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1 CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA Prof. Marcos Aurélio Fernandes UnB – Fil: 2019.1 TEXTO 7 3. O PENSAMENTO ORIGINÁRIO 3.6. ANAXIMANDRO 3.6.2. MEDITAÇÃO EM TORNO DO DITO DE ANAXIMANDRO Nosso interesse agora se volta para o pensamento de Anaximandro. Anaximandro é pensador. O que nos interessa não é tanto as suas investigações no sentido de conhecer o real, mas as suas investigações no sentido de pensar a realidade do real como um todo. O pensamento é pensamento do ser. Como Anaximandro pode ser para nós um interlocutor que nos vem ao encontro na provocação e na tarefa de pensar o ser? Para tanto, não podemos simplesmente partir da perspectiva do modo como Aristóteles pensou o ser (a metafísica). Tentemos, pois, des-truir, isto é, desmontar a interpretação já pronta que herdamos de Aristóteles. Sem perder de vista a identidade se dá entre Aristóteles e Anaximandro – o pensamento do ser no sentido do pensamento do fundamento ou princípio – tentemos trazer ao nosso horizonte a diferença entre ambos. Isso requer uma interpretação ousada de Anaximandro. Heidegger, por várias vezes, tentou uma tal interpretação ousada. Vamos, agora, seguindo de perto esta interpretação, tentar pensar o pensamento de Anaximandro. Simplício (+ 560 d.C.), há cerca de mil e quinhentos anos, e cerca de mil anos depois de Anaximandro, comentando os livros da “Física” de Aristóteles, nos reportou uma passagem do livro de Teofrasto (+ 287 a.C.), intitulado “Physikon Dóxai” (Pareceres dos que estudam a Physis). Essa passagem informa que Anaximandro dissera que a

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CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

UnB – Fil: 2019.1

TEXTO 7

3. O PENSAMENTO ORIGINÁRIO

3.6. ANAXIMANDRO

3.6.2. MEDITAÇÃO EM TORNO DO DITO DE ANAXIMANDRO

Nosso interesse agora se volta para o pensamento de Anaximandro.

Anaximandro é pensador. O que nos interessa não é tanto as suas investigações no

sentido de conhecer o real, mas as suas investigações no sentido de pensar a realidade

do real como um todo. O pensamento é pensamento do ser. Como Anaximandro pode

ser para nós um interlocutor que nos vem ao encontro na provocação e na tarefa de

pensar o ser? Para tanto, não podemos simplesmente partir da perspectiva do modo

como Aristóteles pensou o ser (a metafísica). Tentemos, pois, des-truir, isto é,

desmontar a interpretação já pronta que herdamos de Aristóteles. Sem perder de vista

a identidade se dá entre Aristóteles e Anaximandro – o pensamento do ser no sentido

do pensamento do fundamento ou princípio – tentemos trazer ao nosso horizonte a

diferença entre ambos. Isso requer uma interpretação ousada de Anaximandro.

Heidegger, por várias vezes, tentou uma tal interpretação ousada. Vamos, agora,

seguindo de perto esta interpretação, tentar pensar o pensamento de Anaximandro.

Simplício (+ 560 d.C.), há cerca de mil e quinhentos anos, e cerca de mil anos

depois de Anaximandro, comentando os livros da “Física” de Aristóteles, nos reportou

uma passagem do livro de Teofrasto (+ 287 a.C.), intitulado “Physikon Dóxai” (Pareceres

dos que estudam a Physis). Essa passagem informa que Anaximandro dissera que a

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(arché), o princípio, (ton ónton), dos sendos (entes), era

(tó ápeiron). Em vez de seguirmos as trilhas já abertas por Aristóteles,

vamos procurar interpretar isso, mais tarde, a partir de outra citação trazida no mesmo

contexto. Tomemos agora em consideração uma sentença que diz assim:

Transliterando:

Ex hon dè he génesis esti tois ousi,

Kaì tèn phtoràn eis tauta gínesthai

Katà tò chreón:

Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois

Tes adikías

Katà tou chrónou táxin.

O primeiro problema que temos de enfrentar é o de uma tradução. O jovem

Nietzsche, em A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, 1873, traduz assim:

Woher die Dinge ihre Entstehung haben, dahin müssen sie auch zu grunde Gehen, nach der

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Notwendigkeit; denn sie müssen Busse zahlen und für ihre Ungerechtigkeiten gericht werden, gemäss der Ordnung der Zeit.

O lugar de onde todas as coisas têm a sua geração é o mesmo em direcção ao qual elas têm de ser destruídas, segundo a necessidade; pois elas têm de pagar penitência e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo1.

O texto de Nietzsche surgiu de um curso que ele dera várias vezes em Basileia,

no início dos anos setenta do século XIX, sob o título de Os filósofos pré-platónicos, com

interpretação de fragmentos escolhidos. Já este título mostra como Nietzsche pensa o

pensamento dos antigos em referência e em diferença para com Platão. No ano de 1903,

aquele texto de Nieztsche foi publicado. No mesmo ano, Hermann Diels publicou, com

os métodos da filologia clássica, os “Fragmentos dos Pré-Socráticos”. A publicação foi

dedicada a Wilhelm Dilthey. Diels traduzia assim o dito de Anaximandro:

Woraus aber ihnen die Geburt ist, dahin geht auch ihr Sterben, nach der Notwendigkeit. Denn sie zahlen einander Strafe und Busse für ihre Ruchlosigkeit nach der Zeit der Ordnung.

Mas, de onde as coisas têm o seu passar a ser, para aí vai também o seu deixar de ser, segundo a necessidade; pois elas pagam, umas às outras, castigo e penitência pela sua impiedade, segundo o tempo estabelecido.

Heidegger dizia que uma tradução precisa ser fiel às palavras. Mas uma tradução

fiel às palavras não tem de ser uma tradução literal. Uma tradução literal pode ser infiel

às palavras. Mas, quando é que uma tradução é fiel às palavras? Ele diz: “Uma tradução

só é fiel às palavras quando as suas palavras forem palavras que falem a linguagem

[Sprache]l das próprias coisas”. A linguagem das coisas: a sua fenomeno-logia. Trazer à

fala a fenomeno-logia das coisas – eis o desafio de uma tradução.

1 Tradução de João Constâncio em: Heidegger, M. Caminhos de Floresta, p. 371. Esta parte do curso é praticamente um resumo/comentário do comentário de Heidegger ao Dito de Anaximandro.

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A primeira dificuldade de lermos o dito de Anaximandro dando atenção à

linguagem, à fenomeno-logia, das coisas, que provocam o pensamento a pensar nas

palavras de Anaximandro, é a de não o encararmos, simplesmente, como pré-

aristotélico, nem como pré-platônico, nem como pré-socrático, nem de o encararmos

como primitivo, em referência ao clássico.

Embora esta atitude seja necessária, não é suficiente. Permanece negativa. O

empenho de pensar deve se ater ao que é positivo. E o que é o positivo para o

pensamento? É a coisa que está em causa e sua linguagem, sua fenomeno-logia. Mas,

qual é a “coisa do pensar”? Não é nenhuma coisa. Isto é: não é nenhum “isto” ou

“aquilo”, não é nenhum ente, mas, sim, o ser. Este, o ser, não é nenhum sendo. A

diferença do ser em referência a todo o sendo está aquém de toda a diferença e

referência no sendo, aquém de toda ordem e desordem, de toda determinação e

indeterminação no sendo (ente).

Se nos encorajamos a enfrentar, pois, o Dito de Anaximandro, procurando

escutar o que ele diz e o que, neste dizer, se mostra a respeito do ser, nos assalta, porém,

logo uma desconfiança. Uma não. Várias. Podemos apontar, logo de cara, pelo menos

quatro. 1) Há um lapso de tempo muito longo entre nós e o início do pensamento

ocidental, a que Anaximandro pertence. Estamos distantes do que foi dito. Como se

pode pular esta distância? O que o Dito nos diz nos parece mesmo inacessível. 2)

Suposto que possamos pular o fosso que se abre entre ele e nós, o que ele nos diz não

é algo antiquado? Que interesse tem para nós, hodiernos? 3) Mesmo se tiver para nós

algum interesse, o que ele nos diz, em sua primitividade, parece tão tosco e simples, e

apoucado... 4) Esta ocupação nos parece uma mera questão de erudição. Nossa

interpretação parece apenas se interessar pelo Dito como algo a ser pensado de modo

literário filológico, sem atuação direta em nossa vida real.

E, no entanto, somos convidados a dar ouvidos ao Dito de Anaximandro – a

deixar que ele nos diga algo. O início da tradição filosófica, na qual também estamos

nós, deve ter algo a nos dizer. É preciso nos expormos à sua fala, ao seu apelo, à sua

solicitação e provocação para o nosso pensar, hoje. Será que, com as desconfianças

acima, apenas nos protegemos desta exposição? As desconfianças, depois, partem de

um pré-conceito: o de que o passado é algo que passou apenas e que, tendo passado,

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tornou-se nulo, e que nosso único relacionamento com o passado é por meio de

conhecimentos historiográficos. Conexo a esse pré-conceito, está outro: o de que o

início do pensamento é apenas o começo e que este começo, uma vez tendo acontecido,

já foi deixado para trás, pois a história, assim opinamos, nada mais é do que um contínuo

pro-gresso. E se o passado não somente for o que passou, mas o que, tendo passado,

recolheu-se, e, recolhido, vige, de modo latente, na nossa atualidade, e não somente

nos segue, mas nos precede? E se no início do pensamento se deu não apenas o começo,

mas anunciou-se a origem de toda uma destinação, a da história que se aviou desde os

gregos, na qual nós somos os epígonos, os frutos tardios? Se for assim, a origem nos está

mais próxima do que costumamos ver e experimentar, cegos e inexpertos que somos na

nossa falta de relacionamento apropriado para com a história. De repente, podemos

desconfiar da possibilidade de a origem escondida desta história nos estar na mais

próxima proximidade de nós, os hodiernos. O que, no início, se dá como origem, devido

à sua simplicidade, nos deixa desapontados, e se dissimula sob a aparência do primitivo,

do tosco, do apoucado. Não será o caso do Dito de Anaximandro? Se nos despojarmos

destes pré-conceitos e começarmos a pressentir a proximidade mais próxima da origem,

que se deu no início, junto de nós... se nos deixarmos atingir pelo apelo desta origem

distante... se nós nos deixarmos ser premidos pela necessidade de ouvir o que o Dito

diz, quiçá a tradição começa a nos liberar do seu não-dito e do seu im-pensado, novas

possibilidades de, hoje, respondermos à tarefa de cuidar do porvir. Mas, para isso,

temos que escutar o Dito numa atitude de pensamento que busca, questiona, a coisa

mesma do pensar, o sentido do ser. Então, talvez comecemos a pressentir no Dito a

proximidade do não-dito, de algo que nos interpela a partir do porvir.

