diferente quase não assusta mais.
Hoje as “mesclas interculturais” podem ser
chamadas de hibridismos. Os hibridismos
representariam as associações de elementos que antes
estavam bem demarcados em seus nichos culturais. E
mais importante, a dinâmica cultural do mundo que
vivemos tem sido decisivamente distinguida pelos
fenômenos que invadem fronteiras, emergem híbridos
em sua nova configuração.
Desta maneira, o global e local se manifestam
juntos. O antigo e o novo se articulam de maneiras
originárias. A emergência de fenômenos híbridos é
extremamente procurada nos dias de hoje. Veja a
composição que estamos fazendo e procurem
interpretá-la de seu ponto de vista:
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 135
EXERCÍCIO 1
Descreva do seu ponto de vista o que acontece na
representação acima:
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
É difícil? Antes tínhamos muitas mais
dificuldades para entender o novo. Levávamos algum
tempo para nos acostumarmos com aquilo que víamos
de diferente. Hoje cada vez mais, e mais rápido, vamos
nos defrontando com coisas que antes só podíamos
chamar de esquisitas.
Encontramos os híbridos nas esquinas, nos
shoppings, nas praças. Quase não conseguimos mais
chamá-los de exóticos, pois estes elementos não são
mais fenômenos só de outras culturas, que vêm até
nós. Estes dados nos chegam em conversas com
amigos, com parentes. Nossos irmãos e amigos estão
envolvidos por eles.
Precisamos, por isto, adquirir alguns princípios
para podermos levar acabo a tarefa de entender de
maneira crítica os “novos territórios da cultura”,
entender as novas convergências e associações
possíveis no que tange a cultura contemporânea.
Principalmente no que se refere a religiões.
Aí está uma questão pertinente. Precisamos
fazer um movimento em direção ao intento de elaborar
um arrazoado que ponha em tela o questionamento:
como hoje, do alto de tantas piedades e devoções
milenares, pode haver espaço para novas experiências
Mircea Eliade
Quer saber mais?
Mircea Eliade (1907-1986) nasceu em Bucareste, onde realizou seus estudos universitários, formando-se em Filosofa. Depois disso, partiu para Índia, tendo ali estudado o sânscrito e as filosofias do sudeste asiático. Eliade adquiriu renome como professor de História das Religiões, tendo lecionado na Universidade de Bucareste, na École des Hautes Études de Paris, no Instituto do Extremo Oriente de Roma, no Instituto Jung de Zurique, na Universidade de Chicago. Foi também Doutor Honoris Causa de numerosas universidades de todo o mundo. Premiado em 1977 pela Academia Francesa, recebeu a Legião de Honra. http://ro.wikipedia.org/wiki/Mircea_Eliade acessado em
09/10/2006.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 136
religiosas? Como pode surgir tão facilmente novas
religiosidades para além das tradições religiosas, já
consagradas pela humanidade?
Mais uma vez, precisamos adquirir referências
para a elaboração do entendimento das emergências
culturais nos termos das novas religiosidades
brasileiras.
1. Construção de um quadro de referências para
entender as novas configurações religiosas:
Um elemento que poderia nos ajudar muito
neste processo de construir uma percepção das novas
religiosidades brasileiras é revisitar um dos mais
importantes historiadores e teóricos dos estudos das
religiões que foi Mircea Eliade, quando diz:
Segundo Eliade, o Sagrado é complexo e
total. Este parece que será um princípio a ser
rebuscado na leitura dos fenômenos religiosos. Veja o
gráfico abaixo que tenta se deter em pelo menos três
noções presentes na concepção de Elide:
Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado
em toda a sua complexidade, e não apenas no que
ele comporta de irracional. Não é a relação entre os
elementos não-racional e racional da religião que
nos interessa, mas sim o sagrado na sua
totalidade.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.16 e 17.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 137
A própria idéia de Sagrado em Eliade, e suas
noções co-extensivas precisam ser investigadas. Assim
se o sagrado é complexo e total o que isto realmente
quer dizer? Em primeiro lugar a noção de Sagrado em
Eliade não pode ser desassociada de suas múltiplas
possibilidades de manifestações.
“O Sagrado se manifesta”. Esta é a pedra de
toque de todo pensamento de Eliade. Isto já pode ser
visto em seu livro: Die Religionem und Heilige que
diz: “Etwas Heiliges ist ein geoffenbart” [algo de
sagrado se nos revela].1 Para a fundamentação desta
idéia, Eliade criou o termo hierofania. Deste modo, a
expressão serviria para falar do ato da manifestação do
Sagrado. Não importa a sua pluralidade, nem a sua
modalidade. Toda invasão do Sagrado no cotidiano das
pessoas é uma manifestação hierofânica.2
Os chamados “fatos sagrados” existem para
Eliade dentro uma diversidade, que nos leva a observar
um sem números de “documentos” que implicam nos
conhecimentos de “mitos, ritos, formas divinas, objetos
sagrados e venerados, símbolos, cosmologias,
doutrinas; homens, plantas e lugares sagrados.3 É
assim que podemos dizer que a manifestação do
Sagrado é plural. Eliade fala que as hierofanias são
variadas. Elas são múltiplas.4
A busca pela complexidade do Sagrado no
levaria a termos que nos deparar como hierofanias de
toda espécie. As hierofanias astrológicas, meteóricas,
aquáticas, vulcânicas, telúricas entre outras,5 que
seriam as hierofanias primordiais ou primitivas. Sem
falar da sacralidade fisiológica (em muitas religiões as
1 ELIADE, Mircea. Die Religionem und Heilige. Elemente der religionsgerchichte. Salzburgo und
Munich, 1954. p.27. 2 ________________. Sagrado e profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.17-19.
3________________. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.8.
4 Id. Ibid. Pasin, p.13-38.
5 Id. Ibid. Pasin, p.103-312.
:: Sagrado:
A palavra Sagrado, derivada do latim "sacer" (sagrado), constitui uma das dimensões fundamentais da vida religiosa e designa uma área ou conjunto de realidades (seres, lugares, coisas ou momentos) que de certa forma estão separados do mundo profano comum (mormente contexto
ocidental), manifestando um poder superior e podendo ser abordados apenas ritualmente. No contacto com o sagrado, o homem experimenta algo que o ultrapassa, que o transcende. Assim sendo, as realidades sagradas não existem em função das suas próprias características, mas sim devido à transcendência nelas manifestada... Para saber mais leia: http://www.knoow.net/ciencsociaishuman/filosofia/sagrado.htm. Acessado em 27/03/2011.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 138
ocorrências orgânicas estão marcadas por rituais –
puberdade, casamento, maternidade, etc..).
Também teríamos que lidar com hierofanias
ligadas aos domínios do fogo, do ferro e da agricultura,
culminando com as formas acesso ao Sagrado através
das escritos sagrados, das vivências xamânicas, de
eventos mediúnicos, etc... A presença do Sagrado se
estendendo por diversas experiências religiosas
possíveis.
Quando começamos a pensar na complexidade
do Sagrado temos que entender que tipo designer está
sendo proposto aqui. Segundo Eliade temos que ir em
direção do que chamamos hoje de complexidade.
1.1 Teorias de complexidade e as religiões:
Existem duas maneiras distintas de tratar o
tema. Uma é aquela que ver a complexidade como um
sistema aberto. Como o somatório de todos os
fenômenos e as possibilidades existentes no cosmo.
O termo vem do latim complexus, significa
aquilo que é tecido junto. “Corresponde à
multiplicidade, ao entrelaçamento e à contínua
interação da infinidade de sistemas e fenômenos que
compõem o mundo natural”. 6 Assim para alguns
autores, o próprio cosmo está mais para um caos de
incertezas e de indeterminismos. Mas para G.
Lipovetsky este “caos é também constitutivo e
organizador”. 7
A outra maneira de pensar a complexidade foi
aquela que a submeteu a teoria dos sistemas. A
complexidade cósmica, ou a do meio passou a ser
6 MARIOTTI, H. apud KUNZLER, Caroline de Morais. A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.
Estudos de Sociologia, 16, p. 124. 2004. 7 LIPOVETSKY, G. A apud Id. Ibid. Loc. Cit.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 139
considerada em segundo plano, para dá-se importância
para a complexidade sistêmica, ou social. A tentativa
desta modalidade de percepção da complexidade é a de
tratar da complexidade do sistema. A partir do conceito
de autopoiesis** buscou-se pensar um sistema
complexo que “reproduz os seus elementos e suas
estruturas dentro de um processo operacionalmente
fechado”.8
Niklas Luhmann reafirma a autonomia dos
sistemas. Esta teoria discute a maneira de com o
sistema social dá conta de sua complexidade e daquela
entorno de si. O sistema social faz uso de operações
básicas que lhes são pertinentes. O seu crescimento e
8 MATHIS, Armin. A sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Em:
http://www.infoamerica.org/documentos_pdf/luhmann 05.pdf Acessado em 28/10/2011, p.3-4.
Niklas Luhmann
Luhmann nasceu em Lüneburg, Baixa Saxôni.
Depois da guerra Luhmann estudou Direito na
Universidade de Freiburg. Durante um ano sabático
em 1961, foi para Harvard, onde conheceu e
estudou com Talcott Parsons, um dos mais
influentes teóricos de sistemas sociais. Foi professor
na Universidade Alemã de Ciências Administrativas
em Speyer até 1965. Quando passou atuar a no
Centro de Investigação Social da Universidade de
Münste. Atuou também como professor na
Universidade de Franktur e posteriormente na
Universidade de Bielefeld. Sua obra mais importante
foi “Die Gesellschaft der Gesellschaft [sociedade da
sociedade] (1997). É um dos mais influentes
estudiosos da sociologia alemã.
Pasin em: Mathis, Armin. A sociedade na teoria dos
sistemas de Niklas Luhmann. Em: http://www.
infoamerica.org/documentos_pdf/luhmann_05.pdf Acessado em 28/10/2011.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 140
transformações dependem exclusivamente de
estruturas com seu próprio de “DNA”.
Segundo a teoria de Luhmann os sistemas
podem se articular. É o que chama de “acoplamento
estrutural”. Dois sistemas podem aproximar para a
realização tarefas que lhes são pertinentes. Portanto, o
sistema social na operação comunicativa pode se servir
de sistemas de pensamentos que são atinentes ao
sistema psíquico.
Neste acoplamento estrutural não acontecem
misturas, os sistemas permanecem autônomos. O meio
não lhes afeta. Não há ocorrência de interpenetrações.9
Assim a complexidade verificada aqui será sempre a
produzida dentro dos sistemas fechados. É
complexidade em “close up”.
A única coisa que não pode ocorrer na teoria dos
sistemas de Niklas Luhmann é a produção de híbridos.
Os sistemas não produzem misturas de modo a fazer
surgir novos sistemas. Não acontecem invasões de
fronteiras. As transformações ocorridas estão de
alguma maneira, previstas no “DNA” nos sistemas. Por
esta teoria a complexidade do meio não altera a
composição e a configuração dos sistemas, ainda que
estes possam se complexos.
Dito de uma forma que nos interessa: os
sistemas de crenças não podem gerar novas piedades.
Os grupos religiosos podem se tornas mais complexos
para dar conta da complexidade cósmica.
Ou seja, um grupo religioso pode sofrer
transformações, mas não forma novos grupos. Os
grupos podem se modificar diante da irritabilidade do
9 Id. Ibid, p.4
::Autopoiesis:
Trata-se de um termo criado pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. Poiesis é o ato criativo (mesma raiz de “poesia”); a vida é auto-poiética, ela cria, ela inventa e reinventa a si própria – a partir de si própria. Um ser vivo é um sistema autopoiético, caracterizado como uma rede fechada de produções moleculares (processos), onde as moléculas produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas
que as produziu. A conservação da autopoiese e da adaptação de um ser vivo ao seu meio são condições sistêmicas para a vida. Por tanto um sistema vivo, como sistema autônomo está constantemente se autoproduzindo, autorregulando. Para se aprofundar ler: http://pt.wikipedia.org/wiki/Autopoiese e http://www. neuroredes.com.br/site/artigos/convivencialidade.htm
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 141
meio. Os grupos religiosos poderiam até se acoplarem,
mas estes se manteriam rigorosamente autônomos.