Voltemos ao problema da tradução. No exercício da tradução, estamos

comprometidos com a linguagem seja com o seu vigor na lingua grega, seja com o seu

vigor na nossa lingua materna. Nosso discurso é chamado, assim, a abrir acesso para

deixar aparecer a linguagem das coisas em questão, a sua fenomeno-logia. Melhor:

trata-se de deixar aparecer a linguagem do ser, que é o que nos interpela a pensar.

Pensar é poetar. O poetar do pensar não se dá na forma de poesia ou de canto. O poetar

do pensar consiste em deixar que a linguagem venha à linguagem, e, assim, dite a

verdade do ser. No poetar do pensar a verdade, isto é, a revelação do ser, há de ser

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ditada, isto é, mostrada e adensada. Por isso, a tradução é uma tarefa poética. A

tradução precisa ser pensante-poética.

Entretanto, o que é neste Dito é dito, o que é, nele, vem à linguagem? Esta

pergunta é ambígua. Pode significar: 1) A respeito de que o Dito diz alguma coisa? 2) O

que é neste Dito é dito?

Para poder escutar melhor o dito, vamos propor uma terceira tradução, de

Heidegger, mas sendo esta ainda uma tradução provisória, ainda apega às palavras no

seu sentido literal e não fiel às palavras na sua possibilidade de deixar falar a linguagem

das coisas mesmas, a sua fenomeno-logia.

Aus welchem aber das Entstehen ist den Dingen, auch das Entgehen zu diesem entsteht nach dem Notwendigen; sie geben nämlich Recht und Busze einander für die Ungerechtigkeit nach der Zeit Anordnung.

Mas aquilo a partir do qual se dá, para as coisas, o surgir, também é aquilo a partir do qual surge, para este surgir, o desaparecer, segundo o necessário; elas pagam, nomeadamente, justiça e penitência umas às outras pela injustiça, segundo a ordem do tempo2.

Para interpretar o Dito, comecemos que as duas perguntas básicas: 1) de que é

que o Dito diz algo? 2) O que é que ele fala sobre aquilo de que diz algo?

O Dito se divide, do ponto de vista gramatical, em duas partes.

A primeira parte é:

2 Tradução de João Constâncio. In: Heidegger, M. Caminhos de floresta, p. 381.

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Ex hon dè he génesis esti tois ousi,

Kaì tèn phtoràn eis tauta gínesthai

Katà tò chreón:...

Traduzindo:

Mas aquilo a partir do qual se dá, para as coisas, o surgir, também é aquilo a partir do qual surge, para este surgir, o desaparecer, segundo o necessário;

A segunda parte é:

Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois

Tes adikías

Katà tou chrónou táxin.

Traduzindo:

... elas pagam, nomeadamente, justiça e penitência umas às outras pela injustiça, segundo a ordem do tempo.

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Coloquemos, pois, a primeira pergunta: 1) de que é que o Dito diz algo?

Na fala do Dito aquilo de que se diz, de que se discorre, é: (tá onta).

Traduzido literalmente: o ente. O plural do neutro nomeia os muitos: (tà

pollá) – a multiplicidade, no sentido da multifariedade do ente. Mas esta multifariedade

é intencionada no sentido do Todo do ente: (tà pánta). Este (tá

onta), que se dá no caso dativo - (tois ousi) [aos sendos] – é retomado na

segunda parte do Dito, na forma de (autà, as mesmas).

No Dito, pois, se discorre do ente multifário no todo. A ele não pertence somente

as coisas, no sentido das coisas materiais ou das coisas naturais (entendendo natureza

como uma região do ser, de modo restrito, oposto a outra região, como cultura, história,

costume, arte, etc.). Também os homens e os seus mundos – suas culturas – pertencem

ao ente multifário no todo. Tudo o que os homens fazem ou deixam de fazer pertence

aí. Mas não só as coisas humanas. Também as coisas referentes aos

(daimones) e aos (theoí) pertencem aí.Estas coisas são mais

propriamente entes que as coisas “naturais” em sentido estrito, isto é, os minerais, os

vegetais, os animais. Para os gregos, os (daimones) e os (theoí) são mais

propriamente e mais plenamente entes do que os outros entes. Em face deles como

imortais estão os homens estão mortais.

Ora, se o Dito está falando, discorrendo, a partir do ente multifário no todo,

então a pressuposição de Teofrasto e de Aristóteles, de que Anaximandro, ao discorrer

(perì phýseos), em torno da (phýsis), está se referindo apenas aos

(phýsei ónta), aos entes que são o que são sendo produzidos por si, e não,

por exemplo, aos (téchne onta), aos entes que são o que são sendo

produzidos pelo representar e aprontar humano, esta pressuposição é sem

fundamento. E, se é assim, também será sem fundamento a pressuposição de que o Dito

dá expressão a algo que concerne ao conhecimento científico (ôntico) da natureza (em

sentido restrito), e, por conseguinte, a hipótese de que ao usar palavras como

(dike), justiça,(tísis), penitência,(adikía), injustiça,

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(didónai díken), pagar justiça, se está usando termos éticos, jurídicos,

para se referir a fenômenos naturais (em sentido usual, restrito), também é sem

fundamento. Assim, o comentário crítico de Teofrasto a Anaximandro, de que este teria

usado nomes poéticos para falar de coisas naturais não tem também cabimento. São,

provalvemente, nomes poéticos, mas não no sentido de serem metáforas para falar de

coisas naturais (em sentido estrito). São poéticos no sentido de que neles a verdade do

ser do ente multifário no todo vem à linguagem, é dita, isto é, ditada, adensada. Estas

palavras: (dike), justiça,(tísis), penitência,(adikía), injustiça, têm,

sim um sentido poético, amplo. Mas amplo não quer dizer, aqui, dilatado, tornado

superficial, delgado. Mas quer dizer: cuja envergadura tudo abraça, albergando o ente

multifário no todo, pensado previamente. O dito de Anaximandro – esta é nossa chave

de interpretação – pretende trazer à linguagem o multifário Todo na vigência de sua

Unidade única: o ser como o Todo único do multifário. Se for assim, as palavras do dito

estão a mostrar e dar acesso os traços únicos deste Todo único. E, ainda, se assim for,

então aquelas palavras não são meras representações primitivas e antropomórficas de

um cientista ou filósofo da natureza dos primórdios da história do pensamento

ocidental.

O mais difícil, nesta leitura, é superar os nossos pré-conceitos e pré-julgamentos:

1) que o dito é expressão de uma filosofia da natureza (entendida em sentido estrito,

isto é, como parte ou região do ser); 2) que o dito, para falar de processos naturais,

recorre a significações éticas e jurídicas, a representações antropomórficas; 3) que o

dito expressa uma vivência primitiva de interpretação do mundo. Só suspendendo estes

pressupostos é que podemos auscultar o que o dito diz e, assim, entrar em diálogo com

o pensar grego do princípio. Para haver, porém, diálogo, é preciso que os dialogantes

falem do mesmo, e que esta fala se dê na pertença ao mesmo. Voltamos, pois, à nossa

pergunta: de que fala o dito? Já acenamos: fala de (tà ónta) – ele traz à fala o

que há com o ente (o Todo único): o que se passa com ele e como se passa. O dito fala

do ente pronunciando-se a respeito do seu ser. Nele, o ser vem à linguagem enquanto

o ser do ente. O nosso desafio é de, de dentro da confusão da filosofia, realizar um

diálogo do nosso pensar tardio com o pensar matinal de Anaximandro e dos demais

pensadores originários. Trata-se de um diálogo entre o pensar do oriente (matinal) e o

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pensar do ocidente (vespertino). Ambos, oriente (o matinal grego) e ocidente (o

vespertino nosso), pertencem ao mesmo dia histórico, que dura já cerca de dois milênios

e meio. O dia histórico é o mesmo, no sentido de que se trata de um mesmo envio,

encaminhamento, destinação. É uma mesma destinação que tocava a Anaximandro e

que toca a nós, como solicitação e provocação, como dádiva e tarefa. Lembremo-nos do

convite que vem à fala na sentença de Periandro: (meléta tò pan): cuida

do Todo. O grego não é, aqui, neste contexto, o nome de um povo, de uma nação, de

uma cultura, e, nem mesmo, de uma humanidade da terra. O grego é, aqui, o nome do

primevo, do matinal, desta destinação. Na alvorada deste dia o ser mesmo clareia no

ente e chama em causa, reclama, interpela, a essência do homem, isto é, o seu viger, o

seu vigorar e deter-se histórico. À destinação deste dia pertencem a grecidade, o

cristianismo, a modernidade, a civilização planetária de hoje. A ela pertence o nosso

mundo vespertino, ocidental.

O grande desafio ao pensar, no entanto, nesta destinação, consiste em que a luz

do ser permaneceu encoberta pela claridade do ente. O que rege todo o

desencobrimento do ente, a verdade do ser, permanece encoberto, esquecido, retraído.

O ser retrai-se, na medida em que se des-encobre no ente. A história então torna-se o

reino da errância. O homem se extra-via do cuidado com o ser. A relação da destinação

com a destinação na errância é a história. Retraído, o ser se detém no escondimento. A

história é a tensão entre o desencobrimento do ser no ente e o encobrimento do ser em

si mesmo. O ser permanece numa (epoché), numa suspensão, numa recusa,

numa retirada. É a época (detenção) do ser. A detenção do ser deixa acontecer o mundo

histórico. O mundo histórico acontece desde a época (detenção) do ser, desde a

errância. E, assim, dá-se tempo. Pensar é experimentar a existência como o

relacionamento extático para com a época do ser (sua retração, sua detenção, seu

mistério). É corresponder a ela. Pensar é suportar este relacionamento e esta

correspondência. O grego é o matinal desta época do ser. No grego esta época do ser se

mostra no vigor e no frescor matinal. Em nós, talvez, se mostra no lusco-fusco

vespertino. Ali, como o erguer-se de um mundo. Aqui, como o declinar de um mundo.