A percepção de complexidade da teoria dos
sistemas não nos favoreceria ao entendimento do
porque vermos surgir no campo religioso brasileiro, a
cada momento novas religiosidades. Veja o gráfico
abaixo:
Na gravura acima vemos as religiões postas
convenientemente lado a lado. Sem dúvidas, é uma
visão da pluralidade religiosa. Mas, no entanto estas
não se misturam. Não acontecem hibridismos,
sincretismo, combinações, bricolagens. Talvez seja
necessário volta a teoria da complexidade “aberta”.
1.2. Teoria de complexidade aberta e religiões:
As teorias de complexidade também podem se
vista dentro de uma perspectiva mais articulada com o
meio. É a percepção que pode ser chamada de
complexidade aberta.
A complexidade desta maneira implica hoje em
uma visão apropriada de conceber a realidade e as suas
“mesclas interculturais”. Realidades híbridas,
trasvasardoras de fronteiras, gerando emergências
culturais que somente poderiam ser percebidas dentro
deste outro paradigma. Um paradigma aceito por Fritjof
Capra em sua de concepção sistêmica da vida:
Quer saber mais?
Fritjof Capra Ph.D em física e teórico de sistemas, é diretor fundador do Center for Ecoliteracy em Berkeley, Califórnia. O Centro de escolaridade avança para a sustentabilidade. Capra é autor de cinco best-sellers internacionais, O Tao da Física (1975), O Ponto de Mutação (1982), Sabedoria Incomum (1988), A Teia da Vida (1996) e As Conexões Ocultas (2002). Seu mais recente livro, A Ciência de Leonardo, foi publicado em capa dura em 2007 e em papel reciclado em 2008. Para conhecer mais: http://www.fritjofcapra.net/ . Acessado em 28/03/2011.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 142
Segundo a teoria da complexidade de Capra este
fenômeno também pode ser chamado de Ecologia
profunda. Segundo Capra as realidades de
interpenetram, estão implicadas. Os fenômenos
obedecem ao designer da circularidade da natureza. Os
sistemas são não lineares. É o próprio Capra que diz:
Para Capra a complexidade seria constituída da
“totalidade dos sistemas integrados não reduzíveis a
unidade menores.” 10 De uma forma mais radical ele
10
CAPRA, Frijof. O ponto de Mutação. A ciência, sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix,
1994, p.260.
A nova visão da realidade, de que vimos falando,
baseia-se na consciência do estado de inter-relação
e interdependência essencial de todos os fenômenos
– físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais.
Essa visão transcende as atuais fronteiras
disciplinares e conceituais e será explorada no
âmbito de novas instituições. Não existe, no
presente momento, uma estrutura bem
estabelecida, conceitual ou institucional, que
acomode a formulação do novo paradigma, mas as
linhas mestras já estão formuladas por indivíduos,
comunidades e organizações que estão
desenvolvendo novas formas de pensamento e que
estabelecem de acordo com novos princípios.
CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação. A ciência,
sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1994, p.259.
Informação sobre Complexidade
A Teoria da Complexidade vem mostrar a
interdependência essencial de todos os fenômenos –
é o que Fritjof Capra (1996) chama de Visão
Ecológica Profunda. Segundo ele, estamos todos
encaixados nos processos cíclicos da natureza. O ser
humano é um finíssimo fio dessa rede universal que
ele chama de Teia da Vida. E a mais óbvia
característica de qualquer rede é a sua não-
linearidade. É óbvio, também, que o conceito de
diálogo está intimamente ligado com o padrão de
rede.
TORRES, José J. M. Teoria da complexidade: uma nova
visão de mundo para a estratégia. Em: http://www.facape.br/ruth/adm-filosofia/Texto_5-Teoriada_ Complexidade_e_Estrat.pdf Acessado em 28/03/2011.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 143
diz: “Todo e qualquer organismo é uma totalidade
integrada e, portanto, é um sistema vivo.”11
Aplicando ao contexto das experiências
religiosas e seus sistemas simbólicos, a teoria da
complexidade vista em Fritjof Capra permite observar
as hibridações dentro do todo vivo sistêmico. As novas
religiões, logo, seriam emergências pervasivas de
outros campos de crenças. As novas religiosidades
seriam manifestações híbridas, sincréticas, combinadas,
fruto de inreligionações12 possíveis. Veja o gráfico
abaixo:
Na gravura acima vemos as religiões invadindo
os espaços rituais, conceituais e simbólicos umas das
outras. As religiões apresentam mesclas interculturais,
fazendo surgir hibridismos, inreligionações significativas
que podem ser vistas a olho nu. Estas misturas
precisam agora serem consideradas de forma mais
detidas.
11
Id. Ibid. Loc. Cit. 12
O termo inreligionação será alvo de maior comentário mais adiante.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 144
EXERCÍCIO 2
1) Na construção de um quadro de referências para
entender as novas configurações religiosas que
conceitos e critérios você levaria em consideração:
1. facilidade ( ); 2. sagrado ( ); 3. complexidade ( );
4. deuses ( ); 5 hierofanias ( ); 6. hibridismos ( );
7) religiões organizadas ( ).
2)Quais são autores que mais ajudariam a realizar a
construção deste quadro de referências?
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
2. As inreligionações e hibridações como
princípio para a complexidade religiosa:
Diante da percepção da complexidade aberta
resta-nos agora aplicar tal princípio para o
entendimento do surgimento das novas configurações
das religiosidades na realidade brasileira. A
complexidade aberta dá o pano de fundo para entender
como a condição humana se aflora de forma inusitada e
originária. Deste modo, podemos inesperadamente nos
esbarra com a emergência de híbridos religiosos.
Com a aproximação, ou fusão, ou paralelismo,
ou convergências dos sistemas religiosos, a
complexidade aberta pode nos ajudar a ver como
surgem combinações de movimentos religiosos em
nossa cultura. 13
13
FERRETTI, Sérgio F. Repensando o sincretismo. São Paulo: Fatema/ Edusp, 1995, p.92.
Quer saber mais?