Ali como aqui nos alcança uma mesma interpelação: (meléta tò pan):

cuida do Todo. Não será esta interpelação que nos alcança no dito de Anaximandro?

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Com tudo isso, nós estamos fazendo história da filosofia fazendo filosofia e, ao mesmo

tempo, filosofia da história! De fato. É um risco que corremos. Esta filosofia da história,

porém, não pode ser exposta aqui e agora. Ela demanda toda uma convivência

meditativa com o pensamento na confusa história da filosofia. Demanda todo um

diálogo pensante com a tradição – esta tradição de cerca de dois milênios e meio em

que se constitui a filosofia. Sem poder expor este plano de fundo desta reflexão, sigamos

adiante. Vamos, pois, ao dito.

Transliterando:

Ex hon dè he génesis esti tois ousi,

Kaì tèn phtoràn eis tauta gínesthai

Katà tò chreón:

Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois

Tes adikías

Katà tou chrónou táxin.

Um outro problema nos assalta. Assim Diels nos apresenta o dito de

Anaximandro. Ele é tirado do texto de Simplício, que retoma Teofrasto. Onde começa o

dito de Anaximandro? Os autores gregos entrelaçavam citações com o texto sem fazer

clara distinção. John Burnet, levando em consideração que (génesis) e

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(phtorá) – geração e corrupção – eram termos técnicos, conceitos fundamentais,

em Platão, e não antes deste, contesta que o início do dito pertença realmente a

Anaximandro. Heidegger, porém, diz que estas palavras eram usadas já em Homero,

embora não teriam sido usadas como termos técnicos, nem mesmo em Anaximandro. É

que o pensamento de Anaximandro não apresentava o caráter de um pensamento

conceitual. O pensamento conceitual só surgiu com Platão e com sua interpretação do

ser do ente como (idéa); e se consolidou com Aristóteles e com sua interpretação

do ser como (kategoría). Em Platão e Aristóteles o ser do ente está sob a

égide do pensar conceitual. Em Anaximandro, porém, o pensar (não conceitual) está sob

a égide do ser. Anaximandro usa (génesis) e (phtorá) não como termos

técnicos, conceitos, categorias, mas como palavras “primitivas”, isto é, elementares,

fundamentais, palavras que deixam captar o ser que clareia no ente. Além disso,

Heidegger diz suspeitar mesmo que as palavras que vêm antes de Katà

tò chreón) têm um traço tardio, não platônico, porém, mas sim aristotélico. No entanto,

a mesma suspeita recai sobre as últimas palavras: katà tou

chrónou táxin ). Assim, quem entende dever riscar as primeiras palavras do dito deve

fazer o mesmo com as últimas. Isso leva, em todo o caso, a supor que o núcleo do dito

seria assim:

Katà tò chreón:

Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois

Tes adikías

segundo a necessidade, eles [os entes] pagam uns aos outros castigo e penitência pela sua injustiça.

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O que resta, assim, são justamente aquelas palavras em relação às quais

Teofrasto faz notar que, usando-as, Anaximandro fala de modo mais poético. Heidegger,

após vários exercícios de meditação em torno do dito, chegou à conclusão de que estas

palavras são aquelas que podem ser tomadas como testemunhas imediatas do pensar

de Anaximandro. Sem riscar as demais, ele propunha que fossem tomadas como

testemunhas mediatas. Todas, porém, precisam ser tomadas com o devido rigor,

considerando a experiência grega do pensar, e de olho na linguagem das coisas, isto é,

na fenomeno-logia dos fenômenos, ou, mais precisamente, do fenômeno do ser (o seu

clarear no ente).

Neste sentido, tentemos pensar, pois, a parte do dito que diz:

Ex hon dè he génesis esti tois ousi,

Kaì tèn phtoràn eis tauta gínesthai

Na tradução inicial, provisória, apresentada antes, soa assim:

Mas aquilo a partir do qual se dá, para as coisas, o surgir, também é aquilo a partir do qual surge, para este surgir, o desaparecer...

Já acenamos: o dito fala de (tà ónta), o multifário Todo único do ente.

Fala, portanto, do ente no sentido de (tò pán) [Periandro]. O ente no todo

aparece na expressão em dativo (tois ousi) – traduzida aqui como “para as

coisas”. Não se trata desta ou daquela coisa tomada particularmente. Trata-se da

unidade única do Todo, que abraça todas as coisas. Não se trata das muitas coisas

dispersas, nem das muitas coisas como um mero agregado, como uma soma: isto mais

isto mais aquilo mais aquilo outro... A mera soma das muitas coisas, ainda que se inclua

todas as coisas, não dá o Todo. O Todo é mais do que todas as coisas somadas,

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agregadas, assim como o todo de uma árvore não é a mera soma das raízes, do tronco,

dos ramos, das folhas etc. O todo de uma árvore é um todo estruturado. O ser da árvore

se mostra em toda uma estruturação. O todo de um corpo de um animal é mais do que

a soma dos seus membros e órgãos. É toda uma estruturação orgânica, com toda uma

dinâmica organísmica. Da mesma maneira, o Todo do ente é mais do que a soma de

todos os entes. O ser do ente apresenta toda uma estruturação e toda uma dinâmica.

Certamente, o dito de Anaximandro, que fala do ente no todo e como todo, que fala do

ser que clareia no ente como Todo, como a realidade que rege a realização de todos as

coisas, de todo e cada real, traz à tona a vigência do ser do ente, sua estruturação e sua

dinâmica. Este Todo abrange, isto é, abraça e alberga, tudo. Estamos, pois, em face à

imensidão aberta do ser, cuja vastidão chamamos de “mundo”. As palavras

(génesis) e (phtorá) devem nos fazer acessível a dinâmica deste Todo.

(génesis) e (phtorá) são, em Aristóteles e Platão, conceitos,

termos técnicos. Aristóteles tem um escrito intitulado (perì

genéseos kaì phtorá) – em latim: De generatione et corruptione (da geração e da

corrupção). Ambos dizem respeito à mudança: (metabolé).

(génesis) e (phtorá) são a mudança segundo a (ousía), mudanças

substanciais: a (génesis) é a vinda ao ser e a (phtorá) são a saída do ser.

Nas Categorias (XIV), Aristóteles apresenta estes dois tipos de mudança acompanhados

com outros quatro tipos de (kínesis), movimento. Há a mudança segundo a

qualidade - (alloíosis), alteração; depois, há a mudança segundo a

quantidade - (aúxesis) e (phtísis), aumento e diminuição; e, por fim, a

mudança de local: (phorá), translação. (génesis) e (phtorá) são,

portanto, uma mudança substancial, um movimento radical, no sentido de uma

transformação que concerne ao ser: vir ao ser e sair do ser. Tornar-se presente e tornar-

se ausente.

Platão busca elucidar a realidade dando-se nas realizações do real discernindo as

proveniências das diferenciações (caminho genealógico do pensamento). O termo

(génos) quer dizer proveniência, mas também estirpe, descendência, linhagem,

raça. Ele fala, por exemplo, de raça dos deuses, raça dos filósofos etc. (cf. Sofista 216c).

A significação filosófica de (génos) faz pensar na origem, fonte, linhagem da

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diferença constitutiva de todo o sendo. No Sofista (254d) os gêneros supremos são

cinco: 1) (ón), ser-sendo 2) (stásis), repouso, quietude; 3) (kínesis),

movimento; 4)(héteron), outro, (autó), o mesmo. O ser está em todos os

outros: com efeito, todos são. Repouso e movimento não se misturam. Cada um é outro

do outro. Mas, ao mesmo tempo, cada um é ele mesmo o mesmo para si mesmo. Platão

traz o par (génesis) e (phtorá) no diálogo intitulado Parmênides (136 b-

c). Ali, o discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles fala dos pares das diferenciações

e oposições fundamentais. Ali aparecem: 1) (homoiótes) e

(anomoíos), semelhança e dessemelhança; 2) (génesis) e

(phtorá), geração e corrupção; 3) (eínai) e(me eínai): ser e não

ser.

É preciso, pois, pensar (génesis) e (phtorá), geração e corrupção,

em referência ao ser e não ser do sendo, do ente no todo. Nesta perspectiva,

(génesis) e (phtorá) não dizem respeito a evolução e involução,

pensados em termos de representações modernas. Nem dizem, simplesmente,

surgimento e perecimento. (génesis) quer dizer surgir, sim, mas no sentido de

advir ao ser, aparecer, apresentar-se e, (phtorá), por sua vez, quer dizer perecer,

mas no sentido de desaparecer, ausentar-se. (génesis) é provir, advir, chegar

a(o) ser, e, assim, emergir, mostrar-se, aparecer. (phtorá), por sua vez, parece

significar desaparecer, subtrair-se, ir embora. Ambos dizem algo assim como o entrar e

o sair de cena, a saber, do espetáculo que é a (alétheia), a esfera do

desencobrimento, do aberto e manifesto. Pensados a partir da (alétheia) da

(phýsis), da verdade (revelação) do ser, (génesis) e (phtorá) são

o emergir e imergir; o emergir como desencobrimento, abertura, manifestação,

aparecimento; e o imergir como desaparecimento, subtração, partida. (phtorá),

então, tem o sentido de um desaparecer, de um evadir, um subtrair-se e ir-se embora.

O dito fala que a (génesis), o surgir, no sentido emergir, é dado aos

sendos que, a cada vez, vêm ao ser, à presença. Além disso, fala de modo paradoxal, ao

dizer kaì tèn phtoràn eis tauta gínesthai): e surge para os

sendos, junto com o surgir, o desaparecer. Junto com o emergir emerge o imergir. Junto

com o provir, advir, chegar, emerge o subtrair-se, o ir embora, o sumir. De onde provêm

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para o real as realizações provêm também as desrealizações. O dito fala de um

(phtorá gínetai), de um surgir do desparecer, de um despontar do

desvanecer. É como o passar de um dia. A manhã desponta, fazendo desvanecer a noite

na madrugada. O amanhecer, o despontar do dia, é, por assim dizer, a noite da noite.

Logo, então, desponta o desvanecimento da manhã e o dia se faz mais claro, até atingir

a claridade meridiana. Mas, logo então, desponta o desvanecer do meio dia e sua

claridade mais forte, e, com isso, surge o entardecer. O despontar do ocaso é o

desvanecer do dia. E sobe a noitinha no horizonte, com o declínio do sol no ocaso.