Andrés Torres Queiruga, nasceu em Riveira, Galiza, em 1940. Realizou estudos no seminário de Santiago de Compostela e na Universidade de Comillas, passou dois anos em Roma realizando a sua tese. Atua como professor de Teologia Fundamental no Instituto Teológico Compostelano, e de Filosofia da Religião
na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), é membro da Real Academia Galega. É Diretor e Editor de Encrucillada: Revista Galega de Pensamento Cristián. Publicou por Paulinas Editora: Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus (2001), Recuperar a Ressurreição (2004) e Esperança apesar do mal (2007). Disponível em http://www.paulinas.org.br/ loja/DetalheAutor.aspx? idAutor=7407
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 145
Esta situação não deve ser nem vista somente
como fruto de uma cosmovisão. É própria condição
humana que aponta para o surgimento do que é novo.
As novas religiosidades são fruto do tesouro
interior dos seres humanos. Este ser humano que lhe
tem como inerente abri-se para a complexidade em
torno de si. É o que afirma Ludwich Feuerbach quando
diz:
Esta fala de Feuerbach, que com muita facilidade
tem sido desqualificada, aponta para o liame e o nexo
existente entre a interioridade humana e a consciência
de Deus. Apesar dos aspectos controversos de sua
visão de religião, interessa-nos as razões
antropológicas que o levam a aceitar a religião.14
Assim, as religiões possíveis estão no bojo da condição
humana. Esta é a face mais verdadeira da religião a
seus fieis: a face que os ajuda assumir sua condição
humana inserida na cultura.15
14
MARTINS, José Ricardo. A Religião sob um outro olhar: Comentário sobre o livro A Essência do
Cristianismo” de Ludwig Feuerbach. Em: http://www.administradores.com.br/informe-se/ artigos/ a-
religiao-sob-um-outro-olhar-ludwig-feuerbach-e-a-essencia-do-cristianismo/24426/. Acessado em
23/04/2011. 15
MESLIN, Michel. A experiência humana de divino. Fundamento de uma antropologia religiosa.
Petrópolis: Vozes, 1992, p.197.
A consciência de Deus é a consciência que o homem
tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o
conhecimento que o homem tem de si mesmo... a
religião é uma revelação solene das preciosidades
ocultas do homem, a confissão dos seus mais
íntimos pensamentos, a manifestação pública dos
seus segredos de amor.
FEUERBACH, Ludwich. A essência do cristianismo. 2ª Ed. Capinas: Papirus, 1997.p.55-56.
::Ludwich Feuerbach:
Pensador alemão, nascido em Rechenberg em 1804, foi dos mais influentes alunos de Hegel, com quem estudo teologia. Após isso, iniciou-se nas ciências naturais, estudos que passou a determina o
enfoque. Sua filosofia religiosa teria determinado os estudos de Karl Marx patente em as “Teses sobre Feuerbach”. Dentre as suas obras principais encontram se: Crítica da filosofia hegeliana (1839); A essência do cristianismo (1841); Sobre a apreciação do escrito “A essência do cristianismo” (1842); Lutero como árbitro entre Strauss e Feuerbach (1843); A essência da religião (1846); Preleções sobre a essência da religião (1851) e Teogonia (1857). http://www.infoescola.com/filosofos/ludwig-feuerbach/
Se a religião cumpre funções sociais, tornando-se,
portanto, passível de análise sociológica, tal se deve ao
fato de que os leigos não esperam da religião justificações
de existir capazes de livrá-los da angustia existencial da
contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença
do sofrimento e da morte. Contam com ela para que lhes
forneça justificações de existir em uma posição
determinada, em suma, de existir como de fato existem,
ou seja, com todas as propriedades que lhes são
socialmente inerentes. (...) Em geral, tal questão constitui
uma interrogação social a respeito das causas e razões
das injustiças e privilégios. Assim as teodicéias são
sempre sociodicéias.
BOURDIEU, Pierre. A economina da trocas simbólicas. São
Paulo: Perspectivas, 1999, p. 48-49.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 146
As religiões vistas deste modo têm muito mais a
ver com a vida concreta dos fieis. Aos fieis interessa
não a teologia de cada grupo, mas o arrazoado que lhe
fundamente o cotidiano. Assim a pergunta: “Até
quando...?” é levado muito a sério pelos fieis.
Quando aliamos a condição humana de olhar
para as suas necessidades interiores e concretas, e sair
em busca de sua realização, com a dimensão complexa
da realidade que fornece os elementos para a
composição, combinatórias para isto, começamos a
entender o influxo que faz surgir o novo em termos de
religiões. Igualmente, tal condição se porta dentro das
possibilidades sistêmicas da complexidade.
Esta condição antropológica aliada à
complexidade da realidade faz-nos perceber que
estaremos sempre em movimento ao novo, ao que
realmente possa atender as demandas religiosas. Deste
modo, fazemos surgir novos empenhos e serviços
religiosos, visando encontrar novos caminhos e
direcionamentos. Andrés Torres Queiruga diz:
As religiões jamais são fatos isolados, mas sempre
formam parte de um tecido muito denso de contatos
e de influxos, muitas vezes nem sequer conscientes.
O Islã é impensável se, juntamente com as
tradições africanas, não se leva em conta o contato
com o judaísmo e com o cristianismo (...) Entre a
Índia, a China e o Japão as migrações de idéias e os
amálgamas de espiritualidade forma um continuun
inextricável. E a própria Bíblia é simplesmente
impensável se não for vista submersa no amplíssimo
e fecundo húmus da religiosidade milenar do Oriente
Médio.
QUEIRUGA, Andrés T. Do terror de Isaac ao Abba
de Jesus. Por uma nova imagem de Deus. São Paulo: Paulinas, 2001, p.331-332.
ou seja, com todas as propriedades que lhes são
socialmente inerentes. (...) Em geral, tal questão
constitui uma interrogação social a respeito das
causas e razões das injustiças e privilégios. Assim as
teodicéias são sempre sociodicéias.
BOURDIEU, Pierre. A economina da trocas simbólicas. São Paulo: Perspectivas, 1999, p. 48-49.
Pierre Boudieu
Quer
saber mais?
PIERRE BOUDIEU Nascido numa família campesina,
em 1951 O sociólogo francês morreu aos 71 anos de idade em 23 de janeiro de 2002. Ingressou na Faculdade de Letras, em Paris. Foi catedrático de sociologia no Colége de France, era considerado um dos intelectuais mais influentes da sua época. A educação, a cultura, a literatura e a arte foram os seus objetos de estudo. Bourdieu vinha dedicando-se ao estudo dos meios de comunicação e da política. Notabilizou-se pela sua teoria dos campos de produção simbólica. O tema da violência simbólica foi consideram também como a pedra de toque de sua vasta obra. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Bourdieu acessado 18/10/2006
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 147
No citado de Queiruga encontramos a afirmação
de que as religiões não são fatos isolados. As
religiosidades comporiam um tecido maior, mais denso
de “contatos e influxos”. A própria origem das grandes
religiões se explicaria pelos caldos culturais, que as
tornam vizinhas e “inextricáveis.” Neste particular, no
devir das religiões institucionais e das religiosidades
populares não haveria qualquer oposição. 16
Isto ocorre, talvez porque os próprios agentes
populares das religiões sejam em certos momentos
reinventores ativos e autônomos de suas tradições.17 A
popularização das crenças de um sistema religioso
específico já deveria nos apontar para certa
plasticidade, e até mesmo fluidez das recriações
religiosas no âmbito mais ampliado. É assim que
acontece a transformação de um sistema religioso
erudito em outro comunitário resultado de exercício
coletivo de popularização. 18
Sem o controle eclesiástico central que
monopoliza, desapropria e destitui o capital religioso 19
e um laicato subalterno, existe as condições concretas
para recriação no imaginário livre e fértil.20
Se os sistemas de crença já têm dentro de si o
germe de suas próprias transformações. O que sucede
quando os grupos religiosos se encontram é a
incorporação de novos elementos? Isto pode fazer
surgir até mesmo novas configurações de
religiosidades.
16
STÜRNNER, Rosângela. Religiosidade popular e os PCNs do ensino religioso. Em: VVAA. VII
Simpósio de ensino religioso. Ensino religioso: diversidade e identidade. São Leopoldo: EST/ Sinodal,
2008, p.86-87. 17
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.203, e MAUÉS,
Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém:
CEJUP, 1995, p.184. 18
Id. Ibid. p.204. 19
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Uma nova invenção da Amazônia. Religiões, histórias, identidades.
Belém: CEJUP, 1999, p.185. E: BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. 5ªed. São Paulo:
Perspectiva, 1999, p.39-40. 20
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Op. Cit, p. 213.
:: Sociodicéia:
Segundo Bourdieu, às elites é dada a perguntar pelas causas das injustiças e dos privilégios. Assim pode ser entendida como um arrazoado sociológico das demandas meritórias a partir de uma linguagem religiosa.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 148
Queiruga diz que na inreligionação, as religiões
entram em contato em um movimento espontâneo
gerando incorporações que resultam em crescimento.21
Mas, mais recentemente Afonso Maria Ligorio Suares
aprofundou esta questão quando disse:
Segundo Afonso Soares há uma concomitância
entre fatores externos e internos. Exatamente como já
apontamos aqui, a religiões têm elementos dentro de si
que são transformadores e que em contato com as
demais lhes permite assimila o novo. É claro que não se
pode deixar de perceber quando este movimento é
proposital.
As novas religiosidades seriam resultantes do
atendimento das exigências internas dos grupos
religiosos, que tendem a se renovarem. Apesar do
movimento de identidade religiosa sugerir que não
existem mudanças, tal percepção somente poderia ser
aceita dentro da teoria da “ilusão da permanência” que
é uma maneira muito específica entender das
mudanças nas religiões.22 Assim o grupos religiosos
estão em movimento, ativando e reativando,
21 QUEIRUGA, Andrés T. Do terror de Isaac ao Abba de Jesus. Por uma nova imagem de Deus. São
Paulo: Paulinas, 2001, p.334.
22 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004, p.93.
Inreligionação – toda religião transforma-se a partir
de dentro, no contata com as demais; gostemos ou
não, o artefato religião se reconfigura ou se
reordena no ritmo das crises, descoberta as e
intercâmbios que realiza com os demais sistemas
religiosos. Nesse processo as pessoas não precisam
apostatar ou sair de suas religiões de origem. Uma
comunidade religiosa deixa-se tocar por outra
religião, assimilando o que lhe parece fazer mais
sentido de descartando o que não lhe convém ou
não consegue traduzir para seu próprio código.
SOARES, Afonso Maria ligorio. No espírito do Abbá.
Fé, revelação e vivências plurais. São Paulo: Paulinas, 2008, p.13-14.
Quer
saber mais?
Danièle Hervieu-Léger é sociólga; e a atual presidenta e professora na École
des Hautes Études en Sciences Sociales [Escola de Autos estudos em Ciências sociais] (EHESS). É também diretora da revista Archives de Sciences Sociales des Religions. Ministrou um curso de Sociologia da Religião, na PUC/SP. Trata-se de uma das principais obras da socióloga francesa. Mais informações em: http://www.pucsp.br/rever/rv2_2005/t_leger.htm e http://historiadordoimpossivel.blogspot.com/2009/01/livro-de-danile-hervieu-lger-monta-o.html
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 149
inventando e reinventando seu imaginário religioso.23
As novas configurações da religiosidade
brasileira também são resultado de contato externo,
aproximações cambiantes em que os sistemas
religiosos se obrigam a realizar. Dentro complexidade
do Sagrado, grupos religiosos surgem, reinventam-se,
trazendo um novo designer para realidade brasileira no
que tange a presença religiosa.
A própria estrutura das religiões se abre para o
surgimento de novas religiosidades. Assim, isto algo
que não deveria nos surpreender. Cada vez mais nos
depararemos com novas experiências religiosas vividas
de forma plural e originárias. Observe a seguinte
gravura:
Deve está mais do que claro para você que o
digrama se refere a algo que hipótese alguma pode ser
considerada tradicional. Mas no entanto, esta imagem
acima bem pode representar a amalgama de crenças
facilmente observáveis.
Na verdade você verá no próximo segmento da
nossa aula algo bem similar a isto. Um fenômeno
religioso que surgiu recentemente na França, e está se
espalhando pelo mundo, e há pelo mesmo um caso
verificado aqui no Brasil. Mas agora responda a
seguinte questão:
23
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido. A religião em movimento. Petrópolis:
Vozes, 2008, p.27.