Desponta a noite, que traz o desvanecer do próprio entardecer. Entretanto, o mais

importante em tudo isso é captar em todo o despontar o advir ao desencoberto e em

todo o desvanecer o ir-se embora caminhando na direção do encoberto. O provir e o ir-

se embora se dão na esfera do des-encobrimento, oscilando e hesitando, num constante

frêmito, entre o encoberto e o desencoberto. (génesis) e (phtorá),

portanto, dizem respeito ao chegar e ao ir-se embora do chegou.

(génesis) e (phtorá), agora, dão-nos um aceno para pensar de

modo melhor (tà onta), o ente (os seres sendo), isto é, (tà pánta),

os muitos entes (seres) reunidos na unidade-totalidade do ser. Os entes são transeuntes,

são os que chegam, despontando, surgindo no desencoberto, e que, tendo chegado, se

vão, partem, na direção do encoberto. Chegada e saída, advento e desaparecimento, é

a dinâmica que rege o ser dos sendos em sua transitividade.

Contudo, estamos acostumados, na filosofia, a considerar esta transitividade

como o devir e a considerar o devir como estando em oposição ao ser. A metafísica, de

há muito, restringiu o ser, e, assim restrito, o opôs, ora ao aparecer, ora ao devir, ora ao

pensar, ora ao dever. Como se o aparecer, o devir, o pensar, o dever, não fossem! Ora,

estes “opostos” do ser são! E, enquanto tais, pertencem ao ser. Nós diferenciamos ser

de devir; nós ressaltamos o ser contra o dever; nós opomos o ser ao pensar; nós

separamos o ser do aparecer. Com isso, o ser é delimitado. Esta delimitação acontece

em várias perspectivas. Com isso, o ser recebe determinações de todos os lados. O ser

é posto em oposição ao devir como o em oposição ao transitório. É posto

defronte à aparência como o aspecto essencial, a (idéa), contra a mera aparência.

Platão considera a (idéa), o aspecto essencial, comum, como o (ontos

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ón), isto é, o que propriamente é na plenitude do ser, o real realíssimo, contraposto à

aparência inconstante das realizações individuais. O ser é, além disso, determinado

como o pensado do pensar, como aquilo que vem à fala no (lógos), no discurso,

ou melhor, na (diánoia), no pensamento discursivo. No momento em que o

pensar se apodera do ser, como razão calculadora, surge um outra contraposição: o

dever. O ser é fundado pelo pensar e coroado pelo dever. O Bem, que Platão considerava

acima do ser (como - ousía, presença constante, permanente), a ideia das ideias,

se torna, então, valor. Enfim, o ser, assim restringido, delimitado, perde a significação,

tornando-se o último vapor de uma realidade evanescente, apenas o conceito mais

geral, indeterminado, vazio. Acontece que o devir não é um nada. Ele pertence ao ser.

O ser dá sustentação e cunha o devir, isto é, a transição, a passagem, o constante oscilar

e hesitar, o frêmito, entre o chegar e o ir-se embora dos sendos que, a cada vez, são. O

provir e o ir-se embora são traços fundamentais do advento dos entes, de sua chegada

à presença.

O ente, quer dizer, o sendo / isto que é, era dito, em grego, (on) – no plural,

os sendos, se dizia (onta). Numa forma mais arcaica, que aparece no uso da

linguagem por Heráclito e Parmênides, se dizia (eón) e (eonta). Nestas

formas arcaicas dá-se o indício e a indicação da raiz *es, presente também no latim, est

(é), esse (ser). Assim, (eón) ou (on), por um lado, significa ser um ente (sendo);

e, por outro, indica o/um ente, isto que é. Nessa duplicidade acena-se para a

ambivalência que constitui a diferença referente e a referência diferencial de ser e ente:

o enigma do ser. Tal enigma foi considerado pela metafísica como a transcendência

transcendente e transcendental. Esta dobradiça de ser e ente constitui, visto do ponto

de vista da metafísica, a transcendência. Por sua vez, transcendência significa, por um

lado, ultrapassagem, o estar-além de toda determinação (de espécie e de gênero) do

ente, e, por outro lado, o viger em todo o ente. Para a metafísica antiga e medieval, o

ser é a transcendência transcendente, neste sentido. Para a metafísica moderna, o ser

é a transcendência transcendental, ou seja, é o que está aquém de toda experiência,

como condição prévia de possibilidade dos objetos da experiência e da experiência dos

objetos, bem como de todo o conhecimento objetivo. É o que precede à constituição da

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objetividade dos objetos. Transcendental diz a abertura do a priori. O ser é o

transcendental por antonomásia.

Antes, porém, da metafísica se instaurar no pensamento de Platão e de

Aristóteles, com a restrição do ser em oposição ao aparecer, ao devir e ao pensar, o

pensamento matinal de Anaximandro, Heráclito e Parmênides, sondou a imensidão

aberta do ser acolhendo e integrando em si, colocando sob sua regência, também o

aparecer, o devir, o pensar. Outrora, estes pensadores não pensaram somente os

(eonta), os sendos (os entes), em sua multiplicidade. Mas procuraram pensar o

(eón) em sua singularidade. Trata-se, aqui, não tanto da singularidade deste ou

daquele ente que, a cada vez, vem ao ser e dele se retira. Trata-se de pensar a

singularidade do singular puro e simples, isto é, de pensar o um que é anterior a todo o

número, o um que vige como o um unicamente unificador.

Antes de ser um conceito da metafísica e antes de ser uma palavra fundamental

dos pensadores originários, (tò eón) e (ta eonta) soava na linguagem

da língua de Homero. Recordemos o que nos expõe a Ilíada, no livro I, numa passagem

já evocada por nós. Ao apresentar Kalchas (ou Calcas), o vate, Homero diz:

..........................................Levantou-se-lhes, porém, Calcas, filho de Testor, o mais vigoroso dos áugures, Que conhecia o que é (ta t’eonta), o que será (ta t’essomena) e o que foi antes (pro t’eonta), E que por isso conduziu as naves dos Aqueus até Troia, Pela mancia3, que lhe dá Apolo, o Brilhante (Phoibos Apollon).

Kalchas é um vidente. É alguém que sabe o que há com o ente, por ter visto

(tá t’eónta tá t’essómena pró t’eónta): o

que é, o que será e o que foi antes. O vidente é sábio, por ter visto o vigente. O vigente

é tríplice: é o ente agora presente, atual, o ente porvir, o futuro, e o ente que foi, o

pretérito. O passado e o futuro também são vigentes. São o vigente não atual. O vigente

3 A virtude e a arte da predição. Manteúo significa dar oráculos ou respostas, vaticinar, predizer, adivinhar. Mantis é o vate, o adivinho, o profeta. Mantikós, aplicado a pessoas, significa aqueles que têm a faculdade divinatória, profética.

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atual os gregos denominavam (tà paréonta). A palavra (pará)

significa “junto de”. O vigente atual é o que chegou junto de nós no desencobrimento.

É o que adveio e se nos tornou próximo na redondeza aberta do desencobrimento. O

vigente atual é o que adveio a esta redondeza aberta e nela se detém, hesita, demora.

Portanto, tá t’eónta) significa os entes que chegaram ao quieto, à demora,

no interior da redondeza do desencobrimento. Ser é, neste sentido, quietar, demorar,

nesta redondeza. Ser tem, assim, o sentido de (parousía), chegada, presença,

nesta redondeza. Dizíamos que o ente passado e o ente futuro também são vigentes. O

passado também é, o futuro também é. Passado e futuro não são um nada, isto é, algo

nulo. Passado e futuro também pertencem ao ser. São vigentes, embora o sejam fora

da redondeza do desencobrimento. O vigente não-atual é o ausente. Assim, há a

vigência da presença (do atual) e há a vigência da ausência (do passado e do futuro).

Embora a vigência do ausente se dê fora da redondeza do desencoberto, ela guarda uma

referência à presença. O ausente é ou o que está por advir à redondeza do

desencobrimento (o futuro) ou é o que dela se foi, o que saiu, foi embora (passado). O

ausente é também vigente e, enquanto tal, vige no desencobrimento.

Assim, (tò eón) quer dizer, na sua ambivalência, a vigência do presente e

do ausente; do atual (presente) e do inatual (passado e futuro). O sábio é aquele que é

vidente desta vigência una da presença e da ausência. Homero diz que Kalchas, por ser

um tal vidente, foi capaz de dirigir as naves do Aqueus até Troia. Ele pôde isso graças à

mancia, que lhe deu Apolo. O vidente é chamado, em grego, (ho mántis). Este

é caracterizado como (ho mainómenos): o que delira. O verbo latino

delirare significava, primordialmente, sair do sulco, sair do rego. Delirar é tresloucar. É

ficar fora de si. O vidente é aquele que cai fora do mero acorrer do que prejaz, do mero

vigente atual, cai fora disso dirigindo-se para o ausente. Para o vidente, todo o presente

e todo o ausente é reunido em um vigente e aí preservado, custodiado. A verdade do

ser é a custódia de todo o ente, presente e ausente. O verbo (horáo), que está

presente na palavra (theoria), quer dizer, justamente recolher o que se

manifesta, custodiando a manifestação. A consideração deste olhar se realiza numa

proteção, em um tomar cuidado daquilo que se manifesta. Custodiar é o albergar que

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desbasta e aclara e, ao mesmo tempo, reúne o que se manifesta. A vigência da verdade

do ser custodia o vigente, isto é, o atual e não atual, no desencobrimento.

O vidente é aquele que diz o que diz a partir da custódia do vigente. Ele é alguém

que, no seu dizer, custodia o que se tornou manifesto. Ele cumpre a vocação do homem

de ser aquele que realiza a custódia do ser, isto é, do vigente (presente ou ausência,

atual ou não atual). É a vocação de ser o pastor do ser. O homem é o lugar-tenente do

nada. O ser e o nada é o mesmo. É que o ser não é nenhum ente. O homem cumpre sua

vocação ontológica pela sua presença de espírito no sentido de custodiar, cuidar, do ser,

ou, o que é o mesmo, cuidar do nada. Vidente é o homem quando ele sabe, isto é, viu a

manifestação da vigência, do ser, no presente e no ausente, no atual e no não atual, e a

custodiou. O ver se determina não a partir dos olhos de quem vê, mas a partir do

desbastar e clarear do vigente, isto é, a partir da clareira do ser. Clareira do ser quer

dizer, aqui, o abrir-se e fender-se, o desbastar-se, e, ao mesmo tempo, o tornar-se leve

e claro da vigência, tanto do presente quanto do ausente, tanto do atual quanto do não

atual. A vocação do homem consiste em existir (ex-sistir), isto é, em estar de pé, erguido,

fora de si, junto do todo, e, assim, em in-sistir, com todos os seus sentidos, nessa clareira

do ser. Sábio é o vidente, isto é, aquele que realiza a sua existência (ex-sistência) nesta

in-sistência. Saber é recolher o que se viu. Sábio é aquele que permanece mêmore

(alembrado) do ser (da vigência do presente e do ausente). O saber é a memória do ser.