Dica de leitura
O homem toma conhecimento do Sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.16 e 17.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 150
EXERCÍCIO 3
O que são inreligionações, sugira alguns exemplos?
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
3. Casos exemplares de novas configurações de
religiosidades, considerando os cristianismos
emergentes:
O que vamos fazer agora é apenas passar em
revista alguns poucos casos que podem aguçar a nossa
percepção da religiosidade, referentes as novas
possibilidades de hibridismos e inreligionações na
contemporaneidade e no contexto da cultura brasileira.
É de grande importância que você possa fazer
uso dos critérios que fomos formando na medida em
que for entrando em contato com os relatos de
experiências diversas. Vamos conceder a você uma
prancha de recursos para lhe ajudar na leitura. Leia o
primeiro relato:
Relato A
Comunidade Católica Apostólica Espiritualista
Nosso Senhor do Bonfim - Pai Simbá
MALAQUIAS, Terezinha* Nos primeiros sábados de cada mês, às 19h,
costuma haver missa na Comunidade Católica
Apostólica Espiritualista Nosso Senhor do Bonfim.
Desde as 18h, o espaço da igreja já costuma estar
lotado, sem nenhuma cadeira ou banco vazio. O
altar é coberto por tecido amarelo e ao fundo, na
parede, há uma estrela grande talhada em madeira,
tendo ao centro a imagem de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil. No altar também dois anjos, um de cada lado. Flores do campo deco-
Importante
Prancha de Leitura: Quais os elementos culturais que antes você percebia como sendo separados e agora estão juntos? ________________________________ Quantos credos religiosos podem está envolvido aqui? ________________________________ Quais o elementos hibridados encontramos aqui? ________________________________ Faça uma pesquisa na internet visando
encontrar informações atuais a este respeito: ________________________________
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 151
ram toda a igreja. Quem preside a celebração é o
padre José Carlos Lima. Após o canto de entrada
(“Deixa a luz do céu entrar”), o padre faz uma
rápida saudação a todos os presentes, e pede que
cada qual faça uma oração na intenção das almas.
O restante é, basicamente, o rito católico previsto
no Missal Romano. A não ser por um inusitado
atrativo: após a proclamação do santo Evangelho,
padre lima atua como médium e recebe o espírito
do defunto padre Gregório, saudoso vigário de
ascendência alemã da Igreja católica apostólica
romana de São Judas Tadeu, no Bairro paulistano
do Jabaquara. A homilia fica a cargo do ilustre
visitante, desencarnado há mais de vinte anos. Em
seguida, segue o rito católico normal. Sob a
presidência do médium em transe, que só recobra a
consciência pouco antes da bênção final, após a
partida do padre Gregório, que promete voltar mês
que vem.
O povo que ali acorre com devoção costuma
retornar ao templo às quintas-feiras para receber
passes e conselhos de pai Simbá, nome adotado por
padre Lima nos dias em que abre o primeiro andar
de sua casa de oração para ritos e celebrações afro
tipicamente mediúnica. Embora a abertura oficial
dos trabalhos só aconteça por volta das 21h, desde
o final da tarde, pai Simbá já está acolhendo as
pessoas e preparando oferendas para os
frequentadores da casa. Toda a equipe é muito
atenciosa. As funções abrem-se com uma gira;
defuma-se o local e a platéia. Na gira do Preto
Velho, pai Simbá canta e dança entre os seus filhos
de santo. Está sempre bastante animado. Vestido
com uma espécie de saia e trajando blusa colorida,
toca nos braços dos filhos-de-santo e, em segundos,
eles entram em transe. Chama a atenção no
conjunto um senhor de traços asiáticos, um de suas
filhas-de-santo. Começam a dançar com o corpo
encurvado, como se fossem todos velhos. Pai Simbá
assume o toque do atabaque e o som é muito bom
e contagiante. Visivelmente, há, na gira e na
platéia, muito mais pessoas brancas do que negras.
Para completar a decoração do ambiente, está
exposto numa das paredes da casa um diploma
concedido a José Carlos de Lima, em 1994, pela
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhor da
Assunção, que o qualifica como Bacharel em
Teologia católica.
MALAQUIAS, Terezinha. A presença de expressões
religiosas de origem afro no centro de São Paulo –
Relatório Final de Pesquisa de Iniciação Científica,
PUC-SP, 2005. Em: SOARES, Afonso Maria Ligório.
No espírito do Abbá. Fé, revelação e vivências
plurais. São Paulo: Paulinas, 2008, p.117-118
Importante
Prancha de Leitura: Quais autores você se utilizaria para sua compreensão de tais
fenômenos? ________________________________
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 152
Você já havia lido algum relato sobre a
Comunidade Católica Apostólica Espiritualista Nosso Senhor
do Bonfim? E no Pai Simbá? Você acha que este
fenômeno religioso se enquadraria no que viemos
falando até aqui. As mescas que ocorrem aqui são de
uma natureza bastante interessante. No relato são
mencionados rito católico, experiência mediúnica, padre
e pai de santo. Trata-se de algo inusitado não acha. É
disto que estamos falando. Preste atenção neste outro
caso exemplar:
Relato B
IGREJA EVANGÉLICA BOLA DE NEVE
DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral*
Fundada em 1999 pelo apóstolo e surfista Rinaldo
Luiz de Seixas Pereira, a Igreja Evangélica Boa de
Neve em menos de uma década conquistou
prestígio social e visibilidade pública, tornando-se
um empreendimento religioso de expressividade,
visitado a cada culto por um inúmeros jovens,
atraídos pela publicidade que anuncia a igreja como
a grande novidade do mercado de bens simbólicos.
Formando em Propagando e Marketing e pós–
graduação em administração, seu fundador e
idealizador anteviu a necessidade de criar um
produto diferenciado para atingir um público
específico, acompanhando, desse modo, a tendência
de especialização, diferenciação e segmentação das
organizações evangélicas. No mercado saturado de
ofertas pentecostais, o pastor Rina, como é
conhecido, teve a ousadia e a perspicácia de
escolher um segmento pouco prestigiado e
explorado pelas igrejas evangélicas. A fim de cativar
surfistas, skatistas, fisiculturistas, lutadores de jiu-
jítsu e esportistas de modo geral, a Igreja Bola de
Neve lançou um tipo de produto religioso e que
associa cuidado com a saúde, culto ao corpo,
imagem descontraída e linguagem informal.