Por isso é que o mito grego apresenta (Mnemosyne) como a mãe das

musas. Saber não é ter informação ou conhecimento no sentido da ciência moderna. O

saber é o custodiar pensante da proteção do ser. O ser, enquanto vigência do vigente

(presente ou ausente) já é, em si, verdade, isto é, o recolhimento que desbasta e clareia

e, ao mesmo tempo, alberga. A verdade não é, aqui, uma característica do

conhecimento (humano ou divino), nem é uma propriedade transcendental do ente (o

ente enquanto inteligível, como pensou a metafísica). O ser (a vigência) é que é uma

propriedade da verdade (o recolhimento que desbasta e clareia e, ao mesmo tempo,

alberga esta leveza e este clarear).

Assim, tá t’eónta) o vigente que, em sua vigência presente, atual,

está em conexão com a vigência do ausente, do não atual. É o que se demora na

redondeza aberta do ser. É o que chega e demora nesta abertura. Mas, neste demorar,

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é também o que vai embora, dirigindo-se na direção da oclusão, do encobrimento.

Assim, (tò eón) é o que, a cada vez, demora nesta abertura do desencobrimento,

nela chega e dela vai embora. Ele demora entre a chegada e a partida. O demorar é a

passagem entre a chegada e a partida. O vigente é o que a cada vez demora. É o que

ainda demora na chegada e já demora no ir-se embora. O vigente presente, atual, vige

a partir da vigência da ausência, do não atual. Destarte, tá t’eónta) quer

dizer a multifariedade una do que vige a cada vez. Cada ente é o que vige em seu modo

de ser em relacionamento com os demais entes.

O homem mesmo pertence ao ente no todo, a tá t’eónta) – o

homem, que demora entre a chegada (nascimento) e partida (morte). Ele, com o seu

mundo histórico, com suas circunstâncias, com suas situações e destinações, com suas

vicissitudes e peripécias, como, por exemplo, os Aqueus, para quem Kalchas vaticina,

também pertence a tá t’eónta), ao ente, ao vigente, e, enquanto chamado

a ser o vidente, o sábio, o pastor do ser e o lugar-tenente do nada, pertence de uma

maneira peculiar e extraordinário.

Vamos, agora, concentrar no núcleo do dito de Anaximandro:

Katà tò chreón:

Didònai gàr autà díken kaì tísin allélois

Tes adikías

segundo a necessidade, eles [os entes] pagam uns aos outros castigo e penitência pela sua injustiça.

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Comecemos a escutar este núcleo do dito de Anaximandro, dando ouvidos à

segunda proposição:

Didònai gàr autà díken

kaì tísin allélois tes adikías - eles [os entes] pagam uns aos outros castigo e penitência

pela sua injustiça.

Neste dito não aparecem palavras-conceito, mas palavras ditas de forma

pensada e pensante. Em palavras como (tísis), (díke) e (adikía), soa

a interpelação do ser, que determina a essência da filosofia. É o modo como o ser vem

à linguagem no momento primevo de sua destinação.

O dito, nesta segunda proposição diz: Didònai gàr autà – A

proposição traz um enunciado sobre autà) – os mesmos (eles). De quem se está

falando? Só pode estar falando de (tà ónta) – os entes: o vigente no todo; o

que, no desencobrimento, é vigente, o atual e o não atual; todo o vigente, que vige no

modo do “a-cada-vez”: deuses e homens, templos e cidades, mar e terra, águia e

serpente, árvore e arbusto, vento e luz, pedra e areia, dia e noite. Estes constituem os

muitos - (tà pollá). O todo do ente multifário não se constitui a partir da soma

ou adição de partes. Antes, os entes demoram-se uns em relação aos outros, num todo

estruturado. Todos os entes estão reunidos no ser, na vigência. À unidade que une e

reúne todos os entes Heráclito irá chamar de (Hén) ou de (lógos).

O que perpassa fundamentalmente todo o vigente? O dito de Anaximandro

chama de (adikía). Se realizamos uma tradução literal (à letra), dizemos:

“injustiça”. Mas, se nossa tradução for fiel não à letra, mas à palavra, ou melhor, à coisa

mesma que vem ao pensar e à linguagem, então a tradução precisa ser outra. Em que

sentido que o a cada vez vigente se encontra perpassado fundamentalmente pela

“injustiça”? Não é um direito do ente demorar na vigente a cada vez? O que significa

(adikía)? A palavra diz, de imediato, que a (díke) fica de fora. A palavra

(díke), ao que parece, não tinha, na sua origem, um sentido jurídico. O sentido

originário parece ser o de direção. No sânscrito temos diṡ ou diṡā: direção, região do

céu, maneira4. Em latim temos a expressão: dicis causa – pela maneira de dizer. No grego

4 Chantraine, P. Diccionaire étymologique de la langue grecque, p. 284.

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há uma relação de (díke) com (deíknymi): mostrar, fazer ver, indicar,

revelar, demonstrar, afigurar. Da mesma raiz, em latim, temos o verbo dico (-is, -ĕre,

dixi, dictum): dizer solenemente, expor.

O mito falava da deusa Dike, a “Justiça”. Era filha de Zeus e de Themis.

De Zeus, Heráclito diz: “Um (hen), o único sábio (tó sophón), não se dispõe e se

dispõe a ser chamado com o nome de Zeus” (fragmento 32). Zeus é o senhor do raio, ou

melhor, o raio como senhor. Em Heráclito, o raio é origem, no sentido de arché: a

proveniência essencial de todas as coisas e, ao mesmo tempo, o que tudo governa. Um

fragmento de Heráclito (64) diz: “o raio conduz todas as coisas que são” (tàde panta

oiakídzei keraunós) – Isto é: o raio conduz o ente em sua totalidade.

Themis é, por sua vez, uma titânide, filha de Urano e Gaia (Céu e Terra), os pais

primordiais, o princípio dual, que está na origem de tudo. Themis é a que põe e institui

as leis eternas dos deuses. De fato, o seu nome tem a ver com o verbo títhemi: pôr,

colocar. Por isso, ela era a conselheira de Zeus e tinha a autoridade de reunir e dissolver

as assembleias dos deuses e dos homens. Themis gerou com Zeus as Moiras, deusas do

Destino. Destino é entendido, aqui, como destinação, envio. É o poder de realização do

historiar-se do sendo como um todo, e da existência humana, especificamente. Ser vige

como o destino dos entes. Moira é outro nome para o mistério de ser, em Parmênides.

O nome “Moira” remete ao verbo medial meiromai: dividir, repartir. “Moira” significa,

com efeito, a parte que toca, a porção que é assinalada, reservada e destinada, a cada

ente, também a cada homem, no todo do ente. Daí: destino.

(Díke), portanto, é nome para o ser, no sentido de conjuntura, articulação,

estruturação do entes. É outro nome para a (phýsis), o vigor da auto-emergência

que se impõe aos entes, ou para (lógos): a reunião, o um que tudo unifica.

(Díke), portanto, pode ser tomada como a conjuntura dispositiva, a articulação do

ser que permeia os entes, que perpassa todo o vigente. Dike, aqui, em Anaximandro é,

pois, o mesmo que lógos em Heráclito. O “Um: Tudo” (Hen: Panta). A reunião que tudo

reúne. A conjuntura de todas as coisas. A conjuntura que tudo dispõe e articula, que

rege toda articulação e estruturação dos sendos no Ser. Dike é, aqui, a justeza desta

articulação e estruturação, da conjuntura essencial e originária. Dike significa a

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articulação íntima de todas as coisas, enquanto pertencentes, todas, nas suas

realizações e desrealizações, ao Mesmo, ao mistério do Ser.

Assim, (adikía) significa tanto quanto des-articulação, ter saído da

articulação. Sair da articulação não é, no entanto, não mais viger. A articulação

possibilita ela mesma a des-articulação. O ente, que é vigente a cada vez, está em

(adikía), em des-articulação, na medida em que ele demora. A demora vige como

a chegada que se encaminha, de passagem, para o ir-se embora. A demora vige entre

provir e ir embora. O que demora está ausente da chegada e da partida. O “entre” é

articulação. O ente, o vigente, oscila para lá e para cá entre a chegada e a partida. De

certa maneira, a cada vez, sempre de novo, está chegando e partindo. Na medida em

que demora, está sempre despontando e desvanecendo. A des-articulação é um traço

essencial do vigente (do ente). Sua vigência-presença se dá ao modo de dupla ausência:

insistindo na demora ele se ausenta da chegada e da saída. Esta insistência na demora

pode significar uma persistência na continuidade. E, assim, o ente ousa subtrair-se da

demora passageira. Insiste de modo pertinaz, obstinadamente, no permanecer, no

perseverar na demora. Não se volta mais para os outros vigentes. Ele se estende, fica

esganchado, num mero empenho de perdurar e durar. O ser, viger, do ente, deixa de

ser encarado como demora passageira e passa a ser tomado como presença constante,

permanente, contínua. Nisso acontece a des-articulação: como a insurreição contra a

passagem, que toma o demorar como um durar, no sentido do persistir obstinado.

No entanto, o dito diz: Didònai gàr

autà díken ... tes adikías. A tradução provisória dizia: eles [os entes] pagam uns aos

outros castigo ... pela sua injustiça. No entanto, no dito não se fala de pagar ou

pagamento. O dito fala de dar - (didónai). O dito diz que os entes, em vista da

des-articulação, con-cedem articulação. Como pode o que está na des-articulação dar

articulação? Dá o que não tem? Mas dar não é apenas entregar o que se tem. Dar é

também con-ceder a outro o que não se tem, isto é, con-ceder a outro a possibilidade

de receber o que lhe é próprio, o pertencer à articulação. (didónai), pois, quer

dizer este deixar pertencer.

O adágio escolástico, nemo dat quod non habet “ninguém dá o que não tem”, só vale mesmo

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de coisas e conteúdos dado, de tudo que é estático, que já está pronto e acabado e não tem que e o que ainda vir a ser. Ora nas relações de vida, de ser e realizar-se em ininterrupto vir a ser, ninguém pode dar o que tem. Qualquer um só pode dar mesmo o que não tem. Pois quem aqui desse o que tem, não daria. Tiraria, antes, do outro o perfil de ser outro e, com isso, toda possibilidade de aceitar ou recusar. O que quer que alguém me dar, uma coisa, certamente, nunca me poderá dar, a possibilidade de receber. Esta todos já devemos ter conosco e trazer com nosso próprio ser, para podermos receber alguma coisa5.

Articulação é justiça no sentido de justeza, é o ser e estar ligado, no sentido do

que é apropriado, apto, conveniente, adequado. Diz respeito ao lugar conveniente, ao

tempo apropriado, no sentido do momento azado (oportuno), às circunstâncias

apropriadas para... (díke) quer dizer, pois, a justeza que deixa ser o que convém e

que articula. (adikía), desarticulação, é também des-ajuste, inapropriação, não

aptidão, inconveniência, inadequação. Con-ceder articulação é, pois, não ceder à des-

articulação, não ceder à inapropriação, à inconveniência. Isto quer dizer: superação da

demora como mero permanecer e durar. O vigor do vigente consiste não na des-

articulação, mas no conceder articulação: que ele deixa acontecer a pertença à justeza

do ser. Assim, o vigente atual é atual, à medida que concede a pertença ao inatual.

Conceder articulação é, pois, deixar acontecer a pertença à conveniência na superação

da inconveniência.

Entretanto, sigamos. O dito diz:

Didònai gàr autà díken kaì tísin

allélois.

Aqui surge um problema: o allélois) – “umas às outras” diz respeito

apenas a (tísis) ou também a (díke)? Linguisticamente, ambas as alternativas

são verossímeis. É preciso, pois, interrogar os fenômenos. Esta decisão depende muito

5 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis-RJ: Daimon Editora, 2010, p. 205.

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da tradução de (tísis). A tradução usual diz: “penitência”. Por isso é que se traduz

(didónai) por “pagar”. (tísis) pode, mas não tem que significar penitência.

Mas, qual seria a significação essencial e originária de (tísis)? O nome (tísis)

remete ao verbo (tino), pagar, expiar, vingar, punir. O antigo indiano tem a palavra

cáyate, vingar, punir. Já no sânscrito aparece cinute, “observar, notar”. Daí o sentido de

“apreciar”. O que significa apreciar algo? Resposta: observar, notar bem, ter em

consideração o que está sendo apreciado, e, assim, satisfazer, corresponder a, convir

com aquilo. O satisfazer pode ir tanto no sentido de prestar um obséquio, conceder a

devida deferência, realizar um favor a; como também no sentido de saldar uma dívida,

reparar um dano, expiar uma culpa etc. Os entes demoram, e, neste demorar, eles se

detêm, criam impedimentos, hesitam em passar, tentando prolongar o seu tempo,

fazendo do perseverar, isto é, do permanecer, perpetuar, sim, do mero durar, a sua

obstinação. Querem apenas permanecer. Ficam enrijecidos, endurecidos, neste mero

perdurar. Assim, não se voltam para a (díke), para a justeza, isto é, a articulação e

conveniência. Então, eles se firmam um contra o outro. Não têm consideração pela

vigência que demora do outro. Os entes que a cada vez demoram, então, tornam-se sem

consideração, sem respeito (re-spectus), pelo outro, na gana do persistir. Mas esta falta

de respeito (de consideração, de atenção), não dissolve os entes, nem desmembra ou

despedaça o todo em indivíduos desconsiderados, nem o dispersa na inconsistência.

Antes, pelo contrário, o texto diz:

Didònai ... tísin allélois. – Eles (os entes) con-

cedem uns aos outros consideração.

Os entes, como partes do todo, deixam acontecer o pertencimento uns aos

outros, prestam consideração uns aos outros, respeitam (mantêm um olhar

retrospectivo para) uns aos outros. No relacionamento dos entes uns com os outros se

dá algo como uma espécie de probidade. Em latim, o adjetivo probus significa,

originariamente, que brota bem, e, a partir daí, honrado, íntegro, virtuoso. Probidade é,

pois, o caráter de ser daquilo que brota, surge, irrompe bem, e, nisso se articula com o

todo: é, neste sentido, íntegro. Inclui, pois, o sentido de cuidado pelo todo e, a partir do

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cuidado pelo todo, o sentido de cuidado pelas partes. Cuidar é, aqui, fazer caso de: dar

atenção, apreço, a... importar-se com, levar em conta... Cuidar é, neste sentido, é fazer

caso de um outro, dar atenção a ele, para que ele possa permanecer em sua vigência,

isto é, no vigor essencial de seu ser. Este fazer caso de, pensada a partir do viger, é a

(tísis). Consiste em, apreciando algo, deixá-lo ser na sua vigência, no seu vigor

essencial, conceder que o outro seja ele mesmo, que ele vigore enquanto o que ele

mesmo, no seu poder-ser mais próprio, é. Na medida em que os entes que a cada vez

vigem e vigoram não se dispersam no mero durar que permanece na obstinação sem

limites do tornar-se inchado, inflado, empolado, entumecido e exaltado – obstinação

acompanhada da gana de se rebaixarem uns aos outros –, então eles deixam acontecer

pertencimento em referência à articulação e à conveniência: (didónai

díken).

No dito de Anaximandro que estamos meditando aparece também a palavra

allélois): uns aos outros. Para os entes, ser é, fundamentalmente, ser-com.

Os entes, cada vez vigentes, são o que são, vigendo e vigorando com outros entes, que

são a cada vez, dentro da redondeza aberta do desencobrimento. Dá-se assim um co-

pertencer uns para com os outros no cuidado, no fazer-caso-do-outro, no conceder

consideração um ao outro. Assim, não se trata de uma relação mútua indeterminada,

que se perde no interior de uma multiplicidade vaga. A relação mútua, destarte, é

caracterizada de modo determinado, no conceder consideração, no cuidado, no fazer-

caso do outro, no interior de um todo que vige, ele mesmo, como a redondeza aberta

do ser, que deixa ser a pertença de uns para com os outros entre os entes.

O dito diz: Didònai gàr autà

díken kaì tísin allélois. Eles, os entes, concedem articulação/conveniência e consideração

uns aos outros. Ainda não pensamos a conjunção (kaì) – “e”. A sua função não é a

de um mero ligar ou ajuntar. Mas esta palavra põe em relevo uma consequência

essencial. Isto quer dizer: se os entes, os vigentes, concedem articulação/conveniência,

então, o seu ser, isto é, o seu viger, acontece de tal modo que eles, a cada vez, concedem

também consideração, atenção, cuidado. Nisto acontece a superação da des-

articulação, da in-conveniência, que deixa ser a pertença, que é própria da consideração,

do cuidado.

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Agora podemos re-ler e re-traduzir o que diz o dito assim:

Didònai gàr autà

díken kaì tísin allélois tes adikías - eles [os entes, os vigentes que se dão a cada vez]

deixam acontecer a pertença em referência à articulação/conveniência e, com isso,

também a consideração, o cuidado, uns para com os outros, na superação da des-

articulação (in-conveniência).

O deixar acontecer pertença, entendido a partir da conjunção (kaì) – “e, com

isso, também”, se diz de dois modos: 1) no sentido de assumir o ser-entre e, com isso, a

articulação e conveniência entre a chegada e a partida; 2) no sentido de assumir o ser-

com e, com isso, a consideração e o cuidado para com os outros.

Entretanto, falta uma palavrinha a ser meditada. É a palavrinha (gàr): “pois”,

“nomeadamente”. Esta palavrinha, usualmente, tem a função de conduzir uma

fundamentação. Em todo o caso, ela mostra que a segunda oração do dito elucida,

esclarece, o que foi dito na primeira. O que a segunda oração diz, isto é, mostra, o deixar-

acontecer-pertença. O deixar-ser-pertença é o modo, em que o vigente, que se dá a cada

vez, o ente, vige, vigora, é. A segunda oração, pois, nomeia o vigente no modo de seu

viger (o ente no modo de seu ser). O dito diz algo a partir do vigente (ente) sobre seu

viger (ser). Ele põe o vigente (ente) na perspectiva do viger (ser) na clareza da sonância

e claridade da nitidez do pensado. É neste sentido que a segunda oração elucida,

explana, esclarece o viger do vigente (ser do ente).

A segunda oração elucida a partir do vigente (do ente) o viger (ser). Por meio do

(gàr), “pois”, ela se retro refere à primeira oração. Esta, por sua vez, deve, pelo

contrário, elucidar a partir do viger (ser) o vigente (ente). Da primeira oração nós

recebemos as palavras:

... katà tò chreón...

Traduz-se, usualmente, por: “segundo a necessidade”. Deixemos, de imediato,

sem tradução a expressão tò chreón). A partir da meditação anterior nós

suspeitamos: esta expressão nomeia o ser do ente, isto é, o viger do vigente; que nela

se pensa a relação do ser para com o ente, isto é, do viger para com o vigente. É no viger

do ser que pode repousar a relação do ser para com o ente.

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A tò chreón) precede, porém, um katà). Esta expressão quer

dizer: de cima para baixo, cá para baixo, através de, no que diz respeito, no que concerne

a, ao longo de, segundo, seguindo, através de, rumo a, de acordo com... O katà)

remete a algo que, do cimo do qual, enquanto o que está no alto, algo que está embaixo

vige, à medida que é subsumido por ele e o segue. O que está no alto tem em si um

declive, um precipício, uma queda, algo como uma cascata, através do qual e segundo

o qual se dá o seu caso, isto é, o seu acontecer. Assim, no declive, no precipício, na

cascata do ser se dá o caso do ente. O ser vige, pois, como o acontecer que se precipita.

O ente é o que acontece com esta precipitação. É o que é o caso (o fato, a conjuntura

etc.). O vigente (ente) só pode viger na cascata da vigência (ser). O vigente acontece

segundo e seguindo a vigência. Ele demora katà tò chreón – na

correnteza e na queda da vigência. O ente, que é a cada vez, tem o seu caso (o seu

acontecimento), à medida que é desde o alto e no declive do ser. É seguindo e segundo

o ser. É, à medida que o ser se precipita. Assim, tò chreón) é o nome para o

ser – o mais antigo nome, em que o ser do ente é trazido à linguagem.