Os fieis que dela fazem parte possuem visual
despojado, usam tatuagens e piercings, vestem
roupas descontraídas que valorizam os contornos do
corpo, aderem a acessórios da moda, pertencem a
diferentes “tribos” e apresentam os mais
diversificados perfis estéticos. As meninas vestem
calças justas, mini blusas e saias curtas, exibindo
corpos bonitos e bronzeados. Alguns rapazes são
musculosos e possuem corpos atléticos. Muitos
usam roupas despojadas, bermudas folgadas,
camisetas, bonés e chinelos. Eles praticam esportes
radicais e participam de torneios esportivos promovi-
Importante
Prancha de Leitura: Quais os elementos culturais que antes você percebia como
sendo separados e agora estão juntos? ________________________________ Quantos credos religiosos podem está envolvido aqui? ________________________________
Importante
Prancha de Leitura: Quais o elementos hibridados encontramos aqui?
________________________________ Faça uma pesquisa na internet visando encontrar informações atuais a este respeito: ________________________________ Quais autores você se utilizaria para sua compreensão de tais fenômenos? ________________________________
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 153
E agora Você já conhecia a Igreja Evangélica
Bola de Neve? Você acha que este fenômeno religioso
se enquadraria no que viemos falando até aqui. A
hibridação que ocorre aqui é realmente interessante.
No relato são mencionadas leis de mercado, fé
protestante, cultura dos esportes radicais. Trata-se de
algo inusitado não acha. É disto que estamos falando.
Preste atenção neste outro caso exemplar:
do pela própria igreja. A maioria dos eventos de
evangelização – luau e festivais musicais -, assim
como os campeonatos esportivos organizados pela
Igreja Bola de Neve, ocorrem na praia, o que
contribui para reforçar a imagem e a identidade do
empreendimento.
O templo é decorado com artefatos praianos para
reproduzir o ambiente litorâneo. Espalhadas pela
igreja há barracas de praia, pranchas de surfe e
fotos de surfistas fazendo manobras radicais. No
altar, avista-se uma prancha longboard, que
funciona como um púlpito, o que se tornou a marca
da congregação e favoreceu sua divulgação no
mercado da fé. A imagem da nova organização
evangélica, que agrega esporte, corpo e religião,
teve um efeito publicitário impressionante,
garantindo a adesão de jovens, a ampliação do
número de fiéis e seu conseqüente crescimento. O
nome da igreja revela e anuncia as pretensões de
seu fundador: crescer de forma progressiva e
ininterrupta como uma bola de neve. Seu objetivo
tem sido alcançado com êxito. Em três anos, entre
2002 e 2003, a igreja cresceu 1100%, passando de
250 para três mil membros em todo país. Também
é possível constatar sua expansão pelo número de
templos espalhados pelo território nacional e
concentrado nas cidades litorâneas. Atualmente,
existem setenta e seis filiais dessa congregação,
dentre as quais estão sediadas em outros países –
PERÚ E Austrália. Entre os anos 2006 e 2008 o
número de filiais teve um crescimento de 171%.
A dupla linguagem do desejo na igreja Evangélica
Bola de Neve. Em: VVAA. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro: ISER 30 (1). 2010, p.55-56.
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 154
Relato C
Movimento raeliano: sobre extraterrestres,
clones humanos e religiões na modernidade.
Carly Machado *
Raël, cujo nome de batismo é Claude Vourilhon,
jornalista automobilístico e piloto de carros de
corrida, relata em seus livros e entrevistas que em
13 de dezembro de 1973 estava num vulcão
próximo a Clermont-Ferrand, na França, quando
avistou um OVNI. Afirma que uma criatura radiante
surgiu e confiou a ele uma mensagem, revelando a
verdadeira origem da humanidade. Este ser
extraterrestre disse que daquele ponto em diante
Claude seria conhecido como Raël, que significa
"mensageiro”.
Segundo Raël os criadores identificam-se como os
Elohim (que traduzido quer dizer “aqueles que
vieram do céu”) e que foram “confundidos com
deuses”.
Raël apresenta na Mensagem Transmitida pelos
Extraterrestres – título de seu livro - a explicação,
ou “a verdade” - como ele define - sobre a origem
da vida humana na Terra (...) Segundo Raël, os
Elohim solicitaram a ele em seu primeiro encontro
(1973) que retornasse no dia seguinte com a Bíblia
e um lugar para fazer anotações. A partir daí, toda a
experiência relatada por Raël em 6 dias de encontro
se dá a partir de uma releitura do texto bíblico,
interpretando os relatos a partir de uma versão
científica – relativizaremos isto adiante - dos
acontecimentos ali descritos.
Raël coloca-se como o último profeta em uma
relação controversa com o cristianismo - por um
lado não rejeita a Bíblia, muito pelo contrário:
sempre reafirma que todas as verdades estão ali
apresentadas, mas destorcidas pelo imaginário
místico religioso dos autores da época que não
compreendiam a mensagem científica dos Elohim.
Por outro, no entanto, apresenta uma dura
contraposição à Igreja Católica, símbolo maior do
cristianismo. Toda a cosmologia do livro de Gênesis
é relida por Raël e, contraditoriamente, ao mesmo
tempo mantida e negada.
Os Elohim são apresentados como homens que
vivem em outro planeta e que atingiram um nível
técnico científico suficiente para serem eles mesmos
capazes de criar a vida humana. Este seria um ciclo
constante: humanos – e sempre humanos, Raël não
fala em outras espécies de vida inteligente – são
criados por humanos mais evoluídos e
gradativamente, evoluindo em suas próprias
capacidades técnico científicas, tornam-se capazes de criar outros seres humanos. Foi desta forma que
Importante
Prancha de Leitura: Quais os elementos culturais que antes você percebia como sendo separados e agora estão juntos? ________________________________ Quantos credos religiosos podem está envolvido aqui? ________________________________
Quais o elementos hibridados encontramos aqui ? ________________________________ Faça uma pesquisa na internet visando encontrar informações atuais a este respeito: ________________________________
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 155
E este grupo religioso de origem francesa, será
que vai se consolidar aqui no Brasil. No Rio de Janeiro,
no Bairro de Sante Tereza há um ponto de encontro.