O viger do a cada vez vigente, porém, só vinga como superação da

(adikía), isto é, da des-articulação. A des-articulação é uma possibilidade, um

poder, que se aninha, fundamentalmente, na demora do vigente. E que, para que se dê

própria e plenamente vigência, carece de ser superada. A superação acontece no deixar

acontecer pertença, isto é, na articulação e na consideração, no cuidado. A

articulação/conveniência pertence ao vigente em que vinga a superação, ao longo da

vigência. Assim, tò chreón) – o ser, a vigência – é o que arruma, ajeita, dispõe

os vigentes, trazendo-lhes à união que lhes cabe, que lhes serve, segundo o que lhes

convém – é o que lhes envia, deixando e fazendo acontecer a pertença, isto é, a

articulação e a consideração. Destarte, tò chreón) é envio, que dispõe os

vigentes, isto é, os arranja, os arruma, os acomoda, os prepara e os robustece, os dispõe,

os compõe, os ordena, os institui, os instrui e os constitui etc. O vigente vige, à medida

que supera o “des-” da des-articulação, o (a-) da (adikía). Este (a-) tem o

significado de (apó), em latim, ab, isto é, tem a significação de ir-se embora de,

distanciar-se de, ausentar-se de. O ente, na gana da mera permanência, vai embora,

distancia-se, ausenta-se da articulação. Mas, concedendo articulação com a chegada e

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a partida e articulação com os outros entes, ele supera a (adikía), a des-

articulação. No entanto, isso só pode acontecer se o ente demora

katà tò chreón – segundo e seguindo o vigor que, enquanto cuidado,

dispõe tudo para a articulação e a consideração.

Entretanto, o que significa, propriamente, tò chreón)? Esta palavra

foi deixada por último. Assim foi devido a ser o primeiro a ser pensado. Nela se nomeia,

dizíamos, o ser do ente, a vigência do vigente. Com esta palavra se evoca a coisa mesma

do pensar – aquilo que nele está em questão, em causa. A coisa que interessa ao pensar

é o ser. A coisa que interessa ao ser é ser o ser do ente. O envio, o destino, do ser é ser

o ser do ente. O ser não é o ente. Mas é para ser o ser do ente. Esta expressão “do ente”

é um enigmático genitivo – isto é: aponta para uma gênese, para a proveniência do

vigente (ente) a partir da vigência (ser). Com o viger de ambos, vigente e vigência,

permanece encoberto o viger desta proveniência. A referência na diferença de vigente

e vigência também permanece impensada. Sem se dar por isso, a vigência passa a ser

tomada a partir do vigente e passa mesmo a ser tomada como vigente, isto é, como o

vigente que está acima de todo outro vigente, como o vigente (ente) sumo. A diferença

referente ou a referência diferencial entre vigência e vigente, ser e ente, se encobre. A

vigência (ser) passa a ser tomada então como a universalidade e o sumo do vigente

(ente) e, com isso, como vigente. O viger da vigência e, com isso, a diferença entre

vigência e vigente, fica esquecido. É o esquecimento do ser, ou seja, o esquecimento da

diferença do ser para com o ente. Este esquecimento, no entanto, não é a mera

consequência de uma distração dos homens em geral ou dos pensadores em especial.

O esquecimento pertence ao viger do ser. Através dele o viger do ser se vela. O

esquecimento pertence ao envio do ser já desde o pensar matinal de Anaximandro.

Nele, o viger do ser se vela, e começa o desvelamento do vigente (ente) em sua vigência

(ser). A história do ser é esquecimento do ser desde o começo. O viger do ser se vela,

isto é, o ser com o seu viger, com a sua diferença para com o ente, se segura, se detém,

se contém, e, com isso, se custodia. A diferença escapa. Fica esquecida. Somente o que

difere entres si, ou seja, o vigente e a vigência, se desencobre, embora não seja tomado

enquanto o que difere. A vigência aparece, então, como vigente e encontra a sua

proveniência em um vigente sumo. O esquecimento da diferença, porém, não é uma

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carência, mas é o mais rico e o mais amplo evento. É no começar e no consumar deste

esquecimento que a história do ocidente se estende até o extremo, tem o seu êxito, o

seu término, se decide. Trata-se, pois, do evento da metafísica. O que hoje é – a

realidade do real tal como se configura na e para a nossa situação epocal – se dá à

sombra deste evento do esquecimento do ser.

Esquecimento, porém, é sempre esquecimento reduplicativo, isto é,

esquecimento do esquecimento. No esquecimento, quem esquece se esquece tanto de

seu relacionamento com o esquecido, quanto se esquece de estar esquecido ele mesmo.

O esquecido só pode ser experimentado como esquecido na superação do próprio

esquecimento. A superação começa quando nos damos conta dos vestígios do

esquecido. Os vestígios da diferença se nos oferecem à medida que na palavra primeva

do ser - tò chreón) – a diferença entre vigência e vigente se desbasta e se

clareia. É a clareira da diferença. Clareira quer dizer, aqui, a abertura que garante a

possibilidade da sonância e de sua clareza, do luzir e de sua claridade (nitidez). Clareira

é onde a vegetação se desbasta e se torna rala e rara. É abertura que libera e deixa

passar. Vigora como leveza. A clareira da diferença deixa aparecer vigência (ser) e

vigente (ente). Escutar o dito de Anaximandro é ser convidado a entrar nela. Assim, a

palavra primeva do ser - tò chreón) – é para nós um convite a nos

alembrarmos, ou seja, a entrar na re-cordação, a trazer para o âmago de nós mesmos,

a diferença esquecida.

A tradução de tò chreón) então há de se seguir na dinâmica de

superação do esquecimento do ser. Usualmente, esta palavra é traduzida por

“necessidade”. O que se visa com esta expressão é, de costume, o que constrange, o

inexorável ter-de... Esta é uma significação derivada. Mas, qual seria a significação

originária de tò chreón)? Há uma outra significação: o destino. No entanto,

esta resposta permanece problemática. Tentemos escutar neste nome o verbo

(chráo) e, respectivamente, o seu medial, (chráomai). O verbo

(chráo) é defectivo. A ele se podem reportar as formas da segunda e da terceira

pessoa do presente do indicativo: (chrés) e(chré): ter necessidade de,

desejar. Já o verbo (chráomai) significa usar algo, praticar alguma coisa, tratar

de, servir-se de. Se o que está em causa é alguém e não algo então tem a significação de

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tratar com alguém, considerá-lo. O verbo também tem a significação de ter

familiaridade com e entreter relacionamentos com. Este verbo é também afim a

(chaíro): alegrar-se, ser feliz, estar contente, comprazer-se em, ter um ânimo

bom. Da mesma raiz, em latim, temos o verbo hortor: convidar a querer, exortar,

encorajar, excitar, estimular, animar, instigar, aconselhar. A significação de

(chráomai), portanto, nos endereça na direção do uso e da fruição de... Assim,

o verbo (chráo) diz, assim, eu trato de algo. Tratar quer dizer: fazer uso de,

praticar; travar ou manter relacionamento com, frequentar; dedicar-se a, cultivar;

cuidar de. No fundo de tudo isso, porém, está latente a palavra (he heír): a mão.

Neste sentido, tratar quer dizer: estender a mão para, dar a mão a, tomar pela mão. Nós

falamos de dar uma mão a alguém, no sentido de ajudar. Assim, (chráo) significa:

oferecer; dar na mão; dar de mão em mão; transmitir; liberar e entregar com vistas a

um pertencer. Acena-se, pois, aqui, para uma dinâmica de cedência (cedimento,

cessão). Trata-se, pois, de um ceder e conceder. Assim, tò chreón) diz, pois,

a dinâmica de uma entrega em que se segura e se contém a cedência e o cedido. No

particípio tò chreón), portanto, não fala propriamente a necessidade, no

sentido do que constrange, mas o deixar-ser liberador e libertador de uma cessão e

concessão. Destarte, tò chreón) pode significar uma consignação. Com

outras palavras, tò chreón) quer dizer o ser sendo entregue, cedido,

concedido, confiado, ao ente (a vigência ao vigente). Precisamos, agora, prestar atenção

ao viger na vigência do vigente. O viger se dá no modo de um dar na mão e de um

transmitir. O viger acontece como a consignação da vigência ao vigente. Enfim, em

tò chreón) é evocada a relação única do ser com o ente.

A palavra grega tò chreón) nos dá a pensar, de início, na esfera da

vida cotidiana, familiar, no sentido dos usos e dos costumes. Mas, para pensar

tò chreón) no sentido do dito de Anaximandro, é preciso entender o uso não

na sua significação usual do utilizar e do precisar ao modo do usufruto. O usual é aquilo

de que se precisa no exercício do empregar e aproveitar de. O usado, assim, se recolhe

no uso, no sentido do usufruto, do aproveitar de algo, empregando-o. Não é neste

sentido usual que tomamos a palavra uso na tentativa de entender o tò

chreón) no dito de Anaximandro (como palavra primeva do ser). Vimos já que o

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tò chreón) nos remete ao verbo (chráomai), usar, que, por sua vez,

tem certa afinidade com o verbo (chaíro), alegrar-se com, comprazer-se em, fruir.

Assim, mais do que o uti (usar, no sentido de utilizar), o que está em questão é o frui.

Este verbo depoente latino (fruor, frueris, frui, fuitus e fructus sum)6 tem sentido

intransitivo e transitivo. Em sentido intransitivo significa: ter o gozo de, especialmente,

gozar dos produtos, dos frutos de. Daqui vem, em latim, frumentum, cereal, grão, trigo.