Mas isto é muito pouco ainda.
Certamente você pode dizer. Só isto! Onde está
a riqueza de novas crenças religiosas que compõe a
religiosidade brasileira os casos acima mencionados são
apenas alguns para que você possa comparar e fazer
também os seus levantamentos. Preste atenção eles
estão, nos jornais, nas revistas na internet. As pessoas
falam sobre eles na escola, nas ruas e praças, e
principalmente na escola. Vá atrás destas informações,
colete dados. Faça o seu dossiê.
os Elohim uma vez criados, tornaram-se criadores,
agora da vida humana na Terra. Da mesma forma
os humanos na Terra neste momento tornam-se
agora capazes de criar a vida humana – através da
clonagem - aproximando-se do estágio de evolução
no qual de criaturas tornam-se criadores, retomando
o ciclo da criação.
(...)
A religião raeliana define-se mais freqüentemente
como um movimento e mesmo uma revolução,
denunciando assim seu perfil de ação e dinâmica na
cultura. A cultura religiosa raeliana, espalhada
através da mídia na rede social, hoje faz parte de
maneira indiscutível dos debates e dos
desenvolvimentos científicos no campo da clonagem
humana. Assim, além de marcado pela ciência, o
raelianismo deixa nela suas marcas.
MACHADO, Carly Barbosa. Movimento raeliano:
sobre extraterrestres, clones humanos e religiões na
modernidade Em: Identidades y convergencias. XI
Congresso Latinoamericano sobre Religion Y
Etnicidad. ALER/UMESP. AS impressiones, jul. 2007. CD-Rom.
Importante
Prancha de Leitura: Quais autores você se utilizaria para sua compreensão de tais fenômenos? ________________________________
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 156
EXERCÍCIO 3
Faça uma pesquisa na internet e relacione outros casos
exemplares de novas configurações de religiosidade na
cultura brasileira.
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
RESUMO
Vimos até agora:
Para entendermos os estado atual das novas
configurações da religiosidade na cultura
brasileira devemos construir um quadro de
referências para tratar do fenômeno religioso
como fazendo parte da complexidade, que
permite a produção de hibridações religiosas;
Aplicando conceito de complexidade aberta ao
contexto das hibridações religiosas temos a
possibilidade entender as fusões, os
paralelismo e convergências que alguns têm
chamado se sincretismos, mas que a luz da
condição humana Andrés Torres Queiruga
trem chamado de inreligionações,
reconfiguração e reinvenção a partir do
contato com outras religiões;
Aula 5| Novas configurações nas religiosidades cristãs brasileiras 157
Alguns casos exemplares de novas
configurações de religiosidade
contemporânea: - Comunidade Católica
Apostólica Espiritualista Nosso Senhor do
Bonfim - Pai Simbá; - Igreja Evangélica Bola
de Neve; e - Movimento raeliano.
AV1 – Estudo Dirigido da Disciplina
CURSO: Ensino Religioso
DISCIPLINA: Matrizes Religiosas na Cultura Brasileira
ALUNO(A): MATRÍCULA:
NÚCLEO REGIONAL: DATA: _____/_____/___________
QUESTÃO 1: Descreva o que significa desencantamento do mundo e
desmagificação.
Indicação da página do módulo onde este assunto é apresentado:
Indicar referências de pesquisa complementar (livros: bibliografia e sites:
endereço eletrônico) – OPCIONAL:
Resposta (com as suas palavras):
QUESTÃO 2: Descreva como ocorreu o sincretismo entre as religiões africanas e o
catolicismo no Brasil.
Indicação da página do módulo onde este assunto é apresentado:
Indicar referências de pesquisa complementar (livros: bibliografia e sites:
endereço eletrônico) – OPCIONAL:
Resposta (com as suas palavras):
QUESTÃO 3: Descreva com suas palavras a tensão entre religiosidade popular e
religião institucional.
Indicação da página do módulo onde este assunto é apresentado:
Indicar referências de pesquisa complementar (livros: bibliografia e sites:
endereço eletrônico) – OPCIONAL:
Resposta (com as suas palavras):
QUESTÃO 4: Em sua opinião como seria possível integrar a religiosidade popular
em sua prática docente junto ao ensino religioso.
Indicação da página do módulo onde este assunto é apresentado:
Indicar referências de pesquisa complementar (livros: bibliografia e sites:
endereço eletrônico) – OPCIONAL:
Resposta (com as suas palavras):
ATENÇÃO:
Na realização das avaliações (AV1 e AV2), procure desenvolver uma
argumentação com suas próprias palavras.
Observe que é importante você realizar uma pesquisa aprofundada para atender
aos objetivos propostos consultando diferentes autores. No entanto, é
fundamental diferenciar o que é texto próprio de textos que possuem
outras autorias, inserindo corretamente as referências bibliográficas
(citações), quando este for o caso.
Vale lembrar que essa regra serve inclusive para os nossos módulos, utilizados
com freqüência para as respostas das avaliações.
Em caso de dúvidas, consulte o material sobre como realizar as citações diretas
e indiretas ou entre em contato com o tutor de sua disciplina.
AS AVALIAÇÕES QUE DESCONSIDERAREM ESTE PROCEDIMENTO ESTARÃO
SEVERAMENTE COMPROMETIDAS.
AV2 – Trabalho Acadêmico de Aprofundamento
CURSO: Ensino Religioso
DISCIPLINA: Matrizes Religiosas na Cultura Brasileira
ALUNO(A): MATRÍCULA:
NÚCLEO REGIONAL: DATA:
_____/_____/___________
Atividade Sugerida:
Faça uma pesquisa na internet e relacione outros três casos exemplares de novas
configurações de religiosidade na cultura brasileira.
Refe
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cas
ALVES, Isidoro. O carnaval devoto. Um estudo sobre a festa de
Nazaré, em Belém. Petrópolis: Vozes, 1980.
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BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição
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________________________; VILLACORTA, Gisela Macambira.
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MESLIN, Michel. A experiência humana de divino. Fundamento de
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