Uso, no sentido da fruição, quer dizer, pois, o ter algo em mãos e o ter prazer

com ela, isto é, o comprazer-se nisso, o alegrar-se e ficar contente com isso. É mais que

o mero consumir e saborear. Indica alegria, contentamento, pelo fruto, que é o produto

não só do trabalho, mas também da dádiva do céu e da terra. Frui é uma palavra

importante no pensamento de Agostinho. Ele assim determina a significação da palavra:

“quid enim est aliud quod dicimus frui, nisi praesto habere, quod diligis?”7 – o que é,

pois, aquilo que nós dizemos ser o fruir, a não ser isto: ter à mão aquilo que amas

(estimas)? . Ser é, para o homem, diligere: estimar, amar, considerar. Para Agostinho,

o homem se define por aquilo que e como ele ama (estima, tem em consideração). Fruir

quer dizer, pois, tomar nas mãos (capere), ter em mãos, aquilo que se ama, que se

estima, que se tem em consideração. O advérbio praesto (à mão) se aproxima em sua

significação do verbo praesto, no sentido de estar à disposição de8. Praesitum é aquilo

que está posto aí, ao alcance da mão. Em grego a expressão correspondente é

(hypokeímenon): o que já está prejacente na redondeza do desencoberto.

Assim era chamada a (ousía): o que a cada vez está vigente. Esta palavra, antes

de se tornar um termo técnico na filosofia de Platão e de Aristóteles, para dizer a

entidade do ente (a vigência do vigente), queria dizer: a propriedade e seus recursos, as

suas riquezas, os seus haveres (bens). O uso, no sentido da fruição, quer dizer, pois,

neste sentido, deixar viger algo vigente enquanto vigente.

Assim, tò chreón), como palavra primeva para o ser, pode ser tomada

no sentido de: deixar viger o vigente enquanto vigente, entregar algo à sua própria

6 Verbo depoente: que tem forma de significar passiva mas significação ativa. 7 De moribus eccl. lib. I, c. 3; cf. De doctrina christiana lib. I, c. 2-4). 8 Praesto, -as, -are, -avi, -atum. Noutra forma, quer dizer estar na frente, exceder, ultrapassar; ser superior; defender, proteger, sustentar, garantir; provar, mostrar; preencher, cumprir, executar; fornecer, pôr à disposição: praesto, -as, -are, -stiti, -statum.

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essência, e, assim, segurá-lo, retê-lo, conservá-lo, enquanto tal vigente. Com outras

palavras, tò chreón) diz as mãos do ser, que liberam o ente para, como

vigente, viger em seu vigor próprio, e que neste vigor o preservam. tò

chreón) diz, pois, o viger, o vigorar e o estar sendo do ser, como cuidado com o vigente

(ente) em sua vigência e em seu vigor próprio (essência). tò chreón) diz,

neste sentido, o modo como o ser mesmo vige enquanto o relacionamento de cuidado

com o vigente. Trata-se de um relacionamento que toca ao vigente (ente) e que o trata

com mãos diligentes.

O ser (viger) libera e entrega o vigente para repousar em sua vigência (vigor de

essência), isto é, para demorar na passagem entre a chegada e a partida. O ser (viger)

comunica, isto é, partilha, distribui ao vigente a participação de sua demora. A demora

cada vez partilhada e participada repousa na articulação, na juntura, que dispõe para o

vigente o demorar na passagem, que se dá entre o duplo ausentar (o da chegada e o da

partida). A juntura da demora de-fine e de-limita o vigente enquanto tal. O que a cada

vez vige, (tà eónta), vige no limite - (péras). tò chreón) diz,

pois, enquanto palavra primeva do ser, o partilhar da participação da articulação.

Enquanto tal, tò chreón) quer dizer o articular que apronta, ajeita, arruma e

envia. O ser é o que arruma a articulação e, com ela, a consideração. Ele libera e entrega

cada vigente para a articulação da passagem e para a mútua consideração, em vista da

superação da des-articulação. Isto que ele libera e entrega, porém, o vigente (ente), é

por ele e nele conservado e preservado, de antemão. O ente é albergado e recolhido no

ser.

O ser, que libera e entrega cada vigente (ente), arrumando e enviando-o para a

sua vigência e o seu vigor próprio, de-finindo-o e de-limitando-o, a cada vez, escapa, ele

mesmo, de toda de-finição e de-limitação. O ser, tò chreón), é, ao mesmo

tempo, (tò ápeiron), o que é sem limite. Segundo o testemunho de

Simplício, Anaximandro disse que: (arché ton ónton tò

ápeiron): o vigente tem a proveniência de seu vigor naquilo que vige sem limite. É aquilo

que não está arrumado na articulação e na consideração. É o que não é nenhum vigente,

mas é o que arruma e envia, propicia articulação e consideração, ao vigente. É o que

também, na soltura, deixa ao vigente o poder ser da des-articulação, isto é, deixa-lhe a

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possibilidade de sucumbir no perigo de ficar endurecido, confundindo o perseverar na

demora com o mero durar.

O tò chreón) interpreta, pelo que vimos, o sentido grego originário de

(moira) – a partilha da participação no ser. Para os gregos, tanto os mortais

quanto os imortais estão sob as mãos da (moira). tò chreón) é o

mesmo que (moira): diz o entregar e confiar ao vigente, a cada vez, a demora no

desencoberto. tò chreón) é o ser que encerra em si o recolhimento que

libera, abre, desencobre e, ao mesmo tempo, alberga o vigente (ente). tò

chreón) é o recolhimento: (ho Lógos). Heráclito chama assim o ser. O ser é o

um único que, enquanto recolhimento, unifica todo o ente. Outro nome para ser é:

(Hen). Parmênides, que pensou o ser assim, pensa a unidade deste unificador como

(moira). O viger de (Lógos), em Heráclito, e de (moira), em

Parmênides, é pensado previamente no (Chreón) de Anaximandro. Nestes

nomes o ser interpela o pensamento dos primeiros pensadores. Pensar era, para eles,

corresponder a esta interpelação.

O (einai) do (eón), o ser do ente, quer dizer: viger no

desencobrimento. O viger mesmo traz consigo o desencobrimento. O desencobrimento

mesmo é viger. Ambos são o mesmo, mas não o igual. O vigente é o que vige no

desencobrimento, quer como atual, quer como não atual. Ao viger do vigente (ente)

pertence o ser desencoberto. Ao viger do ser pertence o desencobrimento: a

(alétheia) [verdade] – a redondeza aberta em que cada vigente chega, de

desenvolve e se limita; a redondeza em que se dá mútua consideração entre os vigentes.

Na história do pensamento ocidental a (alétheia), o círculo da

manifestatividade do ente e do ser, ficou impensada, e, com ela, o próprio

encobrimento de seu mistério: a (léthe).

O vigente, ao chegar na redondeza do desencobrimento, aparece. O aparecer é

uma consequência essencial do viger. O vigente, enquanto aparecente, oferece um

rosto, uma fisionomia, um aspecto. Assim, a vigência do vigente (o ser do ente), é

tomado como (idéa). O vigente (ente) é o que foi trazido para a proximidade no

redondeza aberta do desencobrimento. Este ser trazido se dá como a auto-emergência

ou auto-pro-dução - (phýsis) – no caso dos (phýsei ónta) [entes

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naturais]. Ou então é trazido para a proximidade na medida em que é produzido pelo a-

prontar do homem – no caso dos (téchne ónta) [entes artificiais]. Em

ambos os casos, o que é pro-duzido, seja pela auto-emergência da (phýsis), seja

pelo a-prontar da (téchne) [arte], tem o caráter de (érgon) – de pro-

duzido. A vigência do vigente (ser do ente), assim, se dá como o caráter de ser

produzido: (enérgeia). Platão pensou o ser do ente como(idéa);

Aristóteles, como (enérgeia).

A (enérgeia) de Aristóteles, a (idéa) de Platão, o (Lógos)

de Heráclito, a (moira) de Parmênides, o (Chreón) de Anaximandro,

nomeiam o Mesmo. O Mesmo não é o igual. Não é uniforme. Em sua simplicidade

guarda uma grande riqueza. O Mesmo vige como a unidade do Um unificador: o

(Hen).

Na época da metafísica a (enérgeia) é soterrada sob a cunhagem

romana da actualitas – o esse do ens (ser do ente) é tomado no sentido de agere –

impelir para adiante. O ser é tomado como atividade contínua. Para o ens (ente), esse

(ser) é, propriamente, esse in actu, ser em atividade. A actualitas, na modernidade, se

torna efetividade e, por sua vez, a efetividade se torna objetividade. A objetividade,

enquanto ser-representado, requer, porém, presença. Objetualidade e objetividade só

é possível à medida que o ente tem o caráter de presença na representação de um

sujeito que põe diante de si o re-presentado. O sujeito é auto-presença que re-presenta

a presença do que se lhe apresenta. A guinada decisiva que marca o envio, o destino do

ser do ente, na história do pensamento ocidental, reside toda na passagem da

(enérgeia) para a actualitas. Esta guinada é um evento silencioso. Nas palavras

fundamentais da época da metafísica vem à fala, nas línguas históricas da tradição, o

destino, o envio, do ser, no sentido do ocidente (ocaso). A confusão do hodierno destino

do mundo tem a ver com este ocaso. Heidegger descreve, brevemente, esta situação

hodierna do mundo – sua confusão – assim:

O homem está prestes a precipitar-se sobre a terra no seu todo e sobre a sua atmosfera, a usurpar, sob a forma de "forças", o campear escondido da Natureza e a sujeitar o curso da história aos planos e à ordenação de um governo da terra. O mesmo

Page 37: CURSO DE FILOSOFIA ANTIGA...2 (arché), o princípio, (ton ónton), dos sendos (entes), era (tó ápeiron).Em vez de seguirmos as trilhas já abertas por Aristóteles, vamos procurar

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homem em rebelião é incapaz de dizer, simplesmente, o que é, incapaz de dizer o que é isso que uma coisa é9.

O todo do ente se rebaixou a objeto de uma única vontade de conquista do

homem. O simples do ser ficou entulhado em um único esquecimento. Abre-se o abismo

diante dos olhos de quem se põe a pensar, em meio à confusão. Cresce o perigo.

Comvém, talvez, lembrar os versos de Hölderlin, que dizem: “Ora, onde mora o perigo /

é lá que também cresce / o que salva”. O perigo é. Pertence ao ser. No extremo do

esquecimento do ser, pode acontecer, ainda, uma guinada? O viger do ser precisa da

essência do homem? Interpela hoje o homem para o pensar da verdade do ser? Escutar

o dito de Anaximandro hoje significa empenhar em pensar a verdade do ser adensando

seu enigma. Poderemos nós, os vespertinos (ocidentais), escutar a interpelação daquela

palavra matutina? O que fizemos até aqui foi uma tentativa de nos dispor para isso.

9 Heidegger, Martin. Caminhos de floresta, p. 439.